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Telescópio para uma

Estrela Cadente
Telescópio para uma
Estrela Cadente

Victor Ausina Mota

Tender Edições
Título: Telescópio para uma Estrela Cadente
Autor: Victor Adelino Ausina Mota
Conceção: Cefilo
Impressão e Acabamento: Tender Edições
1ªEdição: Agosto 2010
2ªEdição: Setembro 2010
www.tender.com.pt
geral@tender.com.pt
ISBN: 978-989-8112-10-1
Depósito Legal: 282356/08
Copyright do Autor
Lisboa, Comunidade Europeia
Para a Sandrina,
a verdadeira estrela
Capítulo Primeiro
OBSERVATÓRIO

Longe da frescura de espírito que conheci por alguns dias no final


da adolescência, começava a ficar frágil. Suspeitava por momentos o
que estava a perder da vida, sobretudo quando a televisão me
apresentava casos de encontros amorosos fortuitos que exaltavam
alguma réstia de raiva pelo meu fracasso de anos junto do sexo
oposto. Todavia, tardava em transformar a minha vontade e
constatações do quotidiano em actos concretos que me colocassem
numa situação de contacto com a vida dos outros. Os dias passavam-
se numa aldeia que me oferecia um café e um ambiente para
trabalhar. Precisava agora era de conhecer o meu público. Recusara-
me a arranjar trabalho nas redondezas porque o terreno estava
manchado de actos mas sobretudo de pensamentos. Nenhum
entusiasmo juvenil me assistia e mesmo que uma ideia luminosa de
retomar os estudos ou de ir para um qualquer país desta Europa
trabalhar me ocupasse durante algumas horas do dia, as seguintes
tolhiam a minha capacidade de iniciativa para sair de casa, arranjar
dinheiro que me permitisse respirar em relação aos gastos de uma
casa em Lisboa e dívidas contraídas em anos de encarceramento do
Ego. Para quem me olhasse de fora (como se fosse possível alguém
olhar certa pessoa a partir de dentro a não ser através da narrativa
do sujeito…) parecia evidente a minha falta de brio e de capacidade
para pensar no futuro. Parecia preguiçoso, despesista e não sei que
mais. E era. Só que por dentro vivia adormecido um ser que
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aprendera a fugir ao trato social e a arquitectar a mais elaborada
visão acerca do seu futuro. Com a minha afectividade transtornada,
punha a hipótese de algum dia ter alguém com quem se tivesse a
certeza de nos conhecer e gostasse de mim tal como eu sou. Mas não
podia esperar muito. Refugiava-me em encontros fugazes e
insatisfatórios, em palavras breves e permitidas. Reconstituía a
minha afectividade não direccionada, num puzzle onde o erotismo
abafava os sentimentos de ternura que não se descrevem porque são
exclusivos dos indivíduos.
A minha vida estava “cortada”, a “escuridão” abatera-se sobre o
meu futuro. Que mais podia esperar? O que é que podia esperar se
não me era dado viver o dia seguinte, se eu próprio tinha a ilusão de
ser o travão dos meus próprios desejos, legítimos e ainda vivos?
Supunha ser revoltante para aqueles a quem expunha os meus
problemas o facto de não sair de mim próprio, talvez porque me
conheciam o suficiente para acreditar na imagem que tinham de mim
como um indivíduo minimamente sociável. Mas eu não podia fazer
nada a não ser pensar, alimentar esperança de ser bafejado por uma
réstia de audácia que me fizesse saltar para fora do mundo interior.
O que mais me aborrecia era o facto de pensar que mesmo assim,
nesta situação, tinha motivo para escrever sobre a minha vida.
Poucos factos, muitas hipóteses, um só personagem que se movo
através de uma multidão da qual guarda rostos e retira palavras para
fazer a sua teoria sobre a vida que vai vivendo.
Sabia que estava a perder muita coisa. Mas, simplesmente, o que
estava a perder estava a ser vivido por outros. Isso podia
reconfortar-me, como se me sobrasse ainda alguma espécie de
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solidariedade para com os outros. O que mais importava é que eu
não estava a viver o que sentia perder. E nisso é que me concentrava
naqueles dias.
Afligia-me também o facto de saber que os escritores têm fãs,
quando para mim eu estava a viver algo de real e merecia, e algum
modo, admiração. Mas o que me fazia ranger os dentes era supor
que esta relação escritor-admirador funcionasse em termos de
favores sexuais, mais exactamente como fonte de chantagem. Eu, que
condenava a falta de correcção dos outros, invejava não conseguir
viver como eles. Supunha que sabia viver, mas não vivia. Tudo era
simples: bastava resolver-me a viver como os outros ou à minha
maneira partindo de uma leitura inconsciente das acções dos outros.
Mas não, hesitava.
Esta teimosia ia custando caro, dia após dia. Corria o risco de
simplesmente não ser entendido e nem mesmo teria a sorte de ser
compreendido através dos meus registos diários, pois não estaria
presente quando fossem lidos 50 anos mais tarde. Sem saber,
arriscava-me mesmo assim a ser tido como um produto, um reflexo
da minha época, da minha cultura, da minha sociedade. Os meus
escritos bem poderiam ser tidos como nada mais do que um produto
de patologia psiquiátrica com que procurava sempre justificar o meu
estado de espírito quotidiano.
Mas, em todo esse tempo de encarceramento que eu julgava
inconscientemente voluntário, como se tivesse vocação para ser
besta de algum sacrifício em nome da escrita ou de algo em que eu
já não acreditava, nem um esgar de raiva, de revolta por injustiça.
Talvez acreditasse que a sociedade me esquecera, a sociedade me
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haveria de recompensar. O meu corpo definhava e mal podia respirar
após alguns momentos de esforço físico. Estava totalmente
dependente do meu espírito, esse mesmo agente secreto que me
havia traído, umas vezes subliminarmente e sem me aperceber,
outras às claras mas tirando-me a hipótese de ripostar. Mas a
sociedade esquece e não volta atrás. Se não somos reconhecidos e
gratificados com as nossas acções pontuais, que reflectem a forma
como interiorizamos normas e crenças colectivas, não mais seremos
aplacados. Tudo conflui para o presente e tudo é lido em função do
presente. Eu próprio não ponho na gaveta do passado os dias que
me inspiram estas palavras. Daí que não tenha um romance na
gaveta, não tenha personagens que possa estudar através dos anos,
não tenha retratos psicológicos (muito menos sociais ou até
culturais, que muito mais me satisfariam) que possam ser entendidos
como representativos de algum tipo de atitude no seio de um
determinado contexto social. O que me falta são as bases de apoio
para o tipo de perfil psicológico do homem em que me transformei.
Faltam-me factos que comprovem o que tento dizer, a minha forma
de ver as pessoas, de ler o mundo. Só quando arranjar sustentação
para esta ciência poderei ter tudo aquilo que me não tenho, tudo o
que me foi roubado por uma mente que não é a minha. Que
confunde o passado, o presente. Pois, o futuro não existe. Ao menos
isso aprendi.
Por fim, a capacidade de amar, coisa que não tenho. Também
desconheço o que é ser amado e uma relação sem pressas, que
retarda a ansiedade e nos faz mover num tempo próprio, elidindo os
tempos convencionais da nossa biografia e os outros que se
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intrometeram na nossa vida através dos anos: o tempo dos outros.
Compreensão. É o que mais procuro. De outro modo, multiplicam-se
os sujeitos dentro de nós e entramos em conflito, como Dr. Jeckyll e
Mr. Hide. Talvez por acreditar que a compreensão, que é o
reconhecimento do outro, seja o motor da acção, eu seja tão teimoso
e relutante em acreditar no mundo que desfila diante dos meus
olhos. E quero acreditar que tudo isto não é uma revolta contra a
iniciativa individual da minha figura paterna.
Depois de ter permitido que a desordem se instalasse nos meus
dias vazios de acontecimentos, palavras e diálogos, tinha a
consciência de ter recusado ser espontâneo no trato com os
próximos. Talvez tivesse receio de perder uma ou outra presença,
mas isso estava agora a custar-me caro, pois estava paralisado mais
do que nunca nos meus desejos e aspirações. Além do mais, perdia
força física desde há meia dúzia de anos e este aspecto preocupava-
me bastante. As hipóteses de continuar a estudar por cá ou sair para
fora para trabalhar apresentavam vários senãos e cada vez mais me
convencia de que iria viver de uma pensão de sobrevivência e de
uma renda de casa. Depois, o meu interesse pelas coisas sociais
perdia-se e com isso a apetência a um trabalho que não viesse
directamente de encontro aos meus propósitos pessoais a respeito
do futuro. Se um dia fora selectivo em relação à ocupação laboral
que haveria de levar a cabo, tornava-me agora, por acção do
desgaste do tempo, ainda mais selectivo.
Desiludia-me o pensamento de que qualquer que fosse o meu
esforço por escrever algo que tocasse a um número razoável de
pessoas, nunca seria bem sucedido porque me faltariam vivências.
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Mais importante do que isso, não vivia de facto nenhuma vida e a
ilusão de criar hipóteses de relacionamento com personagens
fictícias não se concretizava de modo algum nos dias seguintes.
Podemos dizer que a culpa seria do meio social em que me cansara
de viver e alimentar esperanças, de ver surgir novos e talvez
apocalípticos acontecimentos. Ou seria apenas minha a culpa, por
falta de fé em que momentos importantes dos primeiros anos de vida
se repetissem ou se articulassem com outros, criando em mim
defesas contra a acção maléfica do meu próprio espírito inquisitivo.
Fazia, portanto, constantes observações a respeito de mim próprio
partindo de uma base experiencial algo incoerente. O que podia ter
feito que ditasse uma outra atitude perante as coisas, as ideias, o
facto de as críticas dos outros face a reacções espontâneas da minha
parte se acoplarem no meu espírito ao ponto de me reduzir a
emoção perante coisas e acontecimentos, perante palavras mais
palavras dos outros. A relação com o meu pai simplesmente não
existia. Eu sabia bem demais o que ele pensava de mim e talvez não
estivesse ainda cansado de esperar que pensasse de outro modo.
Talvez a minha visão do mundo estivesse totalmente errada. A julgar
pelos sinais exteriores, seria mesmo assim. Ninguém me dizia uma
palavra de encorajamento, comunicava comigo, se referia a alguma
coisa que tinha escrito. Estava só. Contudo, persistia em seguir o
meu espírito desgovernado e mesmo que o meu futuro fosse a vítima
constante das suas investidas e críticas.
Talvez estivesse deixando intrometer o que pensavam os outros
na minha vida pessoal. Talvez tivesse medo, não o medo psíquico ou
físico, não o medo de errar e ser visto o meu erro, mas receio e
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depois medo de não ir em favor do conhecimento da norma social. E
este sentimento levava-me a perder a espontaneidade, a opinião
positiva sobre os meus actos e pensamentos, a iniciativa para seguir
um caminho próprio. Isto resultava de uma má leitura dos
acontecimentos, pois sempre soube e acreditei que os sentimentos e
aspirações individuais não são incompatíveis com o sentimento
social, podendo renová-lo ou fluir através de friestas da sua
influência. Era, assim, frequentemente levado a refugiar-me no sono
ou na simples postura de estar deitado, acometido de pensamentos
que não resultavam de diálogo entre pessoas mas apenas da minha
leitura de breves palavras, da suposição que alguém me podia estar a
ler o pensamento, vulgo mania da perseguição. Diga-se que estava
cansado dos lugares que percorria, que nada me traziam de novo.
Tinha de arranjar um meio de conseguir sair dali, estava sendo
insuportável não fazer nada.
A relação com a minha mãe havia sido prejudicada por faltas
sucessivas da minha parte, por incompetência em gerir o parco
dinheiro que dela me chegava às mãos. Sentia que precisava da sua
presença mas que tinha de partir para qualquer lugar longe,
conquistar alguma coisa. Quanto à minha irmã, continuava
dependente dela económica e afectivamente. Depois de termos
vivido na mesma casa durante um ano, de ter sido insultado e
continuar a ser constantemente criticado, reconhecia que ela sempre
me ajudara a tornar-me naquilo que sou.
Em toda esta situação, o facto de continuar a escrever justificava-se
por ser a única actividade em que reconhecia a mim próprio e me
realizava. E pouco me importava o facto de não ser compreendido.
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Eu continuava. Teria de perder, tinha crescente consciência disso,
tudo, para poder voltar a ganhar alguma coisa. Tinha de perder o
respeito para com a ideia que tinha de um livro, um romance, a
definição dos estilos literários. Se não criaria um estilo próprio, teria
pelo menos um modo próprio de escrever e isso seria mais útil do
que procurar escrever o que os outros esperavam, mais verdadeiro
do que moldar o meu espírito em função do que eu achava que
realizava o leitor: um romance, coerente, com muitas personagens,
de preferência sem conflito psicológico, onde o meu êxito garantisse
a legitimação de certos modos de vida. No entanto, duvidava que
algum dia escrevesse um romance do género. Não, não iria embarcar
mais nessa ilusão de boa escrita. Doravante teria de conciliar as
criações do meu espírito com o que já havia sido colhido pelo
pensamento colectivo. Teria de ter consciência dessas duas balizas.
Havia certamente outras formas de expressão a descobrir e era
necessário, apesar das frustrações e tudo o mais, acreditar que
alguma coisa de bom podia fazer. Nem que fosse apenas escrever
este livro até julgar que um novo ciclo chegara ao fim.
Capítulo Segundo
AS MARÉS

Saí do meu posto de observação para analisar a superfície da terra


e do que ela é composta. Queria saber mais sobre a estrela que me
ocupara nos últimos dias de observação: onde tinha caído? E seria
mesmo todavia uma estrela?
É claro que teria de deixar o meu posto de observação por algum
tempo. Calculava que, um dia, teria mesmo de definitivamente deixar
o meu ponto de observação, pois outros acontecimentos ameaçavam
ocupar o espaço onde, a pretexto de observar fenómenos
astronómicos, tinha a sensação de estar perscrutando a minha
própria alma em seus movimentos etéreos. Deixei, pois, o meu local e
decidi-me a percorrer a superfície da terra em busca da tal estrela
cadente. Não acreditava que, depois de percorrer a superfície da
terra por mas diversos meios pudesse vir a concluir que o meu
futuro estaria naquele lugar que agora deixava. Como Santiago, o
herói pessoal de Paulo Coelho, estava convencido de que tinha uma
Lenda Pessoal a seguir. Os fenómenos religiosos diziam-me ainda
alguma coisa, mas eu agora estava do lado de fora, observando de
fora, destituído de emoções, ferido e arrasado pela acção do meu
espírito nos meus planos, procurando num corpo celeste a resposta
para a minha falta de serenidade.
Cheguei, pois, junto a uma praia e fiquei desta vez observando o
fluxo e refluxo das ondas. Aí permaneci até ter uma ideia de como
seria a próxima maré. As más memórias de acontecimentos passados
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não me diziam nada estando eu naquele lugar. Talvez depois de
tanto procurar e de chegar às provisórias conclusões de que me
tinha de encontrar com os outros, teria ainda de me encontrar
comigo próprio. Dizem que é isso que se deve fazer. E tinha a
impressão de que em nenhum dos meus registos escritos esse
encontro estava gravado. Esta ideia complicou os meus propósitos
delineados a partir da observação de tudo o que estava fora da terra:
simplesmente, eu estava cometendo um erro de perspectiva. Não é
que não fossem reais ou de certa maneira válidas as minhas
observações; simplesmente, eu estava embarcando numa aventura
que não ajudaria em nada na minha tentativa de recuperação como
ser humano. O facto de esta ali observando as marés trouxe-me de
novo alguma calma para saber como havia de preparar o meu
espírito para os acontecimentos que se iriam desenrolar.
Voltei para lugares onde havia seres humanos a quem pudesse
indagar sobre o destino de uma estrela e, mais importante, se alguns
de entre eles teriam cometido os mesmos erros de observação e a
que conclusões teriam chegado que modificasse as suas vidas. Pelo
caminho pensava o quanto teria o televisor contribuído para esta
deficiência na abordagem as fenómenos do espírito. Esperava que
um meio tão poderoso de difusão de imagens tivesse um papel mais
importante na difusão e intercomunicação de saber se não fosse tão
mal administrado. O contrário acontecia com a internet, à qual eu
não tinha ainda acesso. Talvez fosse mesmo um passo importante a
dar, transmitir os meus dados e conclusões pela Internet eu próprio,
pois todos os meus esforços por me dar a conhecer a um editor
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haviam esbarrado em políticas e económicas editoriais, o que era
apenas uma desculpa para a falta de situação clara para o meu
registo escrito, isto por razões que anotei atrás.
O sonho confundia-me, pois me via frequentemente a avaliar
acontecimentos passados em função da minha personalidade,
ficando frequentemente com a ideia que apenas eram acções e nada
mais, nada tendo a ver com a minha personalidade. Mais do que
procurar a minha personalidade no fundo de mim mesmo, eu tinha
de acreditar ser possível contrariar ideias de Jean Piaget e outros de
que formamos essa personalidade até um dado momento do nosso
percurso biológico. Tinha de acreditar mais em mim e esperar que,
senão uma experiência transcendental, pelo menos o meu trabalho
de observação acabaria por moldar a minha personalidade. Vamos
ver como me saí.
Capítulo Terceiro
OS PLANETAS

Sentia nesses tempos necessidade de um grupo de amigos, talvez


mais do que uma companhia singular, pois corria o risco de a perder
em pouco tempo devido às minhas infindáveis questões acerca do
significado e do lugar da vida e das coisas. Por isso, convivia com a
minha solidão. Não tinha medo de ficar só, apenas não compreendia
como podia reter no interior tantas interrogações sem procurar
encontrar alguém do meu género com quem pudesse conversar. Não
esperava uma solução que me transformasse o espírito e os hábitos
do quotidiano. Nem uma recuperação gradual de um estado de
adolescência em que quem me rodeava ficava admirado com as
minhas perguntas. O que estava feito, feito estava. Teria de lidar
inclusive e sobretudo com o fantasma da obsessão por sexo e
impedir que isso me esvaziasse por dentro como receava poder vir a
acontecer. Sentia as coisas agora de um modo diferente, menos
profundo, poético e emocional. Talvez porque tivesse recusado a
minha herança cultural e apenas confiasse na minha cabeça e nos
pensamentos por ela produzidos.
Teria de tirar da minha cabeça a ideia de vir a arranjar um
emprego em condições pré-determinadas, onde poderia progredir,
onde teria de acorrer todos os dias, onde teria de fazer coisas
diferentes das minhas preferências. Tinha de arranjar um emprego à
minha medida e se pudesse naquela época já o teria arranjado,
mesmo apesar de ter um refúgio, comida e dormida em casa dos
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meus pais. Contudo, eu esperava vir a ser um pesquisador das coisas
do mundo por conta própria. Não esperava pensar o que os outros
gostam de pensar, mas registar como legítima a desordem aparente
do meu espírito. Talvez estivesse a correr o risco de ser demasiado
arriscado escrever e pensar isoladamente, sem ter sequer
familiaridade com meios intelectuais ou com os produtores de textos.
Estava convencido de que a resposta para as minhas questões se
encontrava algures na terra, entre os seres humanos. A verdade
resultaria da consciência da experiência dos outros, mais do que no
fruto da minha experiência dessa vivência. Esperava que a visita a
vários planetas já conhecidos anteriormente por outros exploradores
me revelasse a necessidade de mudar de perspectiva na minha
observação acerca dos fenómenos. Suspeitava até que a minha
tendência para fazer observações poderia ser diminuída ou até
eliminada quando obtivesse respostas. Mas isso seria o mesmo que
andar pelo mundo com certezas e ler os acontecimentos pela lente
dessas certezas. Para além das respostas a questões que iam
surgindo no nosso planeta, com satélites e características próprias. O
que era mais espantoso seria acreditar que as perguntas poderiam
ser infinitas e isso sim, isso seria perscrutar no próprio coração da
divindade. O meu mundo era um mundo de suposições, mesmo
assim. Tirava dados através de palavras que não eram dirigidas a
mim nem resposta às minhas perguntas.
Parti, então, à procura da dita estrela. Sabia já que teria de
concentrar as minhas energias futuras sondando os meios de me
deslocar a outros planetas.
Custa-me ter de falar a partir da minha experiência pessoal e tal
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acontece quando não tenho outras referências. De qualquer modo, o
que mais me interessa é o modo como diferentemente vou vendo as
coisas e em que medida a visão dos outros me influencia. Gostaria de
ter em conta a perspectiva dos outros, mas não é fácil levantar a
cabeça e tomar uma posição erecta quando o nosso próprio espírito
abate o corpo e ocupa a mente em ruminações que só ao sujeito
dizem respeito. Não sei o que interessa ao leitor: se os pormenores
sórdidos e obsessões daquele que escreve se esperar ver um
caminho de regeneração do autor através das linhas. Porventura o
que está na moda será “apanhar” ideias, pensamentos e sentimentos
que todos, de uma maneira ou de outra, apesar de terem experiência
subjectivas distintas, uma vez já viram aparecer no coração e na
mente.
Por vezes esqueço-me que devo contemplar a minha vida a partir
de um futuro imaginado, de um lugar ermo e distante, e dou comigo
a pensar em termos de presente, tal a força da experiência subjectiva
que sobre o meu espírito se abateu. Confesso que não sei o que de
positivo me vai trazer a tal estrela e que não sei mesmo se adiantará
alguma coisa deslocar-me a outros planetas, ao interior dos outros,
para me regenerar. Talvez seja fácil assim dizer, em jeito de desculpa,
como se de uma fuga para a frente se tratasse. Gostaria ainda de
acreditar, senão em mim próprio, numa força ou esperança exterior a
mim próprio que me tirasse deste ponto de observação em que se
tornou o meu corpo através do meu espírito. Deixei um local exacto
de observação e um meio, o telescópio, mas os hábitos
permaneceram dentro de mim e o espírito assimilou-os. Talvez venha
a ter de andar raivosamente de um lado para o outro fugindo de
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mim, sacudindo violentamente a cabeça para fazer esvair qualquer
coisa que me perturba, que me perturba muito. Gostava de ter forças
ainda, força física para me sentir ainda vivo e com possibilidades de
impedir, de para o jogo de ping-pong que se passa dentro da cabeça,
sem que pare por instantes, mesmo e apenas ao nascer do sol,
momentos em que tenha algum repouso nos lugares ínfimos em que
me movo. Menti ao leitor quando disse que iria viajar por diversos
locais do planeta e menti ao prometer descrições de viagens a outros
planetas quando sabia que não tenho meios para tal. Mentiria
também se dissesse que não gosto de viagens. Na verdade, tenho a
ideia de que uma viagem me podia regenerar. Mas regenerar de
quê?, perguntará o leitor. “Basta-lhe dar dois passos para conquistar
uma nova realidade e esquecer o passado que lhe pesa como um
manto sujo e pesado”Bem gostaria de ter essa certeza, mas mais
ainda de ter fé para dar esses passos.
O que aqui relato não é resultado da minha imaginação, como
poderá supor o leitor. A imaginação está presa ao fundo do mar,
embatendo contra as paredes do interior de um navio afundado,
alimentando-se de corpos em decomposição. Pena é que o espírito
não possa ver devidamente a decomposição do corpo na superfície
da terra. Apenas constato que vou envelhecendo, abatido não pelo
confronto com adversários ferozes usando armas possíveis, mas por
uma estranha doença de falta de imaginação à superfície, onde ela
seria mais necessária para rejuvenescer o espírito. A realidade pouco
muda, a realidade mais próxima dos amigos e família. Talvez eu
quisesse que se registassem mudanças bruscas, mesmo
apocalípticas, talvez tenha um espírito de compreensão que só
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entende por excesso. Se assim surgisse, talvez estivesse menos
preocupado em criar ilusões no meu espírito que resultam de desejos
há muito insatisfeitos e que continuam sobreviventes sob a capa
dura da realidade, dos conceitos dos outros que adopto para me
iludir, do super-ego que tenho em conta de ser o meu único guia
nestes caminhos densos e escuros do mundo.
Saiba o leitor que gostaria de ser um escritor como os outros, já
agora com algum sucesso. Mas não consigo ser o monstro que se
alimenta do sangue e lágrimas (e suor) dos seus personagens,
depositando numa bolsa a que poderíamos chamar imaginário
afectivo, que proporcionaria a esperança de ainda em vida do autor
ser reconhecida a patente de pensamentos e sentimentos que não se
registaram, mas que de uma forma ou de outra poderão vir a bater-
lhe à porta. Isto é maquiavélico. Como autor, não consigo ser assim.
E não consigo registar experiências reais de sentimentos. Não
conseguiria, mesmo que as tivesse vivido. Ao invés, preocupo-me
com pormenores, talvez aqueles que menos interessam. Reduzo as
possibilidades de contacto com os outros ao mínimo, mas que
aumentem as esperanças, para que diminuam as probabilidades de
cometer um suicídio por contacto com o mundo e as pessoas. Então,
porque me deixo abater, mesmo assim? É que é o jogo dos possíveis
que me perturba e é desse jogo que crio expectativas em relação ao
mundo. Todos estes comentários, estas observações, dirá o leitor, são
desnecessárias, precoces, não levam a nada nem representam nada.
Pois. Mas é este o estado presente das coisas, mesmo querendo eu
iludir o problema com a falta de personagens e a angústia que isso
gera, mesmo querendo eu falar de mim a partir de um futuro que
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não existe ainda, falando do presente como uma coisa distante que
não se repetirá, quando a realidade é que o fracasso se repete todos
os dias seguintes, quando acordo e me levanto. As personagens
simplesmente não surgem porque não tenho tendências canibais.
Não será tanto assim. Vivemos com os outros e alimentamo-nos da
experiência e imaginário dos outros. Mas entre viver
inconscientemente as experiências dos outros e retalhar sentimentos
que não nos pertencem no papel através de personagens fictícios é
um exercício a que não me entrego. Talvez por formação, talvez por
opção, tenha preferido a dureza e o frio de um existencialismo que,
diga-se em abono da verdade, apenas tem de positivo o suspense.
Mas cedo, nos primeiros passos, muda a cor para um cinzento e
depois para um negro que é objectivo, sim senhor, mas que não se
move. Acumula-se, por isso, o tempo no espírito deste ser. E com ele
o sofrimento. Pode ter muita razão aos olhos dos outros. E a seus
olhos. As, se colocarmos a hipótese de eu suportar uma capa negra
assim, não julgo ter razão sob o meu olhar. É que fico abandonado
numa seara entre seres indiferentes (quem serão estes seres
indiferentes?), fico num deserto, comprometido em buscar alimento
na vertical, apenas dependente de mim próprio, perdendo tudo o
resto. E tudo o resto é o que não tenho neste momento. Como pessoa
que tem direito a viver como o comum dos mortais. Tudo o resto é o
que não tenho para poder escrever um romance que toque o leitor.
Interrogo-me se não estarei fazendo cedências à ideia de que deveria
ser como os outros, de que faça o que fizer, a tendência é para a
normalidade e o senso comum. Talvez. Mas sobreviver é mais
importante.
Capítulo Quarto
OS SERES INDIFERENTES

Ser indiferente é não escrever. Talvez valha a pena reformular o


conceito de que a indiferença é a ausência de atenção face aos
acontecimentos trágicos que nos rodeiam. A indiferença pode ser
útil. Ao contrário do que se pensa, a indiferença não mata, ela é o
garante da sobrevivência do indivíduo nos dias de hoje. Podemos
dizer que ser indiferente é não ter ideias próprias ou sentimentos
humanos. Mas o que é um autor para dizer quem é ou não é
indiferente? Os sentimentos evoluem colectiva e individualmente e
não podemos julgar uma pessoa apenas com base na sua aparente
falta de solidariedade para com o próximo. Talvez nos dias de hoje as
pessoas tenham alterado a sua forma de interiorizar a leitura do
mundo em função da sua vida e da sua experiência. Talvez as
pessoas, cada vez mais, leiam o mundo em função daquilo que
determinados acontecimentos representam para as suas vidas.
Quando afirmo que me arrisco a permanecer solitário numa ceara
de seres vivos indiferentes é a partir da minha experiência pessoal,
porventura da falta de compreensão dos outros em relação ao
mundo do meu pensamento. E este é o cenário da minha busca da
estrela e descoberta de outros planetas. Sem dúvida que a vida é
uma luta contra a ameaça de sermos encarcerados no nosso ego.
Esta é, pelo menos, a minha leitura dos acontecimentos que tenho
presenciado com os meus olhos. E não poderei de forma alguma
dizer liminarmente que certos actos individuais são inteiramente
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meus, pois resultam na maior parte de empréstimos dos outros.
Mesmo que tenha a sensação de estar nessa seara ou nesse deserto,
em pouco tempo as coisas se poderão alterar. Contudo, a habituação
que desenvolvemos em relação a certas maneiras de ler os
acontecimentos faz com que imóveis fiquemos face a realidades
gritantes que presenciamos.
Já me cansei de dizer e escrever como é aflitivo viver numa aldeia
onde simplesmente temos a certeza que não pertencemos a lugar
nenhum nessa comunidade, onde mesmo o tempo não joga para nos
fazer justiça. É verdadeiramente surreal habitar provisoriamente um
lugar onde aquilo que fazemos nunca poderá corroborar o que
dizemos. Qualquer opinião sobre a vida social do dormitório que
habitamos é, ao invés, interiorizada e talvez projectada para a bolsa
ou ficheiro da comunidade ideal de que um dia possamos vir a fazer
parte. Repito que não quero parecer diante do leitor que lhe estou
lendo a mente. Mesmo que estivesse a fazer tal coisa seria a partir de
pessoas que conheço (!) e que nunca irão ler a minha obra. Apesar
de partir de poucos elementos reais para escrever estas observações
a partir do meu Observatório, tenho consciência de que assimilei
alguma coisa das realidades que me foram dado viver. Direi mesmo
que assimilei o que devia e o que não devia, ou que o meu espírito
me pregou partidas, reflectindo mal aquilo que não é o que é. Daí a
vantagem de um ser indiferente. É que se conhece melhor a
realidade e a sua imagem molda-se no nosso pensamento
conjuntamente aos nossos desejos e permite-nos ser o espelho vivo,
humano, de uma realidade que não é palpável. E é bonito estar e
viver identificado com alguma coisa. Podemos nem sempre estar
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fortes, mas o tempo joga cumulativamente a nosso favor. Não quero
sequencialmente dizer que tenho um espírito demasiado
independente para me confundir na realidade que observo. Ou que
quero exclusivamente fundar uma realidade nova, que possa ser
reproduzida. Quero tão-somente ser dono de uma visão do mundo
sem o saber e, mais do que isso, poder intervir na realidade e este
aspecto é o que de mais importante tem a figura do ser indiferente.
Mesmo não sabendo, está fazendo história. Coisa que é ambição
destes escritos. Não pretendo resgatar a minha alma ou relatar o
requiem de um ser que tentou tudo para ser indiferente quando
podia ser simplesmente outra coisa, como por exemplo ele próprio.
Mas o que é ser a própria pessoa que se é?
Corro, apesar das minhas investidas e combates, também eu
corro o risco de me tornar num ser indiferente. Imbuído do meu
espírito de pesquisa subjectiva, corro o risco de me ocupar
demasiado com reflexos da realidade que recuso aceitar, viver e
compreender. Corro o risco de, na minha mesquinhez e
idiossincrasia, me tornar eu próprio indiferente ao mundo dos
outros, tão preocupado em arranjar uma fórmula para viver que me
esqueço de viver, me esqueço de ser eu mesmo em face dos
acontecimentos. Já disse anteriormente que somos resultado da
nossa relação com os outros e com o mundo. E disse também que o
pensamento objectivo e subjectivo evolve, transforma-se de acordo
com as necessidades da realidade que nos envolve. É sabido que a
formação da nossa personalidade começa cedo e após tentativas de
diálogo com o mundo, o nosso espírito se afirma como sagaz ou se
desenvolve para dentro, embutido. É com isto que quero dizer que
-28-
mesmo diferente numa seara de indiferentes, o espírito desenvolve-
se. Sempre. E quer tenhamos mais propensão para o exterior ou mais
propensão para o desenvolvimento interior, todos os seres são
passíveis de serem entendidos como alguém que tem sempre alguma
resposta face às solicitações do mundo. Talvez se entenda
subliminarmente que pretendo substituir as formas de compreender
o mundo e sugerir outras para a relação entre as pessoas. Pudesse
eu, a partir da desejada riqueza da minha experiência humana, fazer
isso. Nem pretendo sequer descrever uma forma totalmente nova de
ver as relações sociais. Na verdade, não sei bem o que pretendo. Vou
avançando, em busca de algo novo, ou talvez de algo que havia sido
esquecido, algo em que nunca havia pensado, ou algo que não está
nem no passado nem no futuro, mas simplesmente mais adiante logo
que eu dê dois passos.
Capítulo Quinto
INDO AO ENCONTRO DOS OUTROS

Um fio de ideias pode levar-nos longe. Contudo, alterações na


forma como encaramos o quotidiano, uma mudança de perspectiva
em relação à imagem que temos de nós mesmos pode fazer parar ou
acabar um novelo, pelo que temos de nos munir demais fio, dar nós,
de modo a ter uma ideia coerente da realidade que pretendemos
abordar. A ideia base é que o mundo pode ser lido à maneira de cada
um. E de que nos serve compreendermos o mundo se apenas quem
nele intervém adquire identidade face a grupo? Todos temos de
cumprir certas etapas no curso da nossa biografia. E todos, mais
cedo ou mais tarde, nos vemos na contingência de tomar decisões
quanto a essas opções. Contudo, em certos momentos, longos
momentos em que a consciência reata percepções
intermitentemente, temos a impressão de estar longe de concretizar
qualquer coisa que, ao menos, diminua a pressão que os outros
exercem face ao nosso eu desobediente e indisciplinado. São as
perguntas de circunstância que nos fazem corar. Mesmo os mais
novos são sensíveis a isso e não compreendem que alguém não
tenha profissão porque não se inseriu socialmente em lugar algum.
Todo este clima pode gerar rejeição a compromissos sociais, a
responsabilidades, pode mesmo anular o sujeito criador de opinião
sobre factos que têm directamente a ver com ele. Na verdade, o que
mais impede a exteriorização dos sentimentos será um excesso de
subjectividade ou até enfraquecimento do Ego. Quando desde cedo
-30-
as nossas opiniões não contam, ficamos com a sensação de que não
vale a pena fazer comentários sobre nada. Mas não é tanto assim.
Ficamos todavia desprovidos do exercício do diálogo e a breve
trecho perdemos a consciência do conteúdo das palavras. Ao
interiorizar o medo de errar, criámos barreiras entre nós e os outros,
reservando-nos a contingência de criar um mundo do lado de cá do
mundo. Um pouco como a alegoria da caverna de Platão, uma das
poucas imagens e referências que guardei da filosofia aprendida no
ensino. Pode ser muito bonito ter riqueza interior, mas a falta de
diálogo não nos permite partilhar tal riqueza com os outros. E os
sentimentos devem suceder-se em campo aberto, não limitados por
obstáculos naturais ou por aqueles, mais fortes e difíceis de
derrubar, que o pensamento engendra.
Quando afirmo que em situações como estas se perde consciência
do conteúdo das palavras, quero dizer que as palavras nada têm a
ver com a vida que de facto vivemos. Têm e não têm. Tanto faz
dizermos uma ou cem, não conseguimos nunca explicar a revolta de
sermos vítimas da geografia. Explicar para quê? A vida deve ser
vivida. Por vezes, quando tenho a impressão de estar fazendo algo
que bate certo, como teclas estas palavras deste texto, bastam
poucas palavras para demonstrar a alguém como me sinto nesse
momento em relação ao que estava fazendo. Não se trata de telepatia
ou de empatia. Simplesmente, as minhas palavras são explicativas do
meu sentimento em relação a dada actividade, indo encaixar ou
melhor, conjugar com a ideia de que o meu interlocutor teria em
relação a essa mesma actividade. E, assim, se espero que
experiências sobre o mundo que são distintas se podem entender
-31-
gerando um sentimento de compreensão mútua, admito também que
a minha experiência, por mais limitativa que possa ser para o meu
espírito, poderá ser partilhada sobre a forma de observações, de
impressões, sobre um mundo que se vive e que de alguma forma nos
convida a verter nela a nossa consciência das coisas. O mais difícil
será captar a atenção do interlocutor e tal tem de ser feito com
linguagens e conteúdos actuais.
Já expliquei anteriormente como perdera a capacidade de
imaginar. Não quero esperar por algo que não sei sequer se irá
concretizar-se: o encontro com o outro. Talvez esteja pensando em
algo que os indiferentes nem sequer põem em causa, que é o facto
de estarem em grupo e partilharem opiniões. Mas estarão todos
acompanhados? Quantos não ficaram já pelo caminho? Se esse
encontro vier a acontecer um destes dias, não quero logo vir a correr
para o computador ou máquina de escrever fazendo-me relator de
acontecimentos que, para mim podem ser importantes, mas para o
curso da humanidade são meros pormenores. Por isso, não resisto à
ideia de tentar figurar na minha mente como me poderei encontrar
algum dia como algum ser que não seja indiferente. Este encontro
que espero terá já acontecido várias vezes sem eu me ter apercebido
disso. Só que vemos as coisas em termos de idade. Talvez no fim
vejamos o rosto da divindade, de nós próprios no momento do
colapso da vida. Talvez seja esse derradeiro encontro que preparo.
Poderá ser um encontro com um alienígena, nesse caso será talvez
um predador e por isso há que ter cuidado redobrado.
Uma questão que se põe ainda é se eu preciso de encontrar e ter
nas minhas mãos a estrela. Decerto que bastará vê-la ao longe
-32-
brilhando, usando os instrumentos de que disponho. as tudo isto nos
leva ao ponto de partida, ou seja, é preciso conhecer o mundo antes
de olhar para o céu. Até considerar que sou já um planeta e que
estou pronto para novos conhecimentos, devo conhecer a superfície
e o interior da terra, tão bem um quanto o outro. Por outro lado,
estou cansado, vou voltar para o observatório para poder ver as
coisas dos céus e dos universos com nitidez. E estou também um
pouco farto de ter dentro de mim essa lente que trouxe de casa e à
qual tenho de recorrer para observar as estrelas quando estou em
viagem. Mas tudo bem.
Capítulo Sexto
UM OUTRO OBSERVATÓRIO
A CAIXA QUE MUDOU O MUNDO

É provável que não faça uma análise correcta e devidamente


distanciada deste fenómeno. Precisaria de ter a objectividade ou de
exercer intersubjectidade com os outros para saber até que ponto
está enraizado o hábito de ver televisão. Trata-se sem dúvida, se
exceptuarmos a internet, do mais poderoso observatório que
dispomos sobre as coisas do mundo e do cosmos. Ao invés de
desenvolver, porém, o espírito inquisitivo, favorece a apatia,
incluindo em nós uma certa ideia do mundo que nos ilude da
realidade. É talvez certo que a entrega aos prazeres televisivos terá
resultado de um desencanto do mundo real. A pouco e pouco, foram-
se colocando de lado os compromissos para com o mundo, os
herdados e os adquiridos, para passar a equacionar a vida apenas
sob o ponto de vista da imaginação, em que nos revemos dentro do
écrãn e aumentamos as possibilidades de direcções que a nossa vida
pode ter. Contudo, é maior a aceitação dos factos tal como nos são
presenteados do que a consciência de fazer algo de novo. Depois, há
uma curiosidade em saber que tipo de pessoas aparece na televisão.
A hipótese de um dia virmos também a aparecer na televisão, nem
que seja por breves instantes, condiciona também que fazemos de
nós próprios, ideia essa que está sempre em construção, não a partir
da relação com os outros, mas do facto de se ser espectador. É
curioso notar que ser espectador é de algum modo uma conquista,
como se fôssemos distinguidos com algo de importante e que está ao
-34-
nosso alcance. Sentimos que algo de importante se passa para além
para além do acto televisivo: o efeito televisivo. Estamos
constantemente a rever a nossa vida e nossas circunstâncias da
relação com as pessoas em função da informação, das novelas, até
dos programas de entretenimento. Poderei estar dizendo que há
coisas que se passam quando a maioria das pessoas certamente a
maior parte destes mecanismos não funciona. Poderá ser uma
questão de sensibilidade. Ou mesmo uma questão de permissividade
em relação a uma certa visão do mundo que nos é apresentada. Não
quero generalizar e dizer ao leitor que o que aconteceu comigo
aconteceu com toda a gente ou com muita gente. Mesmo que me
quisesse apoderar desse elemento para justificar a minha pretensa
ligação a outras pessoas, cairia em erro, pois muitas pessoas vêm
televisão sem terem consciência de serem perturbadas na forma de
encarar a sua vida. É isto que eu vejo na televisão. Seria útil possuir
dados sobre a apreciação do espectador face àquilo que lhe é
apresentado. Seria até bom analisar a programação e constatar que
ela é sintomática de alguma coisa, só por si. Eu refiro-me em grande
parte ao que é apresentado nos quatro canais portugueses e falo
com conhecimento de causa, pois desde há cerca de sete anos que
vejo uma média de 3, 4 horas de televisão por dia. Nos últimos anos
essa média tem aumentado substancialmente, chegando ao ponto de
haver dias em que chego às 7 e mais horas. Isto tirando o facto de
desde criança que utilizo a televisão. Mas não quero de modo algum
com o meu raciocínio sugerir que a televisão é, em si algo de nocivo.
Seria bom que se favorecesse o audiovisual como meio de
conhecimento das actividades diversas que ocupam o mundo. Mas
-35-
somente como um meio (técnico, como o vídeo) e não como um fim.
È certo que não é suposto a televisão substituir a realidade. Mas
isso aconteceu comigo. A televisão cortou o acesso à realidade,
cortou a minha criatividade para imaginar o social, tornou-me
dependente de uma droga tão ou mais poderosa que as verdadeiras
drogas. Em vez de ver aumentadas as minhas possibilidades de
ligação e intervenção no real, aumentou a possibilidade de imaginar
futuros para a minha pessoa sem efectiva correspondência na vida
prática. Tudo se resume ao exemplo da atitude que tenho em relação
ao desejo de escrever qualquer coisa como um romance. Em vez de
seguir a vida das personagens da novela ou do filme como um curso
independente da minha linha de vida, torno o que vejo em algo de
meu, como se tivesse possibilidades de virtualmente me transformar
em actor, vivendo o impasse de nunca chegar a fazer nem uma coisa
nem outra. Nem representar nem viver. Este novo observatório não
produz observações, apenas serve o propósito de observar os outros.
As únicas válidas observações que tenho em conta ter produzido
sobre o mundo resultam apenas da experiência de relação com
pessoas reais, com o mundo real. Por isso estou em condições de
afirmar que se regista um excesso de realidade produzida pela
televisão. Não precisaria de tanto para me excitar. O certo é que o
efeito é um estado de sensibilidade latente face a coisas que
simplesmente não me dizem respeito. Preferia conviver cm menos
seres humanos, mas que fossem reais. Não precisava de um
dispositivo artificial para despertar os meus sentidos. Qualquer que
fosse, a realidade seria preferível ao efeito que este aparelho tem
-36-
sobre mim. A diferença que existe entre a vida real e o efeito
televisivo é a diferença que existe entre a vida real e o efeito
televisivo é a diferença que existe entre um coito normal e um coito
com ejaculação precoce. Enquanto num caso a descoberta é o
elemento constante, com o motivo surpresa sempre à espreita, no
outro caso o factor surpresa é inexistente, prevendo nós o que
poderá acontecer a seguir, dependendo isto da nossa aprendizagem
da televisão. Numa palavra, é a diferença mesma entre a experiência
do real e do voyeurismo. Prometi a mesmo não fazer referências
directas a sexualidades nestas minhas observações. Mas há coisas
que têm de ser ditas. E não quero mencionar este assunto por várias
razões: porque abusei do seu uso em prejuízo da minha vivência da
realidade, porque de resto a minha relação com o sexo não vai nada
além do voyeurismo e da colocação de hipóteses. Por isso a minha
relação com a televisão é tão dependente. Protelo cobardemente a
minha entrega ao real criando a ilusão de possibilidades infinitas de
ser actor, de participar em actos em si. Foi o que aconteceu nesses
anos de que vos falo. Acobardei-me e perdi a esperança de que tinha
uma estrela brilhando para mim, por mim, em qualquer lugar. Talvez
não suspeitasse que a estrela teria já em dado momento brilhado
dentro de mim e isso me bastaria para me considerar realizado e sem
pretensões a tirar conclusões sobre os outros para as aplicar à minha
vivência do quotidiano. Agora, tenho de procurar essa estrela fora de
mim. Como não tenho personagens para um romance, não tenho
sustentação real. E os meus sentimentos resultam em máximas
infinitas sem significado prático e sem correspondência com o real.
Não será tanto assim. É pior, garanto-vos. É tamanha a minha
-37-
hesitação diante do real que, tendo uma certa consciência moral,
poderia sugerir como se abordam as pessoas, como se convive;
contudo, tenho receio de ser rejeitado ou simplesmente de não ser
bem sucedido. Por isso prefiro não viver emoções, mas alimentar-me
de ilusões. Nunca fui profissional, de resto, em relações afectivas.
Mesmo quando sentia algum calor das palavras que transmitia e
recebia, nunca usei do poder ao ponto de usufruir da posse do corpo
do outro, sabendo eu teoricamente que numa relação perfeita não é
preciso exercer poder. Mas uma relação perfeita é estática –e é essa
a mesma sensação, de estatismo, que nos transmite a realidade. A
ficção televisiva transmite-nos relações de poder onde se possui o
outro, mas também uma dinâmica que nos transmite que tudo
poderá mudar e há, curiosamente, esse perverso elemento surpresa
tão característico das relações sexuais efectivas.
A televisão tem mérito enquanto meio de conhecer a realidade e
os costumes dos outros. Contudo, contribuiu no meu caso em muito
para que eu me tornasse tímido e receasse o envolvimento sério com
alguém. Não é que não desejasse, muito pelo contrário. O desejo era
contudo transviado para uma caixa electrónica e depois para dentro
da minha mente, aqui disparando violentamente no interior do meu
crânio, misturando-se com o meu espírito e tornando-se violento,
insatisfeito, turbulento, dependente de emoções artificiais que
partiam e dentro de mim se resolvia.
É tempo de falar das necessidades do espírito, que eu acredito
serem uma ilusão diante do que nos habituámos a ver como
necessidades físicas do seres humanos. É que tais necessidades,
como o comer, ter relações sexuais, preenchem as específicas e reais
-38-
necessidades do espírito. Para um espírito desordenado e insaciado
como o meu nada chega. Cabe aqui lembrar a frase ou ideia de que a
experiência sexual real nunca é pornográfica, mas a imaginação é-o
sem limites. Tal como se reiterou ontem na televisão, o saber e a
contemplação de nós próprios espartilhou-se e encontra-se
desagregado nos dias de especialização em que vivemos. Noutros
tempos, a arte confundia-se com a ciência e eu sou da opinião de que
há que ligar as duas coisas novamente. Ao dissecarmos pela análise
das emoções, sentimentos e suposta localização do nosso corpo,
corremos o risco de ter a garantia de sermos fiéis à nossa capacidade
de intervenção no mundo. Corremos o risco de isolarmos algo que
funciona por natureza em conjunto. E com que resultado? A mera
conclusão de que funcionamos sem pensarmos nisso. Tratar-se-á de
uma conquista para o território da consciência isolar as emoções e
os desejos? Tudo bem quando o fazemos a partir da acção dos
outros. Mas quando infringimos tal tarefa a nós próprios, o risco é
enorme, a saber, a perda das capacidades humanas que herdámos.
Capítulo Sétimo
O BODE EXPIATÓRIO

No meu caminho, que nada tinha de espiritual por motivos que


pode mencionar adiante, criei a convicção de que não existia estrela
alguma, mesmo que simbolicamente. Poderia nascer uma estrela da
sorte, mas eu tinha a consciência de nada ter feito para ser bafejado
por essa sorte: isolado de amigos, privado do convívio com mulheres,
sem trabalho, sem ideias fortes que me alimentassem os dias de
privação, nunca poderia em circunstância alguma ter essa estrelinha
brilhando que se chama sorte. Sobretudo porque havia sido
esquecido. Sim, tenho a ideia de que ninguém suspeitava do conflito
que se alimentava dentro de mim. De privação em privação,
alimentava-me dessa droga que se chama televisão e excitava assim
a imaginação. Só que eu queria algo mais. Continuo escrevendo este
livro para me desculpar ou aplacar algum sentimento de injustiça.
Queria mesmo ter raiva em certos momentos, para ter um meio de
me fazer entender, para que alguém soubesse a qualidade daquilo
que assentou na minha alma. Contudo, mesmo que tenha esse forte e
constante desejo, não chega. Tinha de entrar em alguma engrenagem
ou convencer-me de que fazia parte de alguma engrenagem, de outro
modo nunca conseguiria fazer vingar os meus instintos e acabaria,
de certa forma, vencido pelos mais jovens do grupo. Neste sentido,
também não atraía fêmeas, nem sequer pela duração das minhas
ideias, que de resto eram muito fugazes. Foi minha ideia reduzir a
relação entre dois seres de sexo distinto a uma mera atração física,
-40-
desprovida de quaisquer outros elementos, aqueles elementos que
tanto valor tinham no início das coisas. Agora que perdera essas
convicções e sentimentos é que me apercebia do seu valor na
condução do homem ao objecto de desejo. Depois de ter isolado os
sentimentos e emoções e analisado uma a uma, fiquei com o desejo
desgarrado, desordenado, mas sobretudo despersonalizado.
Tenho-me convencido que eu próprio fui o culpado, que não
devia ter aceite tão amplamente as influências do mundo exterior,
que não devia ter acreditado nas pessoas em vários momentos.
Tenho evitado apontar culpado para além de mim, até porque as
soluções não são muitas, já que não procurei culpar a sociedade. O
que mais me confunde é a falta de soluções imediatas para certos
problemas prementes. É compreensível: todo aquele que desgastou a
sua estrutura psíquica, que rejeitou a sua herança cultural e não
aderiu a tempo e de certa maneira às exigências do socialzinho que o
envolve, terá de se desenvencilhar sozinho, aguentar-se como pode.
Só com tempo se chega a soluções definitivas.
Capítulo Oitavo
UM VERDADEIRO NOME PARA A ESPERANÇA

Eu poderia iludir-me pensando que os outros indivíduos também


têm estas ânsias ou algo comparável. ode ser verdade. Mas eu vivo
fechado dentre de mim sem necessidade. Não sou como pareço e
acabo por ser o que pareço. Depois, não vejo muitas coisas em nome
das quais teria de abdicar de uma vida de aventura sexual: vergonha
face aos pais, medo de me perder em circunstâncias nas quais não
poderei sustentar o meu corpo nem as necessidade do meu espírito.
Sim, porque a verdadeira necessidade do meu espírito é sexo e mais
sexo. De modo que não levaria também a nada culpar alguém em
específico. Está na cara que não seria verdade, pois não podemos
culpar alguém de nos ter roubado capacidades de percepção ou
simplesmente o gosto de viver. Para além do facto de eu ter feito do
sexo o meu deus e de ter interiorizado a minha ideia acerca do sexo,
poderei dizer que, tal como eu nunca perscrutei devidamente a alma
de uma pessoa, também nunca fui perscrutado porque não deixei
entrar ninguém no meu território. Mas não é verdade. Tenho a
impressão que acontece alguma falta de imaginação na abordagem
dos outros à minha pessoa. Mas, seja como for, não se perde grande
coisa. Por isso, talvez esteja mesmo à procura de um bode expiatório,
mesmo que seja uma razão, uma circunstância que me terá feito cair
aos trambolhões pelas escadas abaixo. Enquanto não acabasse este
meu exercício aparentemente sem fim à vista, não descasaria. Mais
do que uma estrela, da vida ou da sorte, procurava agora culpados,
-42-
razões culpadas.
Posso relatar também que não foram utilizadas muito as
conversas amenas e sossegadas com mulheres. Não quero dizer que
havia discussões. Na realidade, não surgia um ponto de
entendimento que ligasse as nossas experiências e as transformasse
em algo de comum, legítimo, natural, algo em condições de partilhar.
Tenho consciência de que perdi o interesse pela corte, pela
abordagem descomplexada e desinteressada e que eu próprio passei
a admitir como importantes para a formação da ideia da pessoa com
quem conversava o facto de ter compromissos sociais. Hoje em dia,
tenho consciência que mesmo que entabule uma conversa de
circunstância com alguma mulher, darei sempre a imagem de um ser
humano sem interesse, não um ser indiferente, como convinha, mas
de alguém muito ocupado com questões (vitais) que não se devem
pôr. Que mais me definha é o facto de na realidade ter perdido a
minha força, tal como Sansão a perdeu ao cortar o cabelo. Isso é o
que me impede de esquecer esta busca de um bode expiatório e
continuar, avançar em frente para tirar a limpo que tudo isto e todas
estas Observações não passam de ilusões e efeitos colaterais, de que
há concerteza algo de novo mais adiante.
Seja como for, ainda reconheço qualquer coisa que se pode chamar
de esperança. Quanto mais não seja por recordações de alguns
momentos de entusiasmo que pus em certas coisas no passado.
Agora, mesmo que esses momentos sejam menos frequentes, não
tenho outra solução senão esperar estender no futuro certas
emoções que aconteceram. A sociedade não tem muitas soluções,
diga-se em abono da verdade. Cabe ao sujeito adequar a sua
-43-
imaginação ao possível e deixar que as interrogações sejam um
bálsamo que dá força na jornada em busca de uma estrela da sorte.
Não é possível vislumbrar nestes tempos o que me poderá trazer de
novo ao normal convívio dos homens. Talvez não saiba que poderei
ter uma palavra a dizer, servindo-me do meu excesso de
subjectividade, pois poderá haver alguém que precise de conhecer a
minha situação para tomar consciência da sua. Quero acreditar nisso.
Acreditando já não dei por perdido o meu tempo. E eles poderão ser
os seres indiferentes, a eles poderei fazer ver que a vida não é só os
deuses e as crenças que nos desviam dos verdadeiros motivos que
movem o ser humano. A saber, que o homem se move
primeiramente por necessidade de satisfação das suas condições
sociais e psíquicas. E que de algum modo essas necessidades se
confundem com as biológicas e as espirituais. Quero acreditar que
um dia poderei deixar despreocupar-me com o meu corpo e entrarei
na alma do mundo. Creio que posso pôr a hipótese de existirem
seres completamente distintos de mim e que o confronto de estados
de espírito beneficie ambas as partes. Certamente que há pessoas
que sempre trabalharam e nunca se deixaram abater por motivos de
auto-conceito. Seres que nunca se aperceberam de certas coisas
como a auto-flagelação psíquica e a auto-comiseração levadas ao
extremo de ficarmos sem forças quaisquer para reagirmos aos
problemas que se amontoam à nossa volta deixando de vermos o
verdadeiro caminho, o nosso caminho. Acreditando nisto, poderei
conhecer alguém com semelhantes problemas. Restam-me poucas
coisas para a acreditar e esta será uma delas. Contudo, servir-me-ei
destas pessoas para alcançar outros patamares, o saber, o bem estar
-44-
económico e psíquico, o poder, o conhecimento, as mulheres? É isto
que me interessa e mesmo que venha a descobrir uma estrela e a
visitar outros planetas que ilustrem outras realidades individuais,
permanecerei fiel a estes propósitos até ao fim dos meus dias, até ao
esgotamento físico. Está visto, quero o que todos os homens
obcecados por poder e sexo procuram, o que todos os tímidos
prometem a si mesmos em lucubrações maquiavélicas. Não vou, por
isso, negar que desprezo o mundo e as suas manifestações. Tenho, é
certo, mais desejo de singrar, porventura um forte desejo de vingar,
de marcar posição. Quanto mais o escondo, mais bizarro esse desejo
se revela. Esqueci-me, na verdade, que só as coisas simples existem
para nos realizar, que há rituais de passagem que basta suprir para
termos satisfação das coisas que estão ao alcance dos indivíduos nas
diversas etapas da sua existência.
Se nada poderá aplacar as circunstâncias e que encontrei por
muitas vezes a minha pessoa, o que de novo poderei esperar? Valerá
a pena um esforço de imaginação e criatividade a partir do local em
que me situo? Se me encontro constantemente a pôr novas hipóteses
(de comportamento, sobretudo) não será isto um indício de que as
coisas estão ainda em aberto e que tudo, este terrível presente
contínuo, se poderá alterar? Seja como for, devo procurar um novo
nome para aquilo que os humanos chamam de esperança. Não é
esperança o que sinto, pois não desejo repor na ordem o que
aconteceu ou não aconteceu. Talvez seja algo de semelhante a
justiça, justiça pelas coisas que não vivo e que é dado naturalmente
viver a todo o ser humano sem que algo de transcendente ou heróico
-45-
seja preciso fazer. Tenho, por isso, direito às coisas humanas, não a
réplicas do meu pensamento sobre as acções, atitudes e sentimentos
dos humanos.
As minhas interrogações são legítimas, mas certamente pouco
interessarão o leitor. Elas surgem porque o nada existe dentro de
mim. Seria benéfico que estas interrogações fossem a pouco e pouco
substituídas por outras mais pertinentes que tivessem em conta
observações pertinentes sobre o real. Penso que essa alteração
somente se irá verificar quando se der uma alteração das minhas
condições de vida. Até lá, tudo poderei pensar e esse facto não altera
o que virá a acontecer mais tarde, não influencia em nada o futuro,
dado que falta viver. Estarei satisfeito quando o meu quotidiano for
composto de mais observações do que interrogações. Será sinal de
que granjeei suficientes dados de observação que me permitirão não
tirar conclusões precipitadas, mas outras mais válidas e eficazes
inclusivamente em relação ao meu comportamento ulterior.
Não sei materialmente o que poderá transformar o meu modo de
processamento da informação sobre o mundo e a elaboração de
regras de comportamento. É provável que não necessite de muitas
regras para disciplinar o meu espírito. Há que, apesar do desgaste
dos últimos anos, deixá-lo progredir numa qualquer direcção, dar-lhe
certa liberdade em consonância com o sentir do mundo
contemporâneo. Estou certo que se convivesse entre humanos que
absorvessem inteiramente as regras sociais estaria agora limitado ao
desenvolvimento de observações e partir de um determinado quadro
de realidade, tal como os teólogos partem do pressuposto da verdade
bíblica para descrever as suas incidências do mundo. Ora, o que
-46-
pretendo é partir dos dados observáveis do próprio mundo, a saber,
a componente psíquica do homem e a sua tendência para orientar o
seu comportamento em função da presunção das suas necessidades.
Esta premissa não exclui a possibilidade de que o comportamento
humano seja também avaliado através da sua herança histórica
registada pela literatura especializada. Devo dizer que me interessa
mais saber o que é definidor da natureza humana de que ter em
conta todas as suas manifestações e ambicionar elaborar uma teoria
geral do comportamento. É inevitável que os aspectos que mais me
interessarão registar serão aqueles que vão de encontro à minha
experiência. É inevitável que assim aconteça, de outro modo não
estaria eu aqui agora tecendo estas considerações. De qualquer
modo, existe um substrato de natureza humana em mim como
estudioso do fenómeno que creio a minha vivência não terá alterado
no seu todo. Creio que estou verdadeiramente tocado nas minhas
capacidades para agir e avaliar primariamente o comportamento
humano, mas confio que resta um fundo de verdade e substância no
meu ego que me fará recuperar propósitos abalados. Insisto até que
esta alteração no meu modo de pensamento que fui dando conta ao
longo deste relato, poderá a longo prazo ser benéfica na medida em
que me dará garantias do poder e utilidade de uma actividade auto-
reflexiva que suponho usar suficientemente bem. Por fim, importa
que o futuro me ajude a converter as minhas ideias em propósitos
legíveis para quem se interesse por esta temática, de modo a ser
compreendido e, se houver qualidades no que digo, serem
desenvolvidas as minhas ideias por pesquisadores que hão-de vir.
Obras do mesmo autor:

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