Você está na página 1de 13

349

Liderança e processos intersubjetivos

ARTIGO ARTICLE
em organizações públicas de saúde*

Leadership and intersubjecive processes


in health public organizations

Creuza da Silva Azevedo 1

Abstract The present study examines the top- Resumo O presente trabalho explora a temá-
ic of leadership, considered a key element to tica da liderança, reconhecendo-a como fator
face the difficulties regarding changing process- fundamental para enfrentar as dificuldades de
es in public health organizations, especially implementação de processos de mudança nas
when humanization of assistance and higher organizações públicas de saúde – incluindo as-
level of institutional responsibility for results pectos relativos à organização da assistência,
are in question. It’s necessary to admit the lim- sua humanização e a busca de maiores níveis
its of management tools as guides in the process de responsabilidade institucional para com os
of implementing changes in individual/orga- seus resultados. Neste sentido, é necessário ad-
nization relationship patterns, implied in the mitir os limites das ferramentas gerenciais pa-
issue of employees’ participation and engage- ra viabilizar tais processos, especialmente no
ment in a certain institutional proposition. que se refere à problemática da relação dos in-
This investigation intends to link the sociology divíduos nas organizações, subjacente às ques-
of organizations analysis of leadership and re- tões da participação, compromisso e adesão dos
lated topics with the French psychosociology funcionários a um determinado projeto insti-
approach and psycoanalitical understanding tucional. O presente trabalho procura articu-
of intersubjective group and unconscious di- lar a leitura do fenômeno da liderança presen-
mensions of organizations and leadership ex- te na sociologia das organizações e as questões
ercizing. que suscitam, com a compreensão da dimen-
Key words Leadership, Organizational dy- são intersubjetiva, grupal e inconsciente pre-
* Este artigo é oriundo
do anteprojeto de pesquisa
namics, Health care management, Organiza- sente nas organizações e no exercício da lide-
apresentado na seleção para tional intersubjectivity, Group processes and rança, advinda da abordagem da psicossocio-
o doutorado em Psicologia management logia francesa e da leitura psicanalítica dos fe-
Social da Universidade
de São Paulo, em novembro
nômenos grupais e organizacionais.
de 2000. Palavras-chave Liderança, Mudança organi-
1 Departamento zacional, Gestão em saúde, Intersubjetividade
de Administração e
Planejamento, Escola
nas organizações, Processos grupais e gestão
Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Leopoldo Bulhões 1480,
sala 716, Manguinhos,
21041-210, Rio de Janeiro RJ.
creuza@ensp.fiocruz.br
350
Azevedo, C. S.

Introdução ca da saúde no Brasil. Considero ser esta uma


lacuna importante para se enfrentar a crise de
O presente trabalho busca apresentar algumas governabilidade de nossos serviços públicos de
questões sobre o exercício da liderança em or- saúde. O meu interesse em examinar o fenôme-
ganizações públicas de saúde, advindas da com- no da liderança decorre de sua associação às
preensão das relações entre intersubjetividade questões da relação dos indivíduos e organiza-
e processos organizacionais. Este eixo de análi- ções, subjacente à problemática da adesão e
se ganha destaque a partir das dificuldades de participação, como também ao embricamento
desenvolvimento de processos de mudança nas com os processos de mudança organizacional.
organizações de saúde e da compreensão do fe- Nesse sentido acredito ser fundamental poder
nômeno da liderança como elemento funda- articular, às teorias organizacionais, a compre-
mental. ensão da dimensão intersubjetiva, grupal e in-
O setor saúde no Brasil, impulsionado por consciente presente nas organizações.
princípios democratizantes e de eqüidade, que Este artigo apresenta inicialmente uma ca-
conformam a base do chamado movimento da racterização das organizações de saúde, consi-
reforma sanitária, vem buscando propostas ino- derando suas implicações para o exercício da
vadoras quanto aos seus modelos de assistência liderança. Ao lado de abordagens da sociologia
e de gestão. Embora se registrem avanços quan- das organizações à liderança, o artigo procura
to à descentralização e constituição do Sistema apresentar a compreensão dos processos orga-
Único de Saúde, os serviços de saúde vêm en- nizacionais, grupais e da liderança a partir da
frentando uma crise de governabilidade, de perspectiva da psicossociologia francesa, que
eficiência e resolutividade. Os dirigentes vêm tem por referência central os aportes da psica-
apontando o desafio de gerar compromisso, nálise. Este trabalho pretende levantar algumas
participação e “adesão” dos seus funcionários a questões que a articulação entre estes dois cam-
um projeto institucional que aumente a res- pos provoca.
ponsabilidade institucional para com seus re-
sultados e que produza mudanças na organiza-
ção da assistência. As características das organizações
A ênfase na problemática da gestão, na ver- de saúde
dade, é recente no Brasil, particularmente na
esfera da administração pública. Na área da A compreensão das características das organi-
saúde, observam-se experiências que buscam, zações de saúde, como processo de trabalho,
por um lado, absorver ferramentas gerenciais – dinâmica e estrutura de funcionamento, certa-
ênfase em informações, definição de metas, mente é fundamental para o debate sobre as
apuração de custos e, por outro, maior demo- possibilidades da liderança neste contexto.
cratização dos processos decisórios e visibilida- O sistema de saúde é tido como um dos sis-
de dos projetos institucionais. temas mais complexos da sociedade contempo-
Tem sido admitido que os processos de mu- rânea e os hospitais são considerados organiza-
dança e sua difusão no interior das organiza- ções extraordinariamente complexas (Mintz-
ções representam um dos desafios mais impor- berg, 1994). Na sociologia das organizações, os
tantes para as organizações e para seus dirigen- hospitais, ao lado das universidades, são consi-
tes no contexto atual, de grandes pressões e de derados, e particularmente descritos por Mintz-
incertezas (Demers, 1991). Associada à proble- berg, organizações profissionais (Mintzberg,
mática da mudança, grande ênfase tem sido 1989, 1994,1995), apresentando particularida-
dada à temática da liderança, inclusive na lite- des quanto ao seu modo de funcionamento.
ratura voltada para empresas e dirigentes. Está O hospital se caracteriza, quanto à estrutu-
na ordem do dia a “promoção do capital hu- ra gerencial, pela presença de duas linhas de
mano” nas organizações, visando à melhor per- comando, com lógicas, valores e interesses di-
formance, criatividade e qualidade, apresen- ferentes. Uma primeira, voltada para os servi-
tando-se a partir daí questões sobre o tipo e o ços administrativos e de suporte, mais hierárqui-
estilo de direção e liderança necessários para ca e guiada pela racionalidade econômica. Esta
gerar um tal tipo de atmosfera de trabalho nas se insere em uma outra linha de autoridade – a
organizações (Aktouf, 1990). profissional, com características mais demo-
No entanto, a temática da liderança não cráticas, cujos serviços clínicos empregam me-
tem sido explorada no âmbito da gestão públi- canismos gerenciais mais fluidos, dispondo, por
351

Ciência & Saúde Coletiva, 7(2):349-361, 2002


vezes, de uma estrutura colegiada, estando orien- fluência de grande número de grupos de inte-
tada pelas necessidades assistenciais (Mintz- resse e estão submetidos à instabilidade das
berg, 1989; Dennis, 1994; Braga Neto, 1996). coalizões políticas (Goodwin, 2000). Somam-
Nessas organizações, o trabalho profissio- se ainda alguns traços particulares da nossa
nal é altamente especializado, complexo e de cultura brasileira e da administração pública,
difícil mensuração, e a autonomia é necessária como é o caso da centralização.
para executá-lo, gerando um ambiente propí- Além dos elementos destacados na análise
cio ao conflito, tornando-se fundamental um precedente, outros aspectos da realidade brasi-
processo de negociação permanente. Os dife- leira precisam também ser levados em conta
rentes serviços tendem a se comportar de for- para melhor compreensão do contexto onde se
ma independente, exercendo muitas vezes riva- pretende considerar o exercício da liderança. A
lidades quanto à utilização de recursos. Nesse crise dos serviços públicos de saúde reflete as
contexto de poder partilhado e disputa entre os contradições sociais e os processos de exclusão
grupos para impor suas orientações, o proces- e desvalorização da vida que marcam a socieda-
so de elaboração de estratégias é emergente, de brasileira, apresentando uma complexa si-
descontínuo, e cada decisão é fruto de um jogo tuação de desqualificação da assistência, envol-
de forças contingente (Mintzberg, 1989; Azeve- vendo falta de ética, omissão e apatia perante a
do, 1993; Braga Neto, 1996). Enfim, as caracte- dor e sofrimento do outro (Azevedo et al., 2000).
rísticas próprias de seu ambiente profissional
tornam o processo decisório nessas organiza-
ções bastante labiríntico e a cooperação um Os estudos organizacionais
grande desafio, tornando central o papel da(s) e a liderança
liderança(s).
Para Dennis (1994), a partir de Cohen e Embora o campo da liderança sempre tenha
March, o hospital expressaria um tipo ideal de atraído o interesse de cientistas sociais e parti-
anarquia organizada, já que apresenta incerteza cularmente de psicólogos, o fenômeno da lide-
quanto à definição de objetivos, fontes múlti- rança em organizações ganha destaque a partir
plas e difusas de autoridade, a presença de inú- dos anos 80 (Bryman, 1996).
meros fatores determinantes da performance O conceito de liderança envolve, em suas
organizacional, e poucos sobre seu controle, definições mais usuais, três elementos: influên-
dispondo de uma estrutura de autoridade am- cia, grupo e objetivo. Os líderes tratariam de
bígua, sobretudo em função do status particu- influenciar, induzir e impactar o comportamen-
lar dos médicos. Esse contexto deve levar a uma to de outros, processo que se dá em um contex-
maior valorização dos atores internos, condi- to grupal. O último elemento envolve a idéia de
ciona o exercício da liderança e impõe uma direção – o comportamento dos membros do
maior consideração aos processos grupais no grupo é influenciado no sentido de determina-
interior do hospital. dos objetivos. Esses elementos tiveram desta-
A partir desta perspectiva teórica, as estra- que e foram aplicados na teoria e pesquisa so-
tégias gerenciais descentralizadoras seriam bre liderança marcadamente até a metade dos
mais adequadas ao contexto das organizações anos 80. A partir de então, as definições empre-
de saúde, apontando para a necessidade de am- gadas utilizam a idéia da “gestão do simbólico”.
pla negociação, processos de conversação in- A característica fundamental da liderança, na
tensos, e também para o exercício da liderança perspectiva simbólica, seria promover valores
de forma mais distribuída na organização. Mais que forneçam significados partilhados sobre a
adiante esta questão será desenvolvida. natureza da organização (Bryman, 1996). Des-
Ao se considerar os fenômenos da lideran- ta forma, o líder conforma o sentido de direção
ça no universo de organizações de saúde que se e propósito através da articulação de uma visão
inserem no âmbito público, precisa-se também de mundo. Zaleznik, enfatizando a compreen-
apontar as características e demandas geren- são da gestão pelo simbólico, aponta os líderes
ciais particulares advindas deste contexto. Nes- como aqueles que “mudam a forma das pessoas
te âmbito, os dirigentes se submetem a pressões pensarem sobre o que é desejável, possível e ne-
externas de toda natureza e a novas regulações cessário” (apud Bryman, 1996).
governamentais, em um quadro de grandes am- Pesquisadores da temática da liderança, co-
bigüidades quanto a políticas e relativa abertu- mo Kotter e Zaleznik, buscaram a distinção en-
ra do processo decisório. Sofrem, assim, a in- tre liderança e gerência/administração, apon-
352
Azevedo, C. S.

tando, como um elemento central, a orientação ganizações de saúde, a seguir serão vistas com
para a mudança. A gerência estaria centrada no maior detalhes algumas destas abordagens.
presente, voltada para o bom funcionamento
de um sistema ou da organização existente, ge- A perspectiva contingencial
rando estabilidade e não apresentando ques-
tões sobre a identidade e propósitos organiza- Essa abordagem destaca, como aspecto cen-
cionais (Bryman, 1996; Kotter, 1997; Goodwin, tral para qualquer compreensão da liderança,
2000). Os líderes teriam carisma, enquanto a os fatores situacionais, do contexto e, paralela-
base de poder dos gerentes seria a hierarquia, mente, visa superar as teorias universalistas das
os líderes estariam mais preocupados com o organizações, que vigoraram nos anos 60 (Bry-
por quê enquanto os gerentes com o como (Kets man, 1996).
de Vries, 1997). Goodwin (2000) destaca que as pesquisas,
Kets de Vries (1997) afirma, no entanto, que de modo geral, não procuram compreender os
o gerente vem sendo colocado na posição de elementos que determinam o exercício da lide-
bode expiatório neste debate, pois na realidade rança. Este autor ressalta que os estudos tratam,
ambas as qualidades e habilidades são necessá- primordialmente, das conseqüências do com-
rias para um líder eficaz. Este autor destaca dois portamento do líder, o que talvez seja oriundo
papéis a serem desempenhados pelo líder: o ca- da tendência a perceber a liderança como de-
rismático e o instrumental. O primeiro estaria terminante e não como variável dependente.
ligado justamente à dimensão simbólica e ima- A perspectiva contingencial torna-se, por-
ginária do trabalho do dirigente: como concede tanto, relevante para este trabalho, ao colocar
o poder e dá energia a seus subordinados. O em cena o contexto, como força condicionado-
papel instrumental estaria vinculado à visão ra da prática da liderança, o que foi anterior-
dos líderes como arquitetos organizacionais. mente anunciado, haja vista as considerações
Eles projetam, estruturam e controlam sua or- sobre as particularidades das organizações de
ganização. saúde e o contexto da administração pública
Os estudos sobre a liderança podem ser brasileira, com suas demandas e restrições ao
agrupados em quatro abordagens, que tiveram comportamento gerencial.
predomínio em momentos distintos. A abor- Assim, seria pertinente, na análise da lide-
dagem que considerou as características do lí- rança no âmbito do setor público de saúde, com-
der, seus traços, qualidades natas, dominou até preender que o exercício da liderança é em par-
o final dos anos 40. A perspectiva do estilo de te condicionado pelo processo de trabalho e pe-
liderança, mudando o foco das características la distribuição do poder a ele associado, como
do líder para o seu comportamento e, portan- também pelas características do modelo geren-
to, para a perspectiva de seu treinamento, teve cial, particularmente o nível de autonomia dos
importância até os anos 60. Dos anos 60 ao iní- dirigentes. Desta forma, o estilo de liderança
cio dos 80, predominou a abordagem contin- seria fruto não apenas de elementos relaciona-
gencial, que colocou em lugar central os fato- dos às características dos indivíduos, mas tam-
res situacionais, do contexto, para compreen- bém do contexto particular onde se realiza.
der a liderança. Do início dos anos 80 em dian-
te se constituiu a chamada nova perspectiva da A gestão do simbólico e a liderança
liderança, que tem por base as idéias da gestão
pelo simbólico, envolvendo as ditas “liderança Correspondendo à perspectiva da gestão do
carismática”, “liderança visionária”, e “liderança simbólico, inúmeras contribuições emergiram
transformacional”. Outras contribuições mais na década de 1980, revelando como papel cen-
recentes são também importantes, como é o tral do líder a promoção de valores que forne-
caso da perspectiva da “liderança dispersa”. çam significados partilhados sobre a natureza da
Torna-se importante realçar que cada perspec- organização (Bryman, 1996), desenvolvendo a
tiva representou uma mudança de ênfase, mais orientação para a mudança, a confiança, o orgu-
do que uma superação das anteriores (Bryman, lho e a inspiração. Nesta abordagem, o líder se-
1996), observando-se na década de 1990 res- ria aquele que define a realidade organizacional,
surgir o enfoque dos traços de personalidade e através da articulação de sua visão sobre a orga-
mesmo ênfases no estilo de liderança. nização e da forma como define a missão desta.
Embora todas as contribuições possam tra- As pesquisas realizadas a partir desta pers-
zer elementos para tratar da liderança em or- pectiva estavam voltadas particularmente para
353

Ciência & Saúde Coletiva, 7(2):349-361, 2002


o estudo de dirigentes de alto escalão e foram de saúde, considerando inclusive seu potencial
criticadas pela visão heróica e visionária dos de diálogo com a abordagem da psicossociolo-
executivos, por envolverem apenas experiên- gia francesa, que será tratada adiante.
cias de sucesso e apenas a dimensão individual
e formal da liderança. Liderança dispersa
Essa perspectiva certamente subsidiou uma
literatura abundante, produzida para dirigen- As idéias e contribuições da chamada “lide-
tes e empresas, de cunho mais prescritivo e ins- rança dispersa” representam uma outra pers-
trumental, conformando quase que manuais pectiva e foram em parte oriundas de uma rea-
para o exercício da liderança. ção à visão heróica e carismática da liderança.
Assim, nesta abordagem, compreende-se o tra-
Liderança e cultura organizacional balho do líder centrado no desenvolvimento da
capacidade dos membros da organização. O fo-
Existe uma grande afinidade entre as dis- co central encontra-se, portanto, na equipe, no
cussões da corrente da “nova liderança” e de pequeno grupo onde se desenvolve a confian-
cultura organizacional. Conforme Bryman ça, ocupando o líder o papel de facilitador do
(1996), inúmeros autores indicam que a visão grupo. Nessa compreensão, ressalta-se a lide-
do líder contribui de maneira distintiva para a rança, não apenas como prática dos executivos,
cultura. Por outro lado, culturas organizacionais tendo, portanto, uma correspondência com o
fortes são tidas como vantagens, pois oferecem uso da autoridade, mas também como proces-
aos membros da organização um senso de pro- so informal, que pode estar distribuído na or-
pósito e união. ganização.
Bryman (1996) realiza um importante ma- É possível associar a esta abordagem as
peamento das contribuições no âmbito da cul- contribuições contemporâneas voltadas para o
tura organizacional e liderança através dos tra- mundo empresarial que partem também de
balhos de Martin, que classifica os estudos em uma crítica à visão heróica do dirigente, por
três perspectivas: integração, diferenciação e sua inadequação ao contexto atual das empre-
fragmentação. Primeiramente apresenta a pers- sas, marcadas pelo downsizing, por reestrutura-
pectiva de integração, que congregaria as abor- ções, terceirizações, mudanças tecnológicas e
dagens que supõem a harmonização ou con- pelo crescimento da economia baseada no co-
formação de um todo organizacional, parti- nhecimento. Nesse sentido, Bridges (2000) afir-
lhando valores, perspectivas e interesses, repre- ma que a relação que um líder tem com seus
sentando a visão hegemônica e instrumental de seguidores está cada vez menos parecida com a
cultura organizacional; outra leitura da cultura governança e cada vez mais próxima a uma
organizacional encontra-se a partir das pers- aliança ou parceria. A liderança compartilhada,
pectivas de diferenciação e fragmentação. A exercida por intermédio de uma rede fluida, é
primeira envolve uma compreensão da diversi- apontada como um requisito e não apenas uma
dade, das subculturas e do exame da liderança opção (Goldsmith & Walt, 2000). Nessa cir-
exercida por grupos, enquanto a segunda con- cunstância, os líderes seriam impingidos a en-
sidera a existência de contraculturas, supondo sinar os outros a serem líderes, já que é o pes-
ambigüidade, fluidez como características im- soal da linha de frente que primeiro pode reco-
portantes das culturas organizacionais. Essa úl- nhecer desafios e oportunidades e dispor de co-
tima perspectiva supõe a complexidade e hete- nhecimento para propor melhores respostas
rogeneidade como características das organiza- (Cohen & Tichy, 2000).
ções contemporâneas, tendendo a engendrar Compreendendo que todas as partes da or-
culturas cujos elementos não são capazes de ganização “devem ser capazes de trabalhar jun-
oferecer um único sentido para seus membros, tas para alcançar o bem comum” (Goldsmith &
como aventado em abordagens mais integra- Walt, 2000), a idéia da equipe como capacidade
doras. A liderança, nessa concepção, longe de de inovação, de criatividade, liderança, repre-
ser fonte de uma visão coerente de mundo, é senta, de outro modo, o ideal de harmonia e de
fonte, ela mesma, de ambigüidades. integração organizacional.
Apostando justamente em uma visão me-
nos unificadora da organização, considero fru-
tíferas as contribuições oriundas das perspecti-
vas de diferenciação e fragmentação, merece-
doras de serem futuramente exploradas para
análise no contexto das organizações públicas
354
Azevedo, C. S.

Liderança interpelável sa se coloca como “lugar de apropriação” e “es-


e gestão mobilizadora paço ampliado de oralidade” outorgado a todos.
Tal como a cidade, a empresa deve então se tor-
Aktouf (1997), partindo de interrogações nar uma “coisa pública” para os seus membros.
sobre as dificuldades no andamento das formas Em resumo, a proposta deste autor volta-se
de gestão ditas participativas e de parcerias en- para a necessidade de desdeificação do dirigen-
tre dirigentes e empregados, realiza um impor- te e repersonificação do empregado, em um
tante debate sobre a liderança e a possibilidade contexto de finalidades e estratégias negocia-
de uma gestão mobilizadora. Este autor critica das e de ações descentralizadas e auto-organi-
tanto as idéias da gestão simbólica e cultural, zadas. Para Aktouf (1997), é condição indiscu-
como também da liderança heróica, incluindo tível a redistribuição eqüitativa e transparente
em sua análise elementos relativos ao sujeito e dos atos de gestão e dos resultados do esforço
sua subjetividade. comum.
Aktouf discute o culto ao indivíduo excep- Embora a perspectiva deste autor não pos-
cional, “criador” organizacional, dominante na sa ser enquadrada na abordagem dispersa da li-
literatura gerencial. Considera a heroificação derança, pois sua análise do cenário organiza-
do dirigente uma tentativa (ainda que incons- cional reconhece a tensão advinda de sua di-
ciente) de sua deificação, através de uma busca mensão política e também humana, represen-
ilusória e fantasmática de onipotência. Eis en- ta, de todo modo, uma aposta na gestão des-
tão o “mito empresarial fundamental” aponta- centralizada e auto-organizada. Fortalece, por
do por Sievers, “que faz do dirigente um de- outro lado, a possibilidade tão almejada nas ex-
miurgo criador-organizador (um deus) que, periências organizacionais democratizantes,
sozinho, sabe e pode ‘gerir’” (Aktouf, 1997). particularmente no campo das organizações pú-
A outra face deste processo estaria repre- blicas de saúde, de construção coletiva nas or-
sentada pela “coisificação” dos empregados, re- ganizações. Por outro lado, pode ser considera-
duzidos ao estado de objetos passivos, dóceis, da uma visão otimista sobre a possibilidade da
cúmplices, adeptos da cultura empresarial, fa- cooperação humana nas organizações.
zendo-os participar como eco, bancando o pa- As perspectivas organizacionais para o es-
pagaio, ao dizerem o que se quer ouvir. Trata- tudo da liderança, e especificamente a visão de
se, portanto, de manter os indivíduos em um Aktouf, trazem inquietações em torno das pos-
estado de dependência e infantilização e, portan- sibilidades de exercício da liderança no contex-
to, na condição de não-sujeitos. to das organizações públicas de saúde, especial-
Como contraponto ao poder absoluto, Ak- mente quanto à possibilidade de “minimizar” a
touf (1990, 1997) nos apresenta a concepção da figura do líder, considerando um cenário de
gestão mobilizadora e interpelável, a possibili- maior distribuição do poder pelos vários gru-
dade de a organização-empresa se constituir pos que se exercem em seu interior.
como “aventura coletiva-comum” a partir das A compreensão das especificidades das or-
idéias de contrapoder, de eqüidade, ética, apon- ganizações de saúde – de seu contexto de poder
tando uma visão do empregado como pessoa partilhado, de estratégias emergentes – indi-
capaz de pensar, decidir e exercer seu livre-ar- cam a necessidade de um modelo gerencial ba-
bítrio. seado na negociação permanente e valorização
Empregando uma linguagem em parte psi- dos diversos grupos internos, particularmente
canalítica, este autor vai assim caracterizar as os profissionais, representando, portanto, uma
mudanças que propõe ao paradigma gerencial: demanda por um tipo de grupo de liderança
Passar de um universo onde predominam a ana- mais distribuída. Por outro caminho, a pers-
lidade obsessiva, o egoísmo, o elitismo, o fantas- pectiva de Aktouf vem também reforçar uma
ma da onipotência demiúrgica, a ordem e o con- concepção de gestão descentralizada e da redis-
trole rígidos, para um universo diferente onde tribuição dos atos de gestão.
predominam a oralidade, a preocupação com os Considero pertinente explorar tal perspec-
outros, a reciprocidade, simetria das relações, a tiva de liderança particularmente porque per-
interpelação ampla, o calor humano e o respeito mite uma compreensão mais plural da organi-
por cada um como pessoa (Aktouf, 1997). zação. No entanto, ficam ainda algumas inter-
Aktouf (1990, 1997) aponta como fontes de rogações. Será que, de fato, a compreensão e
sua perspectiva de gestão as experiências nipô- valorização dos diversos grupos internos e do
nicas, canadenses e escandinavas, onde a empre- exercício da liderança nestes grupos apagam ou
355

Ciência & Saúde Coletiva, 7(2):349-361, 2002


se opõem à presença do grande líder? Será que A psicossociologia francesa contemporâ-
estas perspectivas são excludentes? Como é exer- nea, representada especialmente por Eugène
cida a liderança em nossas organizações públi- Enriquez e André Levy, desenvolveu uma outra
cas de saúde? Será que em nosso contexto de compreensão do indivíduo e da dinâmica or-
baixa autonomia e responsabilidade e de gra- ganizacional, sendo central nesta abordagem o
ves problemas de qualidade, pode-se pensar em referencial psicanalítico e também elementos
liderança sem uma figura que represente a da filosofia e sociologia contemporâneas. A
construção de algum ideal? compreensão dos processos intersubjetivos na
A compreensão dos processos intersubjeti- organização e no exercício da liderança será as-
vos e a visão psicanalítica da interação humana, sim tratada no presente trabalho, essencial-
do fenômeno grupal e organizacional, certamen- mente através da psicossociologia francesa e
te trazem outros elementos para este debate. basicamente através dos trabalhos de Enriquez,
associados a alguns aportes da teoria psicanalí-
tica para a compreensão dos processos grupais,
Os processos intersubjetivos, os grupos particularmente a visão de Bion, Didier Anzieu
e a liderança nas organizações e os trabalhos sobre imaginário e liderança de
Lapierre e Kets de Vries.
Os processos intersubjetivos A organização, na abordagem da psicosso-
nas organizações ciologia, é uma realidade viva, na qual sujeitos
vivem seus desejos de afiliação, visam realizar
As metáforas do grupo e da organização, os seus projetos e se vinculam ao trabalho de
como máquina e como organismo, são fortes e forma singular (Enriquez, 1997c). Enriquez
insidiosas (Senge, 2000 e Anzieu, 1990). As or- (1997b) compreende a organização como um
ganizações e, particularmente, as empresas são sistema cultural, simbólico e imaginário, em que
vistas como representações, por excelência, do se destacam a compreensão do papel do sujei-
mundo real – produzem bens e serviços, criam to, os processos grupais, a construção de seu
riquezas, distribuem dinheiro, enfim, universo imaginário social e de seu sistema de valores.
onde reina a racionalidade (Enriquez, 1997c). Na perspectiva da psicossociologia, o social
Pouca atenção tem sido dada à compreensão – incluindo tudo aquilo que é coletivo, que vai
dos processos organizacionais como expressão além do indivíduo – possui um sistema simbó-
de ambigüidades e incertezas, advindas de seu lico, é atravessado por ideologias e por um ima-
caráter humano e social. Os “recursos humanos” ginário que se constrói continuamente, possi-
vêm sendo tratados como “fator de produção”, bilitando à sociedade designar sua identidade;
“objeto da gestão” ou, mais recentemente, “cúm- ao mesmo tempo, no nível individual, o social
plice” e entusiasta da empresa (Aktouf, 1997). se inscreve no psiquismo e nas relações que
Lociser (1995) vem registrar, a partir da mantém com o mundo exterior. Acrescenta-se,
história da teoria organizacional, que a admi- por outro lado, que as relações interpessoais
nistração científica de Taylor representou a “ne- não são apenas regidas pelo simbólico social,
gação originaria” do sujeito e de sua capacida- mas se submetem às exigências pulsionais indi-
de autogestiva em situação de trabalho e, ao viduais (Nasciutti, 1992).
mesmo tempo, a instituição da concepção de Embora seja reconhecida a anterioridade dos
homem-organizado. processos sociais e da cultura com relação ao
As abordagens que deram origem ao con- indivíduo, determinando, portanto, suas condu-
ceito de “recursos humanos” (Escola de Recur- tas, Enriquez (1994a, 1997b), a partir da Casto-
sos Humanos, a abordagem comportamental e riadis, sublinha as ambivalências e contradições
do desenvolvimento organizacional, entre ou- do social, possibilitando ao indivíduo escapar da
tras) como também, mais recentemente, a ges- tendência ao conformismo e demonstrar sua
tão da qualidade total, reforçam uma visão parcela de originalidade e autonomia. Assim, o
harmoniosa da organização, procuram estimu- indivíduo pode vir a interrogar aspectos do fun-
lar os processos participativos e de estímulo à cionamento social. Nesta compreensão, o dese-
criatividade, restringindo-se, no entanto, a um jo do sujeito e a vontade dos atores sociais, mo-
tratamento instrumental das relações humanas dificando um mundo que age sobre eles, podem
nas organizações, voltadas para o alcance de produzir um sentido novo (Nasciutti, 1992).
melhores níveis de desempenho (Lociser, 1995; O referencial psicanalítico possibilita o re-
Azevedo et al., 2000). conhecimento dos fatores inconscientes na in-
356
Azevedo, C. S.

teração humana, na vida social e também orga- sentação do objeto “maravilhoso” (sociedade,
nizacional, compreendendo-os como fenôme- organização). Assim, ressaltando o papel da
nos irreprimíveis, que atuam segundo outros ilusão, conclui Enriquez (2001) que não é pos-
princípios (Enriquez, 1997b). Nessa perspecti- sível um mundo entregue à transparência, nem
va não apenas o afetivo irriga as organizações, sociedade sem mitos e ideologias. Quando a
mas especialmente os processos inconscientes idealização tende a faltar, apresenta-se a frag-
se manifestam na vida dos grupos e das orga- mentação do vínculo social (Enriquez, 2001).
nizações. Enriquez, evocando Freud, apresenta a ideali-
A partir da psicanálise, o homem passa a ser zação como possibilidade de libertar o sujeito
visto como sujeito clivado, não integrado, atra- de seu desamparo original, sendo, ao mesmo
vessado por falhas, desejos, sem unidade, esta- tempo, fonte de estabilidade psíquica e tran-
belecendo ao longo da vida vínculos de identi- qüilização narcísica.(Enriquez, 1994a, 1997b).
ficação com inúmeros outros sujeitos, sendo Embora a identificação/idealização com o
regido pela pressão de pulsões antagônicas, por grupo e com a organização sejam necessárias,
processos conscientes e inconscientes. As con- pois imprimem consistência e vigor ao projeto
dutas individuais se apresentam, assim, apenas comum, um processo de idealização maciça,
parcialmente coerentes, sendo afetadas por uma chamado por Enriquez (1997a, 1997b) de doen-
incoerência profunda (Enriquez, 1997b). Desta ça do ideal, levaria os membros da organização
forma, o mundo psíquico e também o universo a substituírem o seu ideal do eu, pelo ideal do
social são afetados e estruturados por desconhe- eu da organização, engendrando assim o confor-
cimentos, ilusões, recalcamentos (Enriquez, 2001). mismo e a negação da autonomia dos sujeitos.
Outro aspecto central para compreensão da Dessa forma, a tão esperada adesão dos in-
noção de sujeito diz respeito à afetividade. Sá divíduos ao projeto institucional, ou a identifi-
(2001), a partir de Dejours, salienta que a afeti- cação com a visão do líder pode representar
vidade constitui a base dos processos subjetivos. um aprisionamento do indivíduo em um “ima-
A construção de um projeto comum provoca ginário enganoso”, prendendo-o em uma ilu-
uma adesão passional dos indivíduos: “Não se são de onipotência narcísica e constituindo, do
trata unicamente de querer juntos, trata-se de ponto de vista psíquico, couraças que protegem
sentir juntos” (Enriquez, 1997b). o indivíduo do risco da quebra de identidade e
A psicossociologia, com base na psicanáli- da angústia de desmembramento despertada
se, destaca os elementos imaginários presentes pela vida coletiva (Enriquez, 1994a, 1997b).
e determinantes nos processos sociais e organi- No entanto, Enriquez apresenta uma outra
zacionais. O imaginário social é entendido por possibilidade, a rigor um desafio, para a pro-
Enriquez como ...uma certa maneira de repre- dução do sistema imaginário organizacional,
sentar para nós aquilo que somos, o que quere- denominado como “imaginário motor”, que
mos ser, o que queremos fazer e em que tipo de introduz a diferença, em oposição à repetição e
sociedade e de organização desejamos intervir ou à homogeneidade: a organização permite às pes-
existir (Enriquez, 1997b). Ressalta também os soas se deixarem levar pela sua imaginação cria-
processos de identificação, idealização e forma- tiva em seu trabalho, sem se sentirem reprimidas
ção de fantasias inconscientes que atravessam o pelas regras imperativas (Enriquez, 1997b). O
cotidiano dos grupos. imaginário motor admitiria, assim, a expressão
Nessa perspectiva, os processos de adesão de desejos variados, possibilitando a experi-
dos indivíduos às organizações e o exercício da mentação e o pensamento questionador, sendo
liderança encontram fundamentos na com- capaz de conviver com a mudança e ruptura,
preensão dos mecanismos de identificação e supondo portanto a cooperação como fruto do
idealização. A identificação é um processo psí- tratamento dos conflitos.
quico no qual o sujeito assimila características Torna-se imperativo reconhecer que o prin-
do outro, tido como modelo. Este processo per- cipal dilema que envolve as organizações é de,
mite ao sujeito o sentimento de inclusão no ao mesmo tempo, possibilitar a construção de
mundo. A idealização (cujo objeto é investido uma identidade coletiva e o exercício da auto-
libidinalmente, tornando-se admirável ou per- nomia dos sujeitos.
feito) possibilita a constituição dos pactos so- Tal desafio parece ser ainda maior, quando
ciais e desempenha um papel central na edifi- Enriquez (1997a, 1997b) considera as organi-
cação da sociedade. Possibilita aos sujeitos par- zações uma estrutura que visa colocar ordem
tilhar a mesma ilusão, associando-se à repre- em toda a parte, estrutura de “solidificação dos
357

Ciência & Saúde Coletiva, 7(2):349-361, 2002


seres e das coisas”, lugar da compulsão à repeti- nos como de polarização entre dois subgrupos,
ção, favorecendo a manifestação da pulsão de argumentos esteriotipados, apatia, depressão,
morte, que se expressa na resistência à mudan- euforia súbita, fenômeno de bode expiatório,
ça, inércia e homogeneização. Por outro lado, a explicitam os processos emocionais e incons-
pulsão de vida tende a ser restringida e dirigida cientes que governam a vida dos grupos.
somente para o trabalho produtivo, para efi- Anzieu (1990) destaca a ameaça e a angús-
ciência e para a harmonia. Dessa forma, embo- tia que a situação de grupo desperta, particu-
ra a organização busque alavancar a criativida- larmente nos momentos de sua constituição,
de, tão proclamada nas abordagens gerenciais, relacionadas à fragmentação, despedaçamento
paradoxalmente impõe restrições ao seu desen- do indivíduo, de seu psiquismo e do próprio
volvimento. Desencadear processos criativos e corpo.
de mudança implica fundamentalmente propi- A perspectiva de Bion é também funda-
ciar que a organização se perceba como plural, mental para a compreensão da dinâmica gru-
atravessada por divisões, alianças, fissuras, con- pal. Para este autor o comportamento dos gru-
flitos, o que se contrapõe à visão harmoniosa e, pos se efetuaria em dois níveis: o da tarefa co-
portanto, ao “fantasma do Uno”, que perpassa mum e o das emoções comuns. O primeiro se-
as organizações e é dominante nas abordagens ria racional e consciente, enquanto o segundo
gerenciais. envolveria a circulação emocional e fantasmá-
Fica evidente, pelo que até aqui foi exposto, tica inconsciente. Bion (1969) mostrou que um
que a relação entre o indivíduo e a organização grupo pode funcionar, a um certo nível, como
envolve vínculos afetivos e imaginários, e que um conjunto voltado para a tarefa e, ao mesmo
as organizações são objeto de transferência es- tempo, se conduzir por hipóteses de base in-
pontânea, e também induzida, de afetos, emo- conscientes. Este autor coloca em cena a proble-
ções, atitudes. Assim, embora as organizações mática da liderança e apresenta algumas possi-
não criem uma estrutura psíquica, utilizam-se bilidades para o seu exercício, como será visto
dela, propiciando a satisfação de necessidades posteriormente.
narcísicas dos indivíduos (Freitas, 1999; Azeve- Enriquez (1994b, 1997b) também focaliza a
do et al., 2000). problemática dos grupos, tratando-a em sua
explicação do fenômeno organizacional como
Os processos grupais e liderança um importante nível de análise. O grupo é vis-
to como portador de um projeto ou frente a
Para melhor compreender a dinâmica orga- uma tarefa a cumprir. Para Enriquez, o proces-
nizacional e, ao mesmo tempo, gerar uma maior so identificatório grupal teria por base o proje-
aproximação à temática da liderança, será tra- to comum, sendo menos enfatizado o papel do
tada agora a problemática grupal, já que o gru- líder. A possibilidade do projeto comum envol-
po tem uma importância fundamental para veria a construção de um imaginário social
compreensão dos fenômenos coletivos. partilhado, a adesão passional de seus mem-
O grupo, para a psicanálise, é objeto de in- bros e o desenvolvimento de um processo de
vestimento pulsional, resulta de projeções de idealização, já destacada anteriormente, que dá
seus membros (Anzieu, 1990; Sá, 2001), consti- características excepcionais ao projeto a seus
tuindo-se, portanto, não apenas como lugar de participantes.
acordos objetivos, mas também como espaço Enriquez (1994b, 1997b) chama a atenção
imaginário e de manifestação do inconsciente. também para conflito estrutural, presente nos
Tratando a dimensão imaginária nos grupos, grupos e seus participantes, entre o reconheci-
Anzieu (1990) ressalta que “o grupo é uma co- mento do desejo e o desejo de reconhecimento.
locação em comum das imagens interiores e De um lado, se coloca o desejo de cada um de
das angústias dos participantes” e ainda “é o lu- se fazer percebido e aceito na sua diferença e
gar de fomentação de imagens”. originalidade, expressando os desejos de oni-
Pagés (1974), analisando os fenômenos afe- potência. De outro lado, a necessidade de ser
tivos presentes nos grupos, contrasta a racio- reconhecido como membro do grupo, identifi-
nalidade consciente do grupo com o seu com- cado com os outros e tendo o mesmo objeto de
portamento de fato, indicando a existência de amor, representando a busca da identidade e,
sentimentos compartilhados e em geral incons- no seu extremo, a massificação.
cientes que se manifestam em todos os níveis A solução desse conflito pode engendrar
da vida dos grupos. Para Pagés (1974), fenôme- duas possibilidades para o exercício da lideran-
358
Azevedo, C. S.

ça. Quando é dominante o desejo de reconheci- às normas editadas. Compreendendo, portan-


mento, e portanto é dominante a busca da iden- to, o poder como uma relação, aponta como
tidade, são possíveis as seguintes conseqüên- convergência nos estudos organizacionais a ne-
cias: a massificação, redução na capacidade de cessidade do consentimento – um chefe caris-
reflexão e inventividade, desenvolvimento de mático só existe com seguidores.
comportamentos narcísicos, não sendo tolera- Lapierre (1995) examina a relação líder-li-
dos conflitos e sendo freqüente a exclusão dos derados, os vínculos imaginários que aí se esta-
diferentes. Neste contexto, o líder encarnaria o belecem, destacando que as possibilidades de
narcisismo do grupo, controlaria os comporta- condução do dirigente provêm de sua realida-
mentos de hostilidade, e poderia se envolver na de psíquica e inconsciente. Segundo este autor,
tentação da paranóia. a projeção seria o mecanismo psíquico central
No caso de terem primazia processos de di- em ação, podendo ser favorecedora da empa-
ferenciação, apresenta-se no grupo uma visão tia, compreensão e criatividade como também
não monolítica do projeto comum e, ao mes- fonte de ilusões e manipulações.
mo tempo, as possibilidades de suscitar adesão Kets de Vries (1994) sugere que a liderança
serão fruto de um processo de negociações. A exerce uma influência mágica, derivada do pro-
perspectiva de cooperação associa-se, então, ao cesso de identificação e idealização com a figu-
tratamento de conflitos. Neste processo, desta- ra e com os valores do líder. Em seus estudos,
ca-se a importância do líder, que evitaria a de- este autor ressalta os riscos de comprometi-
sagregação do grupo, que busca ser gerido de mento do senso de realidade dos indivíduos em
forma democrática, investindo, assim, como posição de poder, produzindo idéias de gran-
chefe do grupo, um líder, por seu poder de se- diosidade e paranóias, podendo levar a organi-
dução e influência de idéias. Surge a possibili- zação a estratégias francamente inadequadas
dade de representar vontades e desejos do gru- do ponto de vista de seu futuro.
po, permitindo coesão e identificação (Enri- Kets de Vries (1989) faz uma analogia entre
quez, 1997b; Kets de Vries, 1994; Sá, 2001). A o espelho no contexto do desenvolvimento hu-
saída deste conflito através da aceitação da di- mano e o tipo de interação que se estabelece en-
ferenciação recoloca a perspectiva de Enriquez tre líder-liderados. A palavra espelho, do ponto
acerca da construção do “imaginário motor”, de vista etimológico deriva de mirari do latim,
do reconhecimento da autonomia dos sujeitos. que significa não apenas olhar, mas também
Dessa forma, o grupo apresenta-se como admirar. Mirari se refere também a uma ilusão
instância privilegiada para a compreensão do de ótica. Assim, o espelho representa, ao mes-
fenômeno da liderança, podendo favorecer a mo tempo, um instrumento de verdade e de
identificação maciça ou a mudança, mas se distorção, como uma tela para projeções hu-
apresentando “como lugar de refúgio e como manas (Kets de Vries, 1989). Por outro lado, do
sítio de todos os perigos” (Enriquez, 1997b). ponto de vista do indivíduo, o espelho está as-
Do mesmo modo que nos grupos, a proble- sociado a fases muito primitivas de suas rela-
mática da liderança exerce grande fascínio so- ções objetais, de constituição de sua identidade
bre as pessoas, pois ativa fantasmas primitivos e de seu imaginário. Esta analogia expressa a
dos indivíduos. Segundo Lapierre (1995), os realidade imaginária, subjetiva da liderança,
medos e ambivalências suscitados pela questão através da ênfase em seu potencial regressivo,
da liderança advêm, fundamentalmente, das como tela ou depositário dos desejos dos lide-
questões do poder que um indivíduo detém so- rados, que se soma a sua compreensão como
bre os outros. fonte de identificação e idealização, ao mesmo
Enriquez (2001), compreendendo as orga- tempo como possibilidade de manipulação e
nizações como arenas privilegiadas para o jogo satisfação narcísica.
do poder e do desejo, aponta que, paradoxal- Bion (1969), ao focalizar o processo grupal,
mente, o homem ama aquilo a que é submeti- nos apresenta novos elementos para o trata-
do, desejando ser dominado por poderes for- mento da liderança. Para Bion, existe uma men-
tes, com os quais busca se identificar. Este au- talidade grupal, que funciona como uma uni-
tor trata o poder como uma relação de caráter dade inconsciente e independente do ponto de
sagrado, de tipo assimétrico, em que um ho- vista individual de seus integrantes, manifes-
mem ou um grupo define as orientações, dis- tando-se através do que chamou “pressupostos
pondo do uso legítimo da violência e, do outro de base”. Os pressupostos traduziriam a atmos-
lado, um grupo amplo, que dá consentimento fera psicológica, as fantasias dominantes no
359

Ciência & Saúde Coletiva, 7(2):349-361, 2002


grupo e evitariam a dor e frustração de lidar uma maior distribuição da liderança. No gru-
com a realidade e a tarefa. Todos os supostos po de trabalho os sujeitos teriam maior elabo-
incluem a existência de um líder, com diferen- ração de suas fantasias inconscientes, seriam
tes características, podendo seu lugar ser tam- mais autônomos e ao mesmo tempo demanda-
bém ocupado por uma idéia, ou por uma “bí- riam menos do líder, que ocupa um lugar de
blia” do grupo, que faz então apelo aos seus menor importância relativa. Assim seria um
dogmas. caminho teórico que permitiria pensar em mi-
Partindo da observação de que todos os gru- nimizar a figura do líder, embora aponte tam-
pos se reúnem para “fazer” alguma coisa, Bion bém a necessidade/o desafio da maturidade.
denomina uma das facetas da atividade mental
do grupo como “grupo de trabalho”. Sob o pre-
domínio do grupo de trabalho teríamos uma Considerações finais
atividade mental voltada para uma determina-
da tarefa e submetida ao princípio de realida- A compreensão da organização como estrutura
de. No entanto, subjacente a esta força “desen- social, constituída ao mesmo tempo por atores
volvimentista”, existem outras forças que se ma- e por sujeitos psíquicos, impõe o reconheci-
nifestam em sentido contrário, levando o gru- mento da imensa complexidade que envolve os
po a funcionar com base em processos incons- processos de mudança, tornando a sua dimen-
cientes e evitar o contato com a tarefa. são racional apenas uma das faces do processo.
O grupo de trabalho seria continente para Enriquez (1997b) observa que as mudanças so-
a idéia nova, tendo por função a tradução de ciais levam tempo para serem amadurecidas e
pensamentos e sentimentos num comporta- para se apresentarem como necessárias, sendo
mento adaptado à realidade. Neste contexto, o decorrente desta compreensão uma visão mais
papel central do líder seria o de encaminhar a modesta quanto as suas possibilidades. A pers-
discussão com o grupo, procurando caminhos. pectiva psicanalítica das organizações e do
O grupo de trabalho representando o contexto exercício da liderança evidencia que a busca de
da cooperação exige solidariedade e maturida- processos sistêmicos, estratégicos e coerentes,
de de seus participantes e de seu líder e, por- esbarra sempre nas questões humanas, no uni-
tanto, capacidade de elaboração de sentimen- verso fantasmático, no desamparo, no desejo
tos primitivos, como a inveja e, ao mesmo tem- de afirmação narcísica, no circuito das pulsões.
po, projeção de “coisas boas” sobre o outro, ge- Dessa forma, a possibilidade de condução
rando a possibilidade de tolerá-lo. No grupo de dos processos organizacionais enfrenta restri-
trabalho estarão sempre presentes os fenôme- ções, por um lado, pelas exigências dos sujeitos
nos de pressuposição básica, de forma não-do- e dos processos intersubjetivos, e por outro, pe-
minante, sendo fundamental para isso que o lí- la ordem social, pelos dispositivos institucio-
der exerça um papel de mediador e traga à to- nais, sendo, portanto, bem mais precária do
na as fantasias (Chuster, 1999). Neste contexto, que nossas fantasias onipotentes gostariam.
o líder deve ser mais maduro e, ao mesmo tem- Toda essa análise indica, assim, que a possi-
po, deve estar menos em foco, comparativa- bilidade do coletivo e da mudança deve ser to-
mente aos grupos “dependentes” do líder. mada de forma mais modesta, reconhecendo o
Bion coloca em evidência que o papel do lí- alto grau de incerteza e ambigüidade dos pro-
der ou suas possibilidades estão condicionados cessos sociais e compreendendo a cooperação
pelo tipo de mentalidade grupal dominante, como frágil, parcial, fruto de acordos temporá-
ou, dito de outro modo, pela fantasmática in- rios, em que se expressam atores e sujeitos, sen-
consciente presente. Um líder maduro, que ten- do necessário descartar a pretensão do consen-
te devolver ao grupo a definição de seus rumos so e da harmonia.
e fazê-lo voltar-se para sua tarefa, pode ser der- Assim, cabe indagar sobre as possibilidades
rubado ou excluído, por exemplo, em um con- de aumentar a governabilidade das organiza-
texto de muita dependência, por não atender às ções públicas de saúde brasileiras, de desenvol-
demandas inconscientes de seus participantes. ver processos de mudanças que aumentem o
A leitura de Bion, particularmente a partir compromisso dos profissionais com a assistên-
da concepção de grupo de trabalho, aponta no- cia e desenvolvam uma nova concepção geren-
vos caminhos para tratar a liderança segundo cial, e sua articulação com o exercício da lide-
os processos intersubjetivos. Nesse contexto, rança, considerado fator fundamental neste
estaria o desafio da cooperação e a aposta em trabalho.
360
Azevedo, C. S.

Embora exista um reconhecimento, do pon- dora em organizações públicas de saúde, e par-


to de vista teórico, da importância da liderança ticularmente em hospitais, pode se desenvolver
nos processos de mudança, cabe examinar seu sem a figura do líder para conduzi-la? Talvez o
papel e suas características nas circunstâncias exame da liderança em nossas organizações
sociais, políticas e administrativas brasileiras. públicas de saúde deva explorar a hipótese de
Que tipo de liderança é necessário em nosso convivência de lideranças de grupo, como fe-
contexto? Quais as relações entre estilo/tipo de nômeno disperso, com a presença do dirigen-
liderança e modelo de gestão? Quais as possibi- te/líder representando a possibilidade de con-
lidades para o exercício da liderança em um dução democrática, permitindo a identificação,
contexto de baixa autonomia? É possível mini- cooperação e algum nível de coesão dos seus
mizar a figura do líder e apostar na maior dis- membros.
tribuição da liderança? Uma gestão mobiliza-

Referências bibliográficas
Aktouf O 1997. A administração da excelência: da deifi-
cacão do dirigente à reificação do empregado (ou os
estragos do dilema do rei Lear nas organizações). In
Davel, E & Vasconcelos, J (orgs.). “Recursos” huma-
nos e subjetividade. Vozes, Petrópolis.
Aktouf O 1990. Leadership Interpellable et Gestion Mo-
bilisatrice. Gestion. (nov) Montreal.
Anzieu D 1990. O grupo e o inconsciente: o imaginário
grupal. Ed. Casa do Psicólogo, São Paulo.
Azevedo CS 1993. Gerência hospitalar: a visão dos dire-
tores de hospitais públicos do município do Rio de
Janeiro. Dissertação de mestrado. Instituto de Medi-
cina Social. Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro.
Azevedo C, Braga Neto FC & Sá MC 2000. O indivíduo e
a mudança nas organizações de saúde: contribuições
da psicossociologia. Escola Nacional de Saúde Públi-
ca. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro (mimeo,
Cadernos de Saúde Pública, no prelo).
Bion WR 1969. Dinâmica de grupo: uma revisão. In
Klein M et al. (orgs.). Temas de psicanálise aplicada.
Zahar Ed. Rio de Janeiro.
Braga Neto FC 1996. Les stratégies des hospitaux de
haute complexité dans um contexte de réforme sani-
taire: une étude de cas multiple au Brésil. Projeto de
doutorado. Département d’administration de la san-
té, Faculté de médicine, Université de Montreal.
Bridges W 2000. Guiando a organização distribuída. In
Hesselbein F, Goldsmith M & Somerville I (eds.).
Liderança para o século XXI. Futura, São Paulo.
361

Ciência & Saúde Coletiva, 7(2):349-361, 2002


Bryman A 1996. Leadership in organizations. In Clegg S, Goodwin N 2000. Leadership and UK Health Service.
Hardy C & Nord W.R. (coord.). Handbook of Orga- Health Policy 51:49-60.
nization Studies. Sage, Nova York. Kets de Vries M. 1994. Organizational paradoxes: clinical
Chuster A et al. 1999. W R Bion – novas leituras: dos mode- approaches to management. Routledge, Londres.
los científicos aos princípios ético-estéticos. Ed. Com- Kets de Vries M 1989. The leader as mirror: clinical re-
panhia de Freud, Rio de Janeiro. flections. Human Relations 42:607-623.
Cohen E & Tichy N 2000. A liderança para o século XXI Kets de Vries M 1997. Liderança na empresa: como o com-
começa pela liderança interna. In Hesselbein F, portamento dos líderes afeta a cultura interna. Atlas,
Goldsmith M & Somerville I (eds.). Op. cit. São Paulo.
Demers C 1991. Le changement radical vu de l’interieur: Kotter JP 1997. Os líderes necessários (entrevista). HSM
la diffusion stratégique dans les organisations com- Management 4. set-out.
plexes. Gestion (mai). Montreal. Lapierre L (org.) 1995. Imaginário e liderança: na so-
Dennis JL, Langley A & Cazale L. 1994. Leadership et ciedade, no governo, nas empresas e na mídia. Atlas,
Changement Stratégique dans L’ambiguité. Lyon. São Paulo.
(mimeo). Lociser E 1995. A pro-cura da subjetividade: a organiza-
Enriquez E. 1994a. O papel do sujeito humano na dinâ- ção pede análise. In Davel & Vasconcelos J (orgs.).
mica social In Levy et al. / Machado et al. (orgs.). Psi- Op. cit.
cossociologia: análise social e intervenção. Vozes, Pe- Mintzberg H 1989. Mintzberg on management: inside our
trópolis. strange world of organizations. Free Press, Nova York.
Enriquez E 1994b. O vínculo grupal. In Levy et al./ Ma- Mintzberg H 1994. Managing the care of health and the
chado et al. (orgs.). Op. cit. cure of disease. Montreal (mimeo).
Enriquez E 1997a. Prefácio. In Davel E & Vasconcelos J. Mintzberg H 1995. Criando organizações eficazes: estrutu-
(orgs.). “Recursos” humanos e subjetividade. Vozes, ras em cinco configurações. Atlas, São Paulo.
Petrópolis. Nasciutti JR 1992. Reflexões sobre o espaço da psicosso-
Enriquez E 1997b. A organização em análise. Vozes, Pe- ciologia. Rio de Janeiro (mimeo).
trópolis. Pagés M 1974. A vida afetiva dos grupos: esboço de uma
Enriquez E 1997c. Les jeux du pouvoir et du désir dans teoria da relação humana. Vozes-Edusp, Petrópolis-
l’entreprise. Ed. Desclée Brouwer, Paris. São Paulo.
Enriquez E 2001. Instituições, poder e “desconhecimen- Roberts NC 1985. Transforming leadership: a process of
to”. In Araújo JNG & Carreteiro TC (orgs.). Cenários collective action. Human Relations (38)11:1.023-
sociais e abordagem clínica. Escuta, São Paulo. 1.046.
Freitas ME 1999. Cultura organizacional: identidade, se- Sá MC 2001. Subjetividade e projetos coletivos: mal-estar
dução ou carisma? Ed. FGV. São Paulo. e governabilidade nas organizações de saúde. Ciência
Goldsmith M, Walt C. 2000. Novas competências para o e Saúde Coletiva 6(1):151-164.
líder global de amanhã. In Hesselbein F, Goldsmith Senge PM 2000. Liderança em organizações vivas. In
M & Somerville I. Op. cit. Hesselbein F, Goldsmith M. & Somerville I. Op. cit.

Artigo apresentado em 10/11/2001


Versão final apresentada em 5/4/2002
Aprovado em 15/4/2002

Você também pode gostar