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ARTIGO ARTICLE
em organizações públicas de saúde*
Abstract The present study examines the top- Resumo O presente trabalho explora a temá-
ic of leadership, considered a key element to tica da liderança, reconhecendo-a como fator
face the difficulties regarding changing process- fundamental para enfrentar as dificuldades de
es in public health organizations, especially implementação de processos de mudança nas
when humanization of assistance and higher organizações públicas de saúde – incluindo as-
level of institutional responsibility for results pectos relativos à organização da assistência,
are in question. It’s necessary to admit the lim- sua humanização e a busca de maiores níveis
its of management tools as guides in the process de responsabilidade institucional para com os
of implementing changes in individual/orga- seus resultados. Neste sentido, é necessário ad-
nization relationship patterns, implied in the mitir os limites das ferramentas gerenciais pa-
issue of employees’ participation and engage- ra viabilizar tais processos, especialmente no
ment in a certain institutional proposition. que se refere à problemática da relação dos in-
This investigation intends to link the sociology divíduos nas organizações, subjacente às ques-
of organizations analysis of leadership and re- tões da participação, compromisso e adesão dos
lated topics with the French psychosociology funcionários a um determinado projeto insti-
approach and psycoanalitical understanding tucional. O presente trabalho procura articu-
of intersubjective group and unconscious di- lar a leitura do fenômeno da liderança presen-
mensions of organizations and leadership ex- te na sociologia das organizações e as questões
ercizing. que suscitam, com a compreensão da dimen-
Key words Leadership, Organizational dy- são intersubjetiva, grupal e inconsciente pre-
* Este artigo é oriundo
do anteprojeto de pesquisa
namics, Health care management, Organiza- sente nas organizações e no exercício da lide-
apresentado na seleção para tional intersubjectivity, Group processes and rança, advinda da abordagem da psicossocio-
o doutorado em Psicologia management logia francesa e da leitura psicanalítica dos fe-
Social da Universidade
de São Paulo, em novembro
nômenos grupais e organizacionais.
de 2000. Palavras-chave Liderança, Mudança organi-
1 Departamento zacional, Gestão em saúde, Intersubjetividade
de Administração e
Planejamento, Escola
nas organizações, Processos grupais e gestão
Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Leopoldo Bulhões 1480,
sala 716, Manguinhos,
21041-210, Rio de Janeiro RJ.
creuza@ensp.fiocruz.br
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Azevedo, C. S.
tando, como um elemento central, a orientação ganizações de saúde, a seguir serão vistas com
para a mudança. A gerência estaria centrada no maior detalhes algumas destas abordagens.
presente, voltada para o bom funcionamento
de um sistema ou da organização existente, ge- A perspectiva contingencial
rando estabilidade e não apresentando ques-
tões sobre a identidade e propósitos organiza- Essa abordagem destaca, como aspecto cen-
cionais (Bryman, 1996; Kotter, 1997; Goodwin, tral para qualquer compreensão da liderança,
2000). Os líderes teriam carisma, enquanto a os fatores situacionais, do contexto e, paralela-
base de poder dos gerentes seria a hierarquia, mente, visa superar as teorias universalistas das
os líderes estariam mais preocupados com o organizações, que vigoraram nos anos 60 (Bry-
por quê enquanto os gerentes com o como (Kets man, 1996).
de Vries, 1997). Goodwin (2000) destaca que as pesquisas,
Kets de Vries (1997) afirma, no entanto, que de modo geral, não procuram compreender os
o gerente vem sendo colocado na posição de elementos que determinam o exercício da lide-
bode expiatório neste debate, pois na realidade rança. Este autor ressalta que os estudos tratam,
ambas as qualidades e habilidades são necessá- primordialmente, das conseqüências do com-
rias para um líder eficaz. Este autor destaca dois portamento do líder, o que talvez seja oriundo
papéis a serem desempenhados pelo líder: o ca- da tendência a perceber a liderança como de-
rismático e o instrumental. O primeiro estaria terminante e não como variável dependente.
ligado justamente à dimensão simbólica e ima- A perspectiva contingencial torna-se, por-
ginária do trabalho do dirigente: como concede tanto, relevante para este trabalho, ao colocar
o poder e dá energia a seus subordinados. O em cena o contexto, como força condicionado-
papel instrumental estaria vinculado à visão ra da prática da liderança, o que foi anterior-
dos líderes como arquitetos organizacionais. mente anunciado, haja vista as considerações
Eles projetam, estruturam e controlam sua or- sobre as particularidades das organizações de
ganização. saúde e o contexto da administração pública
Os estudos sobre a liderança podem ser brasileira, com suas demandas e restrições ao
agrupados em quatro abordagens, que tiveram comportamento gerencial.
predomínio em momentos distintos. A abor- Assim, seria pertinente, na análise da lide-
dagem que considerou as características do lí- rança no âmbito do setor público de saúde, com-
der, seus traços, qualidades natas, dominou até preender que o exercício da liderança é em par-
o final dos anos 40. A perspectiva do estilo de te condicionado pelo processo de trabalho e pe-
liderança, mudando o foco das características la distribuição do poder a ele associado, como
do líder para o seu comportamento e, portan- também pelas características do modelo geren-
to, para a perspectiva de seu treinamento, teve cial, particularmente o nível de autonomia dos
importância até os anos 60. Dos anos 60 ao iní- dirigentes. Desta forma, o estilo de liderança
cio dos 80, predominou a abordagem contin- seria fruto não apenas de elementos relaciona-
gencial, que colocou em lugar central os fato- dos às características dos indivíduos, mas tam-
res situacionais, do contexto, para compreen- bém do contexto particular onde se realiza.
der a liderança. Do início dos anos 80 em dian-
te se constituiu a chamada nova perspectiva da A gestão do simbólico e a liderança
liderança, que tem por base as idéias da gestão
pelo simbólico, envolvendo as ditas “liderança Correspondendo à perspectiva da gestão do
carismática”, “liderança visionária”, e “liderança simbólico, inúmeras contribuições emergiram
transformacional”. Outras contribuições mais na década de 1980, revelando como papel cen-
recentes são também importantes, como é o tral do líder a promoção de valores que forne-
caso da perspectiva da “liderança dispersa”. çam significados partilhados sobre a natureza da
Torna-se importante realçar que cada perspec- organização (Bryman, 1996), desenvolvendo a
tiva representou uma mudança de ênfase, mais orientação para a mudança, a confiança, o orgu-
do que uma superação das anteriores (Bryman, lho e a inspiração. Nesta abordagem, o líder se-
1996), observando-se na década de 1990 res- ria aquele que define a realidade organizacional,
surgir o enfoque dos traços de personalidade e através da articulação de sua visão sobre a orga-
mesmo ênfases no estilo de liderança. nização e da forma como define a missão desta.
Embora todas as contribuições possam tra- As pesquisas realizadas a partir desta pers-
zer elementos para tratar da liderança em or- pectiva estavam voltadas particularmente para
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teração humana, na vida social e também orga- sentação do objeto “maravilhoso” (sociedade,
nizacional, compreendendo-os como fenôme- organização). Assim, ressaltando o papel da
nos irreprimíveis, que atuam segundo outros ilusão, conclui Enriquez (2001) que não é pos-
princípios (Enriquez, 1997b). Nessa perspecti- sível um mundo entregue à transparência, nem
va não apenas o afetivo irriga as organizações, sociedade sem mitos e ideologias. Quando a
mas especialmente os processos inconscientes idealização tende a faltar, apresenta-se a frag-
se manifestam na vida dos grupos e das orga- mentação do vínculo social (Enriquez, 2001).
nizações. Enriquez, evocando Freud, apresenta a ideali-
A partir da psicanálise, o homem passa a ser zação como possibilidade de libertar o sujeito
visto como sujeito clivado, não integrado, atra- de seu desamparo original, sendo, ao mesmo
vessado por falhas, desejos, sem unidade, esta- tempo, fonte de estabilidade psíquica e tran-
belecendo ao longo da vida vínculos de identi- qüilização narcísica.(Enriquez, 1994a, 1997b).
ficação com inúmeros outros sujeitos, sendo Embora a identificação/idealização com o
regido pela pressão de pulsões antagônicas, por grupo e com a organização sejam necessárias,
processos conscientes e inconscientes. As con- pois imprimem consistência e vigor ao projeto
dutas individuais se apresentam, assim, apenas comum, um processo de idealização maciça,
parcialmente coerentes, sendo afetadas por uma chamado por Enriquez (1997a, 1997b) de doen-
incoerência profunda (Enriquez, 1997b). Desta ça do ideal, levaria os membros da organização
forma, o mundo psíquico e também o universo a substituírem o seu ideal do eu, pelo ideal do
social são afetados e estruturados por desconhe- eu da organização, engendrando assim o confor-
cimentos, ilusões, recalcamentos (Enriquez, 2001). mismo e a negação da autonomia dos sujeitos.
Outro aspecto central para compreensão da Dessa forma, a tão esperada adesão dos in-
noção de sujeito diz respeito à afetividade. Sá divíduos ao projeto institucional, ou a identifi-
(2001), a partir de Dejours, salienta que a afeti- cação com a visão do líder pode representar
vidade constitui a base dos processos subjetivos. um aprisionamento do indivíduo em um “ima-
A construção de um projeto comum provoca ginário enganoso”, prendendo-o em uma ilu-
uma adesão passional dos indivíduos: “Não se são de onipotência narcísica e constituindo, do
trata unicamente de querer juntos, trata-se de ponto de vista psíquico, couraças que protegem
sentir juntos” (Enriquez, 1997b). o indivíduo do risco da quebra de identidade e
A psicossociologia, com base na psicanáli- da angústia de desmembramento despertada
se, destaca os elementos imaginários presentes pela vida coletiva (Enriquez, 1994a, 1997b).
e determinantes nos processos sociais e organi- No entanto, Enriquez apresenta uma outra
zacionais. O imaginário social é entendido por possibilidade, a rigor um desafio, para a pro-
Enriquez como ...uma certa maneira de repre- dução do sistema imaginário organizacional,
sentar para nós aquilo que somos, o que quere- denominado como “imaginário motor”, que
mos ser, o que queremos fazer e em que tipo de introduz a diferença, em oposição à repetição e
sociedade e de organização desejamos intervir ou à homogeneidade: a organização permite às pes-
existir (Enriquez, 1997b). Ressalta também os soas se deixarem levar pela sua imaginação cria-
processos de identificação, idealização e forma- tiva em seu trabalho, sem se sentirem reprimidas
ção de fantasias inconscientes que atravessam o pelas regras imperativas (Enriquez, 1997b). O
cotidiano dos grupos. imaginário motor admitiria, assim, a expressão
Nessa perspectiva, os processos de adesão de desejos variados, possibilitando a experi-
dos indivíduos às organizações e o exercício da mentação e o pensamento questionador, sendo
liderança encontram fundamentos na com- capaz de conviver com a mudança e ruptura,
preensão dos mecanismos de identificação e supondo portanto a cooperação como fruto do
idealização. A identificação é um processo psí- tratamento dos conflitos.
quico no qual o sujeito assimila características Torna-se imperativo reconhecer que o prin-
do outro, tido como modelo. Este processo per- cipal dilema que envolve as organizações é de,
mite ao sujeito o sentimento de inclusão no ao mesmo tempo, possibilitar a construção de
mundo. A idealização (cujo objeto é investido uma identidade coletiva e o exercício da auto-
libidinalmente, tornando-se admirável ou per- nomia dos sujeitos.
feito) possibilita a constituição dos pactos so- Tal desafio parece ser ainda maior, quando
ciais e desempenha um papel central na edifi- Enriquez (1997a, 1997b) considera as organi-
cação da sociedade. Possibilita aos sujeitos par- zações uma estrutura que visa colocar ordem
tilhar a mesma ilusão, associando-se à repre- em toda a parte, estrutura de “solidificação dos
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