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CorreioArtes

FUNDADO POR ÉDSON RÉGIS


EM 27 DE MARÇO DE 1949

das
Janeiro 2017 – ANO LXVII Nº 11

Sérgio de
Castro
Pinto
O poeta do insólito tecido
das coisas cotidianas
6 editorial

O ano de Sérgio
Dois mil e dezessete é um poema “Camões/Lampião”,
ano especial na vida do poeta, A presença de traduzidos por Fred Ellison,
professor e jornalista Sérgio da Universidade do Texas,
de Castro Pinto, nascido na
Sérgio não se foram integrados à coletânea
capital da Paraíba há seten- restringe à vida Camões’ Feast, coordenada
ta anos, cinquenta dos quais por Regina Vater.
dedicados à poesia. Sérgio e literária, seja como Duas antologias brasileiras
seu séquito de leitores têm - Os cem melhores poetas brasi-
muito para comemorar. Afi-
autor, seja como leiros do século XX e Sincretis-
nal, não é todo dia que nasce o leitor assíduo e mo: a poesia da Geração de 60,
um poeta da sua estirpe. organizadas, respectivamen-
Sérgio é autor de livros atento que é. Tem te, por José Nêumanne Pinto
que ocupam lugar de des- e Pedro Lyra – acolhem poe-
taque nas melhores estan-
ainda larga folha de mas de Sérgio, reconhecendo
tes da poesia de língua serviços prestados, o autor paraibano como uma
portuguesa, a saber: Gestos das expressões superlativas
lúcidos, A ilha na ostra, Do- por exemplo, da poesia nacional.
micílio em trânsito, O cerco O Correio das Artes inte-
da memória, Zoo imaginário e
como educador e gra-se, por meio de repor-
A flor do gol. Sua bibliogra- jornalista. tagem especial, às home-
fia completa-se com obras nagens iniciais a Sérgio, na
de ensaio e compilações de certeza de que, tanto em
artigos, crônicas etc. suas páginas, como em ou-
A presença de Sérgio não Departamento de Letras da tros diferentes espaços, no-
se restringe à vida literária, Universidade Federal da Pa- vos tributos serão prestados
seja como autor, seja como o raíba – e jornalista. ao poeta do “tecido insólito
leitor assíduo e atento que é. Algumas de suas criações das coisas cotidianas”, na
Tem ainda larga folha de ser- constam de antologias poé- brilhante definição de Hil-
viços prestados, por exemplo, ticas publicadas em Portu- deberto Barbosa Filho.
como educador – é professor gal e Espanha. Nos Estados
de Literatura Brasileira no Unidos, fragmentos de seu O Editor

6 índice

, 4 @ 10 2 15 D 22
sérgio barreto piglia jesús
O poeta Sérgio de Castro João Batista de Brito O escritor, professor e O Correio das Artes
Pinto fala de vida e poesia. comenta uma entrevista crítico literário Wilson publica, com exclusividade,
O autor de Gestos lúcidos feita por ele, em 1998, Alves-Bezerra estreia no um poema inédito do poeta
chega em 2017 aos 70 com o jornalista e crítico Correio das Artes com um cubano Jesús J. Barquet,
anos de idade, 50 dos de cinema Antônio Barreto artigo sobre o legado do traduzido pela professora
quais dedicados à lírica. Neto (1938-2000). argentino Ricardo Piglia. Analice Pereira.

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editor.correiodasartes@gmail.com Murillo Padilha Paulo Sérgio de
http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
6 especial

Poesia
como profissão de fé
SÉRGIO DE CASTRO PINTO - que em 2017
completa 50 anos de poesia e 70 de vida
- relembra os primeiros passos poéticos,
revela suas inclinações estéticas e
sociais e tem sua obra avaliada por
especialistas em literatura

Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com

A
té onde a memória alcança, não houve o primeiro poema. Mas
vários poemas, tal o afã, frenesi, ânsia para expressar suas emo-
ções. Todos eles, no entanto, nasceram com o pecado original
dos que se iniciam nas lides poéticas: “Os sentimentos correndo
desembestados à frente da linguagem, sem que esta conseguis-
se alcançá-los para evitar as efusões ingenuamente sentimen-
tais. Integrava aquele grupo de poetas para os quais a poesia
é uma dádiva dos deuses, querendo preservar a todo custo a
versão primeva e original do poema, pois, elaborá-lo, aparar as
suas arestas, significaria conspurcar aquilo que eu acreditava
ter de mais puro e visceral: a espontaneidade”. É o que conta
Sérgio de Castro Pinto, poeta paraibano que chega, neste 2017,
a 50 anos de poesia e 70 anos de vida. O Correio das Artes inicia,
nesta edição, as homenagens relacionadas à data tão significati-
va para as letras paraibanas.
E começamos antecipando que já está sendo providenciado o
lançamento de dois novos livros de Sérgio: Sérgio de Castro Pinto:
70 anos de vida e 50 de poesia (Ideia, João Pessoa) e Folha corrida (Es- c

4 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


Foto: Marcos Russo

c crituras, São Paulo). No primeiro, será reunida parte significativa do que es-
creveram sobre a sua poesia; no segundo, seleção de poemas desde o livro de
estreia, Gestos lúcidos (1967), até o mais recente, A flor do gol, lançado em 2014,
além de alguns poucos poemas inéditos. A capa de Folha corrida é do seu ami-
go artista plástico Flávio Tavares, que compartilhou parte significativa da tra-
jetória poética de Sérgio. Aliás, Flávio convive com Sérgio desde 1963, quando
o primeiro tinha 13 anos e o segundo talvez 16. “Nossas famílias são parentes
e posso dizer que meus irmãos mais velhos sempre foram amigos de Sérgio
e sua família”, explica o artista.
A relação entre Sérgio e Flávio Tavares também é lembrada pela escrito-
ra Ana Adelaide, em emocionado depoimento:
– Conheci Sérgio Castro Pinto na década de 70, quando Flávio Tava-
res fez a capa do seu livro A ilha na ostra (1970). Naquela época, eu era
ainda uma adolescente dispersa e com a cabeça nas nuvens. A poesia
para mim era um mistério indecifrável! Sem falar que, o Cine Muni-
cipal me chamava mais alto! Só fui conhecer mais a poesia de Sér-
gio anos mais tarde, mas mesmo assim, não muito. Sou uma leitora
relapsa, interessada na recepção e o que aquele jogo de palavras me
provoca. Gosto muito de poesia curta, afiada, precisa. E isso Sérgio
domina com suas memórias, seus zoos imaginários e seus arredores
de casa. Sua filha Cecília foi minha aluna na UFPB e seu genro Zeca
é um querido. Ele e sua amada Alda formam um belo casal poético!
E gosto de encontrá-lo nos eventos culturais e/ou literários da cidade!
Um motivo de alegria e orgulho poder ter convivido com ele pelos cor-
redores da UFPB, e trocar afetos e cotidianos. Parabéns Sérgio! Pela sua
vida-poesia! E como as suas girafas, de luas e que não giram nada bem...
te mando um beijo e um abraço! c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 5


c Mas, voltando a Sérgio, a pri- ba. Segundo Sérgio, o grupo Sa-
meira inclinação para as letras nhauá não cumpriu um conteú-
veio ainda na escola primária do programático. “Agíamos ao
“São Judas Tadeu”, de Dona sabor das nossas idiossincrasias,
Edazima e de Dona Maria José, embora acalentássemos um obje-
por ocasião das redações e das tivo comum: deflagrar, na Paraí-
dissertações, que eram tarefas ba, uma poesia mais consonante
diárias, rotineiras. O primeiro à que era feita no eixo Rio-São
livro, Gestos lúcidos, foi lançado Paulo, a partir de João Cabral de
em 1967, no hall do Teatro Santa Melo Neto”, explica.
Roza, em João Pessoa. Quem o
apresentou foi o poeta Vanildo

Fotos: reprodução internet


Brito. E o primeiro a dar uma
nota sobre ele foi o então jorna-
lista e já cineasta Vladimir Car-
valho, que à época era repórter
Stella Carr também foi precursora
do jornal Correio da Paraíba. O na percepção estética da obra de
livro, lançado pelas Edições Sa- Sérgio de Castro Pinto
nhauá, de feição essencialmen-
te artesanal e mimeografado, para o adolescente que eu era”,
repercutiu no âmbito da pro- lembra Sérgio.
víncia, através de críticos como Sérgio de Castro Pinto foi um
Virginius da Gama e Melo e dos integrantes do Sanhauá,
Geraldo Carvalho. No sudeste grupo que reuniu poetas como
do país, só a ficcionista Stella Marcos Tavares, Anco Márcio,
Carr, autora de livros infanto- Marcos dos Anjos e Marcos Vi-
-juvenis, escreveu sobre ele. E o nícius e instaurou, de vez, a mo-
fez no Jornal de Letras, do Rio de dernidade na poesia paraibana,
Virginius da Gama e Melo foi um dos
Janeiro (RJ), cujos editores eram sendo, inclusive, fruto de tese na primeiros críticos a reconhecer o valor da
os irmãos Condé. “Foi a glória Universidade Federal da Paraí- poesia de Sérgio de Castro Pinto

METÁFORAS E ECONOMIA res, detalhes, insights, miudezas,


pequeninas epifanias cujas res-
LINGUÍSTICA sonâncias semânticas parecem
recompor a banalidade dos ob-
jetos e focar, com novas luzes, o
Sobre a poesia de Sérgio, nada melhor que saber a opinião
tecido insólito das coisas cotidia-
abalizada de Hildeberto Barbosa Filho, referência em crítica
nas. Com ele, meus elos são de
literária no Estado, além de poeta com diversos livros publi-
amigo e leitor. Em Sanhauá: uma
cados. Ele diz que se é verdade que um poeta não pode ser
ponte para a modernidade, escrevo
conhecido sozinho, como diz T. S. Eliot, e, sim, na relação que
acerca do Sérgio experimental,
estabelece com a tradição e com os outros poetas, Sérgio se-
seco e contundente do poema
ria um poeta do deserto em meio às sombras refulgentes de
‘Lampião’. Em Arrecife e lajedos,
algumas grandes árvores que florescem na região poética da
contextualizo melhor sua arqui-
Paraíba. E vai ainda mais além:
tetura vérsica em meio ao legado
- É preciso cotejá-lo, por exemplo, com um Vanildo Brito e
do microssistema poético local.
um Jomar Morais Souto, dentro do parâmetro da semelhança
Em O pó dos sábados, memória dos
em prol da realização de uma dicção lírica moderna e contem-
domingos, reúno tudo que escre-
porânea, mas, sobretudo, captando-lhe a diferença, se pensar-
vi a respeito do poeta e da sua
mos especialmente na pesquisa formal do menos que herdou
poesia, na convicção de que me
de João Cabral e de certas matrizes vanguardista, exploradas
debrucei sobre uma das vozes
pelo grupo Sanhauá, que o abrigou ainda muito jovem, ao lado
fortes da lírica paraibana.
de poetas como Marcos dos Anjos, Marcos Tavares e Marcus
Vinícius. O lirismo objetivo e metalinguístico desta fase, em
que os nutrientes sociais se associam às técnicas estéticas de AS PRIMEIRAS
ponta, à época, cede lugar a uma visão mais pessoal e subje-
tiva da realidade, a partir de Domicílio em trânsito. O deserto PEDRAS
expressivo começa a apresentar zonas difusas nos quais os Nem só de poesia vive um
oásis metafóricos ganham densidade e sua poesia enriquece- poeta, no entanto. Aos leitores do
-se psicológica e humanamente, embora a marca registrada Correio das Artes, Sérgio de Cas-
da economia linguística permaneça como um traço distinti- tro Pinto lembra das primeiras
vo e definitivo. Sua poesia é toda feita de medulas, pormeno- dores físicas e emocionais de sua c

6 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c vida. “No início dos anos 1960, batíamos peladas numa das

Foto: Marcos Russo


ruas centrais de João Pessoa: a Avenida dos Tabajaras, cujos
paralelepípedos representavam uma constante ameaça à nos-
sa integridade física. Em poema inédito, e bastante antigo,
faço menção ao fato de: na avenida dos tabajaras,/ mais do que a
bola,/ chutávamos os paralelepípedos.// e aos gritos de gol,/ juntava-
-se a dor/ de outro grito. A primeira dor emocional foi quando
eu me dei conta de que havia perdido a grande saúde de não
perceber coisa nenhuma”.
Poeta, sim, mas um homem, antes de tudo, com opiniões
firmes sobre os mais diversos assuntos. Para ele, por exem-
plo, a religião, qualquer que seja, é uma espécie de ponto
de apoio para o precário equilíbrio do homem no seu breve
frêmito de vida sobre a terra. “Eu tento equilibrar os meus
desequilíbrios emocionais nas superstições que eu crio para
ludibriar o meu sentimento constante de finitude. Sob deter-
minados aspectos, até o Transtorno Obsessivo Compulsivo
(TOC) pode ser considerado, se não um ritual religioso, pelo
menos um rito através do qual o homem tenta burlar o total
desconhecimento que tem de si mesmo. A poesia também é
uma religião”, admite.
Ao ser provocado a definir o que é poesia, teoriza: A juventude permanece em Sérgio de
– Permita-me, Linaldo, transcrever alguns trechos do en- Castro Pinto, seja na devoção à palavra,
seja na profissão de fé na poesia
saio “Meninos, eu vi (vi) – sobre o Grupo Sanhauá”, inserto
no livro O leitor que eu sou: “Jovens, muito jovens, tínhamos a
firme convicção, a crença inabalável, de que seríamos reedi-
ções de Homero, de Dante, quem sabe de Shakespeare ou de
Milton. Aos poucos, porém, já nos conformávamos em reedi-
tar João Cabral, Manuel Bandeira ou Carlos Drummond de
INCLINAÇÕES
Andrade. Até que, passado algum tempo, nos contentávamos ESTÉTICAS E
em ser os poetas municipais que sempre fomos, com alguma
repercussão além dos limites da província.”
- Os arroubos da juventude são sempre benfazejos, assim
como a soberba desmedida dos jovens, virtudes sem as quais
SOCIAIS
teria me extraviado dos caminhos sempre tortuosos e íngre- Deixando a poesia de lado, quise-
mes da poesia. E concluía ainda no texto acima mencionado: mos conhecer outros lados de Sérgio
“A perseverança, hoje, talvez seja o vocábulo mais exato para de Castro Pinto. Que tal saber seus
substituir as efusões da juventude perdida. Perdida? Não, cantores preferidos? Ele responde
pois creio que, de alguma forma, ela permanece na devoção à sem titubear. Moacyr Franco. Por
palavra, na profissão de fé na poesia! Bom, mas isso foi e é o quê?, pergunto. “Pelo fato de ‘Doce
que a poesia representou e representa para mim.” amargura’, interpretada por ele, ter
Sim, mas quanto ao modo de expressar essa poesia que sido a trilha sonora de minha adoles-
hoje é referência nacional, Sérgio crê que, num primeiro mo- cência e juventude. Isto é o suficiente.
mento – na esteira de João Cabral e das vanguardas –, a con- Aliás, em termos de música sou bas-
cebeu como fruto do racionalismo, da elaboração; já no está- tante eclético, curto aquelas que me
gio atual, não mais rejeita a inspiração. “Aceito-a sem lhe dar acompanharam durante a vida não
trela, submetendo-a aos meus caprichos e aos meus relaxos”, só quando frequentava ambientes ti-
ressalta. dos como requintados, intelectuais,
A par dessas considerações, podem ser transcritos alguns como também as que ouvia em am-
poemas de extração metalinguística em que o poeta em tela bientes mais populares, a exemplo
questiona a linguagem e veicula ao leitor a sua concepção de dos parques de diversões com suas
poesia. Vejamos “poeta x poema: nem sempre o poeta/ronda o amplificadoras, carrosséis e canoas,
poema/ como uma fera a presa.// às vezes, fera presa e acuada/ entre conforme registro no poema “kitsch”,
as grades do poema-jaula,// doma-o o chicote das palavras. publicado no livro O cerco da memó-
Outro é “recado a pound: pound, eu não sou/nenhuma ante- ria, de 1993: soldados de polícia/ ofertam
na.// eu sou a pane/e a interferência/dos meus fantasmas// no tubo às namoradas/ buquês de roletes/ além de
de imagens dos poemas. melodias.// após, batem em retirada/ e vão
Agora, “escrever/não escrever: escrever é um suicídio branco./ orlando a noite/ à voz de orlando dia”.
um consumir-se/ no fogo brando das palavras.// não escrever, um E no poema “esta lua”, do qual
suicídio em branco;/ um consumar-se sem metáforas. transcrevo apenas um fragmento: lua
Além desses, Sérgio cita “fernando pessoa: sóbrio, bebes do das canoas dos parques, transatlânticos
teu copo.// bêbedo, és objeto/ de um jogo/ de espelhos: bebes do teu singrando as águas da infância/ indo mui-
copo/ e dos alheios.// bebes a tua cota/ e ainda o sobejo// de reis, de to além da taprobana e de pasárgada.
campos/ e de alberto caeiro. Em suma, gosto de Chico Buarque, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 7


c Caetano, Anísio Silva, Elis Regi-

Fotos: reprodução internet


na, Ângela Maria, Marisa Mon-
te, Carminho, Gregório Barrios, Ângela Maria,
Nara Leão, Bienvenido Granda, Nara Leão, Caetano
Veloso, Moacyr
Orlando Dias, Roberto Luna... Franco e Chico
Pergunto-lhe sobre um filme Buarque são alguns
de preferência. Amarcord, de Fel- dos artistas da
lini, responde. E explica: preferência de
Sérgio de Castro
– Tudo que me devolva à in- Pinto, em música
fância, mesmo precariamente,
me é grato e prazeroso, pois não
é a poesia – como a conceituou
o poeta Fernando Mendes Vian-
na – “a infância amadurecida”?
Nessa conceituação do autor de
“Proclamação do Barro”, con-
forme já escrevi no meu livro O
leitor que eu sou, a palavra amadu-
recida possui um peso especial,
uma vez que atribui à poesia
uma espécie de ingenuidade re-
fletida, pensada, exatamente o
que fazem artistas como Fellini,
Chaplin, Zelins, Miró e outros.
Poeta e escritor preferido? Sér- – já foram incorporadas ao patri- dos. Aqui e além, um poeta reve-
gio frisa que Quintana, na pro- mônio da literatura brasileira. renciado porque se dá ao respeito
verbial simplicidade que só os Sem medo de ser político, Sér- do ofício pelas exigências e rigo-
sábios possuem, pontificava que gio fala sobre o momento delica- res próprios no trato da lingua-
os jovens têm uma tendência na- do que o Brasil vive. Para ele, a gem. Tenho a alegria de conviver
tural de só gostarem daquilo que pseudodemocracia em que vive- com ele há 32 desses 70 de idade
parece com eles. E acentua: mos apenas convém àqueles que e 50 anos de poesia. Registro a
– Justamente por isso nos ma- só suportam pobre em aeropor- sua generosidade e humildade
triculamos – eu e os da minha tos única e exclusivamente para de convivência no acolhimento
geração – em um curso no qual ver avião pousar e decolar, deco- das novas gerações, o que o tor-
João Cabral de Melo Neto minis- lar e pousar. “Àqueles cuja ‘me- na maior. De amá-lo, de admirá-
trava uma disciplina que só ele ritocracia’ consiste em comprar -lo, como poeta, como amigo,
conhecia na palma da mão e com votos para se eleger, pois líder como mestre (sim, tive a honra
os dez mil dedos da linguagem: popular, com exceção de Lula, de ser seu aluno nos bancos da
a educação pela pedra. Ou seja, não existe mais neste país. E academia). Ter Sérgio numa em-
a poesia mineral, à contrapelo; quanto à Lula ser ladrão – pode preitada é prestígio certo. Sua
uma poesia que, para os incautos, ser até que seja – estou aguar- companhia sempre me foi pra-
se mostra desprovida de emoção, dando as provas, mas provas ca- zerosa também nos momentos
como se a inteligência não fosse bais, incontestáveis. Democracia de entretenimento. Gosto de tê-
o suprassumo da sensibilidade. tem que ser material, com todos -lo perto. Tenho o bom hábito de
Pois bem. Nessa época, investia tendo acesso, como verdadeiros a ele recorrer como o primeiro
em Cabral e em todos os que eri- ‘cidadãos’, aos direitos humanos convidado, como uma espécie
giam o rigor, o construtivismo, fundamentais – social-democra- de patuá, para dar sorte, quan-
como pedras de toque da criação cia”, defende. do inicio os meus projetos. O
poética. Aos poucos, no entanto, Esse lado “político”, por si- que não deve ser um ato de pio-
fui descobrindo outros poetas, nal, encanta outro poeta parai- neirismo de minha parte. Sér-
Manuel Bandeira entre eles, ad- bano, como Antônio Mariano. gio é grande!
mirando, sobretudo, a maneira “Além do lado estético, nos Todo poeta tem uma cidade
como o pernambucano extrai o tempos que correm, tenho mui- de preferência, de musa inspira-
novo de dentro do velho, como ta identidade com ele pelas suas dora. Alguns têm várias. Provo-
o fazem, cada qual ao seu modo, tomadas de posições políticas, co Sérgio sobre sua preferida e
Machado de Assis e Mário Quin- pela sua visão social, oposta à ele lembra uns versos do poema
tana. Aos anteriormente citados, Casa Grande”. Não só isso, cla- “Recife, poesia”, de Lêdo Ivo:
acrescento Cecília Meireles, Mu- ro. Mariano disserta mais sobre “Amar mulheres, várias./ Amar
rilo Mendes, Carlos Pena Filho, o nosso personagem: cidades, só uma – Recife”. Para
Alberto Cunha Melo, Lêdo Ivo, – Sérgio de Castro Pinto é um depois completar: “Pena que o
Vanildo Brito, Drummond, José nome querido entre seus conter- nome João Pessoa não seja sufi-
J. Veiga..., para ficar apenas entre râneos. Tem uma poética reco- cientemente poético para substi-
os mortos cujas obras – exceção nhecida desde a sua estreia em tuir a palavra Recife”.
feita à de alguns autores citados 1967, aos 20 anos, com Gestos lúci- Alguma utopia? “A de que a c

8 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c utopia jamais deixe de existir. Brasileira. Pagaram juntos uma seguinte a tese, de título ‘Signo e
Quem nega a utopia quer destruir disciplina do curso – Teoria Li- imagem em Castro Pinto’ (UFPB,
o sonho do homem. São aqueles terária - e isso os aproximou. Ao 1995), ganhou o segundo lugar
que propagam, em alto e bom assumir a editoria do Correio das no Concurso de Teses de Douto-
som, que a esquerda e a direita Artes, no início dos anos oitenta, rado, organizado pela ANPOLL
não mais existem. Existem, sim. Sérgio convidou João a colaborar, (Associação Nacional de Pós-
Quem as nega está a serviço de fato que se mantém até hoje. -graduação e Pesquisa em Letras
interesses escusos e subalternos”. João diz mais sobre o amigo e e Linguística). Antes dessa tese,
Por fim, a pergunta inevitável: o poeta: eu já vinha escrevendo sobre a
Valeram a pena os 70 anos de – Evidentemente, conhecia a poesia de Sérgio e, ainda hoje o
vida e os 50 de poesia? poesia de Sérgio de Castro Pin- faço. Uma poesia que não para
– Mais moça do que o ancião de to antes de conhecer a pessoa. Se de me encantar e me inquietar. Já
70 anos, a poesia me é uma aman- dissesse que era uma poesia que afirmei e aqui repito, pois não te-
te de 50 anos cujo relacionamento me encantava, seria só parte da nho nenhuma dúvida sobre isso:
às vezes é conturbado, pois, arre- verdade, pois, mais que isso, era Sérgio de Castro Pinto é o maior
dia, caprichosa, amuada, quase uma poesia que me inquietava, poeta vivo da Paraíba e um dos
sempre ela se entrega ao mutismo, me agoniava mesmo, exigindo maiores do Brasil contemporâ-
ao silêncio mais sepulcral durante de mim uma reação de leitor. De neo, com uma obra que pode não
meses e meses. Em todo o caso, alguma forma posso dizer que ser extensa – pois faz parte de
nesse relacionamento o poeta é nunca li um poema de Sérgio sua essência ser econômica – mas
um gigolô sustentado pela poesia, impunemente. Ensinando litera- que já tem localmente e alhures,
uma vez que ela o faz suportar tura na Universidade, eu lidava a envergadura e a consequência
os momentos de crise, o fardo da com análise de poesia o tempo estética e recepcional que se es-
existência, os desequilíbrios emo- todo, mas, nem todo poema me peram das grandes obras.
cionais. Apesar dos pesares, vale- inquietava de forma tão visceral. Assim é, assim seja. Vida longa
ram a pena, sim. Atuando na pós-graduação em ao poeta Sérgio de Castro Pinto!
Letras, minha linha de pesquisa E que sua poesia continue ecoan-
era ‘Leitura do texto poético’ e do no imaginário em trânsito
eu cada vez mais me aparelha- dessa ilha de ostra que vivemos.
“NÃO SE LÊ UM va com grades teóricas que au-
xiliassem na análise do poema.
Sérgio é, sim, um cristal entre os
poetas e sua poesia orgulho para
POEMA DE Precisava não apenas aprender
a ler poesia, como também, na
todos nós, que amamos a litera-
tura, que respiramos poesia!
SÉRGIO condição de professor e orienta-
dor, ensinar a ler. Tem gente que

IMPUNEMENTE” pensa que teoria mata o poema.


Conversa pra boi dormir. A poe-
UM POEMA INÉDITO
sia de Sérgio de Castro Pinto, por O poeta septuagenário
Valeram a pena, sim. Afinal, exemplo, explodia quando um
não se lê um poema de Sérgio conceito adequado lhe era apli- o poeta
de Castro Pinto impunemente, cado, e melhor, cobrava mais do arrasta
como enfatiza o escritor e crítico que os compêndios teóricos ofe- os pés
João Batista de Brito. Ele conhe- reciam. Cobrou tanto que quan-
ceu Sérgio de Castro Pinto nos do decidi tomá-la como corpus de e tropeça
anos sessenta, provavelmente minha tese de doutorado (hoje nos versos
em 66, nas calçadas do Liceu Pa- publicada em livro) fui obrigado de pés
raibano, apresentado pelo ami- a inventar um modelo de leitura quebrados.
go comum Marcus Vinícius de que não estava em compêndio
Andrade, mas, na ocasião nem nenhum. Fui obrigado a casar o poeta
foi notado. “Brincando, gosto todo o potencial analítico da Se- não mais
de dizer que Sérgio, então, me miótica, com a força imaginativa se inspira.
olhou pelo olho cego. E que só da Fenomenologia do poético.
iria arregalar para mim o olho Rica e profunda, a poesia de Sér- o poeta
bom muito tempo depois quan- gio de Castro Pinto pedia o bis- só inspira
do, neste mesmo Correio das Artes turi de um Michael Riffaterre e cuidados. I
- que então ele editava - escrevi as asas de um Gaston Bachelard,
um ensaio semiótico sobre o seu e, pior, ou melhor, os queria jun-
poema ‘Geração 60’”, brinca. tos, acoplados num mesmo ins-
Na verdade, os dois ficaram trumental de leitura. Não foi fácil Linaldo Guedes é poeta, jornalista
amigos antes disso, no final da conceber, executar e aplicar esse e autor, entre outros livros, de Os
década seguinte, quando fa- modelo de leitura, porém, o pro- zumbis também escutam blues e
outros poemas (1998), Metáforas
ziam o curso de Mestrado na cesso todo foi delicioso, e acho para um duelo no sertão (2012) e
UFPB - João em Literatura anglo- que deu um bom resultado, do Taras e outros otimismos (2016).
-americana, Sérgio em Literatura qual muito me orgulho. No ano Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 9


6 imagens amadas
João Batista de Brito
brito.joaobatista@gmail.com

A crítica
cinematográfica ,

como vocação
Entrevista com simplicidade. No meu aprendiza-
do de adolescente, Moniz Vianna
Antônio Barreto Neto e Paulo Emílio eram fantasmas
inatingíveis, enquanto que Bar-

E
ntre os anos cinquenta e sessenta João Pessoa vi- reto Neto (embora sem, na épo-
venciou uma intensa e mais ou menos generaliza- ca, privar de sua amizade) era o
da “atmosfera cinematográfica”. Na verdade, era o gênio da terra que, eventualmen-
que acontecia no Brasil e no mundo, mas aqui, con- te, poderia ser tocado. Nunca
siderada a pequenez da cidade, houve caracterís- esqueço quando, final dos anos
ticas talvez particulares. Uma delas pode se dizer oitenta, pude pela primeira vez
que foi a enorme ênfase posta na atividade da crí- apertar a sua mão e ouvir dele
tica de cinema. Quem tem idade para tanto – meu que me lia e gostava. Hoje, com
caso - lembra da assiduidade e empenho com que orgulho, ocupo, na Academia
todo um grupo, relativamente numeroso, de críticos Paraibana de Cinema, a cadeira
pessoenses escrevia, diariamente, nos jornais locais, 18, da qual ele é o patrono.
sobre a sétima arte. A rigor pode se dizer que Bar-
O nome mais destacado nessa atividade foi sem reto Neto foi um desses intelec-
dúvida o de Antônio Barreto Neto (1938-2000), tuais em que a crítica foi emi-
não tanto por ter sido ele um dos mais assíduos nentemente vocacional. No seu
nos jornais da época, mas justamente porque foi, caso, tratou-se da confluência de
de longe, o mais sólido, hábil e fluente dos nossos duas grandes paixões: o cinema
críticos de cinema. e o jornalismo.
Pessoalmente, Barreto Neto foi, para mim, mais Perfeitamente a cavaleiro na
que um modelo, uma espécie de musa, que eu, a cer- teoria do cinema, não atrope-
ta distância respeitosa, admirava pelo talento e pela lava o texto com terminologia
técnica, sua linguagem sendo
Foto: arquivo a união

enxuta, precisa, eficaz e o seu


texto, estruturado de modo ló-
gico, coerente, e, portanto, didá-
tico, permitia a nítida distinção
entre todas aquelas etapas fun-
damentais à abordagem de um
filme, a saber, a contextualiza-
ção, a análise, a interpretação e
o julgamento. Sem nunca serem
esquemáticos, os ensaios críticos
de Barreto Neto sabiam dosar
essas etapas da leitura de um
modo funcional, equilibrado,
muitas vezes a depender do pró-
Antônio Barreto Neto (1938-2000) é uma das principais
referências da crítica de cinema no jornalismo paraibano
prio filme, aliás, como deve ser, c

10 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas
Foto: reprodução internet

c mas sempre procurando articu- balhava de dia numa tipografia.


lar essas etapas de modo a nada Do salário que recebia, metade
resultar em excrescência. era gasta com livros e revistas,
Assim, neles geralmente o lei- dentre as quais a principal era O
tor tomava informação sobre (não Cruzeiro, onde lia a coluna de José
necessariamente nessa ordem): o Amádio cujos “comentários brin-
filme, o diretor, a escola, a época, calhões e jocosos” passavam por
ou a cinematografia a que perten- crítica de cinema.
cia; via investigados, com perti- Mas a crítica de cinema tout
nência, aspectos formais, sempre court, o jovem Barreto Neto só iria
confrontados com os problemas conhecer nos jornais da capital,
de conteúdo equivalentes; acom- para onde mudou-se em 1957.
panhava a associação da temática A coluna em A União, assina-
com a realidade, mas, sobretudo, da por José Ramos, depois por
em relação aos recursos expres- Jurandy Barroso e em seguida
sionais do filme que estava sendo por Linduarte Noronha, e a de O
analisado; penetrava em insights Norte onde se revezavam Geraldo
que desvendavam o menos óbvio Carvalho, Wills Leal e, de vez em
na estrutura do filme; constatava quando, Geraldo Sobral, foram as
colocações apreciativas que se suas primeiras aproximações ao
ligavam, de forma lógica, à dis- métier. Na verdade, a sua inicia-
cussão mantida no nível analíti- ção na atividade de crítica cine-
co, ou interpretativo. matográfica foi precedida de toda
Isso tudo construído de modo uma formação, que ele assim des-
orgânico e, principalmente, com creveu: “Quando comecei a fre-
Cidadão Kane (Orson Welles,
dicção simples, elegante, acessí- quentar as sessões e debates no
1941, EUA) lidera a lista das
vel e agradável, que atendia aos preferências cinematográficas ‘Cineclube de João Pessoa’, tive
anseios, a um só tempo, do apres- de Barreto Neto os primeiros contatos com pu-
sado leitor de jornal e do curio- blicações especializadas, entre
so que queria aprender sobre a elas a Revista de crítica cinemato-
sétima arte. De forma tal que, se gráfica de Minas Gerais”.
reunido num só espaço, o con- “Ao entrar para a redação de
junto completo de seus ensaios lado de fora da igreja, um filme A União – continuou - conheci
críticos, não apenas propiciaria de guerra, em preto e branco, Linduarte Noronha, João Rami-
um objetivo panorama histórico chamado (nunca vou me esque- ro Melo e Vladimir Carvalho e,
e estético do cinema, o mundial cer) A cruz de Lorena. Foi – confes- por intermédio deles, Geraldo
e o nacional, mas também, uma sou comovido - o primeiro filme Carvalho, em torno de quem se
visão original, sensível, apaixo- que vi na vida”. aglutinava a turma de cinema. Os
nada, inteligente, aguda, e es- Já o primeiro jornal em que pôs papos com essa turma me deram
sencialmente iluminadora dessa os olhos foi o Diário de Pernambu- régua e compasso para a aventu-
que foi a arte do século XX. co, que o dono de uma mercearia ra da crítica. A timidez – revelou,
Retrocedendo um pouco no lhe emprestava todo dia. Ficou saudoso - foi vencida por Vladi-
tempo, aqui convido o leitor a tão fascinado com essas leituras mir, a quem eu costumava mos-
uma conversa com o nosso crítico: diárias que - “pode parecer coisa trar o que escrevia. Um dia, ele
é que, comemorando os seus ses- de cinebiografia hollywoodiana” pegou um desses textos e levou
senta anos, em 1998, Barreto Neto - se desculpou – “mas eu costu- para o Correio da Paraíba”.
nos concedeu entrevista especial, mava arrancar folhas dos cader- Segundo Barreto Neto, esse
que em seguida reproduzo. De nos escolares para fazer o meu foi o pontapé inicial, mas só co-
bom grado, Barreto Neto relatou jornal, escrito em letra de forma, meçou de forma regular alguns
etapas de sua trajetória de crítico a lápis grafite, com ‘notícias’ da meses depois, quando Linduarte
cinematográfico, começando com família, dos amigos e das brinca- Noronha viajou ao Rio de Janeiro
os seus primeiros contatos com deiras da meninada”. para montar o Cajueiro nordestino
filmes e jornais, quando ainda era Quando a família mudou- e o deixou como substituto na
um garoto de tenra idade na sua -se para Patos, o garoto Barreto coluna de cinema de A União.
Coremas de origem. Neto não perdia as matinées de “Comecei meio sem jeito – re-
“O cinema me fascinou desde domingo do Cine Eldorado, que lembrou, modesto como sempre
menino – relatou - quando uns também frequentava todas as ve- – mas, com o estímulo da turma,
frades missionários, depois dos zes em que tinha chance de ma- acabei dando certo”. E como deu,
ofícios religiosos, projetaram, tar aulas no colégio. De origem acrescentamos nós.
numa grande parede branca do humilde, estudava à noite e tra- “Na Biblioteca Pública e na re- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 11


6 imagens amadas
c dação de A União – prosseguiu valores estéticos. Tinha até uma cado, Barreto Neto terminaria
– tive acesso aos grandes jornais ‘cotação moral’ dos filmes exi- por galgar uma bem-sucedida
do eixo Rio-São Paulo e neles bidos na cidade, semanalmente carreira na área, atravessando
descobri os grandes críticos de ci- divulgada. Pois a ACCP – escla- todos os escalões da profissão,
nema, como Moniz Vianna, Alex receu Barreto Neto - surgiu da vindo a ocupar posições desta-
Vianny, Octávio Bonfim, Rubem rebeldia dos críticos mais jovens cadas, como diretor ou editor ge-
Biáfora, Paulo Emílio, Paulo Per- contra essa orientação”. ral. Mas claro, para meio mundo
digão, Sérgio Augusto. Na Revista Segundo Barreto Neto a ACCP de cinéfilos paraibanos, é como
de Crítica Cinematográfica de Belo nunca foi legalmente estruturada crítico de cinema que seu nome
Horizonte, José Haroldo Pereira, e não tinha recursos financeiros, se impõe à posteridade.
Cyro Siqueira, Maurício Gomes nem sede própria, funcionando A minha última pergunta a
Leite, Sylviano Santiago, e outros. numa salinha da API. “Nunca Barreto Neto não poderia deixar
Além desses críticos, eu lia todo cobrou mensalidade dos sócios. de ter sido sobre as suas prefe-
livro sobre cinema que aparecia Assim, sem patrimônio e sem rências cinematográficas, e lhe
nas livrarias locais, e os que ad- capital, vivia do prestígio dos só- pedi a sua lista pessoal dos dez
quiria fora, por encomenda”. cios (quase todos bem posiciona- melhores filmes, em todos os
Particularmente instrutivo dos nos jornais onde escreviam) tempos e espaços. Eis, portanto,
para uma eventual reconstituição junto ao poder público e a seto- o suprassumo do cinema, segun-
da época, é o seu depoimento so- res da iniciativa privada”, e, no do Antônio Barreto Neto:
bre a saudosa Associação de Crí- entanto, “agi-
ticos Cinematográficos da Paraí- tou realmente Cidadão Kane (Orson Welles, 1941, E.U.A)
ba: “A grande proliferação de crí- o ambiente cul- Ladrões de bicicleta (Vittorio DeSica, 1948, Itália)
ticos de cinema em João Pessoa, tural da cidade,
Morangos silvestres (Ingmar Bergman, 1957, Suécia)
coincidiu com a fase dos movi- e isso, de forma
mentos de renovação do cinema democrát ica, Rashomon (Akira Kurosawa, 1950, Japão)
no mundo, aí incluído o Brasil, atraindo para Viridiana (Luis Buñuel, 1961, Espanha)
mas foi também - nos informou, suas promo- Rocco e seus irmãos (Luchino Visconti, 1960, Itália)
seguro - o resultado da atuação ções, escrito-
Oito e meio (Federico Fellini, 1963, Itália)
da ACCP, um marco na difusão res, professores
da cultura cinematográfica em universitários e Rastros de ódio (John Ford, 1956, E.U.A.)
toda a Paraíba, uma vez que os jornalistas. Vir- Blow-up (Michelangelo Antonioni, 1967, Itália)
reflexos de sua atuação se fize- ginius da Gama Janela indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954, E.U.A.) E
ram sentir além da Capital. Dire- e Melo e Jua-
ta ou indiretamente, foi a ACCP rez Batista, por
que abriu espaços para a crítica exemplo, participaram várias ve- Em tempo (1): com a presen-
em jornais e emissoras de rádio, zes de suas atividades. Quando ça dos familiares do homena-
aqui e em Campina Grande. Ela esses sócios abandonaram a crí- geado, esta matéria foi apresen-
promoveu exibições de filmes de tica, atraídos por atividades mais tada quando da inauguração da
arte, sempre seguidas de pales- rendosas do que o jornalismo, a “Sala Antônio Barreto Neto”, na
tras, incentivou e apoiou a fun- ACCP esvaziou-se. Aí – lamentou Fundação Casa de José Améri-
dação de cineclubes, organizou - veio a Ditadura, pondo sob sus- co, no evento comemorativo ao
Dia Mundial do Cinema, orga-
painéis, exposições, festivais”. peita todo tipo de associação. E a
nizado pela Academia Paraiba-
“Nada acontecia na cidade, em ACCP acabou”. na de Cinema, em 28 de dezem-
relação a cinema, que não tivesse Quais os requisitos para uma bro de 2016.
a participação ou pelo menos o pessoa fazer crítica de cinema?
apoio institucional da ACCP, que Para Barreto Neto é necessário, Em tempo (2): em 2010 a A
surgiu – relatou - como uma es- antes de tudo, uma formação União Editora publicou o livro
pécie de reação à orientação cató- básica. Cinema por escrito, organizado
lica do ‘Cineclube de João Pessoa’, “Por formação básica – expli- pelo jornalista Sílvio Osias, com
pautada nas diretrizes da encícli- cou-nos – quero dizer um míni- uma seleção criteriosa dos escri-
ca Vigilanti Cura, do Papa Pio XI. mo de conhecimento da teoria tos de Antônio Barreto Neto.
Essa encíclica, de 1936, aproxima- geral da arte e das teorias especí-
va a igreja do cinema, visto como ficas do cinema. Sem ter pelo me-
um veículo potencial de cateque- nos noções gerais de linguagem
se. Co-fundado pelo professor e história cinematográficas, não
José Rafael de Menezes, o ‘Cine- se pode ‘ler’ um filme. E sem ‘ler’
clube de João Pessoa’, fruto dessa um filme não se pode analisá-lo.
orientação, propunha uma crítica Além disso, o máximo que se pu- João Batista de Brito é escritor e
que privilegiasse os valores mo- der acumular de cultura geral”. crítico de cinema e literatura. Mora
rais do filme, em detrimento dos Jornalista competente e dedi- em João Pessoa (PB).

12 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros Foto: divulgação

O maquinário
da alquimia
Johniere
Letícia Palmeira Alves Ribeiro, poeta
Especial para o Correio das Artes

Este livro é um labirinto.

O
Não é somente alquímico.
livro Fogueira de espelhos ou a alquimia do cais, do poeta Johniere Al- O leitor atento irá perceber tra-
ves Ribeiro, publicado pela Editora Penalux, em 2016, é pura quí- ços de vários autores em Fogueira
mica. Química e bom constrangimento que somente poemas raros de espelhos ou a alquimia do cais. Au-
podem trazer. O constrangimento de se encontrar em versos rápi- gusto dos Anjos e Fernando Pes-
dos que se atiram diante dos olhos do leitor. soa parecem ter tocado os versos
O poeta porta sua arma em cada capítulo de sua química. contidos no primeiro capítulo. Em
Johniere, movido pelo concreto dos irmãos Campos e de Caeta- seguida, Chico Buarque surge em
no, talvez, divide o livro em capítulos, traçando o caminho ao qual palavra, trazendo musicalidade e
a leitura poderá se abrir para o leitor. É uma forma de desenhar a vivências do autor que não diz res-
liberdade de escolha de quem visitar seus poemas. peito ao leitor. É coisa dele. Todo
No primeiro capítulo, toda concreta em textos que formam figu- poeta tem segredos.
ras, a obra se apresenta de forma moderna. E quando vi Riobaldo dividido,
Urbana e cotidiana. pensei: Diadorim teria rido.
O homem enfrenta elementos químicos misturados a questões Bonito como Johniere guia sua
humanas: amor, medo, fuga do enfrentamento de ser quem se é. obra. Ele inicia em formas e, ao
Obra orgânica que mais se assemelha a uma pessoa que trabalha, correr das páginas, retorna aos
paga contas e faz terapia para não se perder no caos. versos mínimos, assim intitulados
Digamos que o livro de Johniere seja um homem. na alquimia, como uma maneira
Ou mulher. de provar para si que o poeta ro-
Digamos que seja alguém que se vê em plena guerra entre sua mântico, carente de vida e amor,
forma biológica e sua alma que é espírito. resiste ao feroz enxofre que fere os
De repente, não se é somente corpo. Se é essência. E disso partem olhos, mas não dilacera o coração.
os poemas confessionais e existenciais de Alves Ribeiro. Johniere É um livro intenso.
que me perdoe. Alves Ribeiro é como eu o nomeio ao ler o que leio. É um livro que não se compade-
E acredito ser existencial cada verso que se apresenta em Foguei- ce de quem o lê.
ra de espelhos ou a alquimia do cais. Cito, para fins teóricos, o poema Destila, fermenta, apresenta,
“fogueira de espelhos”, no qual o poeta se encontra diante de di- em opções quase matemáticas, o
versas imagens de si e do mundo e, arquiteto de sua alquimia, se que se deve enxergar ou não em
dilui em centelhas e partes para que possa se compreender pessoa cada poema. A leitora que sou
inteira: gostou do que leu. E se me fosse
permitido aconselhamento, se eu
ontem pudesse dar um bom conselho ao
vasculhei poeta autor de Fogueira de espelhos
a fogueira de espelhos ou a alquimia do cais, eu diria: não
só para ver dedique seus poemas a ninguém.
minha imagem Deixe que fiquem livres. Deixe que
em brasas os versos encontrem seus alvos. Já
procurei que os escreveu, só você tem o di-
decorar minha reito de libertá-los.
fotografia Aos leitores, advirto que o autor
mas não pude Johniere Alves Ribeiro os aguarda,
encontrar-me em cada página, para um enfren-
sou tamento de espelhos. Nenhuma
centelhas de uma tarde face estará encoberta. A não ser a
calefação da mensagem face do poeta. Pois, como dito an-
por fibra ótica tes, todo poeta tem segredos.
É preciso tê-los.
Perceba como o poeta luta para decifrar sua verdadeira imagem A alquimia não permite que se
diante das diversas que ele mesmo cria, como toda pessoa o faz, ao desvende tudo que existe. I
longo dos dias. O poema “fogueira de espelhos” é a imagem exata
do encontro entre o mundo real e o mundo imaginário no qual Letícia Palmeira é escritora e
muitos habitam. O termo vasculhar presente nos versos traz a sen- professora de inglês. Publicou, entre
sação de se estar perdido dentro de si e dentro do espelho. outros livros, A obscena necessidade
Veja só! do verbo (Penalux, 2016).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 13


6 ponto de vista crítico
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

Anotações ,

sobre romances (22)

E
foto: divulgação
m Quarenta dias, de Maria quieta [...]”, “Nada disso lhe inte-
Valéria Rezende, o relato ressa, não é, Barbie?, você é oca e
que lemos é, substancial- indolor [...]”, “Vamos lá, boneca,
mente, o registro feito desculpe perturbar mais uma vez
pela protagonista-narra- seu sono eterno [...]”, “Pena que
dora no caderno (com a imagem ci- você não tem nada dentro dessa
tada da Barbie) que ela leva de João cabeça [...]”. Por outro lado, a pro-
Pessoa para Porto Alegre; registro tagonista-narradora Alice expressa
de suas lembranças (da “balbúr- valores que configuram uma ima-
dia de imagens, impressões, senti- gem positiva do ethos do Nordes-
mentos acumulados por quarenta te e da periferia. Ao se encontrar
dias”), dessas várias anotações em Porto Alegre, e sendo de “lá”
feitas nos panfletos publicitários, (do Nordeste), como às vezes in-
os quais Alice dispõe na mesa da dica, ao se deslocar pela periferia
cozinha do apartamento (ofertado da cidade tentando achar Cícero
pela filha) em que ela fica sozinha Araújo, desaparecido, filho de
em Porto Alegre. É aqui, no aparta- uma conterrânea sua, operário
mento, que a professora aposenta- da construção civil, Alice embar-
da faz o seu registro. As ilustrações ca numa aventura por recantos
que formam o pórtico de 16 dos ca- em que, quase sempre, se depa-
pítulos são bem produzidas (foram ra com pessoas solidárias, vários
compostas por Andrea Vilela de nordestinos, que têm compaixão
Almeida) e funcionais – antecipam dela, que se comovem com a nar-
informação semântica ao leitor, rativa que ela sempre usa do de-
apontando para o circuito da pro- saparecimento de Cícero. Narra-
tagonista, para as suas andanças tiva na qual enfatiza a desolação
pelas dobras da cidade. As falas da mãe paraibana que ela, Alice,
que Alice dirige à boneca Barbie, num ato, convenhamos, de des-
por sua vez, e amainando a voz um prendimento, também de muita
tanto tensa da protagonista-nar- solidariedade, decide, e de modo
radora, são lúdicas, humoradas, obstinado, ajudar. Nesta perspec-
e, em certos passos, lembram o tiva, há no livro uma espécie de
registro da literatura infantil (é ‘elogio da cordialidade’. I
bom lembrar que Valéria Rezende Maria Valéria Rinaldo de Fernandes
é autora premiada de obras Rezende, autora é escritor, crítico de literatura e
infantis), como nestes exemplos: de Quarenta dias professor da Universidade Federal da
“‘Bonjour’, mudinha, continue Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

14 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 memória

O escritor argentino
Ricardo Piglia faleceu
no dia 6 de janeiro deste
ano, em Buenos Aires,
onde nasceu

O ano da morte
de Ricardo Piglia

Fotos: reprodução internet


Wilson Alves-Bezerra
Especial para o Correio das Artes

O
O escritor argentino Ricardo Pi- De toda forma, Piglia morre dei-
glia (1940-2017) acaba de morrer, ví- xando uma obra coesa: são roman-
tima de uma doença degenerativa, ces, contos e ensaios sobre literatura,
que fisicamente, nos últimos anos, escritura e leitura. Os diários funcio-
dificultou mais e mais sua condição nam como uma espécie de fecho (ou
física, mas o manteve lúcido. Ter abertura) à sua produção ao oferece-
podido conservar incólume, até os rem chaves de leitura a seu processo
seus dias finais, o músculo da escri- criativo que seriam, sem dúvida, de
ta, permitiu a ele, auxiliado por um grande interesse para o leitor brasilei-
assistente e um computador adap- ro. Entretanto, permanecem inéditos
tado, avançar na trilogia Los dia- no Brasil, e parece não haver planos
rios de Emilio Renzi, compilação dos de publicação por parte de sua edi-
diários do escritor, verdadeiro con- tora brasileira. Tem-se visto ultima-
junto dos seus escritos de formação mente grande retração no mercado
desde a adolescência até o período editorial e propostas ousadas de edi-
atual. Os diários são atribuídos a ção têm sido cada vez mais escassas.
Renzi, personagem frequente em Em que pese a exceção dos diá-
suas narrativas, um eu cultivado ao rios, há um elemento exemplar no
longo da vida, cuja origem está no fenômeno Ricardo Piglia: o escritor
nome próprio de seus documentos: é da primeira geração de hispano-
Ricardo Emilio Piglia Renzi. Final- -americanos que, ao longo das úl-
mente, escritor e persona literária timas décadas, teve sua obra pau-
trocam de posição: nos diários, o fu- latinamente publicada também
turo escritor é Emilio Renzi, não o no Brasil. Trata-se de um fato que
alquebrado Ricardo Piglia. Os dois – como o próprio Piglia acreditava –
primeiros livros já foram lançados, é cheio de consequências para uma
mas a morte mudou os rumos do literatura nacional, ao abri-la ao
terceiro, cuja preparação já está diálogo com literaturas próximas e, c
bastante adiantada. assim, modifica-las a ambas.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 15


c ESCRITOR çados pela Iluminuras, porém,
não são os hispano-americanos

GLOBAL do boom – todos inequivocamen-


te publicados por editoras de
grande porte – e sim outros,
anteriores ou posteriores àquele
C ertamente, entre nós, Pi- estouro: assim chegaram a nós
obras dos precursores Horacio
glia não foi o primeiro escritor
global. Costumamos associar à Quiroga (1878-1937) e Roberto
expressão “literatura hispano- Arlt (1900-1942), além dos mais
-americana” um conjunto de au- jovens e Luis Gusmán (1944) e
tores que inclui, com variações, Alan Pauls (1959).
Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Num Brasil em que traduções
Gabriel García Márquez, Mario literárias da língua espanhola
Vargas Llosa e Carlos Fuentes. se tornavam fenômeno cada vez
Todos eles passaram a circular menos raro, Piglia pode ir, pou-
internacionalmente ao longo dos co a pouco, fazendo-se conheci-
anos sessenta, num fenômeno do do público brasileiro. Quem
editorial chamado o boom da não o conheceu pela literatura,
literatura latino-americana. Dito teve a oportunidade de ver em
de outra forma, foi o período em cena o seu roteiro de Coração ilu-
que os Estados Unidos e a Eu- minado (1996), filmado por Hec-
ropa descobriram autores com tor Babenco, e também a adap-
potencial de venda e circulação tação cinematográfica de seu
mundial, o que permitiu um au- terceiro romance, Plata quema-
mento assombroso das tiragens, da (1997), dirigido por Marcelo
traduções massivas para diver- Piñeyro, em 2000, que frequen-
sos idiomas e, no limite, transfor- tou as telas nacionais, coincidin-
mou tais escritores em verdadei- do com o início da publicação de
ros fenômenos da cultura pop. seus livros pela Companhia das
Ricardo Piglia se faz escritor Letras, editora na qual seguiu
num mundo assim e aceitou as publicando até o fim.
regras da sociedade do espetá- Horacio Quiroga (1879-1937), escritor
uruguaio, autor de Historia de un amor
culo: circulou pelos universos
turbio (romance, 1908)
jornalístico, cinematográfico e
acadêmico com invejável desen-
voltura, num périplo que incluiu
protagonizar séries de televisão
sobre literatura, participar da
adaptação de clássicos da litera-
tura argentina para os quadri-
nhos, ser professor de literatura
em universidades norte-ameri-
canas além, é claro, de publicar
livros memoráveis.
Também no Brasil, como já
dissemos, Ricardo Piglia consti-
tuiu suas vias de circulação: seu
primeiro romance, Respiración
artificial, é de 1980; no Brasil,
veio à luz logo em seguida, em
1987, pelas mãos do editor Sa-
muel Leon, da Iluminuras. Res-
piração artificial, em tradução de
Heloisa Jahn, foi dos primeiros
livros de uma editora que teria
por vocação, nos anos seguintes,
Roberto Arlt (1900-1942), escritor
a difusão da literatura do conti- e dramaturgo argentino, autor de
nente no Brasil. Os autores lan- Aguafuertes españolas (1936)

16 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


UMA OBRA QUE PERDURARÁ
AO PESADELO DA HISTÓRIA
D izer que um escritor é plu-
ral é incorrer em um lugar co-
mum. Todo aquele que se propõe
a deitar no papel impresso suas
inquietações costuma tê-las em
variedade e extensão suficientes
para, por assim dizer, justificar
suas edições. O mais conveniente
então será dizer que em sua obra
impressa, Piglia tem uma série
heterogênea de obsessões ou re-
corrências que o caracterizaram
ao longo dos anos: a história con-
temporânea, a tradição literária
argentina e ocidental, a lingua- A ditadura argentina está presente em
gem na literatura, a literatura po- 1877), Enrique Ossorio, cujos pa- Respiração artificial, primeiro romance
péis são objeto de estudo do tio de Piglia, mas não condiciona a narrativa
licial, para citar algumas delas.
Pois tudo isso irrompe já em Maggi. A alternância de cartas e
seu primeiro romance, Respira- de vozes constitui toda a primei-
ção artificial (1980), um livro ma- ra parte do livro, que mantém
duro em sua estreia na narrati- cativo o leitor. Nela, o totalita-
va longa. Escrito e publicado no rismo é sugerido, principalmen-
contexto argentino da ditadura, te através de Arocena, o técnico
o que move a trama de Respira- que transforma a protocolar vio- seu segundo romance, A Cidade
ção artificial é a correspondência lação da correspondência num Ausente (1992), por exemplo, Pi-
do jovem escritor Emilio Renzi jogo erótico. Primeiro delicia-se glia avança e tenta desconstruir
com seu tio, o historiador Mar- com o conteúdo das cartas, à ma- o romance de vanguarda. Vale-
celo Maggi, a quem não conhece neira de um voyeur, e logo, quer -se, como ponto de partida, de
pessoalmente, e de quem tem ultrapassar a mensagem, como dois grandes experimentos lite-
tão somente uma foto, na qual que buscando outras formas de rários do século XX, o Finnegans
parece, ainda bebê, em seus bra- gozo, quando procura, de modo Wake (1939), do irlandês James
ços. A correspondência deles se obsessivo, o sentido oculto de Joyce, e Museo de la novela de la
estabelece quando Renzi publica cada uma das missivas, sob a eterna (1967), do argentino Mace-
seu primeiro livro, e o tio Maggi forma do código; escande as car- donio Fernández, para se lançar
manda-lhe a primeira carta, tor- tas em vogais, consoantes, busca a uma aventura delirante com a
nando-se uma espécie de mentor repetições de padrões e anagra- linguagem. É quando se nota a
intelectual à distância. Fica cla- mas, a fim de encontrar uma mão pesada de quem bebeu no
ro, já na primeira página, que se possível mensagem secreta. Um estruturalismo francês dos anos
está na Argentina de 1979, mas a instigante delírio sobre o sentido setenta e pareceu incorrer em
palavra “ditadura” não aparece do escrito e, ao mesmo tempo, da algo que chegou a dizer o catalão
uma vez sequer. paranoia própria dos regimes to- Vila-Matas em seu livro Perder
A habilidade de Piglia, em seu talitários, nos quais força-se todo teorias (2010): “Era meados dos
romance de estreia, consistiu em o dito em busca da significação anos setenta e a teoria triunfava
tomar o contexto totalitário ime- oculta. Foi uma estreia devas- em todos os meios intelectuais
diato através de seus efeitos, e tadora de Piglia, um livro que da cidade. Havia inclusive co-
construir a trama através de di- prescinde de seu entorno histó- meçado a ser considerado uma
versos materiais narrativos: as rico de produção, embora ganhe grosseria passar da teoria à prá-
cartas trocadas entre o escritor e relevância história a partir dele. tica e escrever, por exemplo, um
o tio, além de outras intercepta- É curioso notar que apesar do conto ou um romance. Naqueles
das por Arocena, um técnico do êxito do romance de estreia, que dias, era de muito bom tom não
governo dedicado a ler a corres- ganhou o prêmio Boris Vian, o avançar à teoria. Para quê repe-
pondência suspeita. Estabelece- escritor não repetiu sua fórmu- tir o que já houvera sido narrado
-se também um diálogo com a la no livro seguinte, como aliás tantas vezes?” (p. 15). O Museu
Argentina em formação do sé- não faria em nenhum dos outros. do Romance, provocação do li-
culo XIX, através dos escritos Cada romance de Piglia encerra vro de Fernández, que promove
pessoais do secretário e suposto um projeto narrativo diverso, uma sequência interminável de
traidor do caudilho Rosas (1793- com maior ou menor eficácia. Em prólogos, que faz com que o livro

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 17


Depois de Dinheiro queima- a mesma que Foucault atribui
do (1997) e Alvo noturno (2010), o ao início da sociedade da vi-
romance final de Piglia volta a gilância: 1840. Nesse sentido,
surpreender o leitor: a história já O caminho de ida, mostra a im-
não é a da Argentina dos anos se- possibilidade da existência do
tenta, mas a dos Estados Unidos detetive numa sociedade em
dos anos noventa, sob a presença que o panóptico predomina.
ameaçadora de Ted Kaczynski, Contrariando ponto a ponto as
o Unabomber, homem de gênio condições do detetive literário
que cometeu alguns atentados do século 19, Parker, o deteti-
nos EUA para chamar a aten- ve da trama de Piglia, é usado
ção ao risco que representam à para que o narrador fale sobre
liberdade humana as modernas sua inutilidade. Pessoalmente é
tecnologias. O Unabomber foi o abstêmio (toma suco de laran-
mote encontrado por Piglia para ja), ciumento (“sabia tanto sobre
cruzar a história do outsider todo mundo que vivia atacado
Macedonio Fernández (1874-1952), contemporâneo a outros do con- de ciúme e de desconfiança ge-
escritor e filósofo argentino, autor de
Museo de la Novela de la Eterna (1967) tinente: os escritores Guillermo neralizada”), desconsiderado
Enrique Hudson, Horacio Quiro- pelas mulheres (“O senhor é o
ga e Edgar Allan Poe e, ao mesmo primeiro detetive que eu conhe-
tempo, colocar em crise, de modo ço, disse-me, pensei que já não
radical, o romance policial. existissem. Nos romances, cos-
O argumento é simples: um tumam ser mais altos”) e tra-
professor argentino de literatura, balha para uma ONG. Assim a
recém-divorciado, é chamado a conclusão só poderia ser: “Nós,
trabalhar como visiting professor detetives, já não resolvemos os
na Taylor University. Nos EUA, casos, mas podemos contá-los”.
convive ao longo do semestre A solução, como sempre, é par-
acadêmico com alunos de dou- cial e precária, mas é a que te-
torado, colegas de departamento, mos: a literatura.
uma vizinha russa especialista Curiosamente, Emilio Ren-
em Tolstoi, um morador de rua, zi, mais uma vez o protagonis-
a ex-editora, seu ex-marido de- ta, quando procura ajuda deste
James Joyce (1882-1941), romancista
tetive, entre outros. E também lá profissional é muito mais para
e poeta irlandês, autor de Ulisses
(1922) e Finnegans Wake (1939) vê sua nova amante morrer num saber sobre si mesmo do que
acidente sob circunstâncias es- sobre o crime. Ele quer saber se
tranhas: sentada sozinha no ban- não enlouqueceu, se não é mes-
co do carro, pólvora nas mãos e mo o culpado. “Precisava saber o
nunca comece de fato, é transfor- ninguém para contar a história. que estava acontecendo comigo”
mado, por Piglia, num museu no É nesse ponto em que o en- parece muito mais uma frase de
sentido estrito do termo, no qual saísta e o romancista Piglia se en- quem vai procurar um psicana-
ingressam os personagens de seu contram: em seu ensaio “Leitores lista do que um detetive. A dú-
romance, num jogo de espelhos imaginários”, do livro O último lei- vida sobre si mesmo e a própria
que embora instigante, termina tor (2006), ele dizia que as histórias sanidade, eis o mote do romance.
por soar pretensioso e demasiado de detetive surgem na literatura Inseridos em uma sociedade pa-
literal. Ainda assim, se narrati- de Poe em paralelo ao advento da ranoica, cada personagem vive
vamente não é seu melhor livro, cidade. A ideia é de Walter Benja- a partir de “séries sucessivas”;
as ideias instigantes sobre a lite- min: a possibilidade de o homem como se tivessem vidas não du-
ratura, a linguagem e o incons- mover-se incógnito na massa cria plas, mas múltiplas: os diversos
ciente valem a jornada, como no condições para o crime e, assim, campos da experiência não se co-
caso da enunciação desta utopia para a própria literatura poli- municam. A vida sexual não se
linguística, trazida na parte fi- cial. Assim, contos tão diferentes confunde com a social que não
nal: “Sentimos saudades de uma como O homem na multidão (1840) se confunde com a acadêmica
linguagem mais primitiva que a e Os crimes da rua Morgue (1841), e assim por diante; parece ser a
nossa. Os antepassados falam de de Poe, dariam conta de que tal forma de fugir ao controle estrito
uma época na qual as palavras se personagem move-se pela mas- do grupo. Tal ideia, disseminada
estendiam com a serenidade da sa compacta dos homens, sem se ao longo do romance, reflete-se
pampa. Era possível seguir seu confundir com ela: “A lucidez do em sua própria estrutura: o pro-
rastro e vagar durante horas sem detetive depende de seu lugar po- tagonista ocupa, nos sucessivos
perder o sentido, porque a lingua- licial: é marginal, está isolado, é capítulos, os papéis de professor,
gem não se bifurcava neste rio um extravagante”. amante, suspeito e detetive. En-
onde estão todos os leitos e onde O pulo do gato de Piglia está fim, Piglia despede-se da narrati-
ninguém pode viver, porque nin- em notar que a época da mu- va longa com uma crítica precisa
guém tem pátria” (p. 118) tação do flâneur em detetive é ao mundo contemporâneo.

18 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


OS ENSAIOS
DE UM LEITOR

N as engrenagens do escritor
inquieto, que em seus romances
buscava desmontar a máquina
da literatura policial, a da ficção
histórica ou a do romance de van-
guarda, operava um outro: o leitor
que também era professor de lite-
ratura. Docente de Letras na Uni-
versidad de Buenos Aires e logo
na Princeton University, Piglia, em
seus ensaios, demitia-se de estilo
professoral e assumia o lugar aten-
to do leitor de ofício. Em seu livro Ernesto Guevara de la Serna, o “Che”
Formas breves (2000) revisita temas de Piglia, inclusive, traz na capa Guevara (1928-1967), guerrilheiro,
escritor e médico argentino-cubano
capitais como as relações entre li- uma foto de Che no alto de uma
teratura e psicanálise e o funcio- árvore, no intervalo de sua ação
namento do conto breve. Neste guerrilheira, com um livro em
último caso, em suas “Teses sobre punho. Guevara é comparado,
o conto” e “Novas teses sobre o em sua atitude diante da leitura
conto”, dialoga com Edgar Allan e da escrita ao italiano Grams-
Poe, Horacio Quiroga e Julio Cor- ci – leitor contumaz e autor dos valer e interessar cada vez me-
tázar, contistas que discutiram a(s) Cadernos do cárcere – e aos auto- nos, num mundo saturado não
poética(s) do conto, para também res da geração beat, seus con- só de signos mas de discursos
ele dar sua contribuição a escrito- temporâneos. de fácil compreensão e conteúdo
res e leitores do gênero: “um conto Piglia diz que Gramsci é o assustador. Um ano, enfim, em
conta sempre duas histórias. (...) A oposto de Guevara: “para Gue- que insinuações do totalitarismo
arte do contista consiste em saber vara, mais que a construção de seguem surgindo em várias ins-
cifrar a história 2 nos interstícios um sujeito revolucionário, de um tâncias. O ano da morte de Ricar-
da história 1. Um relato visível es- sujeito coletivo no sentido que do Piglia é o ano do pesadelo da
conde um relato secreto, narrado isso tem para Gramsci, trata-se História, dois anos depois do ano
de um modo elíptico e fragmentá- de construir uma nova subjeti- em que os livros para colorir fo-
rio.” (pp. 89-90) vidade, um sujeito novo no sen- ram os best sellers do mercado na-
Em O último leitor (2006), con- tido literal, e de apresentar-se cional. Valer-nos das obras de Ri-
siderado por Piglia como “o mais ele mesmo como exemplo dessa cardo Piglia e Emilio Renzi pode
pessoal e íntimo que já escreveu”, construção”. (p. 104). Já Kerouak nos oferecer elementos para nos
o autor faz um conjunto de ensaios e os demais beats encarnariam perguntarmos sobre alguma das
para perguntar-se o que é um lei- parte do ideal do Che: “É preciso questões essenciais: que tipo de
tor: o leitor literário, o leitor perso- virar escritor fora do circuito da leitores haveremos de ter no Bra-
nagem, o leitor ideal (o tradutor, literatura. Só os livros e a vida. Ir sil que se está construindo diante
que é aquele que registra sua lei- até a vida (com livros na mochi- de nossos olhares atônitos? I
tura). Além desta tipologia, chega la) e voltar para escrever (caso se
a configurações surpreendentes, consiga voltar). Guevara está em
Kafka como leitor conquistador: busca da experiência pura e vai
“Será que é verdade que é possível atrás da literatura, mas encontra Wilson Alves-Bezerra é escritor,
tradutor, crítico literário e
cativar uma moça por intermédio a política e a guerra.” (p. 109) professor de Literatura da
da escrita?” (p. 38), pergunta-se O ano da morte de Ricardo Universidade Federal de São
o checo, em carta, ao amigo Max Piglia é o da grande retração Carlos (UFSCar). É autor, entre
Brod, pouco antes de conhecer sua no mercado das letras brasilei- outros livros, de Reverberações
da fronteira em Horacio Quiroga
futura leitora Felice. ro, não fosse assim, estariam já (ensaio, 2008), Histórias zoófilas e
O mais instigante ensaio do saindo por aqui os seus diários outras atrocidades (contos, 2013) e
livro é, sem dúvida, “Ernesto de escritor, gênero que com ele, Vertigens (poemas em prosa, 2015,
Guevara, rastros de leitura”, no aprendemos, pode ser tão ins- Prêmio Jabuti na categoria Poesia –
Escolha do Leitor). Traduziu autores
qual reconstrói a vida do revo- tigante quanto a literatura poli- latino-americanos como Horacio
lucionário argentino como lei- cial. É também o ano em que as Quiroga e Luis Gusmán. Mora em
tor; a edição brasileira do livro máquinas narrativas parecem São Carlos (SP).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 19


6 festas semióticas
Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro17@gmail.com

Flávio Castro
a arte de formar poesia

for mar, de Flávio Castro, (Rio de Janeiro: Ed. 7Letras,


2016) é um livro que, de pronto, busca a cum-
plicidade do leitor. Um livro que não existe
per se. Antes: seu projeto revela um primoroso
cuidado em inserir o leitor como coautor da obra. Aquele
que vai, a cada leitura – muitas formam-se, configuram-
-se, consolidam-se após cada poema lido, relido, retoma-
do – edificando para o leitor, para seu deleite cognitivo,
uma arquitetura vernacular de fazeres – aquela, fundante
da grande poiésis.
Se nos livros anteriores de Flávio Castro, Audito (2009)
e Inaudito (2013), um programa poético se anuncia clara-
mente, com o presente for mar fixa-se uma trilogia da lin-
guagem poética.
Flávio Castro é um exímio perscrutador dos labirínti-
cos percursos de luz e sombra dos vocábulos. Nele, sempre
o som articula-se num entranhado jogo de visualidade e
significados. A palavra espaçada no branco da página, os
exuberantes neologismos, a tessitura das imagens: tudo é
massa de significações a mais não poder.
Por isso sua poesia é um convite a voos – ora largos, ora
Flávio Castro, poeta, é autor de
curtos. Todavia, sempre dentro de um rigor riscado a pon-
Audito (2009), Inaudito (2013) ta de faca. O rigor do sol com o pacto dos cactos. O rigor
e for mar (2016) do sangue – vermelho ou
seco – escorrido do corpo
Fotos: reprodução internet

estirado no beco.
O corpo da poesia não
é frágil nem fácil para
este poeta que preza as
filigranas de cada con-
soante, de cada vogal, de
cada fonema. E de cada
imagem: oferenda de um
devoto a seus múltiplos
deuses sígnicos.
Em consonância com c

20 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 festas semióticas

c a afiada prática da mais con- que criam uma ligação pictó- ragir com a língua(gem) sub-
densada poesia, Flávio Castro rica entre letras, sílabas, su- traída. Com isto o poeta vale-
é poeta de ardis, armadilhas e fixos, prefixos, radicais, etc., -se da decantada mais valia
artemísias. Sua poesia aguça, – e o significado que se abre da linguagem: less is more – na
açula, isca, embeleza e é um de um link para outros links: feliz expressão de Mies van
antídoto à pasmaceira domi- labiríntico jogo mallarmaico- der Rohe. Flávio Castro filtra
nante na cena da nossa poesia -cortázar-borgeano. Cito um a forma até seu grau minima-
hoje. exemplo, colhido ao acaso: lista. O leitor segue nesta via
O “livrorrio” de Flávio Cas- de mão única, inicialmente,
tro dialoga com as conquistas novOUTrOutoNOvo colhendo vocábulos diciona-
da linguagem de Mallarmé a rizados, mas, depois, percebe-
Haroldo de Campos, passando A altercação entre maiúscu- -se recolhendo o inusitado dos
por Cummings e Joyce, entre las e minúsculas materializa, neologismos. O gozo do make
outros. Este leque dimensio- mais que iconiza, o ciclo de it new, das formas feitas, e do
na o fino paideuma deste poe- nova ordem/renovação/mu- in progress, das formas por-
ta desassossegado e inquieto dança/alteração do outono, -fazer, toma conta da leitura.
que sabe, com Octavio Paz: “a em admirável síntese verbi- Melhor dizer: da co-leitura.
atividade poética é revolucio- vocovisual. O poema faz-se Em “côdea”, a parte final
nária por natureza; a poesia ver, ler, ouvir e saber no ci- do livro, o poema ‘ravinas’,
revela este mundo, cria outro”. clo das estações que chegam constituído por sete partes,
Cônscio de que aquilo que ela e passam: novo no ovo; ovo desenha o final de uma via,
inventa é a forma de usar a do novo. E retornam no ano de uma viagem, de uma lin-
forma para além das fôrmas seguinte. Além disto a dupla guagem – linguaviagem, para
cristalizadas pelos manuais expressão “novo outono” ver- citar uma obra de Augusto de
poéticos – e pelo desempenho sus “outono novo” espelha o Campos – que se fecha e se
editorial do mercado. outro que habita o mesmo; o abre. Isto porque a poesia de
for mar possui quatro par- diverso que compõe o igual. Flávio Castro é um presentar
tes. Na primeira, que dá títu- Ou seja, destaca, entre outras no sentido heideggeriano do
lo ao volume, subintitulada possibilidades, o OUT (fora) termo: um continuum entre ve-
“épico da linguagem”, não há e o NO (não) de um processo lado e desvelado. Iluminação
exposição de ideias, ações, que incorpora o que não faz pós-velamento. Oroboro co-
narração, contexto histórico parte, o que não está inserido. mendo Fênix.
determinado, personagens. O E, ao encampá-los, insere a lei O percurso épico de for mar
épico dá-se na transmutação do eterno retorno nietzsche- soma-se aos de Audito e de
da linguagem que processa niano – que adveio ao poeta Inaudito encerrando a trilogia
um elo-de-elos quase ao léu, na contemplação dos elemen- com o “fátuofogorgíaco” de
não fosse a argamassa da vi- tos naturais. E ainda a retom- Nékuia. E lançando passos,
sualidade e da reverberação bée segundo Sarduy, que relê braços, laços – da linguagem –
sonora. Formar sequências. Nietzsche na visada transfor- a Ulisses-Homero.
Formar sentidos. Formar for- macional do barroco. Enfim: Na odisseia da poesia que se
ma. Formar ar. Formar mar. vida. Linguagem. Lingua- sabe, que faz-se, que forma-se,
Reverberar ondas de signifi- gens. for mar é, com todos os louvo-
cações. Desta forma, as estro- A terceira parte, “braille”, res, irretocável. Belo presente
fes (às quais o poeta prefere radicaliza um procedimento para este ano novo.E
chamar “blocos-estéticos”), que Edgard Allan Poe, Décio
duas em cada página, evo- Pignatari e Luiz Ângelo Pinto
luem paulatinamente para, ao constataram através da obser-
fim do poema, fundirem-se vação do código Morse. To-
numa só mancha gráfica. Ou davia, não desenvolveram: a
num só “espaço-tempo dia- desvocalização das palavras.
gramado”. Flávio Castro dá o pulo do
A segunda parte, “ideogra- gato e leva a percepção teórica
mas”, processa neologismos à prática poética. O resultado Amador Ribeiro Neto é poeta,
crítico de literatura e professor da
de uma só palavra num mix são poemas que se oferecem Universidade Federal da Paraíba.
de maiúsculas e minúsculas com brincante prazer de inte- Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 21


POE

Jesús J. Ba
Havana, mon amour
(Canto único, 2012)

Pero todavía es el momento del anatema, y es aún la hora


de la blasfemia: la tierra bajo vendas, la fuente sellada…
Saint-John Perse (trad. Carlos Manresa)

“No puedes hacerlo”, me dicen,


y se relamen de gusto
como anacrónicas meseras del Trastévere
que aguardan a la chusma de su propio circo romano.
“No debes”, argumentan (o tratan)
con cláusulas nunca infusas y manuales
viejamente empleados, con leyes (parámetros)
que citan (resucitan)
con enérgico empeño travestido
—uno de ellos, en particular más obeso
(su abuelita diría “robusto”)
o más chirriante que los otros,
destaza sus orzuelos, exhibe sus legañas
menos veleidosas, blasfema, anatemiza—;
“y no debes”, insisten,
“¿no ves acaso que tales acarreos
son mañas del Maligno, abismos
del Averno, pantanos de una Mente
que sólo pule para hurtar esplendor?”
—como si yo me hubiera amanecido ayer
e inocente de todo anduviese tan omiso como ellos—.

“No aceptamos, no creemos”, me dicen mientras creen


que se las saben todas, mas olvidan (no saben)
que yo también vi las cárceles la represión los sabuesos
a punto de morderme, el hierro de la voz
hundiéndose en mi carne, y en las calles
las alfabetas víctimas hambreadas pero sonrientes
porque “llegaron por fin las guaguas de la China comu-
nista
y con eso el transporte ha mejorado un poco”,
y el diario que a diario (un pan, la leche en polvo, una
tacita
ensombrecida de café, un algo hecho de nada)
“ya se va resolviendo” y “Sí, Jesús, no es fácil”.
Olvidan (o no saben y no debieran
desconocerlo)
que yo también vi y conocí allá, de cerca,
la vida,
que sigue
a pesar de las carencias / el duelo,
que sigue
a pesar de las paces pasajeras / el amor
(de una hermana un amigo una vecina), que sigue

22 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

J. Barquet ilustração: domingos sávio

Havana, mon amour


(Canto único, 2012)

Traducão de Analice Pereira e o autor

Pero todavía es el momento del anatema, y es aún la hora


de la blasfemia: la tierra bajo vendas, la fuente sellada…
Saint-John Perse (trad. Carlos Manresa)

“Não faça”, me dizem,


e se lambem de gozo
como anacrônicas garçonetes do Trastévere
que esperam a ralé de seu próprio circo romano.
“Você não deve”, reiteram (ou tentam)
com cláusulas nunca infusas e manuais
velhamente usados, com leis (parâmetros)
que citam (ressuscitam)
com enérgico empenho travestido
— um deles, em particular mais obeso
(sua vovó diria “robusto”)
ou com um chilrear maior do que dos outros,
estilhaça seus terçóis, exibe suas remelas
menos veleidosas, blasfema, maldiz —.
“Não deve mesmo”, insistem,
“por acaso não vê que tais acarreios
são artimanhas do Maligno, abismos
do Averno, pântanos de uma Mente
que pole só para furtar esplendor?”
— como se eu tivesse alvorecido ontem
e inocente de tudo andasse tão omisso quanto eles —.

“Não aceitamos, não acreditamos”, me dizem


entretanto acreditam que sabem tudo, mas esquecem
(não sabem)
que eu também vi os cárceres a repressão os cães
farejadores prestes a me morder, o ferro de uma voz
furando minha carne, e nas ruas
as alfabetas vítimas famintas mas sorridentes
porque “finalmente chegaram os ônibus da China comunista
e com isso o transporte tem melhorado um pouco”,
e o cotidiano do diário (um pão, o leite em pó, uma xícara
ensombrecida de café, um algo feito de nada)
“já está sendo resolvido” e “Sim, Jesús, não é fácil”.
Esquecem (ou não sabem nem devem
deixar de saber)
que eu também lá vi e conheci, de perto,
a vida,
que segue
apesar das carências / os pêsames,
que seguem
apesar das efêmeras pazes / o amor
(de uma irmã um amigo uma vizinha), que segue

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 23


POE
a pesar de la distancia y la delación, pues allí fue una vez
(o sigue siendo) mi vida,
y después he estado quatre fois au musée à Hiroshima
(o tres en realidad, en 2011 fue la tercera)
y ciertas cosas no vi (el cáliz la espada la piedra la llave
la lanza que enristra nuestra tierra baldía)
mas pregunté por ellas y hasta hallé entre mis enseres
vestigio de sus restos.
Otras (igual de urgentes) cosas
hay también allá que bien me sé aunque sin verlas
ya que es mi deber o una deuda personal
saber de los disidentes las balsas los botes (yo mismo
vine en uno) las intrépidas damas de la Quinta Avenida
el exilio o la diáspora cual patria que no cesa,
y el rijoso galimatías
que hace cinco décadas no es acto ni razón de ser.

Hoy, todos estos decires —útiles sólo al iluso, al voluntario ciego—


no abren rendija alguna en los recintos medio siglo tapiados.
Hoy, nuevas validaciones enigmas prioridades amenazas asuntos
a resolver hay en las casas sin remesas ni luz, en las mancas
reuniones de familia un sábado por la tarde, en los verdes
latones de basura ahora mismo
hay
buzos
y malogradas colillas o rasgados quizás cordones
de futuros zapatos y un fondito de alcohol imperceptible
que podría ser un día la Chispa (Искра) la llama, y de repente…
un formidable festival de cine latinoamericano
una visita del Papa un pregonero
que por cuenta propia regresa de lo hondo
de una antigua costumbre
y nos reinventa la palabra “¡Cebooollaaa!” —pelar
capa tras capa la espera, la espera atonal, daltónica tal vez—.
Y siempre
que pasa un autobús por La Rampa
es como un canto de Ezra Pound con caracteres chinos
y voces en francés italiano inglés o el español
macarrónico de un patronizing turista,
porque es así de políglota el bullanguero
silencio de mi ciudad:
MI
CIUDAD,
que ha oído hablado traducido estudiado
repetido y creído tantas
versiones de Lo Mismo (de Los Mismos), polígrafa
cansada de tener que escarbar como un buzo en la escoria
conversa del lenguaje
y erige su mutismo
como un quebrantahuesos frente el mar.
Hoy,
quizás el mejor decir sean los actos
imprevisibles de aquí y de allá.
Hoy, ningún vocablo en blanco y negro podría
lo que un fraterno abrazo o gesto lograse
al sin herir sumirse en el cuerpo del otro,
como perdonándolo o pidiéndole que nos perdone.

24 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA
apesar da distância e das delações, pois foi ali uma vez
(ou segue sendo) minha vida,
e depois de estar quatre fois au musée à Hiroshima
(ou em verdade, três vezes, em 2011 foi a terceira),
certas coisas não vi (o cálice a espada a pedra a chave
a lança que enrista nossa terra baldia)
mas perguntei por elas e até achei entre meus apetrechos
indícios de seus restos.
Há também ali outras (igualmente
urgentes) coisas que bem conheço mesmo sem vê-las
porque é meu dever ou uma dívida pessoal
saber
dos dissidentes, das balsas, dos botes (eu mesmo vim num deles),
das destemidas damas da Quinta Avenida, do exílio ou
da diáspora qual pátria que não cessa,
e do lascivo galimatias
que faz cinco décadas não tem sido ato nem razão de ser.

Hoje, todos estes dizeres – úteis somente ao iludido, ao cego voluntário –


não abrem fresta alguma nos recintos há meio século vedados.
Hoje, novas validações enigmas prioridades ameaças questões
há a resolver nas casas sem remessas nem luz, nas tronchas
reuniões de família num sábado à tarde, nos verdes
baldes de lixo agora mesmo

mergulhadores
e malsucedidas guimbas ou cadarços talvez esfarrapados
de futuros sapatos e um sobejo de álcool imperceptível
que poderia ser algum dia a Faísca (Искра) a chama, e de repente...
um formidável festival de cinema latino-americano
uma visita do Papa um pregoeiro
que regressa por conta própria do fundo
de um antigo costume
e reinventa para nós a palavra “¡Cebooolaaa!” — descascar
camada por camada a espera, a espera atonal, daltônica talvez —.
E cada vez que passa
um ônibus por La Rampa
é como um canto de Ezra Pound com caracteres chineses
e vozes em francês italiano inglês ou no espanhol
macarrônico de um patronizing turista,
porque é assim tão multilíngue o buliçoso
silêncio de minha cidade:
MINHA
CIDADE,
que tem ouvido falado traduzido estudado
repetido e acreditado em tantas
versões de O Mesmo (de Os Mesmos), polígrafa
cansada de ter que cutucar como um mergulhador
na escória conversa da linguagem
e ergue seu mutismo
como um falcão frente ao mar.
Hoje,
talvez o melhor dizer sejam os atos
imprevisíveis daqui e de lá.
Hoje, nenhum vocábulo em preto e branco conseguiria
o que um fraterno abraço ou gesto alcançasse
ao se afundar no corpo do outro sem feri-lo,
como perdoando-o ou pedindo-lhe que nos perdoe.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 25


POE
Pero siguen
diciendo los rayados
Discos del Lago de Los Mismos
que “no puedes / no
debes / no
aceptamos / no
creemos / tu n’as rien vu
à Hiroshima” —las familiares consignas rotándose
y resucitando espejos que abandonamos
cuando quisieron reflejarnos a la fuerza
y hoy son aquí únicamente un reverso, un eco
ahíto de repetirse, sin necesidad, en exilio
—de atravesar de nuevo corredores salones galerías
de una lúgubre mansión de otra época /
de atravesar más y más corredores salones galerías
de una anciana mansión atiborrada de muebles
desnutridos y obesos.

Hoy, no le queda a mi canto sino apelar, sin tapujos,


a los próximos actos nacientes.
Si virulento el pasado está siempre presente en lo futuro
y no obstante ambos pudieran cobijar
un entrevisto jardín (todo lleno
de murmullos, de perfumes y de músicas de alas),
depende de nosotros, entonces, anunciarlo y cuidarlo
de prisa, de prisa,
para cegar en añicos cualquier pálido azogue
que anacrónico pretenda aquí o allá
sobrevivirnos:
¡Actos, no palabras,
como espadas que debemos
desenterrar de las piedras! / Lanzas,
que enhebren. / Cálices,
que no convoquen a sacrificio
sino a comunión. / Llaves,
que abran por fin todas las puertas
selladas hace ya medio siglo. /
No más discursos, sino deíparas
ijadas de las que surja
suficientemente fértil la tierra
de los patios baldíos.

Mientras tanto, algo —¿qué


le queda aquí por hacer al poeta?—
habrá que hacer también con el lenguaje:
para cuando caigan al fin los parentescos barrotes
y la marea baje sin peligro de volver a inundarnos,
para cuando renuncien a sus vendas censores y ojerizas
y liberados los hombres puedan como Fronesis pasearse
por todo Obispo con sus mujeres un domingo como este
de hoy, investido por ambos de valiente blancura.

Todo esto y más


me lo he pensado yo muchas veces y mucho
—no otro afán han tenido mis largas
temporadas à Marienbad—, y no deseo
que el país se vuelva de nuevo para todos una Babel:
j’ai tout vu y no quisiera
ahora

26 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA
Mas seguem falando
os arranhados Discos
do Lago de Os Mesmos
que “não faça / você não
deve / não
aceitamos / não
acreditamos / tu n’as rien vu
à Hiroshima” – os familiares slogans rolando
e ressuscitando espelhos que abandonamos
quando quiseram nos refletir à força,
e hoje são aqui só um reverso, um eco
farto já de se repetir desnecessariamente no exílio
– de atravessar de novo corredores salões galerias
de uma lúgubre mansão de outra era /
de atravessar mais e mais corredores salões galerias
de uma antiga mansão abarrotada de móveis
malnutridos e obesos.

Hoje, o que resta ao meu canto é apenas apelar,


sem rodeios,
aos próximos atos nascentes.
Se virulento o passado está sempre presente no futuro
e embora ambos pudessem amparar
um entrevisto jardim (todo cheio
de murmúrios, de perfumes e de músicas de asas),
depende de nós, então, anunciá-lo e cuidar dele
depressa, depressa,
para cegar feito cacos qualquer reflexo pálido
que anacrônico pretenda aqui ou lá
sobreviver a nós:
Atos, não palavras,
como espadas que devemos
desenterrar das pedras! / Lanças,
que enfiem. / Cálices,
que não convoquem ao sacrifício
mas sim à comunhão. / Chaves,
que abram por fim todas as portas
seladas já faz meio século. /
Não mais discursos senão ventres
de parideuses, e que deles surja
suficientemente fértil
a terra dos campos baldios.

Enquanto isso, algo – que


resta aqui ao poeta fazer? –
é preciso fazer também com a linguagem:
até que caiam por fim as parentescas barreiras
e a maré baixe sem perigo de nos inundar mais uma vez,
até que repulsas e censores renunciem às suas vendas
e liberados os homens possam como Fronesis passear
por todo Obispo com suas mulheres num domingo como este
de hoje, enobrecido por ambos de corajosa brancura.

Tudo isso e mais eu já pensei


muitas vezes e muito
– não outra coisa
almejei nas minhas longas temporadas à Marienbad –,
e não desejo

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 27


POE
sino abrazar a mis gentes, que también lo han visto todo
e igualmente a nosotros quisieran abrazarse
aun sin entendernos ni decirnos nada;
ahora sé
que unirnos en el abrazo es ya en sí mismo
EL ACTO
que podría inaugurar un cimiento desde el cual
impedir el derrumbe (de nuevo, nunca más),
la dispersión el terror humanista (de nuevo, nunca más),
la chair brûlée, brisée, devenue vulnérable (de nuevo, nunca más).
HOY
nos hace falta (y mucha)
arcilla de construcción, claves unánimes, jaujas
talladas por distinta imaginación,
y tal vez perdonar, aunque juzgando (eso sí)
con estrenada justicia mayor
a los primeros o máximos culpables, porque sabemos
que la tierra y la carne, cual fatigadas
novias, esperan,
y nosotros —o yo—
andando todavía
sin lazarillo y a oscuras por la casa
esta noche de invierno que se aturde ante cualquier descosido,
mientras se acaba el tiempo de vivir y son casi
las dos de la madrugada aquí en New Mexico, allá
deben de ser tres o cuatro horas más, he perdido la cuenta
pero no la esperanza, y aunque es tarde,
bien sé que ya es hora y ese
condenado de Blumfeld que no viene a recoger su perro Foto: reprodução internet
a pesar de que le dije bien claro
que no podía cuidárselo pasada la medianoche.
(Plantando lo dejé
no sé qué en su jardín
y ahora quién sabe qué
estará desenterrando.)
Damn Blumfeld, siempre lo mismo
y no hallo forma de impedírselo:
las 2 AM y yo aquí con este
rabioso amigo del hombre recordándome
—con sus uñas clavadas en todos mis deberes— Jesús J. Barquet é
que difícilmente haya algo nuevo bajo el sol, poeta, crítico lite-
salvo la piel las nalguitas los cachetes sedosos (bien lisitos) rário, tradutor de
de un posible, por desconocido aún, poesia e professor
emérito da New Me-
infante nonato. xico State Univer-
sity (EUA). Nascido
em Havana, Cuba,
tem se dedicado
a organizar publi-
cações de poetas
Notas: cubanos nos mais di-
-de murmullos, de perfumes y de músicas de alas: verso de José Asunción Sil- versos temas, como
va. por exemplo, Poe-
sía cubana del siglo
-¿qué le queda aquí por hacer al poeta?: verso de Lord Byron en traducci- XX (2002), Edicio-
ón de Heberto Padilla. nes El Puente en La
-El terror humanista (2011): libro de Jacobo Machover. Habana de los años
60 (2011) e Todo pa-
recía: poesía cubana
contemporánea de
temas gays y lésbi-
cos (2015).

28 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA
que o país se torne para todos de novo uma Babel:
j’ai tout vu e não anseio
agora
senão abraçar minha gente, que viu também tudo
e igualmente gostaria de nos abraçar
ainda sem entendermos nem dizermos nada;
agora sei
que nos unirmos em um abraço é em si mesmo
O ATO
que possa inaugurar o alicerce desde o qual
impediríamos a derrubada (de novo, nunca mais),
a dispersão, o terror humanista (de novo, nunca mais),
la cher brûlée, brisée, devenue vulnérable (de novo, nunca mais).
HOJE
faz-nos falta (e muita)
argila de construção, chaves unânimes, êxitos
esculpidos por distinta imaginação,
e talvez perdoar, mesmo que julgando (isso sim)
com estreada justiça maior
os primeiros ou máximos culpáveis, porque sabemos
que a terra e a carne, como fatigadas
noivas, esperam,
e nós – ou eu –
andando ainda
no escuro e sem guia pela casa
esta noite de inverno que se atordoa frente a qualquer desalinho,
enquanto se finda o tempo de viver e são quase
duas da madrugada aqui em New Mexico, lá
devem ser três ou quatro horas a mais, tenho perdido a conta
mas não a esperança, e embora seja tarde,
bem sei que chegou a hora e esse
maldito de Blumfeld que não vem pegar seu cachorro
apesar de ter lhe deixado bem claro
que não podia cuidar dele depois da meia-noite.
(Plantando o deixei
não sei o que em seu jardim
e agora quem sabe o que
estará desenterrando.)
Damn Blumfeld, sempre a mesma coisa
e não encontro forma de impedi-lo:
Analice Pereira é duas da manhã e eu aqui com este
professora de lite- raivoso amigo do homem me lembrando
ratura no IFPB, João
Pessoa, onde reside.
– com suas unhas cravadas em todos os meus afazeres –
Nos últimos anos vem que dificilmente algo novo haja sob o sol,
se dedicando a estu- salvo a pele as nádegas fofinhas as bochechas
dos sobre Literatura sedosas (bem lisinhas) de um possível
Cubana. Vez ou outra
colabora no Correio
– por desconhecido ainda –
das Artes. Em 2015, infante desnascido.
por exemplo, publi-
cou nesta revista uma
série de crônicas sob
o título “Dez dias com
Elena em Havana”.  NOTAS:
- de murmúrios, de perfumes e de músicas de asas: verso de José Asunción
Silva.
- que resta aqui ao poeta fazer?: verso de Lord Byron.
- El terror humanista (2011): libro de Jacobo Machover.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 29


POE

Éramos filhos Carlos Alber


E éramos filhas das tardes trôpegas
e navegávamos no meio de maduros trigais

Não havia em nossos olhos nenhuma lágrima


que molhasse nosso tórrido chão
despovoado que estava de todas as ambições

E procurávamos em vão os inúteis caminhos


que se postavam à nossa frente
e sempre nos enganavam

E éramos filhos das tardes trôpegas


e esperávamos que se cumprissem
os antigos calendários

Volta
E eis -nos tornados às antigas águas
de que fomos feitos.

E eis-nos saciados de todas as fomes


sentindo sob os pés os alabastros desterrados

E eis-nos cúmplices das areias das praias longínquas


onde soçobram barcos e veleiros sem retorno

E eis-nos tudo e nada,


todo e parte de alguma coisa
que não quer falar

E eis-nos submissos aos senhores do silêncio,


Tarde Múltipla
Exilados que fomos de nossos velhos desejos
Nessa tarde múltipla,
E eis-nos por fim submissos ao chão que nos espera, o coro de crianças
vítimas e algozes dos dias entorpecidos prenuncia o fim.

Sempre foi assim.


Já sabíamos que seria o fim.
Mas nossos olhos miravam estrelas
Escravidão e pensávamos que elas existiam
para nos livrar daquela hora
O poeta é um escravo do silêncio.
Das noites enevoadas. Mas a tarde é múltipla,
Dos pórticos sob as sombras. e tanto ouvimos o coro de crianças
Da solidão e seus abismos. quanto os apelos dos que se afogam.
Da sabedoria dos velhos calendá-
rios. Que não voltam,
Das canções improvisadas. que se contentam em olhar as próprias mãos,
Dos olhares atrevidos. e esperar por outras mãos que nunca chegam.

Da cumplicidade dos amantes. Mas as crianças prenunciam tudo


Das pedras rolando nos vales. e se contentam em cantar
Dos fâmulos e seus donos. nessa tarde múltipla.
O poeta é um escravo do silêncio.
Que nasce do chão de cada dia

30 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


SIA

Alberto Jales

ilustração: tônio

Carlos Alberto Jales Costa


é natural de Natal (RN) e
reside em João Pessoa (PB).
Formado em Filosofia e Di-
reito, lecionou em várias ins-
tituições de ensino superior,
entre as quais a Universidade
Federal da Paraíba e Univer-
sidade Católica de Pernam-
buco. Já publicou diversos livros nas
áreas de educação e poesia. Vindimas
da solidão (poesia) é o mais recente.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 31


P O E S I A

Mercedes Cavalcanti
Verbo Amar
ilustração: pepita

Amei no teu compasso


O compasso dos homens:

Amarei em todos os homens


O gemido da flauta que ecoa
de ti,
A rasgar tua garganta de Homem e de Lobo
Selvagem no cio, a uivar à lua nua

– Cintilações
Tatuadas
Nas ondas do mar.

Amei no teu beijo


O beijo dos pica-flores:

Amarei em todos os pica-flores


O pincel indómito que brilha
em ti,
Aquarela colorida desenhada de sussurros,
Pétalas perfumadas e corolas úmidas

– Orvalho
Libado
Nas noites estreladas.

Amei no teu desejo


O desejo dos amantes:

Amarei em todos os amantes


A energia ardente que flui
por ti,
Labaredas quentes de meu corpo no teu corpo
Sobre a seda pura dos lençóis desfeitos

– Explosão
De vulcões
Nas delícias gozosas.

Mercedes Ribeiro Pessoa Cavalcanti é escritora e


artista plástica (assina Mercedes Cavalcanti na lite-
ratura e Pepita na arte). É professora da Universida-
de Federal da Paraíba (UFPB) e membro da Academia
Paraibana de Letras, União Brasileira dos Escritores
e Academia de Letras e Artes do Nordeste. Com
premiações nos gêneros romance, conto e poesia,
publicou, entre outros livros, O ouro dos dragões, A
volúpia dos anjos, El manuscrito de Hannah e Feitiço
da palavra . Mora em João Pessoa (PB).

32 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6
ilustrações: domingos sávio
livros

Dias
de abandono
Ana Adelaide Peixoto
Especial para o Correio das Artes

Para Monica Rique, quem me escuro como dois polvos de solidão;


apresentou Elena como se as mãos soubessem antes
que o amor tinha acabado; na insô-
O amor acaba. Numa esquina, nia dos braços luminosos do relógio;
por exemplo, num domingo de lua e acaba o amor nas sorveterias dian-
nova, depois de teatro e silêncio; aca- te do colorido iceberg, entre frisos de
ba em cafés engordurados, diferentes alumínio e espelhos monótonos;...
dos parques de ouro onde começou a (“O amor acaba”,
pulsar; de repente, ao meio do cigar- Paulo Mendes Campos)
ro que ele atira de raiva contra um
automóvel ou que ela esmaga no cin- Escrever de verdade é falar do
zeiro repleto, polvilhando de cinzas fundo do ventre materno. Virar a pá-
o escarlate das unhas; na acidez da gina, Olga, começar de novo.
aurora tropical, depois duma noite (Dias de abandono, Elena Ferrante)
votada à alegria póstuma, que não
veio; e acaba o amor no desenlace das O título deste artigo é ho-
mãos no cinema, como tentáculos mônimo de um dos sucessos c
saciados, e elas se movimentam no editoriais da escritora italiana

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 33


não. Uns se perderam. Outros se
acharam. Não necessariamente
nessa equação. Um enigma, tal-
vez. A decifrar.
Ao ler Elena e seu abandono,
muito me identifiquei. Principal-
mente com sua linguagem crua,
e seus ímpetos violentos. Os
vivi todos. E como Olga, a pro-
tagonista do abandono, também
senti que a banalidade da vida tem
um tom extraordinário, misterioso.
Também confessei minhas fragi-
lidades, meus ciúmes exacerba-
dos, meus medos, minha inveja
insuportável, e minhas vergo-
nhas alucinantes. Também vivi
dias trancafiada em casa. Bebi to-
das as cachaças. Pensei todas as
loucuras. Vi várias auroras, luzes
sorumbáticas. Perdi-me várias
c Elena Ferrante, pseudônimo de Separei-me do meu primeiro vezes. Muitos pesadelos, obses-
uma festejada autora que nun- marido, quando tinha 25 anos. sões, saudades doidas e doídas!
ca mostrou o rosto, nem sequer Muito jovem para tudo. Mais Assim como Olga, também
deu pistas da sua identidade. ainda para uma ruptura tão gi- me senti em armadilhas tantas e
Ao contrário do movimento das gante. A geração antes da minha, nenhuma reparação. Meus dese-
mulheres e a literatura e a luta na maioria, ficou nos casamen- jos? Em falta!: Que decisão injusta,
pela autoria, Elena não quer sa- tos, fossem eles bons ou ruins. unilateral. Soprar ao vento o passa-
ber disso. Ao contrário, mergu- Felizes ou infelizes, se é que po- do como um inseto feio, pousado na
lha num mistério de anonimato demos defini-los assim. A minha palma da mão. O meu passado, não
e assim segue com sua A amiga chutou o pau da barraca. Eram somente o seu, tinha chegado a este
genial, História do novo sobrenome os anos setenta, e a explosão dos desmanche. Desse jeito, na confu-
e História da menina perdida, en- costumes, principalmente os se- são da vida ao deus-dará, eu estava
tre outros sucessos. xuais, davam o tom. Queríamos definhando, murchando, estava seca
Comprei esse exemplar pelo tudo. Estar casada e experimen- como uma concha vazia numa praia
título e assunto. Depois de quinze tar outras coisas, inclusive amo- no verão. E naquelas longas horas
anos de casamento, Olga é abando- res. Casamento aberto. Amiza- fui a sentinela da dor, velei junto à
nada por Mario. Presa ao cotidia- de colorida. Tinha que dar em multidão de palavras mortas.
no estilhaçado com dois filhos, um merda. E falo de sofrimento. Olga, sozinha e com os filhos
cachorro e nenhum emprego, ela se Perdição. Perdas e danos, como que a culpam, a xingam, adoe-
recusa a assumir o papel da pove- depois constatei nesse belo e cem, ficam em casa no verão,
rella (a pobre mulher abandonada). apavorante filme de Louis Mal- sem férias e com toda a raiva
Essa opção a projeta num turbi- le. No filme entendi quase tudo. dela e da vida a fazem entrar
lhão de obsessões, angústias e Fazemos e somos responsáveis num êxtase de definhamen-
ímpetos violentos, capazes de por nossas escolhas. Mesmo to. Leva o pastor alemão, Otto,
afastar Olga do fato de que as que inconfessáveis! para passear no parque, dede-
derrotas precisam ser assumi- A geração de hoje se separa tiza a casa, cachorro adoece,
das para que a vida possa enfim porque querem contos de fadas; vomita, tem espasmos, morre,
seguir adiante. Com essa orelha, a saber desde a festa de casamen- assim como ela que, sozinha e
foi difícil resistir. to. A minha queria igualdade, silenciosamente também tem os
Sou de uma geração que rom- parceria, amor incondicional, e seus refluxos de sangue, repul-
peu o conservadorismo do casa- muita, muita simbiose amorosa. sa, desorientação e abandono.
mento institucional e primeiro A vida é muito mais complexa Vi-me em Olga. Acho que muitas
se separou. Não que antes os ca- que isso. Amor e sexo, então!!! de nós fomos Olga algum dia. Na
sais não se separassem, mas era Daí nos separamos para cair na revolução sexual dos anos 70 tam-
um perdido. Separar era tabu e gandaia, no poço sem fundo, no bém jogamos a toalha, perdemos,
muitos pais diziam: “Filha mi- agito, na busca frenética, no sexo achamos, vivenciamos, ouvimos
nha não separa. Filha minha fica livre, enfim, para atolar os dois “Hurricane” de Dylan, em êxta-
viúva!”. Gracias a la vida o meu pés nas jacas todas, sem olhar ses, e sentamos no meio fio das
pai não era assim. Pelo contrário, para trás. Nos demos mal? No ca- calçadas mornas das madrugadas
acolhimento era o seu tom. Ra- samento, não. Fomos felizes en- da praia, e choramos.
cionalismo! E em primeiro lugar, quanto durou. O depois? Acho Quando uma vez avistei o
a felicidade das filhas. Na minha que vivemos coisas delirantes e meu Mario na calçadinha, assim
casa, quase todas se separaram. irreversíveis. E isso bastou. Ou como Olga, presenciei que: No c

34 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


c seu corpo, no seu rosto, não havia vestígio das da sala até adormecer sem saber
da nossa ausência. Enquanto eu carrega- muito onde estava o real e a ficção. ah!
va em mim – só de leve me tocou o seu A virtude de uma bunda dura, bradava
olhar e tive certeza – todos os sinais do Olga. Também devo de ter tido esses
sofrimento, ele não conseguia esconder os brados nada retumbantes!
do bem-estar, talvez de felicidade. Insu- Em toda e qualquer separação, há o
portável, certas imagens! sentimento de raiva e frustração pelo
Como Olga tinha 38 anos, seu tempo perdido, tentando construir
marido fala que tinha medo das ho- algo que aparentemente se dissolve
ras e que dormir com ela na mesma no ar. Mas nada se perde! Somos o
cama sentia como um relógio – um que vivemos, o que perdemos, inclu-
medidor de vida que vai embora deixan- sive o que não vivemos, segundo Ma-
do um rastro de angústia. Olga pergunta ria Rita Kehl e sua “teoria do esqueci-
então raivosa: “então quer dizer que dor- mento”. No abandono, contemplamos
mindo comigo você se sentia envelhecer? de camarote tudo aquilo que era a
A morte, você, a meia na minha bunda, nossa vida ir se realizar no quintal de
como era gostosa antes e como tinha fica- outro. Olga pensa sobre isso: Eu tinha
do agora?...” De bundas e vozes, uma tirado um tempo que era meu para somá-
performance que Olga se pergunta: -lo ao seu e fazê-lo então mais potente. Eu
Quantas mulheres não conseguem abrir tinha posto de lado as minhas aspirações
mão da encenação da voz infantil. Eu para acompanhar as suas. Para cada crise
tinha desistido imediatamente, com dez de desconforto dele, eu tinha estancado as
anos eu já procurava um tom adulto. Nem minhas crises para poder confortá-lo. Eu
nos momentos de amor eu fazia o papel da tinha me perdido nos seus minutos, nas
menininha. Uma mulher é uma mulher. suas horas, para que ele se concentrasse.
Olga começa então a ouvir as estó- Eu tinha cuidado da casa, da comida, dos
rias que a mãe contava – A da Mulher filhos, eu tinha me ocupado de todas as
abandonada, sem amor, que morria chatices da sobrevivência do cotidiano,
vivendo. Olga foge desse estereótipo enquanto ele escalava teimosamente o
e procura vida no desamparo e mes- declive da nossa origem sem privilégios.
mo no desengano. Avista um vizinho E agora, agora ele me largava carregan-
estranho, o Sr. Carrano, e, com ele, se do consigo todo aquele tempo toda aque-
entrega numa ação ácida e de mau la energia, todos aqueles sacrifícios... de
hálito e gosto. Onde só sua língua uma hora para outra, para gozar os frutos
caspenta tem peso. Uma saída, um com outra, uma estranha que não tinha
beco escuro que na solidão extrema, mexido um dedo para pari-lo, nutri-lo e
quem já não se aventurou? fazer com que ele se tornasse o que era.
Olga diz que não sabe gritar – as pa- Parecia-me uma ação tão injusta,... Essa
lavras caem por perto de mim como pedri- fala enlutada e rancorosa de Olga é
nhas jogadas pela mão de sim pequena, mas legítima quando
uma criança. Já eu, gritei pensamos nas milhares de mulheres
muito com Pink Floyd. que silenciaram seus mais profun-
Tanto, tanto e tão entre- Em toda e qualquer dos desejos em nome do casamento
gue a outras dimensões e da família, e quando são largadas,
da consciência perdida perdem o bonde, a capacitação, o
que, um dia, acordei nas separação, há o mercado de trabalho e o pior, per-
areias do Cabo Branco. dem a si mesmas.
Em outro, me vi nua Sentimentos de perda de identida-
num chuveiro em Baía sentimento de raiva e de, desamparo, de solidão profunda,
Formosa, tomando pin- nos rodeiam. Assim também como
ga 31 com D. Regina, Olga, um dia me perguntei: Que fim
D. Vandete, peixe frito
frustração pelo tempo tinha levado a mulher que eu tinha ima-
peixe frito. Todos esta- ginado ser quando era adolescente? Com-
vam inebriados a cantar partilhei com Olga esse ser dissolvido em
alguma música brega. E
perdido, tentando um nada, tabula rasa! Alguém que teria
o meu coração bobo e o sido construído a partir de um outro que
bombo de Alceu, uma construir algo que não eu. Quem sou eu?, vira sim um
vez aqui e outra acolá mantra. E a triste constatação de que
me devolviam o prumo. não existimos como indivíduo, mas
Forte, tentei ser. Mas aparentemente se como um casal, essa entidade limita-
uma vez, assim como da e asfixiante: Que mistura complicada
Olga, também vi “flying e espumosa é um casal. Embora a relação
sources in the Sky”. dissolve no ar. quebre e se desfaça, ela continua a agir por
Jogava-me nas almofa- vias secretas, não morre, não quer morrer. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 35


c Essa é a grande e maior arapuca!
A entidade não desaparece. Por
vezes, nunca! E os amigos que
foram do casal, não sabem mais
o que fazer com aquela entidade
que se rompeu. Perdemos o ma-
rido, a casa, a simbiose de dois
seres à procura de uma unidade
impossível, e perdemos os ami-
gos! E no meio de tantas perdas
– Olga conclui: É ruim o círculo
do dia vazio, quando a noite se
enrola no pescoço como um nó.
E quando encontramos um ex-
-explodindo com a sua acintosa
felicidade, só um pensamento-
-tormenta nos persegue: Ago-
ra que o vejo me parece que aquela
intimidade não pertence a ele, seja
de outro que o substituiu, talvez a
memória de um pesadelo da minha
adolescência, talvez a fantasia de quando Mario foi embora, voltei a estimar por si, e claro que isso
olhos abertos de uma mulher desfei- ler as páginas em que Anna Kare- também tem uma significação no
ta. Onde estou? Em que mundo me nina está próxima de morrer, folheei corpo. Pessoas tristes e desam-
abismei, em que mundo reemergi? A aquelas páginas que falavam de mu- paradas não se cuidam. Quanto
qual vida voltei? Com qual objetivo? lheres quebradas. Lia e no entanto mais choro mais passo batom, fala
Fecha a cena! A cortina! O sonho! sentia-me segura, eu não era mais o poema de Vitória Lima, numa
E a vida tem sim dessas exigên- como aquelas senhoras das páginas, justaposição dessas forças anta-
cias. Corremos atrás dela, pois! não as sentia como uma voragem gônicas. Cuidar de si, é preciso!
Um palmo à frente é quase que me sugava. Me dei conta de que E Olga questiona: Quando foi que
um infortúnio pensar. O futuro tinha até sepultado em algum lugar eu perdi aquela força e teimosia da
então! Só o passado nos ofusca. a mulher abandonada da minha in- energia animal, talvez na adolescên-
Olga tem tonturas ao pensar so- fância... a pobre coitada voltou a ser cia. Agora estava num processo
bre isso: O futuro – pensei – será como uma foto antiga, passado petri- de volta ao selvagem, olhei meus
todo assim, a vida viva junto ao ficado, sem sangue. tornozelos, minhas axilas, desde
cheiro úmido da terra dos mortos, a Na maldição do amor român- quando eu não me depilava, des-
atenção com a desatenção, os saltos tico, nos iludimos; achamos ter de quando não me raspava? Eu,
entusiastas do coração junto às que- sido escolhidas porque alguém que até quatro meses atrás era só
das bruscas de significado. Mas não morre de amor por nós. Eu não ambrosia e néctar... Levitar. Que-
será pior do que o passado. vivo sem você! Escutamos! E nos ria sair do chão, queria que me
Juntar os cacos, refazer-se, enchemos de orgulho e vaidade. visse suspensa em equilíbrio,
reinventar-se, Começar de novo, Qual nada! Olga é crua: Somos elevada, como acontece com as coi-
como tantas vezes cantei com ocasiões. Consumimos e perdemos a sas integralmente boas... Pensava a
Ivan Lins. Diante dos filhos en- vida porque um qualquer, em tempos beleza como um esforço constante
tão, Olga tem urgência: Queria longínquos, por vontade de descarre- de apagamento da corporalidade...
ser eu, se essa fórmula ainda tivesse gar o pau dentro de nós, foi gentil, nos Tornara-me uma esposa obsoleta,
algum sentido. Ou pelo menos que- escolheu entre as mulheres. A reali- um corpo negligenciado, minha
ria ver o que permanecia em mim, dade é tão crua quanto Olga! Olga doença é só a vida feminina que fi-
uma vez que o houvesse retirado. sabe disso: Não, pensei apertando o cou fora de uso, meu rosto escorre-
Todas um dia fomos as mu- pano de chão e levantando-me com gou para fora do espelho.
lheres quebradas! E como é di- dificuldade; o futuro, de certo ponto Ambrosia e néctar! Precisa-
fícil ver a vida inteira quando em diante, é somente a necessidade mos dessas palavras e desses
crescemos acreditando no amor de viver o passado. Refazer imediata- sabores para seguirmos a vida!
romântico que tudo salva, tudo mente os tempos verbais. E quase todas nós mulheres,
consegue e toda felicidade con- No auge do abandono, Olga também um dia, tivemos nos-
quista. Do nada, temos que acre- se vê no completo não existir, sos rostos escorregados para
ditar que a vida é bela, que a que se traduz no não reagir, não fora do espelho!I
vida segue, que existem outras
possibilidades, amorosas inclusi-
ve. Aquela amputação terá cura.
Ana Adelaide Peixoto Tavares é professora do Departamento de Letras
Outro braço não vai nascer, mas Estrangeiras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e escreve crônicas
uma outra dinâmica é urgente se no site www.wscom.com.br e no jornal Contraponto. Publicou Brincos, pra que
mergulhar. Eu, eu e eu! Pensa- te quero? e De paisagens e de outras tardes (MVC/Forma, 2016). Natural de
va. Olga, se alegra: Aquela noite, Fortaleza (CE), mora em João Pessoa (PB).

36 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

A Amazônia vista
G: Incógnita

1 O símbolo da maçonaria?

com olhos mágicos


2 A 3ª letra do alfabeto grego,
gama?
3 Geia, Deusa da Terra, mãe de
Cronos. É o símbolo da excelên-
cia, estabilidade e segurança?
K - O escuro da semente 4 O Grande Arquiteto do Uni-
verso, como querem alguns?
ó Oniausência 5 G (simplesmente geometria,
igual em todas as línguas. Geo-
metria: espaço e figuras que po-
Dirce Lorimier Fernandes dem ocupá-lo). Ciência da Geo-
Especial para o Correio das Artes metria?
6 O conhecimento – gnosis?

E
O homem invocado pelo poe-
ntremos no Labiantro, onde Vicente Franz Cecim de- ta narrador é este, um ser ver-
monstra que a arte poética vive de seu próprio mistério. sado na arte de dialogar, impul-
Na penumbra de Andara em busca do hgomem (com- sionado pela curiosidade dentro
pleto) o símbolo se oferece em silêncio para ser visto por da delimitação cronotópica do
quem tenha abertos os olhos do coração. Senão, para texto. Na penumbra de Andara,
que o poeta estaria pregando “quando fala na língua ele deverá orientar-se no espa-
que o outro não entende?” Não seria razoável o propos- ço, procurando enxergar/ouvir/
to diálogo contigo n’O escuro da semente perder-se num sentir as figuras inertes ou em
monólogo. Mikhail Bakhtin, em Questões de Literatura e movimento, silenciosas ou so-
Estética – A Teoria do Romance, lembra que para o grego noras, coloridas ou carentes de
da época clássica toda a existência era visível e audí- cor para não se perder como um
vel. “Por princípio (de fato) ele desconhece a existência simples “omem”:
invisível e muda... Platão, por exemplo, compreendia a
reflexão como uma conversa do homem consigo mesmo “que teu oglhar veja as cores
(Teeteto, O Sofista). A ideia de meditação silenciosa apa- invisíveis no Livro”, determina o
receu pela primeira vez com o misticismo (suas razões poeta narrador.
são orientais). Ade-
mais, a reflexão como O oglhar proposto por Cecim
Fotos: divulgação

uma conversa consigo me leva à tese de Alfredo Bosi


mesmo, no entender em “O enigma do Olhar” tentan-
de Platão, não pres- do decifrar o olhar de Capitu, a
supõe absolutamente heroína de Machado de Assis em
qualquer relação par- Dom Casmuro. O autor faz uma
ticular consigo pró- distinção entre “ponto de vista” e
prio (o que difere da “olhar”; o primeiro é fixo enquan-
relação com o outro), to o segundo é móvel. O olhar os-
passa-se diretamente cila entre abrangente e indeciso.
“O olhar é ora cognitivo e, no li-
da conversa consigo
mite desafiador, ora é emotivo ou
mesmo a conversa
passional. O olho que perscruta
com o outro...”.
e quer saber objetivamente das
No Livro de Cecim coisas pode ser também o olho
o processo de intera- que ri ou chora, ama ou detesta,
ção entre textos (in- admira ou despreza.”
tertextualidade), tan- Como que corroborando a hi-
to na escrita como no pótese de Cecim, Bosi completa
ato da leitura, ocor- o pensamento: “Quem diz olhar
re como um desafio diz, implicitamente, tanto inteli-
dialógico, polifônico, gência quanto sentimento.”
O livro de Vicente Franz Cecim tendo início na inclu- Cecim, em busca do interlocu-
inaugura a Coleção Sabedoria, são do g na grafia de tor ideal, acrescenta “g” que, no
da editora LetraSelvagem Homem e Olhar. meu entender, simplifica a ideia c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 37


c de Bosi. Olhar (e ver) implica in- conduzir o ouvinte/leitor ao pa-
teligência, sentimento. “G” é co- raíso, isento de suas máculas.
nhecimento do tempo e do espa- Cecim já está em Andara, um
ço. G distingue e interpreta cores. universo policromático convo-
Objeto do olhar e modo de ver cando o hgomem a penetrar na
são fenômenos de qualidade di- Noite da Semente, ouvir o Diá-
versa. O modo de ver dá forma e logo dos alimentos do ser, ver
sentido ao objeto do olhar. o omem de areia, ter a Visão do
Literatura é espelho. O signo é ssakil na Penumbra de Andara.
transparente. Os olhos do artista Ouvir o vento a evocar o que di-
escritor refletem o objeto de sua zia Iziel a Azael “nessas páginas
observação e ou imaginação. passadas”. A provocação dialó-
No Livro, Andara se estende gica aqui é com o ser durante a
ao longo das páginas em branco sua existência material. Ambos,
onde o Ser de Espanto manipu- Vieira e Cecim, provocam uma
Vicente Franz Cecim
la as palavras cuja contiguidade nasceu em Belém
introspecção. Cecim vai além,
e grandes hiatos provocam no do Pará, Amazônia apoia-se na força invisível das
presumido interlocutor o desejo brasileira, onde vive. cores e, como Sócrates já dizia,
de seguir o seu oglhar; um olhar Sua Escritura se “do negro ao branco vai não só a
entrega à abolição
lúcido, ora concessivo, ora lúdico, diferença, mas uma oposição ab-
das fronteiras entre
ora trágico. ... “e os dias passam prosa e poesia soluta!” Única, superior a todas
indo para parte alguma”. as demais cores. Ambos, Vieira
Submete o interlocutor às leis e Cecim, são repetitivos e nesse
do movimento a olhar em todas voca a oglhar o invisível em um exercício levam o interlocutor a
as direções, às vezes em círculo, espaço infinito, páginas em bran- desvendar o mecanismo que fa-
em diferentes níveis para de- co. Vieira cita o espelho como cilita a superação da figura para
parar os seres do bem e do mal doutrina, a luz, como a graça, os substituí-la pelo símbolo.
evocados pelo prosador poeta olhos como conhecimento, e Ce-
que, num ato de concessão, o cim, sem o citar, tem o espelho KeG
imerge na página “fulguran- como o topos (espaço, lugar). Am- 1: K a essência invisível
te”, para ser devorado por essa bos diferem em vários pontos, K é o símbolo que se oferece
poesia que se alimenta de mis- tendo em vista os objetivos de em silêncio àquele que tenha os
térios. Páginas em branco, pro- suas narrativas, mas os discursos olhos do coração aberto
messa de paz e o interlocutor é convergem quando a animação K só se manifesta àquele que
reconduzido à “Oniausência”, do sentido obtida através da re- tenha o oglho
na página 363, para sentir “o es- tórica pode gerar no interlocutor, 2: G é a luz
panto de não ser”. acostumado à imobilidade diante Que teu oglho veja as cores in-
Ao recorrer novamente a do texto, uma certa insegurança visíveis no Livro
Bakhtin, eu encontro a origina- e irritação com o narrador, como G > o conhecimento (gnosis)
lidade da obra: uma intencional escreveu Janice Theodoro em sua G > o grande arquiteto do uni-
contraposição do estranho com o América Barroca, sobre a provo- verso
familiar; o insólito daquilo que é cação de Vieira. G > a ciência da geometria/
alheio se sobressai representado Por que comparar o trabalho Geometria > espaço e figuras que
pelo que é subentendido, habi- de dois gênios representantes de podem ocupá-lo (é universal)
tual, conhecido. épocas tão distintas? Pela simila-
ridade de suas mensagens, pelo Logo, o poeta narrador deter-
Vieira e Cecim não dito ensejo a novas interpre- mina que o seu interlocutor saiba
No século XVII, do alto do púl- tações. Cecim faz muito mais. ocupar o espaço em que se dá a
pito, o Padre Antonio Vieira con- Sendo esta obra um colosso de trajetória de sua erudição literá-
clamava os fiéis à introspecção conteúdos, de significados suge- ria. Figuras, imagens, seres invi-
avisando que para um homem rindo inimagináveis impressões síveis, inertes ou em movimento,
ver a si mesmo eram necessárias sensoriais, o seu interlocutor, por sonoros ou silenciosos, coloridos
três coisas: olhos, espelho e luz. mais que resista, é instigado a re- ou não. O Livro apresenta uma
Na falta de um desses fatores o compor o repertório de insinua- variedade de discursos, mas to-
ato de ver ficaria comprometido. ções contidas no texto. dos nascem da mesma matéria:
O pregador tinha com tal premis- Vieira é um clássico, preso às “ó Oniausência” e acabam nela
sa uma intenção religiosa. Cecim palavras disponíveis no século “ó Oniausência” – O escuro da
tem uma intenção ecumênica. XVII. Cecim, um progressista, semente e seus enigmas. I
Acompanhe o meu olhar percor- não se intimida ante a necessida-
rendo Andara até a essência da Dirce Lorimier Fernandes é
de de criar ou manipular a escri- doutora em História Social pela USP
semente, na página 364. Vieira ta, não se perde em convenções. (Universidade de São Paulo) e autora,
convoca o homem a entrar dentro Ambos, cada qual à sua maneira, entre outros, de A Inquisição na
de si, e ver-se a si mesmo, dentro manipulam, sugerem, provocam América (Arké Editora, 2004, SP) e A
da própria semente. Cecim o con- Literatura Infantil (Edições Loyola,
o dialogismo. Vieira pretende
2003, SP). Mora em São Paulo (SP).

38 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


VICENTE FRANz CECIM
CRONOLOGIA BIBLIOGRÁFICA
Vicente Franz Cecim nasceu corpo de um corpo que se sonha. nidos nos volumes A asa e a ser-
em Belém do Pará, Amazônia pente e Terra da sombra e do não
Em 1980, o segundo livro de
brasileira, em 7 de agosto de (Cejup, Belém).
Andara, Os animais da terra, re-
1946, e aí vive. Sua Escritura
cebeu o Prêmio Revelação de Em 2005, publicou seu pri-
se entrega à abolição das fron-
Autor da APCA (Associação meiro livro em Iconescritura,
teiras entre prosa e poesia, de-
Paulista de Críticos de Arte). unindo imagens & palavras,
manda o silêncio, funde pro-
também em Portugal, K O es-
fano e sagrado, e, partindo da Em 1981, A noite do Curau,
curo da semente (Ver o Verso,
natureza, se lança como sede primeira versão do terceiro li-
Maia), então inédito no Brasil.
metafísica do Ser da Vida: Atra- vro de Andara, Os jardins e a
vessar o que nos nega, chegar ao noite, recebeu Menção Especial Em 2006, saiu a edição brasi-
Sim. E é assim que tu verás um S no Prêmio Plural, no México. leira de Ó Serdespanto (Bertrand
nestes dias cegos. É a inscrição no Brasil, Rio de Janeiro).
Em 1988, Viagem a Andara
portal dos seus livros, oposta (Editora Iluminuras, São Pau- Em 2008 e 2014 lançou as
àquela dantesca que intimida. lo), reunindo os sete primei- novas iconescritura oÓ: Des-
Em 1979, com A asa e a ser- ros livros de Andara, recebeu nutrir a pedra (Tessitura, Minas
pente, iniciou a obra imaginária o Grande Prêmio da Crítica da Gerais) e Breve é a febre da terra
Viagem a Andara oO livro invisí- APCA. (IAP, Belém, Prêmio Haroldo
vel, transfiguração da Amazô- Maranhão de Romance).
Em 1995, Cecim publicou
nia em Andara: região-metá- Silencioso como o Paraíso (Ilu- Fonte dos que dormem é o iné-
fora da vida em que natural e minuras, São Paulo) reunindo dito em que reúne os Cantos
sobrenatural convivem em mú- mais quatro livros visíveis de de Andara. Atualmente, gera
tua epifania. É onde ambienta Andara. o novo livro visível: Oniá um
todos os seus livros. lugar cintilante.
Em 2001, quando a inven-
Andara sendo a Amazônia ção de Andara completava 22 Nos livros visíveis que escre-
vista com olhos mágicos, como já anos, publicou Ó Serdespanto ve e compõe, o autor busca a
foi dito, à medida em que, um (Íman Edições, Lisboa) com alquimia da Escritura, em to-
a um, os livros visíveis de An- tal liberdade, incorporando o
dois novos livros de Andara,
dara vão sendo escritos como silêncio de páginas em branco
apontado pela crítica portu-
literatura fantástica, desvelam a e imagens, para criar, a partir
guesa como o segundo melhor
literatura fantasma do livro invi- da natureza amazônica, a re-
lançamento do ano.
sível de Andara, livro puramen- gião metafísica de Andara. K
te imaginário, do qual só exis- Em 2004 relançou, em ver- O escuro da semente (LetraSel-
te o título e que não é escrito sões finais, transcriadas, os sete vagem, 2016, Taubaté-SP) é
— segundo o autor, o não-livro, primeiros livros de Andara reu- um desses livros.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 39


6 novo almanaque armorial
Carlos Newton Júnior
cnewtonjr@gmail.com

O velho
do charuto

E
m 1977, morando em Natal, cursei a 5ª série – Luís. E você?
ginasial no Colégio Salesiano, na velha Ribei- – Carlos.
ra. Para voltar pra casa, em Lagoa Nova, eu – Muito prazer, Carlos. É aluno do Salesia-
pegava o ônibus na antiga rodoviária, quase no, não é? Estou vendo pela farda.
em frente ao colégio. – Sou sim, senhor.
Um dia, por puro espírito de aventura, re- – Gosta de ler?
solvi pegar o ônibus mais acima, o que me – Gosto.
possibilitaria explorar um pouco do entorno – Gosta de ler o quê?
do colégio e consequentemente da cidade. – Histórias em quadrinhos. Faço coleção de
Foi então que comecei a subir a íngreme la- Tex e Ken Parker.
deira da Av. Junqueira Aires, em direção ao – Sei... E livro? Gosta de ler livro?
centro. O peso da minha mochila e o sol for- – Gosto, mas só leio quando a professora
te do meio-dia logo arrefeceram meu ímpe- manda.
to exploratório, fazendo com que eu parasse – E está lendo algum?
para avaliar melhor a situação. Parei bem em – Estou.
frente a um grande casarão, em estilo cha- – Qual?
lé, bastante elevado em relação à calçada, – Menino de Asas. O senhor já leu?
principalmente para quem o via do portão – Já. Sou muito amigo do autor, Homero
de acesso, devido ao declive da ladeira. Qua- Homem.
tro janelas sacadas davam para a rua, todas – É esse mesmo!
guarnecidas por gradis de ferro. Era uma Ele riu e depois deu uma tragada. Uma
construção imponente, e o portão abria-se senhora me trouxe, numa bandeja, o copo
para uma escada no recuo lateral. Olhando d’água. Enquanto eu ia bebendo, aos poucos,
para cima, vi, no vão de uma das janelas da dei seguimento à conversa:
fachada principal, um velho que mirava o Rio – O que o senhor está fumando? É cigarro?
Potengi, vestido de pijama e soltando fumaça – Não, é charuto.
pela boca. Como eu estivesse com muita sede, – E é bom?
perdi a habitual timidez e falei: – Ô...
– O senhor poderia me arranjar um copo – Posso experimentar?
d’água? – Quantos anos você tem?
– Claro, meu filho! – Ele respondeu, viran- – Dez. Mas faço onze no mês que vem.
do-se para mim. E completou, gritando para – Então vamos fazer assim: daqui a sete
dentro da casa: – Ô Anália! Arranja aí um anos você volta aqui e eu lhe dou um. Com-
copo d’água para um menino! binado?
E de novo voltando-se para mim: – Combinado.
– Entre, suba a escada e espere ali no banco Terminando de beber, agradeci e me des-
que a sua água já vem. pedi do simpático senhor. Quando fui saindo,
Enquanto eu subia, ele passou da janela ele ainda me disse:
em que estava para uma que se abria para – Não se esqueça, hem? Sete anos!
o oitão, na evidente intenção de continuar a – Pode deixar, seu Luís!
nossa conversa. Quando saí da casa, de novo na calçada,
Falei, já sentado no banco de madeira que desisti da subida e voltei atrás, descendo a la-
ele havia indicado: deira em direção à rodoviária.
– Obrigado, meu senhor. Como o senhor Dois anos depois, morando em São
se chama? Paulo, e fazendo, na escola, um trabalho para c

40 | João Pessoa, janeiro de 2017 Correio das Artes – A UNIÃO


6 novo almanaque armorial
ilustração exclusiva de manuel dantas suassuna para a coluna novo almanaque armorial

c o “dia do folclore”, vi, numa revista


que a professora pegara na bibliote-
ca, uma foto do velho, segurando o
seu charuto. Parecia, na foto, mais
feio do que pessoalmente. Mas era
o seu Luís, não havia a menor dú-
vida. O homem que me prometera
um charuto!
Não vacilei. Levantei a mão e
disse, em alto e bom som:
– Professora, eu conheço esse
velho, aí da foto!
– Esse “velho”, Carlinhos, é Luís
da Câmara Cascudo, o maior fol-
clorista brasileiro! – respondeu a
professora.
– É nada! Pois então a senhora
me dê uma nota muito boa, nes-
te trabalho, porque eu o conheço
mesmo, conheço pessoalmente.
Era meu amigo, quando eu mora-
va em Natal.
Então, aumentando um pouco a
história, contei, para a professora,
os meus inúmeros encontros com
Luís da Câmara Cascudo, encon-
tros que me teriam rendido pelo
menos três lanches e um almoço. A
professora, encantada, passou a me
considerar quase um discípulo do
velho folclorista. Foi nota dez, não
teve outro jeito!
Aí, um dia, voltei ao velho casa-
rão da Av. Junqueira Aires. Mas o
tempo é mesmo cruel. Sem que eu
me desse conta, haviam se passa-
do não apenas sete, mas treze anos
desde o meu único encontro com
o escritor. Eu voltara a morar em
Natal, na condição de professor
da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Cascudo já havia
morrido, e a casa estava fechada.
Morrera em 1986, nove anos após um pequeno pacote envolvido por da do meu apartamento de solteiro,
o nosso encontro. Como o portão um saco plástico. Abrindo o paco- fumei o charuto, maravilhado com
estivesse aberto, subi a escada e te, encontrei, perfeitamente emba- a lua cheia e a misteriosa engrena-
entrei novamente no jardim. E por lado, um charuto! gem da máquina do mundo.
ali fiquei por algum tempo, lem- O que significaria aquilo? Será Os dois ou três inimigos que te-
brando-me da nossa conversa e da que o velho escritor, percebendo nho em Natal dirão que tudo isso
promessa que ele me fizera. De re- que eu não chegaria a tempo de que escrevi acima é a mais pura
pente, alguma coisa dentro de mim cumprir a minha promessa, en- mentira. Mas não me importo.
me levou para um canto de muro, terrara o charuto ali, para que Mesmo que fosse, o que é a men-
bem ao lado do banco onde eu me eu o encontrasse depois? Como tira para um escritor, se não uma
sentara quando menino, e onde ha- se explicaria, de outra maneira, verdade que jamais aconteceu? I
via uma espécie de jardineira, ago- aquele charuto, ali, enterrado? O
ra somente com areia e um pouco saco plástico, que o protegia, não
de lixo. Quase instintivamente, me deixava pensar que ele pode-
com um pé, comecei a escavar um ria ter sido perdido, caindo no
pouco naquele local, topando com chão por acaso. Carlos Newton Júnior é poeta,
um embrulho que se encontrava Fui para casa correndo, a um só ensaísta e professor da Universidade
enterrado, o que me levou a com- tempo excitado e emocionado. Na- Federal de Pernambuco.
quele mesmo dia, à noite, na varan- Mora em Recife (PE).
pletar o serviço com as mãos. Era

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2017 | 41


6 tramas visuais Lí v ia
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