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1 - CorreioJaneiro 2017
1 - CorreioJaneiro 2017
das
Janeiro 2017 – ANO LXVII Nº 11
Sérgio de
Castro
Pinto
O poeta do insólito tecido
das coisas cotidianas
6 editorial
O ano de Sérgio
Dois mil e dezessete é um poema “Camões/Lampião”,
ano especial na vida do poeta, A presença de traduzidos por Fred Ellison,
professor e jornalista Sérgio da Universidade do Texas,
de Castro Pinto, nascido na
Sérgio não se foram integrados à coletânea
capital da Paraíba há seten- restringe à vida Camões’ Feast, coordenada
ta anos, cinquenta dos quais por Regina Vater.
dedicados à poesia. Sérgio e literária, seja como Duas antologias brasileiras
seu séquito de leitores têm - Os cem melhores poetas brasi-
muito para comemorar. Afi-
autor, seja como leiros do século XX e Sincretis-
nal, não é todo dia que nasce o leitor assíduo e mo: a poesia da Geração de 60,
um poeta da sua estirpe. organizadas, respectivamen-
Sérgio é autor de livros atento que é. Tem te, por José Nêumanne Pinto
que ocupam lugar de des- e Pedro Lyra – acolhem poe-
taque nas melhores estan-
ainda larga folha de mas de Sérgio, reconhecendo
tes da poesia de língua serviços prestados, o autor paraibano como uma
portuguesa, a saber: Gestos das expressões superlativas
lúcidos, A ilha na ostra, Do- por exemplo, da poesia nacional.
micílio em trânsito, O cerco O Correio das Artes inte-
da memória, Zoo imaginário e
como educador e gra-se, por meio de repor-
A flor do gol. Sua bibliogra- jornalista. tagem especial, às home-
fia completa-se com obras nagens iniciais a Sérgio, na
de ensaio e compilações de certeza de que, tanto em
artigos, crônicas etc. suas páginas, como em ou-
A presença de Sérgio não Departamento de Letras da tros diferentes espaços, no-
se restringe à vida literária, Universidade Federal da Pa- vos tributos serão prestados
seja como autor, seja como o raíba – e jornalista. ao poeta do “tecido insólito
leitor assíduo e atento que é. Algumas de suas criações das coisas cotidianas”, na
Tem ainda larga folha de ser- constam de antologias poé- brilhante definição de Hil-
viços prestados, por exemplo, ticas publicadas em Portu- deberto Barbosa Filho.
como educador – é professor gal e Espanha. Nos Estados
de Literatura Brasileira no Unidos, fragmentos de seu O Editor
6 índice
, 4 @ 10 2 15 D 22
sérgio barreto piglia jesús
O poeta Sérgio de Castro João Batista de Brito O escritor, professor e O Correio das Artes
Pinto fala de vida e poesia. comenta uma entrevista crítico literário Wilson publica, com exclusividade,
O autor de Gestos lúcidos feita por ele, em 1998, Alves-Bezerra estreia no um poema inédito do poeta
chega em 2017 aos 70 com o jornalista e crítico Correio das Artes com um cubano Jesús J. Barquet,
anos de idade, 50 dos de cinema Antônio Barreto artigo sobre o legado do traduzido pela professora
quais dedicados à lírica. Neto (1938-2000). argentino Ricardo Piglia. Analice Pereira.
O Correio das Artes é um suplemento mensal do jornal A UNIÃO e não pode ser vendido separadamente.
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editor.correiodasartes@gmail.com Murillo Padilha Paulo Sérgio de
http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto Azevedo
6 especial
Poesia
como profissão de fé
SÉRGIO DE CASTRO PINTO - que em 2017
completa 50 anos de poesia e 70 de vida
- relembra os primeiros passos poéticos,
revela suas inclinações estéticas e
sociais e tem sua obra avaliada por
especialistas em literatura
Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com
A
té onde a memória alcança, não houve o primeiro poema. Mas
vários poemas, tal o afã, frenesi, ânsia para expressar suas emo-
ções. Todos eles, no entanto, nasceram com o pecado original
dos que se iniciam nas lides poéticas: “Os sentimentos correndo
desembestados à frente da linguagem, sem que esta conseguis-
se alcançá-los para evitar as efusões ingenuamente sentimen-
tais. Integrava aquele grupo de poetas para os quais a poesia
é uma dádiva dos deuses, querendo preservar a todo custo a
versão primeva e original do poema, pois, elaborá-lo, aparar as
suas arestas, significaria conspurcar aquilo que eu acreditava
ter de mais puro e visceral: a espontaneidade”. É o que conta
Sérgio de Castro Pinto, poeta paraibano que chega, neste 2017,
a 50 anos de poesia e 70 anos de vida. O Correio das Artes inicia,
nesta edição, as homenagens relacionadas à data tão significati-
va para as letras paraibanas.
E começamos antecipando que já está sendo providenciado o
lançamento de dois novos livros de Sérgio: Sérgio de Castro Pinto:
70 anos de vida e 50 de poesia (Ideia, João Pessoa) e Folha corrida (Es- c
c crituras, São Paulo). No primeiro, será reunida parte significativa do que es-
creveram sobre a sua poesia; no segundo, seleção de poemas desde o livro de
estreia, Gestos lúcidos (1967), até o mais recente, A flor do gol, lançado em 2014,
além de alguns poucos poemas inéditos. A capa de Folha corrida é do seu ami-
go artista plástico Flávio Tavares, que compartilhou parte significativa da tra-
jetória poética de Sérgio. Aliás, Flávio convive com Sérgio desde 1963, quando
o primeiro tinha 13 anos e o segundo talvez 16. “Nossas famílias são parentes
e posso dizer que meus irmãos mais velhos sempre foram amigos de Sérgio
e sua família”, explica o artista.
A relação entre Sérgio e Flávio Tavares também é lembrada pela escrito-
ra Ana Adelaide, em emocionado depoimento:
– Conheci Sérgio Castro Pinto na década de 70, quando Flávio Tava-
res fez a capa do seu livro A ilha na ostra (1970). Naquela época, eu era
ainda uma adolescente dispersa e com a cabeça nas nuvens. A poesia
para mim era um mistério indecifrável! Sem falar que, o Cine Muni-
cipal me chamava mais alto! Só fui conhecer mais a poesia de Sér-
gio anos mais tarde, mas mesmo assim, não muito. Sou uma leitora
relapsa, interessada na recepção e o que aquele jogo de palavras me
provoca. Gosto muito de poesia curta, afiada, precisa. E isso Sérgio
domina com suas memórias, seus zoos imaginários e seus arredores
de casa. Sua filha Cecília foi minha aluna na UFPB e seu genro Zeca
é um querido. Ele e sua amada Alda formam um belo casal poético!
E gosto de encontrá-lo nos eventos culturais e/ou literários da cidade!
Um motivo de alegria e orgulho poder ter convivido com ele pelos cor-
redores da UFPB, e trocar afetos e cotidianos. Parabéns Sérgio! Pela sua
vida-poesia! E como as suas girafas, de luas e que não giram nada bem...
te mando um beijo e um abraço! c
A crítica
cinematográfica ,
como vocação
Entrevista com simplicidade. No meu aprendiza-
do de adolescente, Moniz Vianna
Antônio Barreto Neto e Paulo Emílio eram fantasmas
inatingíveis, enquanto que Bar-
E
ntre os anos cinquenta e sessenta João Pessoa vi- reto Neto (embora sem, na épo-
venciou uma intensa e mais ou menos generaliza- ca, privar de sua amizade) era o
da “atmosfera cinematográfica”. Na verdade, era o gênio da terra que, eventualmen-
que acontecia no Brasil e no mundo, mas aqui, con- te, poderia ser tocado. Nunca
siderada a pequenez da cidade, houve caracterís- esqueço quando, final dos anos
ticas talvez particulares. Uma delas pode se dizer oitenta, pude pela primeira vez
que foi a enorme ênfase posta na atividade da crí- apertar a sua mão e ouvir dele
tica de cinema. Quem tem idade para tanto – meu que me lia e gostava. Hoje, com
caso - lembra da assiduidade e empenho com que orgulho, ocupo, na Academia
todo um grupo, relativamente numeroso, de críticos Paraibana de Cinema, a cadeira
pessoenses escrevia, diariamente, nos jornais locais, 18, da qual ele é o patrono.
sobre a sétima arte. A rigor pode se dizer que Bar-
O nome mais destacado nessa atividade foi sem reto Neto foi um desses intelec-
dúvida o de Antônio Barreto Neto (1938-2000), tuais em que a crítica foi emi-
não tanto por ter sido ele um dos mais assíduos nentemente vocacional. No seu
nos jornais da época, mas justamente porque foi, caso, tratou-se da confluência de
de longe, o mais sólido, hábil e fluente dos nossos duas grandes paixões: o cinema
críticos de cinema. e o jornalismo.
Pessoalmente, Barreto Neto foi, para mim, mais Perfeitamente a cavaleiro na
que um modelo, uma espécie de musa, que eu, a cer- teoria do cinema, não atrope-
ta distância respeitosa, admirava pelo talento e pela lava o texto com terminologia
técnica, sua linguagem sendo
Foto: arquivo a união
O maquinário
da alquimia
Johniere
Letícia Palmeira Alves Ribeiro, poeta
Especial para o Correio das Artes
O
Não é somente alquímico.
livro Fogueira de espelhos ou a alquimia do cais, do poeta Johniere Al- O leitor atento irá perceber tra-
ves Ribeiro, publicado pela Editora Penalux, em 2016, é pura quí- ços de vários autores em Fogueira
mica. Química e bom constrangimento que somente poemas raros de espelhos ou a alquimia do cais. Au-
podem trazer. O constrangimento de se encontrar em versos rápi- gusto dos Anjos e Fernando Pes-
dos que se atiram diante dos olhos do leitor. soa parecem ter tocado os versos
O poeta porta sua arma em cada capítulo de sua química. contidos no primeiro capítulo. Em
Johniere, movido pelo concreto dos irmãos Campos e de Caeta- seguida, Chico Buarque surge em
no, talvez, divide o livro em capítulos, traçando o caminho ao qual palavra, trazendo musicalidade e
a leitura poderá se abrir para o leitor. É uma forma de desenhar a vivências do autor que não diz res-
liberdade de escolha de quem visitar seus poemas. peito ao leitor. É coisa dele. Todo
No primeiro capítulo, toda concreta em textos que formam figu- poeta tem segredos.
ras, a obra se apresenta de forma moderna. E quando vi Riobaldo dividido,
Urbana e cotidiana. pensei: Diadorim teria rido.
O homem enfrenta elementos químicos misturados a questões Bonito como Johniere guia sua
humanas: amor, medo, fuga do enfrentamento de ser quem se é. obra. Ele inicia em formas e, ao
Obra orgânica que mais se assemelha a uma pessoa que trabalha, correr das páginas, retorna aos
paga contas e faz terapia para não se perder no caos. versos mínimos, assim intitulados
Digamos que o livro de Johniere seja um homem. na alquimia, como uma maneira
Ou mulher. de provar para si que o poeta ro-
Digamos que seja alguém que se vê em plena guerra entre sua mântico, carente de vida e amor,
forma biológica e sua alma que é espírito. resiste ao feroz enxofre que fere os
De repente, não se é somente corpo. Se é essência. E disso partem olhos, mas não dilacera o coração.
os poemas confessionais e existenciais de Alves Ribeiro. Johniere É um livro intenso.
que me perdoe. Alves Ribeiro é como eu o nomeio ao ler o que leio. É um livro que não se compade-
E acredito ser existencial cada verso que se apresenta em Foguei- ce de quem o lê.
ra de espelhos ou a alquimia do cais. Cito, para fins teóricos, o poema Destila, fermenta, apresenta,
“fogueira de espelhos”, no qual o poeta se encontra diante de di- em opções quase matemáticas, o
versas imagens de si e do mundo e, arquiteto de sua alquimia, se que se deve enxergar ou não em
dilui em centelhas e partes para que possa se compreender pessoa cada poema. A leitora que sou
inteira: gostou do que leu. E se me fosse
permitido aconselhamento, se eu
ontem pudesse dar um bom conselho ao
vasculhei poeta autor de Fogueira de espelhos
a fogueira de espelhos ou a alquimia do cais, eu diria: não
só para ver dedique seus poemas a ninguém.
minha imagem Deixe que fiquem livres. Deixe que
em brasas os versos encontrem seus alvos. Já
procurei que os escreveu, só você tem o di-
decorar minha reito de libertá-los.
fotografia Aos leitores, advirto que o autor
mas não pude Johniere Alves Ribeiro os aguarda,
encontrar-me em cada página, para um enfren-
sou tamento de espelhos. Nenhuma
centelhas de uma tarde face estará encoberta. A não ser a
calefação da mensagem face do poeta. Pois, como dito an-
por fibra ótica tes, todo poeta tem segredos.
É preciso tê-los.
Perceba como o poeta luta para decifrar sua verdadeira imagem A alquimia não permite que se
diante das diversas que ele mesmo cria, como toda pessoa o faz, ao desvende tudo que existe. I
longo dos dias. O poema “fogueira de espelhos” é a imagem exata
do encontro entre o mundo real e o mundo imaginário no qual Letícia Palmeira é escritora e
muitos habitam. O termo vasculhar presente nos versos traz a sen- professora de inglês. Publicou, entre
sação de se estar perdido dentro de si e dentro do espelho. outros livros, A obscena necessidade
Veja só! do verbo (Penalux, 2016).
Anotações ,
E
foto: divulgação
m Quarenta dias, de Maria quieta [...]”, “Nada disso lhe inte-
Valéria Rezende, o relato ressa, não é, Barbie?, você é oca e
que lemos é, substancial- indolor [...]”, “Vamos lá, boneca,
mente, o registro feito desculpe perturbar mais uma vez
pela protagonista-narra- seu sono eterno [...]”, “Pena que
dora no caderno (com a imagem ci- você não tem nada dentro dessa
tada da Barbie) que ela leva de João cabeça [...]”. Por outro lado, a pro-
Pessoa para Porto Alegre; registro tagonista-narradora Alice expressa
de suas lembranças (da “balbúr- valores que configuram uma ima-
dia de imagens, impressões, senti- gem positiva do ethos do Nordes-
mentos acumulados por quarenta te e da periferia. Ao se encontrar
dias”), dessas várias anotações em Porto Alegre, e sendo de “lá”
feitas nos panfletos publicitários, (do Nordeste), como às vezes in-
os quais Alice dispõe na mesa da dica, ao se deslocar pela periferia
cozinha do apartamento (ofertado da cidade tentando achar Cícero
pela filha) em que ela fica sozinha Araújo, desaparecido, filho de
em Porto Alegre. É aqui, no aparta- uma conterrânea sua, operário
mento, que a professora aposenta- da construção civil, Alice embar-
da faz o seu registro. As ilustrações ca numa aventura por recantos
que formam o pórtico de 16 dos ca- em que, quase sempre, se depa-
pítulos são bem produzidas (foram ra com pessoas solidárias, vários
compostas por Andrea Vilela de nordestinos, que têm compaixão
Almeida) e funcionais – antecipam dela, que se comovem com a nar-
informação semântica ao leitor, rativa que ela sempre usa do de-
apontando para o circuito da pro- saparecimento de Cícero. Narra-
tagonista, para as suas andanças tiva na qual enfatiza a desolação
pelas dobras da cidade. As falas da mãe paraibana que ela, Alice,
que Alice dirige à boneca Barbie, num ato, convenhamos, de des-
por sua vez, e amainando a voz um prendimento, também de muita
tanto tensa da protagonista-nar- solidariedade, decide, e de modo
radora, são lúdicas, humoradas, obstinado, ajudar. Nesta perspec-
e, em certos passos, lembram o tiva, há no livro uma espécie de
registro da literatura infantil (é ‘elogio da cordialidade’. I
bom lembrar que Valéria Rezende Maria Valéria Rinaldo de Fernandes
é autora premiada de obras Rezende, autora é escritor, crítico de literatura e
infantis), como nestes exemplos: de Quarenta dias professor da Universidade Federal da
“‘Bonjour’, mudinha, continue Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).
O escritor argentino
Ricardo Piglia faleceu
no dia 6 de janeiro deste
ano, em Buenos Aires,
onde nasceu
O ano da morte
de Ricardo Piglia
O
O escritor argentino Ricardo Pi- De toda forma, Piglia morre dei-
glia (1940-2017) acaba de morrer, ví- xando uma obra coesa: são roman-
tima de uma doença degenerativa, ces, contos e ensaios sobre literatura,
que fisicamente, nos últimos anos, escritura e leitura. Os diários funcio-
dificultou mais e mais sua condição nam como uma espécie de fecho (ou
física, mas o manteve lúcido. Ter abertura) à sua produção ao oferece-
podido conservar incólume, até os rem chaves de leitura a seu processo
seus dias finais, o músculo da escri- criativo que seriam, sem dúvida, de
ta, permitiu a ele, auxiliado por um grande interesse para o leitor brasilei-
assistente e um computador adap- ro. Entretanto, permanecem inéditos
tado, avançar na trilogia Los dia- no Brasil, e parece não haver planos
rios de Emilio Renzi, compilação dos de publicação por parte de sua edi-
diários do escritor, verdadeiro con- tora brasileira. Tem-se visto ultima-
junto dos seus escritos de formação mente grande retração no mercado
desde a adolescência até o período editorial e propostas ousadas de edi-
atual. Os diários são atribuídos a ção têm sido cada vez mais escassas.
Renzi, personagem frequente em Em que pese a exceção dos diá-
suas narrativas, um eu cultivado ao rios, há um elemento exemplar no
longo da vida, cuja origem está no fenômeno Ricardo Piglia: o escritor
nome próprio de seus documentos: é da primeira geração de hispano-
Ricardo Emilio Piglia Renzi. Final- -americanos que, ao longo das úl-
mente, escritor e persona literária timas décadas, teve sua obra pau-
trocam de posição: nos diários, o fu- latinamente publicada também
turo escritor é Emilio Renzi, não o no Brasil. Trata-se de um fato que
alquebrado Ricardo Piglia. Os dois – como o próprio Piglia acreditava –
primeiros livros já foram lançados, é cheio de consequências para uma
mas a morte mudou os rumos do literatura nacional, ao abri-la ao
terceiro, cuja preparação já está diálogo com literaturas próximas e, c
bastante adiantada. assim, modifica-las a ambas.
N as engrenagens do escritor
inquieto, que em seus romances
buscava desmontar a máquina
da literatura policial, a da ficção
histórica ou a do romance de van-
guarda, operava um outro: o leitor
que também era professor de lite-
ratura. Docente de Letras na Uni-
versidad de Buenos Aires e logo
na Princeton University, Piglia, em
seus ensaios, demitia-se de estilo
professoral e assumia o lugar aten-
to do leitor de ofício. Em seu livro Ernesto Guevara de la Serna, o “Che”
Formas breves (2000) revisita temas de Piglia, inclusive, traz na capa Guevara (1928-1967), guerrilheiro,
escritor e médico argentino-cubano
capitais como as relações entre li- uma foto de Che no alto de uma
teratura e psicanálise e o funcio- árvore, no intervalo de sua ação
namento do conto breve. Neste guerrilheira, com um livro em
último caso, em suas “Teses sobre punho. Guevara é comparado,
o conto” e “Novas teses sobre o em sua atitude diante da leitura
conto”, dialoga com Edgar Allan e da escrita ao italiano Grams-
Poe, Horacio Quiroga e Julio Cor- ci – leitor contumaz e autor dos valer e interessar cada vez me-
tázar, contistas que discutiram a(s) Cadernos do cárcere – e aos auto- nos, num mundo saturado não
poética(s) do conto, para também res da geração beat, seus con- só de signos mas de discursos
ele dar sua contribuição a escrito- temporâneos. de fácil compreensão e conteúdo
res e leitores do gênero: “um conto Piglia diz que Gramsci é o assustador. Um ano, enfim, em
conta sempre duas histórias. (...) A oposto de Guevara: “para Gue- que insinuações do totalitarismo
arte do contista consiste em saber vara, mais que a construção de seguem surgindo em várias ins-
cifrar a história 2 nos interstícios um sujeito revolucionário, de um tâncias. O ano da morte de Ricar-
da história 1. Um relato visível es- sujeito coletivo no sentido que do Piglia é o ano do pesadelo da
conde um relato secreto, narrado isso tem para Gramsci, trata-se História, dois anos depois do ano
de um modo elíptico e fragmentá- de construir uma nova subjeti- em que os livros para colorir fo-
rio.” (pp. 89-90) vidade, um sujeito novo no sen- ram os best sellers do mercado na-
Em O último leitor (2006), con- tido literal, e de apresentar-se cional. Valer-nos das obras de Ri-
siderado por Piglia como “o mais ele mesmo como exemplo dessa cardo Piglia e Emilio Renzi pode
pessoal e íntimo que já escreveu”, construção”. (p. 104). Já Kerouak nos oferecer elementos para nos
o autor faz um conjunto de ensaios e os demais beats encarnariam perguntarmos sobre alguma das
para perguntar-se o que é um lei- parte do ideal do Che: “É preciso questões essenciais: que tipo de
tor: o leitor literário, o leitor perso- virar escritor fora do circuito da leitores haveremos de ter no Bra-
nagem, o leitor ideal (o tradutor, literatura. Só os livros e a vida. Ir sil que se está construindo diante
que é aquele que registra sua lei- até a vida (com livros na mochi- de nossos olhares atônitos? I
tura). Além desta tipologia, chega la) e voltar para escrever (caso se
a configurações surpreendentes, consiga voltar). Guevara está em
Kafka como leitor conquistador: busca da experiência pura e vai
“Será que é verdade que é possível atrás da literatura, mas encontra Wilson Alves-Bezerra é escritor,
tradutor, crítico literário e
cativar uma moça por intermédio a política e a guerra.” (p. 109) professor de Literatura da
da escrita?” (p. 38), pergunta-se O ano da morte de Ricardo Universidade Federal de São
o checo, em carta, ao amigo Max Piglia é o da grande retração Carlos (UFSCar). É autor, entre
Brod, pouco antes de conhecer sua no mercado das letras brasilei- outros livros, de Reverberações
da fronteira em Horacio Quiroga
futura leitora Felice. ro, não fosse assim, estariam já (ensaio, 2008), Histórias zoófilas e
O mais instigante ensaio do saindo por aqui os seus diários outras atrocidades (contos, 2013) e
livro é, sem dúvida, “Ernesto de escritor, gênero que com ele, Vertigens (poemas em prosa, 2015,
Guevara, rastros de leitura”, no aprendemos, pode ser tão ins- Prêmio Jabuti na categoria Poesia –
Escolha do Leitor). Traduziu autores
qual reconstrói a vida do revo- tigante quanto a literatura poli- latino-americanos como Horacio
lucionário argentino como lei- cial. É também o ano em que as Quiroga e Luis Gusmán. Mora em
tor; a edição brasileira do livro máquinas narrativas parecem São Carlos (SP).
Flávio Castro
a arte de formar poesia
estirado no beco.
O corpo da poesia não
é frágil nem fácil para
este poeta que preza as
filigranas de cada con-
soante, de cada vogal, de
cada fonema. E de cada
imagem: oferenda de um
devoto a seus múltiplos
deuses sígnicos.
Em consonância com c
c a afiada prática da mais con- que criam uma ligação pictó- ragir com a língua(gem) sub-
densada poesia, Flávio Castro rica entre letras, sílabas, su- traída. Com isto o poeta vale-
é poeta de ardis, armadilhas e fixos, prefixos, radicais, etc., -se da decantada mais valia
artemísias. Sua poesia aguça, – e o significado que se abre da linguagem: less is more – na
açula, isca, embeleza e é um de um link para outros links: feliz expressão de Mies van
antídoto à pasmaceira domi- labiríntico jogo mallarmaico- der Rohe. Flávio Castro filtra
nante na cena da nossa poesia -cortázar-borgeano. Cito um a forma até seu grau minima-
hoje. exemplo, colhido ao acaso: lista. O leitor segue nesta via
O “livrorrio” de Flávio Cas- de mão única, inicialmente,
tro dialoga com as conquistas novOUTrOutoNOvo colhendo vocábulos diciona-
da linguagem de Mallarmé a rizados, mas, depois, percebe-
Haroldo de Campos, passando A altercação entre maiúscu- -se recolhendo o inusitado dos
por Cummings e Joyce, entre las e minúsculas materializa, neologismos. O gozo do make
outros. Este leque dimensio- mais que iconiza, o ciclo de it new, das formas feitas, e do
na o fino paideuma deste poe- nova ordem/renovação/mu- in progress, das formas por-
ta desassossegado e inquieto dança/alteração do outono, -fazer, toma conta da leitura.
que sabe, com Octavio Paz: “a em admirável síntese verbi- Melhor dizer: da co-leitura.
atividade poética é revolucio- vocovisual. O poema faz-se Em “côdea”, a parte final
nária por natureza; a poesia ver, ler, ouvir e saber no ci- do livro, o poema ‘ravinas’,
revela este mundo, cria outro”. clo das estações que chegam constituído por sete partes,
Cônscio de que aquilo que ela e passam: novo no ovo; ovo desenha o final de uma via,
inventa é a forma de usar a do novo. E retornam no ano de uma viagem, de uma lin-
forma para além das fôrmas seguinte. Além disto a dupla guagem – linguaviagem, para
cristalizadas pelos manuais expressão “novo outono” ver- citar uma obra de Augusto de
poéticos – e pelo desempenho sus “outono novo” espelha o Campos – que se fecha e se
editorial do mercado. outro que habita o mesmo; o abre. Isto porque a poesia de
for mar possui quatro par- diverso que compõe o igual. Flávio Castro é um presentar
tes. Na primeira, que dá títu- Ou seja, destaca, entre outras no sentido heideggeriano do
lo ao volume, subintitulada possibilidades, o OUT (fora) termo: um continuum entre ve-
“épico da linguagem”, não há e o NO (não) de um processo lado e desvelado. Iluminação
exposição de ideias, ações, que incorpora o que não faz pós-velamento. Oroboro co-
narração, contexto histórico parte, o que não está inserido. mendo Fênix.
determinado, personagens. O E, ao encampá-los, insere a lei O percurso épico de for mar
épico dá-se na transmutação do eterno retorno nietzsche- soma-se aos de Audito e de
da linguagem que processa niano – que adveio ao poeta Inaudito encerrando a trilogia
um elo-de-elos quase ao léu, na contemplação dos elemen- com o “fátuofogorgíaco” de
não fosse a argamassa da vi- tos naturais. E ainda a retom- Nékuia. E lançando passos,
sualidade e da reverberação bée segundo Sarduy, que relê braços, laços – da linguagem –
sonora. Formar sequências. Nietzsche na visada transfor- a Ulisses-Homero.
Formar sentidos. Formar for- macional do barroco. Enfim: Na odisseia da poesia que se
ma. Formar ar. Formar mar. vida. Linguagem. Lingua- sabe, que faz-se, que forma-se,
Reverberar ondas de signifi- gens. for mar é, com todos os louvo-
cações. Desta forma, as estro- A terceira parte, “braille”, res, irretocável. Belo presente
fes (às quais o poeta prefere radicaliza um procedimento para este ano novo.E
chamar “blocos-estéticos”), que Edgard Allan Poe, Décio
duas em cada página, evo- Pignatari e Luiz Ângelo Pinto
luem paulatinamente para, ao constataram através da obser-
fim do poema, fundirem-se vação do código Morse. To-
numa só mancha gráfica. Ou davia, não desenvolveram: a
num só “espaço-tempo dia- desvocalização das palavras.
gramado”. Flávio Castro dá o pulo do
A segunda parte, “ideogra- gato e leva a percepção teórica
mas”, processa neologismos à prática poética. O resultado Amador Ribeiro Neto é poeta,
crítico de literatura e professor da
de uma só palavra num mix são poemas que se oferecem Universidade Federal da Paraíba.
de maiúsculas e minúsculas com brincante prazer de inte- Mora em João Pessoa (PB).
Jesús J. Ba
Havana, mon amour
(Canto único, 2012)
Volta
E eis -nos tornados às antigas águas
de que fomos feitos.
Alberto Jales
ilustração: tônio
Mercedes Cavalcanti
Verbo Amar
ilustração: pepita
Dias
de abandono
Ana Adelaide Peixoto
Especial para o Correio das Artes
A Amazônia vista
G: Incógnita
1 O símbolo da maçonaria?
E
O homem invocado pelo poe-
ntremos no Labiantro, onde Vicente Franz Cecim de- ta narrador é este, um ser ver-
monstra que a arte poética vive de seu próprio mistério. sado na arte de dialogar, impul-
Na penumbra de Andara em busca do hgomem (com- sionado pela curiosidade dentro
pleto) o símbolo se oferece em silêncio para ser visto por da delimitação cronotópica do
quem tenha abertos os olhos do coração. Senão, para texto. Na penumbra de Andara,
que o poeta estaria pregando “quando fala na língua ele deverá orientar-se no espa-
que o outro não entende?” Não seria razoável o propos- ço, procurando enxergar/ouvir/
to diálogo contigo n’O escuro da semente perder-se num sentir as figuras inertes ou em
monólogo. Mikhail Bakhtin, em Questões de Literatura e movimento, silenciosas ou so-
Estética – A Teoria do Romance, lembra que para o grego noras, coloridas ou carentes de
da época clássica toda a existência era visível e audí- cor para não se perder como um
vel. “Por princípio (de fato) ele desconhece a existência simples “omem”:
invisível e muda... Platão, por exemplo, compreendia a
reflexão como uma conversa do homem consigo mesmo “que teu oglhar veja as cores
(Teeteto, O Sofista). A ideia de meditação silenciosa apa- invisíveis no Livro”, determina o
receu pela primeira vez com o misticismo (suas razões poeta narrador.
são orientais). Ade-
mais, a reflexão como O oglhar proposto por Cecim
Fotos: divulgação
O velho
do charuto
E
m 1977, morando em Natal, cursei a 5ª série – Luís. E você?
ginasial no Colégio Salesiano, na velha Ribei- – Carlos.
ra. Para voltar pra casa, em Lagoa Nova, eu – Muito prazer, Carlos. É aluno do Salesia-
pegava o ônibus na antiga rodoviária, quase no, não é? Estou vendo pela farda.
em frente ao colégio. – Sou sim, senhor.
Um dia, por puro espírito de aventura, re- – Gosta de ler?
solvi pegar o ônibus mais acima, o que me – Gosto.
possibilitaria explorar um pouco do entorno – Gosta de ler o quê?
do colégio e consequentemente da cidade. – Histórias em quadrinhos. Faço coleção de
Foi então que comecei a subir a íngreme la- Tex e Ken Parker.
deira da Av. Junqueira Aires, em direção ao – Sei... E livro? Gosta de ler livro?
centro. O peso da minha mochila e o sol for- – Gosto, mas só leio quando a professora
te do meio-dia logo arrefeceram meu ímpe- manda.
to exploratório, fazendo com que eu parasse – E está lendo algum?
para avaliar melhor a situação. Parei bem em – Estou.
frente a um grande casarão, em estilo cha- – Qual?
lé, bastante elevado em relação à calçada, – Menino de Asas. O senhor já leu?
principalmente para quem o via do portão – Já. Sou muito amigo do autor, Homero
de acesso, devido ao declive da ladeira. Qua- Homem.
tro janelas sacadas davam para a rua, todas – É esse mesmo!
guarnecidas por gradis de ferro. Era uma Ele riu e depois deu uma tragada. Uma
construção imponente, e o portão abria-se senhora me trouxe, numa bandeja, o copo
para uma escada no recuo lateral. Olhando d’água. Enquanto eu ia bebendo, aos poucos,
para cima, vi, no vão de uma das janelas da dei seguimento à conversa:
fachada principal, um velho que mirava o Rio – O que o senhor está fumando? É cigarro?
Potengi, vestido de pijama e soltando fumaça – Não, é charuto.
pela boca. Como eu estivesse com muita sede, – E é bom?
perdi a habitual timidez e falei: – Ô...
– O senhor poderia me arranjar um copo – Posso experimentar?
d’água? – Quantos anos você tem?
– Claro, meu filho! – Ele respondeu, viran- – Dez. Mas faço onze no mês que vem.
do-se para mim. E completou, gritando para – Então vamos fazer assim: daqui a sete
dentro da casa: – Ô Anália! Arranja aí um anos você volta aqui e eu lhe dou um. Com-
copo d’água para um menino! binado?
E de novo voltando-se para mim: – Combinado.
– Entre, suba a escada e espere ali no banco Terminando de beber, agradeci e me des-
que a sua água já vem. pedi do simpático senhor. Quando fui saindo,
Enquanto eu subia, ele passou da janela ele ainda me disse:
em que estava para uma que se abria para – Não se esqueça, hem? Sete anos!
o oitão, na evidente intenção de continuar a – Pode deixar, seu Luís!
nossa conversa. Quando saí da casa, de novo na calçada,
Falei, já sentado no banco de madeira que desisti da subida e voltei atrás, descendo a la-
ele havia indicado: deira em direção à rodoviária.
– Obrigado, meu senhor. Como o senhor Dois anos depois, morando em São
se chama? Paulo, e fazendo, na escola, um trabalho para c