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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Bruna Giacomeli Maia

CRÔNICAS DE CARLOS HEITOR CONY:


a intertextualidade como estratégia argumentativa

São Paulo
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Bruna Giacomeli Maia

CRÔNICAS DE CARLOS HEITOR CONY:


a intertextualidade como estratégia argumentativa

Monografia apresentada como exigência parcial


para a obtenção de título de especialista
em língua portuguesa na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Rosa Ferreira
Dias.

São Paulo
2011
Nome: Bruna Giacomeli Maia.
Título: Crônicas de Carlos Heitor Cony: a intertextualidade como estratégia argumentativa

Monografia apresentada como exigência parcial


para a obtenção de título de especialista
em língua portuguesa na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.

Aprovado em:

Prof.ª Dr.ª Ana Rosa Ferreira Dias Instituição: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo

Julgamento: __________________________ Assinatura: _________________________


Aos meus pais, pelo constante apoio em minha vida acadêmica e, nomeadamente, ao
longo do período de realização deste trabalho.

Ao meu noivo, por acreditar em minha dedicação aos estudos, por sua presença,
compreensão e carinho.
AGRADECIMENTOS

A Deus, que permitiu que mais uma etapa fosse alcançada em minha vida.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela oportunidade de realização do


curso de especialização em língua portuguesa.

A todos os professores da Universidade, que possibilitaram o enriquecimento intelectual


por meio de vasto conhecimento teórico e dinamicidade das aulas e, em especial, à Prof.ª
Dr.ª Ana Rosa Ferreira Dias por seu incentivo, por suas orientações e por suas
intervenções pontuais a esse trabalho.

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização desse trabalho.


“Quando um cara tem coragem de gritar que está sofrendo, fatalmente

encontra alguém que o compreende e, algumas vezes, o ame. Isso não dá

apenas samba. Dá crônica também”.

Carlos Heitor Cony


RESUMO

MAIA, Bruna Giacomeli. Crônicas de Carlos Heitor Cony: a intertextualidade como


estratégia argumentativa. 2011. p. 99 Monografia (especialização em língua portuguesa)
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011

As crônicas caracterizam-se por sua linguagem próxima ao universo social do interlocutor,


pela brevidade dos fatos corriqueiros narrados a partir do olhar do cronista e pela
liberdade estilística com a qual o autor se expressa. O presente estudo tece o panorama
histórico dos gêneros literários e tem como foco a crônica em sua configuração
argumentativa para delinear pontos de vista do autor e suscitar reflexões acerca da
temática cotidiana abordada. A partir do problema de pesquisa – Qual a proficuidade da
intertextualidade inserida nas crônicas literárias de Carlos Heitor Cony como estratégia
para o convencimento e a persuasão do leitor proficiente? – a metodologia estipulada
para contestar tal indagação está baseada em vasta pesquisa bibliográfica comparada,
estudo sobre textos e percurso escritor de Carlos Heitor Cony e análise minuciosa de
crônicas selecionadas. A proposta desse trabalho é relacionar recursos textuais utilizados
nas crônicas literárias, com relevo à intertextualidade atrelada à argumentatividade.
Ademais, o estudo não se limita à fundamentação teórico-conceitual, uma vez que
estabelece paralelo entre as proposições teóricas e a análise de crônicas selecionadas de
Carlos Heitor Cony. Dessa forma, é possível compreender o quanto são evidentes marcas
de oralidade, recursos textuais e estilísticos com respaldo nos conhecimentos, na vida e
na obra de Cony, bem como são aparentes intertextos partilhados socialmente para
objetivar a cumplicidade dos leitores proficientes.

Palavras-chave: Crônica literária. Carlos Heitor Cony. Argumentação. Intertextualidade


ABSTRACT

MAIA, Bruna Giacomeli. Carlos Heitor Cony’s chronicles: the intertextuality as


argumentative strategy. 2011. p. 99 Monograph (specialization in Portuguese language)
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011

Chronicles are characterized for their language close to the social universe of the reader,
for the brevity of the day-by-day facts narrated from the writer’s point of view and the style
freedom with which the author expresses himself. This study shows the historical
background of literary genders and focuses chronicles on their argumentative aspect to
define the author’s points of view and raise reflexions about the regarded day-by-day
theme. From the research’s proposition – What’s the efficiency of the intertextuality in
Carlos Heitor Cony’s literary chronicles as a strategy to convince and argue with the
proficient reader? – the method used to answer this question is based in large compared
bibliographic research, studies about texts and Carlos Heitor Cony’s path as a writer and
detailed analysis of selected chronicles. The proposal of this study is to connect text
resources used in literary chronicles with emphasis in the intertextuality connect to
argumentativity. Moreover, this study isn’t restricted to theory because it establishes
comparison among theoric propositions and analysis of Carlos Heitor Cony’s selected
chronicles. Therefore, it’s possible to understand how obvious are the traces of orality, text
resources and stylistics based on Carlos Heitor Cony’s knowledge, life and work. It’s also
possible to understand how obvious are the intertexts socially shared to aim the proficient
readers’ complicity.

Key-words: Literary chronicles. Carlos Heitor Cony. Argument. Intertextuality.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................10

I – APRESENTAÇÃO DO CORPUS ................................................................................12

1. CARLOS HEITOR CONY – VIDA E OBRAS DO NARRADOR-REPÓRTER

...........................................................................................................................................13

II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ..................................................................................18

1. GÊNEROS LITERÁRIOS ..............................................................................................18

1.1 Conceitos, panorama histórico e classificações .....................................................18

2. O GÊNERO CRÔNICA ..................................................................................................27

2.1 O panorama histórico: a origem e a evolução da crônica .......................................27

2.2 Definições e características das crônicas ...............................................................32

2.3 Recursos utilizados nas crônicas ............................................................................36

2.3.1 Aspectos gerais ............................................................................................36

2.3.2 A argumentatividade: convencer e persuadir o leitor .....................................38

2.3.3 Intertextualidade: entrelaçamento de textos ..................................................44

2.3.4. Tipos de crônicas ..........................................................................................53

3. LEITURA DE CRÔNICAS: A TRÍADE ESCRITOR-LEITOR-TEXTO ...........................55

4. CARLOS HEITOR CONY ..............................................................................................60

4.1 Crônicas – o estilo literário de Cony .......................................................................60

III – ANÁLISE DO CORPUS .............................................................................................64

1. ANÁLISE DE CRÔNICAS – RELAÇÃO INTERTEXTUALIDADE E

ARGUMENTATIVIDADE ...................................................................................................64

CONCLUSÃO ....................................................................................................................81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................82

ANEXOS ............................................................................................................................85
INTRODUÇÃO

A crônica, dentre os demais gêneros literários, configura privilegiada liberdade

para criação estética e argumentativa, além de constituir-se discursivamente como

texto relativo à expressividade pessoal atrelada a acontecimentos cotidianos e de

notória relevância social. Por favorecer a cumplicidade com o interlocutor e referir-se

a textos duradouros devido à temática, decidimo-nos por tratar das crônicas

literárias.

Optamos pelas crônicas de Carlos Heitor Cony graças à qualidade e à

proficiência escritora a ele associadas, à afinidade que temos com sua peculiaridade

para abordar fatos corriqueiros, ao paralelismo com nosso propósito de estudo –

relacionar intertextualidade e argumentatividade – e à sua história de vida da qual

emerge seu caminho como escritor.

Entremeada à tessitura argumentativa das crônicas, encontra-se a

intertextualidade como uma das possíveis estratégias constitutivas do texto.

Debruçaremos nossa análise a seis crônicas literárias de Carlos Heitor Cony

extraídas da obra Crônicas para ler na escola (2009), focadas no leitor proficiente, já

que se pressupõe que esse interlocutor possui maior repertório de conhecimentos

prévios para elaboração de esquemas mentais e compreensão global da

intertextualidade inserida nas crônicas literárias.

Desse modo, temos por objetivo, com esse estudo, averiguar a

predominância da intertextualidade nas crônicas literárias de Cony e a relevância

que tal recurso tem na formação argumentativa para efetiva compreensão do leitor

proficiente.

Assim, nosso trabalho será organizado em três grandes partes principais – a

apresentação do corpus, a fundamentação teórica e a análise do corpus. Na


10
primeira parte, situaremos brevemente o leitor sobre o que nosso estudo envolverá,

bem como traçaremos um panorama geral sobre a vida e a obra de Carlos Heitor

Cony, uma vez que analisaremos crônicas por ele escritas.

Em seguida, a fundamentação teórica, subdivida em quatro capítulos,

abordará no primeiro deles os conceitos e o panorama histórico dos gêneros

literários e as classificações que recebem; no segundo capítulo, trataremos

especificamente do gênero crônica, bem como sua origem e evolução histórica, os

conceitos e as características que as determinam, tendo como destaque alguns

recursos textuais a ela vinculados, entre eles a argumentatividade e a

intertextualidade e os tipos de crônicas. No terceiro capítulo, explicitaremos a leitura

de crônicas, em que há a tríade escritor-leitor-texto.

No último capítulo da fundamentação teórica abordaremos o estilo literário de

Carlos Heitor Cony, com ênfase na produção de crônicas.

Por fim, na análise do corpus utilizaremos a teoria anteriormente descrita para

avaliar as seis crônicas literárias de Carlos Heitor Cony a que nos propusemos no

início desse trabalho.

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CRÔNICAS DE CARLOS HEITOR CONY:
A intertextualidade como estratégia argumentativa

I – APRESENTAÇÃO DO CORPUS
A crônica, gênero textual característico pela informalidade da linguagem e

pelo resgate de temas cotidianos, possibilita a tessitura argumentativa e, dessa

forma, a proximidade com o leitor. Destacaremos em nosso trabalho a

intertextualidade como um dos recursos inseridos nas crônicas a fim de favorecer a

construção argumentativa e a cumplicidade com o interlocutor.

Assim, selecionamos para esse estudo seis crônicas literárias retiradas da

obra “Crônicas para ler na escola”, de Carlos Heitor Cony. São elas: “A bela e a

fera”, “A tecnologia e o grito de Eureca”, “Pranto para o homem que não sabia

chorar”, “Bandas & bandas”, “O Carnaval e o menino” e “A história mais bonita”.

Tivemos por critério de escolha o fato de que as crônicas literárias sobrevivem

ao tempo, perpassam diferentes épocas e não se referem a fatos jornalísticos

pontuais, já que remetem a situações cotidianas que favorecem a aderência do

leitor. Além disso, dentre os demais textos da obra, nessas crônicas há a

intertextualidade, foco de nossa pesquisa e notória diversidade temática.

Delimitamos em nosso trabalho a análise das crônicas de Carlos Heitor Cony

e para conhecermos melhor seu estilo literário, focaremos brevemente a seguir

aspectos relevantes de sua vida a partir de leituras realizadas dos Cadernos de

Literatura Brasileira – Carlos Heitor Cony do Instituto Moreira Salles, das obras

Carlos Heitor Cony: quase Cony de Cícero Sandroni e Escritores Brasileiros

Contemporâneos de Renard Perez presentes nas referências bibliográficas.

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1. CARLOS HEITOR CONY – VIDA E OBRAS DO NARRADOR-REPÓRTER

Carlos Heitor Cony, de acordo com informações extraídas dos Cadernos de

Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles (2001) e da obra Carlos Heitor Cony:

quase Cony, redigida por Cícero Sandroni (2003), nasceu em 14 de março de 1926

em Lins de Vasconcelos – bairro da cidade do Rio de Janeiro. Filho de Ernesto Cony

Filho e de Julieta de Moraes, era o terceiro entre os quatro irmãos. Aos quatro anos

de idade passou a morar em Niterói – RJ, local em que viveu por dois anos, pois se

ouvia que ali a vida era mais barata e o pai havia acabado de ficar desempregado.

A família de Cony acreditava que ele era mudo, porém aos cinco anos de

idade começou a pronunciar suas primeiras palavras em decorrência de um susto

que levou com o barulho de um hidroavião que fez um voo rasante na praia de

Icaraí, no Rio de Janeiro. Para evitar constangimentos devido à disfunção que o

fazia trocar consoantes, seus pais decidiram que o menino não frequentaria a

escola. Assim, aprendeu a ler e escrever em casa, com os pais. Tinha muitas trocas

fonéticas e era ironizado pelos colegas. Não frequentou escolas comuns até os

quinze anos de idade.

Com o anseio de tornar-se padre, ingressa no Seminário Arquidiocesano de

São José, em Rio Comprido – RJ em 1938.

Em 1941 é submetido a uma operação no freio da língua a fim de corrigir seu

problema de fala – não conseguia pronunciar a maioria dos ditongos - , o que ocorre

com êxito. Com exercícios fonológicos passou a se expressar melhor.

Já, em 1945, deixa o seminário e, no ano seguinte, passa a estudar letras

neo-latinas na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, atual

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, curso este que não chega a

terminar.

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Em 1947 Cony começa a trabalhar no Jornal do Brasil, cobrindo as férias de

seu pai. Ainda nesse ano tem sua primeira carteira de jornalista como redator da

Gazeta de Notícias, cobrindo a reabertura da Câmara do Distrito Federal. Dois anos

depois, ele casa-se com Maria Zélia Machado Velho, a primeira de suas seis uniões

conjugais, com quem tem duas filhas: Regina Celi e Maria Verônica.

Em 1952 ingressa oficialmente no jornalismo, com registro no Ministério do

Trabalho, como redator de programas musicais dedicados às óperas e concertos, na

Rádio Jornal do Brasil. Em 1956 após ter escrito “O ventre” concorre ao Prêmio

“Manuel Antônio de Almeida” de Romance, mas não é premiado devido ao caráter

negativista e à linguagem rude de sua obra. No ano seguinte, concorre com “A

verdade de cada dia” – romance que escreveu em apenas nove dias - e, no ano

posterior, com “Tijolo de segurança”. Cony recebe a premiação duas vezes

consecutivas.

Em 1958, o escritor tem seu romance “O ventre” publicado pela Editora

Civilização Brasileira e é contratado para entrega regular de obras de ficção,

procedimento que não era comum na época. No próximo ano escreve “Informação

ao crucificado”. Em 1960 separa-se da primeira mulher, passa a trabalhar no

conceituado Correio da Manhã; um ano depois, revezando com Octávio de Faria,

assina a coluna “Da arte de falar mal” – que recebe o título de um livro de crônicas

em 1963 com a reunião de seus artigos da coluna. No Correio da Manhã foi cronista,

redator e editor.

Em 1962, lança seu quinto romance, intitulado “Matéria de memória”. Passa

a escrever coluna no jornal Folha da Manhã, de São Paulo em 1963, revezando com

Cecília Meireles.

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Em meio à revolução de 64 lança o livro de crônicas “O ato e o fato”, o

romance “Antes, o verão” e um conto “Os sete pecados capitais”.

No ano de 65, Cony redige uma crônica atacando o Ato Institucional n.º 2, o

que traz por consequência desentendimentos entre a direção e a redação do jornal

Correio da Manhã e seu pedido de demissão. É convidado pela TV Rio para

escrever uma novela que vai ao ar entre março e abril daquele ano. Após 37

capítulos, devido à censura, foi substituído por Oduvaldo Viana e, foi preso no

mesmo ano por participar de uma manifestação em frente ao Hotel Glória no Rio de

Janeiro. Esta foi a primeira de seis prisões do escritor por motivos políticos.

Em 1966, participa da coletânea “64 D.C.” – título que escamoteava o assunto

principal: o Brasil após a revolução de 64 com o governo de Castello.

Em 1967, Cony lança seu oitavo romance, Pessach: a travessia. Vai a Cuba,

país em que reside por quase um ano, para ser júri do concurso promovido pela

Casa de las Américas. Seu romance “Matéria de memória” começa a ser adaptado

para o cinema, com o título “Um homem e a sua jaula” e tem o projeto concluído no

ano seguinte.

De volta ao Brasil, é preso novamente. A convite de Adolpho Bloch, passa a

trabalhar nas revistas do Grupo Manchete. Publica "Sobre todas as coisas", volume

de contos, obra que seria reeditada em 1978 com o título "Babilônia!, Babilônia!".

No dia 13 de dezembro, data da decretação do Ato Institucional n.º 5 é preso

pelo regime militar e fica detido quase um mês. Seu romance "Antes, o verão" é

adaptado para o cinema.

A convite das Edições de Ouro inicia um longo trabalho de adaptação de

clássicos da literatura internacional, em 1970. Em 1971 escreve seu nono romance,

"Pilatos".

15
Lança, em 1972, pela Bloch Editores, que passou a publicar seus textos de

não-ficção, "Quem matou Vargas?", biografia do ex-presidente do Brasil. No ano

seguinte nasce André Heitor, seu filho com Eleonora Ramos; falece D. Julieta, sua

mãe.

Cony tem “Pilatos” publicado em 1974 e afirma que jamais voltaria a escrever

outro romance. “O caso Lou”, livro-reportagem, é publicado em 1975. No próximo

ano dirige o documentário “JK, a voz da História”; casa-se com Beatriz Lazta, filha

de pai húngaro e mãe austríaca.

Em 1980, o escritor faz a cobertura para a revista Manchete da primeira visita

do papa João Paulo II ao Brasil. Um ano depois, lança novo livro-reportagem

intitulado “Nos passos de João de Deus”.

Ernesto, pai de Carlos Heitor Cony, falece em 1985. Já, em 1989, estreia a

novela de “Kananga do Japão” na Rede Manchete baseada em projeto de sua

autoria com Adolpho Bloch.

Em 1993 volta à imprensa diária – coluna “Rio” na Folha de S. Paulo – em

substituição a Otto Lara Resende, falecido no ano anterior. Em 1995 lança o décimo

romance, “Quase memória”, inspirado em lembranças do pai e dedicado a sua

cadela Mila que morrera pouco antes da publicação do livro.

Em 1996 começa a escrever aos sábados no caderno “Ilustrada” da Folha de

S. Paulo e também passa a integrar o Conselho Editorial. Nesse mesmo ano recebe

o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, por toda a sua obra.

“Quase memória” ganha dois prêmios Jabuti – Melhor Romance e Livro do Ano –

ficção. Publica o romance “O piano e a orquestra”, vencedor do Prêmio Nacional

Nestlé de Literatura.

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No ano seguinte, Cony lança o romance “A casa do poeta trágico”, premiado

com dois Jabutis. Recebe em Paris a comenda da Ordre dês Arts et des Lettres no

grau de Chevalier. Participa da série "O escritor por ele mesmo", do Instituto Moreira

Salles, apresentando-se nos centros culturais de São Paulo e Belo Horizonte.

Em 1999 escreve, por encomenda da Companhia das Letras, “Romance sem

palavras” e tem sua obra publicada. Apresenta-se no Instituto Moreira Salles, em

Poços de Caldas - MG, dentro da série "O escritor por ele mesmo". Também escreve

nesse ano “O harém das bananeiras”.

Em março de 2000 é eleito, com 25 dos 37 votos possíveis, para a cadeira

número 3 da Academia Brasileira de Letras; toma posse em maio. Em 2001 lança

seu décimo quarto romance intitulado “O indigitado” escrito por encomenda pela

Editora Objetiva, inaugurando com ele a coleção “Cinco dedos de prosa”, lançado

em 2002.

Em 2007 recuperou-se de uma cirurgia de implante da cabeça do fêmur.

Nessa época já falava na CBN, tinha coluna na BandNews, continuava escrevendo

na Folha de S. Paulo e já escrevia também na Folha Online.

Assim, Carlos Heitor Cony teve publicados livros de romances, crônicas,

contos, ensaios biográficos, jornalismo, cine-romance, infanto-juvenis, adaptações,

telenovela, roteiros para o cinema, documentários, prefácios e introduções, livros em

coautoria, em parcerias com outros autores, traduções no México, na França, em

Portugal e na Espanha. Além disso, teve obras adaptadas para o cinema, para o

teatro, livros e teses sobre sua vida e obras, entrevistas, dissertações, ensaios,

apresentações, artigos de jornais e revistas.

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II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1. GÊNEROS LITERÁRIOS
1.1 Conceitos, panorama histórico e classificações
A utilização do termo “gênero literário ou textual” corriqueiramente presente

nas unidades escolares seja no currículo, seja no planejamento ou nos dizeres de

educadores, tem se ampliado significativamente na última década. Para fazer

sentido aos aprendizes, é preciso proporcionar a eles contato com a diversidade de

gêneros que circulam socialmente.

Assim, é fundamental considerar a historicidade da nomenclatura “gênero

literário” e os conceitos que melhor a caracterizam. Primeiramente, vale ressaltar

que são muitas as definições existentes atreladas ao léxico “gênero” e, além disso,

os gêneros discursivos e textuais orais e escritos são marcados por imensa

heterogeneidade. Pautar-nos-emos, desse modo, a algumas definições para

avançarmos em nossos estudos.

Para Stalloni (2001), o vocábulo “gênero” (do latim genus, generis) traz a ideia

de origem. Até a Renascença a palavra foi utilizada com a designação de “raça”,

para depois tornar-se “gênero humano”. Existiu um desvio semântico lexical que

definiu “gênero” como objetos ou seres com características comuns entre si.

Alinhada a essa concepção, tem-se em literatura a seleção de obras ou textos

com as mesmas características, daí surgem os “gêneros literários”.

De acordo com o autor, alguns pressupostos são decorrentes da acepção dos

gêneros literários: a ideia de norma, de número e de hierarquia. A primeira ideia

estabelece a relação dos gêneros com a ordem – utilizada aqui de forma ambígua,

como o modo em que os textos estão organizados juntos e com a rigidez que supõe

seguir determinado gênero, com regras imperativas.

18
Já a ideia de número refere-se à pluralidade dos gêneros literários, isto é,

pela justaposição das obras é que há a categorização dos gêneros, que se

distinguem uns dos outros. E, por fim, a ideia de hierarquia em que há a

superioridade de algo em relação aos demais, como exemplo tem-se a relação

gênero – espécie – famílias ou classes – grupos ou células – unidades ou objetos,

etc.

A conceituação de gêneros é abrangente – como já mencionamos – e tem se

transformado historicamente ao longo dos anos. No presente estudo, utilizaremos a

definição que se apóia no aspecto “estrutural” da obra para inseri-la em determinado

“gênero”.

Segundo Soares (2007), os textos, ao longo da história, foram agrupados em

categorias ou gêneros de acordo com padrões normativos ou apenas descritivos.

Muitos teóricos valorizam o gênero por sua inflexibilidade, por sua “pureza” quanto à

estrutura e características primeiras; outros, por sua vez, privilegiam a liberdade

criadora, em que as obras misturam-se quanto aos gêneros e, portanto, tornam-se

enriquecedoras e interessantes em seu percurso literário.

Platão, entre aproximadamente os anos 428 a. C. a 347 a. C., conforme

menciona Soares (2007), traz as referências iniciais a respeito dos gêneros

literários, em que afirma que a comédia e a tragédia constroem-se por imitação, ao

passo que o ditirambo forma-se pela exposição do poeta e a epopeia pela

combinação da imitação e da exposição do autor.

Já Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C), antagonicamente a Platão, considera as

diferentes modalidades ou gêneros da poesia por enfatizar a distinção entre o

empírico e a realidade artística, preocupando-se em diferenciar os gêneros a partir

de seus conteúdos.

19
De acordo com Stalloni (2001), Aristóteles é o primeiro a debruçar-se sobre o

conceito de “gêneros” e tratá-lo de modo isolado com maior profundidade. Suas

fundamentações abordam que as “espécies”, ou seja, os textos em si inserem-se

numa mimese (imitação) – que poderíamos transpor para a ideia de “gênero”. Assim,

cada “espécie” diferencia-se das outras a depender das formas da imitação. Em

outras palavras, quando um texto esquematiza-se a partir de um modelo estrutural

semelhante a outro, então pertence à mesma categoria que ele, caso contrário,

enquadra-se em um gênero distinto.

Das reflexões de Aristóteles surge a tríade respaldada nos modos de

enunciação: a arte da imitação (teatro – comédia e tragédia), a arte da narrativa

(ditirambo, escrito em versos) e a arte mista (epopeia e outros gêneros narrativos).

Horácio (65 a. C. – 8 a. C) atribui pragmaticamente à literatura a função moral

e didática somada ao prazer e à educação. Para Soares (2007), Horácio apenas

considerava poeta aquele que obedecia às adequações do gênero literário (assunto,

ritmo, tom e metro).

No período medieval, Dante Alighieri classifica os gêneros literários em nobre

(epopeia e tragédia), médio (comédia) e humilde (elegia).

[Na Renascença] a teoria dos gêneros passa a constituir-se como


normas e preceitos a serem seguidos rigidamente, para que mais
perfeita fosse a imitação e mais valorizada fosse a obra. Soares
(2007:12)

No século XVII, os “modernos” posteriormente intitulados “barrocos”

pregavam a instituição de formas literárias inovadoras, já os “antigos” preconizavam

a estabilidade das regras greco-romanas.

Segundo Soares, em meados do século XVIII com o movimento pré-

romântico alemão defende-se a variabilidade dos gêneros, valorizando-se a

individualidade e a autonomia das obras, impedindo assim as classificações por

20
gêneros literários. Havia a rebeldia romântica contraposta ao pensamento clássico,

em que se defendia o hibridismo dos gêneros, uma vez que na realidade

concepções, emoções e sentimentos contrastantes misturam-se. Surgiram assim a

crônica-poema, a tragicomédia, o romance lírico, entre outros.

Para Victor Hugo (apud Stalloni 2001), existiam três gêneros textuais: a ode, a

epopeia e o drama – correspondentes às “três idades” da humanidade, isto é, os

tempos primitivos (líricos), os antigos (épicos) e os modernos (dramáticos).

De acordo com Soares (2007:15), [na segunda metade do século XIX]

Brunetière defende a ideia de que uma diferenciação e uma evolução dos gêneros

literários se dão historicamente, como nas espécies naturais.

Segundo o autor, após a origem e o desenvolvimento de cada gênero haveria

também o seu declínio para originar outro.

No século XX surgiram teorias a fim de explicar os gêneros literários, dentre

elas destacam-se algumas que selecionamos como o movimento formalista cujos

principais representantes são Tynianov e Tomachevski. Tais teóricos ressaltavam a

dinamicidade dos gêneros e função histórica a eles atrelada, porém limitava-se às

características dos gêneros que os tornava obra literária ou não.

Considerando as contribuições de Hamburger (apud Stalloni 2001), haveria

dois gêneros fundamentais – o ficcional ou mimético dividido em épico (ou narrativo)

e dramático – e o lírico (não-ficcional), como a poesia.

Genette (apud Stalloni 2001) aponta que além dos gêneros existem os

arquigêneros, nomenclatura que utiliza para referir-se às construções teóricas

restritas a uma época, que não se estende no tempo como algo ideal.

Conforme assinala Soares (2007:18-19), sobressaem-se também as

concepções de Staiger que considera que traços estilísticos líricos, épicos ou

21
dramáticos podem ou não estar presentes em um texto, independentemente do

gênero.

De acordo com o mencionado autor, Frye insere outro gênero (a ficção) nas

categorias literárias além daqueles já elencados – lírico, épico e dramático. O teórico

organizou o gênero ficção em quatro modalidades: o romanesco (romance), o

romance (novel), a forma confessional e a sátira menipeia ou anatomia.

Bakhtin (1953), por sua vez, expande a ideia de gêneros sob o enfoque

discursivo e, de tal modo, considera que existem gêneros primários (advindos de

conversas informais do cotidiano e, portanto, mais simples) que se transformam em

secundários (diálogo entre personagens de um discurso literário ou diálogo

assimétrico de uma entrevista – jornalística, radiofônica ou televisiva – e, portanto,

de maior complexidade). A constituição dos gêneros secundários não elimina os

primários, apenas torna-se diferente em alguns pontos e semelhantes em outros.

Costa (2009), nessa perspectiva, pondera que

(...) os gêneros ditam o que dizer e como dizer por suas coerções, já
que são formas relativamente estáveis de enunciado, tanto em
relação ao conteúdo temático-figurativo quanto à estrutura textual e
ao estilo. Além disso, circulam em novos espaços e em novos
suportes. (p.17)

Nota-se que a classificação trazida por Bakhtin reformula o conceito de

gênero, agregando às ideias anteriores a de “gêneros do discurso”, o que muda o

enfoque de análise do campo da Linguística para o da Pragmática.

Com a finalidade de integrar signo e utilizador, entendidos respectivamente

como a relação entre texto e leitor, surge a Pragmática, que abrange os atos de

linguagem a partir do contexto e o contato entre o enunciador e o público.

Todo gênero, segundo Bakhtin (1953), é definido por três dimensões

essenciais: os conteúdos dizíveis pelos gêneros, a estrutura ou forma específica dos

22
textos (narrativo, argumentativo, descritivo, explicativo ou conversacional) e as

configurações das unidades de linguagem (estilo).

Paralelamente a isso, o autor disserta que os gêneros são veiculados de

acordo com alguns parâmetros sociais: o lugar da interação (sociedade, instituição,

esfera cultural, tempo histórico), os lugares dos interlocutores ou enunciadores

(relações hierárquicas, relações interpessoais, relações de poder, entre outras) e as

finalidades da interação (intenção comunicativa).

Existem teóricos que, diferentemente de Bakhtin, abarcam o enfoque textual

dos gêneros e não os aspectos discursivos. Dentre os nomes mais significativos

voltados a tal estudo está Dolz (1993 apud Costa 2007).

Nesse enfoque está envolvido tanto o conceito de gênero quanto o de tipo

(formas básicas que determinam o texto – narrativo, argumentativo, descritivo,

explicativo, conversacional).

No enfoque das teorias do gênero textual, o autor amplia a discussão

considerando que

(...) os gêneros textuais – quaisquer que sejam as produções de


linguagem situada, oral ou escrita – são produtos histórico-sociais e,
portanto, existem diferentes tipos de gêneros textual de acordo com
os interesses e as condições de funcionamento das formações
sociais. (p.20)

A depender do autor, encontramos a ideia de “gênero” com terminologias

distintas, tais como “tipos”, “modos” ou “escritas”.

Outros tipos de classificação no tocante aos gêneros são as “formas simples”

que se transformam em eruditas, como as sagas que viram epopeias, por exemplo.

Além disso, há a “dominante” que pode ser definida como o elemento focal de

uma obra de arte (...). É ela que garante a coerência da estrutura. Jakobson (apud

Stalloni 2001:33)

23
De acordo com o autor, Jakobson aproxima-se da tríade aristotélica ao

distinguir as três funções da linguagem: a função referencial, a função emotiva e a

função conativa. A primeira está centrada na terceira pessoa e remete ao épico; a

segunda está vinculada à primeira pessoa e corresponde ao lírico, enquanto a última

função está centrada na segunda pessoa, no receptor e refere-se ao dramático.

Na perspectiva de Schaeffer (apud Stalloni 2001) a classificação dos gêneros

pode ser realizada de quatro modos distintos: por oposição entre a prosa e a poesia

(classificação que não considera os gêneros híbridos); por meio dos fatores

fonéticos, prosódicos e métricos; pelos traços estilísticos que resgatam a ideia dos

gêneros “elevados, médios ou baixos”; pelas regras técnicas que regem o teatro ou

a narrativa.

Para Stalloni (2001: 36),

a convenção [da classificação dos gêneros] será aquela que nos


levará a adotar como quadro metodológico a tripartição entre
dramático, épico, lírico. Não porque ela seja indiscutível (...), mas
porque ela foi amplamente difundida e fornece um quadro coerente
e quase universal a partir do qual podem ser feitos estudos mais
minuciosos sobre as formas literárias.

Dicotomicamente, conforme aponta o autor, a noção de gêneros literários

exacerbou-se ao considerar a existência de gêneros autônomos, pseudogêneros,

subgêneros, subsubgêneros, em detrimento das categorias mais amplas. Além

disso, tais classificações passavam por questionamentos em nome da liberdade de

escrita, uma vez que existia a ideia de que a categorização por gêneros limitava os

autores pela rigidez das estruturas.

O autor assinala que é uma árdua tarefa incluir em gêneros todas as criações

literárias que perpassam a história.

Assim, todas as denominações dos gêneros justificam-se pela época em que

circulam, são efêmeras e históricas.

24
Para ele, quando uma forma literária desenvolve-se e torna-se um “gênero”,

surgem ramificações; destas, aparecem novas divisões e assim por diante. Nessa

mesma lógica, após várias fragmentações categóricas, cada obra seria única, o que

certamente eliminaria a classificação dos gêneros.

De acordo com as concepções de Derrida (apud Stalloni 2001:179-80) sobre

a polifonia dos gêneros, tem-se a ideia de que

um texto não poderia pertencer a nenhum gênero. Todo texto


participa de um ou mais gêneros, sempre existe gênero nos
gêneros, mas essa participação jamais significa um título de
pertença.

Seguindo a perspectiva tipológico-conceitual enunciativo-discursiva, Adam

(apud Costa 2007) classifica as formações discursivas em algumas categorias -

religiosa, jornalística, política, literária e cotidiana – nas quais se agrupam os

gêneros textuais.

Já Dolz e Schneuwly, conforme retrata o autor, reúnem os gêneros de acordo

com as capacidades de linguagem dos indivíduos – argumentar, expor, relatar,

narrar, descrever ações ou instruir.

A partir dos preceitos definidos pela historicidade e pelas recentes teorias dos

gêneros, adotaremos em nosso estudo as contribuições trazidas por Adam, Dolz e

Scneuwly prioritariamente. Assim, fundamentados nesses teóricos, é possível inferir

que a crônica faz parte do discurso jornalístico e do literário e, na perspectiva das

capacidades de linguagem, relaciona-se às capacidades de argumentar, relatar e

narrar.

A fim de restringir-nos ao gênero crônica – gênero este sob o qual nos

debruçaremos nos capítulos posteriores – convém-nos reiterar que um mesmo

gênero literário pode situar-se em diferentes categorias, como vimos a partir de

apontamentos de Derrida.

25
Assim sendo, no capítulo de análise do corpus valer-nos-emos de tais

saberes, considerando que as crônicas selecionadas de Cony por serem literárias

pertencem predominantemente ao discurso literário embora também se categorizem,

em alguns aspectos, como jornalísticas e, envolvem as capacidades de linguagem

entorno do narrar, do argumentar e do relatar.

26
2. O GÊNERO CRÔNICA
2.1 O panorama histórico: a origem e a evolução da crônica
Pero Vaz de Caminha ao redigir a carta a D. Manuel a respeito da paisagem

brasileira inicia a estruturação do gênero crônica por meio de uma linguagem livre

dos padrões lusitanos, conforme define Sá (2008).

Segundo o autor, Caminha pode ser considerado o primeiro cronista – cuja

carta foi encontrada na Torre do Tombo em 1773 -, já que registra o circunstancial

na narrativa e afere suas próprias vivências aos fatos; dá origem, desta maneira, à

literatura brasileira propriamente dita.

Para Tufano (2005), a partir de Pero Vaz de Caminha já é possível notar que

o próprio fato em si não é o mais relevante para o cronista, mas o que ele pode

propiciar – reflexão, expressão, crítica social, tom humorístico de modo facilmente

compreensível.

Pautar-se no factual não implica necessariamente privar-se do ficcional. É

nesse sentido que a crônica assemelha-se ao conto e torna-se também literária além

de puramente jornalística.

Porém, antes do advento da imprensa, de acordo com Lage (2006), a

produção e o armazenamento das informações e dos conhecimentos pelos povos foi

aprimorando-se ao longo da história com o objetivo de efetivar a manutenção dos

mitos, ritos, leis e saberes vinculados às diversas áreas da vida cotidiana.

Na Idade Média a população recebia informações oficiais por meio de

decretos, proclamações, exortações e sermões das igrejas. Informações paralelas

que costumavam circular entre as pessoas eram denominados boatos, testemunhos,

contos de feitos notáveis, de eventos pitorescos, crônicas da vida cotidiana, muitas

delas tardaram décadas para serem expressas em cantigas e fábulas dos

trovadores.
27
O primeiro jornal surgiu em Bremen, na Alemanha, em 1609 e, nos anos

posteriores, expandiu-se para as localidades mais próximas. Imprimia-se em francês

e inglês para possibilitar a exportação.

Inicialmente os jornais noticiavam fatos relativos à acumulação de capital

mercantil. Mas a burguesia tinha que lutar em outras frentes e logo usou os jornais

na sua arrancada final sobre os palácios. Lage (2006:10)

Descontentes, o Estado e a Igreja contiveram tais notícias por meio da

censura. A mídia impressa perdeu suas forças e, nesta época, investia-se pouco na

impressão dos jornais; havia uma quantia limitada de pessoas que se dedicava à

redação das notícias e todo o material utilizado era provido com o auxílio dos

leitores.

Com a Revolução Industrial houve a queda da censura na maior parte da

Europa Ocidental na última metade do século XIX devido a três fatores

fundamentais: crescia o número de pessoas que sabia ler e, portanto, ampliava-se o

público dos jornais; com a mecanização a atividade jornalística tornou-se

empresarial; generalizam-se as técnicas de marketing no momento em que a

publicidade passa a custear grande parte da despesa editorial.

A eficácia publicitária trouxe a ampliação de tiragem dos exemplares e, por

consequência, aumentou a área de serviços – horóscopos, quadrinhos, folhetins

(que posteriormente deram origem às crônica – como veremos adiante), embora a

notícia fosse o principal gênero veiculado nos jornais, com linguagem e estrutura

lineares.

O primeiro cronista brasileiro de acordo com registros parece ter sido

Francisco Otaviano de Almeida Rosa, que escrevia na seção “Folhetim” no Jornal do

Comércio e no Correio Mercantil, no Rio, em 1852, conforme afere Fávero (2009).

28
No princípio dizia-se que folhetim era um artigo localizado no rodapé do jornal

e tratava de assuntos do dia como política, artes e literatura, por exemplo.

Os folhetinistas principais de renome nessa época eram José de Alencar,

Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Araripe Júnior, Raul Pompeia, entre

outros.

De acordo com Costa (2007), o folhetim, também denominado gazetilha e

folheto, surgiu na França em 1790 e, com temática distinta dos textos jornalísticos,

disseminou-se por todo o país e depois por outros. Esse gênero caracterizava-se por

ser episódico, narrativo, com diálogos melodramáticos breves e cativantes para o

público que aguardava a sequência que se desdobraria no próximo dia. Após a

criação do folhetim jornalístico, surgiram também folhetins radiofônicos

(radionovelas) e televisivos (telenovelas).

Paulo Barreto (1881-1921), com o pseudônimo João do Rio, tornou-se o

precursor da crônica mundana ao transformar o folhetim que retratava

acontecimentos diários em algo mais direcionado à contemporaneidade, com

enfoque e linguagem específicos.

O cronista não se reduzia ao registro formal dos fatos, tratava o real com

subjetividade, recriava-o a partir de seu olhar, aproximando-se do gênero conto

devido à característica ficcional; sendo assim, ambíguo.

A crônica foi praticada com maior intensidade nos jornais do Rio de Janeiro,

mas, segundo Sá (2008), não pode mais ser considerada um gênero exclusivamente

carioca, já que se espalhou por todo o Brasil. Só é “carioca” a vertente das crônicas

que se refere especificamente à antiga capital federal.

29
Segundo Soares (2007), as crônicas, no início da era cristã, eram

caracterizadas como uma série de acontecimentos cronologicamente organizados,

em que o cronista não atribuía valores interpretativos a elas.

O gênero crônica atinge seu ápice após o século XII, época em que passa a

existir a perspectiva individual de narrativa.

Originalmente a crônica ocupava quase meia página e tratava de vários

assuntos concomitantemente, depois passou a referir-se somente a uma temática,

de modo mais conciso.

(...) a crônica sempre tece a continuidade do gesto humano na tela do


tempo (...) trata-se de um relato em permanente relação com o
tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o
que fica do vivido – uma definição que se poderia aplicar igualmente
ao discurso da História, a que um dia ela deu lugar. Assim, a princípio
ela foi crônica histórica, como a medieval: uma narração de fatos
históricos segundo uma ordem cronológica. Arrigucci Jr. (1987:51)

De acordo com Soares (2007), as relações de fatos passam a denominar-se,

a partir do século XIV, cronicões. Posteriormente, no século XVI, o termo crônica é

substituído simplesmente por história. Do século XIX em diante, a crônica passa a

ser considerada como um gênero literário semelhante ao conto e ao poema, porém

com estrutura e características distintas.

Nos anos 30 o gênero crônica consolida-se no Brasil quando grandes

escritores do modernismo passam a produzir crônicas, como Vinicius de Moraes,

Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Alcântara Machado,

Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, entre outros.

Nesse período, a crônica servia para o escritor e para o interlocutor como um

espaço de reflexão e expressão acerca de temáticas que envolviam os padrões

culturais, políticos e sociais brasileiros.

30
A crônica permeia diversas épocas por tratar do cotidiano coletivo de modo

crítico e irônico.

(...) ela [a crônica] se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da


alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de
personalidades reais, de personalidades ficcionais... afastando-se
sempre da mera reprodução de fatos. E enquanto literatura, ela capta
poeticamente o instante, perenizando-o. Soares (2007:64)

Por tratar-se de um gênero específico com características ímpares e que

muitas vezes é produzido por encomenda para os jornais, nem sempre o tempo e a

criatividade são compatíveis.

Destarte, acerca da produção de crônicas, Moraes (1990) aponta que não

existe constância na inspiração ou na motivação para escrevê-las. Ainda que se

busquem artifícios, como ler crônicas anteriormente produzidas ou distrair-se e

depois retornar à atividade, há momentos em que não se consegue redigi-las. Por

isso, é adequado quando feitas “por encomenda” deixar algumas crônicas

produzidas previamente, o que nem sempre os cronistas têm tempo hábil a fazer.

Com o decorrer dos anos, as crônicas passaram por modificações inclusive

no modo de produzi-las. Em geral, hoje elas são mais curtas devido ao ritmo célere

da vida, os autores têm maior liberdade de expressão, a subjetividade é mais

acentuada e elementos ficcionais estão presentes em sua composição,

assemelhando-se aos contos. Contudo, a concretude não deixa de ser vastamente

utilizada nas crônicas, uma vez que estão essencialmente atreladas à realidade.

Atualmente, além das abordagens temáticas relativas às atividades culturais,

políticas, econômicas, de divulgação científica, desportivas, entre outras explícitas

nas crônicas, há também o noticiário social e mundano e, de acordo com a esfera

social que retrata, como indica Costa (2007), recebe o nome de crônica literária,

policial, esportiva, política, jornalística, entre outros.

31
2.2 Definições e características das crônicas

Ao recorrer à etimologia de “crônica” inferimos que, de acordo com Viaro

(2004), a palavra é originária do grego e remete a “tempo” (khrónos). Crônica

(khroniká) significa “anais (feitos de tempos em tempos)”.

Tufano (2005) aponta que a palavra “crônica”, segundo especialistas, surgiu

no século XIV e refere-se ao deus Cronos da mitologia grega que devora o que gera.

O autor infere que o sentido primeiro de crônica é o registro cronológico de

fatos históricos, o que é muito presente no século XV.

De acordo com Sá (2008), a crônica caracteriza-se por unir jornalismo e

literatura e possibilitar ao narrador-repórter sua veiculação a um público determinado

– aquele que lê o jornal em que a crônica é publicada – e dispor de uma certa

limitação – quanto à ideologia do veículo e à quantia restrita de laudas na página do

jornal.

Há, além do narrador-repórter, o cronista-poeta, que registra os fatos com

auxílio de recursos estilísticos, valendo-se do real e do imaginário.

Comumente a crônica é definida como um gênero híbrido, dotada da

subjetividade da literatura e da objetividade do jornalismo, como aborda Marcuschi

(2000).

Sá (2008:9-10) define a crônica, afirmando que

(...) embora não haja a densidade do conto, existe a liberdade do


cronista. (...) o artista que deseje cumprir sua função primordial de
antena do seu povo, (...) terá que explorar as potencialidades da
língua, buscando uma construção frasal que provoque significações
várias (mas não gratuitas ou ocasionais), descortinando para o
público uma paisagem até então obscurecida ou ignorada por
completo.

A crônica, em geral, não se remete à totalidade dos fatos e, sim a um recorte

da realidade.

32
Por tratar-se de um gênero inicialmente jornalístico, a crônica acompanha a

efemeridade e a transitoriedade do jornal e a rapidez com que os fatos ocorrem. O

diálogo entre o cronista e o leitor é marcado pela proximidade com a oralidade,

equilibrando o coloquial e o literário.

(...) Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse


instante brevíssimo que também faz parte da condição humana e
lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante
de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre
a complexidade das nossas dores e alegrias. Sá (2008:11)

Para Lage (2006), quanto à estrutura da notícia, pode-se implicar o relato de

uma série de fatos a partir do fato mais importante ou a partir daquele considerado

de maior destaque ou mais interessante e, de cada fato, em sua singularidade, a

partir do aspecto mais relevante. Deste modo os acontecimentos são expostos e,

não narrados, uma vez que se atribui à narrativa o épico, o que é estritamente

sequencial.

Cada notícia no jornal tem restrições quanto à seleção lexical no tocante ao

número de palavras – que comporão aquela coluna, naquele espaço predefinido – e

à escolha de palavras a fim de efetivar a comunicação.

No jornalismo, busca-se à proximidade com o leitor por meio da linguagem,

pelo uso de vocabulário e gramática apropriados ao público alvo e,

concomitantemente, aceitos como corretos.

Assim, para Lage (2006:24), normas de redação adicionais impedem o uso

estilístico (intencionalmente significativo) de notações como as vírgulas. (...)

suprimem pontos de exclamação, reticências etc.

A crônica, por sua vez, é um texto desenvolvido de forma livre e pessoal,

parte de acontecimentos atuais ou assuntos que permanentemente geram interesse

e busca exceder o que é racionalmente deduzido dos fatos.

33
A crônica permite, segundo Sá (2008), que o leitor crie empatia, encontre sua

própria história e seja “cúmplice” do narrador, por meio de metáforas com situações

universais e que o narrador-repórter ou prosador do cotidiano (que representa um

ser coletivo), por sua vez, produza uma narrativa curta marcada pela simultaneidade

do ato de escrever e de eliminar excessos – para ocupar o espaço adequado no

jornal, ser direta, sem muitas adjetivações, explorando a polissemia das palavras e o

silêncio do discurso.

Nos jornais e nas revistas, as crônicas têm um consumo imediato e, a partir

de seleções e agrupamentos em coletâneas para tornarem-se livros, há uma

dimensão maior: o prolongamento das reflexões.

Não são todos os assuntos que merecem uma crônica, uma vez que neste

gênero há a contemplação do acidental, também intitulado circunstancial ou

episódico para tornar-se mais duradouro e fortalecer os princípios literários que se

referem às ações de ensinar, comover e deleitar.

Assim, o enfoque dado à crônica é carregado por um lado tragicômico da

realidade, verossimilhança, com sutileza de palavras e criticidade.

Da mesma forma, porém, que não se pode “aprender São Paulo


numa só lição”, a liberdade também não se aprende em uma só
crônica, sendo necessário que o cronista continue prestando atenção
ao banal para fazer com que seus leitores alcancem o que está além
da banalidade. Sá (2008:47)

A função da crônica é retratar a notícia de modo profundo, reflexivo,

integrando o factual às pessoas envolvidas e aos leitores a fim de que a existência

humana seja mais gratificante e as notícias de vida e de morte possam coexistir.

Comparativamente, o compromisso do repórter jornalístico é com a verdade

ao passo que ao cronista o que vale é o compromisso com as contradições de seu

tempo.

34
Coutinho (1997:121), complementarmente às características já expostas da

crônica, menciona que

ela é um gênero em prosa, ao qual menos importa o assunto, em


geral efêmero, do qual as qualidades de estilo, a variedade, a finura e
argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem
importância, ou a crítica de pessoas.

O prosador do cotidiano redige fatos a seu modo, sob suas impressões e

visão de mundo, por isso diz-se que é um gênero mais livre.

Há certa ambiguidade em considerar a crônica como um “gênero menor”, por

um lado, devido à comparação com gêneros tidos como “maiores” como romances,

por exemplo e, assim categorizá-la em uma escala de menor importância, como

faziam teóricos de décadas anteriores; por outro lado, remete à ideia de vínculo,

proximidade com o leitor.

Nesse sentido, Candido (1992:13) exprime sua opinião e aponta que

a crônica não é ‘um gênero maior’ (...) “Graças a Deus” – seria o caso
de dizer, porque sendo assim, ela fica perto de nós (...). Por meio dos
assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem
necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de
todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de
perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão,
humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação
sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de
significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem
fazer dela uma inesperada, embora discreta, candidata à perfeição.

E, reiteramos que graças a essa simplicidade e despretensão, a crônica

consegue ser insinuante e reveladora.

Os assuntos tratados nas crônicas são os mais diversos possíveis. Pode-se

até discursivizar acerca da ausência de um tema em específico, basta sabê-lo fazer.

Em geral, as abordagens temáticas são recorrentes, já que retratam assuntos do

cotidiano sob o viés do cronista.

Uma das definições que tão bem demarca as crônicas, por meio de

antagonismos, é a trazida por Martins (apud Andrade 2008:302):

35
Guardar-se em livro, mesmo feita para o jornal. Apresentar-se como
coloquial e até popular, e ser mesmo artística sem perder a
naturalidade. Ser o oral no escrito. O diálogo no monólogo. Fazer do
leitor, ator. Encerrar uma sábia lição, sem desviar-se do comum.
Pode fazer pensar em tom de brincadeira. Pode valer para sempre,
embora nascida do agora. Pode restar eterna, ainda que
circunstancial. Ser brasileira, sem deixar de existir fora. Pode ser um
texto de classe e permanecer como antologia. Pode fazer-se poesia e
estar escrita em prosa. Avizinhar-se do conto, sem deixar de ser
crônica. Pode até ser tema de tese, sem perder o popular.

A crônica ultrapassa sua superestrutura e as regularidades linguísticas, já que

dela podem extrair-se as marcas características de cada autor e do tempo histórico

em que foi escrita.

2.3 Recursos utilizados nas crônicas

2.3.1 Aspectos gerais

Valendo-se de conceitos de Fiorin (1996) podemos afirmar que existem dois

tipos de discurso: os que estão em 1ª pessoa (enunciação enunciada) e aqueles em

3ª pessoa (enunciado enunciado). No 1.º tipo discursivo há aproximação entre o

sujeito enunciador e o que é dito, com efeito de subjetividade; já no 2.º há

distanciamento e objetividade. Os dois recursos são utilizados pelo cronista a

depender da intencionalidade.

Reiteramos os elementos presentes nas crônicas e que cabe aqui serem

ressaltados a fim de avançar em nossos estudos, como o humor, o lirismo, a

surpresa, a intimidade, o estilo, a elegância, a solidariedade, entre outros. A crônica

não permite prolixidade, é um gênero dotado de brevidade, singular, em que são

mostradas belezas de modo sutil, sem a utilização exacerbada de adjetivações.

As primeiras crônicas escritas no rodapé dos jornais e denominadas

“folhetins” destinavam-se prioritariamente às mulheres.

36
As crônicas têm um caráter de reflexão mais leve, despretensiosa, estão

voltadas ao entretenimento, como uma pausa aos textos mais densos.

As crônicas brasileiras estão repletas de subjetividade, impressões e

sentimentos pessoais do autor; em outros países, as crônicas que circulam são

objetivas e sintéticas em relação aos acontecimentos, não há a expressão da

percepção de quem as escreve.

Assim, para Urbano (2009), devido à coloquialidade emocional argumentativa

presente nas crônicas, favorece-se o uso de expressões, ditados e provérbios, uma

vez que estes são vastamente empregados no cotidiano. Além disso, as “frases

feitas” ocupam menos espaço na diagramação da crônica e eliminam maiores

explicações cognitivas, pois remetem a ideias comumente compartilhada por todos.

Além disso, a ironia e o humor encontrados em diversas crônicas servem para

estabelecer maior contato com o interlocutor e apropriar-se de tais recursos para

propiciar a inserção de críticas por meio da argumentatividade bem-humorada.

Linearmente a essa assertiva, têm-se menções feitas por Bergson (apud

Fávero 2009), em que o autor define três características atreladas à comicidade: o

caráter humano – proximidade com emoções e sentimentos humanos –, a

insensibilidade – por oposição à capacidade de rir – e a ideia de que o riso é sempre

o riso de um grupo, ou seja, é compartilhado por muitos. Para emergir o efeito de

comicidade na crônica é imprescindível a adequada escolha lexical.

Em todas as crônicas, a intertextualidade recíproca expressa na linguagem do

leitor e do autor combina-se harmonicamente e dá sentido à argumentatividade do

texto.

Sobre os recursos linguísticos e estilísticos atrelados à produção de crônicas,

Urbano (2009:98) disserta que

37
[há] a frequência mais sensível de vocabulário comum, gírio mesmo,
frases feitas (provérbios, ditados, expressões idiomáticas populares),
sintaxe mais livre e solta, etc., dando conta de um verdadeiro e franco
diálogo autor/leitor.

Muitos autores valem-se de “recursos fraseológicos populares” – termo

utilizado por Urbano (2009) – e da intertextualidade em suas crônicas, todavia de

acordo com nossos objetivos reduziremos, posteriormente, nossa análise às

crônicas de Carlos Heitor Cony.

A intertextualidade presente nas crônicas também aparece nas frases feitas.

Há, desse modo, a união entre o falado e o escrito, o popular e o literário, entre

textos do mesmo autor, de autores diferentes ou entre os textos de um autor e

outros autores. A partir da intertextualidade explícita pode-se notar a

intertextualidade implícita.

2.3.2 A argumentatividade: convencer e persuadir o leitor

É inerente à produção e à leitura de crônicas a presença da

argumentatividade como chamariz e detença do interlocutor nos textos. Por meio

das construções argumentativas, o leitor é muitas vezes levado a crer na apreciação

dos fatos pelo olhar do cronista. Para entender com propriedade essa capacidade de

linguagem, que é a de argumentar e sua vinculação às crônicas, é imprescindível

compreender em que consiste tal processo.

Para Abreu (2009), argumentar envolve convencer – gerenciar informação por

meio da razão – e persuadir – gerenciar relação por meio da emoção. O autor

considera que saber argumentar é saber integrar-se ao universo do outro.

O leitor, quando se identifica ou se interessa pelo conteúdo da crônica,

aproxima-se do cronista e predispõe-se a ler a objetividade do factual sob o viés da

38
subjetividade de quem escreve, tornando-se vulnerável a seus argumentos e

adentrando em seu universo literário.

Com frequência, conseguimos convencer alguém, porém não somos capazes

de persuadi-lo. Isso é nitidamente perceptível quando não há mudança de conduta,

ainda que a pessoa tenha compreendido e ficado favorável aos argumentos alheios.

Conforme Abreu, existem algumas condições vinculadas à argumentação. É

preciso ter um problema e uma tese que o responda; é fundamental ter “uma

linguagem comum” com o auditório (ou com os leitores, em nosso caso), além de um

contato positivo com ele; e, por último, faz-se imprescindível argumentar de forma

ética, verdadeira.

Ao considerar o público-alvo das crônicas, em geral jovens e adultos, espera-

se que os interlocutores interajam com o gênero por meio do conhecimento prévio

acerca da tipologia e pela linguagem próxima a deles, ainda que o léxico seja

parcialmente incompreensível, mas inteligível pelo contexto.

Ademais, a arte retórica de Aristóteles (apud Citelli 2007) propõe uma

estrutura pré-determinada para auxiliar na produção de textos retóricos ou

argumentativos nos âmbitos oral e escrito.

A introdução, trecho em que há a tese principal, é denominada por Aristóteles

de exórdio – é o início do discurso e serve para trazer para si os ouvintes ou

interlocutores.

Em seguida, existe o encadeamento argumentativo ou, para Aristóteles, a

narração e as provas. Os argumentos estão na narração e a comprovação deles são

as provas, elas servem para fundamentar e dar credibilidade aos argumentos

anteriormente expostos. Por fim, a chamada peroração é a conclusão e também o

último ensejo de buscar a adesão do interlocutor.

39
Para argumentar bem é necessário envolver o leitor inicialmente e, ao longo

do texto, desenvolver suas ideias para que o leitor seja convencido e persuadido,

aderindo as suas concepções. Existem técnicas argumentativas que propiciam a

tessitura textual de modo a atingir os objetivos a que o articulista se propõe –

convencer e persuadir os leitores.

Abreu (2009) chama de técnicas argumentativas o ato de combinar

“argumentos quase lógicos” e aqueles “fundamentados na estrutura do real”

valendo-se das teses de adesão inicial e da tese principal. O autor afirma que na

primeira técnica a tese de adesão inicial pode ser compatível ou incompatível com o

que se segue, isto é, a tese principal.

São denominados argumentos “quase lógicos”, uma vez que independem de

aspectos formais, estão agregados às interpretações dos sujeitos ou à natureza das

coisas. Nesse caso, há também a argumentação respaldada na regra de justiça, na

retorsão – quando existe um argumento forte por parte do interlocutor e, se existir

contradição, existe oposição àquele argumento –, no ridículo (a partir da criação de

uma situação irônica), na definição (que pode ser lógica – definição que apresenta

diferenças entre fatos ou objetos -, expressiva – definição que depende de ponto de

vista, escapando da lógica -, normativa – definição da palavra no contexto e no que

pretende determinado discurso - e etimológica – definição baseada na origem das

palavras).

Paralelamente a esses saberes, o autor afirma que são denominados

argumentos “fundamentados na estrutura do real” aqueles referentes a pontos de

vista acerca dos fatos, não são os fatos propriamente ditos.

Os argumentos que se enquadram na categoria citada são o pragmático –

aquele que envolve acontecimentos subsequentes em relação causal -, o do

40
desperdício – que considera que algo começado deva ser feito até o fim para não

desperdiçar tempo e/ou investimento -, a argumentação pelo exemplo (de pessoas

conceituadas, familiares ou outros com condutas admiráveis), pelo modelo ou

antimodelo (o que devemos seguir ou evitar) e pela analogia (comparação com

situação semelhante).

Por um lado, ao dispormos os diversos tipos de argumentos dos quais

podemos lançar mão; é importante, por outro lado, de acordo com apontamentos

feitos por Abreu, considerarmos que existem argumentos falsos, porém com algum

grau de atingir os demais psicologicamente, são as chamadas “falácias não formais”.

A credibilidade das crônicas está na utilização de argumentos verossímeis no

convencimento do auditório. Os argumentos falaciosos e que apelam fortemente

para o emocional, desarticulam o sentido primeiro de atingir o interlocutor das

crônicas pela razão e pela emoção, como nos demais textos que envolvem a

capacidade argumentativa. É necessário que sejam utilizados recursos ou técnicas,

como já mencionamos para trazer o leitor ao texto.

Abreu (2009:74) sugere que um argumento ilustrado por um recurso de

presença tem efeito redobrado sobre o auditório. Procure sempre agregar histórias

aos seus argumentos. Eles ficarão infinitamente mais sedutores.

A exemplificação e a presença de histórias no incremento dos argumentos,

torna-os mais efetivos. Nas crônicas, esse tipo de recurso é trivial. Usam-se

concomitantemente as capacidades de narrar (expor histórias) e de argumentar

quando não há também o envolvimento de outras capacidades.

Ao refletirmos acerca da argumentação, as condições a ela vinculadas, as

técnicas principais de convencimento e persuasão, os argumentos falsos e os

recursos argumentativos dos quais nos valemos, é prioritário considerar que ao

41
remetermos um discurso ao auditório deve-se considerar a hierarquia de valores a

fim de não rejeitar os valores do auditório para poder persuadi-lo.

Para re-hierarquizar os valores do nosso auditório, podemos utilizar


algumas técnicas conhecidas desde a Antiguidade e que recebiam o
nome de lugares da argumentação. Abreu (2009: 85)

O autor, ao resgatar os lugares da argumentação, divide-os em: lugar de

quantidade, lugar de qualidade, lugar de ordem, lugar de essência, lugar de pessoa

e lugar do existente, em que sempre um valor é superior a outro, por exemplo, a

qualidade sobrepondo-se à quantidade ou dar preferência a algo que existe em

detrimento a algo que não existe.

Abreu sintetiza a ideia de argumentar em

(...) saber persuadir, preocupar-se em ver o outro por inteiro, ouvi-lo


entender suas necessidades, sensibilizar-se com seus sonhos e
emoções. (...) é motivar o outro a fazer o que queremos, mas
deixando que ele faça isso com autonomia, sabendo que suas ações
são fruto de sua própria escolha. (p.97)

Para persuadir alguém é preciso que haja a aderência espontânea a partir do

convencimento, é necessária a aceitação como se a tese e os argumentos fossem

vistos como verdadeiros. A fim de promover com efetividade a persuasão do outro,

dispomos de recursos linguísticos que auxiliam tal tarefa.

De acordo com Abreu, as figuras retóricas são recursos linguísticos utilizados

para persuadir o auditório ou os leitores, subdividem-se em figuras de som –

selecionam-se palavras por sua sonoridade –, de palavra (como a metonímia – uso

da parte pelo todo – e a metáfora – comparação abreviada), de construção (como o

pleonasmo – repetição para reforçar a ideia ou o argumento –, a hipálage –

transferência de característica própria do ser humano para algo não humano –, a

anáfora – repetição da mesma palavra em início de frases ou em uma mesma frase

–, a epístrofe – repetição da mesma palavra no final de frases – e a concatenação –

terminar uma frase com uma palavra e iniciar a próxima com a mesma palavra ) e de
42
pensamento (como a antítese – contraposição de palavras ou frase –, o paradoxo –

ideias contraditórias em uma mesma frase – e a alusão – referência a um fato ou

pessoa, que também é conhecida por polifonia ou intertextualidade).

Similarmente ao que menciona Abreu, Koch (1984) expõe que a

argumentação é o modo em que se dá a interação social por meio da língua. Já,

pelo discurso – ação intencional sempre ideológica –, o homem tenta interferir no

comportamento e nas opiniões alheias, promovendo a aderência dos outros as suas

ideias.

Para a autora, quando há produção de um discurso, existe a apropriação da

língua com a finalidade de atuar com os demais, constituindo o eu como interlocutor

e como ator de representações e imagens.

Assim, o discurso deve obrigatoriamente constituir um texto. De acordo com

Koch (1984:21-2):

(...) todo texto caracteriza-se pela textualidade (tessitura), rede de


relações que fazem com que um texto seja um texto (e não uma
simples somatória de frases), revelando uma conexão entre as
intenções, as ideias e as unidades linguísticas que o compõem, por
meio do encadeamento de enunciados dentro do quadro estabelecido
pela enunciação.

Nesse sentido, a argumentação é estruturante do discurso, pois, por meio

dela, são feitas articulações entre enunciados, tornando o texto coerente e coeso.

Assim, a argumentação é um importante elemento de coesão,

sinaliza as possibilidades de construção textual e efetivamente dá corpo ao que é

dito, ampliando-o e enriquecendo-o.

São inúmeros os recursos retórico-estilísticos ou argumentativos:

interrelacionamento de campos lexicais, seleção lexical, argumentação por

autoridade (que assume duas formas – a argumentação polifônica e o raciocínio por

autoridade. O primeiro é o próprio fundamento do encadeamento discursivo, assim,

43
não pode ser julgado já que é pautado em representações, enquanto o segundo tem

por base a suposição e pode, facilmente, ser contestado. Essas formas podem gerar

argumentos possíveis e decisivos ou conclusivos), exclamação e as expressões de

valor interjetivo, questões retóricas, períodos tensos, reiterações, antíteses,

paralelismo sintático, entre outros.

Além disso, existem estratégias discursivas, conforme sugere Guimarães

(apud Koch 1984), como a antecipação e o “suspense” que também podem ser

usados em prol da argumentatividade e do produtor do discurso – em nosso caso, o

cronista.

2.3.3 Intertextualidade: entrelaçamento de textos

De acordo com Proença Filho (2007:75), o termo “intertextualidade” foi

proposto por Julia Kristeva como substituto de dialogismo, conceito lançado pelo

teórico soviético Mikhail Bakhtin (1895-1975).

Kristeva (apud Koch et al 2008), quando discorreu na década de 60 sobre a

intertextualidade, apontou que todo texto é um intertexto de textos já existentes ou

que ainda serão criados.

A partir desse princípio, é possível considerar que nada que é criado é uma

inovação por completo, uma vez que se pressupõe que parte de algo já elaborado

por alguém, não se parte do zero.

Nesse sentido, Greimas (apud Koch et al 2008) menciona que

(...) todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em


níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis. (p.14)

Semelhantemente a tais abordagens, Bakhtin (apud Barros 1999) utiliza a

nomenclatura “diálogo entre interlocutores” atribuindo a tal interação o “princípio

fundador da linguagem”. Por considerar que nenhum discurso é individual também

44
articula a ideia de “diálogo entre discursos”. Desse modo, a intertextualidade é o

diálogo entre discursos enquanto o dialogismo é o diálogo entre interlocutores.

E ainda sobre dialogismo, Bakhtin (apud Koch et al 2008) traz à baila que um

enunciado não existe nem pode ser compreendido isoladamente, uma vez que está

sempre em diálogo com outros textos.

Maingueneau (apud Koch 2008) aborda semelhante ideia ao mencionar que

(...) um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude,mas


constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma posição.
(p.14)

Assim, Proença Filho (2007) afere que o discurso literário envolve o diálogo

de diversos textos em termos de horizontalidade – a palavra inserida no texto faz

parte do mesmo tempo em que este chega ao autor e ao leitor – e de verticalidade –

em relação ao corpus literário anterior ou contemporâneo.

E, agrega a esses dizeres que

todo texto se converteria assim num mosaico de citações e absorção


e transformação de outros textos, consciente ou inconscientemente
aproveitados pelo escritor. (p.77)

Portanto, em suma, a abordagem dos teóricos anteriores leva-nos à ideia de

que, necessariamente, um texto dialoga com outros.

O conceito de intertextualidade está atrelado à determinada leitura que

fazemos em que nosso pensamento, por meio de vivência de leituras anteriores, nos

remete a outra obra literária que de certa forma está conectada à primeira. A esse

respeito, Orlandi (1999:18) menciona que

(...) todo discurso nasce em outro (sua matéria-prima) e aponta para


outro (seu futuro discursivo). Por isso, na realidade, não se trata
nunca de um discurso, mas de um ‘continnum’. Fala-se de um estado
de processo discursivo e esse estado deve ser compreendido como
resultando de processos discursivos sedimentados.

45
Assim, se não há conexão com outros pensamentos, ou seja, se um texto não

remete a outro ou provém de um anterior, não há inteligibilidade, uma vez que se

trata de forma fragmentada de assuntos afins.

Metaforicamente, Jenny (1979) relaciona a ausência de intertextualidade à

falta de entendimento de léxico de uma língua ignota com o intuito de exaltar a

relevância da intertextualidade e aponta que

(...) fora da intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente


incompreensível, tal como a palavra duma língua ainda
desconhecida. De fato, só se apreende o sentido e a estrutura de
uma obra literária se a relacionarmos com os seus arquétipos. (p.5)

Para Cardoso (1999), os textos caracterizam-se por serem atividades

discursivas e relacionarem-se entre si. Assim, todo texto é um intertexto, já que é

formado pela intelecção de tantos outros existentes – explícita ou implicitamente.

Dessa forma, existem distintos tipos de intertextualidade que nos

debruçaremos brevemente nesse trabalho.

Segundo Koch (2008), com respaldo em concepções de diferentes autores,

há a intertextualidade stricto sensu, que se desdobra em temática, estilística,

explícita e implícita; o détournement; a intertextualidade lato sensu, que se distende

em intergenérica e tipológica, além de outras classificações que ultrapassam os

conceitos primários de intertextualidade.

A intertextualidade stricto sensu ocorre, de acordo com a autora,

(...) quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto)


anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma
coletividade ou da memória discursiva (...) dos interlocutores. (p.17)

Nota-se que alguns autores preferem utilizar a nomenclatura autotextualidade

ou intratextualidade quando se referem a intertextos produzidos por um mesmo

autor e intertextualidade apenas para textos de diferentes autores.

46
Na categoria da intertextualidade stricto sensu, a intertextualidade temática é,

segundo a autora, aquela em que os textos pertencem à mesma área, corrente de

pensamento ou que se servem de temas e conceitos comuns. Esse tipo de

intertextualidade ocorre em matérias de um mesmo jornal, em revistas semanais, em

textos literários de uma mesma escola, de um gênero comum ou entre textos de

diferentes estilos e gêneros.

Já, a intertextualidade estilística ocorre, como versado por Koch (2008),

(...) quando o produtor do texto, com objetivos variados, repete, imita,


parodia certos estilos ou variedades linguísticas. Nesse caso, pode-se
observar essa intertextualidade em reproduções da linguagem bíblica,
jargões, dialetos, estilos do gênero, autor ou segmento social. (p.19)

Na intertextualidade explícita é citado outro texto ou fragmento dele (atribuído

a outro enunciador). Encontram-se nessa tipologia citações, referências, menções,

resumos, resenhas, traduções, entre outros. E, na intertextualidade implícita o

intertexto é alheio, ou seja, não é citado o texto-fonte para que o interlocutor o

reconheça por si só e o ative em sua memória discursiva. Isso nem sempre ocorre,

pois o interlocutor precisa ter o texto-fonte como saber anterior. Como exemplos

dessa intertextualidade têm-se alusões, paráfrases – mais ou menos fieis ao texto

original –, enunciados parodísticos ou irônicos, apropriações, reformulações,

inversões da polaridade afirmação-negação, provérbios, frases feitas, ditos

populares, entre tantos outros.

Em síntese, a intertextualidade explícita é aquela em que é possível notar a

fonte do intertexto, o que não ocorre com a intertextualidade implícita em que o

interlocutor precisa recuperar a fonte na memória por meio de seus conhecimentos

prévios. Na intertextualidade explícita o texto ou parte dele é transcrito na íntegra e,

por vezes, é apresentado o autor.

47
Authier-Revuz (apud Cardoso 1999) subdivide a intertextualidade – por ela

abordada como heterogeneidade – em dois tipos: formas marcadas (explícitas) e

não-marcadas (implícitas). Desse modo, afirma que

distingue no conjunto das formas de heterogeneidade mostrada as


formas marcadas (discurso direto, aspas, itálicos, incisos de glosa) e
as formas não-marcadas, em que o outro é dado a conhecer sem
uma marca unívoca (o discurso indireto livre, a ironia, o pastiche, a
imitação, as metáforas, o jogo de palavras). (p.74)

Conforme Grésillon e Maingueneau (apud Koch 2008), o détournement –

termo preservado no original – refere-se à produção de um enunciado que possui as

marcas linguísticas de uma enunciação proverbial sem ser, de fato, um provérbio do

repertório popular, podendo aproximar-se dele ou subvertê-lo.

De qualquer forma, há nova construção de sentido a partir do texto-fonte pelo

interlocutor.

Ducrot (apud Koch 2008) aborda que em cada discurso existem ao menos

dois enunciadores que constroem diferentes vieses em um texto – provérbios, frases

feitas, ditos e canções populares, poemas, adágios, etc. –, retextualizando-o por

meio de substituição (de fonemas ou de palavras), acréscimo (de formulação

adversativa, outros tipos de acréscimo ou por inversão da polaridade afirmação ⁄

negação), supressão e transposição.

Ainda sobre détournements, Koch (2008:58) sintetiza que eles têm sempre

valor argumentativo, em grau maior ou menor. (...) com base no mesmo intertexto, é

possível muitas vezes argumentar em sentidos opostos.

No patamar da intertextualidade lato sensu e de seus desdobramentos, tem-

se a modalidade intergenérica ou intergenericidade, segundo Marcuschi (apud Koch

2008:64) que nada mais é do que a possibilidade de operação ou maleabilidade que

dá aos gêneros enorme capacidade de adaptação e ausência de rigidez.

48
Nesse caso, um gênero exerce a função de outro, possuindo configuração

híbrida a fim de propiciar os efeitos desejados – ironia, humor, crítica, entre outros.

Bauman e Briggs (apud Koch 2008:89), aproximando-se da concepção de

arquigêneros que veremos adiante, comentam que

(...) a criação de relações intertextuais por meio da manipulação dos


gêneros serve para, simultaneamente, produzir ordenação, unidade e
limites para os textos e, também, para mostrar o seu caráter
fragmentado, heterogêneo e aberto.

Já, na intertextualidade tipológica, é possível verificar um conjunto de

características comuns que permite reconhecer o texto como pertencente àquele

gênero.

Van Dijk (apud Koch 2008) considera que as superestruturas – narrativa,

descritiva, injuntiva, expositiva, preditiva, explicativa e argumentativa – são

responsáveis pela construção e pelo reconhecimento de sequências de modelos

tipológicos específicos.

Exemplificando o acima exposto, em um manual de instruções encontrar-se-

ão sequências injuntivas e descritivas que permitirão integrá-lo ao gênero “manual”.

Acerca da intertextualidade tipológica, Bauman e Briggs (apud Koch 2008)

apontam que a denominação gap intertextual é caracterizado como

(...) distanciamento dos modelos genéricos precedentes, criado no


momento mesmo da produção dos textos. (p.101)

E, complementa Koch (2008) que quando (...) enfocam-se esses gaps

intertextuais, tem-se a mobilização de estratégias que enfatizam a inovação e a

criatividade individual.

Assim, quando o gap intertextual é minimizado aproxima-se mais daquilo que

é conhecido pelo público, já que os enunciados e as sequências são

tradicionalmente utilizados. Quando o gap intertextual é maximizado predomina a

criatividade do autor em integrar os gêneros e, por assim dizer, as superestruturas.

49
Ao estendermos os campos da intertextualidade, temos a “intertextualidade

restrita” de Genette, a paratextualidade e a arquitextualidade, a metatextualidade e a

hipertextualidade e as relações de derivação.

Para Genette (apud Koch 2008:119),

a transtextualidade por intertextualidade restrita é a (...) co-presença


entre textos (...) identificada pela presença efetiva de um texto em
outro.

Nessa modalidade, é obrigatória a presença de aspas nas citações, fazendo

referência (citação explícita) ou não (citação implícita) à autoria.

Koch (2008) indica que, com relação às citações, existem três tipos de

intertextualidade – o intertexto alheio (texto de outro enunciador), o intertexto próprio

(texto do próprio enunciador ou autotextualidade) e o enunciado genérico (texto que

não é atribuído especificamente a um enunciador, uma vez que faz parte do

repertório comum a muitos social ou culturalmente).

A autora ainda menciona que além da citação, há, na intertextualidade restrita

de Genette, a alusão e o plágio e aponta que

(...) a alusão e o plágio se localizariam num grau mais baixo da


escalaridade e se aproximariam da implicitude. (...) Na alusão, não se
convocam literalmente as palavras nem as entidades de um texto,
porque se cogita que o co-enunciador possa compreender nas
entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe sem expressar
diretamente. (p.127)

Complementarmente aos conceitos dispostos, atribui-se ao plágio um

empréstimo não-declarado, mas ainda assim literal.

Avançando em nossos estudos, a paratextualidade proposta por Genette

(apud Koch 2008) trata-se de relacionar o texto em si com segmentos de texto que

compõem a obra, como título, subtítulo, prefácio, posfácio, notas marginais, finais ou

de rodapé, epígrafes, ilustrações e outros que também podem ser denominados

paratextos.

50
Já a arquitextualidade refere-se a categorias presentes no texto, como por

exemplo, o tipo de discurso, o modo de enunciação e o gênero que o particularizam.

Há autores que não consideram a paratextualidade e a arquitextualidade

como intertextualidade, devido à relação dos elementos que não parecem compor a

intertextualidade (em sentido estrito).

Para o autor, a metatextualidade é a união entre o texto-fonte e o outro texto

que do primeiro trata, muitas vezes sob forma de alusão.

A hipertextualidade, por sua vez, é descrita por uma relação de derivação.

Para Genette (apud Koch 2008:134)

(...) Um texto [hipertexto] é derivado de um outro texto – que lhe é


anterior [hipotexto] –, por uma transformação simples, direta, ou, de
forma indireta, por imitação.

Para prosseguir com a ideia de intertextualidade, é necessário refletir

brevemente acerca da polifonia tomada por Ducrot e Bakhtin em que é expressa a

manifestação do coro de vozes presente em qualquer discurso. Assim, tal

concepção corrobora com a imagem de que todo dito tem muitos outros ditos por

trás, isto é, não há discurso isento de outras vozes.

Respaldando-nos no conceito de polifonia, Bakhtin (apud Cardoso 1999)

considera que todos os discursos são “dialógicos” ao passo que dialogam com

tantos outros; ainda que se diga que determinado discurso é “monológico” ele não o

é. E, o autor (apud Faraco 1999:124) ainda menciona que

(...) pode-se compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo, isto


é, não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas
colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer
tipo que seja.

Paralelamente à visão de dialogismo, Bakhtin (apud Barros 1999:36)

(...) distingue claramente dialogismo e polifonia, reservando o termo


dialogismo para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de
todo discurso e empregando a palavra polifonia para caracterizar um
certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele
em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos
monofônicos que escondem os diálogos que os constituem.
51
Destarte, para os textos serem monofônicos ou polifônicos eles dependem

dos procedimentos discursivos empregados. Um exemplo de texto monofônico é

aquele dotado de discurso autoritário; mesmo que existam outras vozes por trás do

texto, elas são abafadas para prevalecer a ideologia do autoritarismo como

verdadeira.

De acordo com Koch (1984:145), valendo-se de considerações de Ducrot e

Vogt,

a polifonia é um fato constante no discurso, que oferece ao locutor a


possibilidade de tirar consequências de uma asserção cuja
responsabilidade não assume diretamente, atribuindo-a a um
enunciador estranho.

Cardoso (1999) também compartilha desse pensamento, uma vez que aborda

que a introdução de citações de outros tem caráter ambíguo – pode servir para

reforçar, fundamentar o que é dito e, concomitantemente, o locutor pode isentar-se

da responsabilidade pelo discurso.

Koch (1984) menciona que a leitura polifônica é percebida nos enunciados em

que há pressuposição (ainda que haja um locutor único o que é dito é compartilhado

por uma “comunidade lingüística”, é um saber partilhado), negação (quando o

enunciado negativo pressupõe um afirmativo), uso de verbos no futuro do pretérito e

utilização da expressão “parece que” (para marcar distanciamento do discurso a fim

de “não assumir responsabilidades” pelo que é dito) e emprego de operadores

argumentativos como a partícula “se”.

Muitas vezes, a intertextualidade é empregada nas crônicas pelo enunciador

para expressar efeito irônico ou inverter valores. Mas o efeito irônico nem sempre

está relacionado à questão da intertextualidade ou é particularidade do gênero

crônica e é determinado pelo contexto.

Segundo Sperber e Wilson (apud Koch 1984:154),


52
normalmente as ironias têm um alvo determinado. (...) Se o locutor
faz eco a si mesmo, tem-se a autoironia; se faz eco ao destinatário,
tem-se o sarcasmo.

Ducrot (apud Cardoso 1999) revela que o discurso irônico sustenta o que não

o seria utilizando-se do jogo polifônico.

Enfim, é preciso considerar, como mostra Bakhtin (apud Cardoso 1999:111),


que
(...) toda enunciação parte de elementos reiteráveis, o que constitui
sua significação; no entanto, o tema de cada enunciação é único,
não reiterável.

Isso leva-nos a crer que os já-ditos são reiterados e utilizados nas produções

textuais ainda que não explícitos. Todavia, podem tomar novo sentido à medida que

fazem parte de temas diversos.

Para Jenny (1979:21),

o que caracteriza a intertextualidade é introduzir um novo modelo de


leitura que faz estalar a linearidade do texto. Cada referência
intertextual é o lugar duma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo
apenas no texto um fragmento (...) ou então voltar ao texto-origem.

2.3.4 Tipos de crônicas

As crônicas, conforme já mencionamos, são parte de um gênero literário

híbrido – mesclam elementos da linguagem jornalística e da linguagem literária e,

por assim dizer, podem ser classificadas em: crônicas históricas, crônicas

jornalísticas e crônicas literárias.

São chamadas históricas as crônicas marcadas por caráter observador dos

fatos, com funções de informar, comentar, registrar e fazer perdurar as situações

presenciadas. A carta de Caminha, já exposta, é considerada de natureza histórica.

Em meados do século XIX, as crônicas ganham espaço nos jornais sendo

denominadas “folhetins”. Nesse período iniciam-se as primeiras crônicas

jornalísticas. E, ao passo que começam a assumir também a forma literária

53
originam-se as crônicas literárias – com teor crítico, de linguagem acessível e que se

aproximavam dos leitores por tratarem de assuntos cotidianos.

As crônicas literárias resistem ao tempo - diferentemente daquelas publicadas

em jornais e em pouco tempo esquecidas pelos leitores – pela apreciação do estilo e

da temática abordada, em geral, situações humanas atemporais como questões

éticas, econômicas, políticas, sociais e de relacionamentos. Nelas a literalidade ou

função poética estão muito presentes nos textos sobrepondo-se às demais funções.

Isso não significa que nas crônicas literárias há perda dos aspectos originais, senão

não poderíamos considerar este um gênero híbrido. Há, portanto, nessa vertente, a

predominância do elemento literário.

À luz das definições e das funções das crônicas literárias e das considerações

teóricas constantes, focaremos nosso estudo em algumas das crônicas literárias de

Carlos Heitor Cony, como nos propomos no corpus do trabalho.

54
3. LEITURA DE CRÔNICAS: A TRÍADE ESCRITOR-LEITOR-TEXTO

Inicialmente, Orlandi (1999) afirma que a noção de leitura traz consigo

diversas acepções. Amplamente, pode-se dizer que ler é atribuir sentidos – visão

utilizada indiscriminadamente tanto para a escrita quanto para a oralidade. A autora

também aborda a “leitura de mundo” e não apenas aquilo que está escrito. De forma

mais restrita agrega ao ato de ler as diversas leituras possíveis de um determinado

autor e, além disso, atrela à leitura a instrumentalização do ato de ler no momento

de alfabetização.

Em nosso estudo, restringiremos a leitura de crônicas à atribuição de sentidos

– no plural, já que é possível compreender sob múltiplos prismas a depender do

conhecimento que se tem.

Nesse viés, a autora indica que é “reducionismo linguístico” considerar

apenas um sentido em relação a um texto. Isso significa que o sentido primeiro

tradicionalmente esperado está atrelado à informação explícita objetivamente.

O processo de significação do texto é dado a partir da leitura pelo interlocutor

como um momento privilegiado de interação e reconstituição do texto. Para

compreender o que lê, é necessário que o interlocutor resgate aprendizagens

anteriores acerca da temática, do gênero, do autor, das intertextualidades presentes,

dos recursos usados pelo autor e até mesmo daquilo que corresponde à linguagem

não-verbal (caso haja recursos pictóricos atrelado à composição verbal).

Acerca do “efeito leitor” e da construção de sentidos, Orlandi (1999:103)

garante que

a noção de efeito supõe, entre outras coisas, a relação de


interlocução na construção de sentidos. Sem esquecer que os
sentidos não são propriedades privadas: nem do autor, nem do leitor.
Tampouco derivam da intenção e consciência dos interlocutores. São
efeitos da troca de linguagem.

Ao sopesar a ideia de legibilidade de um texto, a autora assegura que


55
a leitura, portanto, não é uma questão de tudo ou nada, é uma
questão de natureza, de condições, de modos de relação, de
trabalho, de produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade.
(p.9)

No momento em que um texto é produzido, ele é projetado para um leitor

virtual. Considera-se um determinado público como virtual e pretende-se que esse

seja o leitor real. Quando Cony escreve, por exemplo, uma crônica em sua coluna

semanal na Folha de S. Paulo, imagina que seu leitor conhece o gênero crônica,

está interado das notícias e tem domínio da linguagem que utiliza.

O leitor que se propõe a ler crônicas de um determinado autor, ativa em sua

memória o gênero e as características literárias desse escritor.

Orlandi (1999:9-10) aponta que

(...) a leitura é o momento crítico da produção da unidade textual, de


sua realidade significante. É nesse momento que os interlocutores se
identificam como interlocutores e, ao fazê-lo, desencadeiam o
processo de significação do texto. Leitura e sentido, ou melhor,
sujeitos e sentidos se constituem simultaneamente, num mesmo
processo.

De acordo com Freire (apud Koch 1984:160), o aluno [estende-se aqui a ideia

para o leitor] necessita ser preparado para tornar-se o sujeito do ato de ler.

Souza (1999:199) assinala que

o sujeito contemporâneo está submerso em um tipo de experiência


cotidiana onde múltiplos jogos de linguagem compartilham um mesmo
cenário. Não se trata de buscar um consenso entre eles, e muito
menos de dicotomizá-los, criando valores idealizados para justificar a
positividade maior ou menor de um jogo de linguagem em detrimento
de outro. O consenso violenta a heterogeneidade e a multiplicidade
das formas de escrita e leitura que podem ser constantemente
criadas e recriadas na corrente da cultura.

Para compreender os sentidos explícitos e implícitos nas crônicas, o leitor

precisa estar, a priori, informado sobre fatos cotidianos para interagir criticamente

com os textos. Além disso, é imprescindível notar que os sentidos implícitos são

marcados por sutileza e, por assim dizer, carregados de intencionalidade por parte

do emissor – em nosso caso, o cronista.

56
Ler não é simplesmente decodificar e, sim, compreender os múltiplos sentidos

possíveis presentes nos textos, captar as intenções do emissor e os recursos por ele

utilizados e possibilitar a recriação ou coautoria do texto pelo interlocutor.

Saber ler consiste em ler os ditos e os não-ditos, mas que estão

subentendidos no texto. A ação de ler não é marcada por imediatismo, cada vez que

se lê o mesmo texto novos sentidos são atribuídos e agregados a ele.

Para Souza (1999:201) um enunciado só pode ser compreendido no interior

do contexto social, político, cultural e histórico em que ele acontece.

De acordo com Orlandi (1999) a produção do discurso baseia-se na junção de

dois importantes processos: o parafrástico – mesmo sentido sob várias formas – e o

polissêmico – sentidos múltiplos. Esse último denota a incompletude dos textos e as

inúmeras possibilidades de produção de sentidos.

A competência leitora é formada pela união de diversas habilidades entre elas

a competência linguística e a comunicativa. Diz-se que determinado indivíduo é um

leitor competente quando desvela sentidos do texto, é ativo e não se deixa ser

manipulado por ele.

Nesse contexto, Souza (1999) não define a leitura pretendida como a

instrumental ou, por assim dizer, a leitura literal, mas aquela que suscita no leitor a

vontade de criar novos sentidos para o texto.

E, acrescenta que

(...) a leitura é um ato que só se realiza plenamente quando o leitor


sabe compartilhar com outras pessoas, presentes ou ausentes,
significações. (p.204)

Reportando-nos a Halliday (apud Orlandi 1999) temos importantes definições

do ponto de vista discursivo. Para o autor, inteligível é a nomenclatura utilizada para

remeter-se à decodificação; interpretável é o sentido relacionado ao âmbito do

57
contexto linguístico e compreensível é a atribuição de sentidos no viés do contexto

da situação e na relação enunciado – enunciação.

Assim, de acordo com Orlandi,

o sujeito que produz uma leitura a partir de sua posição, interpreta. O


sujeito-leitor que se relaciona criticamente com sua posição, que a
problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura,
compreende. (p.116)

E Andrade (2008:306), por sua vez, menciona que

(...) o cronista constrói seu discurso num entrelugar, em que de um


lado estão os fatos do cotidiano que ele quer de algum modo atingir,
ou pelo menos tocar, ainda que levemente; de outro lado, a
repercussão que esses mesmos fatos têm para a sua vida, quais
diálogos esses fatos suscitam ao entrarem em contato com a sua
experiência diante do mundo.

Segundo Sá (2008), em todo texto literário assumimos inicialmente a posição

de leitores ingênuos para, posteriormente, realizarmos uma ou mais leituras

aprofundadas e atingirmos o patamar da criticidade, de uma visão mais global, o que

também ocorre com a crônica. O autor também considera a esse respeito e

concomitantemente questiona o leitor, aferindo que

ultrapassando o consumismo imediato, passamos à fruição do objeto


estético, dele participando como coautores, pois também aqui o
trabalho do leitor é bastante solicitado: afinal o diálogo não é a base
da crônica? (p. 79)

Por um lado, ao depararmo-nos com uma crônica localizada na página de um

jornal, sabemos que as informações ali contidas são, em geral, decorrentes de fatos

cotidianos imediatos, ou seja, discorrem acerca de notícias pontuais. Por outro lado,

ao encontrarmos uma crônica em um livro, sabemos que por seu caráter literário

mais duradouro, localiza-se no portador que tem essa característica.

Além disso, para Sá, é inevitável que os outros textos se interpenetrem e um

sirva de suporte ao outro. (p.82)

58
Se a mesma crônica veiculada no jornal situa-se no livro, faz-se necessário

analisar o novo contexto. No jornal, a crônica está associada a outras matérias, à

diagramação, o que não ocorre no livro; neste último, há maior desprendimento.

Quando a crônica atinge a dimensão do livro não significa que,

necessariamente, tenha superado a transitoriedade, já que a realidade por si só é

efêmera.

Acerca do público que lê crônicas nos jornais ou nos livros, Sá (2008:85)

indica que

(...) o público do jornal é mais apressado e mais envolvido com as


várias matérias focalizadas pelo periódico; o público do livro é mais
seletivo, mais reflexivo até pela possibilidade de escolher um
momento mais solitário para ler o autor de sua preferência. (...) a
atitude [do leitor] diante do texto é que muda.

Isto significa que são ampliadas as possibilidades da leitura crítica de

interpretação quando a crônica está inserida no livro. Nesse caso, há maior

liberdade de escrita, maior dialogicidade entre o narrador e o interlocutor; ampliação

das associações entre fatos e pessoas.

A interação leitor-texto ocorrida na crônica é abstrata, como sugere Marcuschi

(apud Fávero 2009), uma vez que os leitores – interlocutores virtuais – estão

separados do texto no tempo e no espaço e por meio da construção da trama é

possível aproximá-los paulatinamente do texto e de seus sentidos, que caracterizam

a interpretabilidade.

Para Moisés (apud Fávero 2009) a impessoalidade não é marca dos

cronistas, pois existe a presença da tríade visão de mundo, veracidade do fato e

carga emocional.

Traços de oralidade também favorecem a proximidade com o interlocutor,

porém a crônica não deixa de ser uma modalidade escrita e, desse modo, tem

estruturação textual sistemática.


59
4. CARLOS HEITOR CONY

4.1 Crônicas – o estilo literário de Cony

Como já mencionado anteriormente, destacamos que há nas crônicas um

lirismo reflexivo que remete à visão do escritor acerca dos fatos. Ocasionalmente o

cronista escreve sobre algo afetivamente relacionado a si mesmo.

Carlos Heitor Cony, conforme menciona Sá (2008), faz crônicas sobre

experiências pessoais, sobre sua família, sem se tornar intimista, já que utiliza tais

fatos como ponto de partida para algo mais abrangente e universal.

Em geral, os cronistas vão às ruas para retirarem temáticas para seus

escritos; Cony, por sua vez, vale-se de situações domésticas corriqueiras como

pretexto para abordar outras temáticas. O escritor utiliza em suas crônicas temáticas

como a relação entre pais e filhos, o homem e suas perdas, a superproteção

paternalista em detrimento de diálogos verdadeiros, a passagem temporal, dramas

humanos íntimos, a instabilidade do mundo, a nostalgia da infância, o amor, a morte,

entre outros.

Para o autor, para que o lirismo crítico ocorra é imprescindível o

distanciamento do texto pelo cronista por meio de confrontos entre o presente e o

passado e invenção de situações e personagens ficcionais a fim de buscar as faces

da realidade.

Cony usualmente faz de si e de suas filhas – Regina Celi e Maria Verônica –

personagens por ele criados ou utiliza de personagens meramente ficcionais,

transformando o foco narrativo em terceira pessoa e tratando de sentimentos

universais e não de situações isoladas.

60
Para Andrade (2008) no que diz respeito à crônica de Cony, sua meta é

estabelecer um diálogo com o leitor, comentando suas ideias e reflexões sobre o

cotidiano, os fatos que lhe trazem angústia, preocupação ou incômodo.

O escritor e jornalista Ruy Castro (2001:15-6) afirma acerca de Cony, seu

estilo para redigir crônicas no Correio da Manhã e o reflexo de seus escritos sob os

leitores que

(...) [Ele] era brilhante, engraçado, de um deboche permanente, sem


fazer o menor esforço para isso, e sua visão cética, irônica, iria
marcar muitos garotos predispostos ao cetismo e à ironia – como eu.
(...) ao descobrir o cronista, descobri também o escritor e comecei a
devorar seus romances, mais ou menos (e por mero acaso) na hora
da publicação.

Castro agrega a seus dizeres que

Cony, na vida real, estava muito mais para o cronista moleque de “Da
arte de falar mal” do que para o homem que irritara os militares com
seus artigos políticos – ou para o autor de Pessach que deixara os
comunistas tiriricas. (p.18)

O autor menciona que Cony escreve crônicas em tom confessional, porém

tem coisas que só seus amigos sabem e, além disso, afirma que Cony vive como se

fosse um personagem de si mesmo.

Carvalho (1966:145) também afirma que Cony

(...) é mais ou menos como seus próprios personagens que odeiam a


liberdade mas defendem-na com unhas e dentes: Cony também
precisa dos críticos e leitores. (...) Sua obra não tem hipocrisia nem
subterfúgios. É sincera, é humana, é idealista, é sobretudo conyana.
Sua sinceridade e idealismo fazem dele um mártir. Mártir ou louco,
segundo se goste ou não se goste dele, Cony é um homem de
coragem.

Para Machado (2007:10), em entrevista cedida à revista Língua Portuguesa,

(...) Cony é pessimista e provocador. Mas exercita um pessimismo


sorridente e galhofeiro, que talvez não se leve a sério nem tenha
compromisso com a realidade em muitas das afirmações. (...) Seu
estilo é fluente, límpido, epigramático; estilo machadiano
modernizado.

De acordo com o autor, Cony, ao descrever seu próprio estilo e suas

produções afirma que ao ser escolhido o assunto, escreve uma crônica-padrão em

61
dez minutos. Para escrever, sua referência básica é a memória. Ele faz revisões,

mas não costuma emendar novos trechos, o que é escrito “sai de primeira”.

Atualmente prefere escrever com o computador portátil nos joelhos, pois “sente a

criação mais íntima, parece que o texto sai das vísceras”. Acrescenta que muitos

leitores entendem mal o sentido das crônicas e dizem que é comunista ou

reacionário.

Já, Sandroni (2003:24) infere que

(...) Cony é um escritor memorialista. (...) sua literatura está


impregnada de lembranças, recordações, reminiscências e a palavra
memória aparece em pelo menos dois títulos dos seus livros (...)
Cony tudo observa, tudo vê, tudo anota e não esquece nada. Ele
mesmo declarou, em entrevista, que todos os seus livros “sem
exceção” são autobiográficos.

Nem sempre a memória está explícita nas obras de Cony e, quanto a isso, o

autor considera que (...) ela [a memória] vem entranhada na ficção e no jornalismo,

nas crônicas, reportagens e até em entrevistas em que ele é o perguntador.

Marcio Moreira Alves (2001:21-2) que também trabalhava no Correio da

Manhã pondera que

(...) As crônicas de Cony causavam espanto, admiração e, no caso de


seus alvos, os todo-poderosos do momento, uma indignação
profunda.

O escritor e jornalista Zuenir Ventura (2001:26) reafirma o que fora dito por

Castro (2001):

Muitos são os Conys em um só. E não sei se alguém, a não ser ele,
conhece todos. Aliás, não sei nem se ele mesmo os conhece bem.
(...) Há o Cony que parece mas não é, e até o que ele se diz ser sem
de fato sê-lo totalmente. Por exemplo, desconfiem do autoproclamado
Cony pessimista e muito menos acreditem no Cony cínico. Ou
melhor, acreditem, mas considerem que é uma atitude filosófica,
moral, intelectual, uma visão de mundo que é desmentida a cada dia
por sua prática de vida.

Em consonância ao relato por Ventura, Sandroni (2003:25) menciona que

(...) Cony é um universo de perplexidades e contradições, de entrega


e revolta, de indignação e compaixão, de sensualidade e abstinência,
de sofrimento e angústia, mas de alegria também.

62
Hohlfeldt (2001) aprecia que Cony é um escritor verdadeiramente profissional

e que seu estilo de escrita tem uma forte significação pessoal e social. Acrescenta

que o cronista tem seu modo próprio de ver o mundo, o que caracteriza outros

autores e obras especificamente da literatura brasileira de caráter urbano a partir

dos anos 60 e, além disso, é dotado de sutileza estilística.

Cony (apud Machado 2007:14) reconhece que teve influência de escritores

em seu pensamento e estilo como Machado de Assis, Eça de Queirós, Balzac,

Flaubert, Zola, Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto e, principalmente, o filósofo

Sartre.

Para Carvalho (1966:137),

(...) sua rápida ascensão [referindo-se a Cony] teve, como causas


principais, a linguagem livre de preconceitos e tabus, e sua atitude de
revoltado (...) mas que é uma forma de virilidade ou de coragem que
toca o público ledor.

Assim, Carlos Heitor Cony expressa-se por meio de ironia, de forma direta,

em linguagem típica daquele que teve por influência grandes escritores e que,

paulatinamente, compôs o seu estilo pessoal. Ler Cony é ler o seu mundo, suas

percepções, suas inquietações e sua história, uma vez que não é possível

desvincular o ser humano, o autor e suas obras.

63
III – ANÁLISE DO CORPUS

1. ANÁLISE DE CRÔNICAS – RELAÇÃO INTERTEXTUALIDADE E


ARGUMENTATIVIDADE

A interação leitor-crônica inicia-se desde o momento em que há contato com

o título. Por meio de estratégias de leitura pode se atribuir significados ao longo de

todo o texto a partir dos conhecimentos prévios. Partindo do título, na antecipação

do conteúdo da crônica, o leitor infere ou deduz sobre aquilo que está escrito com

respaldo em experiências precedentes.

Diante das crônicas selecionadas, destacamos a esse respeito o título de

duas delas que promovem a ativação de saberes que remetem a outros textos.

O título “A Bela e a Fera” antecipa a relação da crônica com o conto do

universo infantil, resgatado da memória popular pelos irmãos Grimm. A outra crônica

a que nos referimos, “A tecnologia e o grito de Eureca”, parece àquele que lê –

desde que tenha, logicamente, tal saber previamente – algo relativo à ilustre

exclamação de “eureka!” (que significa “encontrei”) do matemático grego

Arquimedes ao descobrir que o volume de qualquer corpo pode ser calculado

medindo o volume de água deslocada quando o corpo é submergido na água.

Assim, poderia o leitor atribuir às tecnologias a ideia de descoberta trazida pela

exclamação de Arquimedes.

Debruçaremo-nos agora no conteúdo abordado por Carlos Heitor Cony nas

crônicas escolhidas. Uma das características mencionada em capítulos anteriores é

que as crônicas trazem consigo marcas de oralidade a fim de aproximarem-se do

leitor e indicarem fatos cotidianos, em tom de coloquialidade.

Na crônica “A Bela e a Fera” notamos na estrutura lexical marcas de oralidade

tais como a expressão popular brasileira tinha tudo do bom e do melhor, a gíria

ninguém enchia o saco dela, a frase denotativa era louco por guaraná, a marca oral
64
de encadeamento de ideias daí, a hipérbole vastamente utilizada no discurso

cotidiano matar a minha sede e a expressão introdutória ouvi dizer que. Da mesma

forma, a crônica “A tecnologia e o grito de Eureca” também traz marcadores

discursivos como palavras, expressões e construções frasais próprias da fala (muita

coisa, já disseram por aí, mais cedo ou mais tarde, sei lá, são meio furados, achei

um bocado difícil, sem mais nem menos, pelos 60 e tantos anos, goleiros catam

seus frangos, entre outros).

Na crônica “Pranto para o homem que não sabia chorar”, é possível destacar

algumas das marcas de oralidade como estas a seguir: um atestado de que o guri

não tinha jeito nem futuro, lambança, amigos do alheio, homem não chora, um filho

considerado perdido, era um bezerro desmamado, chorava à toa, quase homem-

feito, o diabo é que ele não sabia, um mix de quebrações de caras, perdeu uma

bolada num cassino, bebeu meia garrafa de uísque, matar a fome.

O texto “Bandas & bandas” também é referto de marcas de oralidade – caras

legais e caretas, reconheço que esta é forte, mas que fazer?, o repertório é

quadrado mas vai fundo no osso, foi o chute inicial de sua carreira, nada mais é do

que, um repertório elástico, pode botar fogo numa casa, acaba como um fósforo

queimado. Assim como em “O Carnaval e o menino” – taí, aí pelos anos 30, grudei

na cara, já fiz mais ou menos de tudo, onde a ditadura cismava de meter os

adversários, exige cara de pau, dos meus descendentes até a milionésima geração,

dava na mesma, quebra-galho, safanões, patifarias – e em “A história mais bonita” –

que conte logo, não esquenta a cabeça, guenta as pontas, fique na sua, o que está

se passando – são encontradas estas e outras marcas frequentes de oralidade.

As crônicas de Cony selecionadas para esse estudo (e tantas outras) tratam

do assunto abordado prioritariamente em tom irônico e reflexivo.

65
A crônica, por tratar-se de uma das modalidades do gênero narrativo, contém

elementos que em geral fazem parte desse gênero. Ateremo-nos a algumas destas

características para melhor compreendê-las inseridas nas crônicas.

Em “A Bela e a Fera”, “A tecnologia e o grito de Eureca”, “Bandas & bandas” e

“O Carnaval e o menino” o foco narrativo é de primeira pessoa, uma vez que se trata

de autor-personagem. Já em “Pranto para o homem que não sabia chorar” o foco é

de terceira pessoa, pois o autor é observador da crônica que se desenrola. Na

crônica “A história mais bonita” embora o autor posicione-se em primeira pessoa isto

ocorre em momentos pontuais – a que eu conheço [a história] é antiga e em como

[eu] disse no início – porém, ele não é participante ativo da história, conta a história

de terceiros, a crônica é delineada em terceira pessoa e o narrador é considerado

intruso, já que faz comentários sobre a vida das personagens, sobre os fatos e

cenário da narrativa.

Apenas “A história mais bonita” é composta pela fala das personagens

transmitidas em discurso direto, introduzidas por verbos do dizer – avisa, dá um

recado, podia ter perguntado, diz e responde – característica que comumente

aparece em contos.

As crônicas, os demais gêneros narrativos, também utilizam marcas de tempo

e de lugar que revelam, neste caso, fatos cotidianos. Por exemplo, vejo pesquisa

feita durante as festas de fim de ano sobre a melhor banda existente no mundo e no

Brasil e (...) qualquer banda, esta ou aquela, das centenas que surgem todos os dias

e em todas as partes que aparecem na crônica “Bandas & bandas” demonstram

claramente tempo e lugar cotidianos. Surgem bandas todos os dias e em todos os

lugares (no Brasil e no mundo).

66
As crônicas estudadas possuem superestruturas narrativas, descritivas e

argumentativas. Como exemplo de cada uma delas, selecionamos fragmentos de “O

Carnaval e o menino” para apontar que tipos distintos podem estar presentes em um

mesmo texto: Em casa, todos queriam saber se eu havia gostado do meu Carnaval

(narração); (...) ao menos sobrevivi quieto e no meu canto, fazendo um tipo de

Carnaval a meu modo, interior, doído, véspera de Cinzas (descrição) e por que

botam caveiras nas ruas no Carnaval? – e eu não entendia o grande teatro da vida

(tampouco o entendo agora) nem a revista colossal, mas compreendia o pierrô de

alvaiade (...) (argumentação).

A partir dessa breve constatação das características presentes nas crônicas,

retomemos à questão inicial – a relação entre a intertextualidade e a argumentação

no tocante ao convencimento e à persuasão do leitor.

Assim, enumeramos adiante os trechos das crônicas selecionadas que

dialogam com outros textos implícita ou explicitamente. Reiteramos que conhecer o

texto-fonte é condição imprescindível para a construção do sentido. Vamos, então,

aos intertextos.

Em “A bela e a fera”, além do título que é homônimo ao conto de Grimm, há

também o trecho que traz à tona uma releitura do conto:

(...) foi habitar um palácio como o da Bela e da Fera, evidente que


sem a Fera. Tinha tudo do bom e do melhor naquele palácio. As luzes
se acendiam à passagem da moça, a mesa estava sempre posta,
havia solidão e silêncio, ninguém enchia o saco dela, a Fera
providenciava tudo e ainda fazia o favor de não aparecer, não queria
assustá-la. (p.29)

Em “A tecnologia e o grito de Eureca” há dois trechos muito significativos. O

primeiro resgata a citação atribuída a Arquimedes1 de Siracusa quando ele

1
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Arquimedes

67
descobriu o princípio da alavanca (“Dêem-me uma alavanca e um ponto de apoio e

eu moverei o mundo”) e o segundo retoma a lei fundamental em Física da

Hidrostática, enunciado por todo corpo mergulhado total ou parcialmente em um

fluido sofre uma impulsão vertical, dirigido de baixo para cima, igual ao peso do

volume do fluido deslocado, e aplicado no centro de impulsão e que regressa ao

século III a.C., em que Hierão, o rei de Siracusa, havia encomendado uma coroa de

ouro para homenagear uma divindade que supostamente o protegera em suas

conquistas, mas ouviu-se a acusação de que o ourives o enganara misturando ouro

maciço com prata na confecção da coroa.

O rei solicitou ajuda de Arquimedes para descobrir se estava sendo enganado

sem danificar o objeto. Quando tomava banho, submerso em uma banheira,

descobriu que uma quantidade de água correspondente ao seu próprio volume

transbordava quando ele entrava na banheira e que poderia utilizar esse mesmo

procedimento para comparar os volumes de ouro e prata contidos na coroa,

mergulhando-os em um recipiente com água e observando o líquido deslocado.

Entusiamado com sua descoberta, saiu nu à rua gritando “Eureka!”, que significa

“encontrei!”. Então, na crônica, Cony utiliza tais conhecimentos prévios, como nos

trechos:

Se Arquimedes garantiu que levantaria a Terra se tivesse um ponto


de apoio no espaço onde pudesse colocar uma alavanca, eu me senti
um Arquimedes do Lins de Vasconcelos quando confrontei a primeira
lata de graxa com a alavanquinha de metal ordinário que me abriu,
mais do que uma lata de graxa, o território mágico da tecnologia
moderna. (p.34)

(...) O citado Arquimedes ali de cima também teve ideias enquanto


tomava banho e saiu nu pelas ruas de Atenas gritando eureca!
eureca! Prometo nao fazer isso. (p.35)

Em “Pranto para o homem que nao sabia chorar” há a presença da cunhada

expressão popular “homem não chora”, que também aparece na canção composta

68
por Roberto Frejat que leva o mesmo título. A expressão2 é advinda de uma regra de

sobrevivência dos esquimós. Para enfrentar o frio rigoroso, eles evitavam correr,

pois o suor poderia congelar e causar hipotermia e, também evitavam chorar, já que

as lágrimas congeladas poderiam obstruir os canais dos olhos e prejudicar

permanentemente a visão. Assim, os esquimós seguiam essas precauções e

orientavam seus filhos para que também não chorassem.

Além disso, nessa crônica também existe referência à Oração do Senhor,

também conhecida como Pai Nosso3, no cristianismo, em que há destaque nesse

texto para a parte final da prece. Existem duas versões dessa oração no Novo

Testamento (em Mateus e em Lucas). Os primeiros cristãos se consideravam parte

do povo judeu, oravam nas sinagogas e seguiam a Torá; depois o cristianismo

começou a separar-se gradualmente do judaísmo e, então o Pai Nosso passou a

representar a identidade cristã, em que se declaravam suas crenças fundamentais.

Na igreja primitiva a oração do Pai Nosso estava reservada para o momento mais

alto da celebração (que tempos depois o catolicismo denominaria missa). No

catolicismo, o Pai Nosso é visto como a oração perfeita, uma vez que foi a reza que

Cristo ensinou a seus discípulos, ansiosos por saber orar.

Ainda nessa crônica, há alusão à frase popular – não escrita literalmente pelo

autor – Quem nunca passou pela rua tal às cinco da tarde não sabe o que é a vida –

e sobre passagens bíblicas que se referem ao dom das lágrimas, intertextos que

serão mais amplamente abordados na relação argumentativa.

2
Fonte: DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos – Língua Portuguesa. São Paulo: Panda Books, 2003.
3
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pai_Nosso

69
Tais passagens a que nos referimos estão transcritas a seguir, como na

crônica:

(...) Quem nunca tomou uma surra de vara de marmelo não pode
saber o que é a vida, de que ela é feita, de suas ciladas e enigmas.
Há aquela frase: “Quem nunca passou pela rua tal às cinco da tarde
não sabe o que é a vida”. A frase não é bem essa, mas o sentido é
esse. (p.39)

(...) O pai então proferiu a sentença que ele jamais esqueceria:


“Homem não chora!” (p.40)

(...) A perda da medalhinha de Nossa Senhora de Lourdes que a


madrinha lhe dera, uma medalhinha de ouro que, segundo a
madrinha, o livraria de todo o mal, amém. (p.41)

Tivera ele essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de “dom das
lágrimas!” José, vendido por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se
poderoso e um dia recebeu os irmãos que o procuraram para matar a
fome, os irmãos não o reconheceram. José perguntou-lhes sobre o
pai e retirou-se a um canto para chorar. (...) Jesus chorou quando
soube da morte de Lázaro e o ressuscitou. A lágrima é um dom (...)
(p.41-2)

Na crônica “Bandas & bandas” há intertextualidade com a composição de

Chico Buarque, “A banda”, que se inicia com a estrofe Estava à toa na vida/ o meu

amor me chamou/ pra ver a banda passar/ cantando coisas de amor. Essa canção

surgiu na época da ditadura militar, em que as pessoas, ao verem a banda passar,

esqueciam-se de seus problemas. 4Chico Buarque ganhou o Festival de Música

Popular Brasileira, de 1966, com esta música, interpretada por Nara Leão.

Cony cita parte dessas informações explicitamente em sua crônica:

Inclusive “A banda”, do Chico Buarque, que foi o chute inicial da sua


carreira. Que nada mais é do que uma homenagem às bandas que
passavam e havia alguém à toa na vida para vê-las passar. (p.63)

Em “O Carnaval e o menino”, Cony resgata na íntegra trechos da marchinha

carnavalesca interpretada pelo sambista Mário Reis5. O intérprete gravou,

principalmente, composições de Noel Rosa, Sinhô, Ismael Silva e Lamartine Babo.

4
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Buarque
5
Fonte: http://expressaompb.blogspot.com/2008/01/centenrio-de-mrio-reis.html
70
Cony já dedicou uma crônica “Cadê Mário” (Folha de S. Paulo, 3 de janeiro de 2007)

para comemorar seu centenário.

Ainda nessa crônica, há um segmento da música “Luar de Paquetá”


6
composta por Freire Júnior e Hermes Fontes e referência a ela. Seguem trechos da

crônica:

No grande teatro da vida/ vão levar mais uma vez/ a revista colossal:/
Pierrô, Arlequim, Colombina/ vão a preços populares/ repetir o
Carnaval. (p.111)

Paquetá é um céu profundo/ que começa neste mundo/ mas não


sabe onde acabar (...) o branco rosto banhado de luar, o luar de
Paquetá, céu profundo que começa neste mundo e não sabe onde
acabar. (p.113)

Por fim, em “A história mais bonita” é citado o verso infantil utilizado em

cantiga de roda “Ciranda, cirandinha” (...Diga um verso bem bonito/ diga adeus/ e

vá-se embora) e, também é citada a passagem bíblica em que é feita a anunciação

pelo Arcanjo Gabriel à Virgem Maria, que seria fecundada pelo Espírito Santo para

dar à luz ao Filho de Deus e, em consentimento diz Eis aqui a serva do Senhor.

Faça-se em mim segundo a tua palavra.7, além de referência à intertextualidade

não-verbal (pinturas da Renascença que se referem à passagem bíblica, como “A

Anunciação”, de Sandro Botticelli – 1489-1490 e “A Virgem Amamentando o Menino

e São João Batista Criança em Adoração”, de Giampietrino - documentado de

1497/1500 a 1540). Adiante trechos da crônica acima comentados:

Se alguém conhece história mais bonita, que conte logo, diga adeus e
vá se embora. (p.153)

– Seja feita em mim a sua vontade. (p.154)

6
Fonte: http://letras.terra.com.br/carlos-jose/1787749/

7
Fonte: Lc 1,26-38

71
(...) Mais tarde, os pintores da Renascença encheriam o mundo com
aquela cena banal, a moça com o seio de fora, amamentando a
criança, o homem à distância, cuidando que os inimigos não se
aproximassem. (p.154)

Como vimos, as crônicas valeram-se de determinados assuntos para enfim

possibilitarem um espaço de reflexão e expressão em torno de temáticas mais

abrangentes, os avanços provenientes da pós-modernidade, por exemplo, como em

“A tecnologia e o grito de Eureca”. Temas tratados com criticidade e bom-humor,

com o estilo de Cony e que fazem parte do cotidiano coletivo.

A fim de criar empatia com o leitor, Cony apropria-se de textos de outros

autores ou do universo popular para introduzir ou desencadear sua estrutura

argumentativa.

Na crônica “A bela e a fera”, a introdução aponta que a infância é uma fase

permeada por belos devaneios, entre eles imaginar que se pode habitar um palácio

como o da Bela e da Fera ou sonhar com torneiras que jorrem guaraná gelado. No

encadeamento, há a presença de argumentos fundamentados na estrutura do real

por meio do argumento pragmático que estabelece a relação de causa-efeito – a

maturidade ameniza o prazer do sonhar.

Pela técnica do uso de argumentos quase lógicos, o narrador-personagem

interpreta que ao deixar de fantasiar, a descoberta da internet também trouxe

reflexos “às avessas” para sua vida e, pela retorsão indica que apesar de aterrorizá-

lo a internet tem algo que o encanta.

Além disso, faz analogias entre o palácio dos sonhos e a internet e entre abrir

a caixa postal de mensagens e abrir a ilusória torneira de refrigerantes. E, em um

novo argumento pondera que o que lhe é oferecido pela internet não é o que deseja.

72
Conclusivamente, o narrador argumenta que o futuro da internet é promissor,

contudo o que lhe será oferecido, provavelmente, será o que não é seu mérito.

Nessa crônica, há intertextualidade stricto sensu implícita, uma vez que existe

menção ao conto infantil, porém não possui nenhum trecho do original na íntegra.

Embora seja dito tratar-se de uma história infantil e mais adiante mencionarem-se

“contos de Grimm e Perrault”, não é feita a relação entre a obra e o autor ou

apontamentos sobre trechos do conto.

Assim, em “A bela e a fera” a utilização da intertextualidade na tessitura

argumentativa foi fundamental para vincular a ideia do resgate da infância à

oposição com a vida adulta. A imagem da puerícia envolveu todo o texto e a partir

da intertextualidade com o conto desde o princípio houve a possibilidade da

cumplicidade do leitor.

Em “A tecnologia e o grito de Eureca”, o narrador-personagem introduz a ideia

de que atualmente há a efemeridade de tudo o que é bem material, existe a

predominância da “descartabilidade”. Contudo, menciona que com o progresso

tecnológico, muito ainda precisa ser criado e o será, pois as invenções humanas são

contínuas.

Com o estabelecimento do problema que muito tem de ser inventado, o autor

vale-se de argumentos quase lógicos, já que este determinante é verídico em sua

perspectiva. Aponta a necessidade de criação de um eficaz detector de mentiras e

utiliza da estratégia de definição para afirmar a instalação de um chip no corpo

humano no nascimento para registrar tudo o que for feito na vida, inclusive

denunciar as mentiras.

Convicto da importância de um detector de mentiras, o narrador expõe sua

utilidade, porém anseia que não venha em breve, opondo-se, assim, a tal ideia por

73
meio de retorsão. Pausa a argumentatividade e usa o recurso narrativo de flash-

back, que consiste em voltar no tempo para retratar um episódio de sua infância –

engraxava sapatos e tinha dificuldades em abrir as latas de graxa.

Com a técnica argumentativa do desperdício – desperdiçava tempo abrir latas

de graxa – insere a ideia das invenções (criação de alavanca lateral para abrir latas)

e, nesse momento, faz uso de nomes de grandes inventores como argumentação

pelo exemplo, dá destaque ao modelo de Aristóteles para tornar o argumento mais

consistente e relaciona-o com a relevância da tecnologia em sua infância,

estendendo-a para a vida.

Por meio do conectivo mesmo assim retoma que há muito a ser inventado e

emprega a concepção de que a locomoção humana ocorrerá mais agilmente para

qualquer lugar do globo se aproveitar a rotação terrestre. E, pelo argumento do

ridículo, aponta que essa inovação servirá até para o que não temos vontade –

almoçar ou jantar na Groenlândia. Ainda pelo uso desse recurso, indica a ideia de

um amigo acerca de abolir a gravidade ao longo da vida e considera que apesar de

não estar convencido, apreciou a possibilidade de criação.

Por analogia e para reforçar tal ideia, cita Paulo Francis e a questão do

sabonete escorregadio. Como último ensejo de buscar a adesão do leitor, expõe

uma solução “meio-termo” com o argumento pragmático – entre ter ou não ter

gravidade, criaria um sabonete magnético – e, conclui, pelo antimodelo, que embora

tenha tido essa ideia enquanto tomava banho, não sairá nu pelas ruas como

Aristóteles.

A intertextualidade nessa crônica é stricto sensu explícita (cita Arquimedes e

atribui invenções e feitos a ele) e é especialmente importante em dois momentos

cruciais: quando introduz Aristóteles com a ideia da alavanca, emergindo

74
conhecimentos prévios do leitor sobre esse inventor e utilizando-o como modelo e,

no último parágrafo, ao valer-se da ironia ao tratar da atitude adotada por Aristóteles

frente à descoberta, sendo para ele um antimodelo.

Na crônica “Pranto para o homem que não sabia chorar”, o narrador-

observador explicita que em um tempo indeterminado (naquele tempo), mas que

depois é facilmente perceptível (remete à infância de dois irmãos), as quitandas

vendiam poucas galinhas – a maioria das pessoas já as criava no quintal de casa –

e feixes de varas de marmelo, que os pais compravam para dar surra nos filhos.

Nesse texto é utilizada uma frase intertextual de origem popular, que o autor

assume não ser reproduzida literalmente – Quem nunca passou pela rua tal às cinco

da tarde não sabe o que é a vida – mas que mantém o sentido pretendido.

Na construção argumentativa, é utilizada como tese principal a ideia de que

para garantir a boa conduta dos filhos, os pais dispunham de artifícios como dar

surra com vara de marmelo e ameaçar matricular em internato. Esse argumento

efetiva-se ao relatar que quando o irmão não se comportou adequadamente, ou

seja, usou as tintas do pai sem permissão, foi surrado com vara de marmelo e,

consequentemente, chorou.

A transcrição do intertexto homem não chora instaurou-se como outra tese da

crônica e também como o estopim para afirmar ao protagonista que ele não deveria

chorar, isto também está baseado em valores do auditório (ou dos leitores), uma vez

que essa frase é de cunho popular e de domínio geral.

Na relação causa-efeito, fundamentado na estrutura do real, pelo argumento

pragmático, ele queria tornar-se homem, portanto não lhe era permitido chorar; se

chorasse, não seria homem. Assim, a partir desse argumento, o narrador relata

situações - para dar credibilidade aos argumentos anteriores - em que o irmão

75
chorou na infância e na vida adulta, bem como cerca de 200 mil homens “não-

homens” que choraram na Copa de 50.

Com o número exorbitante de homens que choravam, surge ao narrador uma

dúvida – não podia ou não sabia chorar? – após comprovação (vale-se de situações

tristes para tentar chorar e, menciona a perda da medalhinha de Nossa Senhora de

Lourdes que o livraria de todo o mal), nota que, de fato, não sabia chorar. Por meio

de argumento de definição, aponta que tanto o choro como o samba são atividades

em que se nasce sabendo.

E, para justificar o seu “não chorar” respaldado no argumento quase lógico do

ridículo, julga que muitos choram errado, “misturando motivos”, assim como seu

irmão. Pela retorsão, indica que os que choram, inclusive seu irmão, têm a virtude

do “dom das lágrimas”. Aqui há intertextualidade com passagens religiosas. O

próprio narrador cita o asceticismo, que é uma filosofia de vida que se abstém dos

prazeres individuais do mundo e tem como foco a austeridade e a espiritualidade

para busca da “paz interior”. O ascetismo é associado aos monges, yogis e

sacerdotes, mas não se restringe a eles.8

Além disso, há referências a José e a Jesus, em que são citadas passagens

bíblicas. Segundo as Escrituras Sagradas, pelo dom das lágrimas, Deus cura o

coração ferido pelo pecado, purifica-o e fortalece-o contra todo o mal.9

Para concluir, o narrador admite que ele, em nenhuma circunstância, mereceu

o dom das lágrimas, o que leva o leitor a crer que chorar é uma virtude divina e que

nem todos são dignos de tê-la.

8
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascetismo_(filosofia)
9
Fonte: MENDES, Márcio. O Dom das Lágrimas. – Editora Canção Nova: São Paulo, 2007.

76
A intertextualidade nessa crônica é, em três dos casos citados, stricto sensu

explícita, pois o autor vale-se da forma marcada por aspas para sinalizar àquele que

lê que é preciso resgatar por meio de indícios explícitos referências em seus

conhecimentos prévios. Apenas em um deles (...uma medalhinha de ouro que o

livraria de todo o mal, amém) a intertextualidade é stricto sensu implícita, pois o

autor subentende que é um conhecimento partilhado socialmente e que não

necessita de maiores esclarecimentos.

Os intertextos foram utilizados na crônica para ressaltar a tese de que os

filhos deviam apanhar para ter boa conduta (Quem nunca passou pela rua tal às

cinco da tarde não sabe o que é a vida), para formular nova tese de que homem não

chora, para reafirmar que o narrador não sabia chorar, (mesmo quando perdeu a

medalhinha que o livraria de todo o mal, amém) e, para finalmente, apresentar ao

leitor a importância religiosa do choro, o dom das lágrimas, ou seja, todo

encadeamento argumentativo foi introduzido ou demarcado por intertextos.

Em “Bandas & bandas”, o narrador-personagem afirma que não há

unanimidade nas festas de fim de ano sobre a melhor banda do Brasil e do mundo,

uma vez que existe diversidade de preferências. O narrador conta que não conhecia

a maioria das bandas citadas como as melhores e, por meio do argumento quase

lógico do ridículo, ironiza assegurando que não era citada a única banda que

conhecia, a Banda dos Fuzileiros Navais. Ele comenta sobre as bandas militares e

os repertórios que perpassa por várias épocas. Desse modo, relembra “A banda”, de

Chico Buarque para argumentar, expressivamente, que o conceito de banda e os

repertórios mudaram ao longo dos anos.

A intertextualidade stricto sensu é explícita com a composição “A banda” do

músico, dramaturgo e escritor brasileiro Chico Buarque, em que, além de fazer

77
menção ao nome do compositor e da canção, também menciona um trecho da

música (Que nada mais é do que uma homenagem às bandas que passavam e

havia alguém à toa na vida para vê-las passar).

O narrador argumenta por analogia que o repertório dura bastante como

fósforo ou traz consequências, mas depois acaba como fósforo queimado. E, conclui

a partir da mesma analogia, afirmando que as bandas cumprem função de fósforo –

iluminar o mundo e deixá-lo mais alegre.

Nessa crônica, o único intertexto utilizado serve para introduzir o argumento

de que as bandas e os repertórios que trazem consigo mudaram muito no decorrer

dos anos, sendo fundamental a sua relevância no texto.

Em “O Carnaval e o menino”, o narrador-personagem inicia a crônica com um

trecho de marchinha carnavalesca para situar o leitor na ambientação e no tempo

narrativo. E, em seguida, remete à sua infância por meio de técnica argumentativa

de retorsão, já que aponta que simultaneamente tinha temor e vontade de ser

mascarado como aqueles carnavalescos.

Valeu-se de várias máscaras em diversas situações, sem obter sucesso e, no

Carnaval, por meio do argumento de definição afirma tudo o que o narrador já havia

feito nessa época. Resgata a época de sua infância e indica que se fantasiou de

morcego, após ter sua fantasia de chinês arruinada por seu irmão, que assim como

ele, também estava descontente com sua vestimenta. Ao retornar para casa, depois

do Carnaval, perguntavam-lhe se havia gostado da festa e, por meio do argumento

pragmático dizia que sim, pois se negasse, precisaria explicar-se.

Com o intuito de dar continuidade à ambientação da época, refere-se ao

repertório das rádios, à fantasia de seu pai e do deslumbre de sua mãe pela festa,

que o levava a fazer parte da comemoração e ouvir as marchas-hinos

78
carnavalescos. Há, nesse momento, intertextualidade com mais uma marchinha da

época e novo argumento de retorsão, que demonstrava o antagonismo entre a

alegria que deveria ser propiciada no Carnaval e o desgosto que tinha em participar

daquela festa fantasiado daquela maneira, com a mesma máscara de morcego que

sempre lhe trazia infelicidade.

Nessa crônica, os trechos das marchas populares são sinalizados com aspas

e barras para separar os versos, o que caracteriza tratar-se de intertextos stricto

sensu explícitos. Nesse caso, a ambientação foi marcada pelo resgate de tais

marchinhas que se enlaçaram à construção argumentativa de que para o narrador

Carnaval não é alegria.

Em “A história mais bonita” o narrador principia a crônica aludindo a um

trecho da cantiga de roda “Ciranda, cirandinha” para alegar que seguramente a

história que será narrada é a mais bela de todas. De modo bem-humorado é

contada a passagem bíblica em que o Arcanjo Gabriel faz a anunciação à Virgem

Maria (intertexto).

Primeiro o anjo aparece em sonho a José e depois à Maria para afirmar que

daria à luz a um menino. Com o argumento de justiça, a mulher hipoteticamente

poderia questioná-lo com relação à gravidez sendo ela virgem e prometida a um

homem mais velho. E, após contestação do anjo, Maria consente e responde com

um intertexto referente ao trecho bíblico (Seja feita em mim a sua vontade).

Pelo argumento pragmático, José poderia recear da gravidez de Maria, mas

não o fez e, com o nascimento da criança, protege o bebê e a mãe, já que Herodes

queria matar os recém-nascidos. Posteriormente, Maria compreende a situação e,

anos depois, na Renascença, o trivial cenário da amamentação de um bebê (Maria

amamentando Jesus) torna-se arte. Nessa passagem há intertextualidade não-

79
verbal, em que são mencionadas as pinturas que retratavam aquele cenário

sagrado. Para finalizar a crônica, o narrador retoma o trecho inicial dizendo que se

alguém conhecesse história mais bonita, poderia revelá-la.

A intertextualidade stricto sensu implícita nessa crônica é válida para iniciar e

encerrar o encadeamento argumentativo, além de servir para sustentá-lo e exaltá-lo

como na circunstância em que é citada a repercussão da história bíblica de Maria

nas obras de arte.

80
CONCLUSÃO

Por meio desse estudo foi possível notar que a crônica, em especial a crônica

literária, é um gênero de efetiva construção argumentativa e que, atrelada ao

recurso da intertextualidade, é capaz de aliar-se ao interlocutor no sentido de fazer-

se compreender devido à proximidade de linguagem e de expressividade relativa

aos fatos cotidianos e à partilha de conhecimentos de cunho social representados

por ditos populares, quadrinhas infantis, trechos bíblicos, frases feitas, entre outros.

Com a objetividade e coloquialidade dos textos produzidos pelo cronista

Carlos Heitor Cony, debruçamo-nos a eles com olhar precedido pelas

especificidades da vida e do modo com que o autor apreende o mundo. A análise de

tais crônicas foi fundamental para entrelaçar teoria e prática textual com o intuito de

verificar se, de fato, a intertextualidade contribuía para o encademento

argumentativo e para o convencimento e a persuasão do leitor.

Notamos que além de enriquecer as crônicas, a intertextualidade aproxima o

interlocutor, preparando-o em relação à ambientação narrativa, para introduzir ou

dar credibilidade aos argumentos utilizados, reforçando-os.

Embora seja apenas um dos recursos viáveis e esteja atrelada à preferência

ou ao estilo literário do cronista, a intertextualidade certamente colabora para a

adesão leitora e vincula-se à argumentatividade, tornando-a mais vigorosa.

81
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São Paulo: Globo, 2004.

84
ANEXOS

ANEXO A – A bela e a fera

Um dos desejos de minha infância foi habitar um palácio como o da Bela e da

Fera, evidente que sem a Fera. Tinha tudo do bom e do melhor naquele palácio. As

luzes se acendiam à passagem da moça, a mesa estava posta, havia solidão e

silencio, ninguém enchia o saco dela, a Fera providenciava tudo e ainda fazia o favor

de não aparecer, não queria assustá-la.

Eu imaginava um palácio mais modesto, seria a minha própria casa, apenas

com um acréscimo: em todas as paredes haveria umas torneirinhas que despejariam

guaraná no meu copo. Eu era louco por guaraná, ficava triste quando tomava um,

confinado numa garrafa banal, que mal dava para encher um copo.

Queria mais, e muito, daí que sonhava com torneiras em todas as paredes,

bastava abri-las e o guaraná geladinho jorraria para matar a minha sede e me

tontear de prazer.

A injúria do tempo, somada ao desgaste dos anos, sepultou o delírio, mas fui

fiel a ele, não tive outros pela vida afora. Esqueci a Bela e a Fera, o Palácio

Encantado, as torneirinhas jorrando guaraná.

Eis que, deixando de ler historinhas infantis, de repente descobri um

sucedâneo, bem verdade que às avessas: a internet. Ela não me deslumbra como

os contos de Grimm e Perrault, pelo contrário, me aterroriza, mas tem alguma coisa

de encantado. Toda vez que abro a caixa postal, é como se abrisse a torneirinha

daquele palácio que a memória não esqueceu mas a vida demoliu.

Não recebo o guaraná mágico para matar minha sede e me tontear de prazer.

Recebo mensagens propondo regimes de emagrecimento, macetes para aumentar o

tamanho do pênis, oferecem-me terrenos que não quero comprar e viagens que não

85
pretendo fazer. Vez ou outra, pinga uma gota de afeto – mal dá para encher o copo

e embromar a sede.

Ouvi dizer que a internet está na Idade da Pedra, mais um pouco ela poderá

me dar mais e melhor. Um dia abrirei o computador e terei o guaraná que não

mereço.

CONY, Carlos Heitor. Crônicas para ler na escola. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 – p.29-30.

86
ANEXO B – A tecnologia e o grito de Eureca

Bons tempos os que vivemos, em que tudo tem prazo de validade e tudo

pode ser descartável. Meu pai herdara uma máquina fotográfica do meu avô, foi com

ela que registrou os primeiros passos de seus filhos, o batizado, a primeira

comunhão, chegou mesmo a fotografar o casamento do irmão mais velho com o

mesmo equipamento, que era chamado de “caixote”. Ainda tenho fotos tiradas por

aquela ancestral das atuais câmeras digitais, que duram o espaço daquelas rosas

de Malherbe.

Apesar de tanto e tamanho progresso tecnológico, muita coisa ainda precisa

ser inventada, e fatalmente o será; já disseram por aí que tudo o que o homem

pensa mais cedo ou mais tarde pode ser realizado materialmente. A viagem à Lua, o

submarino, aquele termômetro dentro do peito do peru para apitar na hora em que

estiver pronto – são muitas as invenções do engenho humano, desde a roda dos

sumérios ao “Jingle Bells” tocado nos celulares durante as festas de Natal.

Evidente que faltam muitas coisas, como um bom detector de mentiras para

garantir a verdade em suas múltiplas variedades, desde a desculpa da sogra doente

para não irmos àquela missa de sétimo dia aos depoimentos prestados nas CPIs do

Congresso. Há um embrião científico para captar mentiras, mas é rudimentar, difícil

de operar e de interpretar. O sujeito fica amarrado por fios e por eletrodos que

registram batimentos cardíacos, pressão sanguínea, dilatação das pupilas, sei lá,

são meio furados, de credibilidade duvidosa.

Brevemente, ao nascer um novo ser humano, será instalado em algum lugar

de seu corpo um chip de duração ilimitada que registrará imagem e som de tudo o

que ele fizer na vida – ou o que os outros fizerem com ele. O assassinado terá

registrado o seu assassino, o ladrão gravará forçadamente o seu roubo, não haverá

87
espaço para a mentira, o falso testemunho, o perjúrio. A esposa infiel não poderá

negar o adultério – bons tempos virão, mas espero que não venham já.

Da minha parte, já confessei que fiquei pasmo com uma das invenções do

admirável mundo novo que muito me beneficiaram. Em criança, obrigavam-me a

engraxar os sapatos, era quase uma exigência de higiene corporal andar de sapatos

engraxados. E as latas de graxa eram insidiosas, custavam a ser aberta, batia-se

com elas em algum lugar duro, ficavam amassadas e aí mesmo é que se recusavam

a abrir.

Até que um gênio, maior do que Leonardo, maior do que Edison, inventou

uma pequena alavanca lateral na parte de cima da lata. Se Arquimedes garantiu que

levantaria a Terra se tivesse um ponto de apoio no espaço onde pudesse colocar

uma alavanca, eu me senti um Arquimedes do Lins de Vasconcelos quando

confrontei a primeira lata de graxa com a alavanquinha de metal ordinário que me

abriu, mais do que uma lata de graxa, o território mágico da tecnologia moderna.

Mesmo assim, desconfio que falta muita coisa a ser inventada. Tenho um

amigo que garante a facilidade com que podemos viajar sem avião, trem, carro ou a

pé. Aproveitando a rotação do nosso planeta, uma almanjarra qualquer que ainda

será criada nos elevará a uma certa altura, e lá de cima esperaremos que a Terra

gire até o ponto onde queremos saltar. Posso sair daqui da Lagoa ao meio-dia e

meia e almoçar na Groenlândia à uma da tarde, sem esforço, sem apertões e por

baixo custo. O problema é que – Deus é testemunha – não tenho nenhum interesse

em almoçar ou jantar na Groenlândia.

Tive um amigo, professor e crítico de arte que, depois dos 50 anos, escreveu

um tratado propondo a revogação da lei da gravidade para os maiores de sua idade.

Seria uma revogação proporcional ao número de anos acumulados: aos 50, a

88
gravidade seria reduzida para 50%. Aos 60, a redução seria 10% maior. E assim, se

o cara insistisse mesmo em viver, aos 100 anos teria gravidade zero, como os

astronautas e os corpos que flutuam no espaço.

Ele conversou comigo, mas não me convenceu. Achei um bocado difícil abolir

a gravidade assim, sem mais nem menos, embora apreciasse o benefício resultante.

O Paulo Francis, por exemplo, que andava pelos 60 e tantos anos, reclamava que

ao tomar banho o sabonete sempre escorregava de suas mãos e era difícil de

resgatá-lo do ladrilho molhado, escorregadio como uma lesma oval e ensaboada. O

bom Francis amaldiçoava a lei da gravidade com a mesma indignação do professor

de arte acima citado.

Daí que estou pensando numa solução de meio-termo, acredito que mais

viável do que a pura e simples abolição da gravidade. Seria o sabonete magnético.

Uma luva na mão esquerda com um elemento metálico e, dentro de cada sabonete,

outro elemento metálico. Poderíamos esfregar nosso corpo de alto a baixo, suas

saliências e profundezas, sem necessidade de cairmos de cócoras e ficarmos

catando o sabonete como certos goleiros catam seus frangos.

A posteridade ainda me fará justiça por ter tido esta ideia que me veio durante

o banho de ontem. O citado Arquimedes ali de cima também teve ideias enquanto

tomava banho e saiu nu pelas ruas de Atenas gritando eureca! Eureca! Prometo não

fazer isso.

CONY, Carlos Heitor. Crônicas para ler na escola. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 – p.33-5.

89
ANEXO C – Pranto para o homem que não sabia chorar

Havia quitandas naquele tempo. Vendiam verduras, legumes, ovos, algumas

chegavam a vender galinhas em pé, quer dizer, vivas, mas eram poucas, pois todas

as casas tinham quintal, e todos os quintais tinham galinhas. Ia esquecendo: as

quitandas mais sortidas tinham à porta, bem visíveis aos passantes, um feixe de

varas de marmelo.

Para que serviam? Fica difícil explicar, mas serviam para os pais comprarem

uma delas e a guardarem em casa, num lugar à mão e bem visível aos filhos. Quem

nunca tomou uma surra de vara de marmelo não pode saber o que é a vida, de que

ela é feita, de suas ciladas e enigmas. Há aquela frase: “Quem nunca passou pela

rua tal às cinco da tarde não sabe o que é vida”. A frase não é bem essa, mas o

sentido é esse.

Uma surra de vara de marmelo era o recurso mais eficaz para colocar a prole

em bom estado de moralidade e bom comportamento. Acima dela, só havia o

recurso capital de ameaçar o filho com um colégio interno da época: Caraça! Ir para

o Caraça, a possibilidade de ir para o Caraça era uma pena de morte, uma

condenação ao inferno, um atestado de que o guri não tinha jeito nem futuro.

Houve a tarde em que o irmão mais velho fez uma lambança com uma das

tintas que o pai comprara para pintar a casa de Segredo, o cachorro que era solto à

noite para evitar que os amigos do alheio pulassem para o quintal e roubassem as

galinhas – repito, todas as casas tinham galinhas.

E “amigos do alheio” era uma expressão, uma metáfora civilizada que os

jornais usavam para se referir aos ladrões de qualquer coisa, inclusive de galinhas.

Pois o irmão foi surrado com vara de marmelo e chorou. O pai então proferiu

a sentença que ele jamais esqueceria: “Homem não chora!”

90
Em surras seguintes e sucessivas, com a mesma vara de marmelo (ela nunca

se quebrava, por mais violenta que tivesse sido a surra anterior), o irmão tinha o

direito de gritar, de urrar, de grunhir como um leitão na hora em que entra na faca,

mas não de chorar.

Por isso, mesmo sem nunca ter tomado uma surra daquelas, ele sabia que

um homem não pode chorar, nem mesmo quando açoitado por vara de marmelo. O

vizinho do Lins, que tinha um filho considerado perdido, percebendo que a vara de

marmelo era ineficaz como um remédio com data de validade vencida, adotou uma

tira de borracha que servira de pneu a um velocípede desativado. Tal como a vara

de marmelo, era maleável, mas inquebrantável, deixava lanhos nas pernas do filho –

que mais tarde chegaria a ser capitão de mar e guerra, medalhado não em guerra

nem em mar, mas por tempo de serviço.

Homem não chora e, por isso, ele decidiu que seria um homem e jamais

choraria. O irmão, sim, era um bezerro desmamado, chorava à toa, nem precisava

de vara de marmelo. Chorou no dia em que Segredo morreu envenenado – um

amigo do alheio, antes de pular no quintal, jogou-lhe um pedaço de carne com

arsênico.

Chorou mais tarde, quase homem-feito. Esquecido de que o homem não

chora, ele chorou quando o Brasil perdeu para o Uruguai no final da Copa do Mundo

de 1950. Não era homem. Atrás do gol, viu quando Gighia chutou e o estádio

emudeceu e logo depois chorava, seguramente o maior pranto coletivo da história

da humanidade, 200 mil pessoas que não eram homens, chorando sem vergonha de

não serem homens.

Ele não podia ou não sabia chorar? Essa era a questão. Volta e meia forçava

a barra, lembrava as coisas tristes que lhe aconteceram, o dia em que o pai o

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colocou de castigo, atribuindo-lhe a quebra de uma moringa. A perda da medalhinha

de Nossa Senhora de Lourdes que a madrinha lhe dera, uma medalhinha de ouro

que, segundo a madrinha, o livraria de todo o mal, amém. Não chorou nem mesmo

quando, naquela primeira noite após a morte de sua mãe, ele se sentiu sozinho na

vida e perdido no mundo.

Daí lhe veio a certeza. Poder chorar até que podia. O diabo é que ele não

sabia mesmo chorar. Chorar é como o samba que não se aprende na escola: ou se

nasce sabendo, ou nunca se sabe. Bem verdade que ele desconfiou que os outros

chorassem errado, misturando motivos. Por exemplo: o irmão, que era um Ph.D. na

matéria, quando chorava, fazia um embrulho de coisas e desditas, um mix de

quebrações de caras, e obtinha um pranto copioso, sincero, lágrima puxando

lágrima, soluço puxando soluço.

Quando perdeu uma bolada num cassino de Montevidéu, foi para o quarto do

hotel, bebeu meia garrafa de uísque e, tarde da noite, telefonou dizendo que,

passados quarenta e tantos anos, ainda estava chorando pela morte de Segredo.

Tivera ele essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de “dom das

lágrimas!” José, vendido por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se poderoso e

um dia recebeu os irmãos que o procuraram para matar a fome. Os irmãos não o

reconheceram. José perguntou-lhes sobre o pai e retirou-se a um canto para chorar.

Depois, sim, deu-se a conhecer e matou a fome dos irmãos que o venderam.

Jesus chorou quando soube da morte de Lázaro e o ressuscitou. A lágrima é

um dom, e ele não mereceu esse dom nem mesmo quando Débora foi embora de

seus sonhos e, como nos tangos, nunca mais voltou.

CONY, Carlos Heitor. Crônicas para ler na escola. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 – p.39-42.

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ANEXO D – Bandas & bandas

Vejo pesquisa feita durante as festas de fim de ano sobre a melhor banda

existente no mundo e no Brasil. Praticamente não houve duas opiniões iguais. Caras

legais e caretas, gente pobre, gente rica, todos tinham preferências em bases

radicais, não admitiam concorrência, escolhiam determinada banda e amaldiçoavam

as outras, eliminando fisicamente as demais.

Confesso (desnecessariamente) que não conhecia a maioria das bandas

citadas. Mas me admirei que ninguém citasse a única banda que é banda

incontestavelmente, a Banda dos Fuzileiros Navais (reconheço que esta é forte, mas

que fazer?).

Excetuando os dobrados militares, que trazem péssima recordação dos

tempos totalitários, o repertório é quadrado, mas vai fundo no osso, com os

sucessos de ontem certamente, mas que amanhã continuarão sendo lembrados e

tocados.

Inclusive “A banda”, do Chico Buarque, que foi o chute inicial de sua carreira.

Que nada mais é do que uma homenagem às bandas que passavam e havia alguém

à toa na vida para vê-las passar.

O conceito de banda mudou, o repertório também. Um repertório elástico, que

funciona como um fósforo que se risca, ilumina por um momento, pode até transmitir

sua chama a uma vela mais duradoura, e de uma vela acender outras, milhares de

chamas clareando a vida e o mundo de forma permanente.

Na alternativa, um fósforo aceso pode botar fogo numa casa, numa rua, numa

cidade. Mas depois acaba como um fósforo queimado – uma das metáforas mais

usadas para expressar a inutilidade de uma coisa ou causa.

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Qualquer banda, esta ou aquela, das centenas que surgem todos os dias e

em todas as partes, cumpre sua função de fósforo, vale enquanto está acesa,

iluminando um mundo que, sem ela, seria mais triste e escuro.

CONY, Carlos Heitor. Crônicas para ler na escola. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 – p.63-4.

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ANEXO E – O Carnaval e o menino

“No grande teatro da vida/ vão levar mais uma vez/ a revista colossal:/ Pierrô,

Arlequim, Colombina/ vão a preços populares/ repetir o Carnaval”. Tal a quadrinha

de antiga, memorável marchinha, esqueci o seu autor, lembro a letra, a música e o

jeito de Mário Reis em antecipada bossa nova, aí pelos anos 30, eu era menino e

esperava o Carnaval (que os jornais xingavam de “tríduo momesco”) com certo

temor, medo dos mascarados e, ao mesmo tempo, vontade de ser um deles.

Até que fui – e não apenas durante o Carnaval. Grudei na cara várias

máscaras, várias caras – e se não obtive pode e glória, ao menos sobrevivi quieto e

no meu canto, fazendo um tipo de Carnaval a meu modo, interior, doído, véspera de

Cinzas.

Já fiz mais ou menos de tudo no Carnaval. Desde os retiros espirituais no

seminário (segundo as santas regras de Santo Afonso Maria de Ligório) até o retiro

forçado na cela da Polícia Especial, ali mesmo na rua Barão de Mesquita, onde a

ditadura cismava de meter os adversários do regime.

Também já fui a bailes e a outros folguedos, geralmente a trabalho, que a

profissão é áspera e exige cara de pau, não raras vezes pau na cara. Tudo bem.

Para vergonha e opróbrio de meus descendentes até a milionésima geração,

saí de morcego, em criança, assustando outras crianças em Paquetá. Minha mãe

havia confeccionado complicada fantasia de chinês (ou japonês, dava na mesma),

cuja atração principal era o chapéu de cartolina, em feitio de chapéu chinês mesmo.

Tomaram meu silêncio como aprovação, nem quiseram saber minha opinião.

Suei frio ao me imaginar com aquele chapéu, mas aí o meu irmão virou a mesa (ele

ia sair de reles marinheiro americano, não era bem uma fantasia, mas um quebra-

galho carnavalesco) e urinou em cima do meu chapéu chinês.

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Não havia tempo para a fabricação de outro artefato elaborado como aquele.

Meu pai deu-lhe alguns safanões por conta do chapéu e de outras patifarias

menores que iam se contabilizando na ficha de seu comportamento.

Minha mãe foi ao armarinho, comprou pano preto, a horrível máscara preta

pendurada do lado de fora da loja, máscara que cheirava a papelão e a cola – e

assim passei e passeei os três dias que chamavam de folia pelas ruas desertas e

cheias de sol de Paquetá, dando susto nas crianças que conhecia e evitando

aquelas que não conhecia, podiam ser mais fortes do que eu e aí o sovado seria eu,

com máscara e tudo.

Quando a tarde caía, eu de morcego, botava a máscara de grandes orelhas

em cima da cabeça e voltava para casa sentindo-me mau e amaldiçoado,

perguntando-me sem resposta: quem foi o cretino que inventou essas coisas?

Em casa, todos queriam saber se eu havia gostado do meu Carnaval.

Respondia que sim, não queria complicar a vida dos outros, bastava a minha própria

complicação. Se respondesse que não, seria obrigado a dar explicações, o melhor

era ir na onda para me deixarem em paz.

No rádio, tocavam as músicas do ano, cada ano tinha repertório próprio,

Mário Reis, Chico Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas estavam em todas, o grande

teatro da vida, o pierrô, o arlequim, a colombina a preços populares – meu pai não

achava os preços tão populares assim, pagava os tubos para entrar nos bailes,

fantasiava-se de remador de São Cristóvão; era dos raros, raríssimos torcedores do

clube da rua Figueira de Melo –, minha mãe não se fantasiava mas achava tudo

bonito, e numa madrugada ela me acordou e pegou pela mão, me levou até a ponte

onde aportava a última barca trazendo os escombros, mutilados pedaços de um

rancho que voltava do Rio, os fogos de bengala ainda vivos e azulados iluminando

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as espumas que vinham morrer na praia dos Tamoios, as lanternas de vidro colorido

refletidas nas cabeleiras empoadas dos mestres-salas. Ao pisar a terra firme, o

rancho renascia de seu cansaço e se arrastava uma vez mais na marcha-hino que

louva e eterniza a ilha, “Paquetá é um céu profundo/ que começa neste mundo/ mas

não sabe onde acabar”, o ritmo lento, e aquelas luzes que ficavam mais tristes e

mais vivas dentro da madrugada, longe o faroleiro do Xeréu apagava seu facho

vermelho, e na manhã seguinte eu vestia o morcego, a máscara com cheiro de

papelão e cola, suada já, e eu sozinho, eu-morcego, batendo as ruas cheias de sol,

encontrava outros meninos-morcegos, era uma espécie de fantasia oficial dos

meninos de Paquetá, e sentia frio na espinha quando esbarrava com uma caveira,

de camisola branca e encardida, a cruz preta nas costas, devia ser um garoto igual a

mim, mas nunca se sabe, e esta dúvida me perseguia a tarde inteira, por que botam

caveiras nas ruas no Carnaval? – e eu não entendia o grande teatro da vida

(tampouco o entendo agora) nem a revista colossal, mas compreendia o pierrô de

alvaiade, o branco rosto banhado de luar, o luar de Paquetá, céu profundo que

começa neste mundo e não sabe onde acabar. Quando tirava a máscara, ela estava

molhada de suor. Um suor tão salgado e tão meu que parecia lágrima.

CONY, Carlos Heitor. Crônicas para ler na escola. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 – p.111-3.

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ANEXO F – A história mais bonita

Se alguém conhece história mais bonita, que conte logo, diga adeus e vá se

embora. A que eu conheço é antiga e faz hoje, mais ou menos, dois mil anos. Um

homem humilde, noivo de uma jovem mais moça do que ele, sonha com um anjo

que o avisa:

– Olhe, não esquenta a cabeça mas sua noiva vai ter um filho. Guenta as

pontas, você não tem nada a ver com isso, fique na sua e deixe o resto por nossa

conta.

Na mesma ocasião, outro anjo aparece à mulher – na realidade, uma menina

de 15 anos – e lhe dá um recado equivalente:

– Não esquenta a cabeça mas você vai ter um filho...

A menina podia ter perguntado:

– Mas como? Estou prometida a um homem mais velho e ainda sou virgem!

– Fique na sua – diz o anjo –, você não entenderá o que está acontecendo

mas é a vontade de Deus.

A menina-moça responde:

– Seja feita em mim a sua vontade.

Em silêncio (nenhum dos evangelhos registra uma só palavra pronunciada

pelo carpinteiro José), ele nem comenta o fato com a mulher. Nove meses depois,

numa gruta, cercados por um boi e um burro, nasce a criança. Ele protege a mulher

e o filho que não é dele.

Sabendo que Herodes quer matar os recém-nascidos, toma a mulher e o

menino, foge para o Egito.

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Não tem uma ideia precisa do que está acontecendo com ele e com aquilo

que poderia chamar de “sua família”. Cumpre, sempre em silêncio, uma ordem

misteriosa vinda de uma entidade na qual talvez nem acredite.

Tampouco a menina-moça compreende o que está se passando. Mais tarde

os pintores da Renascença encheriam o mundo com aquela cena banal, a moça

com o seio de fora, amamentando a criança, o homem à distância, cuidando que os

inimigos não se aproximassem.

Como disse no início, quem conhecer história mais bonita conte logo, diga

adeus e vá se embora.

CONY, Carlos Heitor. Crônicas para ler na escola. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 – p.153-4.

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