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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP


FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
SETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO

RELATÓRIO DE PÓS-DOUTORADO
TRÊS MODELOS DE EDIÇÃO E ESTUDO LEXICAL DO DOCUMENTO
RELAÇÃO DO MARANHÃO DO PE. LUIZ FIGUEIRA 1608

Expedito Eloísio Ximenes

Fortaleza / São Paulo


2017
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Expedito Eloísio Ximenes

RELATÓRIO DE PÓS-DOUTORADO
Três modelos de edição e estudo lexical do documento RELAÇÃO DO MARANHÃO do
Pe. Luiz Figueira 1608.

Relatório de pesquisa apresentado ao


Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Universidade de São Paulo
referente à realização de estágio de pós-
doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Filologia de Língua Portuguesa, realizado em
2016, com supervisão do Prof. Dr. Manoel
Mourivaldo Santiago-Almeida

Fortaleza/São Paulo
2017
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Dedico este trabalho ao meu muito caro amigo


Eric Mota pelas conversas e discussões a
respeito do texto Relação do Maranhão e do
glossário, agradecendo as contribuições que
me deu. Sou muito grato.
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AGRADECIMENTOS

Às entidades superiores pela companhia fiel e sincera em todos os momentos da minha vida.
À Universidade Estadual do Ceará – UECE – pela minha liberação de um ano para esta
pesquisa.
À Universidade de São Paulo – USP – por ter me aceitado em seu programa para este estágio.
Ao meu amigo e supervisor Prof. Dr. Manoel Mourivaldo de Santiago-Almeida pela
disposição em me supervisionar, por sua amizade e por ser uma pessoa fantástica.
Ao meu colega Prof. Francisco Carlos Carvalho da Silva e a Profa. Geórgia Gardenha pela
busca do manuscrito no acervo do ARSI em Roma e pelo presentão que me ofertaram que foi
o fac-símile da Relação do Maranhão.
Aos meus alunos de pós-graduação da UECE pelas ajudas, principalmente Luís Eleído Pereira
Alves, Adriana Marly Sampaio Josino e Ticiane Rodrigues Nunes.
Aos membros do grupo de pesquisa Práticas de Edição de Textos do Estado do Ceará-
PRAETECE- pela confiança.
Aos meus colegas do Curso de Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão
Central - FECLESC- Campus da UECE em Quixadá-Ceará por aceitarem minha liberação.
A todo os meus familiares e amigos que Deus seja sempre em nossas vidas.
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RESUMO

Este relatório de pesquisa de pós-doutorado pretendeu, em suas linhas gerais, estudar o


documento muito importante para a história do Ceará intitulado Relação do Maranhão 1608,
escrito pelo padre jesuíta Luiz Figueira, e enviado ao superior da Companhia de Jesus, padre
Claudio Aquaviva. Nosso estudo embasou-se nos parâmetros da crítica textual, da ecdótica e
da linguística, pois apresentamos três modelos de edição: a fac-similar, a edição diplomático-
interpretativa e a edição interpretativa (modernizada), que visa preservar ao mesmo tempo as
formas originais do manuscrito e a facilitação de leitura por parte de um público alvo não
especialista em leitura paleográfica, mas interessado no conteúdo do documento. Além dos
três tipos de edição, fizemos uma análise comparativa dos testemunhos existentes, cotejando
as variantes com o intuito de corrigirmos alguns erros que foram passando à medida que o
documento foi sendo reproduzido, e ainda fizemos um estudo linguístico do texto, por meio
do levantamento do léxico e organização de um glossário com micro e macroestruturas
definidas. Considerando o valor que o documento tem para a historiografia cearense, para a
história da Companhia de Jesus e para a história colonial do Brasil, além da história da língua
portuguesa, sobretudo do léxico empregado no texto, empreendemos nosso esforço nesta
pesquisa, para sanar problemas textuais e oferecer um texto mais confiável para estudos
diversos, dessa forma fortalecemos a Crítica Textual no Brasil e, especificamente no Ceará.

Palavras-chave: Relação do Maranhão; Crítica Textual; Estudo do vocabulário.


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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 6
1.1 Luís Figueira: o autor da Relação do Maranhão.......................................................... 7
1.2 O documento Relação do Maranhão ........................................................................... 10
1.3 Objetivos ......................................................................................................................... 15
1.4 Metodologia .................................................................................................................... 15
2 EDIÇÕES DO DOCUMENTO RELAÇÃO DO MARANHÃO ............................... 18
2.1 Normas da edição diplomático-interpretativa ............................................................ 18
2.2 Normas da edição interpretativa (modernizada) ........................................................ 20
2.3 Os três modelos de edição: Fac-símile, diplomático-interpretativo e interpretativo
(modernizado) ................................................................................................................ 21
3 ORGANIZAÇÃO DO GLOSSÁRIO .......................................................................... 97
3.1 Os tipos de lexias ............................................................................................................ 97
3.2 Processos metodológicos................................................................................................ 99
3.3 O glossário .................................................................................................................... 103
3.3.1 Lexias simples e compostas ......................................................................................... 103
3.3.2 Lexias complexas: as colocações ................................................................................ 157
4 EDIÇÃO INTERPRETATIVA E APARATO DAS VARIANTES ....................... 176
4.1 Algumas considerações teóricas sobre filologia e crítica textual ............................ 176
4.2 Edição interpretativa e notas ..................................................................................... 180
4. 3 As variantes e os comentários .................................................................................... 211
4. 3.1 Analisando os dados .................................................................................................... 213
4.3.2 Erros de adição ............................................................................................................ 213
4.3.3 Erros de Omissão ......................................................................................................... 214
4.3.4 Erros de substituição ................................................................................................... 215
4. 3.5 Comentários sobre os testemunhos ............................................................................. 220
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES .............................................................................. 225
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 228
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1. INTRODUÇÃO

A língua é um instrumento fantástico e o mais poderoso que o ser humano possui


para dominar, impor, expressar desejos, transmitir ideologias, revelar identidades, atribuir
valores, conquistar, reprovar, enaltecer e tudo o que se pretende dizer tanto no sentido ruim,
quanto também no bom. A modalidade da língua escrita é a que ainda mais tem a força
porque a depender da preservação que se dá aos conteúdos registrados e aos suportes que os
mantém, ela se preserva por muitos anos, décadas, séculos, milênios, guardando o que ali foi
posto e conservando a memória e a intenção de quem escreveu ou de quem fez escrever.
O texto escrito é uma reserva de dados históricos, culturais e linguísticos importantes
de uma época e de uma sociedade ou de um grupo específico. Conhecer os textos, ou seja, ter
acesso quando eles se deixam, quando eles se abrem, quando eles chegam às mãos de
pesquisadores é abrir uma porta do passado e escrever um capítulo das relações humanas em
todas as suas dimensões, porque o ato de escrever, em qualquer momento, é cravar ali naquele
suporte seja ele a matéria dura como se fazia nos tempos muito antigos em que se escrevia em
pedra, argila, casca de árvores, seja em matéria branda como o papiro, o pergaminho ou o
papel, seja em matéria virtual como se faz atualmente, o ato de escrever é um ato de revelação
de um pensamento, de uma ideologia, de uma crença, de um juízo de valor, de uma ofensa, de
uma agressão, de uma condenação ou de um ato de defesa, de uma declaração de amor ao
outro, um ato de dizer quem somos no momento de produção do texto.
O texto escrito tem esse poder de preservar tudo quanto o ser humano pensa, não
importa em que tempo ele viveu, mas ele viveu cercado por ideias, pensamentos e estruturas
da língua, palavras, nomes, formas morfológicas, sintáticas, gráficas etc. Tudo isso é possível
ter acesso e se analisar quando tomamos nas mãos um documento escrito.
Neste trabalho, conhecemos um texto produzido nos princípios do século XVII,
datado de 26 de março de 1608, preste a completar quatrocentos e dez anos de seu registro
num suporte frágil como o papel, mas graças a ação da Companhia de Jesus, permanece
intacto e, por meio de sua leitura, mergulhamos no pensamento religioso da época. A
valoração que é feita da cultura indígena no Brasil, sobretudo, dos índios do Ceará, da nação
tabajara que habitava a serra da Ibiapaba e das tribos tapuias que viviam no Maranhão e norte
do Brasil. O comportamento, as crenças e os valores dos nativos em confronto com o
pensamento dos religiosos europeus, com sua cultura e pretensa superioridade e o desejo
desses de impor uma fé pela força da palavra.
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O autor do texto é o padre Luis Figueira, um jovem sacerdote da Companhia de Jesus


que veio para o Brasil, tinha um verdadeiro ardor missionário e era um amante da
evangelização dos nativos. Em seu texto, expressa sua vocação pelo trabalho missionário e
dedicação à igreja católica, pois era fruto daquele contexto em que a religião estava a serviço
do poder do estado, andava de mãos dadas com a administração política e militar. A religião
constituía uma grande força atrelada ao estado para controlar e impor a autoridade secular e
religiosa. Figueira era fruto do seu tempo. Numa pequena incursão em sua vida, podemos
conhecer melhor essa figura carismática.

1.1 Luís Figueira: o autor da Relação do Maranhão

Luís Figueira nasceu em Almodôvar, pertencente ao distrito de Beja, na região do


Alentejo, em data incerta entre 1574 e 1576. Era filho de Diogo Rodrigues e Mayor Revet.
Sua vida religiosa começa em 22 de janeiro de 1592, entre 16 ou 18 anos de idade,
quando entra como noviço no colégio Espírito Santo em Évora onde obteve sólida formação
intelectual. Ali fez seus estudos de Humanidades, Filosofia e Teologia e ordenou-se sacerdote.
Dez anos após a entrada na Companhia de Jesus, embarcou para o Brasil em 1602,
com 26 ou 28 anos de idade e desembarca na Bahia. Começa sua vida missionária pelo
Nordeste e Norte do Brasil. Nas palavras de Serafim Leite (1940, p.22)

Dez anos depois de entrar na vida religiosa, embarcou para o Brasil. Com esse passo
iniciava Luiz Figueira a sua carreira de trabalho apostólico num campo inculto e
vasto que se havia de estender desde a Baía, através de Pernambuco, Seará e o
Maranhão, até às margens do Xingu, afluente do Amazonas.

Na Bahia ocupou o cargo de ministro no Colégio, durante um ano. Aprendeu a língua


tupi e veio aperfeiçoá-la na viagem ao Ceará em 1607, tornando-se um bom conhecedor do
tupi-guarani e escrevendo a sua Arte da Língua Brasílica, publicada em 1621.
Os anos de 1607 e 1608 Luís Figueira permaneceu na Missão do Maranhão, vagando
pelo Ceará desde a foz do rio Jaguaribe, quando em 02 de fevereiro ali aporta, atingindo a
serra da Ibiapaba onde permaneceu por vários meses em uma aldeia. Depois do dia 10 de
janeiro de 1608, quando o seu companheiro de missão, o padre Francisco Pinto, é assassinado
pelos índios tapuias. Após realizar o sepultamento do amigo, ele vai para o litoral, para uma
aldeia chefiada por Cobra Azul. Em agosto daquele ano de 1608, toma um barco para Natal,
no Rio Grande do Norte.
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Depois vai para Pernambuco e, em 1610, assume o cargo de prefeito de estudos no


colégio de Olinda. Permanece em Pernambuco e, em 1612, é nomeado reitor do seminário,
terminando o ofício em 1616. Em 1619 torna-se superior da aldeia de Nossa Senhora da
Escada. Dois anos depois, em 1621, ocupa o cargo de formação da juventude no mesmo
colégio como mestre de noviços e superintendente dos irmãos estudantes.
Por sua experiência na Missão do Maranhão, Figueira era consultado a cerca da
viagem, do caminho e das dificuldades. Sua opinião era que não se conquistaria o Maranhão
sem a força militar, apresentando várias razões para isso como a braveza dos tapuias, a
presença dos invasores franceses, as dificuldades do caminho como a falta de água e de
alimentos, as monções que não ajudavam a vir do Maranhão para Pernambuco dentre outras.
Figueira reclama para si o direito de ir para a missão e foi escolhido para fundar a
missão do Maranhão. Em março de 1622 chega a São Luís com o padre Benedito Amodei. A
partir dessa viagem inicia a presença jesuítica no norte do Brasil, em São Luís, no colégio
Nossa Senhora da Luz e em Belém, no de Santo Alexandre. Em 1637 Luís Figueira apresenta
um memorial sobre as terras do Maranhão, Pará e Amazonas, conseguindo por parte do rei um
alvará de 25 de julho de 1638, o governo temporal e espiritual sobre os índios e os poderes
sobre o ordinário, criando-se uma prelazia a cargo do superior da Companhia.
Após muitas viagens no Maranhão e Pará, Luís Figueira vai a Portugal, em 1639,
percorre os colégios daquele país e conclama 22 jesuítas a virem com ele para o Maranhão,
mas devido à burocracia e ordem dos superiores, trouxe apenas 14. A nau em que viajavam
Figueira e seus companheiros trazia também o governador do Maranhão, Pedro de
Albuquerque. A viagem de volta ao Maranhão começou em Lisboa, a 30 de abril de 1643,
ancoraram no porto do Maranhão no dia 16 de junho daquele ano. Depois seguiram para o
Pará, no dia 29 chegaram à Ilha do Sol. Na tarde do dia 30, com a força da maré, o navio se
desfez, e num batel a bordo, se meterem 22 pessoas, entre elas, 3 jesuítas. Houve um incêndio
no navio e das 173 pessoas que nele iam, escaparam 42 seculares e 3 religiosos da Companhia
de Jesus. Dois morreram após sete dias de frio e de fome. Luis Figueira ficou numa jangada
com mais 9 portugueses. A jangada foi para a Ilha de Joanes, hoje Marajó e todos foram
mortos e devorados pelos Aruãs. “Apurou-se depois que a jangada foi dar á grande Ilha de
Joanes, hoje Marajó, com os Padres vivos, e que os Aruãs, em guerra com os portugueses, os
mataram a todos e devoraram”. (LEITE, 1940, p. 72).
A data da morte do padre Luís Figueira é dada no dia 3 de julho de 1643.
Serafim Leite acrescenta uma narrativa do padre Antonio Vieira que apurou os fatos
dez anos mais tarde e descreve as informações sobre o local em que os padres foram mortos.
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Era um terreiro grande, com um pau fincado no meio no qual amaravam um por um em dias
diferentes e se ajuntavam os índios em redor com grande algazarra com paus nas mãos para
efetuar a morte. “Depois de mortos, os assaram e comeram, como costumam, e ainda o
mesmo soldado viu os juraus, que são umas grelhas de pau, em que foram assados”, narra
Vieira.
Dessa forma morreu Luis Figueira quase da mesma maneira que morrera seu colega
e irmão da Companhia, padre Francisco Pinto, na serra da Ibiapaba em 1608. À época
Figueira reclamou de ter escapado porque somente os ruins ficam.
Luis Figueira deixou seu lugar marcado na literatura histórica do Brasil, ressalta
Serafim Leite, quando escreve cartas, memórias e relações, além de sua gramática da língua
tupi-guarani, a Arte da Língua Brasílica.
Sua Relação do Maranhão é um relato simples, mas repleto de dados importantes e
de reflexões que nos faz compreender o que era o espaço entre Pernambuco e Maranhão a que
veio se constituir o Ceará. Podemos fazer várias imersões no discurso do religioso para apurar
seu modo de ver as coisas e de transmiti-las. “A Relação da Missão de Ibiapaba é a primeira
página escrita sôbre a história do Ceará. E o caráter agreste da aventura exótica também, entre
índios cujos nomes Luiz Figueira nos conservou, Diabo Grande, Milho Verde, Cobra Azul,
Lagartixa Espalmada...” (LEITE, 11940, p.75-76).
Ainda segundo Serafim Leite (1940), Figueira é fundamental com seus memoriais
para se conhecer as atividades de franceses e ingleses na embocadura do Amazonas como
também para a etnologia indígena que recolhe nele elementos novos em suas cartas desde
1604 e 1636, primeira e última datas. “Sob o aspecto literário, o P. Figueira descreve como
vê. Vistam-se com ortografia moderna e pontuação actualizada certos trechos seus e teremos
uma agradável selecta” comenta Serafim Leite (1940, p.76).
Figueira escreveu cartas com valor histórico ímpar, dando conta de informações
relevantes sobre o Brasil. A carta bienal de 1602-1603 é a primeira Relação de Figueira, logo
que chegou ao Brasil, redigida em Latim, encontra-se no ARSI. Nela, ele dá conta dos
sucessos de várias casas da província no Brasil: colégios, residências, aldeias dentre outras
coisas: o colégio da Bahia, a residência de Ilhéus, o colégio do Rio de Janeiro, a residência no
Espírito Santo, o colégio de Pernambuco. Depois a Relação do Maranhão e uma carta datada
de 26 de agosto de 1609 falando sobre as dificuldades daquela Missão.
A obra de maior relevo de Figueira foi sua Arte da Língua Brasílica, publicada em
1621, apesar de não constar na capa da obra, mas tudo leva a crer que seja essa a data.
Figueira sempre teve gosto e interesse de saber a língua tupi-guarani ou brasílica e já sabia em
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parte algumas coisas, mas a sua grande escola foi a viagem ao Ceará em 1607 e sua vivência
na serra da Ibiapaba.
Podemos destacar a figura de Luís Figueira como um grande memorialista em sua
Relação do Maranhão, com seu estilo suave, narrativa simples e sucinta, descrição pontual
dos ambientes e dos fatos. Texto envolvente e emocionante, mas claro, não se furta de
expressar a ideologia de uma cultura dominante e um discurso religioso e superior em relação
aos nativos. Tirando os contras de seu texto, resta um grande e imensurável valor histórico,
filológico e linguístico dos anos seiscentistas. Encerramos nossas palavras sobre Luís Figueira
com mais uma citação de Serafim Leite (1940, p.85), sobre “o jesuíta com seus títulos:
fundador da Missão do Maranhão, primeiro missionário do Xingu, filólogo de alto valor
americanista, e autor de Relações, que são fontes puras de história brasileira”.

1.2 O documento Relação do Maranhão

A Relação do Maranhão é uma das obras de Figueira de muito valor histórico,


filológico e linguístico apesar de ser um texto curto de apenas vinte e cinco páginas, mas
todas repletas de notícias sobre a terra inexplorada que se tornaria o estado do Ceará com seus
rios, matas, animais de toda espécie como cobras cascavéis, aranhas caranguejeiras, lagartos,
macacos e seres humanos, índios perdidos, fugindo da ação dos portugueses. Traz notícias dos
rios cheios, das chuvas abundantes e das secas, das serras, das ladeiras, das árvores, das
lamas; traz notícias da língua viva dos nativos e dos invasores, do léxico que se usava na
época. Traz notícias dos acontecimentos históricos, dos atos religiosos, das formas de lidar
com as doenças, com as mortes, dos funerais e dos rituais de exéquias. Traz notícias dos
fenômenos naturais, dos astros; dos fenômenos sobrenaturais, enfim, traz notícias do pedaço
da colônia a que se chamava capitania do Ceará e muito especificamente da serra da Ibiapaba.
Nosso objeto de estudo neste trabalho é esse texto intitulado Relação do Maranhão
de 1608, escrito e assinado pelo padre Luís Figueira, quando esse e seu companheiro, padre
Francisco Pinto, são designados para a Missão do Maranhão, em 1607, tendo que
obrigatoriamente passar pelo território da antiga capitania do Ceará que, até então, não havia
sido colonizada pelos portugueses. Eles vieram de Pernambuco e adentraram o Ceará vindo
do leste, desembarcando na foz do rio Jaguaribe, em 02 de fevereiro daquele ano. Seguiram o
caminho no sentido oeste, pelo litoral, até a altura da atual cidade de Fortaleza. Depois
adentraram pelo interior e chegaram à serra da Ibiapaba que divisava com o Maranhão. Mas
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não chegaram a transpor a montanha, dadas às adversidades do relevo e dos empecilhos em


negociar a paz com as tribos dos índios tapuias que habitavam do lado de lá da serra.
Todo o percurso é narrado pela mão do padre Luís Figueira após seu retorno,
sozinho, porque deixou sepultado nas encostas da Ibiapaba, seu irmão de congregação que foi
assassinado pelos tapuias em uma manhã de janeiro de 1608, quando esse rezava as horas
menores em seu pequeno oratório na casinha de palha ou de taipa que fora ali construída na
encosta de uma aldeia liderada pelo chefe Diabo Grande.
O texto narra o percurso e as ações dos jesuítas para manter contato com os tapuias
que viviam no Maranhão e eram amigos dos franceses que ocupavam aquela parte do Brasil.
Também descreve com detalhes os costumes dos indígenas, as crenças e os desafios
encontrados no caminho. O intuito da missão era catequizar os índios e expulsar os invasores
dos territórios da coroa portuguesa, como na introdução do texto é dito por Figueira.

No mês de janeiro de 607 por ordem do padre Fernão Cardim provincial desta
província nós partimos para a missão do Maranhão, o padre Francisco Pinto e eu
com obra de sessenta índios, com intenção de pregar o evangelho àquela
desamparada gentilidade, e fazermos com que se lançassem da parte dos
portugueses, deitando de si os franceses corsários que lá residem [...].

A data cronológica do texto é 26 de março de 1608, mas há indícios de erros, pois


pelos relatos datados ao longo da narrativa, percebe-se que deve ser março de 1609. A data
tópica não é revelada o que nos leva a crer que deve ter sido escrito muito provavelmente na
cidade de Olinda, em Pernambuco, para onde Figueira foi ser reitor do seminário. O texto foi
escrito logo após o retorno do padre e é uma espécie de relatório que dá conta dos
acontecimentos para o seu superior, no caso, o padre Claudio Aquaviva. Todos os jesuítas em
missão pelo mundo teriam que escrever um relatório, gênero textual que leva o nome de
relação, no qual se relata todas as ações e as dificuldades enfrentadas no processo de
evangelização dos povos nativos.
O documento manuscrito do próprio punho de Luís Figueira encontra-se no
Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), na cidade de Roma, cuja referência é a seguinte:
(ARSI, Brasile 8, I, fólio 71-84). ARSI, Brasile 8, I é um volume manuscrito intitulado
“Brasile História 1574-1619” e contem 273 fólio.
O manuscrito que chegou recentemente ao Ceará foi adquirido pelo professor
Francisco Carlos Carvalho da Silva, da Universidade Estadual do Ceará por meio de contato
direto via e-mails com o diretor do ARSI que possibilitou uma cópia e o envio por correios,
no ano de 2013, de um CD room gravado, contendo o fac-símile do documento em 25
fotolitos.
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Segundo o diretor do ARSI, o padre Brian Mac Cuarta SJ o documento é o original.


Com a posse desse manuscrito podemos desfazer alguns equívocos das edições que
analisamos, quando comparamos as passagens duvidosas e espaços deixados em branco.
Podemos encontrar e levantar algumas variantes mais comuns e estabelecemos uma tipologia
de erros.
A Relação do Maranhão está enfeixada nesse volume e ocupa os fólios 288-300. Há
outras numerações em manuscrito e uma em datiloscrito em todos os fólios. Também há uma
numeração em manuscrito contando apenas os fólios rectos de 1 a 13, perfazendo um total de
25 páginas. Essa é a contagem que adotamos para nossa edição. As dimensões dos fólios são
de 20.5 cm x 30 cm. Estes dados foram fornecidos pelo diretor do ARSI, padre Brian Mac
Cuarta SJ.
Temos apenas estas parcas informações codicológicas do documento. O espaço da
mancha de texto é muito bem preenchido e bem distribuído nos 12 fólios em recto e verso,
com exceção do 13 que vai até a metade do recto. Na parte central de todos os fólios, na
margem superior, há uma rubrica em recto e em verso.
A letra parece ser uma cursiva bastarda italiana. É muito regular e legível, com
marcas da grafia fonética e algumas ocorrências da pseudoetimológica. A letra é pequena,
inclinada para à direita, traçado leve, muitas palavra juntas, pouco sinais de pontuação e de
acentuação gráfica e bastante uso de abreviaturas.
Os parágrafos são bem divididos, não há marca d’água nem ornamentos. Os espaços
laterais, superiores e inferiores são respeitados e regulares.
Além do manuscrito do ARSI, que temos conhecimento e tivemos acesso, há uma
cópia em datiloscrito que se encontra em um Limburgo holandês trazido para o Ceará em
1903 como veremos a seguir. Desse testemunho temos pelo menos mais quatro cópias que
analisamos.
Em 1903, por ocasião do tricentenário do Ceará, o pesquisador cearense Barão de
Studart publicou um texto impresso na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará,
nas páginas 97 a 140, cujo texto intitula-se Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta padre
Luiz Figueira enviada a Claudio Aquaviva1. Segundo o pesquisador, ele recebeu o
documento, uma cópia fotografada, do jesuíta P. J. B. van Meurs do Limburgo Holandês, por
ordem do superior geral da Companhia de Jesus. Informa ainda que o original está guardado

1
Esta revista encontra-se, hoje, digitalizada e hospedada no site do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará.
Disponível em: <http://www.institutodoceara.org.br/revista.php>.
13

no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI). Essas informações também são repassadas por
Serafim Leite (1945) e Thomaz Pompeu Sobrinho (1967).

O Documento mais antigo que existe sobre a história do Ceará [...] A descripção
feita pelo Padre Luiz Figueira de sua viagem ao Ceará. Devo-a, devem-na os
Cearenses ao jesuíta van Meurs do Limburgo Hollandez, que do modo mais
captivante m’a enviou por ordem do seu superior em Roma. (STUDART, 1903,
p.59)

Como vemos o texto recebido e divulgado no Ceará é uma edição já impressa, uma
cópia fotográfica. Significa dizer que existe uma matriz impressa que gerou esta cópia e,
conforme as informações dadas, encontra-se em uma das casas da Companhia de Jesus em
uma província holandesa. Não sabemos quantas cópias foram reproduzidas a partir dessa
matriz.
Da fotocópia adquirida pelo Barão de Studart foram publicadas pelo menos mais
quatro, no Brasil e em Portugal. O próprio Barão em 1904 a publicou em uma coletânea
constituída de três volumes intitulada Documentos para a história do Brasil e
especialmente a do Ceará 1608-1625 que hoje se encontra no acervo da Biblioteca Pública
do Ceará, governador Meneses Pimentel, em Fortaleza, no setor de obras raras. Esta cópia,
pelo que conseguimos avaliar é idêntica à de 1903.
Em 1911, o padre e historiador Rafael Galanti da Companhia de Jesus, transcreveu o
documento no tomo I do livro História do Brasil, nas páginas 436 a 463. Em uma nota de pé
de página, informa o padre que Barão de Studart publicou pela primeira vez em 1903. O texto
de Galanti (1911) apresenta uma supressão de quatro parágrafos logo após o primeiro, sem
nenhuma explicação. Não há também, estabelecimento de critérios de edição, as abreviaturas
e a escrita fonética são mantidas.
Em 1945, outro jesuíta e conhecido historiador, padre Serafim Leite, no seu livro
Luiz Figueira: a sua vida heroica e a sua obra literária, nas páginas 107 a 152, também
reproduz o documento. Foi publicado em Portugal de onde tivemos acesso do acervo da
Biblioteca Nacional de Lisboa. O título do documento é Relação da Missão do Maranhão
26 de março de 1608 (1609?). Esta edição também tem como base o testemunho do Barão do
Studart de 1903, por ser mais segura, pelas palavras do editor, que informa que desenvolveu
as abreviaturas e corrigiu alguns lapsos. "Como em geral é seguro e faz a sua publicação pela
fotocópia do Arquivo, a êle seguimos, desenvolvendo porém as abreviaturas e corrigindo
algum lapso evidente” (LEITE, 1945, p.105).
O editor coloca alguns subtítulos no texto como se dividisse em capítulos, algo que
não existe em nenhuma outra cópia nem no manuscrito, também não explica o porquê, mas
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acreditamos seja para facilitar o acesso às informações. Outro aspecto que chama a atenção é
a escrita fonética que é reproduzida semelhante à edição de 1903, mesmo que desenvolva as
abreviaturas.
A última edição que temos conhecimento é de 1967, publicada no livro Três
documentos do Ceará colonial, nas páginas 76 a 113. Esta edição é de responsabilidade do
historiador cearense Thomaz Pompeu Sobrinho que apresenta além do documento, um longo
texto dividido em quatro capítulos: o capítulo I é uma introdução dividida em várias
subseções; o capítulo II os problemas e a solução dos problemas; o capítulo III a reprodução
da Relação do Maranhão e o IV, notas e comentários.
Em todos os testemunhos percebemos que não há nenhuma preocupação
metodológica baseada na crítica textual ou ecdótica; não mantêm a mesma disposição das
linhas do texto manuscrito, não há critérios de normas de pontuação e acentuação gráficas, o
próprio título do texto sofre variação em relação ao manuscrito e ainda há erros, supressões
dentre outros. Em outras palavras, há interferências que merecem ser analisadas e corrigidas.
Pelo que tentamos expor a respeito do valor do documento para a historiografia
cearense e para a crítica textual pelos problemas cometidos e proliferados em suas
reproduções justifica-se nosso trabalho, pois disponibilizamos o texto editado em dois
modelos além do fac-símile do manuscrito. Um modelo mais conservador e próximo do
manuscrito, que denominamos de edição diplomático-interpretativa, conforme as normas
estabelecidas, e uma edição modernizada, com a grafia atualizada pelas normas atuais da
língua portuguesa, assim, oferecemos o documento para o devido reconhecimento por parte
da sociedade brasileira, principalmente, a cearense, para estudiosos de vários campos do
conhecimento.
Além do fac-símile e dos dois modelos de edição descritas acima, fizemos também
uma edição com notas e aparato crítico com o cotejamento dos quatro testemunhos, o
levantamento das variantes, a classificação dos tipos de erros e uma análise dos erros e ainda
apresentamos uma proposta de estema do texto.
É bom deixar claro que nossa proposta de trabalho não é uma edição crítica
tradicional conforme o modelo lachmmniano ou outro semelhante com todas as suas etapas,
visando estabelecer o texto crítico e seu aparato, mas apenas analisarmos as edições que
conhecemos e estabelecermos uma edição conservadora seguida de outra interpretativa com
base no testemunho manuscrito.
15

1.3 Objetivos

O objetivo geral deste trabalho é editar e analisar o documento Relação do


Maranhão sob o de ponto de vista da crítica textual e da análise linguística. Para chegarmos
esse fim, traçamos três objetivos específicos:
Fazer dois modelos de edição do manuscrito: o diplomático-interpretativo e o
interpretativo (modernizado);
Fazer o levantamento lexical e organizar um glossário de lexias de uso específico no
texto;
Investigar os testemunhos recenseados, comparando-os para relacionar os possíveis
erros e classificar a sua tipologia;

1.4 Metodologia

A metodologia adotada para a execução e resultados do trabalho consiste do seguinte


percurso: A primeira etapa da pesquisa foi fazer a recensio das edições do documento que
conseguimos localizar. Recenseamos cinco edições impressas além do fac-símile do
manuscrito. O texto manuscrito é datado de 1608 e os impressos são de 1903, 1904, 1911,
1945 e 1967. Vale ressaltar que excluímos o testemunho de 1904, por razões já explicadas.
Outro passo foi a edição do texto, adotamos dois modelos além do fac-símile:
diplompático-interpretativo e o interpretativo ou modernizado. Para o primeiro modelo
adotamos as normas elaboradas pelo grupo Para a História do Português Brasileiro (PHPB),
adaptadas por nós para o grupo Práticas de Edição de Textos do Estado do Ceará
(PRAETECE), que empregamos nos trabalhos que vêm sendo realizados no Ceará. Estas
normas se encontram disponíveis no blog do grupo http://praetece-ce.blogspot.com.br/. Para o
segundo modelo adotamos as normas vigentes da língua, acentuação gráfica, pontuação,
diacríticos, ortografia, mantivemos a disposição das linhas, a paragrafação e a translineação
do texto matriz. As normas estão expostas no capítulo referente às edições.
Após realizarmos as duas edições, organizamos o texto por fólio. Abaixo de cada
fólio fac-similado está disposto o fólio correspondente da edição diplomático-interpretativa e
depois da edição interpretativa. Assim, temos os três modelos seguidos para facilitar a
consulta e a leitura.
Outra etapa do trabalho é o cotejamento das variantes e o aparto crítico por meio
das notas. Para o cotejamento partimos de nossa edição diplomático-interpretativa com base
16

no manuscrito e comparamos com os demais testemunhos por ordem de publicação,


estabelecendo siglas que identificam cada testemunho por seu editor. Essas informações são
mais detalhadas no capítulo 3. Elaboramos um quadro comparativo das principais
ocorrências para detectarmos e classificarmos os tipos de erros.
Selecionamos os locais críticos ou de variação e detectamos as variantes,
apresentamos uma tabela em que a forma do manuscrito é o modelo de uso e das demais
edições, as variantes que estão destacadas sem negrito. Em seguida, fizemos uma análise
classificatória dos erros. As ocorrências estão organizadas em uma tabela que mostra a lição
no manuscrito e as formas variantes nos demais testemunhos.
Fizemos uma análise dos 38 lugares críticos ou de variação e o levantamento de 42
variantes, organizadas em três tipos de erros de acordo com as categorias adotadas por Blecua
(2001). Destes, podemos detectar erros de adição, subtração e substituição.
O estudo do léxico é outra etapa em que selecionamos todas as lexias de acordo com
critérios especificados no capítulo 3 e as classificamos em lexias simples, compostas e
complexas, a essas denominamos de colocações. Organizamos o glossário cuja
macroestrutura é configurada por duas listas, uma das lexias simples e compostas e a outra
das colocações seguindo a ordem alfabética.
A seleção do léxico ocorreu por meio mecânico em que aplicamos uma ferramenta
da Linguística de Corpus o Programa AntConc que nos permitiu a seleção de todas as
palavras do texto e suas combinações, para a partir daí escolhermos as que entrariam no
glossário.
A microestrutura consta da entrada seguida das informações gramaticais, definição
com base no próprio texto ou em dicionários diversos, os contextos de uso com a indicação do
fólio e linha, o sistema de notas explicativas. O modelo utilizado para a coleta do vocabulário
e os contextos de uso selecionados foram retirados da edição interpretativa modernizada.
Sistematizamos o modelo da macro e da microestrutura da seguinte forma abstrata:

Entrada + informação gramatical + definição + contexto de uso + ou – notas

A organização do trabalho consta além desta introdução, mais três capítulos. Um


capítulo em que apresentamos as normas da edição diplomático-interpretativa e da edição
interpretativa (modernizada); apresentamos também cada fotolito do manuscrito fac-similado,
17

seguidos pelos dois modelos de edição, primeiro o diplomático-interpretativo e segundo o


interpretativo (modernizado) correspondente a cada fotolito.
No capítulo seguinte apresentamos algumas base teórico-metodológicas sobre léxico
e a organização do glossário, seguido pelo conjunto das lexias e suas definições, conforme os
critérios metodológico. No último capítulo trazemos a edição interpretativa acompanhada pelo
conjunto de notas que constitui seu aparato crítico e as análises das variantes. Por fim,
apresentamos algumas considerações e as referências bibliográficas.
18

2 EDIÇÕES DO DOCUMENTO RELAÇÃO DO MARANHÃO

Este capítulo se constitui por três modelos de edição e pelas normas adotadas.
Apresentamos primeiramente dois conjuntos de normas e, em seguida, os três tipos de edição.
As normas da edição diplomático-interpretativa que adotamos são as desenvolvidas
pelo PHPB adaptadas por nós para os trabalhos do nosso grupo de pesquisa Práticas de
Edição de Textos do Estado do Ceará (PRAETECE), em que fizemos algumas alterações
visando facilitar a leitura e adaptar melhor o formato do texto. Elaboramos e elencamos os
critérios para o modelo de edição interpretativa (modernizada). Em seguida, os três modelos
de edição. Os fotolitos dos fac-símiles são expostos um a um seguidos primeiro pela edição
diplomático-interpretativa e em seguida pela edição interpretativa (modernizada).
Tendo em vista que não temos como apresentar de forma paralela o fac-símile e com
as transcrições correspondentes, tivemos que organizar de forma seguida correspondendo para
cada fotolito as suas respectivas transcrições.

2.1 Normas da edição diplomático-interpretativa

1. A transcrição será conservadora.


2. As abreviaturas, alfabéticas ou não, serão desenvolvidas, marcando-se, em itálico e
em negrito, as letras omitidas na abreviatura. No caso de variação (Deos e Deus) no
próprio manuscrito ou em coetâneos, a opção será para a forma mais frequente
usada no documento.
3. Não será estabelecida fronteira de palavras que venham escritas juntas, (desde que
não haja nenhuma dúvida, em havendo, prefere-se separar as palavras), não se
introduzirá hífen ou apóstrofo onde não houver. Exemplos: epor ser; aellas;
daPiedade; ominino; dosertão; mostrandoselhe; achandose; sesegue.
4. A pontuação original será rigorosamente mantida, assim como a translineação.
5. A acentuação original será rigorosamente mantida, não se permitindo qualquer
alteração. Exemplos: aRepublica; decommercio; edemarcando também lugar; Rey
D. Jose; oRioPirahý; oexercicio; hé m.to convenientes.
6. Será respeitado o emprego de maiúsculas e minúsculas como se apresentam no
original, (desde que não haja dúvida, em havendo, prefere-se a forma minúscula).
No caso de alguma variação física dos sinais gráficos resultar de fatores cursivos,
19

não será considerada relevante. Assim, a comparação do traçado da mesma letra


deve propiciar a melhor solução.
7. Eventuais erros do escriba ou do copista serão remetidos para nota de rodapé, onde
se deixará registrada a lição por sua respectiva correção.
8. Inserções do escriba ou do copista, nas entrelinhas ou nas margens superior, inferior
ou laterais, bem como toda e qualquer intervenção de terceiros no documento
original, serão indicadas na edição em nota de rodapé.
9. No caso de repetição que o escriba ou o copista não suprimiu, passa a ser indicada
pelo editor que a coloca entre colchetes duplos. Exemplo: fugi[[gi]]ram correndo
[[correndo]] emdiração opaco.
10. Letras ou palavras não legíveis serão indicadas entre colchetes com a forma
[ilegível]. Da mesma forma letras ou palavras deterioradas serão indicadas entre
colchetes: [deteriorada].
11. Trecho de maior extensão não legível por deterioração receberá a indicação
[corridas + ou – 5 linhas]. Se for caso de trecho riscado ou inteiramente anulado por
borrão ou papel colado em cima, será registrada a informação pertinente entre
colchetes e sublinhada.
12. A disposição das linhas do documento original será mantida na edição, sem
necessidade de nenhuma marca. A mudança de fólio receberá a marcação com o
respectivo número na sequência, alinhado à direita da seguinte forma: fl.1v. fl.2r.
fl.2v. fl.3r. Caso tenha rubrica será indicada abaixo do número do fólio entre
colchetes.
13. Na edição, as linhas serão numeradas de cinco em cinco a partir da quinta. Essa
numeração será encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do leitor. Será
feita de maneira contínua por documento.
14. As assinaturas simples ou as rubricas do punho de quem assina serão sublinhadas e
indicados entre colchetes. Exemplos: assinatura simples: Bernardo Jose de Lorena.
15. Quaisquer tipos de informação que o editor julgar significativas para a
compreensão do texto, quer digam respeito a aspectos da diagramação ou do layout,
serão indicadas em notas de rodapé.
20

2.2 Normas da edição interpretativa (modernizada)

1. Para a transcrição interpretativa (modernizada) a ortografia foi uniformizada, da


seguinte forma:
a. foi atualizado o uso de letras iniciais maiúsculas e adaptadas as minúsculas
quando necessário;
b. foram simplificados os caracteres duplos de valor vocálico, quando divergentes
do sistema gráfico atual;
c. foram simplificados os caracteres duplos de valor consonantal (exceto rr e ss);
d. a vogal nasal ou nasalizada foi grafada conforme as normas ortográficas
atualmente vigentes;
e. foi uniformizado o uso de c ou ç na representação de consoantes sibilantes;
f. foi uniformizado o uso de g ou j para representação de consoantes palatais ou
velares;
g. a letra h foi utilizada de acordo com as normas ortográficas vigentes, baseadas
na etimologia.
h. A acentuação gráfica foi alterada para a norma atual; o sinal diacrítico (~) sobre
o <o> em final de palavras terminadas em ao foi transposto para o <a>;
i. As palavras terminadas em am foram atualizadas para ão;
j. A grafia dos antropônimos e dos topônimos foi atualizada, sem nenhum prejuízo
para o texto.
2. Foram desenvolvidas todas as abreviaturas sem necessidade de marcar as letras
acrescentadas;
3. Foram atualizadas todas as formas e funções dos diacríticos;
4. As quebras de linha foram respeitadas na transcrição, marcando-se com travessão a
mudança mesmo que não exista no manuscrito;
5. A pontuação foi rigorosamente mantida, conforme o manuscrito, considerando que
marcando, poderia alterar o sentido do texto;
6. A paragrafação segue a mesma do manuscrito;
7. Foram feitas inserções [entre colchetes] de palavras ou caracteres por conjectura.
8. Algumas palavras repetidas as mantivemos colocando a segunda ocorrência entre
colchetes duplos;
9. Foram suprimidos alguns sinais especiais dentro do texto e o sistema de numeração
dos fólios, permanecendo apenas o da nossa edição;
21

10. As linhas são enumeradas de cinco em cinco a partir da primeira.

2.3 Os três modelos de edição: Fac-símile, diplomático-interpretativo e interpretativo


(modernizado)

Os fotolitos dos fac-similes estão conforme recebemos com a mesma extensão das
bordas, as mesmas marcas ou manchas sem nenhuma interferência de corte, nem limpeza,
nem melhoramento das imagens.

Para os dois modelos de edição utilizamos o espaçamento simples e adotamos o tipo


de letra Times New Roman, tamanho 11 variando para 10.5, para que coubesse a mesma
quantidade de linhas de cada fotolito em cada fólio correspondente, possibilitando dessa
forma a leitura e a estética do texto.

Abaixo seguem os três tipos de edição.


22

22
23

fl. 1r
Relaçaõ do Maranhaõ. 1608.
XIX
Pax. Chxi.
5 No Mez dejaneiro de 607 por ordemdo padre fernaõ
Cardim prouincial desta prouincia nos partimos pera amissaõ
do maranhaõ, o padre francisco pinto E eu cõ obra de sessenta
jndios, cõ intençaõ de pregar o euangelho aaquella desem
parada gentilidade, Efazermos cõ que selançassẽ da
10 parte dos portugueses, deitando de sẏ os frãcezes cossairos
que lá residem, peraque jndo osportugueses, como determinaõ
osnaõ auexassẽ nem catiuassẽ, eperaque estanossaẏda
fosse sem sospeita deemgano, pareceo bẽ ao padre prouincial que naõ
leuassẽmos cõ nosco portuguesesnenhũs, Eassẏ nos par
15 timos Sós cõ aquelles sessenta jndios.
O Rio do maranhaõ deque se denomïna todo aquelle certaõ
dista depernambuco, trezentas Etrinta legoas por
terra pouco mais oumenos, emtoda esta regiaõ E comar
ca do maranhaõ, aonde ha imnumeraueis almas / E
20 Muitas castas de gentio, naõ ha grandes serras, mas tudo
or dinaria mẽte saõ terras razas, matos a que os jndios
chamaõ verdadeiros, Eem semelhãtes terras ca entrenos
sedaõ os canaueais / dafertilidade daterra dizẽ
os jndios [espaço] quenaõ tem comparaçaõ amandioca
25 batata, etudo o mais que ca ha cõ o delá por ser o delá demuito
notauel ventagẽ emgrandeza Efertilidade.
Contaõ Jnfẏnidade de bichos dos que sedomesticaõ
como bugios eoutros que ca naõ temos, Emuitos passaros que
seamanSaõ, como canindës, araras devärias castas, eou
30 tros semelhantes, ainda que naõ hapao de brasil, haoutros
paos assẏ detintas como pera catres, mesas ec.
ha certo genero deanimais aque elles chamaõ veados
arcados osquais Saõ muito Semelhãtes a camellos nagrãdesa
pescosso cõprido, eno serem arcados, ou gibosos, emais me
35 affirmo emterem pontas como deveado, Epor naõ Serem
brauos, tem os jndios por agouro mata los, dizendo que matã
do os ficaraõ frouxos E perapouco, E deueser facil domes
ticar eamansar estes animaes.
O Sertaõ hemuẏ grãde, Etem jnfinidade de gentio o
40 Rio a que chamamos das Amazonas, tem a boca debaixo
da linha equinocial, Etem muitas egrãdes ẏlhas, asquais
todas estaõ pouoados das Almazonas, asquais almazo
nas saõ molheres que naõ admitẽ cõ Sigo, homẽs senaõ em certo
tempo pera Effeto desemultiplicarẽ, Elogo os lãçaõ fora
45 E depois parindo filhos machos os comẽ E cõseruaõ
as femeas; Saõ guerreiras, E caçadoras E engenhosas
demaõs, perafazerem redesmuito lauradas, Etãbem Seus arcos
todos saõ pintados; assẏ ellas como o mais gẽtioVsaõ to
dos amesma lingoa comũa do brasil – Estaõ nestas
50 duas partes ouportos naos francezas assaber, no rio
do maranhaõ aque os indios chamaõ Tapurucü Eno das
almazonas que dellas tem o nome-
24

fl. 1r
Relação do Maranhão. 1608.
XIX
Pax Cristi.
5 No mês de janeiro de 607 por ordem do padre Fernão
Cardim provincial desta província nós partimos para a missão
do Maranhão, o padre Francisco Pinto e eu com obra de sessenta
índios, com intenção de pregar o evangelho àquela desam-
parada gentilidade, e fazermos com que se lançassem da
10 parte dos portugueses, deitando de si os franceses corsairos
que lá residem, para que indo os portugueses, como determinam
os não avexassem nem cativassem, e para que esta nossa ida
fosse sem suspeita de engano, pareceu bem ao padre provincial que não
levássemos conosco portugueses nenhuns, e assim nós par-
15 timos sós com aqueles sessenta índios.
O rio do Maranhão de que se denomina todo aquele sertão
dista de Pernambuco, trezentas e trinta léguas por
terra pouco mais ou menos, em toda esta região e comar-
ca do Maranhão, aonde há inumeráveis almas, e
20 muitas castas de gentio, não há grandes serras, mas tudo
ordinariamente são terras rasas, matos a que os índios
chamam verdadeiros, e em semelhantes terras cá entre nós
se dão os canaviais/ Da fertilidade da terra dizem
os índios que não tem comparação a mandioca
25 batata, e tudo o mais que cá há com o de lá por ser o de lá de muito
notável vantagem em grandeza e fertilidade.
Contam infinidade de bichos dos que se domesticam
como búgios e outros que cá não temos, e muitos pássaros que
se amansam, como canindés, araras de várias castas, e ou-
30 tros semelhantes, ainda que não há pau de brasil, há outros
paus assim de tintas como para catres, mesas etc.
Há certo gênero de animais a que eles chamam veados
arcados os quais são muito semelhantes a camelos na grandeza
pescoço comprido, e no serem arcados, ou gibosos, e mais me
35 afirmo em terem pontas como de veado, e por não serem
bravos, tem os índios por agouro matá-los, dizendo que matan-
do-os ficarão frouxos e para pouco, e deve ser fácil domes-
ticar e amansar estes animais.
O sertão é mui grande, e tem infinidade de gentio o
40 rio a que chamamos das Amazonas, tem a boca debaixo
da linha equinocial, e tem muitas e grandes ilhas, as quais
todas estão povoados das almazonas, as quais almazo-
nas são mulheres que não admitem consigo homens senão em certo
tempo para efeito de se multiplicarem, e logo os lançam fora
45 e depois parindo filhos machos os comem e conservam
as fêmeas; são guerreiras, e caçadoras e engenhosas
de mãos, para fazerem redes muito lavradas, e também seus arcos
todos são pintados; assim elas como o mais gentio usam to-
dos a mesma língua comum do Brasil - estão nestas
50 duas partes ou portos naus francesas a saber, no rio
do Maranhão a que os índios chamam Tapurucu e no das
almazonas que delas tem o nome.
25

25
26

fl. 1v
O trato destes heẽ Madeiras preciosas, Epaos detintas Epẏ
55 menta, Algodaõ fio, redes, passaros, Ebichos, Eempar
ticullar hagrandefama quetem trato deprata com as
almazonas queparecetẽ minas della a troco daqual
lhedaõ ferramentas, vestidos, Eas emsinaõ a vsar de ar
cabuzes; tudo isto me consta por värias imformações de
60 Jndios que la foraõ em uários tempos cõ que faleẏ; hũs dos quais
affirmaõ o que uiraõ, outros o que ouuiraõ aseus parentes
Partimos pois pera esta empressa o padre francisco pinto E eu
depernambubo pormar ate o rio chamado jagoaribe que saõ
120 - ou - 130 legoas, Saimos emterra pusemos nosso fato ẽ
65 ordem pera o leuarmos, E como leuauamos algṹs jndios naturais de
Jaguaribe, logo semeteraõ pollaterra pera uer seachauaõ al
gũs deseus parentes, eis que dous dos nossos emcõtraõ cõ hũs
que andauaõ escondidos, assẏ dos portugueses por naõ uirẽ presos
por escrauos, como muitos seus parentes, como tãbẽ por medo
70 dos tapuẏas cõ os quais os ditos portugueses se cõfederaraõ
afim deos auer á maõ mais facilmente.
hũ dos nossos ẽtaõ foẏ cõ aquellesque se acharaõ a buscar
outros que estauaõ em certaparte escondidos perauirem
ao seguintedia, eo outro cõ panheiro nosueio dar anoua que
75 foẏ bẽ recebida por nos faltar gente peranos leuar ofato, Etã
bem por que eraõ parentes dos denossa companhia-
Ao dia seguinte lhemãdamos tres ou quatro outros ao camẏ
nho com farinha derefresco, os quais alta noite chegaraõ
Etrouxeraõ cõ Sigo quatro homẽs E huãmenina, Estesnos cõ
80 taraõ como no mesmo dia tinhaõ os tapuẏas mortos os
mais companheiros, leuãdo algũs cõ sigo por escrauos; E
foẏ que ao nosso recado naõ seaballaraõ mais que os quatro
cuẏ dando os outrosque eraficçaõ dos brãcos pera os auerẽ
asmaõs por meio deseusmesmos parentes, partidos pois
85 osquatro, chegaraõ os tapuẏas Edestruiraõ os mais que
eraõ portodos dez, dos quais soo escapou hũmãcebelhaõ
que ueio ainda alcãçar os outros; hũ destesqueuieraõ
tinha jafogido dos brãcos, Efora escrauo dos tapuẏas
ate então, dos quais andaua fogido actualmente E
90 trouxecomsigo huã muẏ boa escopeta, Ealgũa moniçaõ
que seusenhor tapuẏa tinha tomado ahũ brãco;
Vinhaõ estes pobres sẽ arcos nẽfrechas como fugy
tiuos catiuos, vendo nos tomaraõ folego, E como ressucitados
damorte avida sealegraraõ cõ seus parentes; pergunteilhe
95 setinhaõ os tapuẏas noticia dos padres, responderaõ que sẏ
E que desejauaõ muito dejrmos asuaterra por que costumauamos tra
zer muitas ferramentas, Enzóes eroupas Eque atodos dauamos o que
naõ faziaõ osbrãcos, emfim trazendo os cõ nosco nospartimos
do jagoaribe, dia denossaSenhora das cãdeas, 2º defeuereiro depois
100 de dizermos missa E comũgarẽ algũs dos nossos-.
O nosso ordinario modo decaminhar emtodo estecomprido ca
minho ate asserra dojbiapaba (que seraõ cem legoas ao direito
foẏ emforma deperegrinos da campanhia, logo pellamenhã reza
uamos o itinerario Eladainhas denossa senhõra, Edepois entre
105 dia as dos santos E cõ nossos bordoẽs namaõ Enossosliuros dere
zar, E nosso cabasso deagoa nos hiamos caminhando tendo
nossaoraçaõ pello caminho como podiamos, o tempo que nos
parecia, as jornadas eraõ de meia legoa, huã legoa
E -2- E-3- por nos acomodarmos aos das cargas E tambem
110 algũas crianças.
27

fl. 1v
O trato destes é em madeiras preciosas, e paus de tintas e pi-
55 menta, algodão fio, redes, pássaros, e bichos, e em par-
ticular há grande fama que tem trato de prata com as
almazonas que parece têm minas dela a troco da qual
lhe dão ferramentas, vestidos, e as ensinam a usar de ar-
cabuzes; tudo isto me consta por várias informações de
60 índios que lá foram em vários tempos com quem falei; uns dos quais
afirmam o que viram, outros o que ouviram a seus parentes.
Partimos pois para esta empresa o padre Francisco Pinto e eu
de Pernambuco por mar até o rio chamado Jaguaribe que são
120 - ou -130 léguas, saimos em terra pusemos nosso fato em
65 ordem para o levarmos, e como levávamos alguns índios naturais de
Jaguaribe, logo se meteram pela terra para ver se achavam al-
guns de seus parentes, eis que dois dos nossos encontram com uns
que andavam escondidos, assim dos portugueses por não virem presos
por escravos, como muitos seus parentes, como também por medo
70 dos tapuias com os quais os ditos portugueses se confederaram
afim de os haver à mão mais facilmente.
Um dos nossos então foi com aqueles que se acharam a buscar
outros que estavam em certa parte escondidos para virem
ao seguinte dia, e o outro companheiro nos veio dar a nova que
75 foi bem recebida por nos faltar gente para nos levar o fato, e tam-
bém porque eram parentes dos de nossa companhia.
Ao dia seguinte lhe mandamos três ou quatro outros ao cami-
nho com farinha de refresco, os quais alta noite chegaram
e trouxeram consigo quatro homens e uma menina, estes nos con-
80 taram como no mesmo dia tinham os tapuias mortos os
mais companheiros, levando alguns consigo por escravos; e
foi que ao nosso recado não se abalaram mais que os quatro,
cuidando os outros que era ficção dos brancos para os haverem
às mãos por meio de seus mesmos parentes, partidos pois
85 os quatro, chegaram os tapuias e destruíram os mais que
eram por todos dez, dos quais só escapou um mancebelhão
que veio ainda alcançar os outros; um destes que vieram
tinha já fugido dos brancos, e fora escravo dos tapuias
até então, dos quais andava fugido atualmente e
90 trouxe consigo uma mui boa escopeta, e alguma munição
que seu senhor tapuia tinha tomado a um branco.
Vinham estes pobres sem arcos nem flechas como fugi-
tivos cativos, vendo-nos tomaram fôlego, e como ressuscitados
da morte à vida se alegraram com seus parentes; perguntei-lhe
95 se tinham os tapuias notícia dos padres, responderam que sim
e que desejavam muito de irmos a sua terra por que costumávamos tra-
zer muitas ferramentas, anzóis e roupas e que a todos dávamos o que
não faziam os brancos, enfim trazendo-os conosco nós partimos
do Jaguaribe, dia de Nossa Senhora das Candeias, 2º de fevereiro depois
100 de dizermos missa e comungarem alguns dos nossos.
O nosso ordinário modo de caminhar em todo este comprido ca-
minho até a serra da Ibiapaba (que serão cem léguas ao direito
foi em forma de peregrinos da Campanhia, logo pela manhã rezá-
vamos o itinerário e ladainhas de Nossa Senhora, e depois entre
105 dia as dos santos e com nossos bordões na mão e nossos livros de re-
zar, e nosso cabaço de água nós íamos caminhando tendo
nossa oração pelo caminho como podíamos o tempo que nos
parecia, as jornadas eram de meia légua, uma légua
e -2- e -3- por nos acomodarmos aos das cargas e também
110 algumas crianças.
28

28
29

fl. 2r
Vindo pois cõtinuãdo nosso caminho mãdamos jndios na
turaes daquellas partes diãte peraque seemcontrassẽ al
gũs deseus parentes jagoarigoaras que andauaõ espalhados
115 cõ medo os trouxessẽ eajũtassẽ assẏ peranos ajudarem como pera
lhe darmos as alegres nouas daprouisaõ deSua Magestade emque
os auia atodos porliures Eforros. Algũs destes pobres tiueraõ
vistadenos E cuidãdo serẽ os brãcos que hiaõ peraos acabar sees
conderaõ efogiraõ.
120 hũ dia porem algũs dos nossos acharaõ hũ que nos ãdaua
espreitando pera Saber de certo quẽ eramos Eperaonde hiamos; tra
zido este contou como tinha escondidos dous outres companheiros
E hũas molheres E meninos; foẏ porelles cõ outro dos nossos osquais
todos pareciaõ que resucitauaõ; mostrãdo grande prazer eale
125 gria, certificados denaõ jrem emnossa companhia portugueses
dos quais algũs destes tinhaõ fogido, tendo os elles amar
rados ecõ as maõs atadas, E acrecentauaõ quelhe tinhaõ
mandados presos peraabahia seusfilhos jrmaõs E jrmãs
E primos pera serem catiuos, Eque por isso elles E osmais an
130 dauaõ taõ amedrentados enaõ se fiauão denimguem-
Depois determos caminhado todo feuereiro, chegamos aos -2
demarco ao parä que hehuã muẏ fermosa Equieta emseada
quedista de jagoaribe trinta E cinquo legoas poucomais
oumenos, ẽ a qual entraõ tres ou quatro riachos
135 de Agoa doce, eoutro rio caudal por hũ espraiado muẏ apra
siuel, estä esta emseada em alturade quatro graos E he
degrandes pescarias; aquẏ achamos aposentados os jndios
que proximamente tinhaõ fogido aosportugueses, cujo princi
pal se chama a cajuẏ; hum sobrinho doqual traziamos
140 emnossa companhia; eoutros parentes dos seus. Estes pobres
nos receberaõ como uindos do ceo por que tinhaõ o mesmo medo
dos outros; o dia que chegamos tinhamos andado cinquo legoas
sem nos assentarmos em todo o caminho, por causa dainfinita
Agoa que choueo; em o qual caminho passamos, quatro rios todos
145 a pé cõ agoa pellos peitos, Ehũ delles cõ tanta corrente que
foy necessario uirempegados em cada hũ denos cinquo ou seis jn
dios peranos sustentarẽ com paos atrauessados contra o
Jmpeto das agoas; emfim daquẏ sepode colegir quais che
gariamos a boca danoite; logo nesse comenos nos fizeraõ
150 huã choupana depalma que jatinhaõ colhidapor terẽ noticia
denossa uinda, Enos sairaõ areceber todos os mancebos E
Moços dandonos comgrande festa o Erejüpe que heo seumodo
dedar as boas uindas, enos fizeraõ grande fogo peranos a
quentar digo emxugarmos:-
155 Depois dedescãsarmos nostrouxeraõ algũs presentes
depeixe cõ elles estiuemos cinquo dias aparelhãdonos perao caminho
depeixe por senos acabar afarinha que trasiamos, Etambẽ por que
do trabalho daquelle dia nos adoeceraõ algũs dosnossos com
panheiros, Efoy necessario cõualecerẽ edescansarẽ, quanto mais
160 nos desacostumados afazer semelhãte uiolẽcias a natureza
Os Jndios que aquẏ achamos Seriaõ portodos -50- ou 60- almas
ficaraõ cõ intento de ajuntarẽ alguãs reliquias dosseus que ãdaõ
espalhados por essesmatos, pera o qual nospediraõ lheleuãtasse
mos huã cruz, o que fizemos cõ gosto peraque à Sombra desta aruore
165 por entretanto seuinhaõ ajuntar estas auesinhas amedrenta
das dos gauiões E aues de rapina, peraque depois dejuntos todos
seuiessẽ peraaẏgreja como prometeraõ pollos certificarmos
da liberdade que Suamagestade lhes daua-
30

fl. 2r
Vindo pois continuando nosso caminho mandamos índios na-
turais daquelas partes diante para que se encontrassem al-
guns de seus parentes jaguariguaras que andavam espalhados
115 com medo os trouxessem e ajuntassem assim para nos ajudarem como para
lhe darmos as alegres novas da provisão de sua majestade em que
os havia a todos por livres e forros. Alguns destes pobres tiveram
vista de nós, e cuidando serem os brancos que iam para os acabar se es-
conderam e fugiram.
120 Um dia porém alguns dos nossos acharam um que nos andava
espreitando para saber de certo quem éramos e para onde íamos; tra-
zido este contou como tinha escondidos dois ou três companheiros
e umas mulheres e meninos; foi por eles com outro dos nossos, os quais
todos pareciam que ressuscitavam; mostrando grande prazer e ale-
125 gria, certificados de não irem em nossa companhia portugueses
dos quais alguns destes tinham fugido, tendo-os eles amar-
rados e com as mãos atadas, e acrescentavam que lhe tinham
mandados presos para a Bahia seus filhos irmãos e irmãs
e primos para serem cativos, e que por isso eles e os mais an-
130 davam tão amedrontados e não se fiavam de ninguém.
Depois de termos caminhado todo fevereiro, chegamos aos -2
de março ao Pará que é uma mui formosa e quieta enseada
que dista de Jaguaribe trinta e cinco léguas pouco mais
ou menos, em a qual entram três ou quatro riachos
135 de água doce, e outro rio caudal por um espraiado mui apra-
zível, está esta enseada em altura de quatro graus e é
de grandes pescarias; aqui achamos aposentados os índios
que proximamente tinham fugido aos portugueses, cujo princi-
pal se chama Acajuí; um sobrinho do qual trazíamos
140 em nossa companhia; e outros parentes dos seus. Estes pobres
nos receberam como vindos do céu porque tinham o mesmo medo
dos outros; o dia que chegamos, tínhamos andado cinco léguas
sem nos assentarmos em todo o caminho, por causa da infinita
água que choveu; em o qual caminho passamos, quatro rios todos
145 a pé com água pelos peitos, e um deles com tanta corrente que
foi necessário virem pegados em cada um de nós cinco ou seis ín-
dios para nos sustentarem com paus atravessados contra o
ímpeto das águas; enfim, daqui se pode colegir quais che-
garíamos à boca da noite; logo nesse comenos nos fizeram
150 uma choupana de palma que já tinham colhida por terem notícia
de nossa vinda, e nos saíram a receber todos os mancebos e
moços dando-nos com grande festa o erejupe que é o seu modo
de dar as boas vindas, e nos fizeram grande fogo para nos a-
quentar digo enxugarmos.
155 Depois de descansarmos nos trouxeram alguns presentes
de peixe com eles estivemos cinco dias aparelhando-nos, para o caminho
de peixe por se nos acabar a farinha que trazíamos, e também porque
do trabalho daquele dia nos adoeceram alguns dos nossos com-
panheiros, e foi necessário convalecerem e descansarem, quanto mais
160 nós desacostumados a fazer semelhante violências à natureza.
Os índios que aqui achamos seriam por todos -50- ou 60- almas
ficaram com intento de ajuntarem algumas relíquias dos seus que andam
espalhados por esses matos, para o qual nos pediram lhe levantásse-
mos uma cruz, o que fizemos com gosto para que à sombra desta árvore
165 por entretanto se vinham ajuntar estas avezinhas amedronta-
das dos gaviões e aves de rapina, para que depois de juntos todos
se viessem para a igreja como prometeram pelos certificarmos
da liberdade que sua majestade lhes dava.
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31
32

fl.2v
170 Pouco depois depassarmos daquẏ nos apartamos do mar por car
regar muito Sobrenos o inuerno que janos tinha entrado, Enos
difficultar muito o caminho cõ as enchentes dos muitos Egrandes
rios que semetem no mar, Etãbem por que estaaffastada do mar
a Serra dojbiapaba, aqual uinhamos demãdar por ser ella soo po
175 uoada degenteamiga (Seamigos sepodiaõ chamar osque ate gora
beberiaõ o sangue sepudessẽ aos portugueses) desdepernambuco
pera ca que seraõ como 230 legoas, Enosso intento ẽ auirmos deman
dar foẏ pera nellanos refazermos demãtimẽtos, Emãdarmos
dahi ao maranhaõ a tomar lingoa do estado dascousas, prin
180 cipal mente seauia francezes que senos representaua amor diffi-
culdade destecaminho; Este necessario apartamento do mar nos trouxe
outras infinitas imcõmodidades E difficuldades; que podendo
nos chegar à Serra dojbiapaba em -15- ou-20 dias, gastamos
dousmeses, por que nos foẏ necessario metermonos por matos E brenhas
185 sem podermos dar passo senaõ cõ uirẽ diante dous outrês jndios
rompendo os matos, Eem amor parte do caminho cõ as lamas
E agoas quasi ateo joelho, Etudo isto nos pareceo facil quando
depois nos uimosmetidos em huã Serraa que chamaõ dos coruos
que cõ o nomeestá declarãdo o triste caminho que leua quẽ nella
190 seuai meter; nellanos meteraõ os jndios dizendo que acharia
mosmuito mel Eratos que heo milhor mãtimento que hanestes certoẽs
affastados domar; verdade heque disto achamos bastãtemente
nestaserra, mas tudo mais caro do que fora sesecomprara nas
logeas dos vendedeiros por que cõ as difficuldades do caminho
195 que ao principio semostrou facil e cõ isso nos emganou, gasta
mos -12- ou-13- dias semsabermos bem quãdo era menham
nẽ noite cõ os espessos Ealtissimos matos, por baixo dos quais hia
mos rompendo, aforça de braço, Eferro, sobindo Edecendo mõtes
Erochedos que excedem todaa exageraçaõ Saltãdo depedraem
200 pedra hora peraas nuuẽs hora pera os abismos, nẽ conto aquẏ
as quedas E cousasque se que braraõ que nos deraõ bem deperda que
logo depois sentimos por nos jr faltãdo uinho pera as missas
Eassẏ naõ dissemos mais que aos dias santos missa.
Nestatriste serra dos coruos pareceque se ajũtaraõ
205 todas as pragas do brasil, jnnumeraueis cobras, E ara
nhas aque chamaõ cramguejeiras peçonhẽtissimas de cuja
mordedura sediz que morrẽ os homẽs, carrapatos sem cõto, mos
quitos Emoscas que magoaõ estranhamente, Eferẽ como lancetas
fazendo logo saltar o Sangue fora, Eassẏ pareciaõ os jndios
210 leprosos dasmordeduras, nẽ eufizera caso deescreuer estas
cousas senaõ foraõ extraordinarias. Emfim tornamos a
Sair desta serra ao cabo dos -12-ou-13- dias semtermosan
dado denosso caminho mais que obra de duas ou tres legoas E
no rodeo que fizemos ãdariamos -5-ou-6-.
215 Todos estestrabalhos senos rematarão cõ hũ que nos muito
Mais sentimos, que foẏ morrernos hũ jndio mancebo, dentro em
15-ou-18- horas damordedura de hũa cobra; nemlheaproueẏ
tou pedrade bazar, nem a licornio, nem queimarmoslheafe
rida, nemfinalmẽte outras mezinhas Ebeneficios-
220 Morreo cõtudo cõfessado, Esobre asepultura lhefizemos hũ
Moimẽto, pondo lhe huã cruz à cabeceira; eraisto domingo
deramos, em o qual depois deos bẽzermos em aquelledeserto
nos partimos cõtinuãdo nosso caminho ao longo damesma
serra passando muitos egrandes rios que todos hiaõ cheios
33

fl.2v
170 Pouco depois de passarmos daqui nos apartamos do mar por car-
regar muito sobre nós o inverno que já nos tinha entrado, e nos
dificultar muito o caminho com as enchentes dos muitos e grandes
rios que se metem no mar, e também porque está afastada do mar
a serra da Ibiapaba, a qual vínhamos demandar por ser ela só po-
175 voada de gente amiga (se amigos se podiam chamar os que até agora
beberiam o sangue se pudessem aos portugueses) desde Pernambuco
para cá que serão como 230 léguas, e nosso intento em a virmos deman-
dar foi para nela nos refazermos de mantimentos, e mandarmos
daí ao Maranhão a tomar língua do estado das coisas, prin-
180 cipalmente se havia franceses que se nos representava a maior difi-
culdade deste caminho; este necessário apartamento do mar nos trouxe
outras infinitas incomodidades e dificuldades; que podendo
nós chegar à serra da Ibiapaba em -15- ou-20 dias, gastamos
dois meses, porque nos foi necessário metermo-nos por matos e brenhas
185 sem podermos dar passo senão com virem diante dois ou três índios
rompendo os matos, e em a maior parte do caminho com as lamas
e águas quase até o joelho, e tudo isto nos pareceu fácil quando
depois nos vimos metidos em uma serra a que chamam dos Corvos
que com o nome está declarando o triste caminho que leva quem nela
190 se vai meter; nela nos meteram os índios dizendo que acharía-
mos muito mel e ratos que é o melhor mantimento que há nestes sertões
afastados do mar; verdade é que disto achamos bastantemente
nesta serra, mas tudo mais caro do que fora se se comprara nas
lojas dos vendedeiros porque com as dificuldades do caminho
195 que ao princípio se mostrou fácil e com isso nos enganou, gasta-
mos -12- ou-13- dias sem sabermos bem quando era manhã
nem noite com os espessos e altíssimos matos, por baixo dos quais ía-
mos rompendo, à força de braço e ferro, subindo e descendo montes
e rochedos que excedem toda a exageração saltando de pedra em
200 pedra ora para as nuvens ora para os abismos, nem conto aqui
as quedas e coisas que se quebraram que nos deram bem de perda que
logo depois sentimos por nos ir faltando vinho para as missas
e assim, não dissemos mais que aos dias santos missa.
Nesta triste serra dos Corvos parece que se ajuntaram
205 todas as pragas do Brasil, inumeráveis cobras, e ara-
nhas a que chamam caranguejeiras, peçonhentíssimas de cuja
mordedura se diz que morrem os homens, carrapatos sem conto, mos-
quitos e moscas que magoam estranhamente, e ferem como lancetas
fazendo logo saltar o sangue fora, e assim pareciam os índios
210 leprosos das mordeduras, nem eu fizera caso de escrever estas
coisas se não foram extraordinárias. Enfim tornamos a
sair desta serra ao cabo dos -12-ou-13- dias sem termos an-
dado de nosso caminho mais que obra de duas ou três léguas e
no rodeio que fizemos andaríamos -5- ou-6-.
215 Todos estes trabalhos se nos remataram com um que nós muito
mais sentimos, que foi morrer-nos um índio mancebo, dentro em
15- ou -18- horas da mordedura de uma cobra; nem lhe aprovei-
tou pedra de bazar, nem alicórnio, nem queimarmos-lhe a fe-
rida, nem finalmente outras mezinhas e benefícios.
220 Morreu contudo confessado, e sobre a sepultura lhe fizemos um
monumento, pondo-lhe uma cruz à cabeceira; era isto Domingo
de Ramos, em o qual depois de os benzermos em aquele deserto
nós partimos continuando nosso caminho ao longo da mesma
serra passando muitos e grandes rios que todos iam cheios
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225 fl.3r
pollas cõtinuas chuuas, E passamos todos aquelles dias taõ Santos E
de emdoenças epaixaõ, caminhãdo por matos E lamas como dãtes
E ao Sabado Santo passamos hũ rio muito maior que todos chamado
Aracategi, que compete cõ os grãdes de portugal, Enos deu bemdetra
230 balho buscar paos pera jangadas perapassar no tempõ emque por cá to
dos sealegraõ ese daõ as boas Aleluias, finalmente opassamos assẽ
tados nospaos que hiaõ por baixo daagoa, uindose o mũdo abaixo
cõ chuua, trouões Erelampagos; E ao longo desterio debaixo de
hũ Espesso Etriste aruoredo estiuemos aquella taõ Santa noite
235 E dia meios alagados dagoa:-
Nũca nestes caminhos melembraraõ os collegios cõ Sauda
desdelles, senaõ nestes Santos dias por carecer davista detanta
deuoçaõ como nelles ha; mas isto mesmo por outra parte me cõ Sola
uauendo[[uendo]] que carecia eu detãto bem por Seruiço daquellesenhor
240 que hecausa detodo elle.
Depois dedeixarmos detodo esta serra dos coruos caminhãdo
pollos campos, eraõ tãtas aslamas que naõ auia dar passo sem
atolar; por ondenos foi necessario descalcarmonos; porem dahi senos
fizeraõ da hi apoucos dias das eruas E moscas, Emosquitos que
245 nospicauaõ senos fizeraõ ospés leprosos, Eamỹ em especial
me incharaõ criando materia em uarias partes, pello que
anecessidade nos constrãgeo anostornarmos a calçar, por onde
nem descalços bempodiamos hir cõ lamas, naõ quero apõtar
muitas particularidades nestamateria por naõ parecer
250 que exagero muito nossos trabalhos, nẽ ainda isto que heo menor E
escreuera semenaõ persudira que se cõsolaraõ muito nossos jrmaõs
com saberẽ o que por cá sepassa peranos ẽcomẽdarẽ mais depposito
ao Senhor.
Cõ estasdifficuldades do caminho senos ajuntou boa
255 fome, por que por estes campos naõ haratos, nem sematou nelles ou
tra cassa algũa, demodo que nos foi forçado a comer das eruas quando
ainda as achauamos, eestas cosidas naagoa sem outra al
guã bemfeitoria; uiemos a lãçar maõ da maniçoba braua
bẽ amargosa Esem Sabor, E depois chegamos a comer damesma
260 raiz damãdioca braua assada deque algũs se começaraõ aa
char mal, eu entaõ tiueme mais afomeposto que não mefez mal
aque tinha comido, Eaindadestas cousas, nos ueio afaltar, Epassa
mos algũs dias sem comer mais que huãs poucas raizes de eruas
da feiçaõ de cebolinhas pequenas; cobras, lagartos, Elagartixas
265 pera os indios era banquete, Eeutãbem tirando cobras mees
forçaua a comer tudo, tendo por mais difficultosa devencer a
fomeque o asco, verdade heque emtodas estas cousas a chauamosmais
gosto que noutro tempõ em cousasque o tem, mas o que so bejaua nogosto
polla fome faltaua [[faltaua]]nasforças polla sustãcia ser pouca
270 Tambẽ nestes caminhos nosliurou o senhor demuitos E euidẽtes
perigos quasi milagrosamẽte. Em especial foẏ notauel hũ que
passou nesta forma; Estauamos hũ dia assentados Ebẽ cãssados
opadre Eeu comendo hũs caracöis dagoa que nosmesmostinhamos apa
nhado, metendonos pollos charcos, Eera bõ banquete emseme
275 lhãte comjũçaõ, E entrenos ambos algũ tãto pera huã banda es
tauaõ hũas eruas algũ tãto altas nasquais alimpauamos as
maõs por naõ auer outro goardanapo mais amaõ, senaõ quando
sentimos bolir as eruas euimos sair dellasmuito pacifficamẽte
huã façanhosa cobra damesma casta daoutra que matou o man
280 cebo em -15- ou-18- horas, masmuito maior que ella, era das que tem
na cauda hũs cascaueis, Eella que vsaua demanha, por que passãdo
por pedras leuãtauaacauda peraque naõ soassem os cascaueis
Doutrameliurou deos amỹ que lhenaõ pusesse os pes ẽcima
por lheouiuir os cascaueis uindo por baixo das eruas que eraõ altas
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225 fl. 3r
pelas contínuas chuvas, e passamos todos aqueles dias tão santos e
de endoenças e paixão, caminhando por matos e lamas como dantes
e ao Sábado Santo passamos um rio muito maior que todos chamado
Aracategi, que compete com os grandes de Portugal, e nos deu bem de tra-
230 balho buscar paus para jangadas para passar no tempo em que por cá to-
dos se alegram e se dão as boas Aleluias, finalmente o passamos assen-
tados nos paus que iam por baixo da água, vindo-se o mundo abaixo
com chuva, trovões e relâmpagos, e ao longo deste rio debaixo de
um espesso e triste arvoredo estivemos aquela tão santa noite
235 e dia meios alagados d’água.
Nunca nestes caminhos me lembraram os colégios com sauda-
des deles, senão nestes santos dias por carecer da vista de tanta
devoção como neles há; mas isto mesmo por outra parte me consola-
va vendo que carecia eu de tanto bem por serviço daquele Senhor
240 que é causa de todo ele.
Depois de deixarmos de todo esta serra dos Corvos caminhando
pelos campos, eram tantas as lamas que não havia dar passo sem
atolar; por onde nos foi necessário descalçarmo-nos; porém daí
a poucos dias das ervas e moscas, e mosquitos que
245 nos picavam se nos fizeram os pés leprosos, e a mim em especial
me incharam criando matéria em várias partes, pelo que
a necessidade nos constrangeu a nos tornarmos a calçar, por onde
nem descalços bem podíamos ir com lamas; não quero apontar
muitas particularidades nesta matéria por não parecer
250 que exagero muito nossos trabalhos, nem ainda isto que é o menor e
escrevera se me não persudira que se consolarão muito nossos irmãos
com saberem o que por cá se passa para nos encomendarem mais de propósito
ao Senhor.
Com estas dificuldades do caminho se nos ajuntou boa
255 fome, porque por estes campos não há ratos, nem se matou neles ou-
tra caça alguma, de modo que nos foi forçado a comer das ervas quando
ainda as achávamos, e estas cosidas na água sem outra al-
guma benfeitoria; viemos a lançar mão da maniçoba brava
bem amargosa e sem sabor, e depois chegamos a comer da mesma
260 raiz da mandioca brava assada de que alguns se começaram a a-
char mal, eu então tive me mais à fome posto que não me fez mal
a que tinha comido, e ainda destas coisas nos veio a faltar, e passa-
mos alguns dias sem comer mais que umas poucas raízes de ervas
da feição de cebolinhas pequenas; cobras, lagartos, e lagartixas
265 para os índios era banquete, e eu também tirando cobras me es-
forçava a comer tudo, tendo por mais dificultosa de vencer a
fome que o asco, verdade é que em todas estas coisas achávamos mais
gosto que noutro tempo em coisas que o tem, mas o que sobejava no gosto
pela fome faltava nas forças pela sustância ser pouca.
270 Também nestes caminhos nos livrou o Senhor de muitos e evidentes
perigos quase milagrosamente. Em especial foi notável um que
passou nesta forma; estávamos um dia assentados e bem cansados
o padre e eu comendo uns caracóis d’água que nós mesmos tínhamos apa-
nhado, metendo-nos pelos charcos, e era bom banquete em seme-
275 lhante conjunção, e entre nós ambos algum tanto para uma banda es-
tavam umas ervas algum tanto altas nas quais alimpávamos as
mãos por não haver outro guardanapo mais à mão, senão quando
sentimos bulir as ervas e vimos sair delas muito pacificamente
uma façanhosa cobra da mesma casta da outra que matou o man-
280 cebo, em -15- ou -18- horas, mas muito maior que ela, era das que têm
na cauda uns cascavéis, e ela que usava de manha, porque passando
por pedras levantava a cauda para que não soassem os cascavéis.
Doutra, me livrou Deus a mim que lhe não pusesse os pés encima
por lhe ouvir os cascavéis vindo por baixo das ervas que eram altas.
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285 fl. 3v
Outra Searremessou ahuã Jndia, Elhemordeo naroupa, masquis
deos que lhenaõ chegasse a carne, eoutro jndio teue bem detrabalho
em seliurar doutra, Efinalmẽte no jpiapaba jndo hũ jndio gẽ
tio peraaaldeaondenos estauamos hũ dia antesde chegar
290 o mordeo outra cobra damesma casta que ca saõ asmais ordi
narias emuitas en cantidade Eempoucas horas opobre jndio
expirou; muito lheaproueitara se chegara anos ainda que naõ
fosse mais que por hũ quarto dehora cõ vida. Epor serem estas cobras
taõ peçonhẽtas lhechamaõ estes yndios cobras verdadeiras, como Seas ou
295 tras o naõ fossem, enaõ ousaõ desair acassar emtodo o imuerno
emquãto a erua esta crecïda, mas esperaõ que seseque pera queimar
os campos euerem por ondeuaõ-
finalmẽte ouuemos de chegar alguã hora aesta serra do ẏ
biapaba, aonde cuidauamos que pello menos nosfartariamos
300 defarinha, porem estaua esta gente emtãta fome que uindo nos
hũs indios ao caminho cõ refresco areceber seus parentes como legoa
Emea antes dechegarmos aaldea nos apresentaraõ como cousa de
grande preço (enaõ eramenos) hũas -15-ou-18- espigas demilho
asquais repartimos cõ o principal denossa gente, E cõ os nossos
305 moços, demodo que perao diaseguinte nos ficaraõ cada hũ sua, E
sobreeste almoço nos pusemos ao caminho, eandamos aquellamenhã
legoa E mea que tinha portres pellaaltissima ladeira que sesobe pera
a aldea, que esta no alto daserra, Epera asobir henecessario auerescadas
emalgũs passos, ou depao oufeitas namesmaterra Erochedos E
310 corre esta Serra toda assẏ denorte asul cousa de -25-oumais
legoas fazendo hũ muro derochedo cõ suas como ameas naturais
E por cima heterra cham E cãpina, Epera parte do poẽte tem muito
pouca queda.
Cõ caminharmos bẽ aquelle dia Epartirmos cedo, acabamos de
315 chegar ariba, as duas ou tres horas depois demeio dia, E em huã
cham que faz aladeira antes de chegar aomais alto nos estauaes
perãdo o principal, eoutrosque paranos esforçarẽ parao restante do
caminho, nostinhaõ prestes huãs poucas deraizes demãdioca
aque chamaõ macaheira, cosidas E hũ pouco desal epimẽtadaterra
320 E hũ palmito pera assentar oestomago; E chegandose oprinci
pal anos nos abraçou dizendo/Jesü/ Elogo se seguiraõ os de
mais anos abraçar edar as boas uindas, E hũa india nosque
ria chorar por festa como costumaõ, mas opadre lhemãdou dizer que naõ
eranecessario, E cõ isto nosrecolhemos da chuua que ainda entretãtas
325 festas nosnaõ deixou-.
Metidos nos egasalhados em huã das Suas choças que pera
isso tinhaõ aparelhada, começaraõ acorrer os presentes,
quem mea duzia deespigas demilho, quẽ hũ palmito, quẽ huã
Abobora que era o demais preço, emfim palmitos ealgũ milho fo
330 raõ asmais ordinarias cousas que aquẏ tiuemos quinzedias que
aquẏ estiuemos nesta aldea, estes saõ os recebimẽtosque por ca
ha E euposso escreuer; escreuaõ outros em bora osque se fazem
nas cortes dos Reis eprincipes de europa, que posto que tenhaõ mais
que escreuer, naõ teraõ mais gosto que eu em ofazer, mas comtudo
335 logo cõtareẏ outro recebimento mais Solẽne que este-.
hũ dos principais destes jndios tinha dito a hũ mãcebo
Mamaluco que aqui estaua quelhe dohia muito a cabeça, Eque
se fosse caso que seachasse mal, que nos dissesse em chegando queo
baptizassemos, nẽ era bastãte peralhe tirar a dor hũ ferro
340 que fora defreio de caualo quebrado, o qual tinha emgrandeses
tima desantidade por lhoter dado outro como cousa que uiera
do ceo, este lhetireẏ cõ muito trabalho; dahi aalgũs dias
dizendo eu a este jndio que andaua mal desposto, ellemerespõ
deo dizendo que erapor que eunaõ tinha cõfiãça em deos como elle ti
345 uera, Eque por isso selhefora a dor de cabessa eandaua jasão; ẽ fim
fazia bõ entendimẽto das cousas dedeos, Euinha muitas vezes
pergũtalas dizendo que peraas emsinar a sua molher quelhos pergũ
taua, esteueio depois peraa jgreja deos ofaça bom Xrisptaõ-
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285 fl. 3v
Outra se arremessou a uma índia, e lhe mordeu na roupa, mas quis
Deus que lhe não chegasse à carne, e outro índio teve bem de trabalho
em se livrar doutra, e finalmente na Ibiapaba indo um índio gen-
tio para a aldeia onde nós estávamos um dia antes de chegar
290 o mordeu outra cobra da mesma casta que cá são as mais ordi-
nárias e muitas em quantidade e em poucas horas o pobre índio
expirou; muito lhe aproveitara se chegara a nós ainda que não
fosse mais que por um quarto de hora com vida. E por serem estas cobras
tão peçonhentas lhe chamam estes índios cobras verdadeiras, como se as ou-
295 tras o não fossem, e não ousam de sair a caçar em todo o inverno
enquanto a erva está crescida, mas esperam que se seque para queimar
os campos e verem por onde vão.
Finalmente houvemos de chegar alguma hora a esta serra da I-
Biapaba, aonde cuidávamos que pelo menos nos fartaríamos
300 de farinha, porém estava esta gente em tanta fome que vindo-nos
uns índios ao caminho com refresco a receber seus parentes como légua
e meia antes de chegarmos à aldeia nos apresentaram como coisa de
grande preço (e não era menos) umas -15- ou -18- espigas de milho
as quais repartimos com o principal de nossa gente, e com os nossos
305 moços, de modo que para o dia seguinte nos ficaram cada um sua, e
sobre este almoço nos pusemos ao caminho, e andamos aquela manhã
légua e meia que tinha por três pela altíssima ladeira que se sobe para
a aldeia que está no alto da serra, e para a subir é necessário haver escadas
em algns passos, ou de pau ou feitas na mesma terra e rochedos e
310 corre esta serra toda assim de Norte a Sul coisa de -25- ou mais
léguas, fazendo um muro de rochedo com suas como ameias naturais
e por cima é terra cham e campina, e para parte do poente tem muito
pouca queda.
Com caminharmos bem aquele dia e partirmos cedo, acabamos de
315 chegar à riba, às duas ou três horas depois de meio dia, e em uma
chã que faz a ladeira antes de chegar ao mais alto nos estava es-
perando o principal, e outros que para nos esforçarem para o restante do
caminho, nos tinham prestes umas poucas de raízes de mandioca
a que chamam macaxeira, cosidas e um pouco de sal e pimenta da terra
320 e um palmito para assentar o estômago; e chegando-se o princi-
pal a nós nos abraçou dizendo /Jesus/ e logo se seguiram os de-
mais a nos abraçar e dar as boas vindas, e uma índia nos que-
ria chorar por festa como costumam, mas o padre lhe mandou dizer que não
era necessário, e com isto nos recolhemos da chuva que ainda entre tantas
325 festas nos não deixou.
Metidos nós e gasalhados em uma das suas choças que para
isso tinham aparelhada, começaram a correr os presentes,
quem meia dúzia de espigas de milho, quem um palmito, quem uma
abóbora que era o demais preço, enfim palmitos e algum milho fo-
330 ram as mais ordinárias coisas que aqui tivemos quinze dias que
aqui estivemos nesta aldeia, estes são os recebimentos que por cá
há e eu posso escrever; escrevam outros embora os que se fazem
nas cortes dos reis e príncipes de Europa, que posto que tenham mais
que escrever, não terão mais gosto que eu em o fazer, mas contudo
335 logo contarei outro recebimento mais solene que este.
Um dos principais destes índios tinha dito a um mancebo
mameluco que aqui estava que lhe doía muito a cabeça, e que
se fosse caso que se achasse mal, que nos dissesse em chegando que o
batizássemos, nem era bastante para lhe tirar a dor um ferro
340 que fora de freio de cavalo quebrado, o qual tinha em grande es-
tima de santidade por lho ter dado outro como coisa que viera
do céu, este lhe tirei com muito trabalho; daí a alguns dias
dizendo eu a este índio que andava mal disposto, ele me respon-
deu dizendo que era porque eu não tinha confiança em Deus como ele ti-
345 vera, e que por isso se lhe fora a dor de cabeça e andava já são; enfim,
fazia bom entendimento das coisas de Deus, e vinha muitas vezes
perguntá-las dizendo que para as ensinar a sua mulher que lhos pergun-
tava, este veio depois para a igreja Deus o faça bom cristão.
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40
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Estemãcebo mamaluco deque falei tinha hido cõ outros brãcos E por fl. 4r
350 la seficou cõ outro, eauia tres annos quesenaõ comfessauaõ nem
ouuiaõ missa; logo os fizemos aparelhar deuagar, E comfessar
E comungar; estespor la andaõ comforme aos cõ que trataõ; despidos
E emtodaamiseria, E o espirito pouco pode ser entre barbaros
jnfieis sem missa nem Sacramẽtos.
355 Nesta grãde serra auia ha dous outres annos, mais de seten
ta aldeas degentio que nos contarão por seus nomes, Edepois de os
brãcos la jrem, eosreceberem no principio com guerra, seforaõ
todos perao maranhaõ cõ medo dizendo que seos brãcos tinhaõ
destruẏdo todos osmoradores do jagoaribe sendo recebidos delles
360 compaz muito milhor os destrujriaõ aelles que no principio osrecebe
raõ com guerra, Eestespobres por derradeiro la nomaranhaõ lhefizeraõ
guerra osseus cõtrarios cõ os francezes E destrujraõ muitos, E
outrosmorreraõ de doenças contagiosas, E dos queficaraõ ametade
setornaraõ euindo foraõ mortos ecatiuos dostapuyas, demodo que
365 So seis ousete chegaraõ por hũauez, Epor outra obra de -20- casais E
nesta serra tinhaõ ficado Sos duas aldeotas, huã dasquais
heesta aque primeiro chegamos porestar mais perto do mar
Eteria vinte casaïs E aoutraalgũs -50- ou sessenta.
postosnos alï emtantafome quanta dantes ja trazia
370 mos, E estauamos como tisicos demagros que naõ tinhamos
mais que apelle sobre os ossos, eeranecessario hirmos fazer assento
aonde tiuessemos comque nos refazer; Mandamos recado
paraoutraaldea pera Sabermos senosqueriaõ lá, Eque uiessem
algũs afalar cõ nosco, Etãbemnos queriamos emformar
375 dos que tinhaõ uindo do maranhaõ que la estauaõ principal
mente a cerqua dosfrãcezes que tinhamos por nouas que
estauaõ lá de assento comduas fortalezas feitas em duas
Jlhas na boca do rio do maranhaõ-
O principal daquella aldea chamado o diabo grande
380 nosmandou hũ Irmaõ seupor nome o diabo ligeiro cõ outros jn
dios que nos leuassẽ pera Sua aldea, Este diabo ligeiro (que
he hũ jndio muẏ bem desposto Eemseufalar grãdioso, earrogante)
nosfez todos os cõprimẽtos significãdonos os desejos deseu jrmaõ
Emostrãdo os seus denos uer em Sua aldea, cõisto nos offere
385 ceo, hũ pouco demilho Edefeijoẽs quetrazia, etendo palaura
denos que hiriamos cõ elle; despedio logo os seus que fossẽ certi
car ojrmaõ denossa jda E do dïaque chegariamos ec. parti
mo nos cõ elle etoda amais aldea tambem se foẏ cõ nosco fogin
do dafome cõ jntento deseuirem pera pernambuco como ujeraõ
390 gastamos nestecaminho honze dias jndo Sempre di
ante o diabo ligeiro agazalhando nos, E assinalandonos
lugar peranossas choupanas outugipares; no caminho tẏ
uemos afestada Ascemsaõ Echegamos dous dias antesdo
Espirito Santo a Aldea.
395 E por que perajrmos daprimeira aldea a Sua auiamos de decer
aserra etornala a sobir por escusarmos hũ grãde rodeo, cousa
que naõ So nos era penosa, mas quasi impossiuel por nossa fraqueza
Efome; quãdo chegamos ao pé da ladeira que auiamos desubir cou
Sa de cinquo legoas antesde chegarmos pollo trabalho da
400 quelle dia por Ser o caminho asperrimo e cõprido, nos deitamos
Sobre huãs pedras ao longo dehuã Agoa Sempodermos dar
passadapor diante cõ fraquesa; nempodermos chegar ao
lugar aonde auiamos de dormir; Senaõ quãdo chegaõ dous
mãcebos com huã pouca defarinha demilho em hũ coffo
405 que peranos foraõ como o profeta abacüc quãdo guiado do Anjo
leuou o comer a daniel, emfim comemos daquella fa
rinha, Ebebemos daquellaagoa, Eassẏ pudemos chegar
aostupajares aonde ja os nossos estauaõ Etinhaõ também
42

Este mancebo mameluco de que falei tinha ido com outros brancos e por fl. 4r
350 lá se ficou com outro e havia três anos que se não confessavam nem
ouviam missa; logo os fizemos aparelhar devagar, e confessar
e comungar; estes por lá andam conforme aos com que tratam, despidos
e em toda a miséria, e o espírito pouco pode ser entre bárbaros
infiéis sem missa nem sacramentos.
355 Nesta grande serra havia há dois ou três anos, mais de seten-
ta aldeias de gentio que nos contaram por seus nomes, e depois de os
brancos lá irem, e os receberem no princípio com guerra, se foram
todos para o Maranhão com medo dizendo que se os brancos tinham
destruído todos os moradores do Jaguaribe sendo recebidos deles
360 com paz muito melhor os destruiriam a eles que no princípio os recebe-
ram com guerra, e estes pobres, por derradeiro lá no Maranhão lhe fizeram
guerra os seus contrários com os francezes e destruíram muitos, e
outros morreram de doenças contagiosas, e dos que ficaram a metade
se tornaram e vindo foram mortos e cativos dos tapuias, de modo que
365 só seis ou sete chegaram por uma vez, e por outra obra de -20- casais e
nesta serra tinham ficado só duas aldeotas, uma das quais
é esta a que primeiro chegamos por estar mais perto do mar
e teria vinte casais e a outra alguns -50 - ou sessenta.
Posto-nos ali em tanta fome quanta dantes já trazía-
370 mos e estávamos como tísicos de magros que não tínhamos
mais que a pele sobre os ossos, e era necessário irmos fazer assento
aonde tivéssemos com que nos refazer; mandamos recado
para outra aldeia para sabermos se nos queriam lá, e que viessem
alguns a falar conosco, e também nós queríamos informar
375 dos que tinham vindo do Maranhão que lá estavam principal-
mente a cerca dos franceses que tínhamos por novas que
estavam lá de assento com duas fortalezas feitas em duas
ilhas na boca do rio do Maranhão.
O principal daquela aldeia chamado o Diabo Grande
380 nos mandou um irmão seu por nome o Diabo Ligeiro com outros ín-
dios que nos levassem para sua aldeia,este Diabo Ligeiro (que
é um índio mui bem disposto e em seu falar grandioso, e arrogante)
nos fez todos os cumprimentos significando-nos os desejos de seu irmão
e mostrando os seus de nos ver em sua aldeia, com isto nos ofere-
385 ceu, um pouco de milho e de feijões que trazia, e tendo palavra
de nós que iríamos com ele; despediu logo os seus que fossem certi-
car o irmão de nossa ida e do dia que chegaríamos etc. parti-
mo-nos com ele e toda a mais aldeia também se foi conosco fugin-
do da fome com intento de se virem para Pernambuco como vieram
390 gastamos neste caminho onze dias indo sempre di-
ante o Diabo Ligeiro agazalhando-nos, e assinalando-nos
lugar para nossas choupanas ou tejupares; no caminho ti-
vemos a festa da Ascensão e chegamos dois dias antes do
Espírito Santo à aldeia.
395 E por que para irmos da primeira aldeia à sua havíamos de descer
a serra e torná-la a subir por escusarmos um grande rodeio, coisa
que não só nos era penosa, mas quase impossível por nossa fraqueza
e fome; quando chegamos ao pé da ladeira que havíamos de subir coi-
sa de cinco léguas antes de chegarmos pelo trabalho da-
400 quele dia por ser o caminho aspérrimo e comprido, nos deitamos
sobre umas pedras ao longo de uma água sem podermos dar
passada por diante com fraqueza; nem podermos chegar ao
lugar aonde havíamos de dormir; senão quando chegam dois
mancebos com uma pouca de farinha de milho em um coffo
405 que para nós foram como o profeta Habacuc quando guiado do Anjo
levou o comer a Daniel, enfim comemos daquela fa-
rinha, e bebemos daquela água, e assim pudemos chega
aostupajares aonde ja os nossos estauaõ Etinhaõ também
43

43

aos tejupares, aonde já os nossos estavam e tinham também


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fl. 4v
410 Chegado -15- ou- 18- que o diabo grãde tinha mãdado em compahia
deoutrojrmaõ seu mais moço comrefresco defarinha peixe mẏ
lho Eabobaras, E cõ preceito quenos leuassem emredes, naõ só
ao sobir da ladeira mas todas aquellas cinquo legoas, o queelles
fizeraõ cõtanta diligencia E caridade quãta senaõ pode em
415 carecer (aquellas cinquo legoas andamos em pes alheios
emtodo estecaminho) estando nosfinalmente ja huã só legoa
daaldeaaposentados, chegou amolherdo diabo ligeiro quenos
fora abuscar cõ algũs jndios quenos leuaraõ outro presente
do principal, defeijoẽs, peixe, Ehuã duzia daboboras.
420 Ao dia Seguinte nos ueio o mesmo principal receber ao mejo
do caminho mea legoa daaldea cõ todos os principais Eal
guãs molheres cõ seus presentes, Eelles todos cõ suas bozinas
gaitas e cascaueis quesaõ seus instrumẽtos musicos com
tanta festa E alegria que eufiqueẏ pasmado, Eo padre
425 com ser antigo sertanista medisseque nũca uira entregen
tios cousa semelhãte; emfim dali nostrouxeraõ acorrer
Sempre reuesandose todos atrazer asredesem que uinhamos
comose ganhassẽ perdões; eraõ tãtos os gritos efestas que
pareciaõ doudos-.
430 Chegando aAldea Sahio hũ grãde tambor que jatodaama
nhã hiamos ouuindo E cõ seus maracäs (que são hũs cabaços
com hũs feijoẽs dentro) tangendo ecantando, E cõ essa Sole
nidade nosmeteraõ na casa que nostinhaõ aparelhada E
nostrouxeraõ logo muitos presentes, Easmusicas Edãças
435 continuaraõ dous outres dias cõ Suas noites, bendito
Seja o senhor que permite que estes barbaros sẽ o conhecer a
elle conheçaõ e honrẽ aseus seruos só pollo serem.
Mas todos seus desejos eraõ ternos aquẏ cõ sigo, eosnossos
eraõ leuar mo los cõ nosco, oumãdarmo los uir peraajgreja
440 mas abaixo direi osucesso disto-. logo o principal
nos ajũtou pola aldea de seumoto propio algũ milho
que auia muito antesque seacabasse por que farinha auiamuito
pouca por causa da seca do anno passado-.
Emfim achamos os poucos que tinhaõ uindo do maranhaõ
445 osquais naõ tinhaõ chegado aomar; epor isso naõ Sabiaõ dos frãce
zes, mais que terem elles uindo cõ agente daterra a dar guerra
a hũs dos seus quesetinhaõ diuidido como jatoquei; mas es
tesnaõ setinhaõ achado presentes, nẽ uiraõ os frãcezes, cer
tificarão porem que os auia, mas a cerqua do caminho nos
450 imformaraõ, assi elles como outros deväriasnaçoẽs deta
puẏas saluajẽs por entreos quais naõ ha passar senaõ aforça
dearmas como estestinhaõ jdo; ou aforça depeitas Edadiuas.
Cõforme aisto nos apparelhauamos E dispunhamos nos
Sas cousas Etraças pera caminhar mos Erompermos asgrãdes
455 difficuldades quesenos offereciaõ, Emedos que estestodos nos
metiaõ, mas cõ grãde comfiãça deauer de facilitar tudo
aquellepor quẽ a tudo nos atreuiamos ẽcomẽdãdonos aelle
Demo do que desta serra dojbiapaba ateo maranhaõ tudo
esta cheio desaluajẽs, que atodos mataõ ou catiuaõ, entraõ
460 porem cõ elles algũs destoutros jndios depaz, quãdo uaõ tra
tar algũ resgate ou cousa semelhãte, mas cõ grãdes cautelas
dos tapuẏas que denim guẽ se cõfiaõ, Equando lauaõ algũs
naõ hão deleuar armas alguãs E cõ asfrechas nospeitos ou
cõ o golpe feito lhepergũtaõ ao queuem, examinando os muẏ
465 bẽ Efingindo quelhe naõ crem, Esetrazem cousa alguã lha
tomaõ aindaque lhedigaõ que heperao Seu principal por que naõ lhe
tem mais respeito queisto, mas depois de bemprouados
lhe daõ muẏ bem de comer, Eosfazem dançar e cantar
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fl. 4v
410 chegado -15- ou-18- que o Diabo Grande tinha mandado em companhia
de outro irmão seu mais moço com refresco de farinha peixe, mi-
lho e abóbaras, e com preceito que nos levassem em redes, não só
ao subir da ladeira mas todas aquelas cinco léguas, o que eles
fizeram com tanta diligência e caridade quanta se não pode en-
415 carecer (aquelas cinco léguas andamos em pés alheios
em todo este caminho) estando nós finalmente já uma só légua
da aldeia aposentados, chegou a mulher do Diabo Ligeiro que nos
fora a buscar com alguns índios que nos levaram outro presente
do principal, de feijões, peixes, e uma dúzia d’áboboras.
420 Ao dia seguinte nos veio o mesmo principal receber ao meio
do caminho meia légua da aldeia com todos os principais e al-
gumas mulheres com seus presentes, e eles todos com suas buzinas
gaitas e cascavéis que são seus instrumentos músicos com
tanta festa e alegria que eu fiquei pasmado, e o padre
425 com ser antigo sertanista me disse que nunca vira entre gen-
tios coisa semelhante; enfim dali nos trouxeram a correr
sempre revesando-se todos a trazer as redes em que vínhamos
como se ganhassem perdões; eram tantos os gritos e festas que
pareciam doidos.
430 Chegando à aldeia saiu um grande tambor que já toda a ma-
nhã íamos ouvindo e com seus maracás (que são uns cabaços
com uns feijões dentro) tangendo e cantando, e com essa sole-
nidade nos meteram na casa que nos tinham aparelhada e
nos trouxeram logo muitos presentes e as músicas e danças
435 continuaram dois ou três dias com suas noites, bendito
seja o Senhor que permite que estes bárbaros sem o conhecer a
Ele conheçam e honrem a seus servos só pelo serem.
Mas todos seus desejos eram ter-nos aqui consigo, e os nossos
eram levarmo-los conosco, ou mandarmo-los vir para à igreja
440 mas abaixo direi o sucesso disto. Logo o principal
nos ajuntou pela aldeia de seu modo próprio algum milho
que havia muito antes que se acabasse porque farinha havia muito
pouca por causa da seca do ano passado.
Enfim achamos os poucos que tinham vindo do Maranhão
445 os quais não tinham chegado ao mar; e por isso não sabiam dos france-
zes, mais que terem eles vindo com a gente da terra a dar guerra
a uns dos seus que se tinham dividido como já toquei; mas es-
tes não se tinham achado presentes, nem viram os franceses, cer-
tificaram porém que os havia, mas a cerca do caminho nos
450 informaram, assim eles como outros de várias nações de ta-
puias selvagens por entre os quais não há passar senão à força
de armas como estes tinham ido; ou à força de peitas e dádivas.
Conforme a isto, nos aparelhávamos e dispúnhamos nos-
sas coisas e traças para caminharmos e rompermos as grandes
455 dificuldades que se nos ofereciam, e medos que estes todos nos
metiam, mas com grande confiança de haver de facilitar tudo
Aquele por quem a tudo nos atrevíamos encomendando-nos a Ele.
De modo que desta serra da Ibiapaba até o Maranhão tudo
está cheio de selvagens, que a todos matam ou cativam, entram
460 porém com eles alguns destoutros índios de paz, quando vão tra-
tar algum resgate ou coisa semelhante, mas com grandes cautelas
dos tapuias que de ninguém se confiam, e quando lá vão alguns
não hão de levar armas algumas e com as flechas nos peitos ou
com o golpe feito lhe perguntam ao que vem, examinando-os mui
465 bem e fingindo que lhe não creem, e se trazem coisa alguma lha
tomam, ainda que lhe digam que é para o seu principal porque não lhe
têm mais respeito que isto, mas depois de bem provados
lhe dão mui bem de comer, e os fazem dançar e cantar.
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fl. 5r
470 Eellestãbem lhefazẽ amesma festa; Estesque uieraõ domaranhaõ
nos cõtaraõ, como á hida pera lá uestiraõ huã roupeta comprida
a hũ dosseus, Epuseraõlhe huã carapuça derebuco, fingindo
cõ isto edizendo aostapuẏas que aquelle era abarë, oupadre
E como os tapuẏas nenhũa noticia tinhaõ depadres nẽ ainda
475 debrãcos, facilmẽtese persuadiraõ ser assi; epor outraparte cuidã
do que aquelle eos desua qualidade eraõ senhores damorte Eda
vida ec; mostrauaõ grandissimo medo dandolhemuẏ bẽ de comer
E leuando o ás costas por quelhenaõ fizesse algũmal, Eseellenaõ
fora tãbem acompanhado bẽ cuido que procurariaõ delhetirar
480 avida por tirar tal peste destemũdo-.
tem tãbempor costume, quãdo os seus morrẽ se saõ homẽs, asmo
lheres lhecomẽ a carne, E os ossos moẏ dos lhos bebẽ peraque naõ tenhaõ
Saudades daquelles que metẽnas entranhas, tendose por mais pios
nesta ẏmpiedade, que os que enterraõ osmortos apartado os desẏ
485 detodo o que hecausa das Saudades; O modo deviuer destes
heandar Sempre como as antigas Seitas cõ sua casa mouida// eto
dassuas riquezas E alfaias Saõ seu arco efrechas cõ que buscaõ de
comer , Eredespequenas cõ quepescaõ, eoutras grãdescõ que cässaõ.
E aonde achaõ decomer ali dormẽ sem cama nem redesmais
490 que o chão; E como andaõ muitos raramente achaõ em hũ lugar
decomer dous dias arréo, pello que quasi imfaliuel mẽte ãdaõ
cada dia huã duas legoas-.
Emquirindo nospois o modo que teriamos perapassar porelles
atodos nos pareceo que cometessemos pazes, por que naõ tinhamos
495 gente que bastasse peranos deffender delles; tomadaesta for
çosa emais propria denosso habito resoluçaõ; mandamos
aduas partesmais propincas, por huã dasquais denecessidade
auiamos dejr, osque foraõ a huã das partes tornaraõ se do camẏ
nho aprimeiravezpor naõ poderem romper osmatos; os que foraõ
500 aoutra leuaraõ hũ presente ao principal delles, assaber
hũ machado, huãs facas, E hũ pouco defumo, que heamilhor E
mais preciosa droga quesemanda, E cõ esperãças que uẽdonos
EEffectuãdose as pazes seriaõ milhor apremiados-.
A cabo de hũ mez tornaraõ cõ reposta; A ssaber que os pri
505 meiros comque emcontraraõ lhetomaraõ o machado, eomais
que leuauaõ, que assẏ costumaõ ordinariamenteestes saluajẽs
nem aproueitou dizerẽ lhe que era perao principal, So huã faca lhe
chegou amaõ, Equetodos diziaõ que fossẽ os padres, Eque lhele
uassem machados, facas, espelhos, tizouras ec. (nomeando
510 tudo por seu nome) Equeellesfariaõ pazes cõ outros dediante
E dizendolheos nossos que os padres naõ leuauaõ muito disto
Eque so aos principais poderiaõ dar alguã cousa, respõ
deraõ que atodos dariaõ, equãdo naõ quelhe dariaõ os vestẏ
dos, Ejanos tinhamos noticia desta sua cobiça jnsaciauel
515 quehe tal, queuendo canastra ou caixa, a ham dereuoluer
Ebuscar tudo, etomar o que lheparecer, sem lhe jrdes amaõ
Esenaõ derdes atodos, todos ficaõ descõtentes, demodo que he
necessario huã nao carregada peraos cõtentar. Eaindaisto era
Sofriuel sefora soo hũ magotedelles, mas saõ muitas naçoẽs
520 de -60-80-100- emais casais-
A juntãdonos ecõferindo estareposta cõ anoticia
que jatinhamos ficamos quasi descõfiados depodermos entrar por
estaporta, porem emcomendando sempre tudo anosso senhor
Epedindolhe nos abrisse o caminho, tornamos amandar la a 2ª.
525 vez, jndo por embaixador o Soldado denossa obrigaçaõ que fora com
nosco do rio grande, Eleuando outro presentesinho; peraque
nos desse aconhecer aestestapuẏas, emformando os de comonos
eramos muẏ differẽtes dosseusfeiticeiros E dos outros Jndios
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fl. 5r
470 E eles também lhe fazem a mesma festa; estes que vieram do Maranhão
nos contaram, como a ida para lá vestiram uma roupeta comprida
a um dos seus, e puseram-lhe uma carapuça de rebuço, fingindo
com isto e dizendo aos tapuias que aquele era abaré, ou padre
e como os tapuias nenhuma notícia tinham de padres nem ainda
475 de brancos, facilmente se persuadiram ser assim, e por outra parte cuidan-
do que aquele e os de sua qualidade eram senhores da morte e da
vida etc; mostravam grandíssimo medo, dando-lhe mui bem de comer
e levando-o às costas porque lhe não fizesse algum mal, e se ele não
fora também acompanhado bem cuido que procurariam de lhe tirar
480 a vida por tirar tal peste deste mundo.
Têm também por costume, quando os seus morrem, se são homens, as mu-
lheres lhe comem a carne, e os ossos moídos lhos bebem para que não tenham
saudades daqueles que metem nas entranhas, tendo-se por mais pios
nesta impiedade, que os que enterram os mortos, apartando-os de si
485 de todo o que é causa das saudades. O modo de viver destes
é andar sempre como as antigas seitas com sua casa movida e to-
das suas riquezas e alfaias são seu arco e flechas com que buscam de
comer, e redes pequenas com que pescam, e outras grandes com que caçam.
E aonde acham de comer, ali dormem sem cama nem redes mais
490 que o chão; e como andam muitos raramente acham em um lugar
de comer dois dias arreio, pelo que quase infalivelmente andam
cada dia umas duas léguas.
Inquirindo-nos pois o modo que teríamos para passar por eles
a todos nos pareceu que cometéssemos pazes, por que não tínhamos
495 gente que bastasse para nos defender deles; tomada esta for-
çosa e mais própria de nosso hábito resolução; mandamos
a duas partes mais propínquas, por uma das quais de necessidade
havíamos de ir os que foram a uma das partes tornaram-se do cami-
nho a primeira vez por não poderem romper os matos; os que foram
500 a outra levaram um presente ao principal deles; a saber
um machado, umas facas, e um pouco de fumo, que é a melhor e
mais preciosa droga que se manda, e com esperanças que vendo-nos
e efectuando-se as pazes seriam melhor apremiados.
A cabo de um mês tornaram com resposta; a saber que os pri-
505 meiros com que encontraram lhe tomaram o machado, e o mais
que levavam, que assim costumam ordinariamente estes selvagens
nem aproveitou dizerem-lhe que era para o principal, só uma faca lhe
chegou à mão, e que todos diziam que fossem os padres, e que lhe le-
vassem machados, facas, espelhos, tisouras etc. (nomeando
510 tudo por seu nome) e que eles fariam pazes com outros de diante
e dizendo-lhe os nossos que os padres não levavam muito disto
e que só aos principais poderiam dar alguma coisa, respon-
deram que a todos dariam, e quando não que lhe dariam os vesti-
dos, e já nós tínhamos notícia desta sua cobiça insaciável
515 que é tal, que vendo canastra ou caixa, a hão de revolver
e buscar tudo, e tomar o que lhe parecer, sem lhe irdes à mão
e se não derdes a todos, todos ficam descontentes, de modo que é
necessário uma nau carregada para os contentar. E ainda isto era
sofrível se fora só um magote deles, mas são muitas nações
520 de -60-80-100- e mais casais.
Ajuntando-nos e conferindo esta resposta com a notícia
que já tínhamos ficamos quase desconfiados de podermos entrar por
esta porta, porém encomendando sempre tudo a Nosso Senhor
e pedindo-lhe nos abrisse o caminho, tornamos a mandar lá a 2ª.
525 vez, indo por embaixador o soldado de nossa obrigação que fora co-
nosco do Rio Grande, e levando outro presentezinho; para que
nos desse a conhecer a estes tapuias, informando-os de como nós
éramos mui diferentes dos seus feiticeiros e dos outros índios
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fl. 5v
530 A quẽ elles auorreciaõ etinhaõ porpeste do mũdo; Eque uinhamos
a darlhe noticia daoutrauida E do criador detodo o mundo
Edauida santa ec. finalmente leuaua recado quetrouxesse delá al
gũ tapuẏa ou algũ escrauo seu quefosse lingoa peraque nos uisse E
leuasse certesa aosseus deser tudo verdade, Eque deixasse lá
535 algũs dos nossos emrefẽs, Eno mesmo tempo mãdamos cometer
pazes ao milho verde, que heinimigo capital dos brãcos E
dos jndios dojbiapaba cõ quẽ estauamos, Etãbẽ osmãdamos
cometer aoutro jndio do mar chamado cobraazul perasefazer
tãbẽ amigo destes mesmos dojbiapaba, todasestas empresas
540 tomamos entremaõs, os quehiaõ ao milho verdenaõ puderaõ che
gar lá por estar o caminho empedido cõ outros tapuẏas-.
OMancebo quefoẏ cõ os jndios aos tapuẏas deprimeiro teue
o Sucesso queaqui direẏ, primeira mente o recebimento foẏ cõ as ceri
monias quetenho dito Eheordinario entreelles, fezlhe sua
545 pratica por interprete, que era huã jndia parenta dealgũs dos nossos
escraua Sua auia muitos annos, recebeo oprincipal oquelhemã
dauamos, Eprincipalmẽte fezmuita festa ahuã buceta defrã
desque lhemãdamos cheadefumo; todos os vestidos queleuaua lhe
pediraõ, etodos deu, mas tinha pouco que dar, E hũ aquẽ elledera os
550 calçoẽs, depois deos calçar selhe ajũtaraõ as co molheres áróda
aprantealo por vestir os feitiços dobrãco, como ellas diz que diziaõ
E como estestodos o seu hematar, enisto mostrarẽ sua valẽtia
hũ mais valente pergũtou ao mancebo seera ellevalente
Erespondendolhe que tãto como elle, o leuouperaseurancho
555 fazendolhe por isso festa-.
Emresoluçaõ lhederaõ a jndia que erajnterprete perauir
Ca anos uer Ea lheleuar certezaE noticia clara dequẽ
eramos, Eem seu lugar ficaraõ tres mãcebos dos nossos-.
Vendo nos esta jndia aprimeira uez, como aquellaque nũcauira gẽte
560 estaua diãte denos cõ os olhos no chaõ sem olhar peranos, E di
zendolhe hũ Jndio ues aquẏ ospadres, este heo jrmaõ mais velho
eestoutro he oirmaõ mais moço, leuãtou os olhos eimmedia
tamẽte ostornou a por no chaõ, Eisto cõ medo, como ella depois
que o perdeo cõfessou, que como aindanaõ fazia differẽça dos feiti
565 ceiros anos, os quais feiticeiros temẽ eauorrecem, nẽ uer
nospodia, porem depois falaua Eria E olhaua cõ alegria mos
trãdo muita satisfaçaõ detudo, E nos afizemos deter, oito ou
noue dias - por esperar pela festa daaSsumpçaõ denossa senhora
emque tinhamos perafazer huã procissaõ cõ huã dança demininos
570 destes gẽtios E hṹ diabrate ec. o que tudo causou assi aella
como aos outros desta aldea admiraçaõ por ser peraelles grande
nouidade; Edepois della todos seforaõ pera Suas casas aprãtear
por uerem queos antepassados morreraõ sem uer tãto bem
como elles agora ujaõ, como depois nos explicou hũ principal
575 acrecentando que elle tãbem senaõ puderater, Esefora por
a chorar, Equãdoisto nos dizia mostraua jnda os mesmos Effeitos
Passado o dia dafesta despedimos a Jndia bẽ acom
panhada dandolhe hũ cueiro pera ella, emãdando
ao principal hũ Espelho, Ehũ machado, eella nosprometeo
580 que auia de fazer uir cá o principal dostapuẏas o qual
ja dantestinha dito que mãdaria algũs dos seus cõ nosco pera
nos guiarem, nestemesmo tempõ mãdamos tãbẽ recado aos
outros tapuẏas do outro caminho a hida aosquais naõ ti
uera Effeito aprimeira uez como ja disse, Earepostafoẏ que estauaõ
585 aluoraçados pornosuer, Eque fossemos Elheleuassemos muitas
ferramentas que deuiamos deastrazer, que os que daquẏ passauaõ
por suas terras lhedauaõ muitas cousas, quãto mais nos
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fl. 5v
530 a quem eles aborreciam e tinham por peste do mundo; e que vínhamos
a dar-lhe notícia da outra vida e do Criador de todo o mundo
e da vida santa etc. finalmente, levava recado que trouxesse de lá al-
gum tapuia ou algum escravo seu que fosse língua para que nos visse e
levasse certeza aos seus de ser tudo verdade, e que deixasse lá
535 alguns dos nossos em reféns, e no mesmo tempo mandamos cometer
pazes ao Milho Verde, que é inimigo capital dos brancos e
dos índios da Ibiapaba com quem estávamos, e também os mandamos
cometer a outro índio do mar, chamado Cobra Azul, para se fazer
também amigo destes mesmos da Ibiapaba, todas estas empresas
540 tomamos entre mãos, os que iam ao Milho Verde não puderam che-
gar lá por estar o caminho impedido com outros tapuias.
O mancebo que foi com os índios aos tapuias, de primeiro teve
o sucesso que aqui direi, primeiramente o recebimento foi com as ceri-
mônias que tenho dito e é ordinário entre eles, fez-lhe sua
545 prática por interprete, que era uma índia parenta de alguns dos nossos
escrava sua havia muitos anos, recebeu o principal o que lhe man-
dávamos, e principalmente fez muita festa a uma boceta de flan-
dres que lhe mandamos cheia de fumo; todos os vestidos que levava lhe
pediram, e todos deu, mas tinha pouco que dar, e um a quem ele dera os
550 calções, depois de os calçar se lhe ajuntaram as mulheres à roda
a pranteá-lo por vestir os feitiços do branco, como elas diz que diziam
e como estes todos o seu é matar, e nisto mostrarem sua valentia
um mais valente perguntou ao mancebo se era ele valente
e respondendo-lhe que tanto como ele, o levou para seu rancho
555 fazendo-lhe por isso festa.
Em resolução lhe deram a índia que era intérprete para vir
cá a nos ver e a lhe levar certezas e notícia clara de quem
éramos, e em seu lugar, ficaram três mancebos dos nossos.
Vendo-nos esta índia a primeira vez, como aquela que nunca vira gente
560 estava diante de nós com os olhos no chão sem olhar para nós, e di
zendo-lhe um índio vês aqui os padres, este é o irmão mais velho
e estoutro é o irmão mais moço, levantou os olhos e imedia
tamente os tornou a pôr no chão, e isto com medo, como ela depois
que o perdeu confessou que como ainda não fazia diferença dos feiti-
565 ceiros a nós, os quais feiticeiros temem e aborrecem, nem ver-
nos podia, porém depois falava e ria e olhava com alegria mos-
trando muita satisfação de tudo, e nós a fizemos deter, oito ou
nove dias - por esperar pela festa da Assunção de Nossa Senhora
em que tínhamos para fazer uma procissão, com uma dança de meninos
570 destes gentios e um diabrete etc. o que tudo causou assim a ela
como aos outros desta aldeia admiração por ser para eles grande
novidade; e depois dela todos se foram para suas casas a prantear
por verem que os antepassados morreram sem ver tanto bem
como eles agora viam, como depois nos explicou um principal
575 acrescentando que ele também se não pudera ter, e se fora pôr
a chorar, e quando isto nos dizia mostrava ainda os mesmos efeitos.
Passado o dia da festa despedimos a índia bem acom-
panhada dando-lhe um cueiro para ela, e mandando
ao principal um espelho, e um machado, e ela nos prometeu
580 que havia de fazer vir cá o principal dos tapuias o qual
já dantes tinha dito que mandaria alguns dos seus conosco para
nos guiarem, neste mesmo tempo mandamos também recado aos
outros tapuias do outro caminho a ida aos quais não ti-
vera efeito à primeira vez como já disse, e a resposta foi que estavam
585 alvoroçados por nos ver, e que fôssemos e lhe levássemos muitas
ferramentas que devíamos de as trazer, que os que daqui passavam
por suas terras lhe davam muitas coisas, quanto mais nós
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fl. 6r
que eramos senhores das cousas, bem nos emfadaraõ cõ tanta
590 cobiça junto com serem saluajẽs, sem medo nemrespeito, mas nos
estauamos cõtudo apostados aromper portodas as difficuldades
cõ o fauor dedeos-
Depois depassarmos pelo jagoaribe como ficareferido tiueraõ
noticia asrelliquias queescaparaõ dos brãcos eandauaõ
595 embrenhados de nossapassagem, Ede como traziamos pazes E
liberdade pello que foraõ saindo aomar, hũ principal dos
quais se chama algodaõ, o qual naõ podendo crer (como dizem,
tanto bem como os seus lhe certificauaõ, quis jr ao jbiapaba a
nos uer cõ o olho eouuir as boas nouas denossa boca, partio efoẏ
600 por casa do cobra azul aquẽ tinhamos mandado recado, Eleuou
comsigo hũ filho seu, eoutros -4-ou-5- naõ posso explicar os
Effeitos dealegria que estealgodaõ mostraua denos uer prome
tendo que acabado de sair seus parẽtes, fariaõ oque nos quisessemos
Ejriaõ peraondenos mãdassemos, Ejuntamẽtese assẽtaraõ
605 as pazesentreelles eestes dojbiapaba. Eofilho do cobra azul
fez tãbem emnome deseupaẏ pazes Etrataraõ deseajũtar
amorar junto do mar perto do rio parä, que está entreo jbi
apaba eomaranhaõ-.
Agora direi algũs costumes destes dojbiapaba Edealguãs
610 cousas que acõteceraõ em - 4-ou-5- mezes que cõ ellesestiuemos
primeira mente tiuemos huã grãde perda, Efoi morrer nos aquẏ o
principal denossa gente chamado belchior darosa capitaõ
dos jndios depernambuco porprouisoẽs dos governadores pollosseruiços
que tinha feitos cõ sua gente; esteera hũ jndio mui bẽ ẽtẽdido
615 Edemuita autoridade entreos seus, Eno falar Eentẽder ascou
Sas eramais que jndio do brasil pello que todoslhe tinhaõ muito respeito
Em suas pregaçoẽs punha os padres nasEstrellas Efalaua
Espiritualmente declarãdo ao que hiamos eo que pretẽdiamos
E na verdade que me admirou aprimeira vez que o ouuj pregar cõ
620 o naõ entender ainda perfeitamente por que amateria desua prega
çaõ foẏ de como nos hiamospor amor delles Edesuas almas, Epera
lhedarmosnoticia do caminho do ceo, Eque bem o mostrauamos em
nosso modo decaminhar cõ nossos liuros deresar, que naõ hiamos
buscar escrauos nẽ fazer guerra o que bem mostrauaõ nossos
625 bordoẽs, Eque seoutra cousa pretenderamos que leuaramos espin
gardas Esoldados eoutras cousas desta calidade que naõ me cau
Sauão menos deuoçaõ que admiraçaõ; Morreo etico muẏ bẽ apa
relhado comfessandose E comũgando duas vezes Efazendo Seus
apontamẽtos-.
630 Perao enterramento seajũtaraõ todos assi os nossos como
os outros todos cõ suas cãdeas acesas o trouxemos emprocissão
a jgreginha emquediziamosmissa emhũ esquife quelhe
tinhamos mãdado fazer, cousaque pasmou aestes gentios por
que o costume seu he em nouellarẽ os seus mortos, eassi os me
635 tem em hũ buraco que peraisso fazem ẽ qualquer mato –
cõ esta eoutras occasioẽs atomauamos pera lhefalarmos na
morte Eemsua imfabilidade por que muitos destestinhaõ perasẏ
que eraõ jmmortais, Eficauaõ pasmados quãdolhe diziamosque
auiaõ demorrer, naõ podendo crer o que naõ queriaõ padecer
640 Eoprincipal destes dizia que só amorte eoinferno oem
tristecia denossas cousas; finalmente dissemos alguãs mẏ
Ssas pelo defunto cõ seusrespõsorios Sobrea Sepultura-
Estando nos hũ dia anoite ẽnossa casa ouuimos hũ que tossïa
cõ grãde Efficäcia Eescarraua procurando devomitar fazendo
645 grande estrondo, mandamos saber que eraaquillo, uieraõ nos
dizer que estaua hũmenino doente E hũ feiticeiro que o curaua
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fl. 6r
que éramos senhores das coisas, bem nos enfadaram com tanta
590 cobiça junto com serem selvagens, sem medo nem respeito, mas nós
estávamos contudo apostados a romper por todas as dificuldades
com o favor de Deus.
Depois de passarmos pelo Jaguaribe, como fica referido tiveram
notícia as relíquias que escaparam dos brancos e andavam
595 embrenhados de nossa passagem, e de como trazíamos pazes e
liberdade, pelo que foram saindo ao mar, um principal dos
quais se chama Algodão, o qual não podendo crer (como dizem,
tanto bem como os seus lhe certificavam, quis ir ao Ibiapaba a
nos ver com o olho e ouvir as boas novas de nossa boca; partiu e foi
600 por casa do Cobra Azul a quem tínhamos mandado recado, e levou
consigo um filho seu, e outros - 4 - ou -5- não posso explicar os
efeitos de alegria que este Algodão mostrava de nos ver, prome-
tendo que acabado de sair seus parentes, fariam o que nós quiséssemos
e iriam para onde nós mandássemos, e juntamente se assentaram
605 as pazes entre eles e estes da Ibiapaba. E o filho do Cobra Azul
fez também, em nome de seu pai pazes e trataram de se ajuntar
a morar junto do mar perto do rio Pará, que está entre a Ibi-
apaba e o Maranhão.
Agora direi alguns costumes destes da Ibiapaba e de algumas
610 coisas que aconteceram em - 4- ou-5- meses que com eles estivemos
primeiramente tivemos uma grande perda, e foi morrer-nos aqui o
principal de nossa gente chamado Belchior da Rosa capitão
dos índios de Pernambuco por provisões dos governadores pelos serviços
que tinha feitos com sua gente; este era um índio mui bem entendido
615 e de muita autoridade entre os seus, e no falar e entender as coi-
sas era mais que índio do Brasil pelo que todos lhe tinham muito respeito
em suas pregações punha os padres nas estrelas e falava
espiritualmente declarando ao que íamos e o que pretendíamos
e na verdade que me admirou a primeira vez que o ouvi pregar com
620 o não entender ainda perfeitamente porque a matéria de sua prega-
ção foi de como nós íamos por amor deles e de suas almas, e para
lhe darmos notícia do caminho do céu, e que bem o mostrávamos em
nosso modo de caminhar com nossos livros de rezar, que não íamos
buscar escravos nem fazer guerra o que bem mostravam nossos
625 bordões, e que se outra coisa pretendéramos que leváramos espin-
gardas e soldados e outras coisas desta qualidade que não me cau-
savam menos devoção que admiração; morreu ético mui bem apa-
relhado, confessando-se e comungando duas vezes e fazendo seus
apontamentos.
630 Para o enterramento se ajuntaram todos assim os nossos como
os outros todos com suas candeias acesas, o trouxemos em procissão
à igrejinha em que dizíamos missa, em um esquife que lhe
tínhamos mandado fazer, coisa que pasmou a estes gentios por
que o costume seu é enovelarem os seus mortos, e assim os me-
635 tem em um buraco que para isso fazem em qualquer mato.
Com esta e outras ocasiões a tomávamos para lhe falarmos na
morte e em sua infabilidade porque muitos destes tinham para si
que eram imortais e ficavam pasmados quando lhe dizíamos que
haviam de morrer, não podendo crer o que não queriam padecer
640 e o principal destes dizia que só a morte e o inferno o en-
tristecia de nossas coisas; finalmente, dissemos algumas mis-
sas pelo defunto com seus responsórios sobre a sepultura.
Estando nós um dia à noite em nossa casa, ouvimos um que tossia
com grande eficácia e escarrava procurando de vomitar fazendo
645 grande estrondo, mandamos saber que era aquilo, vieram nos
dizer que estava um menino doente e um feiticeiro que o curava.
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E acura era chupallo como costumaõ, dizẽdo que lhetiraõ o mal fl. 6v
dedentro, Epera fingirẽ milhor o em gano, metẽ naboca hũ prego
ou cousasemelhãte, Ecõ aquelle seu escarrar fingẽ que o chuparaõ
650 eo tiraraõ ao doente E que aquillo era o que lhefazia omal, fomos
nos uerentaõ o menino, eachando o muito mal aparelhamolo; pergũ
tandosequeria ser filho de deos respondeo que sẏ com grãde alegria
Eque queria jr perao ceo, Elogo mostrãdo hũs Effeitos depredesti
nado recebeo osanto baptismo ao dia seguinte Epor ser emdia desaõ
655 barnabe lhepusemos oseunome E cõ ellesefoi peraa gloria; fo
mos por elle ajuntandose todos oscristaõs nossos companheiros
E o trouxemos aenterrar ao pe de huã grande cruz quedi
ante denossa jgreginha tinhamos leuantada.
Outra criãça depoucas somanas ainda estãdo cõ os olhos em
660 aluo pera espirar baptizamos, Efoi osenhor Seruido darlhe saude to
mãdo logo dahi apouco opeito damãy que dantesnaõ tomaua
Outro dia anoite derepẽte ouuimos bater as palmas em
huã casa, elogo noutra, elogo emtodas geralmẽte cõ grãde
estrondo, perguntamosque eraaquillo responderaõ que hũfeïticei
665 ro ouuira a voz de huã cobra que uinhauoando pollos ares Eque
daua sinal cõ aquelle bater das palmas que estiuessem todos
alerta peraque naõ caisse sobrealgũ eomordesse.
Ategoraestes pobresnaõ reconheciaõ outrodeos mais que os chuẏ
ueiros, trouoẽs, relampagos, mas aesteseu deos nenhũ amorti
670 nhaõ tendo grãdetemor, eo culto ereuerencia toda cõsistia
em se por de cöcoras pedindo aostrouões que os naõ mattassem
Eaos relampagos que os naõ queimassem; tiramos lheesta
gentilidade da cabeça fäcilmente comlhe declararmos a seu
modo que cousa eraõ trouoẽs Erelampagos, ficauaõ muito cõtentes
675 dizendo que agoraacabauaõ de crer averdade, Eque lhenaõ cha
mariaõ mais deos, etudosaõ queixumes deseus antepassados
quenem souberaõ nada nem lhesemsinaraõ nada-.
Todaesta gentillidade como hedefraco entendimento naõ
tem nenhuã resistẽcia as cousasque lhe dizẽ aindaque os
680 naõ alcãcem cõ o entendimento, nem sabem duuidar nemper
guntar, eassẏ pouca sciencia basta peraos cultiuar Efazer
delles o que quiserem; solheda trabalho deixarẽ asmuitas mo
lheres que tem algũs tendo muitos filhos dellas, mastẽ nisto hũ geral
costume Efacilïdade Ehe queo que sedescõtenta do outro, apar
685 tasse delle como se nũca fosse seumarido, ousuamolher sempor
jsso serem reputados por Roins-.
Entreestes hamuitos demuito bõ natural Edebẽfazer, Eposto
que geralmẽte todos nos faziaõ oque podiaõ de bem; comtudo muitos delles
assẏ cõtinüãuaõem nos darẽ o que tinhã [mais ou menos 4 palavras]
690 Eentreoutros seassinaloumuito, o principal desta aldea o dia
bogrande, dandonos huã rossasinha demilho, eoutrademan
dioca alem doutras meudezas decadadia; Apos elleseassẏ
nalou huãjndia anciam molher dehũ principal, aqual
emnos uindo comessou cõ seus presẽtes dizendonos, eu sou
695 daquẏ senhõra da terra Eestou emminha casa por isso uosdou
decomer que uindes delonge E cõtinuou sempre como que fossemos
Seus filhos.
Saõ todos estes incriuelmente inclinados acãtar edã
çar, Epor que os pitigoares saõ nisto affamados E cõ nosco hiaõ algũs
700 nheengaraẏbas, ou mestresde capella desatinauanos que
cantassẽ peraos emsinarẽ, efazendo reuesar horahũs hora
outros, cãtauaõ dias enoites-de-24-em-24-horas sem
enterromper atenaõ poderẽ falar deroucos, tendoisto por valẽtïa
Edelirios, Eanosnos pediraõ que lhe emsinassemos seusfilhos
705 o papel (como elles dizem) querendo dizer que lhosemsinassemos
aler ecantar o nosso canto, o que nos cõ facilidade fizemos-
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E a cura era chupá-lo como costumam, dizendo que lhe tiram o mal fl. 6v
de dentro, e para fingirem melhor o engano, metem na boca um prego
ou coisa semelhante, e com aquele seu escarrar fingem que o chuparam
650 e o tiraram ao doente e que aquilo era o que lhe fazia o mal, fomos
nós ver então o menino, e achando-o muito mal aparelhamo-lo, pergun-
tando se queria ser filho de Deus respondeu que sim com grande alegria
e que queria ir para o céu, e logo mostrando uns efeitos de predesti-
nado, recebeu o santo batismo ao dia seguinte, e por ser em dia de São
655 Barnabé lhe pusemos o seu nome e com ele se foi para a glória; fo-
mos por ele ajuntando-se todos os cristãos nossos companheiros
e o trouxemos a enterrar ao pé de uma grande cruz que di-
ante de nossa igrejinha tínhamos levantada.
Outra criança de poucas semanas ainda estando com os olhos em
660 alvo para espirar batizamos e foi o Senhor servido dar-lhe saúde to-
mando logo daí a pouco o peito da mãe que dantes não tomava.
Outro dia à noite de repente ouvimos bater as palmas em
uma casa, e logo noutra, e logo em todas geralmente com grande
estrondo, perguntamos que era aquilo responderam que um feiticei-
665 ro ouvira a voz de uma cobra que vinha voando pelos ares e que
dava sinal com aquele bater das palmas que estivessem todos
alerta para que não caísse sobre algum e o mordesse.
Até agora estes pobres não reconheciam outro Deus mais que os chu-
veiros, trovões, relâmpagos, mas a este seu deus nenhum amor ti-
670 nham tendo grande temor, e o culto e reverência toda consistia
em se pôr de cócoras pedindo aos trovões que os não matassem
e aos relâmpagos que os não queimassem; tiramos-lhe esta
gentilidade da cabeça facilmente com lhe declararmos a seu
modo que coisa eram trovões e relâmpagos, ficaram muito contentes
675 dizendo que agora acabavam de crer a verdade, e que lhe não cha-
mariam mais deus, e tudo são queixumes de seus antepassados
que nem souberam nada nem lhes ensinaram nada.
Toda esta gentilidade como é de fraco entendimento não
tem nenhuma resistência às coisas que lhe dizem ainda que os
680 não alcancem com o entendimento, nem sabem duvidar nem per-
guntar, e assim pouca ciência basta para os cultivar e fazer
deles o que quiserem; só lhe dá trabalho deixarem as muitas mu-
lheres que têm alguns, tendo muitos filhos delas, mas têm nisto um geral
costume e facilidade e é que o que se descontenta do outro, apar-
685 tasse dele como se nunca fosse seu marido, ou sua mulher sem por
isso serem reputados por ruins.
Entre estes há muitos de muito bem natural e de bem fazer, e posto
que geralmente todos nos faziam o que podiam de bem; contudo muitos deles
assim continuavam em nos darem o que tinham
690 e entre outros se assinalou muito, o principal desta aldeia o Dia-
bo Grande, dando-nos uma roçazinha de milho, e outra de man-
dioca além doutras miudezas de cada dia; Após ele se assi-
nalou uma índia anciã mulher de um principal, a qual
em nós vindo, começou com seus presentes dizendo-nos, eu sou
695 daqui senhora da terra e estou em minha casa por isso vos dou
de comer que vindes de longe e continuou sempre como que fôssemos
seus filhos.
São todos estes incrivelmente inclinados a cantar e dan-
çar, e porque os potiguares são nisto afamados e conosco iam alguns
700 nheengaraybas, ou mestres de capela desatinava-nos que
cantassem para os ensinarem, e fazendo revesar ora uns ora
outros, cantavam dias e noites - de-24-em-24-horas sem
interromper até não poderem falar de roucos, tendo isto por valentia
e delírios, e a nós, nos pediram que lhe ensinássemos seus filhos
705 o papel (como eles dizem) querendo dizer que lhos ensinássemos
a ler e cantar o nosso canto, o que nós com facilidade fizemos
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fl.7r
peraos domesticar, mas ellesmostraõ muẏ pouco talento peraonosso
canto, os domar facilmente, cõ isto domesticamos muito os meninos que
710 dantes fogiaõ denos, ealgũs que estauaõ emsuas roças meuieraõ
dizer que queriaõ aprender o que eu emsinaua aos outros, emuitos
diziaõ resolutamente queseauiaõ dejr cõ nosco fogindo deseus pais
ou apos nos, entre os quais teue graça hũ que representaua -12-
Annos emdizer que seos padresse fossẽ naõ tinha outracousaque
715 fazer senaõ abrir huã coua, emeterse nella Eisto cõ grãde sentimento
Eoutro estando eu occupado naõ sei emque, sechegou amỹ Ede
pois deestar hũ pedaço, medisse naõ sei que heisto que dantes fu
gia detẏ, ea gora naõ meposso apartar isto nos seruia peraos
emsinar e doutrinar, Eja sabiaõ muitos delles a doutrina E
720 alguãs cousas denossa santa fee, tãbem os faziamos ẽsinar
a dançar ao modo portugues, que peraellesera acousademais
gosto quepode ser-.
huã Jndia esteuemuito mal departo toda huã noïte eparte
do dia gritãdo, sem emtodo este tempõ aparecer nada da cri
725 ança, mandamos lhe hũ relicairo que oposesseao pescosso, Etiuesse
fé que logo pariria, assi ofez, eem espasso demea hora pario
com facilidade; ficou ojndio seumarido agardecido pedindo
que ja que lhefizeramos nacer seu filho, lho baptizassemos que queria
jr à cässa peraafesta, respõdemos que como estiuesse na jgreja polo
730 tempo em diãte lho baptizariamos-.
Pediraõ nos estes que dessemos huã vara denossamaõ a hũ
delles peraque fosse alcaide dos outros, eisto cõtanta jnstãcia
que nos venceo, assinalou o principal diabo grande pera
ella o jrmaõ seu, o diabo ligeiro; deulha opadre hũ domingo
735 acabada amissa estãdo todos juntos perao qual acto os tinha
cõuidados o principal em huã pregaçaõ que fizeraaquella
Madrugada E dandolhao padre lhedeclarou ofimperaque selhe da
ua .∫. pera ẽmendar osque se embebedassẽ, perafazer uir todos
á igreja, pera vigiar aaldea Ec. tomou elleisto muito ẽpõto
740 de honra, Eao dia seguinte demadrugada sahio pregando cõ gran
de feruor, dizendo entreoutras cousas muitas que entrassem
Sempre todos naigreja aos dias Santos, Esenaõ que tudo o que naquelles
dias prantessẽ, selheauia desecar; Eque as molheres tiuessem
cuidado dapagar ofogo indo fora peraque naõ sequeimassem
745 ascasas, Eque fossem todos filhos de deos Edenossa senhora enaõ cressem
as cousas deseus antepassados, mas so cressẽ as cousasque os
padreslhe emsinassem, que deos eraonosso criador, Eque logo
no ventre denossasmãis fazia hũs homẽs outros molhe
res afeiçoando os peraisso, que bem claro estaua que nossos
750 pais o naõ podiaõ fazer-.
Enoutra pregaçaõ depois dedizer cousassemelhãtes a
estas acabou cõ hũ colloquio dizendo, Euos sos deos tẽde cuidado de
minhaalma peraque naõ seperca por que tenho muita repugnãcia
em hir ao jnferno aser queimado cõ os demonios; outrauez
755 uendome rezar mepergũtou sefalaua deos cõ nosco, eulherespõdẏ
que naquellesliuros tinhamos aspalauras de deos asquais li
amos Eque nos podiamos falar cõ elle cadauez que quisessemos
pedindo lhe alguã cousa que bem nos ouuja, logo elle come
çou cõ grandes mostras dedeuoçaõ afalar com deos pedindo
760 lhe saude, Eque o liurasse detodos osmales. cõ estas cousas
Efruito quese fazia nestas desemparadas almas aliuiaua
homẽ o trabalho decaminhos E cançassos, Ea carencia da
vista Epraticas denossospadres Ejrmaõs-.
Rematãdo nossas cousas naAldea do diabo grãde aonde
765 nos detiuemos passãte dequatro meses tẽtando pazes cõ os tapuẏas
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para os domesticar, mas eles mostram mui pouco talento para o nosso
canto, os do mar facilmente, com isto domesticamos muito os meninos que
710 dantes fugiam de nós, e alguns que estavam em suas roças me vieram
dizer que queriam aprender o que eu ensinava aos outros, e muitos
diziam resolutamente que se haviam de ir conosco fugindo de seus pais
ou após nós, entre os quais teve graça um que representava -12-
anos em dizer que se os padres se fossem não tinha outra coisa que
715 fazer senão abrir uma cova, e meter-se nela e isto com grande sentimento.
E outro estando eu ocupado não sei em que, se chegou a mim e de-
pois de estar um pedaço, me disse não sei que é isto que dantes fu-
gia de ti, e agora não me posso apartar. Isto nos servia para os
ensinar e doutrinar, e já sabiam muitos deles a doutrina e
720 algumas coisas de nossa santa fé; também os fazíamos ensinar
a dançar ao modo português, que para eles era a coisa de mais
gosto que pode ser.
Uma índia esteve muito mal de parto toda uma noite e parte
do dia gritando, sem em todo este tempo aparecer nada da cri-
725 anca, mandamos-lhe um relicário que o pusesse ao pescoço, e tivesse
fé que logo pariria, assim o fez, e em espaço de meia hora pariu
com facilidade; ficou o índio seu marido agradecido pedindo
que já que lhe fizéramos nascer seu filho lho batizássemos que queria
ir à caça para a festa, respondemos que como estivesse na igreja pelo
730 tempo em diante lho batizaríamos.
Pediram-nos estes que déssemos uma vara de nossa mão a um
deles para que fosse alcaide dos outros, e isto com tanta instância
que nos venceu, assinalou o principal Diabo Grande para
ela o irmão seu, o Diabo Ligeiro; deu-lha o padre um domingo
735 acabada a missa estando todos juntos para o qual ato os tinha
convidados o principal em uma pregação que fizera àquela
madrugada e dando-lha o padre lhe declarou o fim para que se lhe da-
va a saber, para emendar os que se embebedassem, para fazer vir todos
à igreja, para vigiar a aldeia etc. tomou ele isto muito em ponto
740 de honra, e ao dia seguinte de madrugada saiu pregando com gran-
de fervor, dizendo entre outras coisas muitas que entrassem
sempre todos na igreja aos dias Santos, e se não que tudo o que naqueles
dias plantassem, se lhe havia de secar; e que as mulheres tivessem
cuidado da pagar o fogo, indo fora para que não se queimassem
745 as casas, e que fossem todos filhos de Deus e de Nossa Senhora e não cressem
as coisas de seus antepassados, mas só cressem as coisas que os
padres lhe ensinassem, que Deus era o nosso Criador, e que logo
no ventre de nossas mães fazia uns homens outros mulhe-
res afeiçoando-os para isso, que bem claro estava que nossos
750 pais o não podiam fazer.
E noutra pregação depois de dizer coisas semelhantes a
estas acabou com um colóquio dizendo, e vós sois Deus, tende cuidado de
minha alma para que não se perca porque tenho muita repugnância
em ir ao inferno a ser queimado com os demônios; outra vez
755 vendo-me rezar, me perguntou se falava Deus conosco, eu lhe respondi
que naqueles livros tínhamos as palavras de Deus as quais lí-
amos e que nós podíamos falar com Ele cada vez que quiséssemos
pedindo-lhe alguma coisa que bem nos ouvia, logo ele come-
çou com grandes mostras de devoção a falar com Deus pedindo-
760 lhe saúde, e que o livrasse de todos os males. Com estas coisas
e fruto que se fazia nestas desamparadas almas aliviava
homem o trabalho de caminhos e cançasos, e a carência da
vista e práticas de nossos padres e irmãos.
Rematando nossas coisas na aldeia do Diabo Grande, aonde
765 nos detivemos passante de quatro meses, tentando pazes com os tapuias
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fl. 7v
Sem terẽ Effeito, no fim desettembro de /607- apareceo hũcometa
peraabanda do maranhão a loeste, o qual estendia hũa muẏ com
prida cauda peraabanda deleste Edurou muitos dias/ osjndios
770 uendo tã grãde nouidade peraelles uinhaõ muitas vezes perguntar
que eraaquillo, sesequeimaua o ceo, Ese cajria, eoutras pergũtas
comformes á suacapacidade, eulhes declarei o que era ejũtamente
o que Significaua, E como ordinaria mẽte quãdo aquillo aparecia
auia mortes degrandes emorobixabas, cõ o que o principal atemo
775 rizado mepergũtou seescaparia, deos te dara vida lherespõdẏ
mas aparelhate tu pera seres filho dedeos, por que nos naõ sabemos damor
te nemda vida, Eposto que este cometa Significasse outras cou
sas maiores, cõtudo eu muitas vezes ẏmagineẏ compena Eaffli
çaõ sesignificaria algũ trabalho nanossa missaõ domaranhaõ
780 Emfim aos -17- deoutubro seguinte nospartimos daquella aldea
cõtinuando nossa peregrinaçaõ; partio cõ nosco o mesmo princi
pal leuãdo cõ sigo dous outres filhos com outragẽte cõ intento dero
çarem no caminho junto dasterras dos tapuẏas, os quais queri
amos acabar deapazigoar, Eeffeituar aspazes tãbẽ comessa
785 das pera cõtinuarmos nosso caminho ateo rio do parä affamado
entreelles pera que dali palpassemos os vaos daterra Egentes
Emãdassemos recado anossos Superiores como prometemos nacarta
passada ao padre prouincial.
Jndo nos cinquo legoas daAldea nos alcãssou hũmancebo
790 quetrazia nouas de como eraõ uindos hũs poucos dejndios reli
quias de -70- Aldeas que cõ medo dos brãcos Eporseuerem liures de
lles fugiraõ eforaõ acabar no maranhaõ amaõs detapuẏas Efrã
cezes, eoutra gente do mesmo maranhaõ que cõ os frãcezeslhe fi
zeraõ guerra, ajudãdo os tãbẽ apeste quelhesdeu, Eesperamos
795 que chegassẽ anos algũs peranos imformarmos doque la passaua-.
Veio o principal chamado mandiaré anosuer enos deupor nouas
auer lamuitos frãcezes assï no rio do maranhaõ, como no rio Eilhas
dasAlmazonas, E que tinhaõ comercio cõ ellas deprata, atro co
daqual lhedauaõ vestidos eferramẽtas, Edemais disso as em si
800 nauaõ a vsar dearcabuzes; Elleporem naõ uio disto mais que
os frãcezes cõ os quais teue guerra, eo demais o uejo aseus parẽ
tes, acrecentou este principal que queria tornar cõ nosco a
buscar algũs seus parẽtesque la lheficauaõ espalhados, Eque Ja
Sabia o caminho eterras, masque peraisto eranecessario esperar
805 mos que elles cõ osseus descãsassem, efizessẽ alguãs milharadas
aqual yda sua nos erabem importante por naõ termos gente bas
tante perajr cõ nosco -. mas o esperallo era desũma pena peranos
uir entrando o inuerno, pegaraõsetodos os nossos ao seu pa
recer dizendo que esperassemos eroçassemos todos, Epor que no xrisptaõ
810 elles naõ reconhecẽ nenhuã Superioridade, tãto que os affastaes
daqueellesquerẽ, ficamos em talas enecessitados acõdecender
cõelles por naõ auer outro remedio, E cõtudo tenhamos por pro
uauel aueremnos defaltar cõ apalaura pelo que nos pareceo
bẽ mãdar apelidar ospetigoares que fossẽ cõ nosco, Epor ventura
815 que tiuera Effeito sedepois naõ So cedera amorte dopadre
meu companheiro, por seterem ja saido daaldea do diabo grã
de naõ quiseraõ tornar atras como eu queria Epersuadia ao
padre Emfim hũ pouco mais adiãte donde estauamos -12 legoas
daaldea, roçaraõ todos efizeraõ casas aonde o nosso mãtimento
820 erapalmitos Ehũs cocos cujos miolos saõ como bellotas nafei
çaõ masmuito secos edifficultosos deemgolir senaõ ẽquãto saõ
tenros, Equãto afarinha tinhamola por reliquias, Esem ou
tro cõduto mais que dequãdo emquãdo algũs peixinhos Epor
grande festa huãs fauas secas cosidas sẽ mais azeite, nem ui
825 nagrenem Sal, muitas vezes desejauamos huã porçaõ que os
nossosnegros comem nos collegios, masnaõ deixauamos de fazer
bõ rosto aestasfaltas lembrandonos que outros padres E jrmaõs
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fl. 7v
sem terem efeito, no fim de setembro de 607- apareceu um cometa
para a banda do Maranhão a Loeste, o qual estendia uma mui com-
prida cauda para a banda de Leste e durou muitos dias, os índios
770 vendo tão grande novidade para eles vinham muitas vezes perguntar
que era aquilo, se se queimava o céu, e se cairia, e outras perguntas
conformes à sua capacidade, eu lhes declarei o que era e juntamente
o que significava, e como ordinariamente quando aquilo aparecia
havia mortes de grandes e morobixabas, com o que o principal atemo-
775 rizado me perguntou se escaparia; Deus te dará vida lhe respondi
mas aparelha-te tu para seres filho de Deus, porque nós não sabemos da mor-
te nem da vida, e posto que este cometa significasse outras coi-
sas maiores, contudo eu muitas vezes imaginei com pena e afli-
ção se significaria algum trabalho na nossa missão do Maranhão
780 enfim aos -17- de outubro seguinte nós partimos daquela aldeia
continuando nossa peregrinação; partiu conosco o mesmo princi-
pal levando cosigo dois ou três filhos com outra gente com intento de ro-
çarem no caminho junto das terras dos tapuias, os quais querí-
amos acabar de apaziguar, e efeituar as pazes também começa-
785 das para continuarmos nosso caminho até o Rio do Pará afamado
entre eles para que dali palpássemos os vãos da terra e gentes
e mandássemos recado a nossos superiores como prometemos na carta
passada ao padre provincial.
Indo nós cinco léguas da aldeia nos alcançou um mancebo
790 que trazia novas de como eram vindos uns poucos de índios relí-
quias de -70 - aldeias que com medo dos brancos e por se verem livres de-
les fugiram e foram acabar no Maranhão a mãos de tapuias e fran-
ceses, e outra gente do mesmo Maranhaõ que com os franceses lhe fi-
zeram guerra, ajudando-os também a peste que lhes deu, e esperamos
795 que chegassem a nós alguns para nos informarmos do que lá passava.
Veio o principal chamado Mandiaré a nos ver e nos deu por novas
haver lá muitos franceses assim no Rio do Maranhão, como no Rio e Ilhas
das Almazonas, e que tinham comércio com elas de prata, a troco
da qual lhe davam vestidos e ferramentas, e demais disso as ensi-
800 navam a usar de arcabuzes; ele porém não viu disto mais que
os franceses com os quais teve guerra, e o demais o veio a seus paren-
tes, acrescentou este principal que queria tornar conosco a
buscar alguns seus parentes que lá lhe ficavam espalhados, e que já
sabia o caminho e terras, mas que para isto era necessário esperar-
805 mos que eles com os seus descansassem, e fizessem algumas milharadas
a qual ida sua nos era bem importante por não termos gente bas-
tante para ir conosco - mas o esperá-lo era de suma pena para nos
vir entrando o inverno, pegaram-se todos os nossos ao seu pa-
recer dizendo que esperássemos e roçássemos todos, e porque no cristão
810 eles não reconhecem nenhuma superioridade, tanto que os afastais
do que eles querem, ficamos em talas e necessitados a condescender
com eles por não haver outro remédio, e contudo tenhamos por pro-
vável haverem-nos de faltar com a palavra, pelo que nos pareceu
bem mandar apelidar os potiguares que fossem conosco; e por ventura
815 que tivera efeito se depois não sucedera a morte do padre
meu companheiro, por se terem já saído da aldeia do Diabo Gran-
de não quiseram tornar atrás como eu queria e persuadia ao
padre enfim um pouco mais adiante donde estávamos -12 léguas
da aldeia, roçaram todos e fizeram casas aonde o nosso mantimento
820 era palmitos e uns cocos cujos miolos são como bolotas na fei-
ção mas muito secos e dificultosos de engolir senão enquanto são
tenros, e quanto à farinha tínhamo-la por relíquias, e sem ou-
tro conduto mais que de quando em quando alguns peixinhos e por
grande festa umas favas secas cosidas sem mais azeite, nem vi-
825 nagre nem sal, muitas vezes desejávamos uma porção que os
nossos negros comem nos colégios, mas não deixávamos de fazer
bom rosto a estas faltas lembrando-nos que outros padres e irmãos
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nossos noutraspartes do mũdo os passariaõ tãbem alegremente
830 por amor dedeos-.
Daqui seriaõ como-15- ou -20- legoas á terra dos ta
puẏas chamados cararijüs pellos quais queriamos passar
Elhetinhamos japor duas vezesmãdado recados Epresentes
dando elles boas mostras quequeriaõ pazes, mas era tudofin
835 gido, procurauamosnos que nos uiessẽ uer pera crerẽ sermosnos,
Enos uermos cõ o olho o que tinhamos nelles, Eperaestefim lhemã
damos aterceira uez recado cõ outros presentes que uiessem fa
lar cõ nosco algũs delles, Eelles porem vsando desua acostumada
brutalidade, nosmataraõ os messageiros, queimandoos viuos
840 como costumaõ, reseruãdo hũ soo que depois lheseruisse deguia pera
nos uirem matar anos, eno mesmo tempõ mãdaraõ recado aoutros
tapuẏas cõ que tãbem tratauamos pazes, dizendolhe que naõ de
ssem por nos, nempor nossas pazes, que tudo eraõ traças dos dojbia
paba peraos colherẽlá ematarẽ-.
845 Emfim a tardãça dos nossos extraordinaria nos fazia
euidente serẽ mortos, o que comfirmou depois hũ escrauo dos ou
tros tapuẏas aquẽ elles tinhaõ mandado o recado que delaueio E
esta certeza desua morte nos fazia bẽ euidẽte que nosqueriaõ uir
matar, Ebem procurei euque nos puzessemos logo em cobro que bem
850 facil era, mas esteera o termo que auia deter a Sãta uida do padre
francisco pinto٪ finalmente dahi amuitos dias nosquisemos por
em cobro, euendo que totalmente senos fechaua aporta do mara
nhaõ (por que em -5- mezes que tratamos fazer pazes cõ os tapuẏas
naõ podemos alcãçar delles nẽ ainda uerẽ nos, sem duuida
855 senos partiramos eforamos asuas terras, todos foramosquei
mados eacabados sem denos sesaber mais) traçamos denos
deçer aomar eroçar, Eentretanto escreuer anossos Superiores Eao
senhõr governador decomo as cousas estauaõ jmpossibillitadas pera Sejr
por terra ao maranhaõ, por naõ auer palmo deterra em cem legoas
860 decaminho que naõ esteja pouoada detapuẏas, quequẽ dos pri
meiros Esegundos escapasse, naõ escaparia dosterceiros equartos
E cõforme á ordẽ que nos uiesse fariamos, Edespediamos, hũjn
dio diante denos á Sesta feira dainfra octaua da Epifania
fazendo cõta denos decermos daserra, passado oseguinte do
865 mingo, Sahia pellaporta ojndio despedindose pera o mar
quãdo os tapuẏas desubito apareceraõ anossa porta
cõ maõ armada começaõ asfrechadas dehuã eoutra parte
com grãde grita Eem breue morreo hũ tapuẏa, eoutrosegũdo
dizem foẏ cõ astripas fora enchendo o caminho de sangue
870 E prouauel mẽte logo morreria, Epor que os saluagẽs sairaõ anossa
porta que estaua no couçe da aldea aborda domato, eo padre
estaua dentro emcasa rezando ashorasmenores, Sahio cõ tra
balho, tendo os nossos o jmpeto dos tapuẏas, que o naõ matassem
logo, eoforaõ emparando ateentrarẽ no mato, os tapuẏas
875 carregaraõ ali seguindo os e como o mato ali eraestreito, lo
go Sairaõ ás roças limpas: bradauaõ os nossos aostapuẏas
que estiuessẽ quedos que aquelle erao padre abaré que os queria
apazigoar Eensinar aboa vida ec, responderaõ ellesque
naõ tinhaõ deuer cõ jsso que o auiaõ dematar, finalmente se
880 espalharaõ dous outres nossos que ali hiaõ ficãdo só junto
do padre hũ esforçado jndio Ebem feitor dos padres chamado An
tonio carajbpocü, o qual o defendeo em quanto pode atemorrer
por elle ecõ elle, ainda ficou cõ vida mas sem sentidos nẽ falla
E durou poucas horas, chegaraõ entaõ ao padre, Etendolhe hũs maõ
885 nos braços estirandolhos peraambas aspartes, ficando elle
emfigura de cruz, outros lhederaõ tantas pancadas com
hũ pao na cabessa que lha fizeraõ pedaço, quebrandolhe os
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fl. 8r
nossos noutras partes do mundo os passariam também alegremente
830 por amor de Deus.
Daqui seriam como -15- ou -20- léguas à terra dos ta-
puias chamados cararijus pelos quais queríamos passar
e lhe tínhamos já por duas vezes mandado recados e presentes
dando eles boas mostras que queriam pazes, mas era tudo fin-
835 gido, procurávamos-nos que nos viessem ver para crerem sermos nós,
e nós vermos com o olho o que tínhamos neles, e para este fim lhe man-
damos a terceira vez recado com outros presentes que viessem fa-
lar conosco alguns deles, e eles porém usando de sua acostumada
brutalidade, nos mataram os mensageiros, queimando-os vivos
840 como costumam, reservando um só que depois lhe servisse de guia para
nos virem matar a nós, e no mesmo tempo mandaram recado a outros
tapuias com que também tratávamos pazes, dizendo-lhe que não des-
sem por nós, nem por nossas pazes, que tudo eram traças dos da Ibia-
paba para os colherem lá e matarem.
845 Enfim a tardança dos nossos extraordinária nos fazia
evidente serem mortos, o que confirmou depois um escravo dos ou-
tros tapuias a quem eles tinham mandado o recado que de lá veio e
esta certeza de sua morte nos fazia bem evidente que nos queriam vir
matar, e bem procurei eu que nos puséssemos logo em cobro que bem
850 fácil era, mas este era o termo que havia de ter a santa vida do padre
Francisco Pinto; finalmente daí há muitos dias nós quisemos pôr
em cobro; e vendo que totalmente se nos fechava a porta do Mara-
nhão (por que em -5- meses que tratamos fazer pazes com os tapuias
não podemos alcançar deles nem ainda verem-nos, sem dúvida
855 se nós partíramos e fôramos a suas terras, todos fôramos quei-
mados e acabados sem de nós se saber mais) traçamos de nos
descer ao mar e roçar, e entretanto escrever a nossos superiores e ao
senhor governador de como as coisas estavam impossibilitadas para se ir
por terra ao Maranhão, por não haver palmo de terra em cem léguas
860 de caminho que não esteja povoada de tapuias, que quem dos pri-
meiros e segundos escapasse, não escaparia dos terceiros e quartos
e conforme à ordem que nos viesse faríamos, e despedíamos um ín-
dio diante de nós à sexta-feira da infra octava da Epifania,
fazendo conta de nós descermos da serra, passado o seguinte do-
865 mingo, saía pela porta o índio despedindo-se para o mar.
Quando os tapuias de súbito apareceram a nossa porta
com mão armada começam as flechadas de uma e outra parte
com grande grita e em breve morreu um tapuia, e outro segundo
dizem foi com as tripas fora enchendo o caminho de sangue
870 e provavelmente logo morreria, e porque os selvagens sairam a nossa
porta, que estava no coice da aldeia à borda do mato, e o padre
estava dentro em casa rezando as horas menores; saiu com tra-
balho, tendo os nossos o ímpeto dos tapuias que o não matassem
logo, e o foram amparando até entrarem no mato, os tapuias
875 carregaram ali seguindo-os e como o mato ali era estreito, lo-
go sairam às roças limpas: bradavam os nossos aos tapuias
que estivessem quedos que aquele era o padre abaré que os queria
apaziguar e ensinar a boa vida etc., responderam eles que
não tinham de ver com isso que o haviam de matar, finalmente se
880 espalharam dois ou três nossos que ali iam ficando só junto
do padre um esforçado índio e bem feitor dos padres chamado An-
tonio Carajbpocu, o qual o defendeu enquanto pode até morrer
por ele e com ele, ainda ficou com vida mas sem sentidos nem fala
e durou poucas horas, chegaram então ao padre, e tendo-lhe uns mão
885 nos braços estirando-lhos para ambas as partes, ficando ele
em figura de cruz, outros lhe deram tantas pancadas com
um pau na cabeça que lha fizeram pedaço, quebrando-lhe os
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queixos eamassãdolhe os cachagẽs E olhos; o qual pao
890 cheio desangue trouxecomo relliquia, despiraõlhe arou
peta Somente eo cobrirão cõ terra eo pao emcima, E por que
Sempre os roiñs emenos necessarios no mundo escapaõ, a certeẏ eu
no tempo emquese comessou a briga deestar na casa dos moços
fora demeucostume naquelletempo, Eposto que eradefronte
895 delles, cõtudo era hũ pouco mais desuiado, Edali sahi logo
peraoutraparte, Sahio comigo hũ nosso moçozinho quemefoẏ
asaluaçaõ o qualmetomou a dianteira correndo Ebradãdo
me, apressate, apressate paẏ, Seguiao eu naõ muito apressado
vendo elleque naõ corria eutãto comoelle queria meteo sse lo
900 go em hũ matosinho bem estreito, masfechado pello que eu naõ
pudedar por elle muitos passos, Eassi nos ficamos logo á borda
domato, ouuindo gritos junto denos portodas aspartes
Eesperando que logo chegassẽ, mas oquemais penameda
ua era ouuir hũ cão que andaua latindo nomesmo mato pers
905 uadindo me ser dos tapuẏas que cõ ellequeriaõ descobrir os
escondidos, oqual passoupor diãte denos, massemdar mostras
denos sentir; aquy o moço meu companheiro medisse amedren
tado paẏ eu aquẏ ei demorrer contigo, animeio eu dizẽdo
filho naõ morreremos que deos nos goardarä, Eassi goardou o
910 pera que elle osabe, espero eu que seia peralhefazer muitos seruiços
na companhia; Emfim foraõ serecolhẽdo os tapuẏas
o queseconhecia polla grita que leuauaõ, Eforaõ entaõ esbu
lhar tudo assi o que nostinhamos ẽ casa, como aferramenta
que tinhamos, emprestada aosjndios, naõ nos ficando
915 mais que alguãs cousinhas depouca importãcia que tinhamos
Mandadasja diante peraondenos queriamosjr.
Leuaraõ tudo o da ẏgreja, Enossaroupasinha que ti
nhamos goardada peraorestante denossa missaõ Etudo o
mais, E juntamente leuaraõ dous ou tresmininos, E duas
920 Jndias moças, matando outras duas velhas; aquietan
dose tudo Ebradãdo hũ nosso jndio que saissem todos que jaeraõ
ydos os tapuẏas, entaõ me disse o meu cõpanheiro que jria
uer emque estado estauaõ as cousas perame uir dar recado, foẏ
Etornoumecõ recado enouas tristes dizendo, hemorto onosso
925 padre aquẏ comessei cõ elle aderramar lagrimas tristes E cho
rar meu desemparo, in medio nationis praua٪ Sahi final
mẽterecolhẽdome a lugar mais Seguro arreceando demetor
narẽ a buscar, como depois Soubeque estiueraõ perafazer, mas
deos os empedio, naquelle lugar nos ajũtamos quasitodos-
930 ali fiz trazer as reliquias que os barbaros deixaraõ por ahẏ
espalhadas por lhenaõ seruirẽ, como liuros epapeis Ec Eo cor
po dosanto padre cõ o vestido interior, tinhase achado huã roupe
taminha aqual lhevestimos, Elauandolheo rosto ecabessa
chea de sangue eterra Efeita ẽ pedaços o compusemos em huã
935 rede perao trazermos pera o pe daserra-
nisto medisseraõ que ficaua la ẽ hũ mato hũ jndio o qual
Viuia ainda, mas que estauamorrendo, E por que este eraainda
catecumeno, temendo que morrẽdo no caminho sẽ baptismo
seomãdasse buscar por que estaua longe, leuei comigo hũspoucos
940 dejndios Efuẏ la, ainda merespondeo aalgũas cousas que
lhe disse, aparelhãdo o peraobaptizar, baptizeio, E cureilhe
huã grãde ferida que tinha nacabessa apertandolha cõ hũ
lenço meu, eassẏ ofiztrazer comigo, dali mefui aolugar
ondemorrera o padre auer o ẏndio que cõ elle morreo quetambem
945 arquejauaaẏnda, masnaõ lhepude tirar palaura alguã
nem sinal de acordo pello que o deixeẏ estar pollo naõ aca
bar dematar cõ o mouimento pera o mãdar trazer depois
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queixos e amassando-lhe os cachagens e olhos; o qual pau
890 cheio de sangue trouxe como relíquia, despiram-lhe a rou-
peta somente e o cobriram com terra e o pau encima, e porque
sempre os ruins e menos necessários no mundo escapam, acertei eu
no tempo em que se começou a briga de estar na casa dos moços
fora de meu costume naquele tempo, e posto que era de fronte
895 deles, contudo era um pouco mais desviado, e dali saí logo
para outra parte, saiu comigo um nosso moçozinho que me foi
a salvação o qual me tomou a dianteira correndo e bradando-
me, apressa-te, apressa-te pai, seguia-o eu não muito apressado
vendo ele que não corria eu tanto como ele queria meteu-se lo-
900 go em um matozinho bem estreito, mas fechado pelo que eu não
pude dar por ele muitos passos, e assim nós ficamos logo à borda
do mato, ouvindo gritos junto de nós por todas as partes
e esperando que logo chegassem, mas o que mais pena me da-
va era ouvir um cão que andava latindo no mesmo mato pers-
905 uadindo-me ser dos tapuias que com ele queriam descobrir os
escondidos, o qual passou por diante de nós, mas sem dar mostras
de nos sentir; aqui o moço meu companheiro me disse amedron-
tado pai eu aqui ei de morrer contigo, animei-o eu, dizendo
filho não morreremos que Deus nos guardará, e assim guardou-o
910 para que Ele o sabe, espero eu que seja para lhe fazer muitos serviços
na Companhia; enfim, foram se recolhendo os tapuias
o que se conhecia pela grita que levavam, e foram então esbu-
lhar tudo assim o que nós tínhamos em casa, como a ferramenta
que tínhamos emprestada aos índios, não nos ficando
915 mais que algumas coisinhas de pouca importância que tínhamos
mandadas já diante para onde nós queríamos ir.
Levaram tudo o da igreja, e nossa roupazinha que tí-
nhamos guardada para o restante de nossa missão e tudo o
mais, e juntamente levaram dois ou três meninos, e duas
920 índias moças, matando outras duas velhas; aquietan-
do-se tudo e bradando um nosso índio que saissem todos que já eram
idos os tapuias, então me disse o meu companheiro que iria
ver em que estado estavam as coisas para me vir dar recado, foi
e tornou-me com recado e novas tristes dizendo, é morto o nosso
925 padre aqui comecei com ele a derramar lágrimas tristes e cho-
rar meu desamparo, in medio nationis praua /Sai final-
mente recolhendo-me a lugar mais seguro arreceando de me tor-
narem a buscar, como depois soube que estiveram para fazer, mas
Deus os impediu, naquele lugar nos ajuntamos quase todos-
930 ali fiz trazer as relíquias que os bárbaros deixaram por aí
espalhadas por lhe não servirem, como livros e papéis etc. e o cor-
po do santo padre com o vestido interior, tinha se achado uma roupe-
ta minha a qual lhe vestimos, e lavando-lhe o rosto e cabeça
cheia de sangue e terra e feita em pedaços o compusemos em uma
935 rede para o trazermos para o pé da serra.
Nisto me disseram que ficava lá em um mato um índio o qual
vivia ainda, mas que estava morrendo, e por que este era ainda
catecúmeno, temendo que morrendo no caminho sem batismo
se o mandasse buscar porque estava longe, levei comigo uns poucos
940 de índios e fui lá, ainda me respondeu a algumas coisas que
lhe disse, aparelhando-o para o batizar, batizei-o, e curei-lhe
uma grande ferida que tinha na cabeça apertando-lha com um
lenço meu, e assim o fiz trazer comigo, dali me fui ao lugar
onde morrera o padre a ver o índio que com ele morreu que também
945 arquejava ainda, mas não lhe pude tirar palavra alguma
nem sinal de acordo pelo que o deixei estar pelo não aca-
bar de matar com o movimento para o mandar trazer depois.
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Cõ Jsto mefuẏ emedecï daserra trazendo diãtedemỹ o corpo
950 do padre; eao pe daserra o enterreẏ, fazendolhe hũ moimento
depedras sobre asepultura pera sinal della, pondolhe
tambẽ hũa cruz à cabeceira, Mandeilogo buscar os
dous jndios, hũ dellesestaua ja morto, outro morreo ao dia
Seguinte ambos os fiz enterrar junto dopadre por cujasdefensaõ mor
955 reraõ, hũ dehuã parte outro daoutra ficando ellenomeio
Aquiseremataraõ e coroarão tãtos trabalhos pa
ssados do Santo padrecõ esta ditosa morte cujo intento
erafazer muitas jgrejas no sertaõ do maranhaõ, E comuerter
as Almazonas, cortoulhe deos ofio por que naõ era chegadaainda
960 a hora-. huã dasẏndias que os barbaros leuaraõ, no ca
minho lhesmeteo medo dizendolhe vos outros todos aueis de
morrer por que logo ham deuir os brãcos cõ instrumẽtos defogo a
uosmatar Evingar amorte do padre que queria fazer pazes cõ
vosco tomãdo uos por filhos Eemsinãdo uos avida santa, Euos leuais
965 asuarede eoseuvestido queuos ham deser causa damorte, res
pondeo lhe hũ quelheleuaua a roupeta; dizes verdade por quejaeu es
tou tremendo eemfraquecido (eacomoestes barbaros saõ jma
ginatiuos, sem duuidamorreria, por quesó a imaginaçaõ de cuẏ
darem que alguẽ lhelãça amorte basta peraosmatar) masja
970 que tu dizes isso (acrecẽtou elle) tornate Edize aseu jrmaõ que
aqui fica tudo queomande buscar, Efezpor todaaroupa sobre
hũs paos altos, Eseforaõ mãdãdo aẏndia, aqual de tudo
tomou arede dopadre, sabendo queficaua eu cõ o chaõ por cama
Epor que ellessenaõ tornassem aarrepẽder cõ toda apressa seueio
975 E referindome tudo, mecertificou decomo dantes disto
estiueraõ perameuirẽ tornar abuscar do caminho; A tarde
seajũtou comigo mais gẽte, mãdei aodia seguinte corpo deman
cebos abuscar tudo; mas pareceque os tapuẏas tornaraõ a
tras a leuar o que deixauaõ porque só seachou a casula, estola
980 Emanipulo Efrõtal, eos breuiarios, leuaraõ calix, alua
cordão eo missal, eafarinha das ostias ec. cousaque medeu
grandepena deixarẽ me sem missa Esem Sacramento naquelle
desterro, seia osenhor cõtudo louuado pera sempre -.
Depois que enterreẏ o padre ao pedaquella alta serra do
985 Jbiapaba em hũ lugar que particular mente se chama Abayára
aolongo de hũ rio dentro emhũ mato, esperei algũs dias
pello principal que estaua ausẽte pera medespedir delle
pellas caridades que delletinhamos recebido, ueio final
mente, cõuideio perauir comigo peraajgreja, eaoutrosprinci
990 pais que ali seajũtaraõ, Eelleporem sempre semostrou al
gũtãto duro, mas os outros mederaõ palaura deuirem
Eem Effeito seaparelharaõ querendo logo desfazer asro
ças, mas como euporentaõ naõ queria mais que uirme ao
Mar aesperar que passasse oinuerno que entraua, pretendendo
995 entretãto fazer algũas milharadas, E auisar jũtamente
ameus Superiores osdetiue dizendo que mequeria uir diante a
esperar queellesseaparelhassẽ no que ficarão bem -
foraõ seperasua aldea, Eo diabo grãde celebrou Efez ce
lebrar atodas asExequias dopadre a Seumodo, mãdãdo quesefizessẽ
1000 grandes Epublicos prãtos por toda aaldea, Eseajũtaraõ
asẏndias nacasa que foranossa, eao pe dacruz que noterreiro
tinhamos feito leuãtar, fazendo nestes lugares principal
mente grãdes gritos ederramando muitas lagrimas, Eosfilhos
do diabo grande deixaraõ crecer o cabello tingindose etisnã
1005 dose em Sinal detristeza que heo seuluto-
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Com isto me fui e me desci da serra trazendo diante de mim o corpo
950 do padre; e ao pé da serra o enterrei, fazendo-lhe um monumento
de pedras sobre a sepultura para sinal dela, pondo-lhe
também uma cruz à cabeceira, mandei logo buscar os
dois índios, um deles estava já morto, outro morreu ao dia
seguinte, ambos os fiz enterrar junto do padre por cuja defensão mor-
955 reram, um de uma parte outro da outra ficando ele no meio.
Aqui se remataram e coroaram tantos trabalhos pas-
sados do santo padre com esta ditosa morte cujo intento
era fazer muitas igrejas no sertão do Maranhão, e converter
as Almazonas, cortou-lhe Deus o fio porque não era chegada ainda
960 a hora. Uma das índias que os bárbaros levaram, no ca-
minho lhes meteu medo dizendo-lhe vós outros todos haveis de
morrer porque logo hão de vir os brancos com instrumentos de fogo a
vos matar e vingar a morte do padre que queria fazer pazes con-
vosco tomando-vos por filhos e ensinando-vos a vida santa, e vós levais
965 a sua rede e o seu vestido que vos hão de ser causa da morte, res-
pondeu-lhe um que lhe levava a roupeta; dizes verdade porque já eu es-
tou tremendo e enfraquecido (e a como estes bárbaros são ima-
ginativos, sem dúvida morreria, por que só a imaginação de cui-
darem que alguém lhe lança a morte basta para os matar) mas já
970 que tu dizes isso (acrescentou ele) torna-te e dize a seu irmão que
aqui fica tudo que o mande buscar, e fez pôr toda a roupa sobre
uns paus altos, e se foram mandando a índia, a qual de tudo
tomou a rede do padre, sabendo que ficava eu com o chão por cama
e por que eles se não tornassem a arrepender com toda a pressa se veio
975 e referindo-me tudo, me certificou de como dantes disto
estiveram para me virem tornar a buscar do caminho; à tarde
se ajuntou comigo mais gente, mandei ao dia seguinte corpo de man-
cebos a buscar tudo; mas parece que os tapuias tornaram a-
trás a levar o que deixavam, porque só se achou a casula, estola
980 e manipulo e frontal, e os breviários, levaram cálix, alva,
cordão e o missal, e a farinha das hóstias etc., coisa que me deu
grande pena deixarem-me sem missa e sem sacramento naquele
desterro, seja o Senhor contudo louvado para sempre.
Depois que enterrei o padre ao pé daquela alta serra da
985 Ibiapaba, em um lugar que particularmente se chama Abayára
ao longo de um rio, dentro em um mato, esperei alguns dias
pelo principal que estava ausente para me despedir dele
pelas caridades que dele tínhamos recebido, veio final-
mente, convidei-o para vir comigo para a igreja, e a outros princi-
990 pais que ali se ajuntaram, e ele porém sempre se mostrou al-
gum tanto duro, mas os outros me deram palavra de virem
e em efeito se aparelharam querendo logo desfazer as ro-
ças, mas como eu por então não queria mais que vir-me ao
mar a esperar que passasse o inverno que entrava, pretendendo
995 entretanto fazer algumas milharadas, e avisar juntamente
a meus superiores os detive dizendo que me queria vir diante a
esperar que eles se aparelhassem no que ficaram bem.
Foram-se para sua aldeia, e o Diabo Grande celebrou e fez ce-
lebrar a todas as exéquias do padre a seu modo, mandando que se fizessem
1000 grandes e públicos prantos por toda a aldeia, e se ajuntaram
as índias na casa que fora nossa, e ao pé da cruz que no terreiro
tínhamos feito levantar, fazendo nestes lugares principal
mente grandes gritos e derramando muitas lágrimas, e os filhos
do Diabo Grande deixaram crescer o cabelo tingindo-se e tisnan-
1005 do-se em sinal de tristeza que é o seu luto.
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partindoseelles pera suaaldea, mepartẏ eutãbem peraomar
pera casa do cobra azul queseriaõ trinta ate 40 legoas, gas
teẏ no caminho-17- dias, mandei recado diãte ao cobra azul
1010 de como me hia pera suacasa, emfim, cheguei fezmemedio
cre gasalhado, recolhendo meem huã casinha que metinha
mandadofazer, deume logo huã rossa peraprantar
demilho, Eeufiz fazer outra e comprei outra, eafiz pran
tar demilho, feijoẽs fauas eabobaras, eaparelhandome
1015 peraos que auiaõ deuir doẏbiapaba, masfoẏ pouco oque se colheo
assẏ por naõ chouer, como porserem tãtas asformigas que
destruhiaõ tudo, e como eunaõ tinha quẽ metiuesse cuidado
deasmatar, por que cadahũtinha bemquefazer, emacodir as
suas foimenecessario fazerme eufeitor mãdãdofazer huã ca
1020 sinha nomeio dasroças naqual mefui morar, leuando co
migo -4- ou-5-moços, os quais meajudauaõ a cauar ematar
as formigas equeimalas, mas a importunidade emulti
daõ dellas venceo nosso trabalho, Eneste tempõ que foraõ quatro
meses nosso comer foraõ, alguãs fruitasinhas Epeixe sem
1025 outracousa, euporem tiue alguãs castanhas de cajüs E
obra dehuã quartadefarinha que eutinha trazido doybiapaba
quefuẏ goardãdo pera a coresma cõ aqual ajejũeẏ toda condutãdo
como erarezaõ-.
Aparelhauaõseneste tempõ os doẏbiapaba perauirem
1030 Edous principais mãdaraõ osfilhos diante temẽdose
queme partisse eos deixasse; mas como o jmigo denossa sal
uaçaõ naõ dorme, la reuolueo osfãtasmas aosfeiticeiros
Elhemeteo emcabessa que eu osqueria trazer peraosẽtregar
aos brãcos emrecompensa da morte dopadre por ser morto em
1035 Suas terras sẽ elles o defẽderẽ, Eposto que eutrabalheẏ por des
fazer estas suas jmaginações como quer que estauaausẽte
naõ mefoẏ possiuel; cõtudoisto queriaõ uir muitos, mas como
o diabo grãde heSagaz, armoulhe dous laços hũ demedo
outro deesperãças comqueos prẽdeo atodos metendolhes em
1040 cabessa Etraçãdo que jriaõ primeiro a dar nos tapuẏas
assalto pera uingarẽ a morte do padre, Eque fariaõ hũ presẽte
dos catiuos, aosquais como em triumfo fariaõ carregar os
ossos do padre eos trariaõ ao padre grande, Efinalmẽte
seuiriaõ peraajgreja depois defazer estas diligencias
1045 Esatisfaçaõ. nisto ficaõ mas naõ meparece que terá effeito
Depois destastraças e cõselho memãdou o diabo
grãde visitar cõ dousjrmaõs seus dequem ellemais contafaz cha
mados hũ o diaboligeiro, eo outro carapecü grandes ca
ualeiros evalẽtes, estesmetrouxeraõ douscabassos defari
1050 nha queteriaõ dous alqueires que chegaraõ ao tempõemque
nem fruitos nẽ outra alguã cousa auia mais que algum
peixe, logo repartẏ hũ delles portoda aaldeota semficar pes
soa que naõ tiuesse seu quinhaõ comque cobreẏ fama deliberal
que seestendeo por todo osertaõ por que naõ sefalaua noutracousa
1055 senaõ navirtude dopadre queemtempõ detãta fomeselem
braua detodos eos cõuidaua/ estafama seacrecẽtou muito
cõ o ordinario costume meuque sempretiue assaber que quãdo
alguẽ metrazia algũ presente seeutinhao que medriocre
mente mebastasse, naõ lho aceitaua, ouquãdo muito tomaua al
1060 guã parte pera dar aalgũ mais necessitado, o que uendo
diziaõ que bem differentes eraõ os padres dosbrãcos que
nũca estes emgeitauaõ nada por mais quelhe sobejasse
nem do que tinhaõ os cõuidauaõ- antesme deziaõ
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Partindo-se eles para sua aldeia, me parti eu também para o mar
para casa do Cobra Azul que seriam trinta até 40 léguas, gas-
tei no caminho -17- dias, mandei recado diante ao Cobra Azul
1010 de como me ia para sua casa, enfim cheguei fez-me medio-
cre gasalhado, recolhendo-me em uma casinha que me tinha
mandado fazer, deu-me logo uma roça para plantar
de milho, e eu fiz fazer outra e comprei outra, e a fiz plan-
tar de milho, feijões favas e abóbaras, e aparelhando-me
1015 para os que haviam de vir da Ibiapaba, mas foi pouco o que se colheu
assim por não chover, como por serem tantas as formigas que
destruiam tudo, e como eu não tinha quem me tivesse cuidado
de as matar, porque cada um tinha bem que fazer, em acudir as
suas foi-me necessário fazer-me eu feitor mandando fazer uma ca-
1020 sinha no meio das roças na qual me fui morar, levando co-
migo - 4- ou-5- moços, os quais me ajudavam a cavar e matar
as formigas e queimá-las, mas a importunidade e multi-
dão delas venceu nosso trabalho, e neste que tempo foram quatro
meses nosso comer foram, algumas frutazinhas e peixe sem
1025 outra coisa, eu porém tive algumas castanhas de cajus e
obra de uma quarta de farinha que eu tinha trazido da Ibiapaba
que fui guardando para a quaresma com a qual a jejuei toda condutando
como era razão.
Aparelhavam-se neste tempo os da Ibiapaba para virem
1030 e dois principais mandaram os filhos diante temendo-se
que me partisse e os deixasse; mas como o inimigo de nossa sal-
vação não dorme, lá revolveu os fantasmas aos feiticeiros
e lhe meteu em cabeça que eu os queria trazer para os entregar
aos brancos em recompensa da morte do padre por ser morto em
1035 suas terras sem eles o defenderem, e posto que eu trabalhei por des-
fazer estas suas imaginações como quer que estava ausente
não me foi possível; contudo isto queriam vir muitos, mas como
o Diabo Grande é sagaz, armou-lhe dois laços um de medo
outro de esperanças com que os prendeu a todos metendo-lhes em
1040 cabeça e traçando que iriam primeiro a dar nos tapuias
assalto para vingarem a morte do padre, e que fariam um presente
dos cativos, aos quais como em triunfo fariam carregar os
ossos do padre e os trariam ao padre grande, e finalmente
se viriam para a igreja depois de fazer estas diligências
1045 e satisfação. Nisto ficam, mas não me parece que terá efeito.
Depois destas traças e conselho, me mandou o Diabo
Grande visitar com dois irmãos seus de quem ele mais conta faz cha-
mados um o Diabo Ligeiro, e o outro Carapecu grandes ca-
valeiros e valentes, estes me trouxeram dois cabaços de fari-
1050 nha que teriam dois alqueires que chegaram ao tempo em que
nem frutos nem outra alguma coisa havia mais que algum
peixe, logo reparti um deles por toda a aldeota sem ficar pes-
soa que não tivesse seu quinhão com que cobrei fama de liberal
que se estendeu por todo o sertão porque não se falava noutra coisa
1055 senão na virtude do padre, que em tempo de tanta fome se lem-
brava de todos e os convidava, esta fama se acrescentou muito
com o ordinário costume meu que sempre tive a saber que quando
alguém me trazia algum presente se eu tinha o que medriocre-
mente me bastasse, não lho aceitava, ou quando muito tomava al-
1060 guma parte para dar a algum mais necessitado, o que vendo
diziam que bem diferentes eram os padres dos brancos que
nunca estes enjeitavam nada por mais que lhe sobejasse
nem do que tinham os convidavam. Antes me diziam
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1065 O quãtas vezes deseiauamos de comer hũ bocadinho depeixe
ou carne que nosmesmos matauamos, masnaõ podiamos nem
cõuidauamosnossos filhinhos, isto tudo conto Eestimo polla
gloria do senhõr Ehonra da companhia que pera cõ estes seganhaua-
despois destesmemãdou outro principal outros dous caba
1070 ços defarinha comque mefuẏ remediãdo ateque ouuefeijoẽs E
Milho nas roças.
nestetempo que gastei emcasa do cobra azul naõ mefal
taraõ purgasE tragos bem amargosos cõ que o senhõr foi seruido de
me exercitar empenitẽcia de meus peccados, algũs re
1075 ferirei pera gloria dosenhõr E cõsolaçaõ demeus padres Ejrmãos-
Estenegro cobraazul hegrãde feiticeiro, E valentaõ dõ
de lhenace ser soberbissimo Efalar sempre cõ grande arrogãcia
no tempo que eu estaua na roça, depois delheter dado muitas
cousas Elhemostrar muito amor Ecomfiãça, mostrãdo elle ames
1080 ma demỹ emãdandome muitos presentes, fui hũ dia visitar
atodos, epassando pollasua porta pergũtei por elle, edisseraõme
que naõ estauadentro, entreẏ logo em outra casa ondeellees
taua cõ outros, e hũ dellesfazendo hũ arco, depois deos saudar
louuei ao outro ofazer arcos, eacrecẽteẏ dizendo, quẽ me
1085 fará hũ arco peraomeu moço. que naõ tem cõ que jr a cassar, ao que
o cobra azul acodio dizendoque por que o naõ mãdaua eufender hũ
pao peraisso, eu cõ alguã cõfiança lherespondẏ, isso medizes
amỹ sabendo que naõ tenho mais que hũ moço que sempremeacom
panha etem cui dado demỹ; manda hũ deteusfilhos quetens
1090 muitos E essenhor detoda esta aldea etodos teseruẽ; calouse
elle Edissimulãdo Saesse eentra ẽ Sua casa falando alto
Edizendo-
Parece que este mequer tratar como pero coelho pois mere
prende como elle mereprendia, seelle assi metrata em
1095 minha casa, que fará seme colher la nasua, naõ Sabeelle
que esta aquẏ só enaõ tem quẽ o goarde, E cõ isto toma hũ ma
chado às costas EsaesseE vaisse peraarossa que erao caminho
por ondeeu auia dejr peraaminha; em elle saindo decasa fi
caua nella huã velha, prima Sua Ejuntamente Sogra queja
1100 naõ tinhadentes deroer ossos humanos aqual tomou o agrauo
asua conta por uer o primo perturbado, efalando no mesmo
tom acrecentou parecemeque alguẽ quer que o coma eu pois
far lheei bẽ prestos hũ espeto epollo einelle, tudoisto
passou diante dehũs mãcebos que emsua casa seestauaõ a
1105 parelhãdo perajr pescar, E entre elles eraõ dousmoços
meus, mas como estes saõ Saluajẽs em muitas cousas, naõ
foraõ perameauisar, mas foraõse apescar, eátardetornãdo
uinhaõ cuidãdo etendopor certo que menaõ achariaõ viuo-. E
em chegandome disseraõ que cuidauaõ que meteria jamorto o co
1110 bra azul, no que eume achei nouo, epergũtandolhepollo caso
mecontaraõ tudo como tenho dito, ealegãdo outro que tambem
o ouuira tudo o mãdei chamar esoube delleo mesmo, estauaõ
os meus moços bẽ afligidos etemerosos, mas eumefingẏ muito
Seguro eos animeẏ depalaura posto que Jnteriormente naõ mefal
1115 tauaõ agonias, Sabendo quaõ facil egostoso heaestes mata
rem e comerẽ os dequesedaõ por agrauados, E eraisto ja
tardenaõ ouseẏ de fazer nadademỹ, mas cõfesso que vigieẏ
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1065 o quantas vezes desejávamos de comer um bocadinho de peixe
ou carne que nós mesmos matávamos, mas não podíamos nem
convidávamos nossos filhinhos; isto tudo conto e estimo pela
glória do Senhor e honra da Companhia que para com estes se ganhava.
Depois destes me mandou outro principal outros dois caba-
1070 ços de farinha com que me fui remediando até que houve feijões e
milho nas roças.
Neste tempo que gastei em casa do Cobra Azul não me fal-
taram purgas e tragos bem amargosos com que o Senhor foi servido de
me exercitar em penitência de meus pecados, alguns re-
1075 ferirei para glória do Senhor e consolação de meus padres e irmãos.
Este negro Cobra Azul é grande feiticeiro, e valentão don-
de lhe nasce ser soberbíssimo e falar sempre com grande arrogância
no tempo que eu estava na roça, depois de lhe ter dado muitas
coisas e lhe mostrar muito amor e confiança, mostrando ele a mes-
1080 ma de mim e mandando-me muitos presentes, fui um dia visitar
a todos, e passando pela sua porta perguntei por ele, e disseram-me
que não estava dentro, entrei logo em outra casa onde ele es-
tava com outros, e um deles fazendo um arco, depois de os saudar
louvei ao outro o fazer arcos, e acrescentei dizendo, quem me
1085 fará um arco para o meu moço, que não tem com que ir a caçar, ao que
o Cobra Azul acudiu dizendo que por que o não mandava eu fender um
pau para isso, eu com alguma confiança lhe respondi, isso me dizes
a mim sabendo que não tenho mais que um moço que sempre me acom-
panha e tem cuidado de mim; manda um de teus filhos que tens
1090 muitos e és senhor de toda esta aldeia e todos te servem; calou-se
ele e dissimulando saisse e entra em sua casa falando alto
e dizendo.
Parece que este me quer tratar como Pero Coelho pois me re
preende como ele me repreendia, se ele assim me trata em
1095 minha casa, que fará se me colher lá na sua, não sabe ele
que está aqui só e não tem quem o guarde? E com isto toma um ma-
chado às costas e sai-se e vai-se para a roça que era o caminho
por onde eu havia de ir para a minha; em ele saindo de casa, fi-
cava nela uma velha, prima sua e juntamente sogra, que já
1100 não tinha dentes de roer ossos humanos a qual tomou o agravo
a sua conta por ver o primo perturbado, e falando no mesmo
tom acrescentou parece-me que alguém quer que o coma eu pois
far-lhe-ei bem prestos um espeto e polo-ei nele; tudo isto
passou diante de uns mancebos que em sua casa se estavam a-
1105 parelhando para ir pescar, e entre eles eram dois moços
meus, mas como estes são selvagens em muitas coisas, não
foram para me avisar, mas foram-se a pescar, e à tarde tornando
vinham cuidando e tendo por certo que me não achariam vivo. E
em chegando, me disseram que cuidavam que me teria já morto o Co-
1110 bra Azul, no que eu me achei novo, e perguntando-lhe pelo caso
me contaram tudo como tenho dito, e alegando outro que também
o ouvira tudo o mandei chamar e soube dele o mesmo, estavam
os meus moços bem afligidos e temerosos, mas eu me fingi muito
seguro e os animei de palavra posto que interiormente não me fal-
1115 tavam agonias, sabendo quão fácil e gostoso é a estes mata-
rem e comerem os de que se dão por agravados, e era isto já
tarde não ousei de fazer nada de mim, mas confesso que vigiei
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Muitashoras aquellanoite por naõ poder dormir ẽcomẽdandome
1120 adeos eaparelhãdomepera tudo-
Ao dia Seguinte mandeilhe dizer que meachaua mal desposto
que poristo naõ hia visitar que quisesse uir aminhacasa que tinha
que falar cõ elle, respondeo eu ireẏ, masnaõfoẏ, eassimeteue
cõ amesma perplexidade aquelledia enoite, ao outro dia
1125 Mãdeilhe o mesmo recado, por que queria detodosaber seu animo
respõdeo ao moço, pois quẽ o metereprenderme, Ecõtudo naõ
foẏ, neste comenos leuou deos hũs ẏndios cõ hũas cartas do padre
gaspar desaõ perez cõ aqual occasiaõ mãdei chamar atodos
E elle tãbem que uiessẽ Saber as nouas, entaõ ueio cõ os outros
1130 Edepois jndose os outros ofiz esperar apazigoãdo o edescul
pandome, final mẽte ao dia seguinte memãdou hũ presente
decabaços verdes-.
Durouporem pouco tempõ aamizadepor que dahiaalgũs
dias seemfadou outrauez sem ocasiaõ nenhũa mais que
1135 dizer eu que erafalsidade certamintira dehũ Jndio que
fora dorio grãde leuar por noua que deuagar estaua minha uinda
Equenaõ seria senaõ dahia tresannos que assi lho dissera
Heronimo dalbuquerque, epor queelle gostaua cõ estanoua, cõtra
dizendolho eu, leuantasse furioso bradãdo, espera, espera, es
1140 pera E com estesbrados de doudo sesahio domeu aposento enaõ
mefalou dahi amuitos dias passando alguãs vezespollaminha
porta com grãde tromba, Esefoẏ fora a cassa semmefalar-
Eutãbẽ mefui peraomar que estaua dahi huãlegoa co
mo jadãtes tinha determinado cõ os moços que me acompanhauaõ
1145 aondefiz huã chossa E estiue vinteetãtos dias comẽdo
do peixe quetodos pescauamos ao cabo dos quais diasmetor
neẏ, Eelle chegou dahi atres dias ememãdou dousquar
tosdeporco do mato, E dahi aalgũs dias semeescusou deme
naõ visitar dizẽdo que eunaõsabia ainda bẽ a Sua lingoa E
1150 cõ estacapa sedeupor bem cuberto.
Nestetempo mãdei recado aos dojbiapaba cõuidan
doos vltimamente sequeriaõ uir comigo/ entreosque dela uieraõ
uinha hũ aquẽ ellemãdoupedir huã filhapor molher ouman
ceba aforaoutras duas quetinha, Epor que por minhaordẽ lhanegou
1155 auisou atodos os desua aldea que nadadessẽ nẽ cõuidassem
osmeus, Eque algũas roças que algũs tinhaõ dado lhas
tomassem outra uez, Ede Effeito mãdoulogo auisar a
huã jndia que naõ pusessemais pe narossaque lhetinha dado
outro jndio, E cõ estesgostos passei quasi seis mezes que
1160 estiue emsua casa, Esabe o senhõr quantas vezes mefogia
o Sono, emepunhaapassear a mea noite por entre as redes
dos moços que comigo dormiaõ no aposento, esperãdo como o
nosso santo padre dom gonçallo que entrassẽ ameacabar
Eme cõsolaua cõ deos e cõ acõsideraçaõ do mesmo padre
1165 Estesjndios que vltimamente uieraõ dojbiapabatrou
xeraõ huã noua digna desesaber peranos compadecermos
desta cega gentilidade peraaqual se ham desaber alguãs
cegueiras que tem, temgrãdemedo de cair o ceo sobreelles
E peraempedirẽ estemal, algũs dellespolla manhã em
1170 espertando seleuãtaõ efazem fincapé no chaõ cõ asmaõs
ambasperao ceo peraterẽ maõ nelleque naõ caia, Eassẏ lhepare
ceque fica direito pera todo aquelle dia/ tãbem os atro
menta muito o medo deseabrir aterra E de os alagar
o mar, os queentreelles saõ feiticeiros falaõ com o diabo
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muitas horas àquela noite por não poder dormir encomendando-me
1120 a Deus e aparelhando-me para tudo.
Ao dia seguinte mandei-lhe dizer que me achava mal disposto
que por isto não ia visitar que quisesse vir a minha casa que tinha
que falar com ele, respondeu eu irei, mas não foi, e assim me teve
com a mesma perplexidade aquele dia e noite, ao outro dia
1125 mandei-lhe o mesmo recado, porque queria de todo saber seu ânimo
respondeu ao moço, pois quem o mete repreender-me, e contudo não
foi; neste comenos levou Deus uns índios com umas cartas do padre
Gaspar de Samperez com a qual ocasião mandei chamar a todos
e ele também que viessem saber as novas, então veio com os outros
1130 e depois indo-se os outros o fiz esperar apaziguando-o e descul-
pando-me, finalmente ao dia seguinte me mandou um presente
de cabaços verdes.
Durou porém pouco tempo a amizade porque daí a alguns
dias se enfadou outra vez sem ocasião nenhuma mais que
1135 dizer eu que era falsidade certa mentira de um índio que
fora do Rio Grande levar por nova que devagar estava minha vinda
e que não seria senão daí a três anos que assim lho dissera
Jerônimo d’Albuquerque, e porque ele gostava com esta nova, contra-
dizendo-lho eu, levanta-se furioso bradando, espera, espera, es-
1140 pera e com estes brados de doido se saiu do meu aposento e não
me falou daí há muitos dias passando algumas vezes pela minha
porta com grande tromba, e se foi fora a caça sem me falar.
Eu também me fui para o mar que estava daí uma légua co-
mo já dantes tinha determinado com os moços que me acompanhavam
1145 aonde fiz uma choça e estive vinte e tantos dias comendo
do peixe que todos pescávamos ao cabo dos quais dias me tor-
nei, e ele chegou daí a três dias e me mandou dois quar-
tos de porco do mato, e daí a alguns dias se me escusou de me
não visitar dizendo que eu não sabia ainda bem a sua língua e
1150 com esta capa se deu por bem coberto.
Neste tempo mandei recado aos da Ibiapaba convidan-
do-os ultimamente se queriam vir comigo./ entre os que de lá vieram
vinha um a quem ele mandou pedir uma filha por mulher ou man-
ceba a fora outras duas que tinha, e por que minha ordem lha negou
1155 avisou a todos os de sua aldeia que nada dessem nem convidassem
os meus, e que algumas roças que alguns tinham dado lhas
tomassem outra vez, e de efeito mandou logo avisar a
uma índia que não pusesse mais pé na roça que lhe tinha dado
outro índio, e com estes gostos passei quase seis meses que
1160 estive em sua casa. E sabe o Senhor quantas vezes me fugia
o sono, e me punha a passear à meia noite por entre as redes
dos moços que comigo dormiam no aposento, esperando como o
nosso santo padre dom Gonçalo que entrassem a me acabar
e me consolava com Deus e com a consideração do mesmo padre.
1165 Estes índios que ultimamente vieram da Ibiapaba trou-
xeram uma nova digna de se saber para nos compadecermos
desta cega gentilidade para qual se hão de saber algumas
cegueiras que têm, têm grande medo de cair o céu sobre eles
e para impedirem este mal, alguns deles pela manhã em
1170 espertando, se levantam e fazem fincapé no chão com as mãos
ambas para o céu para terem mão nele que não caia, e assim lhe pare-
ce que fica direito para todo aquele dia; também os ator-
menta muito o medo de se abrir a terra e de os alagar-
o mar, os que entre eles são feiticeiros falam com o diabo
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1175 fl. 11r


Muitas vezes, o quallhesfala denoite as escuras, Eposto
que naõ o uëm, ouuemno, edaõlheofumo que beba, o qual uem es
tar no ar, masnaõ uẽ quẽ o tem, uem porem as baforadas
que lança, elhes diz a volta dehuã verdade muitas mintiras
1180 E quãdo uaõ a cassa lhe diz aondeaacharaõ, e aondeestamel
A nouapois que trouxeraõ os dojbiapaba foẏ que passando dous
Jndios pello caminho junto da sepultura dopadrepinto que
deos tem, lheaparecera o padre vestido ẽ sua roupeta preta seu
chapeo Esuarede às costas ehũ cofo defarinha ehũ grande caõ
1185 de cassa, Elhespergũtou por dousgrãdesfeiticeiros mãdãdo lhere
cado que logo hia ter cõ elles, foraõ elles cõtar esta nouaa aldea
Sairaõ os feiticeiros aïnterpretar auisaõ, hũs diziaõ que era
aalma dopadre eoutros outras cousas, porderradeiro sahio ofeẏ
ticeiro em que elles temposto seu credito Efee, dizendo que naõ
1190 erasenaõ o deos criador dos mãtimẽtos que os uinha criar pera
terem que comer ec.
Estes dojbiabapaficaõ muito cõtẽtes porlhe ficarẽ os ossos
do padre ẽ suaterra, o qual cuidaõ lheserá valha couto dosbrãcos E
aos que delá uinhaõ ameaçaraõ que os naõ trouxessẽ, eu cõtudo
1195 mandeẏ aminhapartida, quatro jndios valentes Saber se
estauaõ já desfeitos pera ostrazerẽ, mas acharaõ o corpo jn
teiro, outraoccasiaõ auera emque poderaõ uir os ossos.
Tinhaõ elles ẏdo cõ hũstapuẏas á guerra etrouxe
raõ algũs meninos, mãdeilhes offerecer que lhospagaria que
1200 mos trouxessem, mas saõtaõ carniceiros que naõ deixaraõ
de comer hũ tapuẏa por preço algũ dizendo quese uingaõ da
morte de seusparentes-.
Chegoufinal mẽterecado dopadre Reitor depernambuco
Anrique gomez, em reposta das minhas cartas queme
1205 uiesse em tempo que asmilharadas estauaõ devez, Eo
Jnuerno erapassado, mãdei recado a huã aldea que estaua
no rio do ceara- 25- ou-30 legoas mais pera ca pera
o jagoaribe, pedindo que mefossẽ algũs buscar perame tra
zerem algũ mantimẽtosinho, etãbemme acompanha
1210 rem em certopasso perigoso detapuẏas, foraõ ellesEes
tando perame partir se leuãtou outra tempestadenesta
forma-.
Este cobra azul tẽ hũ filho mãcebo de -26-ate-28 annos
deboa jndole, valente, ebem quisto, eestimado entreos seus
1215 tãbem se chama cobraazul o mosso, estedesejaua muito deuir
comigo perao caeté, eprocurou cõ muitas veras detrazer o paẏ
Etodos os seus parentes final mẽte estãdo euperapartir
sefoẏ aopaẏ alhedar a vltima batarïa com muitas rezoẽs que
peraisso elealegou, eachãdo o sempre cõ amesma dureza E
1220 esquiuança, sesahio a gastado Eemfadado; quando ueio
ao dia Seguinte demadrugada comessa afalar alto quetodos
o ouuissem destamaneira cõtraopaẏ-
Aparelhaiuos vos outros todos evamos cõ opadreedeẏ
xemos ficar aeste quetem o meunome velho (decla
1225 rando o paẏ cõ este circũloquio permodo dedespreso) porque
eu leuarei o padre asua casa, jaque estesenaõ lembra dos
grilhões emque pero coelho o teue tres annos, Eeufuẏ a causa
de os brãcos o naõ emforcarẽ, estando peraofazertres
vezes, naõ sei emque cõfia, Esendo euseudeffensor E
1230 arrimo quemlhefará agora bõ indome eu, hora jaque
assẏ quer fiquese elle E nos vamos nos cõ o padre
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1175 fl. 11r


muitas vezes, o qual lhes fala de noite às escuras, e posto
que não ouvem, ouvem-no, e dão-lhe o fumo que beba, o qual vem es-
tar no ar, mas não veem quem o tem, veem porém as baforadas
que lança, e lhes diz á volta de uma verdade, muitas mentiras
1180 e quando vão à caça lhes diz aonde a acharão, e aonde está mel.
A nova pois que trouxeram os da Ibiapaba foi que passando dois
índios pelo caminho junto da sepultura do padre Pinto que
Deus tem, lhe aparecera o padre vestido em sua roupeta preta seu
chapéu e sua rede às costas e um cofo de farinha e um grande cão
1185 de caça, e lhes perguntou por dois grandes feiticeiros mandando-lhe re-
cado que logo ia ter com eles, foram eles contar esta nova à aldeia
sairam os feiticeiros a interpretar a visão, uns diziam que era
a alma do padre e outros outras coisas; por derradeiro saiu o fei-
ticeiro em que eles têm posto seu crédito e fé, dizendo que não
1190 era senão o Deus criador dos mantimentos que os vinha criar para
terem que comer etc.
Estes da Ibiabapa ficam muito contentes por lhe ficarem os ossos
do padre em sua terra, o qual cuidam lhe será valha couto dos brancos e
aos que de lá vinham ameaçaram que os não trouxessem; eu contudo
1195 mandei à minha partida, quatro índios valentes saber se
estavam lá desfeitos para os trazerem, mas acharam o corpo in-
teiro, outra ocasião haverá em que poderão vir os ossos.
Tinham eles ido com uns tapuias à guerra e trouxe-
ram alguns meninos, mandei-lhes oferecer que lhos pagaria que
1200 mos trouxessem, mas são tão carniceiros que não deixaram
de comer um tapuia por preço algum dizendo que se vingam da
morte de seus parentes.
Chegou finalmente recado do padre reitor de Pernambuco
Henrique Gomes, em reposta das minhas cartas que me
1205 viesse em tempo que as milharadas estavam de vez, e o
inverno era passado, mandei recado a uma aldeia que estava
no Rio do Ceará - 25-ou-30 léguas mais para cá para
o Jaguaribe pedindo que me fossem alguns buscar para me tra-
zerem algun mantimentozinho, e também me acompanha-
1210 rem em certo passo perigoso de tapuias, foram eles e es-
tando para me partir se levantou outra tempestade nesta
forma.
Este Cobra Azul tem um filho mancebo de -26-até-28 anos
de boa índole, valente, e bem quisto, e estimado entre os seus
1215 também se chama Cobra Azul o moço, este desejava muito de vir
comigo para o Caeté, e procurou com muitas veras de trazer o pai
e todos os seus parentes finalmente estando eu para partir
se foi ao pai a lhe dar a última bataria com muitas razões que
para isso ele alegou, e achando-o sempre com a mesma dureza e
1220 esquivança, se saiu agastado e enfadado; quando veio
ao dia seguinte de madrugada começa a falar alto que todos
o ouvissem desta maneira contra o pai.
Aparelhai-vos vós outros todos e vamos com o padre e dei-
xemos ficar a este que tem o meu nome velho (decla-
1225 rando o pai com este circunlóquio por modo de desprezo) porque
eu levarei o padre à sua casa, já que este se não lembra dos
grilhões em que Pero Coelho o teve três anos, e eu fui a causa
de os brancos o não enforcarem, estando para o fazer três
vezes, não sei em que confia, e sendo eu seu defensor e
1230 arrimo quem lhe fará agora bom indo me eu, ora já que
assim quer fique se ele e nós vamo-nos com o padre.
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fl. 11v
Esta foi apregaçaõ do cobra azul omoço, Elogo pelamenhã
sefoiter comigo, amereferir o que tinhadito, acrecentando que
1235 comfiasse eunelle quejanaõ eramenino quesearrepẽdesse
Equebẽ sabia jafalar diante degẽte Esem duuida me
traria aminhacasa, Equeseu paẏ que auia medo delle pelo
queestaua bemforade lhe pegar do brasso Elheempedir
auinda, acrecentãdo outras muitas cousas comqueme
1240 pareceo hũ anjo, eu o animeẏ cõfirmãdo emseubom
preposito dizendolhe, que jaauia diasque conhecia seubom
animo, Equeposto que ja tinha fama dequerimbaba
E valente todos lhequeriaõ bem, cõtudo que agorasuafama
Enome seestenderia mais eosbrãcos o conheceriaõ E os
1245 padres todos lhefariaõ muito bõ gasalhado, Eroçaria em
muito boas terras, aonde viuesse muito a sua vontade
Elhe agardeceriaõ cõ boas obras o trazerme-.
O paẏ ficou perturbadissimo com uer cõtrasẏ ofilho
porminha parte, Etodo aquelledia esteue brusco Eempeço
1250 nhentandoseperao dia seguinte mostrar oveneno; le
uantase demadrugada, Eespertãdo todos comessaadizer
jde vos outros jde Eleuaẏ o abaré que elle vos jrá vender E
destribuir a Seusparentes E sereis todos escrauos, Euos
outrosque uiestes cõ elle do caete, agorapassareis delargo
1255 por defronte devossas casas, E cõ saudades desejareis de chegar
aellas mas debalde por que jreis peraonde vos ellevẽder E
falando por irronia, dezia Eeuque naõ sei o que faço meficareẏ
aquẏ perdido emiserauel, dandose por Superior no saber atodos
os mais que eraõ necios ẽ seẽtregarẽ ao catiueiro uindo comigo-
1260 Amanheceo finalmẽte o dia seguinte que auia deser
o vltimo deminhaestada, aparelhamonos peranos
partirmos emãdeẏ auisar pera que ao outro dia pelamanhã
nospartiriamos, mas que primeiro nos ajũtassemos todos no
terreiro edali nos abalariamos; A quellanoite foi ademais
1265 medos earreceios, por que como era a vltima eo coraçaõ da
quelle barbaro estauataõ azedado, quasi que mepersuadẏ
que seatreueria a cometer alguã cousa, quis chamar quem
me goardasse, maspor naõ aluoroçar oudar aentender meu
medo o naõ fiz, ainda que ellepoucos dias auia que tinhadito
1270 que antesque nos uiessemos nosauia dematar, Eemfimpas
souaquella cõprida noite deangustias, Epela manham
nos aẏũtamos todos noterreiro aondeestando todos ajoelhados
diante dehũa cruz reciteẏ o itinerario emvozalta, o qual
acabado, desparandose hũmosquete nosdespedimos ficando
1275 o barbaro dentro decasa semparecer fora, passeilhe pela
porta Eda rua o Saudeẏ, Eelle emcadarroado dedentro
merespõdeo vaite embora, naõ lheagardeço aellenaõ
mematar que boa võtade memostrou, mas agardeço a diui
na bondade quemeliurou dos saluajẽs tapuẏas, Edelle
1280 tambẽ, mas estessaõ os passos emque semedita bẽ namorte
vendoadeperto-
O filho deste tãbẽ separtio comigo equasi todaaldeo
ta, aprimeira jornada o cobra azul o moço foi taõ prudẽte que
ainda queuinha agastado cõtrao paẏ, cõtudo mefoẏ falar
1285 pelopaẏ dizendomeque naõ me lembrasse denada que seupaẏ
Sempre tiuera costume defalar aspero atodos, Equeera
costume dos grãdes morobixabas peraterem autoridade
Eque elle o mãdaua comigo pera quemetrouxesse Euisse
o que passaua na jgreja peradepois uir tambẽ Eque
1290 naõ quisesseeu apartar detodo aseupaẏ demỹ
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fl. 11v
Esta foi a pregação do Cobra Azul o moço, e logo pela manhã
se foi ter comigo, a me referir o que tinha dito, acrescentando que
1235 confiasse eu nele que já não era menino que se arrependesse
e que bem sabia já falar diante de gente e sem dúvida me
traria à minha casa, e que seu pai que havia medo dele pelo
que estava bem fora de lhe pegar do braço e lhe impedir
a vinda, acrescentando outras muitas coisas com que me
1240 pareceu um anjo, eu o animei confirmando em seu bom
propósito dizendo-lhe, que já havia dias que conhecia seu bom
ânimo, e que posto que já tinha fama de querimbaba
e valente todos lhe queriam bem, contudo que agora sua fama
e nome se estenderia mais e os brancos o conheceriam e os
1245 padres todos lhe fariam muito bom gasalhado, e roçaria em
muito boas terras, aonde vivesse muito a sua vontade
e lhe agradeceriam com boas obras o trazer-me.
O pai ficou perturbadíssimo com ver contra si o filho
por minha parte; e todo aquele dia esteve brusco e empeço-
1250 nhentando-se para o dia seguinte mostrar o veneno; le-
vanta-se de madrugada, e espertando todos começa a dizer
ide vós outros ide e levai o abaré que ele vos irá vender e
distribuir a seus parentes e sereis todos escravos, e vós
outros que viestes com ele do Caeté, agora passareis de largo
1255 por defronte de vossas casas, e com saudades desejareis de chegar
a elas mas debalde porque ireis para onde vos ele vender e
falando por ironia, dizia e eu que não sei o que faço me ficarei
aqui perdido e miserável, dando-se por superior no saber a todos
os mais que eram nécios em se entregarem ao cativeiro vindo comigo.
1260 Amanheceu finalmente o dia seguinte que havia de ser
o último de minha estada, aparelhamo-nos para nós
partirmos e mandei avisar para que ao outro dia pela manhã
nós partiríamos, mas que primeiro nos ajuntássemos todos no
terreiro e dali nos abalaríamos; aquela noite foi a demais
1265 medos e arreceios, porque como era a última e o coração da-
quele bárbaro estava tão azedado, quase que me persuadi
que se atreveria a cometer alguma coisa, quis chamar quem
me guardasse, mas por não alvoroçar ou dar a entender meu
medo o não fiz, ainda que ele poucos dias havia que tinha dito
1270 que antes que nós viéssemos nos havia de matar, e enfim pas-
sou aquela comprida noite de angústias, e pela manhã
nos ajuntamos todos no terreiro aonde estando todos ajoelhados
diante de uma cruz recitei o itinerário em voz alta, o qual
acabado, desparando-se um mosquete nos despedimos ficando
1275 o bárbaro dentro de casa sem parecer fora, passei-lhe pela
porta e da rua o saudei, e ele encadarroado de dentro
me respondeu vai-te embora, não lhe agradeço a ele não
me matar,que boa vontade me mostrou, mas agradeço a divi-
na bondade que me livrou dos selvagens tapuias, e dele
1280 também, mas estes são os passos em que se medita bem na morte
vendo-a de perto.
O filho deste também se partiu comigo e quase toda aldeo-
ta, a primeira jornada o Cobra Azul o moço foi tão prudente que
ainda que vinha agastado contra o pai, contudo me foi falar
1285 pelo pai dizendo-me que não me lembrasse de nada que seu pai
sempre tivera costume de falar áspero a todos, e que era
costume dos grandes morubixabas para terem autoridade
e que ele o mandava comigo para que me trouxesse e visse
o que passava na igreja para depois vir também e que
1290 não quisesse eu apartar de todo a seu pai de mim.
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fl. 12r
Eu o cõsolei dizẽdo, que mais melẽbraua dasboas obras
queme fizera quedesuas pallauras, que naõ cuidassequelhe
queria mal, ebastaua ser seupaẏ ec.
1295 Daliatres ouqutro jornadas chegaaposnos hũ
Mãcebo sobrinho seu pello qual peraatemorizar os meus
Efazer tornar ofilho eparẽtes como feiticeiro Esabedor
das cousasfuturas, lhesmãdoudizer que todos morreriaõ no
caminho, eque osoutros daaldea peraondeuinhamos nosnaõ a
1300 uiaõ de dar huã sededagoa que pereceriamos à fome, Ecousas
semelhãtes comque perturbou muito aos que uinhaõ comigo, por
que saõ muẏ facil mẽte entrada, aimaginações efiçoẽs de
feiticeiros, mas cõtudo nimguẽ semetornou-.
Chegamos à outraaldea que estajũto ao rio chamado
1305 Ceara vinte E cinquo legoas alem de jagoaribe, recebe
raõ nos comfestas, caminhos feitos, emboscadas tamborïs ec.
tinhaõ mefeito huã casinha muẏ bonita depindoba adõde
merecolheraõ parecendolhe que lheuinha todo o remedio
contra osbrãcos que ate gora os tinhaõ feito andar brenhas
1310 Erochas escõdidos; E hũ velho meueio visitar que medisse
quãdo oje vinhas naõ tepudejr falar por que estaua chorãdo dea
legria deuer a gora juntos por amor detẏ aestesmeusparẽtes
que ate gora ãdauaõ pellas couas Ebrenhas escondidos
mas a gora so nos ficaõ as saudades que temos denossos filhos
1315 Efilhas que os brãcos nos leuaraõ pedindo me cõisto lhosfizesse
jr de cä
A estesjndios de ceara cõuideẏ, etinhajadãtes cõuidado
que uiessem pera aẏgreja, que alem deaueremdeser filhos de deos
estariaõ liures dos tapuẏas emais inimigosque ate gora
1320 os desbaratauaõ, Eque naẏgreja estariaõ liures dasynjurias
dos brãcos que heo em que mais falaõ que tudo, porem tinhaos ja
preuenido, Heronimo dalbuquerque comtres ouquatro
recados que lhemãdou, que naõ se bollissem nem desẽparassẽ
Suas terras epatria antiga deseus ãtepassados
1325 Eque naõ ouuissẽ minhas palauras nemlhedessẽ orelhas
que logo jria outro padre amorar cõ elles elhefazer igreja
eoutras muitas cousas aestetom Etais que pellas naõ dizerẽ
cõ apessoa dejeronimo dalbuquerque lhenaõ dei credito, Eme
persuadẏ que seriaõ fingidos pollosmessageiros, aindaque
1330 heverdadequeestessenhores, naõ cuidaõ outra saluação dal
mas, mais que em quãto naõ se emcõtra cõ seus interesses-
Vendo euque os mais naõ queriaõ uir procurei entaõ
deos ajuntar todos por que emtodo aquelle certaõ do jagoari
beaonde dãtes auia grãdissimo numero dealdeas, a gora seraõ
1335 portodos grãdes Epequenos, como oito centas almas, as
quais estauaõ ẽ seteou oito aldeotas, detodasajũteẏ
os principais, Eos persuadi seajũtarẽ aroçar em cer
ta parte mais acomodada, traçando lhe as casas Ele
uãtandolhe huafermosa cruz decedro, laurada cõ seu título
1340 cousas que ellesestimaraõ muito, elhepus nomeaaldea de
Saõ Lourenço, por ser em seu dia leuãtada a cruz, eagora esque
cendose do nomeantigo daquella terra lhe chamaõ
Saõ Lourenço, deixeios animados e cõ segurãça dos branquos
que jaos naõ fariaõ escrauos, nẽ lhefariaõ guerra
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fl. 12r
Eu o consolei dizendo, que mais me lembrava das boas obras
que me fizera que de suas palavras, que não cuidasse que lhe
queria mal, e bastava ser seu pai etc.
1295 Dali a três ou quatro jornadas chega após nós um
mancebo sobrinho seu pelo qual para atemorizar os meus
e fazer tornar o filho e parentes como feiticeiro e sabedor
das coisas futuras, lhes mandou dizer que todos morreriam no
caminho, e que os outros da aldeia para onde vínhamos nos não ha-
1300 viam de dar uma sede d’água que pereceríamos à fome, e coisas
semelhantes com que perturbou muito aos que vinham comigo, por
que dão mui facilmente entrada à imaginações e ficções de
feiticeiros, mas contudo ninguém se me tornou.
Chegamos à outra aldeia que está junto ao rio chamado
1305 Ceará vinte e cinco léguas além de Jaguaribe, recebe-
ram-nos com festas, caminhos feitos, emboscadas tamboris etc.
tinham me feito uma casinha mui bonita de pindoba adonde
me recolheram parecendo-lhes que lhe vinha todo o remédio
contra os brancos que até agora os tinham feito andar brenhas
1310 e rochas escondidos; e um velho me veio visitar que me disse
quando hoje vinhas não te pude ir falar porque estava chorando de a-
legria de ver agora juntos por amor de ti a estes meus parentes
que até agora andavam pelas covas e brenhas escondidos
mas agora só nos ficam as saudades que temos de nossos filhos
1315 e filhas que os brancos nos levaram pedindo-me com isto lhos fizesse
ir de cá.
A estes índios de Ceará convidei, e tinha já dantes convidado
que viessem para a igreja, que além de haverem de ser filhos de Deus
estariam livres dos tapuias e mais inimigos que até agora
1320 os desbaratavam, e que na igreja estariam livres das injúrias
dos brancos que é o em que mais falam que tudo, porém tinha-os já
prevenido, Jerônimo d’Albuquerque com três ou quatro
recados que lhe mandou, que não se bulissem nem desamparassem
suas terras e pátria antiga de seus antepassados
1325 e que não ouvissem minhas palavras nem lhe dessem orelhas
que logo iria outro padre a morar com eles e lhe fazer igreja
e outras muitas coisas a este tom e tais que pelas não dizerem
com a pessoa de Jerônimo d’Albuquerque lhe não dei crédito, e me
persuadi que seriam fingidos pelos mensageiros, ainda que
1330 é verdade que estes senhores, não cuidam outra salvação dal-
mas, mais que enquanto não se encontra com seus interesses.
Vendo eu que os mais não queriam vir procurei então
de os ajuntar todos porque em todo aquele sertão do Jaguari-
be aonde dantes havia grandíssimo número de aldeias, agora serão
1335 por todos grandes e pequenos, como oitocentas almas, as
quais estavam em sete ou oito aldeotas, de todas ajuntei
os principais, e os persuadi se ajuntarem a roçar em cer-
ta parte mais acomodada, traçando-lhe as casas e le-
vantando-lhe uma formosa cruz de cedro lavrada com seu título
1340 coisa que eles estimaram muito, e lhe pus nome a aldeia de
São Lourenço por ser em seu dia levantada a cruz, e agora esque-
cendo-se do nome antigo daquela terra lhe chamam
São Lourenço, deixei-os animados e com segurança dos brancos
que já os não fariam escravos, nem lhe fariam guerra
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E que eu os ẽcomẽdaria aosenhor governador que os deffẽdesse e ẽparasse
delles, dei aos principais algũas reliquias deferramẽta
velha que ficou dos tapuẏas, mas nẽ por isso os cõtentey porque
cuidaõ que tudoisso e muito mais selhedeue, aondenaõ abran
1350 geraõ os machados efouces dei algũas facas outizouras
Eentreestes auia hũ por nome lagartixa espalmada
o qual erasoberbissimo, eantesque euuiesse por varias vezes me
ameaçou que meauia dematar eaos meus, Epor lhedizerem
outros algũs louuores meus comque o a brãdaraõ, vlti
1355 mamẽte disse que seauia dejr daaldea ãtes que eu chegasse por
menaõ uer epollo naõ ẽganar cõ minhas palauras fazẽdoo
uir pera igreïa, mãdei do caminho desemganar que
naõ fugisse demỹ que naõ queria senaõ que roçasse ẽsua mes
materra, equelhedaria cõ que roçar, Eelle cõtudose foẏ apa
1360 nhar algodaõ, enaõ estauana aldea quãdo eu cheguey
Veio porẽ dali adous dias outres mas naõ me
foẏ uisitar ate que eu o chameẏ; deteuesse ainda hũ pe
dasso depois demeurecado, emfimueio cõ hũ maço defre
chas eseu arco namaõ, Eelletodo almagrado cõ vrucü
1365 Edepois denos saudarmos aprimeira cousa quemedisse foẏ
quenaõ meperturbasse porlhe uer asfrechasnamaõ que oseu
costume eratrazellas sempre, nisto pedio fogo ahũ
Moço meu, eacẽdendo apalma em que trazia ofumo perabe
ber mo offereceo, respõdilheque naõ costumaua a beber fumo
1370 Tratamosentaõ pratica em que euo assegureẏ de
o querer trazer, eque jao conhecia eamaua como a filho
E elleentaõ mefez hũa grãde pratica emquedezia que eu
fora causa deellesair das lapas ematos aroçar em publi
co, o que estauafora defazer se algũ brãco uiera que naõ
1375 fosse padre eque jaagora estaua descãsado, eoutras cousas
aeste tom, prometi lhe huã fouce peraroçar postoque
lhanaõ dei logo, comquese despedio muito apasigoado, a
quellemesmo dia anoite estando os principais todos
emterreiro praticando como cotumaõ, Sae elledecasa E ẽ
1380 altauoz comessaafalar destamaneira com os parentes
naõ Sabeis uos que sou eu o uingador mor, que nimguem
mefezcousa que menaõ pagasse, que meuinguei dos ta
puẏas Edosmais cõtrarios detodas as mortes dos meus
pois quẽ heagora o que por detras anda mur murando demỹ
1385 dizendo que me ausentei por naõ uer o padre, quẽ isto diz mente
E quẽmefez amỹ sair dos matos por venturauos outros
hegrande falsidade, por amor dopadre sahi eu apouco Eestou
oje sem nenhũ temor, oraisto basteque sois todos huãs mo
lheres; ouuiraõ todos mas nimguẽ falou pallaura-.
1390 Ao dia seguῖte mais por medo que por võtadelhedei huã
fouce pera roçar, soubeo hũ principalete aquẽ
eu só tinha dado huã faca; jndignado comessa apre
gar dizendo estou muẏ agastado eagrauado cõtra o padre
que dá fouces aquem delle mur mura efala, eamỹ,
1395 naõ medeu fouce, será por venturapor que eu o naõ cõuideẏ
neste tom esbrauejou, dando memuitas remocadas por que
naõ metendo o outro dado nada ellemetrouxera por al
guãs vezes, hũs mingaos demãdioca braua que caro me cus
taraõ, mas detudo teueo senhõr por bem demeliurar
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1345 fl. 12v


e que eu os encomendaria ao senhor governador que os defendesse e amparasse
deles, dei aos principais algumas relíquias de ferramenta
velha que ficou dos tapuias, mas nem por isso os contentei porque
cuidam que tudo isso e muito mais se lhe deve, aonde não abran-
1350 geram os machados e foices dei algumas facas ou tisouras
e entre estes havia um por nome Lagartixa Espalmada
o qual era soberbíssimo, e antes que eu viesse por várias vezes me
ameaçou que me havia de matar e aos meus, e por lhe dizerem
outros alguns louvores meus com que o abrandaram, ulti-
1355 mamente disse que se havia de ir da aldeia antes que eu chegasse por
me não ver e pelo não enganar com minhas palavras fazendo-o
vir para igreja, mandei do caminho desenganar que
não fugisse de mim que não queria senão que roçasse em sua mes-
ma terra, e que lhe daria com que roçar, e ele contudo se foi apa-
1360 nhar algodão, e não estava na aldeia quando eu cheguei.
Veio porém dali a dois dias ou três mas não me
foi visitar até que eu o chamei; deteve-se ainda um pe-
daço depois de meu recado, enfim veio com um maço de fle-
chas e seu arco na mão, e ele todo almagrado com urucu
1365 e depois de nos saudarmos, a primeira coisa que me disse foi
que não me perturbasse por lhe ver as flechas na mão que o seu
costume era trazê-las sempre, nisto pediu fogo a um
moço meu, e acendendo a palma em que trazia o fumo para be-
ber mo oferece, respondi-lhe que não costumava a beber fumo.
1370 Tratamos então prática em que eu o assegurei de
o querer trazer, e que já o conhecia e amava como a filho
e ele então me fez uma grande prática em que dizia que eu
fora causa de ele sair das lapas e matos a roçar em públi-
co, o que estava fora de fazer se algum branco viera que não
1375 fosse padre e que já agora estava descansado, e outras coisas
a este tom, prometi-lhe uma foice para roçar posto que
lha não dei logo, com que se despediu muito apaziguado, à-
quele mesmo dia à noite estando os principais todos
em terreiro praticando como costumam, sai ele de casa e em
1380 alta voz começa a falar desta maneira com os parentes.
Não sabeis vós que sou eu o vingador mor, que ninguém
me fez coisa que me não pagasse, que me vinguei dos ta-
puias e dos mais contrários de todas as mortes dos meus
pois quem é agora o que por detrás anda murmurando de mim
1385 dizendo que me ausentei por não ver o padre; quem isto diz mente
e quem me fez a mim sair dos matos por ventura vós outros
é grande falsidade, por amor do padre saí eu a pouco e estou
hoje sem nenhum temor, ora isto baste que sois todos umas mu-
lheres; ouviram todos mas ninguém falou palavra.
1390 Ao dia seguinte mais por medo que por vontade lhe dei uma
foice para roçar, soube-o um principalete a quem
eu só tinha dado uma faca; indignado começa a pre-
gar dizendo estou mui agastado e agravado contra o padre
que dá foices a quem dele murmura e fala, e a mim,
1395 não me deu foice, será por ventura porque eu o não convidei
neste tom esbravejou, dando-me muitas remocadas porque
não me tendo o outro dado nada ele me trouxera por al-
gumas vezes, uns mingaus de mandioca brava que caro me cus-
taram, mas de tudo teve o Senhor por bem de me livrar.
94

94
95

1400 fl. 13r


partime finalmente daquella aldea, aos-19- deagosto
de- 608- Eestando aposentado dahi a legoa emea me
deraõ hũ escrito dopadre gaspardesamperez que ẽ hũ barco
dejeronimo dalbuquerque e cõ alguãs farinhas Emilho
1405 me hia buscar, no queemxer gueẏ a muita caridade sua
porque peraesteEffeito desfez huã roça emfarinha, Efretou
o barco Eempessoa semeteo nelle apostandose aviuer ou
morrer comigo, foi estehũ dia deresurreiçaõ perahũ
pobreque detãtas mortes andaua cercado, mandeilhelogo
1410 outro escrito, eao dia Seguinte mefui logo embarcar euiose a
prouidẽcia dedeos que os marinheiros naõ conheciaõ aterra e cuẏ
dando que estauaõ em hũ porto seacharaõ em outro, E che
garão ẽ o mesmo dia emque [eu]decaminho tãbẽ chegaua-.
Detiuemo nos neste porto-17- dias- ou-18- sempo der
1415 Sair comventos cõtrarios atequedia denossasenhora donacimẽto
nauegamos; naõ podeuir todaa gente no barco assẏ
pornaõ ser capaz como por naõ auertantos mãtimentos
porser muita a detença no porto; embarcamos somente
os dojbiapaba, porque os dojagoaribe os naõ matassem que
1420 São seus antigos contrarios, os demais separtiraõ porterra
deuagar, saõ por todos osque comigo uinhaõ-160- estando
perameembarcar medisseraõ que seaprestaraõ mais dousprῖ
cipaletes, seuierẽ chegaraõ a 200Almas; chegamos
ao rio grãde aondefomos recebidos com muita alegria
1425 do capitaõ mor Heronimo dalbuquerque, EAntonio ferreira
tenẽte Edos mais, E cõ muita caridade do padre domingos monteiro
E diogo nunes; ali medetiue algũs dias esperando
embarcaçaõ etempo ateque deos o deu٪ seja ellelouuado com
tudo etudo seja pera Sua hõra egloria; isto seme offereceo pera
1430 dar cõtaa vossa Paternidade em cuja bẽ çaõ meẽcomendo oje 26demarçode 608

Luis Figueira
96

1400 fl. 13r


Parti-me finalmente daquela aldeia, aos -19- de agosto
de- 608- e estando aposentado daí a légua e meia me
deram um escrito do padre Gaspar de Samperez que em um barco
de Jerônimo d’Albuquerque e com algumas farinhas e milho
1405 me ia buscar, no que enxerguei a muita caridade sua
porque para este efeito desfez uma roça em farinha, e fretou
o barco e em pessoa se meteu nele apostando-se a viver ou
morrer comigo, foi este um dia de ressurreição para um
pobre que de tantas mortes andava cercado, mandei-lhe logo
1410 outro escrito, e ao dia seguinte me fui logo embarcar e viu-se a
providência de Deus que os marinheiros não conheciam a terra e cui-
dando que estavam em hum porto se acharam em outro, e che-
garam em o mesmo dia em que [eu]de caminho também chegava.
Detivemo-nos neste porto -17- dias - ou-18- sem poder
1415 sair com ventos contrários até que dia de Nossa Senhora do Nascimento
navegamos; não pode vir toda a gente no barco assim
por não ser capaz como por não haver tantos mantimentos
por ser muita a detença no porto; embarcamos somente
os da Ibiapaba, porque os do Jaguaribe os não matassem que
1420 são seus antigos contrários, os demais se partiram por terra
devagar, são por todos os que comigo vinham-160- estando
para me embarcar me disseram que se aprestaram mais dois prin-
cipaletes, se vierem chegarão a 200 almas; chegamos
ao Rio Grande aonde fomos recebidos com muita alegria
1425 do capitão-mor Jerônimo d’Albuquerque, e Antonio Ferreira
tenente e dos mais, e com muita caridade do padre Domingos Monteiro
e Diogo Nunes; ali me detive alguns dias esperando
embarcação e tempo até que Deus o deu/ Seja Ele louvado com
tudo e tudo seja para sua honra e glória; isto se me ofereceu para
1430 dar conta a Vossa Paternidade em cuja benção me encomendo hoje 26 de março de 608.

Luís Figueira
97

3 ORGANIZAÇÃO DO GLOSSÁRIO

Este capítulo compõe-se de alguns conceitos sobre lexia e os seus tipos.


Descrevemos o programa computacional que utilizamos para o levantamento e coleta do
léxico, os critérios de seleção das lexias que compõem o glossário, apresentamos a
metodologia detalhada do glossário com suas macro e microestruturas e, por fim, o glossário
com suas 288 entradas dividas em lexias simples e compostas e lexias complexas as quais
estamos denominando de colocações.

3.1 Os tipos de lexias

Um glossário é composto por lexias. Lexia “é uma unidade lexical memorizada,


pertencente a uma categoria (forma do significado) ou a classes superiores”. (POTTIER,
1978, p. 268). O autor classifica as lexias em simples, compostas, complexas e textuais. A
lexia simples corresponde a uma palavra tradicional, por exemplo, cadeira. A lexia composta
resulta de uma integração semântica que se manifesta na forma agrupada de mais de uma
palavra, como cadeira de balanço. As lexias complexas são uma sequência em vias de
lexicalização e as lexias textuais são lexias complexas que alcançam nível de enunciado ou
texto como provérbios, charadas, tipos de preces etc. Neste trabalho, estamos adotando esta
classificação de Pottier, mas denominamos esse terceiro tipo de lexias – as lexias complexas -
de colocações.
Conforme Pavlína Školníková (2010) o termo colocação foi utilizado pela primeira
vez pelo linguista inglês J. R. Firth, em 1957. Vê-se que é um termo novo, mas já há muito
uso em se tratando dos estudos de fraseologias, pois as colocações constituem unidades
fraseológicas e são estudadas nesse campo da linguística, sobretudo, pelos linguísticas
espanhóis, dentre eles destaca-se Corpas Pastor (1996), que define as colocações como
sintagmas livres, com certo grau de fixação e determinadas pelo uso e se diferenciam,
portanto, das combinações livres de palavras. Seriam, pois, combinações fixas na norma e no
sistema.
Por outras palavras a colocação é uma combinação de dois compostos que podem
ser simples e/ou complexa. Um desses componentes se chama base e apresenta autonomia
semântica e o outro é o colocado ou colocativo, na terminologia da autora, que é um dado
98

novo. Segundo Corpas Pastor (1996, p. 26) “determina uma acepção especial, frequentemente
de caráter abstrato ou figurativo”2.
As colocações selecionadas em nosso trabalho aqui têm como componente uma base
verbal com autonomia complementada com um colocado. Um exemplo é o verbo chegar que
a ele se pode agregar diversos colocados que determinam locais diferentes, tempo diferente ou
outros sentidos e, assim por diante.
Desta forma estamos reconhecendo como colocações as lexias complexas, isto é, as
formadas por mais de duas palavras que segundo Tagnin (2005) são co-ocorrências léxico-
sintáticas, isto é, agrupamentos de palavras que “andam juntas”. Podemos dizer que são
palavras que se agrupam para designar uma coisa só. As colocações podem ser nominais -
formadas por dois substantivos; adjetivas – constituídas por um adjetivo e um substantivo;
colocações verbais – ocorrência de substantivo com verbo; e adverbiais - formadas por
advérbio mais adjetivo e adjetivo mais verbo.
As gramáticas atribuem um termo genérico para esse fenômeno e o denomina de
locuções adverbiais e locuções prepositivas. Bechara (1999, p. 289) chama de locução
adverbial “o grupo geralmente constituído de preposição + substantivo [...] que tem o valor e
emprego de advérbio”. Já as locuções prepositivas são grupos de palavras com valor de
preposição e são constituídas de advérbio ou locução adverbial + preposição. Como se ver,
esta classificação não tem a abrangência das colocações apresentadas acima, pois essas
abarcam um campo mais amplo de ocorrências de usos da língua, conforme classificação de
Corpas Pastor (1996) e Tagnin (2005).
Poderíamos tratar as colocações que encontramos no corpus pelo termo mais amplo
de fraseologia ou unidade fraseológica, mas dada a complexidade teórica que envolve essa
questão e alguns critérios de classificação, como a frequência, por exemplo, que elas não
atendem, pois algumas ocorrem apenas uma vez, preferimos a classificação específica de
colocações para as fórmulas que são constituídas em sua maioria por verbos + preposição +
complementos (substantivo), principalmente.

2
determina a eleição do colocativo [...] e seleciona neste determina la elección del colocativo […] y selecciona
en éste una acepción especial, frecuentemente de carácter abstracto o figurativo.
99

3.2 Processos metodológicos

Ditas estas fundamentações básicas, tratamos agora do processo metodológico do


glossário.

a) A primeira etapa dessa atividade diz respeito ao tratamento do texto manuscrito que
foi editado seguindo dois modelos filológicos: o diplomático-interpretativo e o
interpretativo com a grafia atualizada, conforme as normas vigentes atuais. Para as
entradas e abonações do glossário utilizamos o último modelo.
b) A coleta e escolha das lexias, deu-se por meio de um programa computacional da
Linguística de Corpus que permitiu selecionar e apresentar uma lista de todas as
palavras do texto. Trata-se do Programa AntConc.3 O arquivo contendo o texto
separado por fólios foi rodado no programa e apresentou uma lista de todas as
palavras que podem ser consultadas por ordem alfabética ou de frequência, indicando
o rank e a frequência de cada uma. O total obtido de Types é de 2865 e o de Tokens
152954. Esta lista pode ser visualizada por meio da ferramenta Word List que, ao ser
clicada, abre uma janela ao lado esquerdo da tela com três colunas, permitindo a
visualização conforme demonstração a seguir. Permite, ainda, ver as combinações
por meio da ferramenta Concordance que leva para o texto e mostra a visualização
do contexto de uso, possibilitando estabelecer quais palavras se agrupam em torno da
lexia selecionada e destacada em azul. Dessa forma, podemos perceber e selecionar
as colocações

3
ANTHONY, Laurence. AntConc. Versão 3.4.4w. Waseda (Japan): Waseda University, 2014. Disponível em:
<http://www.laurenceanthony.net/software/antconc/releases/AntConc344/AntConc.exe>;
<http://www.laurenceanthony.net/software.html>.
4
Tokens: ocorrência de todas as palavras do texto; types: ocorrência de palavras não repetidas.
100

IMAGEM 1 – Print da tela do Word List mostrando algumas


ocorrências

Fonte: Elaborado pelo autor.

c) O próximo passo foi retirar manualmente todos os nomes substantivos e adjetivos,


alguns verbos e alguns advérbios para formar outra lista extensa das ocorrências.
d) Alguns critérios de seleção das lexias para compor a macroestrutura do glossário são
os seguintes:
• Lexias que apresentam significação específica no texto e no contexto de uso do
século XVII, cujo significado, a nosso ver, não é claro hodiernamente, como os
exemplos: beber os ossos, beber o sangue, enovelarem os mortos, dar boas
aleluias, desfazer as roças, tujupares etc5.
• Lexias que não são mais usadas na língua atualmente e geram dificuldades de
entendimento, como ficar em talas, arreio, pedra de bazar, alicórnio, boceta de
flandre, encadarroado, dentre outras.
• Lexias que designam topônimos e antropônimos cujas definições se fazem
necessárias para explicitar informações muito específicas do Ceará, como rio
Aracategi, rio Jaguaribe, serra dos Corvos, serra da Ibiapaba, Abayara, Cobra
Azul, Diabo Grande, Algodão, Acajuy, Antônio Carajbpocu etc.

5
Estas palavras poderão ser de uso corrente na língua portuguesa, mas seu registro testado neste documento dá
um sentido muito específico.
101

• Lexias que podem perpassar concepções de caráter ideológico e juízo de valor,


por isso necessário explicitá-las, como feiticeiro, bárbaro, gentio, gentilidade,
tapuias e outras.
• Lexias que apresentam outro sentido ou variação regional como macaxeira,
mandioca, maniçoba brava, cabaço de água.
• Lexias muito específicas de um campo semântico como o religioso: alva, cálix,
breviário, farinha de hóstia, profeta Habacuc, Dia de São Barnabé.
• Lexias de origem tupi que apresentam sentido específico como: abaré, Caeté,
Nheengarayba, Querimbaba.

Desta forma, selecionamos lexias simples e compostas, além das complexas, a que
chamamos de colocações, cuja base é constituída por um verbo e seus complementos que
conferem o sentido do conjunto.
Todas as palavras selecionadas foram testadas várias vezes por meio da ferramenta
Concordance, para averiguarmos as combinações e estabelecermos se constituíam lexias
simples, compostas ou colocações. A seguir, mostramos a tela com a concordância da palavra
tapuias que ocorre 38 vezes no texto. Esta lexia é considerada simples.

IMAGEM 2 - Print da tela de Collocates com a palavra tapuias

Fonte: Elaborado pelo autor.


102

Feitos esses processos, elaboramos duas listas de lexias por ordem alfabética para
compor a nomenclatura do glossário, justificando ainda as escolhas pela necessidade de
explicitar melhor os sentidos do texto. Em uma lista constam as lexias simples e compostas no
total de 194 e a outras das complexas ou colocações, constituindo 94 entradas. Desta forma
chegamos a um total de 288 lexias selecionadas que compõem a macroestrutura do glossário.

e) A organização da nomenclatura ou macroestrutura está em ordem alfabética separada


por bloco das letras de A a V em ambas as listas. As entradas estão lematizadas na
forma do masculino ou feminino singular para os nomes substantivos e adjetivos, os
verbos em forma simples têm entrada lematizada no infinito; as colocações são
constituídas por uma base verbal que tem entrada no infinitivo. Apenas um advérbio
arreio consta na entrada e se encontra na forma invariável; há ainda um pronome
cuja entrada é na sua forma invariável.
f) A microestrutura se constitui da seguinte forma: entrada em negrito, seguida de
ponto, informação gramatical de forma abreviada também seguida de ponto, a saber:
sm., sf., adj., adv., pron.,v., col. sm. ant., sm. top., sf. top. (Respectivamente:
substantivo masculino, substantivo feminino, adjetivo, advérbio, pronome, verbo,
colocação, substantivo masculino antropônimo, substantivo masculino topônimo e
substantivo feminino topônimo). Após a entrada é atribuída uma definição, o
contexto de uso em itálico com a lexia destacada em negrito, as indicações de fólio e
de linha do corpus entre colchetes e algumas notas complementares quando
necessárias. Em algumas entradas transcrevemos mais de um contexto. As notas são
informações gerais que possibilitam profundar o significado das palavras ou
expressões (colocações) e fazer correlações e interpretações. Não ocorrem em todas
as entradas, mas quando julgamos necessário.

Podemos visualizar a estrutura abstrata da seguinte forma:

Entrada + informação gramatical + definição + contexto de uso ± notas explicativas

Para elaboração das definições, tomamos como base primeiramente o próprio texto
em análise, pois muitas ocorrências não são registradas em outras fontes; os dicionários
103

antigos da língua portuguesa, como Bluteau (1712), Viterbo (1865), Morais Silva (1813), e
dicionários mais recentes como Figueiredo (1939), Freire (1957), Machado (1967), Caldas
Aulete (1986), Ferreira (2000), dicionário de língua indígena e outros além de fontes
diversas como enciclopédias, livros de história e sites da internet que ajudam na compreensão
dos sentidos.

3.3 O glossário

3.3.1 Lexias simples e compostas

Abaré. sm. Nome que os índios davam aos padres.


Levanta-se de madrugada, e espertando todos começa a dizer: ide vós outros, ide e levai o
abaré que ele vos irá vender e distribuir a seus parentes e sereis todos escravos. (Fl. 11v, L.
1252-1255).
Nota: Abaré significa homem diferente do comum, logo, diferente dos indígenas, no contexto
usado aqui. Conforme Cunha (1999), os indígenas davam esta designação aos padres,
principalmente aos jesuítas. Barbosa (1951) registra abaré com o significado de padre. Dias
(1858, p. 5) apresenta Abarê Tucúra “nome que os indígenas davão aos frades de S. Antonio
por terem o capuz à similhança de um gafanhoto”. Abaré ou abarê está relacionado ao padre,
por ser uma pessoa diferente dos índios no seu modo de vestir.

Abayara. sf. top. Local na Ibiapaba onde foi sepultado o corpo do padre Francisco Pinto.
Depois que enterrei o padre ao pé daquela alta serra da Ibiapaba, em um lugar que
particularmente se chama Abayára, ao longo de um rio, dentro em um mato. (Fl. 9r. L. 986-
988)
Nota: Não se tem informação precisa sobre a localização exata desse topônimo. Alguns
consideram que seja o atual município de Ubajara pela aproximação fonética da palavra e pela
aproximação geográfica. Há quem reivindique para a cidade de Viçosa do Ceará, porém a
indicação do texto do padre Figueira aponta que o local era no pé da serra e Viçosa situa-se no
cume da serra. Pompeu Sobrinho (1967) levanta alguns questionamentos sobre essa temática
advertindo para a não certeza da localização. O autor questiona já haver esse topônimo no pé
da serra da Ibiapaba àquela altura dos anos seiscentistas e levanta a hipótese de ter sido criado
por Figueira por homenagear o amigo e deixar ali o seu corpo, já que Abayára significa o
104

homem hábil e capaz, o dominador, o homem superior. Diz Pompeu Sobrinho (1967, p. 146)
que “Teria sido, como se dissera: aqui está o homem superior, o virtuoso ser que dominava a
gentilidade destas brenhas”. Dias (1858) registra Abá iara senhor. Voltando à hipótese de
Pompeu Sobrinho, seria Francisco Pinto o senhor daquele lugar ou o homem diferente que ali
ficou plantado para sempre? O fato é que esse topônimo não existe atualmente na Ibiapaba. O
topônimo Abaiara que existe hoje no Ceará é uma cidade localizada no sul do estado, na
região do Cariri, muito distante do caminho percorrido pelos jesuítas no século XVII.

Acajuy. sm. ant. Índio chefe ou principal da aldeia localizada próxima à enseada do Pará ou
Paracuru.
Está esta enseada em altura de quatro graus e é de grandes pescarias; aqui achamos
aposentados os índios que proximamente tinham fugido aos portugueses, cujo principal se
chama Acajuí; um sobrinho do qual trazíamos em nossa companhia. (Fl. 2r, L.136-140).
Nota: Acajuy é citado no ponto da narrativa em que os missionários se deparam com o grupo
de índios fugitivos dos brancos que se encontravam próximo ao litoral, no local que ele
denomina de Pará que se aproxima da atual cidade de Paracuru, no litoral oeste do Ceará.

Alcaide. sm. Pessoa responsável pela guarda de uma pequena porção administrativa.
Pediram-nos estes que déssemos uma vara de nossa mão a um deles para que fosse alcaide
dos outros, e isto com tanta instância que nos venceu. (Fl. 7r, L. 733-735).
Nota: A palavra alcaide é da língua árabe e significa originariamente chefe de um castelo. O
cargo de alcaide era muito usado no período colonial, na administração portuguesa, em que o
monarca expedia uma provisão ou nomeação para esse cargo. Ao tempo de Figueira, não
havia colonização nem núcleo administrativo no Ceará, razão por que se torna estranha a
informação de o índio pedir o cargo de alcaide para comandar os demais, uma vez que já
havia o principal da aldeia. A informação de Figueira é que o principal daquela aldeia sugeriu
o próprio irmão, Diabo Ligeiro, para a função. Esse, no dia seguinte, saiu pela aldeia a pregar
e vigiar, assumindo as várias responsabilidades, como estão explicitadas no relatório do padre.

Aldeota. sf. Pequena aldeia.


O filho deste também se partiu comigo e quase toda aldeota. (Fl. 11v, L. 1284-1285).
Logo reparti um deles por toda a aldeota sem ficar pessoa que não tivesse seu quinhão com
que cobrei fama de liberal, que se estendeu por todo o sertão[...] (Fl. 9v, L.1054-1056).
Nota: A aldeota a que se refere Figueira situava-se no litoral oeste, sob o comando do seu
principal, Cobra Azul. O padre cita duas vezes a palavra aldeota para se referir a essa aldeia
105

para onde se retirou após a morte de Francisco Pinto. Ele se sentia muito inseguro ali e tinha
muito medo da reação do Cobra Azul que não era uma pessoa confiável e, algumas vezes, o
ameaçou de morte.

Alfaia. sf. Objeto de que os índios dispunham em suas lidas diárias como arco e flechas.
O modo de viver destes é andar sempre como as antigas seitas com sua casa movida e todas
suas riquezas e alfaias são seu arco e flechas com que buscam de comer. (Fl. 5r. L. 486-489).
Nota: A palavra alfaia em um sentido mais amplo designa um conjunto de objetos, “móvel,
ornato de concerto da casa” BLUTEAU, 1712, vol. I, p239. ), mas no contexto de uso limita-
se apena as armas dos índios.

Algodão. sm. ant. Índio chefe ou principal de uma aldeia.


Um principal dos quais se chama Algodão, o qual não podendo crer (como dizem, tanto bem
como os seus lhe certificavam, quis ir ao Ibiapaba a nos ver com o olho e ouvir as boas novas
de nossa boca. (Fl. 6r. L. 597-600).
Nota: Esse índio Algodão era o principal de uma aldeia cujos membros andavam dispersos
com medo dos brancos. Os padres o encontraram no início da jornada, no litoral leste. Os
índios andavam escondidos dos portugueses e a presença dos jesuítas, conforme discurso de
Figueira, alegrava aquele principal, pois seus parentes ficariam mais seguros.

Alicórnio. sm. Substância utilizada pelos jesuítas para a cura de ferimentos e mordedura de
cobras.
Todos estes trabalhos se nos remataram com um que nós muito mais sentimos, que foi
morrer-nos um índio mancebo, dentro em 15- ou -18- horas da mordedura de uma cobra.
Nem lhe aproveitou pedra de bazar, nem alicórnio, nem queimarmos-lhe a ferida. (Fl. 2v, L.
215-219).
Nota: Nenhum dicionário consultado registra a palavra alicórnio. O verbete é grafado como
licorne, palavra do gênero masculino, e é remetido para unicórnio. A definição dada pelos
dicionaristas refere-se sempre ao animal que tem um único chifre no meio da testa. Moraes
Silva (1813, p. 822) apresenta a seguinte definição UNICORNIO. sm “Animal que tem hum
só corno na testa”. É importante ressaltar que nos dicionários encontramos o gênero
masculino para LICORNE e UNICORNIO. No texto de Figueira encontramos a forma

[nem a licornio] que nos leva a interpretar que a letra <a> deve ser um
determinante feminino ou que se trata de uma palavra iniciada pela vogal <a> alicornio,
escrita separada, uma variação de licorne. Sobre o significado, Pompeu Sobrinho (1967,
p.126) refere-se da seguinte maneira sobre o tema “[...]. Não tendo bastante confiança no
106

êxito do bazar, os nossos jesuítas conduziam ainda outro antídoto, considerado infalível, o
licorne”. Explica o autor que esse antídoto era do chifre do unicórnio, um animal fantástico
que trazia na testa um longo corno com propriedades terapêuticas.

Alma. sf. Pessoa viva encarnada que habita um determinado espaço.


Os índios que aqui achamos seriam por todos -50- ou 60- almas. (Fl. 2r, L. 161).
[...] aonde dantes havia grandíssimo número de aldeias, agora serão por todos grandes e
pequenos, como oitocentas almas, as quais estavam em sete ou oito aldeotas. (Fl. 124,
L.1336-1338).
Nota: Registramos esta entrada por seu sentido diferenciar-se de alma na concepção de
espírito. A concepção da palavra alma está sendo empregada para designar quantidade de
pessoas.

Amazonas. sf. Entidades mitológicas que na concepção dos colonizadores europeus


habitavam o norte do Brasil, na região onde se situa o Rio Amazonas.
O rio a que chamamos das Amazonas, tem a boca debaixo da linha equinocial, e tem muitas
e grandes ilhas, as quais todas estão povoados das Amazonas, as quais Alazonas são
mulheres que não admitem consigo homens, senão em certo tempo para efeito de se
multiplicarem, e logo os lançam fora. E depois, parindo filhos machos, os comem e
conservam as fêmeas. São guerreiras, e caçadoras e engenhosas de mãos [...] (Fl. 1r, L. 39-
47).
Nota: A palavra amazona sofre variação para forma almazonas que aparece seis vezes no
texto, referindo-se a entidades cuja significação remete à mitologia grega, pois as Amazonas
para os gregos “são um povo de mulheres, descendentes do deus da guerra [...], onde os
homens não eram admitidos, a não ser uma vez por ano, quando as Amazonas se uniam aos
gargareanos, seus vizinhos. Das crianças que nasciam dessa união eram conservadas as
meninas, exercitadas nas lides guerreiras e na caça. Os meninos eram entregues aos pais ou
eram mortos. (GUIMARÃES, 1999). Percebe-se uma adaptação da mitologia grega para o
Brasil em que muitos casos são fantasiados com histórias ricas de mitos. Estas histórias eram
contadas aos padres pelos índios que iam ao norte do Brasil e as ouviam de seus parentes.

Alqueire. sm. Unidade de medir gêneros alimentícios, correspondendo a 180 litros.


Estes me trouxeram dois cabaços de farinha que teriam dois alqueires que chegaram ao
tempo em que nem frutos nem outra alguma coisa havia mais que algum peixe. (Fl. 9v. L.
1051-1054).
Nota: Palavra da língua árabe al-kail, utilizada como “antiga medida de capacidade, para
secos e líquidos. Terrenos, que leva um alqueire de semeadura...” (NIMER, 2005, p.115).
107

Conforme a Wikpédia6 o alqueire era uma medida nova que tinha acabado de ser importada
das regiões peninsulares, sob o domínio árabe, para o Condado portucalense. A primeira
referência explícita data de 1111; no entanto, é seguro que o sistema usado desde finais do
século XI já incluía um alqueire. Um alqueire de farinha ou de qualquer outro gênero agrícola,
que ainda é utilizado no sertão cearense, equivale a 180 litros. No interior do Ceará, esta
palavra é corrente no meio rural, usada pelos agricultores como unidade de medida para suas
culturas de feijão, milho, farinha e arroz à época da colheita.

Alva. sf. Vestimenta eclesiástica comprida e branca utilizada pelos presbíteros e diáconos
para presidir as celebrações.
[...] mas parece que os tapuias tornaram atrás a levar o que deixavam, porque só se achou a
casula, estola e manipulo e frontal, e os breviários. Levaram cálix, alva, cordão e o missal, e
a farinha das hóstias etc. (Fl. 9r, L. 980-982).
Nota: A alva é uma túnica fina, com gola quadrada não indo até o pescoço, geralmente tem
renda nas mangas e na parte de baixo.

Ameia. sf. Parede alta ou parapeito.


E corre esta serra toda assim de Norte a Sul, coisa de -25- ou mais léguas, fazendo um muro
de rochedo com suas como ameias naturais e por cima é terra cham e campina, e para parte
do poente tem muito pouca queda. (Fl. 3v, L. 309-313).
Nota: As ameias são construías no alto dos castelos para protegê-los. No olhar de Luís
Figueira, na Ibiapaba os paredões de pedra esculpidos pela própria natureza são ameias
naturais. Essas ameias constituem a paisagem da Ibiapaba que ainda hoje encanta a quem
visita o lugar.

Antônio Carajbpocu. sm. ant. Índio fiel e benfeitor dos missionários.


Finalmente se espalharam dois ou três nossos que ali iam, ficando só junto do padre um
esforçado índio e bem feitor dos padres chamado Antonio Carajbpocu, o qual o defendeu
enquanto pode até morrer por ele e com ele, ainda ficou com vida mas sem sentidos nem fala
e durou poucas horas. (Fl. 8r. Fl. 881-886).
Nota: Conforme Pompeu Sobrinho (1967), Antônio Carajbpocu era um índio pernambucano
que acompanhava a expedição. Era muito fiel e amigo dos padres, razão pela qual morreu
junto com o missionário. Seu nome seria caraíba pocu que passou por alteração semântica de
estranho e invasor para santo, homem batizado ou cristão. Pocu é um adjetivo que significa
alto, ou seja, homem catecúmeno de alta estatura. Cunha (1978) também apresenta o

6
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Alqueire>. Acesso em: 21 set. 2016.
108

significado de caraíba como coisa santa, consagrada, cristão, homem branco. Isso justifica
um nome cristão misturado com um nome tupi.

Aparelhar. v. Preparar-se para algo ou para fazer alguma coisa.


[...] e havia três anos que se não confessavam nem ouviam missa; logo os fizemos aparelhar
devagar, e confessar e comungar. (Fl. 4r, L. 350-353).
Deus te dará vida lhe respondi, mas aparelha-te tu para seres filho de Deus, porque nós não
sabemos da morte nem da vida. (Fl. 7v. L.777-779).
Amanheceu, finalmente o dia seguinte que havia de ser o último de minha estada.
Aparelhamo-nos para nós partirmos e mandei avisar para que ao outro dia pela manhã, nós
partiríamos. (Fl. 11v, L.1262-1265).
Nota: O verbo aparelhar é muito usado em todo o texto, aparecendo 17 vezes conjugado em
vários tempos verbais e com vários sentidos, como nos contextos acima. Destaca-se o sentido
religioso de preparar-se para os sacramentos ou para a morte. Mas também no sentido de
preparar-se para alguma coisa, como, por exemplo, para uma viagem.

Apartamento do mar. sm. Afastamento do litoral ou do mar que os jesuítas fizeram durante
a viagem para a Ibiapaba.
Este necessário apartamento do mar nos trouxe outras infinitas incomodidades e
dificuldades; que podendo nós chegar à serra da Ibiapaba em -15- ou-20 dias, gastamos dois
meses. (Fl. 2v, L. 181-184).
Nota: Desde a entrada no Ceará, na foz do Rio Jaguaribe, até a enseada do Paracuru, os
missionários e os índios de sua companhia caminharam pelo litoral, mas tiveram que adentrar
pelo sertão devido ao rigor do inverno. O percurso pelo interior foi doloroso e demorado com
muitos empecilhos, como narra Figueira.

Aposento. sm. Local onde se estabelece por um período.


E porque ele gostava com esta nova, contradizendo-lho eu, levanta-se furioso bradando,
espera, espera, espera e com estes brados de doido se saiu do meu aposento e não me falou
daí há muitos dias. (Fl. 10v. L. 1140-1143).

Arara. sf. Ave típica do Brasil de variados tamanhos e cores.


Contam infinidade de bichos dos que se domesticam como búgios e outros que cá não temos,
e muitos pássaros que se amansam, como canindés, araras de várias castas, e outros
semelhantes. (Fl. 1r. L. 27-30).
Nota: Uma descrição geral de arara pode ser dada, para melhor conhecimento do pássaro, por
Moraes Silva (1813, p. 171): “Ave do Brasil de bico revolto, e semelhante ao papagayo, com
pennas de varias cores; e mayor corpo”.
109

Arcabuz. sm. Arma de fogo antiga que tem a arca do cano mais larga que das espingardas.
Veio o principal chamado Mandiaré a nos ver e nos deu por novas haver lá muitos franceses
assim no Rio do Maranhão, como no Rio e Ilhas das Almazonas, e que tinham comércio com
elas de prata, a troco da qual lhe davam vestidos e ferramentas, e demais disso as ensinavam
a usar de arcabuzes. (Fl. 7v, L. 798-802).
Nota: A palavra arcabuz aparece uma vez no texto e está atrelada à prática dos europeus no
uso desse instrumento de fogo. No caso referido, os franceses estavam no Maranhão e,
segundo a narrativa dos índios, negociavam com as Amazonas o comércio de prata e as
ensinava a utilizar a arma de fogo em troca. Vê-se que a lenda das Amazonas ia longe entre os
nativos e os europeus.

Arco. sf. Instrumento de guerra ou de caça utilizado pelos indígenas.


Vinham estes pobres sem arcos nem flechas como fugitivos cativos. (Fl.1v, L.92-93).
Entrei logo em outra casa onde ele estava com outros, e um deles fazendo um arco. (Fl. 10r,
L.1084-1085)
Nota: Moraes Silva (1813, p.174) descreve o arco como uma “peça de madeira, marfim, ou
pontas de certos animáes, dotada de elasticidade, com uma corda de ponta a ponta, na qual se
embebe o cabo de setta, que puxamos embebido contra o nosso peito, com isso se curva o
arco, e solta a frecha, ao restitui-se o arco communica o seu impulso à corda, e esta à setta, de
que faz tiro”.

Arreio. adv. Sucessivamente.


E como andam muitos, raramente acham em um lugar de comer dois dias arreio, pelo que
quase infalivelmente andam cada dia umas duas léguas. (Fl. 5r, L.491-493).
Nota: O advérbio é grafado arreo, no texto de Figueira. Nos dicionários, a palavra apresenta
variação para arreio. O missionário relata o comportamento dos nativos da Ibiapaba de serem
andarilhos e não se fixarem em um ponto por muito tempo. Vivem se locomovendo com seus
poucos pertences, pois não encontram em um lugar o que comer dois dias sucessivos ou
arreo.

Banda do Maranhão. sf. Posição ou direção do Maranhão.


No fim de setembro de 607, apareceu um cometa para a banda do Maranhão a Loeste. (Fl.
7v, L.769-770).
110

Nota: A viagem dos missionários começou dia 2 de fevereiro de 1607, dia em que adentraram
ao Ceará. Em setembro, estavam na Ibiapaba, quando apareceu o cometa no céu, sendo visível
para o lado do Maranhão, ou seja, para o lado oeste do Ceará, no sentido do pôr-do-sol.
Provavelmente trata-se do cometa de Halley pela descrição que Figueira faz e pelas
informações contidas na Wikipédia7 “O cometa Halley é um cometa brilhante de período
intermediário que retorna às regiões interiores do Sistema Solar a cada 75,3 anos,
aproximadamente. [...] O cometa Halley foi o primeiro cometa a ser reconhecido como
periódico. Reparando que as características observáveis de um cometa em 1682 eram
praticamente as mesmas que as de dois cometas que tinham aparecido em 1531 (observado
por Petrus Apianus) e 1607 (observado por Johannes Kepler), Halley concluiu que todos os
três cometas eram na realidade o mesmo objeto que voltava de 76 em 76 anos (o período foi
entretanto corrigido para 75-76 anos)”.
A data da observação de Johannes Kepler em 1607 condiz com a data que Figueira descreve
quando vê no céu do Ceará um comenta de cauda longa.

Banda de leste. sf. Posição ou direção do leste ou nascente.


[...] apareceu um cometa para a banda do Maranhão a Loeste, o qual estendia uma mui
comprida cauda para a banda de Leste e durou muitos dias. (Fl. 7vr, L.769-771).
Nota: O corpo do cometa se posicionava para o oeste e a cauda se estendia para o lado leste
ou nascente. Os índios tinham medo de que o cometa queimasse o céu como também que
trouxesse mortes ou outros acontecimentos.

Bárbaro. sm. Ser humano classificado como rude, sem civilidade e sem política, oposto aos
padrões de civilização de uma cultura considerada superior.
Bendito seja o Senhor que permite que estes bárbaros sem o conhecer a ele conheçam e
honrem a seus servos só pelo serem. (Fl. 4v, L.436-438).
Aquela noite foi a demais medos e arreceios, porque como era a última e o coração da- quele
bárbaro estava tão azedado, quase que me persuadi que se atreveria a cometer alguma coisa.
(Fl. 11v, L.1266-1269).
Nota: A palavra bárbaro, ao longo da sua história, sempre foi apresentada com muito
preconceito, designando o ser humano que não se enquadra nos padrões de civilidade e de
cultura dominante. Desde os gregos e romanos, os bárbaros eram os povos que habitavam fora
dos limites daquelas culturas. Os bárbaros são retratados como guerreiros e rudes afeitos às
armas. No texto de Figueira, a palavra é registrada sete vezes, duas no singular e cinco no

7
Disponível em: <https://Pt.Wikipedia.Org/Wiki/Cometa_Halley>. Acesso em: 20 set. 2016.
111

plural, e em todas as ocorrências passa a mesma ideologia do homem violento e não


civilizado ao modelo europeu. Ora ele emprega no sentido amplo para se referir a qualquer
índio, mesmo os tabajaras, considerados amigos; ora para os tapuias, no sentido mais restrito
para se referir aos povos inimigos dos portugueses, conforme se observa nas duas acepções
dos contextos acima. As concepções expressas no texto de Figueira são perpassadas pela
ideologia do dominante, fato que não podemos censurar, mas não podemos deixar de marcar.

Belchior da Rosa. sm. ant. Índio aportuguesado que recebeu uma provisão de capitão, do
governador de Pernambuco, para liderar os outros índios.
Nota: Vemos como esse índio já era bem aculturado, pois não é mais registrado seu nome
nativo. Pela descrição de Figueira, era muito respeitado entre os seus e falava com autoridade,
pregava exaltando os padres e o seus serviços de evangelização, morreu confessado e com
todos os sacramentos, conforme a doutrina religiosa.

Bicho. sm. Nome genérico para designar um conjunto de animais de várias espécies.
O trato destes é em madeiras preciosas, e paus de tintas e pimenta, algodão, fio, redes,
pássaros, e bichos, e em particular, há grande fama que tem trato de prata com as
Almazonas que parece têm minas dela (Fl. 1v, L.54-57).
Nota: Esta forma é comum ser empregada na língua portuguesa vigente no Brasil, sobretudo,
no Ceará, no sentido genérico para se referir a qualquer animal ou até pessoa.

Bordão. sm. Vara ou bastão que serve de apoio ou de arrimo ao peregrino.


Logo pela manhã, rezávamos o itinerário e ladainhas de Nossa Senhora, e depois entre dia as
dos santos e com nossos bordões na mão e nossos livros de rezar, e nosso cabaço de água,
nós íamos caminhando. (Fl. 1v, L.103-106).
Nota: Em Bluteau (1712, p.190) encontra-se a seguinte definição: “bastão, vara a que alguém
se encosta, e arrima, para andar mais seguro”.
Os missionários, em seu despojado jeito de viajar, conduziam poucas coisas, além dos livros
de oração, o bordão ou bastão era necessário para enfrentar os perigos e a irregularidade dos
caminhos, pois o percurso era pelos matos e lamaçais.

Branco. sm. Nome genérico para designar os colonizadores portugueses que vieram em
expedição ao Ceará, anterior à missão dos jesuítas.
Alguns destes pobres tiveram vista de nós e cuidando serem os brancos, que iam para os
acabar, se esconderam e fugiram. (Fl. 2r, L. 117-119).
112

[...] se foram todos para o Maranhão com medo, dizendo que se os brancos tinham destruído
todos os moradores do Jaguaribe, sendo recebidos deles com paz, muito melhor os
destruiriam a eles que no princípio os receberam com guerra. (Fl. 4r, L. 358-362).
Nota: A palavra branco, no plural, é registrada 21 vezes no texto sempre se referindo aos
portugueses como os inimigos que espalharam o medo entre os nativos. Isso por causa da
ação de Pero Coelho de Sousa que, em 1603, ao adentrar o Ceará, aprisionou vários índios e
os levou para vender como cativos nos canaviais do litoral. Os índios que conseguiram fugir
andavam se escondendo nas matas e nas locas e sempre recordavam os brancos como os
inimigos. A vinda dos padres em 1607 foi uma forma de amenizar o conflito, eis porque eles
vieram sem nenhuma proteção militar, apenas os dois missionários e cerca de 60 índios para
serem devolvidos às terras de origem. Figueira, em seu relato, muitas vezes também fala dos
brancos demonstrando um certo distanciamento, não se incluindo, como se não fosse
português.

Brenha. sf. Local espesso e emaranhado em meio ao matagal onde é permitido esconderijo.
E um velho me veio visitar que me disse: quando hoje vinhas não te pude ir falar porque
estava chorando de alegria de ver agora, juntos por amor de ti, a estes meus parentes que até
agora andavam pelas covas e brenhas escondidos. (Fl.12r, L. 1312-1315).

Breviário. sm. Livro que contém o ofício divino, os cânticos, as orações e as preces que os
religiosos e sacerdotes devem rezar durante o dia.
À tarde, se ajuntou comigo mais gente, mandei ao dia seguinte corpo de mancebos a buscar
tudo; mas parece que os tapuias tornaram atrás a levar o que deixavam, porque só se achou
a casula, estola e manipulo e frontal, e os breviários. (Fl. 9r, L. 978-981).
Nota: Este livro de orações é muito usado nas casas de formação religiosa, como conventos e
seminários.

Boceta. sf. Pequena caixa de madeira, papelão ou flandre usada para guardar pequenos
objetos.
Fez-lhe sua prática por interprete, que era uma índia parenta de alguns dos nossos, escrava
sua havia muitos anos, recebeu o principal o que lhe mandávamos, e principalmente fez
muita festa a uma boceta de flandres que lhe mandamos cheia de fumo. (Fl. 5v, L. 545-549).
Nota: A palavra boceta é registrada em Bluteau (1712, p. 286) e em Moraes e Silva (1813, p.
286) e definida com a mesma acepção “caixa pequena de papelão, madeira, redonda, oblonga,
oval. Trazer alguma coisa em boceta; empapelada, guardada com cuidado, e mimo”.
Os padres conduziam esse tipo de caixa para presentear os índios com algum conteúdo, no
caso narrado, o fumo. Os índios eram apreciadores de fumo e uma das formas de agradá-los
113

era dar-lhes presentes de fumo. Ainda no século XIX, na obra D. Casmurro, Machado de
Assis registra várias vezes a palavra boceta no sentido de caixa. Atualmente o vocábulo sofre
restrição, que por analogia, cremos, passou a designar o órgão genital feminino. Esta palavra
parece não designar o diminutivo de bolsa. Segundo Machado (1967), vem de boça, do
francês antigo boce, e do moderno bosse, que tem origem obscura. Varia também para bossa.
Formaram os diminutivos bosset, bousset e boussette. De boce, na forma antiga, variou para
bocet, buocet e boucette, donde provavelmente vem a forma em português: boceta.

Bugio. sm. Espécie de macaco.


Contam infinidade de bichos dos que se domesticam como bugios e outros que cá não temos.
(Fl. 1r, L. 27-28).
Nota: Para Caldas Aulete (1986) os bugios são também denominados barbados, carajá ou
guariba. Os machos são de pêlo longo e preto e as fêmeas pardacentas. Observa-se no texto de
Figueira que são animais típicos do Brasil, desconhecidos em Portugal.

Buzina. sf. Instrumento musical utilizado pelos indígenas para tirar algum som em suas
festas.
Ao dia seguinte, nos veio o mesmo principal receber ao meio do caminho, meia légua da
aldeia, com todos os principais e algumas mulheres com seus presentes, e eles todos com
suas buzinas, gaitas e cascavéis que são seus instrumentos músicos. (Fl. 4v, L.421-424).

Cabaço. sm. Fruto da cabeceira, com formato de abóbora e miolo amargo.


[...] então veio com os outros e depois indo-se os outros, o fiz esperar apaziguando-o e
desculpando-me. Finalmente, ao dia seguinte, me mandou um presente de cabaços verdes.
(Fl. 10v, L.1131-1134).
Nota: Quando seco e cerrado ao meio, fazem-se duas cuias que servem para diversos fins. As
palavras cabaço e cabaça são registradas nos dicionários consultados designando coisas
diferentes ou a mesma coisa. Cabaça em Bluteau (1712, p. 204) e Moraes Silva (1803, p.309)
tem a mesma definição “especie de abóbora, que tem a figura de pèra”. “Cabaço s.m. o casco
da cabaça seco, e curado para guardar farinhas, líquidos”. (Bluteau, 1712, p. 204); Moraes
Silva (1813, p. 309). Em Caldas Aulete, (1986, p.292) “cabaça. sf. Fruto de uma planta da
família das cucurbitáceas, o qual tem aproximadamente a figura de uma pêra ou a de um 8,
cujos dois bojos são mais ou menos desiguais e separados por um colo mais ou menos
114

estreito; cuia; coité, porongo”. O dicionarista registra cabaço com entrada independente, mas
aponta para a mesma definição de cabaça. Ferreira (1999), registra as duas entradas e define
cabaço como o fruto da cabaceira e cabaça ele remete para porongo e cabaceiro-amargo.
No texto de Figueira aparece seis vezes a palavra, sempre usada no masculino. No Ceará, a
acepção para o fruto da cabaceira é a forma feminina. Podemos perceber que as formas são
variantes.

Cabaço de água. sm. Vasilhame utilizado para guardar água nas lidas do campo e nas
viagens.
[...] e depois entre dia as dos santos e com nossos bordões na mão e nossos livros de rezar, e
nosso cabaço de água, nós íamos caminhando. (Fl. 1v, Fl. 104-106).
Nota: A cabaça é um instrumento muito utilizado pelos agricultores para conduzirem água
para as roças porque ela mantém a temperatura ambiente do líquido quando embrulhada com
um pano molhado.

Cabaço de farinha. sf. Vasilhame utilizado para guardar gêneros alimentícios.


Estes me trouxeram dois cabaços de farinha que teriam dois alqueires que chegaram ao
tempo em que nem frutos nem outra alguma coisa havia mais que algum peixe. (Fl.9v,
L.1051-1054).
Nota: É costume dos sertanejos utilizar a cabaça para guardar os produtos alimentícios
produzidos na roça. Tal hábito ainda sobrevive em regiões rurais do interior do Ceará e do
Nordeste. A grande quantidade de farinha conduzida em duas cabaças é estranha, o que leva a
pensarmos em cabaças muito grandes e pesadas a serem transportados dois alqueires de
farinha. No entanto, podemos pensar, também, que um alqueire não correspondia à mesma
quantidade de hoje.

Cachagens. sf. Parte óssea aberta do nariz que dá passagem ao ar de nossa respiração.
[...] outros lhe deram tantas pancadas com um pau na cabeça que lha fizeram pedaço,
quebrando-lhe os queixos e amassando-lhe os cachagens e olhos. (Fls. 8r e 8v, L. 889-891).
Nota: A palavra cachagens é feminina e usada no plural, embora Figueira tenha usado no
masculino. O excerto acima trata da narrativa da morte do padre Francisco Pinto que teve o
crânio quebrado, logo, as fossas nasais foram amassadas.

Caeté. sm. Mato alto ou verdadeiro.


Este desejava muito de vir comigo para o Caeté, e procurou com muitas veras de trazer o pai
e todos os seus parentes. (FL. 11r, L. 1217-1219).
115

E vós outros que viestes com ele do Caeté, agora passareis de largo por defronte de vossas
casas, e com saudades desejareis de chegar a elas, mas debalde porque ireis para onde vos
ele vender. (Fl. 11v, L. 1255-1258).
Nota: Segundo Caldas Aulete (1986), a palavra caeté significa, na língua tupi-guarani, mata
virgem ou mato espinhoso. Ferreira (1999) registra como etnônimo para designar indivíduo
dos caetés, que era um povo indígena do tronco tupi que habitava a costa da Paraíba,
Pernambuco e Alagoas. As duas ocorrências da palavra no texto parecem relacionar-se a
algum lugar de onde se vai ou se vem, mas não fica claro se é um topônimo, pois não há
outras referências a possível aldeia com esse nome. Usada no singular, indica lugar de mato
grande, floresta alta. Para Pompeu Sobrinho (1967) o nome caeté vem da alteração de caa,
mato, vegetação e eté, sufixo de reforço aumentativo que significa verdadeiro. A palavra,
quando usada no plural, refere-se a um povo indígena que foi extinto.

Cálix. sm. Objeto litúrgico usado nas celebrações eucarísticas para consagrar o vinho.
Levaram cálix, alva, cordão e o missal, e a farinha das hóstias etc., coisa que me deu grande
pena deixarem-me sem missa e sem sacramento naquele desterro. (Fl. 9r, 982-984).

Carapuça de rebuço. sf. Peça de pano, meia ou couro utilizada para cobrir a cabeça.
Estes que vieram do Maranhão nos contaram como a ida para lá vestiram uma roupeta
comprida a um dos seus, e puseram-lhe uma carapuça de rebuço, fingindo com isto e dizendo
aos tapuias que aquele era abaré. (Fl. 5r, L. 471-474).
Nota: Bluteau e Moraes Silva apresentam a mesma definição para carapuça e colocam na
mesma entrada a lexia composta carapuça de rebuço, como uma espécie de carapuça que tem
abas sobre os olhos. “As carapuças de rebuço tem aba, que cai sobre os olhos, e outras, que
fechão por baixo do nariz de forte, que he difícil conhecer quem a leva” Bluteau (1712, p.
232). A lexia rebuço tem entrada também em Moraes Silva (1813, p. 56) e designa um “traste
de cobrir o rosto ou parte”. Figueira narra que na tentativa de estabelecer um contato com os
tapuias, um dos índios tabajara vestiu-se de padre ou abaré, colocando uma roupeta e uma
carapuça de rebuço para não ser reconhecido como índio, ou seja, usou uma máscara para
disfarçar-se de padre.

Canastra. sf. Espécie de caixa ou cesta larga e chata tecida de madeira ou outra matéria.
E já nós tínhamos notícia desta sua cobiça insaciável que é tal, que vendo canastra ou caixa,
a hão de revolver e buscar tudo, e tomar o que lhe parecer. (Fl. 5r, L. 515-517).
116

Nota: Bluteau (1712, p.224) registra a palavra e define como uma “especie de caixa tecida de
varetas, e aparas de hum páo flexível, com tampa do mesmo chata. Destas algumas sáo
encoiradas de pelle de cabelo”.

Canindé. sm. Espécie de arara.


Contam infinidade de bichos dos que se domesticam como búgios e outros que cá não temos,
e muitos pássaros que se amansam, como canindés, araras de várias castas, e outros
semelhantes. (Fl. 1r, L.27-30).
Nota: Nogueira (1887) faz uma citação de Ferdinand Diniz que descreve com beleza as araras
canindés. Essas aves têm asas púrpuras, têm um grito sonoro que vibra na solidão quando
ouvem algum ruído desusado em torno de seus ninhos. Quando os raios do sol reverberam
sobre suas penas, fazem um resplendor de púrpura e azul.

Capa. sf. Farsa ou forma de esconder uma verdade.


[...] e daí a alguns dias se me escusou de me não visitar, dizendo que eu não sabia ainda bem
a sua língua e com esta capa se deu por bem coberto. (Fl. 10v, L. 1150-1153).
Nota: O índio Cobra Azul cria uma situação e depois se justifica, ou seja, esconde-se ou se
cobre com uma capa, farsa ou desculpa. Usa de falsidade.

Capitão-mor. sm. Governador de uma capitania no período colonial brasileiro.


Chegamos ao Rio Grande, aonde fomos recebidos com muita alegria do capitão-mor
Jerônimo d’Albuquerque (Fl. 13r, L. 1425-1427).
Nota: Os capitães-mores eram escolhidos pelos conselheiros do rei em uma lista de vários
nomes. Quando selecionados e nomeados pelo rei, governavam por um período de três anos.
Eram os chefes supremos das capitanias, porém subordinados à coroa. Nas capitanias mais
importantes eles eram denominados de capitães-generais, nas subalternas, simplesmente
capitães-mores. Sua função era essencialmente militar. (PRADO JÚNIOR, 1999).

Capitão dos índios. sm. Titulação recebida pelo índio que se destacou pelos serviços
prestados à coroa portuguesa.
Primeiramente tivemos uma grande perda, e foi morrer-nos aqui o principal de nossa gente
chamado Belchior da Rosa, capitão dos índios de Pernambuco por provisões dos
governadores pelos serviços que tinha feitos com sua gente. (Fl. 6r, L. 612-615).
Nota: Esse índio chamava-se Belchior da Rosa, e recebeu uma provisão de capitão, do
governador de Pernambuco, para capitanear os índios.
117

Cararijus. sm. Tribo de índios do grupo dos tapuias.


Daqui seriam como -15- ou -20- léguas à terra dos tapuias chamados cararijus pelo quais
queríamos passar e lhe tínhamos já por duas vezes mandado recados e presentes. (Fl. 8r, L.
333-335).
Nota: Pompeu Sobrinho (1967) apresenta várias tribos tapuias que habitavam em torno da
serra da Ibiapaba, como os Rerius, na Meruoca, os Quiratius ou Caratius, ao sul e sudeste, os
Aconguacus no norte e nordeste, os Teremembés, no litoral, os Quixarius, no sertão dos
Inhamuns. A tribo Carariju também era denominada por alguns cronistas como Tocariju.
Vale ressalta r que desses apenas há remanescente dos tremembés no litoral oeste do Ceará,
sobretudo no município de Itarema.

Caracóis d’água. sm. Moluscos que têm conchas globulosas contornadas em espiral e vivem
em lagoas e brejos.
[...] estávamos um dia assentados e bem cansados, o padre e eu, comendo uns caracóis
d’água que nós mesmos tínhamos apanhado, metendo-nos pelos charcos. (Fl. 3r, L. 272-274).
Nota: Os caracóis foram apanhados nos charcos ao meio do caminho e serviam de alimentos
para os padres em situações muito adversas em que se encontravam.

Casais. sm. Junção de um homem e uma mulher responsáveis por um núcleo familiar.
E nesta serra tinham ficado sós duas aldeotas, uma das quais é esta a que primeiro chegamos
por estar mais perto do mar e teria vinte casais e a outra alguns-50- ou sessenta. (Fl. 4r, L.
366-369).
Nota: Essa é uma forma de relacionar o número de famílias de uma aldeia, ou seja, cada casal
compõe uma família. Dizer que são 50 casais é dizer que são 50 famílias, mas o número de
membros de cada família varia, não sendo possível saber quantas pessoas ao todo habitavam a
aldeia. Quando os padres chegaram à serra da Ibiapaba, se hospedaram em uma aldeia com
vinte casais, logo mudaram-se para outra com cinquenta ou setenta casais. Apenas estas duas
aldeias são referidas na Ibiapaba, visto que muito índios haviam fugido para o Maranhão
dadas as investidas de Pero Coelho de Sousa.

Cascavéis. sf. Guizos que produzem som quando são agitados por força exterior.
Era das que tem na cauda uns cascavéis, e ela que usava de manha, porque passando por
pedras, levantava a cauda para que não soassem os cascavéis. (Fl. 3r, L. 280-282).
Nota: A palavra cascavéis no texto de Figueira refere-se sempre ao guizo ou chocalho que
uma espécie de cobra tem no final da cauda, os guizos ou cascavéis. Essa espécie de cobra é
conhecida ainda hoje com o nome de cobra cascavel e é muito venenosa. Segundo Caudas
118

Aulete (1986), a cobra cascavel habita as Américas e, no Brasil, também lhe chamam
boicininga e maracá.

Casta. sf. Membro de uma mesma geração, família ou grupo.


[...] e finalmente na Ibiapaba, indo um índio gentio para a aldeia onde nós estávamos, um
dia, antes de chegar, o mordeu outra cobra da mesma casta que cá são as mais ordinárias e
muitas em quantidade [...] (Fl. 3v, L. 288-291).

Casula. sf. Vestimenta eclesiástica usada nas celebrações colocada sobre a túnica ou alva.
[...] mas parece que os tapuias tornaram atrás a levar o que deixavam, porque só se achou a
casula, estola e manipulo e frontal, e os breviários. (Fl. 9r, L.980-982).

Choupana. sf. Casa rústica feita de qualquer material.


Gastamos neste caminho onze dias, indo sempre diante o Diabo Ligeiro agasalhando-nos, e
assinalando-nos lugar para nossas choupanas ou tujupares. (Fl. 4r, L.391-393).

Choupana de palma. sf. Casa rústica feita de ramos da palmeira ou palma.


[...] logo nesse comenos nos fizeram uma choupana de palma que já tinham colhida por
terem notícia de nossa vinda. (Fl. 2r, L. 149-151)

Catecúmeno. s.m. Pessoa que é introduzida nos princípios da doutrina católica para se
preparar e receber os sacramentos.
Nisto me disseram que ficava lá em um mato um índio o qual vivia ainda, mas que estava
morrendo, e por que este era ainda catecúmeno, temendo que morrendo no caminho sem
batismo, se o mandasse buscar porque estava longe. (Fl. 8v, L. 938-941).
Nota: O catecumenato “é um tempo de preparação para admissão na comunidade eclesial por
meio dos sacramentos da iniciação do batismo, da crisma e eucaristia”. (URBAN e BEXTEN,
2013, p.58). O índio que morreu e foi sepultado com Francisco Pinto estava no processo de
preparação para o batismo e outros sacramentos.

Catre. sm. Móvel feito de madeira no formato de cama para dormir a sesta.
Ainda que não há pau de brasil, há outros paus assim de tintas como para catres, mesas etc.
(Fl. 1r, L. 30-31).
119

Choça. sf. Casa rústica feita de ramos de árvores.


Eu também me fui para o mar que estava daí uma légua, como já dantes tinha determinado,
com os moços que me acompanhavam, aonde fiz uma choça e estive vinte e tantos dias
comendo do peixe que todos pescávamos. (Fl. 10v, L. 1145-1148).
Nota: Após a morte de Francisco Pinto, Luís Figueira se retirou para o litoral, construindo ali
um pequeno abrigo. Como ele diz, era uma légua de distância. Não se tem a exatidão do local
da aldeia na serra nem do litoral, mas tudo leva a crer que a aldeia ficasse próxima da atual
cidade de Viçosa do Ceará e a do litoral, próximo a Camocim, devido à informação dada, pois
seria a parte mais próxima entre a serra e o litoral.

Cobra azul. sm. ant. Índio chefe ou principal de uma aldeia que se situava no litoral do
Ceará.
[...] e também os mandamos cometer a outro índio do mar, chamado Cobra Azul, para se
fazer também amigo destes mesmos da Ibiapaba [...] (Fl. 5v, L. 538-540).
Este negro Cobra Azul é grande feiticeiro, e valentão donde lhe nasce ser soberbíssimo e
falar sempre com grande arrogância no tempo que eu estava na roça [...] (Fl. 10r, L.1078-
1010).
Nota: Figueira tinha muita desconfiança no Cobra Azul e, durante todo o período em que
ficou em sua aldeia, reclama de medo de um assalto ou de assassinato. A concepção que ele
tem daquele chefe é muito negativa, isso é exposto ao longo da narrativa.

Cobra azul o moço. sm. ant. Índio jovem filho do chefe Cobra Azul.
Esta foi a pregação do Cobra Azul o moço, e logo pela manhã se foi ter comigo, a me referir
o que tinha dito[...] (Fl.11r, L. 1235-1236).
Nota: O filho de Cobra Azul era amigo de Figueira e com ele partiu para Pernambuco,
deixando o pai e a aldeia.

Cobra verdadeira. sf. Cobra conhecida pelos índios como muito peçonhenta e perigosa que
são as cascavéis ou boiciningas.
E por serem estas cobras tão peçonhentas, lhe chamam estes índios cobras verdadeiras,
como se as outras o não fossem. (Fl. 3v, L. 293-295).
Nota: Há várias passagens em que é abordado o episódio das cobras cascavéis que atacavam e
matavam os índios. Eram as mais temidas, por isso lhe chamavam cobras verdadeiras, como
se admira Figueira.
120

Cofo. sm. Cesto oblongo de boca estreita.


A nova, pois, que trouxeram os da Ibiapaba foi que passando dois índios pelo caminho, junto
da sepultura do padre Pinto que Deus tem, lhe aparecera o padre vestido em sua roupeta
preta, seu chapéu e sua rede às costas e um cofo de farinha e um grande cão de caça. (Fl.
11r, L. 1183-1187).
Nota: A palavra do árabe quffâ e denomina também um tipo de escudo. Está sendo
empregada no texto com o sentido de cesto ou vasilhame.

Comarca do Maranhão. sf. Divisão político-administrativa que pertence a jurisdição da


capitania do Maranhão.
Em toda esta região e comarca do Maranhão, aonde há inumeráveis almas e muitas castas
de gentio, não há grandes serras, mas tudo ordinariamente são terras rasas. (Fl. 1r, L. 18-
21).
Nota: No período colonial, as comarcas eram instaladas nas principais vilas de uma capitania,
como sedes administrativas, e eram conhecidas como cabeça de comarca, onde se instalavam
os órgãos públicos e onde se estabeleciam os ouvidores que administravam a justiça.
Luís Figueira, em seu texto, descreve o território e a vegetação da comarca do Maranhão que
entendemos tratar-se da capitania que se confunde com comarca. As informações que ele
repassa devem ter sido obtidas de outros viajantes ou dos índios, pois Figueira e Francisco
Pinto não conseguiram adentrar o território do Maranhão. Era conhecido como Maranhão
todo o norte do Brasil e não somente o atual estado.

Cordão. sm. Peça litúrgica de pano, geralmente, de cor branca, utilizada para cingir a alva
pela cintura do sacerdote.
Levaram cálix, alva, cordão e o missal, e a farinha das hóstias etc., coisa que me deu grande
pena deixarem-me sem missa e sem sacramento naquele desterro, seja o Senhor contudo
louvado para sempre. (Fl. 9r, L. 982-985).
Nota: Esta peça é também denominada de cíngulo, do latim cingulum, que significa cintura ou
cinto, pela função de cingir a cintura do sacerdote. No documento em análise não foi
encontrada a forma cíngulo.

Corpo de mancebos. sm. Grupo de índios jovens e amigos que ajudavam o padre Figueira na
aldeia.
À tarde, se ajuntou comigo mais gente, mandei ao dia seguinte corpo de mancebos a buscar
tudo; mas parece que os tapuias tornaram atrás a levar o que deixavam [...]. (Fl. 9r, L. 978-
981)
121

Cueiro. sm. Peça de tecido fino utilizada para envolver as crianças, principalmente na parte
posterior do corpo, em substituição a fraldas.
Passado o dia da festa, despedimos a índia bem acompanhada, dando-lhe um cueiro para
ela, e mandando ao principal um espelho, e um machado. (Fl. 5v, L. 578-580).
Nota: Esta peça é também usada para envolver a cabeça de pessoas adultas, principalmente
das mulheres, para proteger contra o sol e a poeira. Quando amarrada à cabeça, forma uma
espécie de touca.

Cuidar. v. Pensar, imaginar.


[...] e foi que ao nosso recado não se abalaram mais que os quatro, cuidando os outros que
era ficção dos brancos para os haverem às mãos por meio de seus mesmos parentes. (Fl. 1v,
L. 81-84).
Nota: O verbo cuidar era usado no português arcaico no sentido de pensar. No texto de
Figueira também tem esta acepção. Os índios, ao receberem um recado dos missionários, não
atenderam, cuidando ou pensando ser uma emboscada dos brancos, uma vez que já haviam
sido escravizados por eles.

Daniel. sm. ant. Profeta bíblico do Antigo Testamento que viveu na Babilônia e tendo sido
preso numa cova de leões, foi socorrido por Habacuc que guiado por um anjo lhe levou
alimento.
[...] senão quando chegam dois mancebos com uma pouca de farinha de milho em um cocho
que para nós foram como o profeta Habacuc quando guiado do Anjo levou o comer a Daniel.
(Fl. 4r, L.404-407).
Nota: Vê-se a comparação que Figueira faz de sua situação em que ele e Francisco Pinto
estavam com muita fome na serra da Ibiapaba, quando foi socorrido por dois índios que lhe
trouxeram alimentos. A intertextualidade é muito constante em Figueira, aqui ele relembra o
profeta Daniel que estava preso na Babilônia porque havia matado um dragão que os
babilônios veneravam. A atitude de Daniel foi para mostrar sua fé em Deus que jamais
abandonaria os seus. Na verdade, mais uma vez Deus enviou um anjo que conduziu Habacuc
até a cova de Daniel levando alimento. A narrativa do profeta encontra-se no livro de Daniel
capítulo 14, último do livro.
122

Deserto. sm. Lugar despovoado, solitário.


Era isto Domingo de Ramos, em o qual depois de os benzermos em aquele deserto, nós
partimos [...] (Fl. 2v, L.221-223).
Nota: A palavra deserto não está sendo empregado no sentido que comumente se conhece,
lugar árido repleto de areia e sem vida, mas no sentido de despovoado, já que não havia ainda
colonização no Ceará no início do século XVII.

Desterro. sm. Estado de exílio e distanciamento da terra natal, dos familiares e amigos.
[...] coisa que me deu grande pena deixarem-me sem missa e sem sacramento naquele
desterro, seja o Senhor contudo louvado para sempre. (Fl. 9r, L. 983-985).

Dia de Nossa Senhora do Nascimento. sm. Dia 08 de setembro, quando a Igreja celebra o
nascimento de Maria, a mãe de Jesus.
Detivemo-nos neste porto -17- dias - ou-18- sem poder sair com ventos contrários, até que
dia de Nossa Senhora do Nascimento, navegamos. (Fl. 13r, L. 1418-1420).
Nota: O nascimento de Maria foi a preparação para a encarnação de Jesus, como dizem os
doutores da igreja. “Na realidade o maravilhoso neste nascimento não está no que narram com
generosidade de detalhes e com ingenuidade os apócrifos, mas antes no passo significativo à
frente que Deus dá na atuação do seu eterno desígnio de amor”. (SGARBOSA e
GIOVANNINI, 2014, p.269).

Dia de Nossa Senhora das Candeias. sm. Dia 02 de fevereiro, consagrado à Nossa Senhora
das Candeias.
[...] nós partimos do Jaguaribe, dia de Nossa Senhora das Candeias, 2º de fevereiro, depois
de dizermos missa e comungarem alguns dos nossos. (Fl. 1v, L.98-100).
Nota: O termo apresenta variações Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Luz ou
Candelária. Significa a apresentação do Menino Jesus no templo e a purificação de Nossa
Senhora, quarenta dias após o nascimento de Jesus. Conforme Sgarbossa e Giovannini (2014),
esta festa remonta ao século IV, e era chamada festa da Purificação de Nossa Senhora, quando
Maria se apresentou no templo para cumprir a lei da purificação quarenta dias após o parto. A
partir de 1960 com a reforma na liturgia passou a chamar-se Festa da Apresentação do
Senhor. Figueira atribui em seu texto o dia de Nossa Senhora das Candeias. Vale ressaltar na
religião afro-brasileira comemora-se nesse dia Yemanjá.
123

Dia de São Barnabé. sm. Dia 11 de junho consagrado a Barnabé ou José, o levita, natural de
Chipre, que foi considerado apóstolo por alguns, embora não pertencesse aos doze.
Respondeu que sim com grande alegria e que queria ir para o céu, e logo mostrando uns
efeitos de predestinado, recebeu o santo batismo ao dia seguinte, e por ser em dia de São
Barnabé lhe pusemos o seu nome e com ele se foi para a glória. (Fl.6v, L.654-657).
Nota: Vê-se como a missão dos padres ia impondo a religião católica aos nativos, substituindo
o nome do pequeno índio pelo nome do santo.
São Barnabé era contemporâneo de Paulo de Tarso, no princípio do cristianismo, tendo sido
martirizado por apedrejamento mais ou menos pelo ano 70, pelos judeus da diáspora.

Diabo grande. sm.ant. Índio principal de uma aldeia situada na serra da Ibiapaba.
O principal daquela aldeia chamado o Diabo Grande nos mandou um irmão seu por nome o
Diabo Ligeiro com outros índios que nos levassem para sua aldeia. (Fl. 4r, L.380-382).
Nota: O nome Diabo Grande em tupi é Jurupariaçu. Jurupari significa demônio ou anjo mal
ou espécie de macaco, assim é registrado em Dias (1858). Juru significa boca, açu é sufixo
aumentativo. Conforme Pompeu Sobrinho (1967), Figueira atribui o sentido de um verdadeiro
diabo, talvez por apresentar algumas características físicas ou psicológicas que lembrassem
um ser sobrenatural.Vale ressaltar que embora com uma acepção que lembra algo ruim, Diabo
Grande teve atitudes muito humanas e acolhedoras com os jesuítas, recebendo-os em sua
aldeia, mandando alimentos e redes para serem conduzidos, fazendo festas e lamentações nos
momentos oportunos.

Diabo ligeiro. sm. ant. Índio que habitava uma aldeia na serra da Ibiapaba, irmão do principal
dela.
Este Diabo Ligeiro (que é um índio mui bem disposto e em seu falar grandioso, e arrogante),
nos fez todos os cumprimentos significando-nos os desejos de seu irmão e mostrando os seus
de nos ver em sua aldeia. (Fl. 4r, L. 382-385).
Nota: A palavra que designa Diabo Ligeiro é Jurupari. Juru boca e pari fechada.

Diabrete. sm. Jogo de cartas próprio para criança.


E nós a fizemos deter, oito ou nove dias - por esperar pela festa da Assunção de Nossa
Senhora em que tínhamos para fazer uma procissão com uma dança de meninos destes
gentios e hum diabrete etc. (Fl. 5v, L.578-561).
Nota: A palavra diabrete além da acepção primeira nos dicionários, que significa diabo
pequeno ou forma carinhosa de designar uma pessoa danada, não parece ser este o sentido
expresso no texto de Figueira. Não fica claro o que seria o diabrete, mas parece referir-se,
124

pelo contexto, a uma brincadeira para crianças. Freire (1957) e Caldas Aulete (1986)
registram a acepção de diabrete como uma espécie de jogo para criança em que todas as cartas
do baralho, menos uma que previamente se separa, são distribuídas por um número de
pessoas. Os jogadores as emparelham agrupando por figuras ou pontos iguais. Perde o jogo
quem se achar com uma só carta que é igual à que foi separada.

Ditosa morte. sf. Morte feliz, vitoriosa por ter cumprido uma missão.
Aqui se remataram e coroaram tantos trabalhos passados do santo padre com esta ditosa
morte, cujo intento era fazer muitas igrejas no sertão do Maranhão. (Fl. 9r, L. 958-960).
Nota: Luís Figueira faz uma grande reflexão sobre a morte do amigo, padre Francisco Pinto,
por ter cumprido uma missão, pela abnegação e entrega total à causa do evangelho, por isso
sua morte em situação tão adversa, foi para o amigo, muito valorosa.

Divina bondade. sf. Proteção de Deus.


Não lhe agradeço a ele não me matar, que boa vontade me mostrou, mas agradeço a divina
bondade que me livrou dos selvagens tapuias. (Fl. 11v, L.1279-1281).
Nota: Figueira se reporta a esta divina bondade de Deus de o proteger de tantos males e
medos em sua missão.

Domingo de Ramos. sm. Domingo antes da Páscoa e início da Semana Santa que lembra o
dia em que Jesus entra em Jerusalém, aclamado pelo povo como o Messias esperado.
Era isto Domingo de Ramos, em o qual depois de os benzermos em aquele deserto, nós
partimos[...] (Fl. 2v, L.221-223).
Nota: No Domingo de Ramos do ano de 1607, os missionários encontravam-se na Serra de
Uruburetama, atravessando as montanhas, como narra Figueira. Essa informação é importante
para se estabelecer o percurso feito pelos missionários. A Páscoa foi celebrada quando eles
desceram a serra e transpuseram o rio Aracatiaçu ou Aracategi, após uma semana de
caminhada.

Embaixador. sm. Pessoa que representa uma autoridade com uma missão específica.
[...] porém encomendando sempre tudo a Nosso Senhor e pedindo-lhe nos abrisse o caminho,
tornamos a mandar lá a 2ª. Vez. Indo por embaixador o soldado de nossa obrigação que fora
conosco do Rio Grande [...] (Fl. 5r, L.524-527).
125

Nota: Vê-se que o soldado que foi enviado a falar com os tapuias no Maranhão era um índio,
que representou os missionários.

Empresa. sf. Empreendimento a que se investe para conseguir algum resultado.


Partimos, pois para esta empresa o padre Francisco Pinto e eu, de Pernambuco, por mar até
o rio chamado Jaguaribe, que são 120 - ou -130 léguas. (Fl. 1v, L.62-64)

Encadarroado. adj. Encatarrado, falar com a garganta embargada com catarro.


Passei-lhe pela porta e da rua o saudei, e ele encadarroado de dentro me respondeu: vai-te
embora. (Fl. 11v, L.1277-1279).
Nota: O adjetivo encadarroado não é mais registrado nos dicionários atuais da língua
portuguesa, encontra-se em Morais Silva (1813).

Engenhosas de mão. adj. capacitadas ou dotadas de agilidades para fazer as coisas com as
mãos.
São guerreiras, e caçadoras e engenhosas de mãos, para fazerem redes muito lavradas, e
também seus arcos todos são pintados; assim elas como o mais gentio usam todos a mesma
língua comum do Brasil. [...]. (Fl. 1r, L. 46-48).
Nota: Figueira descreve as Amazonas, entidades mitológicas que segundo a narrativa
habitavam a região amazônica e são mulheres aptas a fazer as coisas.

Enterrar. v. Sepultar. Fazer o sepultamento dos mortos.


Têm também por costume, quando os seus morrem, se são homens, as mulheres lhe comem a
carne, e os ossos moídos lhos bebem para que não tenham saudades daqueles que metem nas
entranhas, tendo-se por mais pios nesta impiedade, que os que enterram os mortos,
apartando-os de si de todo o que é causa das saudades. (Fl. 5r, L.482-486).

Enterramento. sm. Sepultamento, cerimônia fúnebre de alguém.


Para o enterramento se ajuntaram todos assim os nossos como os outros todos com suas
candeias acesas, o trouxemos em procissão à igrejinha em que dizíamos missa, em um esquife
que lhe tínhamos mandado fazer [...] (Fl. 6r, L. 631-634).
Nota: Figueira narra o sepultamento do índio Belchior da Rosa, um dos indígenas mais fiéis e
amigo dos missionários.

Erejupe. sm. Saudação dos indígenas dando boas-vindas aos visitantes.


[...] logo nesse comenos nos fizeram uma choupana de palma que já tinham colhida por terem
notícia de nossa vinda, e nos saíram a receber todos os mancebos e moços dando-nos com
grande festa o erejupe que é o seu modo de dar as boas vindas. [...] (Fl. 2r, L.149-153).
126

Nota: Ao chegarem na aldeia do Diabo Grande, os missionários foram recebidos com muita
festa e músicas de boas-vindas, caracterizando-se, assim, o erejupe.

Esbulhar. v. Usurpar, desapossar.


[...] foram se recolhendo os tapuias o que se conhecia pela grita que levavam, e foram então
esbulhar tudo assim o que nós tínhamos em casa, como a ferramenta que tínhamos
emprestada aos índios [...] (Fl.8v, L. 913-96).
Nota: Após a morte do padre Pinto, os tapuias carregaram todos os bens que havia na casa dos
padres.

Escopeta. sf. Arma de fogo semelhante a uma espingarda.


Um destes que vieram tinha já fugido dos brancos, e fora escravo dos tapuias até então, dos
quais andava fugido atualmente e trouxe consigo uma mui boa escopeta, e alguma munição
que seu senhor tapuia tinha tomado a um branco. (Fl. 1v, L. 7-91).

Espigas de milho. sf. Fruto do milho.


Porém, estava esta gente em tanta fome, que vindo-nos uns índios ao caminho com refresco a
receber seus parentes como légua e meia antes de chegarmos à aldeia, nos apresentaram
como coisa de grande preço (e não era menos), umas -15- ou -18- espigas de milho. (Fl. 3v.
L. 3000-303).
Nota: Os indígenas tinham por costume plantar milho para comer enquanto verde e
presentear. Essa ainda é uma tradição dos pequenos agricultores do sertão cearense e que se
caracteriza como cultura de subsistência.

Espingarda. sf. Arma de fogo com cano longo e coronha.


[...] e que se outra coisa pretendêramos que leváramos espingardas e soldados e outras
coisas desta qualidade que não me causavam menos devoção que admiração. (Fl. 6r, L. 626-
628).

Espírito. sm. Essência do ser humano em processo de desenvolvimento e aprendizado


constante.
Estes por lá andam conforme aos com que tratam; despidos e em toda a miséria, e o espírito
pouco pode ser entre bárbaros infiéis sem missa nem sacramentos. (Fl. 4r, L. 353-355).
Nota: Figueira fala de um mancebo mameluco que recebera doutrinamento, enquanto outros o
espírito era ainda inferior por viver com os bárbaros sem confissão nem doutrina. O discurso
religioso é taxativo em relação aos nativos. Desse modo, podemos perceber a ideologia do
dominante. Vê-se, portanto, o sentimento de superioridade da religião católica.
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Esquife. sm. Caixão mortuário utilizado para sepultamento.


Para o enterramento se ajuntaram todos assim os nossos como os outros todos com suas
candeias acesas, o trouxemos em procissão à igrejinha em que dizíamos missa, em um
esquife que lhe tínhamos mandado fazer. (Fl. 6r, L.631-634).
Nota: O costume português foi introduzido entre os índios que antes enovelavam seus mortos
e os metiam em um buraco. O índio Belchior da Rosa foi sepultado em um esquife com
procissão e candeias acesas o que causou admiração aos nativos.

Estola. sf. Peça litúrgica usada nas celebrações por bispos, padres e diáconos no âmbito da
igreja ou fora, em bênção e comunhão aos enfermos.
[...] mas parece que os tapuias tornaram atrás a levar o que deixavam, porque só se achou a
casula, estola e manipulo e frontal, e os breviários. (Fl. 9r, L.980-982).

Exéquias. sf. Celebração fúnebre, ritual de despedida de alguém falecido.


Foram-se para sua aldeia, e o Diabo Grande celebrou e fez celebrar a todas as exéquias do
padre a seu modo. (Fl. 9r, L. 1000-1001).

Farinha das hóstias. sf. Matéria prima com que se fabricam as hóstias para a consagração
nas missas.
Levaram cálix, alva, cordão e o missal, e a farinha das hóstias etc., coisa que me deu grande
pena deixarem-me sem missa e sem sacramento naquele desterro, seja o Senhor contudo
louvado para sempre. (Fl. 9r, L. 982-985).

Fato. sm. Roupa, vestimenta.


Saímos em terra, posemos nosso fato em ordem para o levarmos, e como levávamos alguns
índios naturais de Jaguaribe [...] (Fl. 1v, L. 64-66).
Nota: Bluteau (1712) registra além do sentido acima também o de “outros bens móveis”.

Fava. sf. Leguminosa semelhante ao feijão cultivada como fonte de alimento.


[...] e quanto à farinha tínhamo-la por relíquias, e sem outro conduto mais que de quando em
quando alguns peixinhos e, por grande festa, umas favas secas cosidas sem mais azeite, nem
vinagre nem sal. (Fl. 7v, L.824-827).
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Nota: Na agricultura nordestina é muito comum o plantio de favas em substituição ao feijão


ou como complemento desse, vê-se uma tradição indígena que continua. A fava apresenta
vagens curtas e largas e grãos grandes e achatados. Pode ser consumida em lugar do feijão.

Feiticeiro. sm. Pessoa que tem algum poder místico de curar doenças ou prever
acontecimentos.
Estando nós um dia à noite em nossa casa, ouvimos um que tossia com grande eficácia e
escarrava procurando de vomitar fazendo grande estrondo, mandamos saber que era aquilo,
vieram nos dizer que estava um menino doente e um feiticeiro que o curava. (Fl. 6r, L. 644-
647).
Por derradeiro, saiu o feiticeiro em que eles têm posto seu crédito e fé, dizendo que não
era senão o Deus criador dos mantimentos que os vinha criar para terem que comer etc.
(Fl.11r, L. 1190-1193).
Nota: Todo povo acredita em algo sobrenatural e, há sempre nos grupos humanos, alguns que
mantêm a liderança religiosa, que apresentam uma sensibilidade maior para o transcendente.
Na comunidade indígena descrita pelo jesuíta Luís Figueira, esses eram considerados
feiticeiros ou porque tinham o poder de cura ou porque tinham visões do mundo espiritual.
Feiticeiro é definido com algum juízo de valor negativo nos dicionários mais antigos
consultados. Morais Silva (1813, v. II, p. 19,) define feiticeiro como o “homem que faz
malefícios, ou doenças com ervas venenosas, e outras drogas; e talvez intervindo obra
diabólica”. Laudelino Freire (1957, v. III, p. 2524,) ameniza sua definição, atribuindo ao
feiticeiro a seguinte acepção: “Aquele que faz feitiços; bruxo, mágico”. Caldas Aulete (1986)
e Ferreira (2001) dão a mesma acepção. A lexia feiticeiro tem 13 registros no texto de
Figueira. Em algumas delas, a palavra é retratada com reservas e negatividade para atribuir a
esses sujeitos um conhecimento tolo. Na perspectiva do padre, a influência dos feiticeiros era
negativa para os demais índios, como se vê na seguinte passagem em que registra a fala de um
dos feiticeiros: “Dali a três ou quatro jornadas, chega após nós um mancebo sobrinho seu,
pelo qual para atemorizar os meus e fazer tornar o filho e parentes, como feiticeiro e sabedor
das coisas futuras, lhes mandou dizer que todos morreriam no caminho, e que os outros da
aldeia para onde vínhamos nós não haviam de dar uma sede d’água, que pereceríamos à
fome, e coisas semelhantes com que perturbou muito aos que vinham comigo, porque são mui
facilmente entrada à imaginações e ficções de feiticeiros, mas contudo ninguém se me
tornou”. (Fl. 12r, L. 297-1305). Em outro momento, há uma avaliação preconceituosa do
método de cura empregado pelos feiticeiros, em que Figueira diz que eles fingem fazer um
procedimento. “E a cura era chupá-lo como costumam, dizendo que lhe tiram o mal de
dentro, e para fingirem melhor o engano, metem na boca um prego ou coisa semelhante, e
129

com aquele seu escarrar fingem que o chuparam e o tiraram ao doente e que aquilo era o que
lhe fazia o mal”. (Fl. 6v 648-652).Em todo o texto do missionário é perceptível a visão que
ele tem dos nativos como sendo estes de cultura inferior em relação a dos colonizadores.

Fernão Cardim. sm. ant. Padre jesuíta responsável pela província de Pernambuco e Bahia da
Companhia de Jesus.
No mês de janeiro de 607 por ordem do padre Fernão Cardim provincial desta província nós
partimos para a missão do Maranhão [...] (Fl. 1r, L. 5-7).
Nota: Fernão Cardim era português de Viana do Alentejo, nasceu em 1549 e morreu nos
arredores de Salvador, em 27 de janeiro de 1625. Entrou para a Companhia de Jesus em 1566,
embarcou para o Brasil em 1583, como secretário do visitador da companhia, visitando as
regiões que hoje pertencem os estados da Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro e
São Paulo. Eleito procurador pela província do Brasil, em 1598, voltou a Portugal. Quando do
seu regresso ao Brasil em 1601, foi aprisionado pelo corsário inglês Francis Cook. Após a sua
libertação, voltou ao Brasil em 1604, como provincial da companhia, cargo que desempenhou
até 1609. (WIKIPÉDIA, online).

Festa da Ascensão. sf. Celebração realizada no quadragésimo dia da Páscoa que marca a
ascensão de Jesus ao céu, conforme a doutrina cristã.
No caminho tivemos a festa da Ascensão e chegamos dois dias antes do Espírito Santo à
aldeia. (Fl. 4r, L. 393-395).
Nota: A celebração da Páscoa, naquele ano de 1607, aconteceu às margens do rio Aracatiaçu,
talvez no trecho mais próximo de sua foz, onde hoje é o município de Amontada. Após a
chegada à serra da Ibiapaba, os missionários se hospedaram em uma pequena aldeia, mas para
conseguirem uma melhor sobrevivência, partiram para outra. Esse período de tempo é
delimitado por 40 dias entre a celebração da páscoa e a festa da Ascensão. Por essas
informações é possível traçarmos o tempo do percurso e de permanência do missionário no
Ceará.

Festa da Assunção de Nossa Senhora. sf. Celebração que se comemora a assunção ou


subida de Nossa Senhora ao céu, conforme dogma religioso do catolicismo.
E nós a fizemos deter, oito ou nove dias - por esperar pela festa da Assunção de Nossa
Senhora em que tínhamos para fazer uma procissão com uma dança de meninos destes
gentios e um diabrete etc. (Fl. 5v. L.568-561).
130

Nota: A assunção corporal de Maria como dogma de fé, foi proclamada, oficialmente, em
1950 pelo papa Pio XII. No entanto, essa festa religiosa já era celebrada muito antes pelos
cristãos católicos. Mais recentemente, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
autorizou a ocorrência dessa solenidade no primeiro domingo após 15 de agosto, caso esse dia
não seja domingo.

Freio de cavalo quebrado. sm. Pedaço de ferro utilizado como instrumento de estima e
reverência.
Um dos principais destes índios tinha dito a um mancebo mameluco, que aqui estava, que lhe
doía muito a cabeça, e que se fosse caso que se achasse mal, que nos dissesse em chegando
que o batizássemos, nem era bastante para lhe tirar a dor um ferro que fora de freio de
cavalo quebrado, o qual tinha em grande estima de santidade por lho ter dado outro como
coisa que viera do céu, este lhe tirei com muito trabalho. (Fl. 3v, L. 336-342).

Foice. sf. Instrumento de ferro usado na lida do campo nas atividades de roçar o mato, cortar
a madeira etc.
Ao dia seguinte, mais por medo que por vontade, lhe dei uma foice para roçar. (Fl. 12v, L.
1391-1393).
[...] estou mui agastado e agravado contra o padre que dá foices a quem dele murmura e
fala, e a mim, não me deu foice. Será por ventura porque eu o não convidei? (Fl. 13, L. 1395-
1397).
Nota: Dentre os vários presentes que os jesuítas traziam para os índios, como machados, facas
e tesouras, a foice era um dele que era muito cobiçada para as lidas do campo.

Frontal. sm. Peça litúrgica de pano ou tecido utilizado para armar a parte dianteira do altar.
[...] mas parece que os tapuias tornaram atrás a levar o que deixavam, porque só se achou a
casula, estola e manipulo e frontal, e os breviários [...] (Fl. 9r, L. 980-982.

Gaita. sf. Instrumento musical usado pelos índios.


Ao dia seguinte, nos veio o mesmo principal receber ao meio do caminho, meia légua da
aldeia, com todos os principais e algumas mulheres com seus presentes, e eles todos com
suas buzinas, gaitas e cascavéis que são seus instrumentos músicos, com tanta festa e alegria
que eu fiquei pasmado. (Fl. 4v, L. 421-425).
131

Gaspar de Samperes. sm. ant. Padre jesuíta e antigo engenheiro militar que atuava no Rio
Grande do Norte.
[...] neste comenos levou Deus uns índios com umas cartas do padre Gaspar de Samperez
com a qual ocasião mandei chamar a todos e ele também que viessem saber as novas [...] (Fl.
10v, L. 1129-1131).

Gentio. sf. Pessoa considerada pagã ou que segue uma religião pagã sob o ponto de vista de
outra religião oficial e dominante.
Em toda esta região e comarca do Maranhão, aonde há inumeráveis almas e muitas castas de
gentio, não há grandes serras, mas tudo ordinariamente são terras rasas [...] (Fl. 1r, L. 18-
21).
[...] e finalmente na Ibiapaba, indo um índio gentio para a aldeia onde nós estávamos, um
dia, antes de chegar [...] (Fl. 3v, L. 288-289).
E o padre com ser antigo sertanista me disse que nunca vira entre gentios coisa semelhante.
(Fl. 4v, L. 425-427).
Nota: A palavra gentio registrada em Morais Silva (1813, v. II, p.85), apresenta a seguinte
definição, como adjetivo: “Bárbaro, idólatra, pagão”. Como substantivo, é “a gente que serve
o gentilismo, bárbara: o gentio do Brasil”. Vê-se o teor de negatividade expresso por meio da
definição. Em dicionários mais recentes, como Figueiredo (1939), Freire (1957) e Caldas
Aulete (1986), encontramos quase a mesma definição. Todos atribuem a qualidade de pagão e
seguidor de religião pagã. Bueno (1988) também atribui a significação de selvagem que ainda
não se civilizou, que não recebeu o Evangelho. Arrisca a atribuir uma etimologia com base
em Leite de Vasconcelos dizendo que a palavra tem origem em genitivus, de vagativus, como
vadio. Todas as definições são pautadas em ideologias religiosas, sobretudo, uma religião
dominante em que o gentio não é adepto, logo é pagão, bárbaro e vadio. O conceito não é
atribuído somente aos indígenas brasileiros, mas a qualquer pessoa fora de uma religião aceita
e dominante.

Gentilidade. sf. Ignorância ou falta de entendimento.


Toda esta gentilidade como é de fraco entendimento não tem nenhuma resistência às coisas
que lhe dizem, ainda que os não alcancem com o entendimento, nem sabem duvidar nem
perguntar, e assim pouca ciência basta para os cultivar e fazer deles o que quiserem. (Fl. 6v,
L. 680-684).
Estes índios que ultimamente vieram da Ibiapaba trouxeram uma nova digna de se saber
para nos compadecermos desta cega gentilidade para qual se hão de saber algumas
cegueiras que têm. (Fl. 10v, L. 1267-1170).
Nota: A definição aqui atribuída está com base no contexto de uso no texto de Luís Figueira.
Os dicionários definem gentilidade como religião, como é o caso de Morais Silva (1813), que
132

atribui a falsa religião dos gentios. Bueno (1988) apresenta uma acepção para povo não
batizado, não cristão. Conjunto de selvícolas, dos pagãos. Todas as definições da palavra
trazem a mesma carga semântica ideologicamente negativa em todos os dicionários.
Na visão do colonizador, os nativos brasileiros eram brutos e selvagens, desconhecedores da
verdadeira doutrina trazida do mundo europeus, vivendo na gentilidade.

Giboso. adj. Corcunda, corcovado ou que apresenta giba nas costas.


Há certo gênero de animais a que eles chamam veados arcados, os quais são muito
semelhantes a camelos, na grandeza, pescoço comprido, e no serem arcados ou gibosos, e
mais me afirmo em terem pontas como de veado (Fl. 1r, L.32-35).
Nota: O missionário descreve os animais que existem no Brasil, apresentando o veado como
sendo giboso.

Homem. pro. Pronome pessoal de terceira pessoa no singular.


Com estas coisas e fruto que se fazia nestas desamparadas almas aliviava homem o trabalho
de caminhos e cansaços, e a carência da vista e práticas de nossos padres e irmãos. (Fl. 7r,
L. 762-765).
Nota: Este pronome de terceira pessoa é do português arcaico ainda usado por Figueira no
século XVII. Atualmente tem uma equivalência com pronome de terceira pessoa a gente.

Horas menores. sf. Subdivisão das horas canônicas, correspondente à primeira, terceira,
sexta e nona horas da divisão do tempo, nos mosteiros medievais, em que se rezava o ofício
das horas.
E porque os selvagens saíram a nossa porta, que estava no coice da aldeia, à borda do mato,
e o padre estava dentro em casa, rezando as horas menores, saiu com trabalho, tendo os
nossos o ímpeto dos tapuias que o não matassem logo, e o foram amparando até entrarem no
mato. (Fl. 8r, L. 872-876).
Nota: Cada uma das horas indica uma parte do ofício divino que hoje se chama liturgia das
horas, que eram orações rezadas ao longo do dia, prática inda existente nos seminários e casas
religiosas. As horas canônicas se dividiam em: horas matinas, ante do amanhecer; laudes, ao
amanhecer; prima, primeira hora depois do amanhecer, às 6h da manhã; tercia, terceira hora
depois do amanhecer, às 9h da manhã; sexta hora ou meio dia, às 12h depois do amanhecer;
nona hora, às 15h depois do amanhecer, hora da misericórdia; vésperas, ao pôr-do-sol, às 18h;
completas, antes do descanso noturno, às 21h.
133

As horas maiores correspondem às matinas, às laudes e às vésperas, quando toda a


comunidade se reunia na igreja. As horas menores correspondem à prima, à tercia, à sexta e às
nonas, em que não era obrigado estar presente na igreja, mas, segundo as ordens beneditinas,
se rezava onde estivesse no momento do dobre do sino.

Inimigo capital. sm. Adversário ou pessoa a quem muito odeia.


E no mesmo tempo mandamos cometer pazes ao Milho Verde, que é inimigo capital dos
brancos e dos índios da Ibiapaba com quem estávamos [...] (Fl. 5v, L. 536-538).

Jaguariguara. sm. Índio do grupo tupi que habitava a região do Jaguaribe, no leste do Ceará.
Vindo pois continuando nosso caminho, mandamos índios naturais daquelas partes diante
para que se encontrassem alguns de seus parentes jagoarigoaras que andavam espalhados
com medo [...] (Fl. 2r, L. 111-115).
Nota: Figueira se refere a esse povo logo no início da jornada, que estavam próximos ao
Jaguaribe, quando os padres mandaram alguns índios de sua companhia encontrarem com os
parentes que estavam na região escondidos e com medo dos portugueses, esses índios eram os
jaguariguaras que eram do grupo tupi, habitantes do vale do Jaguaribe.

Jerônimo d’Albuquerque. sm. ant. Fidalgo português capitão-mor governador do Rio


Grande do Norte.
[...] chegamos ao Rio Grande aonde fomos recebidos com muita alegria do capitão-mor
Jerônimo d’Albuquerque, e Antonio Ferreira tenente e dos mais, e com muita caridade do
padre Domingos Monteiro e Diogo Nunes; ali me detive alguns dias esperando embarcação e
tempo até que Deus o deu/ Seja Ele louvado com tudo e tudo seja para sua honra e glória [...]
(Fl. 13r, L. 1425-1432).

Jornada. sf. Espaço de tempo de uma viagem ou o quanto se pode andar durante um dia.
As jornadas eram de meia légua, uma légua e -2- e-3- por nos acomodarmos aos das cargas
e também algumas crianças. (Fl. 1v, L. 108-110).
Dali a três ou quatro jornadas, chega após nós um mancebo sobrinho seu, pelo qual para
atemorizar os meus e fazer tornar o filho e parentes [...] (Fl. 12r L. 1297-1299).
Nota: A palavra jornada também representa um dia de trabalho, mas, no contexto, está
expressando o espaço de tempo de uma viagem.
134

Ladainha de Nossa Senhora. sf. Oração de súplica a Nossa Senhora em que há a repetição
da forma rogai por nós pelo grupo em oração a cada citação do nome de Maria por quem
preside a prece.
Logo pela manhã, rezávamos o itinerário e ladainhas de Nossa Senhora, e depois entre dia
as dos santos e com nossos bordões na mão e nossos livros de rezar, e nosso cabaço de água
(Fl. 1v, L. 103-106).
Nota: Esta era a forma como os missionários conduziram sua caminhada pelo interior do
Ceará, sempre rezando e se entregando a Deus. A reza da ladainha de Nossa Senhora é uma
tradição que se repete ainda na religião católica de todo o Brasil, sobretudo, no mês de maio.

Ladainha dos santos. sf. Oração de súplica aos santos e que se caracteriza pelas invocações
repetidas. As dirigidas diretamente a Jesus, como “Cristo, tende piedade de nós!”, é a parte
mais antiga.
Logo pela manhã, rezávamos o itinerário e ladainhas de Nossa Senhora, e depois entre dia
as dos santos e com nossos bordões na mão e nossos livros de rezar, e nosso cabaço de água
(Fl. 1v, L. 103-106).
Nota: Afirmam Urban e Bexten (2013, p.140) que vem desde os primórdios da Igreja e é
chamada de a grande ladainha. “As invocações aos santos foram acrescentadas a partir do
século VII”.

Lagartixa Espalmada. sf. ant. Índio que habitava uma aldeia próxima à foz do rio Ceará.
E entre estes havia um por nome Lagartixa Espalmada, o qual era soberbíssimo, e antes que
eu viesse, por várias vezes, me ameaçou que me havia de matar e aos meus, e por lhe dizerem
outros alguns louvores meus com que o abrandaram [...] (Fl. 12v, L.1353-1356).
Nota: Não se sabe precisar o local da aldeia liderada por Lagartixa Espalmada parece que se
situava nas imediações onde hoje é a Barra do Ceará, bairro da zona norte de Fortaleza. Mas
poderá ser outro local mais para o leste, perto da atual cidade de Fortin. Na volta da serra da
Ibiapaba, o padre Luís Figueira organizou ali uma pequena comunidade, levantou uma cruz e
deu o nome de São Lourenço por ser o dia desse santo, ou seja, dia 10 de agosto. O Lagartixa
Espalmada era um índio soberbíssimo na visão de Figueira, recusou-se a receber o padre, mas
depois fez amizade.
135

Lancetas. sf. Instrumento de ferro delgado e agudo que serve para sangrar.
Inumeráveis cobras, e aranhas a que chamam caranguejeiras, peçonhentíssimas de cuja
mordedura se diz que morrem os homens, carrapatos sem conto, mosquitos e moscas que
magoam estranhamente, e ferem como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora (Fl. 2v, L.
205-209).

Légua. sf. Unidade de medida que equivale a seis quilômetros.


Enfim, tornamos a sair desta serra ao cabo dos -12-ou-13- dias, sem termos andado de nosso
caminho mais que obra de duas ou três léguas e no rodeio que fizemos andaríamos -5- ou-6-.
(Fl. 2v, L. 211-214).
Nota: Bueno (1988) diz que varia de lugar para lugar a extensão de uma légua, assim sendo,
varia de cinco a seis quilômetros seu valor. No Ceará, por exemplo, é conhecida atualmente a
extensão de seis Km. Mas não é possível dizer com exatidão o valor de uma légua no século
XVII.

Língua comum do Brasil. sf. Língua simplificada que mescla elementos da língua
portuguesa e da língua tupi-guarani que foi falada na costa do Brasil.
São guerreiras, e caçadoras e engenhosas de mãos, para fazerem redes muito lavradas, e
também seus arcos todos são pintados; assim elas como o mais gentio usam todos a mesma
língua comum do Brasil. (Fl. 1r, L. 46-49).
Nota: Figueira fala de uma língua comum do Brasil, (escreve língua comua do Brasil) que era
usada pelas Amazonas e os demais gentios do Brasil, ou quem sabe, do Norte do Brasil.
Rodrigues (1994, p.101) trata do tema da língua geral e não língua comum do Brasil. Para
esse autor “a essa língua popular, geral a índios missionados e aculturados e a não-índios, é
que foi sistematicamente aplicado o nome de Língua geral. O uso desse nome começa já na
segunda metade do século XVII [...]”. Parece que Figueira já tinha esse conhecimento da
língua geral e atribui o nome de língua comum, falada por todos os gentios e também pelas
Amazonas, que eram entidades mitológicas que habitavam o norte da colônia. Será que essa
língua comum era a dos índios do Norte? Pois, havia pelo menos duas línguas gerais,
conforme Rodrigues (1994): a língua geral paulista e a língua geral amazônica. Não temos
certeza a qual delas se refere Figueira. Posteriormente, Figueira escreveu a Arte de Gramática
da Língua Brasílica que seria outra denominação para essa língua comum.
136

Loja dos vendedeiros. sf. Estabelecimento comercial onde se vendem vários produtos sob a
direção de um vendedor.
Verdade é que disto achamos bastantemente nesta serra, mas tudo mais caro do que fora se
se comprara nas lojas dos vendedeiros, porque com as dificuldades do caminho que ao
princípio se mostrou fácil e com isso nos enganou. (Fl. 2v, L.192-195).

Macaxeira. sf. Raiz envolta em casca grossa e escura que quando descascada é branca e pode
ser cozida com sal para alimento humano.
[...] antes de chegar ao mais alto, nos estava esperando o principal, e outros que para nos
esforçarem para o restante do caminho, nos tinham prestes umas poucas de raízes de
mandioca, a que chamam macaxeira, cosidas e um pouco de sal e pimenta da terra e um
palmito para assentar o estômago. (Fl. 3v, L. 316-320).
Nota: Também conhecida como aipim ou mandioca em algumas regiões do Brasil. A
macaxeira no Ceará, assim como em outras partes do Brasil, é uma herança do nome e do
costume indígena de plantar, colher e comer essa raiz.

Machado. sm. Instrumento de ferro usado para o trabalho da roça, como cortar madeira.
E com isto toma um machado às costas e sai-se e vai-se para a roça que era o caminho por
onde eu havia de ir para a minha. (Fl. 10r, L.1098-1100).

Magote. sm. Grupo ou bando de pessoas ou de animais.


E ainda isto era sofrível se fora só um magote deles, mas são muitas nações de -60-80-100- e
mais casais. (Fl. 5r, L. 519-521)

Mandioca. sf. Raiz envolta em casca grossa e escura que após ser raspada, moída, escorrida
para retirar o líquido venenoso, torna-se numa massa que passa pelo processo de secagem, é
torrada ao forno e transforma-se em farinha para ser consumida pelos humanos.
Da fertilidade da terra dizemos índios que não tem comparação a mandioca, batata, e tudo o
mais que cá há com o de lá por ser o de lá de muito notável vantagem em grandeza e
fertilidade. (Fl. 1r, L. 23-26).
Nota: Há diferença entre mandioca e macaxeira. A mandioca tem um líquido venenoso que
deve ser eliminado para a raiz tornar-se comestível, por isso chamada de mandioca brava. A
macaxeira não precisa desse processo, por não ter o líquido venenoso, por isso alguns também
a conhecem por mandioca doce. A mandioca é uma cultura brasileira e seu cultivo se estende
por todas as regiões. Dessa cultura nativa dos índios são feitos vários produtos alimentícios,
137

além da farinha consumida por muitos brasileiros. Produz-se também a goma ou fécula para
fazer tapioca, beijus, bolos, polvilhos e muitos outros produtos. Também é utilizada para
alimento de animais como gados e porcos, tanto a raiz como as folhas. Em algumas regiões,
fazem-se produtos para alimento humano da folha da mandioca, como o tucupi, muito
consumido no Pará.

Mandioca brava. sf. Ver mandioca.


Viemos a lançar mão da maniçoba brava, bem amargosa e sem sabor, e depois chegamos a
comer da mesma raiz da mandioca brava assada de que alguns se começaram a achar mal.
(Fl. 3r, L. 258-261).

Maniçoba brava. sf. Raiz semelhante a da mandioca, mas muito venenosa, sendo
incomestível para humanos.
Viemos a lançar mão da maniçoba brava, bem amargosa e sem sabor, e depois chegamos a
comer da mesma raiz da mandioca brava assada de que alguns se começaram a achar mal.
(Fl. 3r, L. 258-261).
Nota: Podemos dizer que a maniçoba brava é semelhante a mandioca tanto a folhagem quanto
à raiz, mas não usada para o consumo humano. A maioria dos dicionários traz o verbete
maniçoba como uma planta da qual se tira o látex para a produção da borracha ou com a qual
se prepara pratos. No entanto, a maniçoba, conhecida popularmente no interior do Ceará, é
uma planta de galhos finos, estatura baixa, folhas compridas e que apresenta alto poder de
intoxicação quando consumida até mesmo pelos animais.

Mancebo mameluco. sm. Índio jovem.


Um dos principais destes índios tinha dito a um mancebo mameluco, que aqui estava, que
lhe doía muito a cabeça, e que se fosse caso que se achasse mal, que nos dissesse em
chegando que o batizássemos (Fl. 3v, L.336-339).
Nota: Geralmente, Figueira fala dos jovens índios como moços ou mancebos. A expressão
mancebo mameluco não nos permite afirmar com clareza se é utilizada para fazer referência a
um jovem índio com mistura de raça ou apenas reforça a característica do ser índio, pois
mameluco é a uma pessoa mestiça de branco com índio ou de branco com caboclo. Não dá
para pensar que tal mestiçagem já houvesse naquele período, no Ceará, já que ainda não havia
colonização da capitania, o que leva-nos a crer que é uma forma de caracterizar o índio.
138

Mancebelhão. sm. Índio jovem.


Partidos, pois os quatro, chegaram os tapuias e destruíram os mais que eram por todos dez,
dos quais só escapou um mancebelhão que veio ainda alcançar os outros. (Fl. 1v, L. 84-87).
Nota: Palavra usada como aumentativo. Na sexta edição do dicionário de Morais Silva (1858)
melhorada e acrescentada por Agostinho de Mendonça Falcão8 que registra o verbete
mancebelhão, ressaltando ser chulo e aumentativo de mancebo e registra o uso em Gil
Vicente.

Mandiaré. sm. ant. Índio chefe ou principal de uma aldeia.


[...] ajudando-os também a peste que lhes deu, e esperamos que chegassem a nós alguns para
nos informarmos do que lá passava. Veio o principal chamado Mandiaré a nos ver e nos deu
por novas haver lá muitos franceses assim no Rio do Maranhão, como no Rio e Ilhas das
Almazonas [...] (Fl.7v, L.796-800).
Nota: Mandiaré era tabajara da Ibiapaba que estava refugiado no Maranhão por medo dos
portugueses. A palavra mandi significa peixe do Pará, conforme Dias (1858). No entanto, o
autor não apresenta aré. Pompeu Sobrinho (1967) decompõe a palavra em mani, a e ré,
atribuindo o significado à mandioca de fruto diferente ou variedade diferente de mandioca.
Mas também interpreta como mandy, como nome de gênero de peixe à, cabeça; e ré,
diferente. Seria um peixe da Amazônia de cabeça diferente.

Mingau de mandioca brava. sm. Alimento produzido pela raiz da mandioca brava ou
venenosa.
Neste tom esbravejou, dando-me muitas remocadas porque não me tendo o outro dado nada,
ele me trouxera por algumas vezes, uns mingaus de mandioca brava que caro me custaram.
(Fl. 12v, L. 1398-1401).
Nota: Nas muitas necessidades de alimentos que os missionários e os nativos do Ceará
passavam, comiam qualquer coisa que servisse para matar a fome. A mandioca brava e uma
de suas iguarias, no caso, o mingau, era alimento naquele tempo de escassez.

Manipulo. sm. Peça litúrgica de tecido em forma de faixa adornada presa ao antebraço
esquerdo do celebrante nas celebrações.
À tarde, se ajuntou comigo mais gente, mandei ao dia seguinte corpo de mancebos a buscar
tudo; mas parece que os tapuias tornaram atrás a levar o que deixavam, porque só se achou
a casula, estola e manipulo e frontal, e os breviários. (Fl. 9r, L.978-982).

8
Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=bibobpub&pagfis=11387&pesq>.
Acesso em: 01 nov. 2016.
139

Nota: O manipulo caiu em desuso depois do Concílio Vaticano II, de 1962, afirmam Urban e
Bexten (2013).

Maracá. sm. Instrumento musical utilizado nas solenidades religiosas dos índios. (Dias,
1858).
Chegando à aldeia, saiu um grande tambor que já toda a manhã íamos ouvindo e com seus
maracás, (que são uns cabaços com uns feijões dentro), tangendo e cantando, e com essa
solenidade nos meteram na casa que nos tinham aparelhada e nos trouxeram logo muitos
presentes. (Fl. 4v, L. 431-435).
Nota: A definição de maracá é atribuída pelo próprio Figueira como sendo cabaços com
feijões dentro que os índios agitavam para fazer o som. Este instrumento ainda pode ser
encontrado como brinquedo infantil, como fala Dias (1858, p. 92) que, pela ampliação de
sentido, “dá-se hoje esse nome a um chocalho feito de lata e cheio de pedrinhas, que serve às
crianças de brinquedo”.

Mestre de capela. sm. Pessoa que canta no coro das igrejas.


São todos estes incrivelmente inclinados a cantar e dançar, e porque os potiguares são nisto
afamados e conosco iam alguns nheengaraybas, ou mestres de capela, desatinava-nos que
cantassem para os ensinarem[...] (Fl. 6v, L.700-703).

Mezinha. sf. Remédio caseiro com base na tradição popular.


Nem lhe aproveitou pedra de bazar, nem alicórnio, nem queimarmos-lhe a ferida, nem
finalmente, outras mezinhas e benefícios. (Fl. 2v, L. 217-29)

Milho verde. sm. ant. Índio tapuia inimigo dos portugueses.


[...] e no mesmo tempo mandamos cometer pazes ao Milho Verde, que é inimigo capital dos
brancos dos índios da Ibiapaba com quem estávamos [...] (Fl.5v, L.536-538).

Missal. sm. Livro litúrgico que contém os textos necessários para a celebração da missa.
Levaram cálix, alva, cordão e o missal, e a farinha das hóstias etc., coisa que me deu grande
pena deixarem-me sem missa e sem sacramento naquele desterro, seja o Senhor contudo
louvado para sempre. (Fl. 4r, L. 982-985).

Missão do Maranhão. sf. Empreendimento religioso e político da Companhia de Jesus com a


coroa portuguesa, que tinha o objetivo de evangelizar os nativos da serra da Ibiapaba e manter
contato com os tapuias para, com o apoio desses, expulsar os franceses que estavam ocupando
o Maranhão.
140

No mês de janeiro de 607, por ordem do padre Fernão Cardim, provincial desta província,
nós partimos para a missão do Maranhão, o padre Francisco Pinto e eu com obra de
sessenta índios, com intenção de pregar o evangelho àquela desamparada gentilidade, e
fazermos com que se lançassem da parte dos portugueses, deitando de si os franceses
corsários que lá residem [...] (Fl. 1r, L.5-8).
Nota: Os objetivos da missão são explícitos no texto de Figueira e atendem aos interesses de
ambas as partes, tanto da Coroa Portuguesa quanto da Companhia de Jesus. Os jesuítas
vieram sem apoio militar e trouxeram 60 índios, que antes haviam sido levados, escravizados
por Pero Coelho de Sousa, para devolvê-los à terra natal. Se, por um lado, destaca-se um ato
de heroísmo, fé e coragem por parte dos jesuítas por enfrentarem o desconhecido e tantas
adversidades da terra inexplorada, por outro lado, percebe-se a atitude estratégica de
apaziguar os ânimos dos nativos e assim, aos poucos, dominá-los pela ideologia religiosa,
ensinando todo o ritual do catolicismo que substituía as crenças e os costumes dos indígenas
da nação tabajara que habitava o norte do Ceará, sobretudo, pois os padres jesuítas não
atingiram o Maranhão.

Monumento. sm. Construção em homenagem à memória de alguém ou de algum


acontecimento.
Morreu, contudo, confessado e sobre a sepultura lhe fizemos um monumento, pondo-lhe uma
cruz à cabeceira [...] (Fl. 2v, L. 220-221).
Nota: Não se sabe precisar o local e se ainda existe algum vestígio do monumento que foi
construído em homenagem ao índio que morreu da mordedura de uma cobra. Também não se
sabe o que era e nem que material foi usado para sua construção, provavelmente um monte de
pedras com uma cruz à cabeceira, representando o catolicismo e o costume dos portugueses
de pôr uma cruz na cova onde é sepultado alguém. Costume esse que ainda é preservado no
Brasil, inclusive às margens das estradas onde morre um ser humano.

Moradores do Jaguaribe. sm. Índios que habitavam a região do rio Jaguaribe, situado ao
leste do Ceará.
Nesta grande serra havia há dois ou três anos, mais de setenta aldeias de gentio que nos
contaram por seus nomes, e depois de os brancos lá irem, e os receberem no princípio com
guerra, se foram todos para o Maranhão com medo, dizendo que se os brancos tinham
destruído todos os moradores do Jaguaribe, sendo recebidos deles com paz, muito melhor os
destruiriam a eles que no princípio os receberam com guerra. (Fl. 4r, L. 356-362).
Nota: Várias nações indígenas povoavam a região do Jaguaribe por ser aquela terra mais fértil
e irrigada com as águas do maior rio do Ceará. Estes índios sofreram as hostilidades das
primeiras investidas de colonização portuguesa, quando Pero Coelho de Sousa, em 1603,
141

adentrou a capitania do Ceará na tentativa de explorar o território. Mais tarde, esses índios
enfrentaram a invasão de colonizadores que recebiam sesmarias daquelas terras. Inúmeros
documentos com os quais já tivemos contato registram o conflito entre índios e brancos que
habitavam aquela região, no século XVIII.

Mordedura de cobra. sf. Picada de uma cobra que provocou a morte de um índio pelo
veneno.
Todos estes trabalhos se nos remataram com um que nós muito mais sentimos, que foi
morrer-nos um índio mancebo, dentro em 15- ou -18- horas da mordedura de uma cobra.
(Fl. 2v, L. 225-227).

Morubixaba. sm. Chefe de uma tribo indígena brasileira.


[...] dizendo-me que não me lembrasse de nada, que seu pai sempre tivera costume de falar
áspero a todos, e que era costume dos grandes morubixabas para terem autoridade[...] (Fl.
11v, L.1287-1289)
Nota: Também denominado de cacique. Bueno (1988) registra mô-r-ybychaba, que significa
“o que faz a inspeção da terra”. Gonçalves Dias (1858) registra a palavra morobixaba-ocú
com o significado de general.

Mosquete. sm. Arma de fogo, um tipo de espingarda de cano grosso.


[...] recitei o itinerário em voz alta, o qual acabado, desparando-se um mosquete nos
despedimos, ficando o bárbaro dentro de casa sem parecer fora. (Fl. 11v, L. 1275-1277).

Nação de tapuias. sf. Grupos de índios de várias tribos que eram chamados genericamente de
tapuias por não falar a língua do grupo tupi.
Mas estes não se tinham achado presentes, nem viram os franceses, certificaram, porém que
os havia, mas a cerca do caminho nos informaram, assim eles como outros de várias nações
de tapuias selvagens, por entre os quais não há passar senão à força de armas como estes
tinham ido; ou à força de peitas e dádivas. (Fl. 4v, L.448-453).
Nota: Genericamente, o termo tapuia indica várias tribos que eram rebeldes com os
colonizadores. No Ceará, havia os Anasés, os Paiacus, os Jucás e os Icós que habitavam o
vale do Jaguaribe. Figueira se refere em seu texto aos que estavam no Maranhão. Muitos
desses eram fugitivos dos portugueses, da ação de Pero Coelho de Sousa que esteve no Ceará
capturando-os para leva-los como escravos. Vê-se como Figueira a eles se refere como várias
noções ou várias tribos de tapuias selvagens. O adjetivo selvagem tem uma carga semântica
142

de reforço pejorativo, pois tapuia já era o índio não afeito ao português, não amigável. A
expressão selvagem agrega ainda mais a carga negativa.

Nau francesa. sf. Embarcação antiga de guerra que os franceses utilizavam na costa do
Brasil.
Estão nestas duas partes ou portos naus francesas a saber, no rio do Maranhão a que os
índios chamam Tapurucu e no das Amazonas que delas tem o nome. (Fl. 1r, L. 49-52).
Nota: Os franceses estavam no Maranhão no período histórico em que o documento foi
escrito, e era o motivo pelo qual os missionários queriam aproximar-se dos tapuias para
conquistar a amizade desses e, consequentemente, expulsar os franceses.

Nheengarayba. sm. Pessoa que rege ou dirige o canto.


São todos estes incrivelmente inclinados a cantar e dançar, e porque os potiguares são nisto
afamados e conosco iam alguns nheengaraybas, ou mestres de capela, desatinava-nos que
cantassem para os ensinarem [...] (Fl. 6v, L.7000-7003).
Nota: Figueira correlaciona a palavra indígena com a palavra portuguesa. Parece irônico, pois
mestre de capela é o que canta, que sustenta o coro musical nas igrejas e nheengarayba é o
que fala ou canta mal.
Barbosa (1951) registra nheenga como falar, responder; Nheengaiba falar más palavras, falar
de. O verbete nheengaryba é definido como “regente ou dirigente de canto”. (BARBOSA,
1951, p. 109). Para Dias (1858), a etimologia da palavra é nheeng, o verbo falar ou
responder. Nheeng ayba é falar mal. No contexto de uso, significa o que canta.

Pau de tinta. sm. Espécie de madeira da qual se extrai tinta.


O trato destes é em madeiras preciosas, e paus de tintas e pimenta, algodão, fio, redes,
pássaros, e bichos, e em particular [...] (Fl. 1v, L.54-56).
Nota: Havia no Brasil a conhecida madeira Pau-brasil, mas segundo Pompeu Sobrinho
(1967), essa madeira era ausente na zona litorânea do Ceará para o norte, já no século XVII.
Era encontrado o Pau-ferro, da mesma família, desde o Rio de Janeiro ao Rio Grande do
Norte. O pau-ferro é uma madeira forte, própria para construção. Provavelmente, Figueira se
refira a essa madeira que era muito preciosa ou será que existia Pau-brasil no norte e no
Maranhão?
143

Pau de Brasil. sm. Madeira natural do Brasil de onde se extrai uma tinta vermelha, muito
comercial no período da colonização.
Ainda que não há pau de brasil, há outros paus assim de tintas como para catres, mesas etc.
(Fl.1r, L. 30-31).
Nota: O pau-brasil foi um produto de grande importância econômica desde o princípio da
colonização do Brasil, no século XVI, até pelo menos 1530, como nos diz Vainfas (2001). No
princípio do século XVII, em territórios cearense e maranhense, a madeira já não existia ou
nunca existiu, como expõe Figueira, sem deixar de mencionar a importância que essa madeira
exercia na ambição dos negociantes.

Pedra de bazar. sf. Pedra gerada no intestino de animais quadrúpedes e que serve de
antídoto contra venenos.
Todos estes trabalhos se nos remataram com um que nós muito mais sentimos, que foi
morrer-nos um índio mancebo, dentro em 15- ou -18- horas da mordedura de uma cobra.
Nem lhe aproveitou pedra de bazar, nem alicórnio, nem queimarmos-lhe a ferida, nem
finalmente, outras mezinhas e benefícios. (Fl. 2v, L. 215-219).
Nota: Bluteau (1712. v. I, p. 174) atribui a seguinte definição para o verbete bazar “adj. pedra
usual na Medicina; calculo que se cria no bucho de humas cabras do Oriente, e se diz bazar
Oriental, ou Occidental e se diz bazar Occidental, reputa-se antídoto”.
Morais Silva (1813) define o verbete bazar com as mesmas palavras de Bluteau. Caldas
Aulete (1986. v. IV, p.1453) não registra o verbete pedra de bazar, mas pedra de cobra e
atribui a seguinte definição: “(Índia Port.) certa pedra porosa que se diz ser antídoto da
peçonha das cobras”. Registra também o verbete pedra cordial e define como “pedra artificial
que preparavam outrora os jesuítas de Goa e à qual se atribuíam virtudes curativas”. Traz o
verbete pedra de Goa e remete para a definição de pedra cordial. No Grande dicionário
etimológico-prosódico da língua portuguesa, de Silveira Bueno (1988, v. VI, p.2936), a
entrada é pedra bazar, pedra bezoar cuja acepção é “Pedra ou formação calcárea que se
forma no estômago de certos animais e que, segundo a crença transmitida pelos árabes, servia
de amuleto contra várias enfermidades, trazendo felicidade”.Em Influências orientais na
Língua Portuguesa, Nimer (2005), apresenta o verbete com várias formas como benzoar,
bazar, bezar, paza, pedra bazar, pedra de bazar, pedra bezoar, pedra bezar, pedra de vazar,
pedra pazar, pedra de baazar. Vê-se, portanto, que é palavra de origem árabe e significa a
formação calcária no intestino de animais quadrúpedes e que é considerada pelos orientais
como antídoto que expele ou protege contra veneno.Os jesuítas de Goa certamente tinham
essa prática de preparar em seu convento o antídoto para curar os venenos e mandavam para a
144

Companhia em todo o mundo. Luís Figueira e Francisco Pinto traziam o referido antídoto em
sua bagagem pelo sertão do Brasil, prevenindo-se em certas ocasiões de perigo. No entanto,
percebemos, no caso específico, que o veneno das cobras brasileiras, sobretudo das cascavéis,
era resistente ao antídoto, pois como o texto diz “nem lhe aproveitou pedra de bazar, nem
alicórnio...”.

Pé da ladeira. sm. Base ou início da ladeira.


Quando chegamos ao pé da ladeira que havíamos de subir coisa de cinco léguas, antes de
chegarmos, pelo trabalho daquele dia por ser o caminho aspérrimo e comprido, nos deitamos
sobre umas pedras ao longo de uma água[...] (Fl. 4r. L. 399-402).

Pé da serra. sm. Local que se situa no princípio ou base da serra.


Tinha se achado uma roupeta minha a qual lhe vestimos, e lavando-lhe o rosto e cabeça
cheia de sangue e terra e feita em pedaços o compusemos em uma rede para o trazermos
para o pé da serra. (Fl. 8v. L. 934-937).
Depois que enterrei o padre ao pé daquela alta serra da Ibiapaba, em um lugar que
particularmente se chama Abayára, ao longo de um rio [...] (Fl.9r, L.986-988).
Nota: O padre Francisco Pinto foi sepultado no pé da serra da Ibiapaba.

Pé da cruz. sm. Local que indica a base da cruz.


[...] e se ajuntaram as índias na casa que fora nossa, e ao pé da cruz que no terreiro
tínhamos feito levantar, fazendo nestes lugares principalmente grandes gritos e derramando
muitas lágrimas[...] (Fl. 9r, L. 1002-1005).
Nota: A lexia refere-se ao local onde foi sepultado Francisco Pinto. Para marcar esse local e a
presença cristã foi colocada uma cruz.

Peregrino da Companhia. sm. Pessoa que vai em romaria ou em missão, no caso específico,
são os missionários da Companhia de Jesus.
O nosso ordinário modo de caminhar em todo este comprido caminho até a serra da
Ibiapaba, (que serão cem léguas ao direito, foi em forma de peregrinos da Campanhia. (Fl.
1v, L. 100-103).

Pero Coelho. sm. ant. Colonizador português que veio da Paraíba em 1603 com o intuito de
colonizar o Ceará.
[...] já que este se não lembra dos grilhões em que Pero Coelho o teve três anos, e eu fui a
causa de os brancos o não enforcarem [...] (Fl.11r, L. 1228-1230).
Nota: A expedição de Pero Coelho de Souza chegou à serra da Ibiapaba após passar pela barra
do Rio Ceará e fundar ali o pequeno forte de São Tiago e uma povoação denominada de Nova
145

Lisboa. Na Ibiapaba, após lutas com os tabajaras, Pero Coelho prendeu vários índios e os
levou para vender como escravos nos canaviais. A expedição de Pero Coelho fracassou, assim
como sua tentativa de estabelecer o domínio português no Ceará, razão porque os jesuítas
vieram em 1607 e trouxera cerca de 60 índios para serem devolvidos. Sempre há referência
dos indígenas aos brancos de quem eles tinham muito medo e se escondiam porque
lembravam as atrocidades de Pero Coelho de Sousa.

Pimenta da terra. sf. Planta que produz frutos picantes.


[...] nos tinham prestes umas poucas de raízes de mandioca, a que chamam macaxeira,
cosidas e um pouco de sal e pimenta da terra e um palmito para assentar o estômago. (Fl. 3v,
L. 318-320).
Nota: Há vários tipos de pimenta. Figueira fala da pimenta da terra, mas não é possível
especificar como é essa variedade, talvez em oposição a pimenta do reino ou da índia.
Provavelmente refere-se a uma espécie de pimenta nativa.

Pindoba. sf. Espécie de palmeira.


[...] tinham me feito uma casinha mui bonita de pindoba adonde me recolheram parecendo-
lhes que lhe vinha todo o remédio contra os brancos que até agora os tinham feito andar
brenhas e rochas escondidos [...] (Fl.12r, L.1309-1312).
Nota: Palmeira de belo porte; apresenta nozes muito duras com algumas sementes e é rica em
óleo.

Porco do mato. sm. Porco selvagem de dentes aguçados conhecido também como caititu.
Ao cabo dos quais dias me tornei, e ele chegou daí a três dias e me mandou dois quartos de
porco do mato, e daí a alguns dias se me escusou de me não visitar [...] (Fl. 10v, L.1149-
1151).
Nota: Figueira se refere a dois quartos de porco do mato que recebeu de Cobra Azul. Isso
mostra a cultura dos índios em compartilhar o que têm, nessa e em muitas outras passagem do
relatório eles compartilham os poucos alimentos. Dois quartos significa a metade do porco.

Principal. sm. Índio chefe de uma aldeia.


O principal daquela aldeia chamado o Diabo Grande nos mandou um irmão seu por nome o
Diabo Ligeiro com outros índios que nos levassem para sua aldeia. (Fl.4r, L. 380-382).
Logo o principal nos ajuntou pela aldeia de seu modo próprio algum milho que havia, muito
antes que se acabasse, porque farinha havia muito pouca por causa da seca do ano passado.
(Fl. 4v, L. 441-443).
146

Nota: O termo principal aparece 38 vezes no texto de Figueira para referir-se aos chefes das
aldeias do Ceará. O jesuíta não usou a palavra cacique, como é de uso comum atualmente. A
lexia cacique é registrada em Bluteau (1789, v. I, p. 210) com a seguinte definição: “chefe dos
índios não aldeiados que vivem isentos do domínio europeu”. Morais Silva (1813) repete a
mesma acepção. Provavelmente o termo principal remeta à cultura europeia, em que os
líderes ou principais são os mais importantes, são os que têm maior graduação, os que são
mais dignos de estimação, os mais nobres. Por sua vez está relacionado com a palavra
príncipe como o herdeiro do trono, o que está no topo de uma hierarquia. Nas hierarquias
administrativas e nas congregações religiosas, o principal ocupa o lugar de destaque e de
comando e a ele é dado a importância maior. Será que Figueira transferiu esse sentido para os
chefes indígenas adotando o termo principal para legitimar ou expressar essa hierarquia em
vez de cacique?

Principalete. sm. Índio chefe de um grupo ou aldeia.


Ao dia seguinte, mais por medo que por vontade, lhe dei uma foice para roçar. Soube-o um
principalete a quem eu só tinha dado uma faca; indignado começa a pregar dizendo: estou
mui agastado e agravado contra o padre que dá foices a quem dele murmura e fala, e a mim,
não me deu foice. (Fl. 12v, L. 1392- 1397).
Estando para me embarcar, me disseram que se aprestaram mais dois principaletes, se
vierem chegarão a 200 almas. (Fl. 13r, L. 1423-1425).
Nota: A palavra não é registrada nos dicionários consultados, cremos que seja um termo
pejorativo ou uma forma diminutiva. Pelo contexto de uso não caberia a lexia, pois se trata de
um chefe como qualquer outro, por isso a hipótese da forma irônica talvez para expressar que
o índio era arrogante, pois era um principal de um pequeno grupo.

Profeta Habacuc. sm. Profeta bíblico do Antigo Testamento em que consta seu livro
constituído de três pequenos capítulos abordando as lamentações do profeta diante da situação
difícil em que vivia.
[...] nos deitamos sobre umas pedras ao longo de uma água sem podermos dar passada por
diante com fraqueza; nem podermos chegar ao lugar aonde havíamos de dormir; senão
quando chegam dois mancebos com uma pouca de farinha de milho em um cocho que para
nós foram como o profeta Habacuc quando guiado do Anjo levou o comer a Daniel. (Fl. 4r,
L. 401-407).
Nota: Figueira faz referência ao profeta Habacuc quando esse socorreu o também profeta
Daniel, ambos do Antigo Testamento, numa situação difícil em que Daniel estava preso e o
anjo do Senhor conduziu Habacuc a ele com o alimento. Os missionários jesuítas Luís
Figueira e Francisco Pinto estavam numa situação de fome quando foram socorridos pelos
147

índios que lhe trouxeram o alimento, o que leva Figueira a fazer referência à história bíblica,
marcando assim a intertextualidade que lhe é muito peculiar.O livro do profeta Hababuc tem
apenas três pequenos capítulos e fala das lamentações do profeta em prece a Deus diante da
opressão do povo e das invasões dos caldeus e termina o livro com a oração do profeta.

Queixume. sm. Lamento ou reclamação dos antepassados.


Ficaram muito contentes dizendo que agora acabavam de crer a verdade, e que lhe não
chamariam mais deus, e tudo são queixumes de seus antepassados que nem souberam nada
nem lhes ensinaram nada. (Fl. 6v, L. 676-679).

Quaresma. sf. Período de quarenta dias que começa na quarta-feira de cinzas e termina no na
Quinta-feira Santa, quando se inicia o tríduo pascal. É um período em que a tradição religiosa
estabelece o jejum, que lembra a preparação de Jesus para a páscoa.
Eu porém tive algumas castanhas de cajus e obra de uma quarta de farinha que eu tinha
trazido da Ibiapaba que fui guardando para a quaresma com a qual a jejuei toda,
condutando como era razão. (Fl. 9v, L.1027-1030).

Querimbaba. adj. Valente, esperto.


Acrescentando outras muitas coisas com que me pareceu um anjo, eu o animei, confirmando
em seu bom propósito, dizendo-lhe, que já havia dias que conhecia seu bom ânimo, e que
posto que já tinha fama de querimbaba e valente, todos lhe queriam bem [...] (Fl. 11v, L.
1241-1245).
Nota: Segundo Pompeu Sobrinho (1967), querimbaba é a forma que Figueira usou para dizer
principal por ser valente e corajoso.

Quarta de farinha. sf. Unidade de medida usada para marcar a quarta parte de um todo.
Eu porém tive algumas castanhas de cajus e obra de uma quarta de farinha que eu tinha
trazido da Ibiapaba que fui guardando para a quaresma com a qual a jejuei toda,
condutando como era razão. (Fl. 9v, L.1027-1030).
Nota: Uma quarta corresponde a quarenta litros. No caso do relatado por Figueira, a quarta
parte de um alqueiro que tem o total de 160 litros.
148

Raiz de ervas. sf. Raízes comestíveis de algumas plantas.


Eu, então, tive me mais à fome, posto que não me fez mal a que tinha comido, e ainda destas
coisas, nos veio a faltar, e passamos alguns dias sem comer mais que umas poucas raízes de
ervas da feição de cebolinhas pequenas[...] (Fl.3r, L.261-264).

Raiz de mandioca. sf. Raiz ou tubérculo da planta macaxeira que descascada e cozida serve
de alimento.
[...] antes de chegar ao mais alto, nos estava esperando o principal, e outros que para nos
esforçarem para o restante do caminho, nos tinham prestes umas poucas de raízes de
mandioca, a que chamam macaxeira, cosidas e um pouco de sal e pimenta da terra e um
palmito para assentar o estômago. (Fl. 3v, L.316-320).
Nota: a raiz da mandioca é diferente da raiz da macaxeira por aquela conter um líquido forte e
venenoso não podendo ser consumida, enquanto esta é comestível. Figueira parece não saber
diferenciá-las.

Raiz de mandioca brava. sf. Raiz ou tubérculo da planta mandioca que não é comestível de
forma cozida.
Viemos a lançar mão da maniçoba brava, bem amargosa e sem sabor, e depois chegamos a
comer da mesma raiz da mandioca brava assada de que alguns se começaram a achar mal.
(Fl. 3r, L. 268-261).

Rio Aracategi. sm. top. Rio que nasce e corre no norte do Ceará, desaguando no Atlântico no
município de Amontada.
E ao Sábado Santo, passamos um rio muito maior que todos, chamado Aracategi, que
compete com os grandes de Portugal, e nos deu bem de trabalho buscar paus para jangadas
para passar no tempo em que por cá todos se alegram e se dão as boas Aleluias. (Fl. 3r.
L.228-231).
Nota: O rio Aracategi é conhecido hoje como Aracatiaçu. Trata-se de um rio mediano em
largura e de extensão, mas na ocasião em que os padres o atravessaram, no sábado de aleluia
do ano de 1607, estava com uma grande enchente, o que levou Figueira a considerá-lo um rio
muito grande que competia com os de Portugal. Este rio corta o município de Sobral,
principalmente o distrito de Aracatiaçu, onde há um grande açude barrando as suas águas.
Depois, ele segue para o oceano passando pelo distrito de Patos, corta a BR 222, corre pelo
município de Miraíma e Amontada onde entra no Atlântico.
149

Rio das Amazonas. sm. top. Rio que nasce na cordilheira dos Andes, no Peru, e corta o norte
do Brasil, e é o maior do mundo em extensão.
Veio o principal chamado Mandiaré a nos ver e nos deu por novas haver lá muitos franceses
assim no Rio do Maranhão, como no Rio e Ilhas das Almazonas, e que tinham comércio com
elas de prata, a troco da qual lhe davam vestidos e ferramentas, e demais disso as ensinavam
a usar de arcabuzes. (Fl. 7v, L.798-802).
Nota: Figueira varia a grafia. Ora ele escreve rio Amazonas, ora rio das Almazonas, referindo-
se às entidades mitológicas que habitavam naquela região.

Rio caudal. sm. Rio que tem a corrente de água abundante.


Depois de termos caminhado todo fevereiro, chegamos aos -2 de março ao Pará, que é uma
mui formosa e quieta enseada que dista de Jaguaribe trinta e cinco léguas pouco mais ou
menos, em a qual entram três ou quatro riachos de água doce, e outro rio caudal por um
espraiado mui aprazível. (Fl. 2r, L.131-136).
Nota: Luís Figueira narra a chegada ao Pará, ou seja, a uma enseada formosa, referindo-se à
região do atual município de Paracuru, onde vários riachos entram no mar e um deles ele
descreve como rio caudal por ser maior, é o que se denomina atualmente de rio Curu, que
nasce na região montanhosa do município de Canindé, no sertão central do Ceará, e corta os
municípios de Paramoti, General Sampaio, Apuiarés, Pentecoste, São Luís do Curu e São
Gonçalo do Amarante, desaguando na divisa dos municípios cearenses de Paracuru e
Paraipaba.

Rio do Ceará. sm. top. Rio que nasce na serra de Maranguape, região metropolitana de
Fortaleza, corta os municípios de Caucaia e Fortaleza, servindo de divisa desses dois
municípios, e deságua na Barra do Ceará.
Mandei recado a uma aldeia que estava no Rio do Ceará - 25-ou-30 léguas mais para cá
para o Jaguaribe, pedindo que me fossem alguns buscar para me trazerem algum
mantimentozinho, e também me acompanharem em certo passo perigoso de tapuias. (Fl. 11r,
L. 1208-1212).
Nota: O rio Ceará tem 60 Km de extensão, sua nascente ocorre com a junção dos riachos
Jandaíra e Bom Princípio, na serra do município de Maranguape. A foz do rio Ceará situa-se,
atualmente, no bairro da capital cearense chamado Barra do Ceará. O local é considerado o
marco zero da cidade de Fortaleza. Foi na Barra do rio Ceará que Pero Coelho de Sousa, em
1603, aportou e construiu um singelo forte e fundou uma pequena localidade, mas o forte logo
se desmoronou. Os padres jesuítas Francisco Pinto e Luís Figueira, em 1607, também ali
fizeram aldeamento de alguns índios. Posteriormente, Martim Soares Moreno, que
150

definitivamente colonizou o Ceará, também construiu um forte nas imediações da foz do rio
Ceará.

Rio Grande. sm. top. Estado brasileiro que faz divisa com o Ceará, atualmente sua
denominação é Rio Grande do Norte.
Indo por embaixador o soldado de nossa obrigação que fora conosco do Rio Grande, e
levando outro presentezinho para que nos desse a conhecer a estes tapuias, informando-os de
como nós éramos mui diferentes dos seus feiticeiros e dos outros índios [...] (Fl. 5r, L. 525-
529).

Rio Jaguaribe. sm. top. Rio que nasce no município de Tauá, no Ceará, e deságua no Oceano
Atlântico, na divisa dos municípios de Aracati e Fortim, no litoral leste cearense.
Partimos, pois para esta empresa o padre Francisco Pinto e eu, de Pernambuco, por mar até
o rio chamado Jaguaribe, que são 120 - ou -130 léguas. (Fl. 1v, L.62-64).
Nota: A nascente do rio Jaguaribe é na serra da Joaninha, em Tauá. Esse rio tem 633 Km de
extensão, passando por vários municípios cearenses, convergindo para ele muitos afluentes
como os rios Banabuiú, Salgado, Palhano, Trussu, dentre outros. Historicamente, na região do
rio Jaguaribe, o processo de colonização teve início com a distribuição das terras para os
colonos, desenvolveu-se a agricultura e a criação de gado, foram fundadas as primeiras vilas
do Ceará, como Icó e Aracati, sendo essa última a mais importante de todas. A região foi
também palco de conflitos entre colonos/fazendeiros e índios, pois ali havia várias nações de
tapuias. O Jaguaribe é o maior e mais importante rio cearense. Suas águas irrigam a região
denominada de Vale do Jaguaribe onde se cultivam vários tipos de frutas para exportação. O
açude Castanhão, que barrou as suas águas, é o maior reservatório de água do estado do Ceará
e dele sai a água que abastece a cidade de Fortaleza e região metropolitana.

Rio Tapurucu. sm. top. ver rio do Maranhão.


Estão nestas duas partes ou portos naus francesas a saber, no rio do Maranhão a que os
índios chamam Tapurucu e no das Almazonas que delas tem o nome. (Fl. 1r, L.49-52).

Roçar. v. Cortar o mato, preparar a roça para a plantação.


Traçamos de nos descer ao mar e roçar e, entretanto, escrever a nossos superiores e ao
senhor governador de como as coisas estavam impossibilitadas para se ir por terra ao
Maranhão [...] (Fl. 8r, L. 858-861).
Prometi-lhe uma foice para roçar, posto que lha não dei logo, com que se despediu muito
apaziguado. (Fl. 12v, L.1378-1379).
151

[...] partiu conosco o mesmo principal levando cosigo dois ou três filhos com outra gente com
intento de roçarem no caminho junto das terras dos tapuias [...] (Fl.7v, L.783-785)
Nota: É uma prática do homem do sertão roçar o mato e queimá-lo preparando o terreno para
o plantio.

Roça limpa. sf. Local ou terreno que os índios já haviam limpado para fazer roçado.
Os tapuias carregaram ali seguindo-os e como o mato ali era estreito, logo saíram às roças
limpas. (Fl. 8r, L.876-878).

Roçazinha de milho. sf. Roçado ou plantação de milho.


[...] entre outros, se assinalou muito o principal desta aldeia, o Diabo Grande, dando-nos
uma roçazinha de milho, e outra de mandioca além doutras miudezas de cada dia.[Fl.6v, L.
692-694).
Nota: A informação apresentada por Figueira é importante porque mostra como os índios são
receptíveis. Logo na chegada dos missionários na aldeia, o seu chefe doou um roçado de
milho e mandioca para que os padres tivessem algum mantimento. Outra informação
importante é saber que os nativos cultivavam suas roças e que a cultura do milho já era uma
prática entre eles, assim como a da mandioca.

Sábado santo. sm. Sábado de Aleluia, o primeiro dia após a morte e paixão de Cristo em que
se espera o dia da ressurreição ou Domingo da Páscoa.
E passamos todos aqueles dias tão santos e de endoenças e paixão, caminhando por matos e
lamas como dantes. E ao Sábado Santo, passamos um rio muito maior que todos, chamado
Aracategi, que compete com os grandes de Portugal. (Fl. 3r, L, 126-129).
Nota: Narra Figueira que na noite do Sábado de Aleluia toda a comitiva atravessou o rio
Aracatiaçu com muitas dificuldades, pois estava com grande enchente e chovia muito. Em
seguida, celebraram a Páscoa em um arvoredo do outro lado, à margem esquerda.

Santa noite. sf. Noite do sábado de aleluia à véspera da páscoa.


E ao longo deste rio, debaixo de um espesso e triste arvoredo, estivemos aquela tão santa
noite e dia meios alagados d’água. (Fl.3r, L. 233-235).
152

Serra da Ibiapaba. sf. top. Serra que se localiza na região noroeste do Ceará, estendendo-se
até 35 km do litoral oeste e serve de limite com o atual estado do Piauí.
O nosso ordinário modo de caminhar em todo este comprido caminho até a serra da
Ibiapaba, (que serão cem léguas ao direito, foi em forma de peregrinos da Companhia. (Fl.
1v, L. 101-103).
Nota: A serra da Ibiapaba é também conhecida como serra grande. Esta serra sempre foi um
grande empecilho para os colonizadores, que vindos do leste, Pernambuco ou Paraíba para
atingir o Maranhão, deparavam-se com essa região montanhosa que impedia a passagem.
Habitavam nessa serra e região os índios tabajaras do grupo tupi que se tornaram amigos dos
padres jesuítas. Eis porque os missionários se estabeleceram ali por vários meses esperando o
contato com os tapuias que estavam do outro lado, para que esses aceitassem o contato e os
ajudassem a transpor a serra e a chegar ao Maranhão.A primeira povoação a ser fundada
pelos portugueses na serra da Ibiapaba foi a vila de Viçosa Real, hoje a cidade de Viçosa do
Ceará, que foi colonizada pelos jesuítas da Companhia de Jesus a partir do século XVII. Há
hoje várias cidades que se desenvolveram ao longo de toda a extensão da serra, como:
Tianguá, Ubajara, São Benedito, Ibiapina, Croatá da Serra, Guaraciaba do Norte, Carnaubal, e
outros diversos lugarejos. A região é conhecida pelo clima ameno, pela diversidade de
produção de culturas agrícolas, como verduras e frutas e, principalmente, pelo cultivo de
flores.A palavra Ibiapaba é grafada por Figueira com variação de I para Y. A etimologia dessa
palavra é muito discutida, mas não se tem uma definição única acerca do verdadeiro
significado. Dias (1858) apresenta a forma Ibý e apába com o significação de terra talhada.
Pompeu Sobrinho (1950) afirma que o registro do topônimo apareceu pela primeira vez na
Relação do Maranhão, sendo divulgado posteriormente em outras obras. Aproximadamente
no ano 1610, em um mapa de autoria de Pero Coelho, está grafado Muibuapaba. Em 1614, em
um Regimento dado ao sargento Diogo de Campos Moreno, aparece grafada Buapaua; em
1615 esse sargento registra Buapava. Depois, o padre Claude d’Abbeville grafa Ybuiapab, e o
padre Yvo d’Evreux Ybuapap. Em 1627, frei Vicente do Salvador adota Boapabba, e Matias
Beck, mais tarde, Upuapaba. Vê-se uma falta de uniformidade no que diz respeito à grafia da
palavra pelos viajantes europeus por se tratar de um léxico da língua dos nativos que ainda
preserva forma semelhante. Quanto ao significado, há também vários. Padre Antônio Vieira,
em 1655, atribui o significado de terra talhada; frei Francisco dos Prazeres, terra cortada;
Martius chamou terreno descoberto; já o capitão-mor do Ceará, Luis Barba Alardo de
Menezes, em 1814, diz que significa acabou-se a serra; Senador Pompeu, em 1860, atribui a
significação de fim da terra. Diante do exposto pelo pesquisador Thomás Pompeu Sobrinho
153

acerca de diversidade da interpretação de sentido, podemos dizer que a forma que parece ser
mais acertada é a de terra talhada ou cortada, por estar mais próxima das raízes tupi. Parece
que a serra corta de fato o horizonte dando ali o fim das terras. O que há do outro lado é o
desconhecido, talvez na visão indígena a transposição para o outro lado era muito difícil,
portanto, acabava-se ali.

Serra dos Corvos. sf. top. Serra localizada na região norte do Ceará, estendendo-se pelos
municípios de Uruburetama, Itapipoca, Tururu e Itapajé.
E tudo isto nos pareceu fácil quando depois nos vimos metidos em uma serra a que chamam
dos Corvos, que com o nome está declarando o triste caminho que leva quem nela se vai
meter. [Fl. 2v, L. 187-190).
Nesta triste serra dos Corvos parece que se ajuntaram todas as pragas do Brasil. (Fl. 2v, L.
204-205).
Nota: Esta serra era conhecida como serra dos corvos, como anota Figueira. José de Alencar a
denomina também de serra dos urubus. É vista como um lugar triste, escuro, observemos a
conotação pejorativa atribuída à cor negra do urubu ou do corvo. Nogueira (1887) atribui a
etimologia ninho de urubu. Pompeu Sobrinho (1950) chama de terra dos urubus. Figueira é
taxativo ao descrever como triste a serra já pelo nome e também pelas adversidades que
encontrou: “Nesta triste serra dos Corvos parece que se ajuntaram todas as pragas do Brasil”.

Sertanista. sm. Pessoa habituada aos costumes do sertão ou que já tem a prática de adentrar o
sertão para explorá-lo.
E o padre com ser antigo sertanista me disse que nunca vira entre gentios coisa semelhante.
(Fl. 4v, L.425-427).
Nota: No período colonial, era comum os viajantes europeus adentrarem o sertão do Brasil
para explorarem o território quer para conhecimento da terra quer para extraírem ouro, prata e
outros minérios. Figueira se refere ao padre Francisco Pinto, seu companheiro de viagem, que
era bem mais velho e já viera outras vezes em missão pelo Brasil. Naquela aldeia, na serra da
Ibiapaba, foram tão bem recebidos pelos nativos que ficou admirado mesmo já tendo
experiências de outras viagens.

Sertão. sm. Região do interior de um país que se distancia do mar.


O sertão é mui grande, e tem infinidade de gentio. (Fl. 1r, L. 39).
Nela nos meteram os índios, dizendo que acharíamos muito mel e ratos, que é o melhor
mantimento que há nestes sertões afastados do mar. (Fl. 2v, L.190-192).
154

Nota: A palavra sertão empregada por Figueira é sempre uma oposição ao litoral, ou seja, o
interior do Brasil afastado do mar, não importa que seja um lugar seco ou banhado pelas
chuvas.

Sertão do Jaguaribe. sm. Região do interior do Ceará, afastada do mar, localizada no vale do
rio Jaguaribe.
Vendo eu que os mais não queriam vir, procurei então de os ajuntar todos porque em todo
aquele sertão do Jaguaribe, aonde dantes havia grandíssimo número de aldeias, agora serão
por todos grandes e pequenos [...] (Fl. 12r, L. 1334-1337).

Sertão do Maranhão. sm. Região localizada no norte do Brasil, afastada do mar, na capitania
do Maranhão ou região da Amazônia.
Aqui se remataram e coroaram tantos trabalhos passados do santo padre com esta ditosa
morte, cujo intento era fazer muitas igrejas no sertão do Maranhão [...] (Fl. 9r, L.958-960).
Nota: No período retratado por Figueira, era considerado Maranhão todo o norte do Brasil,
incluindo Pará e Amazonas.

Sexta-feira da infra oitava da Epifania. sf. Tempo litúrgico situado oito dias após o Natal e
que encerra o período natalino.
[...] e despedíamos, um índio diante de nós à sexta-feira da infra octava da Epifania, fazendo
conta de nós descermos da serra. (Fl.8r, L.864-866).
Nota: A palavra epifania expressa na liturgia o encerramento do tempo do Natal. A oitava do
Natal começa com o Nascimento do Senhor, em 25 de dezembro, e termina com a solenidade
da Santa Mãe de Deus, no primeiro dia de janeiro. (URBAN e BEXTEN, 2013).

Tapuia. sm. Índio que não pertence ao grupo tupi e não fala a língua desse grupo.
Partidos, pois os quatro, chegaram os tapuias e destruíram os mais que eram por todos dez,
dos quais só escapou um mancebelhão que veio ainda alcançar os outros. (Fl. 1v, L.84-87).
E estes pobres, por derradeiro lá no Maranhão, lhe fizeram guerra os seus contrários com os
franceses e destruíram muitos, e outros morreram de doenças contagiosas, e dos que ficaram,
a metade se tornaram, e vindo, foram mortos e cativos dos tapuias, de modo que só seis ou
sete chegaram por uma vez, e por outra obra de -20- casais. (Fl. 4r, L. 362-366).
Nota: Na concepção do colonizador, os ameríndios foram divididos em dois grupos: tupi e
tapuia. O grupo tupi teria uma unidade linguística e foi mais amigável dos portugueses. O
tapuia era rebelde, possuía língua e cultura diversas. Segundo Vainfas (2001), os tapuias
155

pertenciam à família Jê e a outros grupos linguísticos isolados. Variados são os grupos


indígenas considerados tapuias como: charruas, aimorés, tremembés, kariris, janduís, paiacus,
canindés, surucus, icós, tocarubas. Nos documentos cearenses são citados os paicus, icós,
anacés, jucás. Atualmente no Ceará existem os canindés e os tremembés, além de outros.

Tamboril. sm. Instrumento musical em forma de tambor pequeno que os índios utilizavam
em suas festas.
Chegamos à outra aldeia que está junto ao rio chamado Ceará, vinte e cinco léguas além de
Jaguaribe. Receberam-nos com festas, caminhos feitos, emboscadas, tamboris etc. (Fl.12r, L.
1306-13-8).

Terras rasas. sf. Terras niveladas ao terreno sem grandes altitudes.


Em toda esta região e comarca do Maranhão, aonde há inumeráveis almas e muitas castas de
gentio, não há grandes serras, mas tudo ordinariamente são terras rasas, matos a que os
índios chamam verdadeiros [...] (Fl. 1r, L.18-22).

Terra chã. sf. Terra plana, planície ou chapada.


E corre esta serra toda assim de Norte a Sul, coisa de -25- ou mais léguas, fazendo um muro
de rochedo com suas como ameias naturais e por cima é terra chã e campina, e para parte
do poente tem muito pouca queda. (Fl. 3v, L. 309-313).
Nota: A serra da Ibiapaba tem esta formação muito plana em seu cume, por isso é também
conhecida como chapada da Ibiapaba.

Terreiro. sm. Local espaçoso e limpo em frente ou em redor das casas.


[...] mandando que se fizessem grandes e públicos prantos por toda a aldeia, e se ajuntaram
as índias na casa que fora nossa, e ao pé da cruz que no terreiro tínhamos feito levantar,
fazendo nestes lugares principalmente grandes gritos e derramando muitas lágrimas [...] (Fl.
9r, L. 1001-1005).
Nota: O terreiro pode ser um espaço grande e arejado para secagem de sementes ou outros
produtos agrícolas, como café, arroz etc.

Traça. sf. Planos ou projetos.


Conforme a isto, nos aparelhávamos e dispúnhamos nossas coisas e traças para
caminharmos e rompermos as grandes dificuldades que se nos ofereciam (Fl.4v, L.454-456).

Tijupar. sm. Cabana de índios menores que oca.


Gastamos neste caminho onze dias, indo sempre diante o Diabo Ligeiro agasalhando- nos, e
assinalando-nos lugar para nossas choupanas ou tijupares. (Fl. 4r, L.391-393).
156

Tisnar. v. Tingir-se de tisna ou carvão.


[...] e os filhos do Diabo Grande deixaram crescer o cabelo tingindo-se e tisnando-se em
sinal de tristeza que é o seu luto. (Fl. 9r, L. 1005-1007).

Vara. sf. Insígnia de juiz que permite o comando jurídico.


Pediram-nos estes que déssemos uma vara de nossa mão a um deles para que fosse alcaide
dos outros, e isto com tanta instância que nos venceu [...] (Fl. 7r, L.733-735).
Nota: A vara era o símbolo da justiça. No Brasil colonial, um juiz, quando andava em
correição jurídica ou ia aplicar a lei, conduzia uma vara em riste no punho que significava a
passagem da lei e todos deviam prestar respeito. “A vara foi sempre o símbolo da disciplina,
do poder de castigar, de infligir penalidades”. (Bueno (1988, v. VIII, p.4191). No contexto de
uso aqui, a vara simboliza o poder jurídico de comando de um índio sobre os outros no âmbito
de uma aldeia. A vara pedida e concedida é para o cargo de alcaide que significa o
comandante de uma vila ou agrupamento de pessoas. O índio que recebeu a vara e com ela o
poder de comando dos demais foi o Diabo Ligeiro, irmão do principal da aldeia, o Diabo
Grande, que assim o sugeriu. Ao receber a vara, o Diabo Ligeiro levou muito a sério a
recomendação e começou a pregar aos demais como se observa na citação seguinte: “E
dando-lha o padre, lhe declarou o fim para que se lhe dava, a saber, para emendar os que se
embebedassem, para fazer vir todos à igreja, para vigiar a aldeia etc. Tomou ele isto muito
em ponto de honra, e ao dia seguinte, de madrugada, saiu pregando com grande fervor,
dizendo entre outras coisas muitas que entrassem sempre todos na igreja aos dias Santos, e
se não, que tudo o que naqueles dias plantassem, se lhe havia de secar; e que as mulheres
tivessem cuidado da pagar o fogo [...]” (Fl. 7r, L. 739-747).

Veado arcado. sm. Veado de chifres tortos ou curvados.


Há certo gênero de animais a que eles chamam veados arcados, os quais são muito
semelhantes a camelos, na grandeza, pescoço comprido e no serem arcados ou gibosos, e
mais me afirmo em terem pontas como de veado, e por não serem bravos, tem os índios por
agouro matá-los, dizendo que matando-os ficarão frouxos [...] (Fl.1r, L. 32-37).
Nota: Pompeu Sobrinho (1967) traz uma longa explicação sobre a denominação veado arcado.
Veado é uma espécie de animal de caça e arcado se refere aos chifres desse animal que são
curvos, por isso é também conhecido como veado galheiro. Figueira parece falar de duas
espécies diferentes de veados, uma é o veado arcado que é manso, giboso e apresenta chifres
157

como os veados, a outra espécie com a qual ele compara. As informações são repassadas
pelos índios que foram ao Maranhão e lá viram ou souberam pelas narrativas dos seus
antepassados. Provar a existência desse tipo de animal é muito difícil.

3.3.2 Lexias complexas: as colocações

A cabo de. col. Ao fim de um prazo.


A cabo de um mês, tornaram com resposta; a saber que os primeiros com que encontraram,
lhe tomaram o machado, e o mais que levavam, que assim costumam ordinariamente estes
selvagens [...]. (Fl. 5r, L. 505-507).
Nota: Os jesuítas fizeram várias tentativas de contato com os tapuias, e esses não davam
resposta. Como vemos no contexto, no final de um mês, eles se manifestam e tomam os
objetos que os mensageiros levavam.

Acender a palma. col. Pôr fogo no cigarro de fumo enrolado na folha da palmeira.
Nisto pediu fogo a um moço meu, e acendendo a palma em que trazia o fumo para be- ber,
mo oferece. Respondi-lhe que não costumava a beber fumo. (Fl. 12v, L.1369-1701)
Nota: Geralmente o costume de muitos fumantes é enrolar o fumo ou tabaco em folhas de
papel conhecidas como papelinas para fazer o cigarro, mas também costumam utilizar a palha
de milho e, no contexto, a folha da palmeira ou palma. Palma pode ser também o próprio
conteúdo fumado, como tabaco ou fumo em folha (CALDAS AULETE, 1986). Podemos
depreender pelo contexto que se trata do cigarro confeccionado na folha da palma.

Andar em pés alheios. col. Ser carregado por outros.


E com preceito que nos levassem em redes, não só ao subir da ladeira, mas todas aquelas
cinco léguas, o que eles fizeram com tanta diligência e caridade quanta se não pode
encarecer (aquelas cinco léguas andamos em pés alheios em todo este caminho). (Fl. 4v, L.
411-416).
Nota: O caminho percorrido pelos padres de uma aldeia para outra foi muito cansativo, além
da subida íngreme e da fome que enfraquecia cada vez mais os corpos debilitados. A ordem
do chefe da aldeia, o Diabo Grande, foi que os índios os conduzissem em redes.

Andar como as antigas seitas. col. Viver sem demorar em um mesmo lugar por muito
tempo, sem apego às coisas.
158

O modo de viver destes é andar sempre como as antigas seitas com sua casa movida e todas
suas riquezas e alfaias são seu arco e flechas com que buscam de comer, e redes pequenas
com que pescam, e outras grandes com que caçam. (Fl. 5r, L.486-489).

Assentar as pazes. col. Estabelecer a paz ou concórdia.


[...] fariam o que nós quiséssemos e iriam para onde nós mandássemos, e juntamente se
assentaram as pazes entre eles e estes da Ibiapaba [...] (Fl. 6r, L.604-606).

Assentar o estômago. col. Alimentar-se para se sentir saciado.


[...] nos estava esperando o principal, e outros que para nos esforçarem para o restante do
caminho, nos tinham prestes umas poucas de raízes de mandioca, a que chamam macaxeira,
cosidas e um pouco de sal e pimenta da terra e um palmito para assentar o estômago. (Fl. 3v,
L. 316-320).
Nota: A fome no caminho dos missionários era constante, qualquer comida servia para
alimentar o estômago vazio e terem energia para auxiliar nas jornadas pelos caminhos ásperos
e lamacentos, nas subidas e descidas de serras, e todas as travessias que enfrentavam.

Bater as palmas. col. Bater as mãos uma na outra para dar sinal de chegada.
Outro dia à noite, de repente ouvimos bater as palmas em uma casa, e logo noutra, e logo em
todas [...] (Fl. 6v. L.664-665).
Nota: É muito comum esta forma de chamado ou aviso quando se chega na casa de alguém.
Essa já era uma prática dos nativos cearenses no século XVII.

Beber fumo. col. Fumar cigarro ou mascar o fumo.


Nisto pediu fogo a um moço meu, e acendendo a palma em que trazia o fumo para be- ber,
mo oferece. Respondi-lhe que não costumava a beber fumo (Fl. 12v, L.1369-1371).
Nota: A expressão beber fumo aparece duas vezes no texto no sentido de fumar um cigarro ou
mascar o fumo. Não se vê mais registrada nem se ouve mais esta forma linguística.

Beber os ossos. col. Ingerir os ossos moídos dos índios homens quando esses morriam como
um ritual para não sentir saudades.
Têm também por costume, quando os seus morrem, se são homens, as mulheres lhe comem a
carne, e os ossos moídos lhos bebem para que não tenham saudades daqueles que metem nas
entranhas (Fl. 5r, L. 482-484).
159

Nota: Ao narrar os costumes dos índios tapuias, Figueira passa muitas informações das
práticas cotidianas desses índios e uma delas era que as mulheres comiam a carne e bebiam os
ossos moídos dos homens quando esses morriam como um ritual de preservação da memória
nas próprias entranhas, evitando a saudade.

Beber o sangue. col. Matar alguém.


Por ser ela só povoada de gente amiga (se amigos se podiam chamar os que até agora
beberiam o sangue se pudessem aos portugueses), desde Pernambuco para cá (Fl. 2v, L.174-
177).
Nota: Apesar do discurso em proteger ou ajudar os índios, padre Luís Figueira expressa a
desconfiança da amizade dos nativos. Em outro momento da narrativa se torna mais explícita
essa falta de confiança expressa pelo medo constante de ser atacado.

Carecer da vista. col. Sentir a falta, estar ausente.


Nunca nestes caminhos me lembraram os colégios com saudades deles, senão nestes santos
dias por carecer da vista de tanta devoção como neles há [...] (Fl. 3r, L. 236-238).
Nota: Distante dos companheiros e dos rituais do convento, Figueira sente falta das práticas
religiosas ali vivenciadas.

Celebrar as exéquias. col. Fazer ritual fúnebre de despedida de alguém falecido.


Foram-se para sua aldeia, e o Diabo Grande celebrou e fez celebrar a todas as exéquias do
padre a seu modo, mandando que se fizessem grandes e públicos prantos por toda a aldeia
(Fl. 9r, L. 1000-1003).

Chegar à boca da noite. col. Chegar ao anoitecer.


Enfim, daqui se pode colegir quais chegaríamos à boca da noite. (Fl. 2r, L.148-149).

Nota: O verbo chegar tem sentido pleno de chegada a algum lugar ou em algum tempo
determinado. Ao se coligar com a locução boca da noite, estabelece o tempo de chegada. É
uma expressão muito usada no Ceará e, creio, em todo Brasil, para indicar o início ou a
entrada do anoitecer.

Chegar à carne. col. Atingir ou penetrar a carne.


Outra se arremessou a uma índia, e lhe mordeu na roupa, mas quis Deus que lhe não
chegasse à carne. (Fl. 3v, L. 286-287).
160

Nota: Na acepção do texto, a mordedura da cobra não atingiu a carne de uma índia, ficando
apenas na roupa.

Chegar à mão. col. Entregar algo ao destino indicado.


[...] lhe tomaram o machado, e o mais que levavam, que assim costumam ordinariamente
estes selvagens, nem aproveitou dizerem-lhe que era para o principal, só uma faca lhe
chegou à mão. (Fl. 5r, L.506-509).

Chegar à riba. col. Atingir o destino, no caso a aldeia encima da serra.


Com caminharmos bem aquele dia e partirmos cedo, acabamos de chegar à riba, às duas ou
três horas depois de meio dia. (Fl. 3v, L.314-315).
Nota: Ao chegar à Ibiapaba, os missionários ficaram em uma aldeia muito pobre, depois se
transportaram para outra mais acima da serra, liderada pelo Diabo Grande. Vejamos que a
forma à riba é utilizada no século XVII como norma, que não tem mais prestígio atualmente,
apesar de ainda se ouvir muito no Ceará como variante de acima ou de levantar, como em
“arribar o braço”, “mora mais arriba”, “vive à riba da estrada”.
Sabemos que é do latim e do português arcaico o modo de falar e escrever à riba, mas é
estigmatizado na norma culta atual, sobrevivendo em falares regionais.

Chegar aos tujupares col. Atingir o destino, no caso, os aldeamentos ou ranchos


improvisados.
Enfim, comemos daquela farinha, e bebemos daquela água, e assim pudemos chegar aos
tujupares, aonde já os nossos estavam e tinham também. (Fl. 4r, L.406-409).
Nota: Caldas Aulete (1986) registra tijupá como forma variante de tujupar. E define como
cabana de índios, menor que uma oca. Também pode ser uma palhoça que serve de abrigo aos
trabalhadores nas roças e seringais.

Chegar a 200 almas. col. Contabilizar ou completar uma quantia.


Estando para me embarcar, me disseram que se aprestaram mais dois principaletes, se
vierem chegarão a 200 almas. (Fl. 13r, L. 1423-1425).
Nota: O verbo chegar neste contexto já passou pelo processo de gramaticalização e passa a
indicar um sentido de completude, estabelecer um certo limite, chegando a uma quantidade
máxima.
161

Começar a pregar. col. Iniciar a falar sobre algum tema.


Soube-o um principalete a quem eu só tinha dado uma faca; indignado começa a pregar
dizendo: estou mui agastado e agravado contra o padre que dá foices a quem dele murmura e
fala, e a mim, não me deu foice. (Fl. 12v, L.1393-1397).
Nota: Figueira sempre faz referência a índios que fazem pregações a respeito dos padres.

Cometer pazes. col. Estabelecer contatos e acordo de paz.


E no mesmo tempo mandamos cometer pazes ao Milho Verde, que é inimigo capital dos
brancos e dos índios da Ibiapaba com quem estávamos [...] (Fl. 5v, L. 536-538).

Criar matéria. col. Desenvolver matéria purulenta.


[...] porém daí a poucos dias das ervas e moscas, e mosquitos que nos picavam, se nos
fizeram os pés leprosos, e a mim em especial, me incharam, criando matéria em várias
partes, pelo que a necessidade nos constrangeu a nos tornarmos a calçar [...] (Fl. 3r, L.243-
246).
Nota: Nas feridas causadas pelas mordidas dos insetos desenvolvia matéria purulenta, pela
infecção dos tecidos.

Correr a serra. col. Estabelecer o percurso dos limites do princípio ao fim.


[...]corre esta serra toda assim de Norte a Sul, coisa de -25- ou mais léguas [...] (Fl. 3v,
L.310-311).
Nota: A expressão estabelece a extensão e o percurso da serra do litoral para o sertão.

Correr presente. col. Começar a distribuir ou trocar os presentes.


Metidos nós e gasalhados em uma das suas choças que para isso tinham aparelhada,
começaram a correr os presentes, quem meia dúzia de espigas de milho, quem um palmito
[...] (Fl. 3v, L. 326-328).

Dar a nova. col. Anunciar uma notícia.


[...] e o outro companheiro nos veio dar a nova que foi bem recebida por nos faltar gente
para nos levar o fato, e também porque eram parentes dos de nossa companhia. (Fl. 1v, L.
74-76).
Nota: A boa nova ou notícia a que se refere o padre é que foram encontrados vários índios
escondidos e esses se juntariam aos missionários e ajudariam a conduzir a bagagem.
162

Dar bataria. sf. col. Dar razões para convencimento de alguma coisa.
[...] e procurou com muitas veras de trazer o pai e todos os seus parentes finalmente estando
eu para partir se foi ao pai a lhe dar a última bataria com muitas razões que para isso ele
alegou[...] (Fl.11r, L. 1218-1221).
Nota: a mesma coisa que dar bateria. Ambas as formas são registradas nos dicionários, no
verbete bateria.

Dar boas aleluias. col. Desejar feliz páscoa.


E ao Sábado Santo, passamos um rio muito maior que todos, chamado Aracategi, que
compete com os grandes de Portugal, e nos deu bem de trabalho buscar paus para jangadas
para passar no tempo em que por cá todos se alegram e se dão as boas Aleluias. (Fl. L. 228-
231).

Dar conta. col. Prestar as informações necessárias.


Ali me detive alguns dias, esperando embarcação e tempo até que Deus o deu. Seja Ele
louvado com tudo e tudo seja para sua honra e glória. Isto se me ofereceu para dar conta a
Vossa Paternidade em cuja benção me encomendo[...] (Fl. 13r, L. 1431-1434).
Nota: No encerramento do relatório, Figueira louva a Deus por tudo que passou e expressa a
alegria de poder relatar os fatos sobre a missão, ou seja, dar conta para seu superior para quem
usa o tratamento Vossa Paternidade.

Dar orelha. col. Dar atenção, escutar as conversas.


[...] e que não ouvissem minhas palavras nem lhe dessem orelhas que logo iria outro padre a
morar com eles e lhe fazer igreja e outras muitas coisas a este tom e tais [...] (Fl. 12r, L.
1327-1329).

Deitar de si. col. Expulsar os invasores ou estranhos do ambiente indesejado.


[...] com intenção de pregar o evangelho àquela desamparada gentilidade, e fazermos com
que se lançassem da parte dos portugueses, deitando de si os franceses corsários que lá
residem [...]. (Fl. 1r, L. 8-11).
Nota: Era vontade dos missionário que se expulsassem ou lançassem fora os franceses do
território do Maranhão, pois eram invasores da coroa portuguesa.

Desfazer as roças. col. Abandonar os roçados para cuidar de outra coisa.


Veio finalmente, convidei-o para vir comigo para a igreja, e a outros principais que ali se
ajuntaram, e ele porém sempre se mostrou algum tanto duro, mas os outros me deram
palavra de virem e em efeito se aparelharam, querendo logo desfazer as roças (Fl. 9r, L. 990-
996).
163

Nota: A expressão desfazer as roças gera mais de uma interpretação, porque significa deixar
para lá, esquecer e partir, como expressa o contexto, mas poderá ser também fazer a colheita
na época certa, desfazendo aquilo que a natureza produziu, como arrancar o milho, o feijão e
outras culturas.

Desfazer as imaginações. col. Tirar as ideias ou pensamento da cabeça.


E posto que eu trabalhei por desfazer estas suas imaginações, como quer que estava ausente
não me foi possível. (Fl. 9v. L. 1037-1039).
Nota: Figueira tenta convencer o índios de que ele não veio para os prender, pois era esta
ideia que estava na cabeça de alguns, visto que Pero Coelho de Sousa, que veio anteriormente,
levou vários índios como escravos para vendê-los. Era necessário desfazer as imaginações ou
ideias de que os missionários eram inimigos.

Desfazer roça em farinha. col. Fazer farinhada, transformando a mandioca em farinha por
meio de vários processos.
[...] me deram um escrito do padre Gaspar de Samperez, que em um barco de Jerônimo
d’Albuquerque e com algumas farinhas e milho me ia buscar, no que enxerguei a muita
caridade sua, porque para este efeito desfez uma roça em farinha e fretou o barco e em
pessoa se meteu nele [...] (Fl. 13r, L. 1406-1411).
Nota: Ainda hoje se faz farinhada em todo o Nordeste brasileiro que consiste quase no mesmo
processo que os índios realizavam. A cultura da farinha é muito forte em todo Brasil como
uma herança indígena. Vê-se no texto que o governador do Rio Grande do Norte, Jerônimo de
Albuquerque, português, já havia assimilado a cultura indígena de fazer farinha. Figueira
relata várias vezes o hábito dos índios de comer farinha e os padres também tinham a farinha
como um principal alimento.

Dizer missa. col. Celebrar a missa ou Eucaristia.


Enfim, trazendo-os conosco, nós partimos do Jaguaribe, dia de Nossa Senhora das Candeias,
2º de fevereiro, depois de dizermos missa e comungarem alguns dos nossos. (Fl. 1v, L.98-
100).

Efeituar as pazes.col. Realizar ou estabelecer as pazes.


[...] os quais queríamos acabar de apaziguar, e efeituar as pazes também começadas para
continuarmos nosso caminho até o Rio do Pará [...] (Fl. 7v, L.785-787).
164

Enovelar os mortos. col. Enrolar ou embrulhar os mortos para o sepultamento.


Para o enterramento se ajuntaram todos assim os nossos como os outros todos com suas
candeias acesas, o trouxemos em procissão à igrejinha em que dizíamos missa, em um esquife
que lhe tínhamos mandado fazer, coisa que pasmou a estes gentios porque o costume seu é
enovelarem os seus mortos, e assim os metem em um buraco que para isso fazem em
qualquer mato. (Fl. 6r, L. 631-635)

Estar à borda do mato. col. Localizar-se próximo ou à margem do mato.


E porque os selvagens saíram a nossa porta, que estava no coice da aldeia, à borda do mato,
e o padre estava dentro em casa, rezando as horas menores, saiu com trabalho, tendo os
nossos o ímpeto dos tapuias que o não matassem logo, e o foram amparando até entrarem no
mato. (Fl. 8r, L. 872-876).
Nota: Figueira se refere à localização da casa em que os padres residiam, na serra da Ibiapaba,
que estava próxima ao mato, quando foi atacada pelos tapuias que mataram Francisco Pinto.

Estar alvoroçado. col. Estar inquieto ou apressado para fazer algo.


A ida aos quais não tivera efeito à primeira vez como já disse, e a resposta foi que estavam
alvoroçados por nos ver, e que fôssemos e lhe levássemos muitas ferramentas que devíamos
de as trazer [...] (Fl. 5v, L.584-587).

Estar com os olhos em alvo. col. Estar muito doente com os olhos sem brilho.
Outra criança de poucas semanas, ainda estando com os olhos em alvo para espirar,
batizamos e foi o Senhor servido dar-lhe saúde tomando logo daí a pouco o peito da mãe que
dantes não tomava. (Fl. 5v, L. 661-663).

Estar no coice da aldeia. col. Estar localizada na parte de traz da aldeia.


E porque os selvagens saíram a nossa porta, que estava no coice da aldeia, à borda do mato,
e o padre estava dentro em casa, rezando as horas menores [...] (Fl. 8r, L.872-874).
Nota: Conforme a informação, a casa dos missionários estava localizada fora da aldeia, na
parte traseira, por isso no coice, ou seja, atrás.

Estar quedo. col. Estar quieto, não ter ação.


Bradavam os nossos aos tapuias que estivessem quedos que aquele era o padre abaré que os
queria apaziguar e ensinar a boa vida etc. (Fl. 8r, L.878-880).
165

Fazer assento. col. Estabelecer-se ou estabilizar-se em algum local.


Posto-nos ali em tanta fome quanta dantes já trazíamos, e estávamos como tísicos de magros
que não tínhamos mais que a pele sobre os ossos, e era necessário irmos fazer assento aonde
tivéssemos com que nos refazer. (Fl. 4r, L. 373).
Nota: Trata-se do estado de miséria em que se encontravam os missionários ao chegar à serra
da Ibiapaba. Tolhidos pela fome, era necessário fazer assento ou encontrar um local para
trabalhar e produzir alimentos para restabelecimento das forças.

Fazer uma chã. col. Apresentar um local plano em cima de uma ladeira.
[...] acabamos de chegar à riba, às duas ou três horas depois de meio dia, e em uma chã que
faz a ladeira, antes de chegar ao mais alto [...] (Fl.3v, L. 314-316).

Fazer conta. col. Dar notícia ou informação sobre fazer algo.


[...] por não haver palmo de terra em cem léguas de caminho que não esteja povoada de
tapuias, que quem dos primeiros e segundos escapasse, não escaparia dos terceiros e quartos
e conforme à ordem que nos viesse, faríamos, e despedíamos, um índio diante de nós à sexta-
feira da infra octava da Epifania, fazendo conta de nós descermos da serra. (Fl. 8r, L. 861-
866).

Fazer fincapé no chão. col. Pôr o pé no chão fazendo força para sustentar algo.
Têm grande medo de cair o céu sobre eles e para impedirem este mal, alguns deles pela
manhã, em espertando, se levantam e fazem fincapé no chão com as mãos ambas para o céu
para terem mão nele que não caia, e assim lhe parece que fica direito para todo aquele dia.
(Fl. 10v, L. 1170-1174).
Nota: A narrativa de Figueira destaca as crenças dos índios da Ibiapaba que tinham medo de o
céu cair sobre eles, portanto, na sua ingenuidade faziam finca-pé no chão, levantando as mãos
para o céu na crença de sustentá-lo, para evitar sua queda.

Fazer grande estrondo. col. Fazer grande barulho por meio de esforço.
Estando-nos um dia à noite em nossa casa, ouvimos um que tossia com grande eficácia e
escarrava procurando de vomitar fazendo grande estrondo, mandamos saber que era aquilo
[...] (Fl. 6r, L. 644-646).

Fazer grandes e públicos prantos. col. Chorar e lamentar muito e publicamente.


Foram-se para sua aldeia, e o Diabo Grande celebrou e fez celebrar a todas as exéquias do
padre a seu modo, mandando que se fizessem grandes e públicos prantos por toda a
aldeia[...] (Fl. 9r, L. 1000-1002).
166

Nota: O jeito de expressar o sentimento pela morte do padre Francisco Pinto, como era o
costume da cultura indígena, foi fazer grandes prantos e lamentações.

Fazer guerra. col. Guerrear, gerar conflitos e combates.


[...] e que bem o mostrávamos em nosso modo de caminhar com nossos livros de rezar, que
não íamos buscar escravos nem fazer guerra o que bem mostravam nossos bordões [...] (Fl.
6r, L. 624-626).
Nota: A forma que os missionários vieram ao Ceará foi diferente da forma que os militares
aqui chegaram. Os militares traziam a guerra contra os índios, os missionários os aldeiavam
e apaziguavam os conflitos, pelo menos nesse contexto em que Figueira narra.

Fazer igreja. col. Construir ou edificar igreja para implantar a evangelização dos nativos do
Norte e Nordeste do Brasil.
[...] que não se bulissem nem desamparassem suas terras e pátria antiga de seus
antepassados e que não ouvissem minhas palavras nem lhe dessem orelhas, que logo iria
outro padre a morar com eles e lhe fazer igreja e outras muitas coisas. (Fl. 12r, L. 1325-
1329).

Fazer milharada. col. Plantar milho no roçado para o suprimento de alimentos.


[...] mas como eu por então não queria mais que vir-me ao mar a esperar que passasse o
inverno que entrava, pretendendo entretanto, fazer algumas milharadas, e avisar juntamente
a meus superiores [...] (Fl. 9r, L. 995-998).

Fazer os pés leprosos. col. Tornar os pés feridos ou com lepras por causa de vários
incidentes.
[...] por onde nos foi necessário descalçarmo-nos; porém daí a poucos dias das ervas e
moscas, e mosquitos que nos picavam, se nos fizeram os pés leprosos, e a mim em especial
[...] (Fl. 3r, L. 243-245).

Fazer pazes. col. Estabelecer a paz ou amizade por meio de diálogos e de negociações.
Finalmente, daí há muitos dias nós quisemos pôr em cobro, e vendo que totalmente se nos
fechava a porta do Maranhão (por que em -5- meses que tratamos fazer pazes com os
tapuias[...] (Fl. 8r, L. 853-855).

Fazer procissão. col. Fazer caminhada solene e respeitosamente com o objetivo de


reverenciar Jesus Cristo ou a imagem de um santo.
167

E nós a fizemos deter, oito ou nove dias - por esperar pela festa da Assunção de Nossa
Senhora em que tínhamos para fazer uma procissão com uma dança de meninos destes
gentios e um diabrete etc.[...] (Fl. 5v, L. 568-571).
Nota: As procissões, segundo Urban e Bexten (2013), têm um caráter confessional em que os
fiéis manifestam sua adesão a Cristo quando acompanham o cortejo. Há vários tipos de
procissão: com o Santíssimo Sacramento, a procissão no Domingo de Ramos, as procissões
nos encerramentos das festas religiosas dos padroeiros das paróquias etc.

Fazer saltar sangue fora. col. Fazer sair ou escorrer o sangue na pele.
Inumeráveis cobras, e aranhas a que chamam caranguejeiras, peçonhentíssimas de cuja
mordedura se diz que morrem os homens, carrapatos sem conto, mosquitos e moscas que
magoam estranhamente, e ferem como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora [...] (Fl.
2v, L. 205-209).

Fechar a porta do Maranhão. col. Tornar impossível a ida ao Maranhão.


[...] finalmente daí há muitos dias nós quisemos pôr em cobro; e vendo que totalmente se nos
fechava a porta do Maranhão (por que em -5- meses que tratamos fazer pazes com os
tapuias[...] (Fl.8r, L. 853-855).

Ficar à borda do mato. col. Estar à beira ou em torno do mato.


[...] meteu-se logo em um matozinho bem estreito, mas fechado pelo que eu não pude dar por
ele muitos passos, e assim nós ficamos logo à borda do mato, ouvindo gritos junto de nós por
todas as partes [...] (Fl. 8v, L. 901-904).

Ficar em talas. col. Ficar em dificuldades, estado de angústia como entalado.


Pegaram-se todos os nossos ao seu parecer dizendo que esperássemos e roçássemos todos, e
porque no cristão eles não reconhecem nenhuma superioridade, tanto que os afastais da que
eles querem, ficamos em talas e necessitados a condescender com eles por não haver outro
remédio. (Fl. 7v, L. 810-814).
Nota: Morais Silva (1813, v. II, p. 750) registra a colocação ver-se em talas na entrada da
lexia tála e aparenta o seguinte conceito: “ver-se em talas, em angústia, apertos, casos
difficeis por todos os lados”. Por sua vez, a palavra tála é uma peça plana de madeira que se
põe com outra em redor de alguma coisa que se quer apertar, a qual em meio delas se diz
entalada, por algo atravessado. Por analogia, ficar em tala é estar em situação travada.

Ficar em figura de cruz. col. Ficar com o corpo ereto e de braços estendidos para ambos os
lados como se pregado numa cruz.
168

Chegaram então ao padre, e tendo-lhe uns mão nos braços estirando-lhos para ambas as
partes, ficando ele em figura de cruz, outros lhe deram tantas pancadas com um pau na
cabeça que lha fizeram pedaço [...] (Fl. 8r, L. 886-889).
Nota: A descrição da morte do padre Francisco Pinto é feita de forma muito sensível pelo
amigo Luís Figueira em que ele reporta a morte de Cristo, quando diz que os tapuias pegando-
o pelo braço estiraram-nos para os lados, dessa forma, o corpo de Francisco Pinto ficou em
figura de cruz, uma alusão direta à crucificação de Cristo.

Haver à mão. col. Aproximar-se e dominar mais facilmente.


[...] logo se meteram pela terra para ver se achavam alguns de seus parentes, eis que dois dos
nossos encontram com uns que andavam escondidos, assim dos portugueses, por não virem
presos por escravos, como muitos seus parentes, como também por medo dos tapuias com os
quais os ditos portugueses se confederaram afim de os haver à mão mais facilmente. (Fl.1v,
L.66-71)

In médio nationis prava. col. No meio de nação brava.


Foi e tornou-me com recado e novas tristes dizendo, é morto o nosso padre, aqui comecei
com ele a derramar lágrimas tristes e chorar meu desamparo, in medio nationis praua (Fl.
8v, L. 925-928).
Nota: A expressão latina é posta no texto de Figueira quando ele relata o anúncio da morte do
padre Francisco Pinto. Em meio à nação de gente brava ou estranha, ele começa a chorar a
morte do amigo. Parece ser para ele algo estranho, sinal de fraqueza expressar sua dor aos
estranhos que ele julgava inferior; ao mesmo tempo, expressa o medo de ficar só, a solidão e o
isolamento de alguém de seu nível intelectual, dentre outros sentimentos.

Lançar mão. col. Apropriar-se ou tomar para si, no caso aqui, se alimentar.
Viemos a lançar mão da maniçoba brava, bem amargosa e sem sabor, e depois chegamos a
comer da mesma raiz da mandioca brava assada de que alguns se começaram a achar mal.
(Fl. 3r, L. 258-261).
169

Levantar uma cruz. col. Fincar ou levantar uma cruz em sinal da presença religiosa e da
evangelização.
Os índios que aqui achamos seriam por todos -50- ou 60- almas. Ficaram com intento de
ajuntarem algumas relíquias dos seus, que andam espalhados por esses matos, para o qual
nos pediram lhe levantássemos uma cruz, o que fizemos com gosto para que à sombra desta
árvore[...] (Fl.2r, L. 161-164).

Morrer bem aparelhado. col. Morrer preparado espiritualmente, seguindo os preceitos


religiosos do catolicismo e com os sacramentos administrados.
Morreu ético mui bem aparelhado, confessando-se e comungando duas vezes e fazendo seus
apontamentos. (Fl. 6r, L. 628-630).
Nota: O verbo aparelhar é muito usado por Figueira. No contexto aqui, significa bem
preparado ou com todos os rituais litúrgicos.

Morrer ético. col. Morrer em paz consigo mesmo seguindo as orientações espirituais e os
rituais sacramentais.
Morreu ético mui bem aparelhado, confessando-se e comungando duas vezes e fazendo seus
apontamentos. (Fl. 6r, L. 628-630).
Nota: A palavra ético pode ter pelo menos dois sentidos: o de estar bem espiritualmente,
conforme compreendemos na definição acima, mas pode revelar a causa da morte, ou seja,
morrer ético é morrer de héctica, doença que enfraquece a pessoa, deixando-a muito frágil. É
o mesmo que tísica pulmonar, doença do enfraquecimento. Essa doença era comum no Ceará,
mas o contexto parece não se referir à causa da causa da morte.

Morrer sem batismo. col. Morrer pagão, sem receber o ritual do batismo.
Nisto me disseram que ficava lá em um mato um índio o qual vivia ainda, mas que estava
morrendo, e por que este era ainda catecúmeno, temendo que morrendo no caminho sem
batismo [...] (Fl. 8v, L. 938-940).

Passar à força de armas. col. Transpor o caminho, levando armas para defesa contra os
perigos de inimigos.
Mas estes não se tinham achado presentes, nem viram os franceses, certificaram, porém que
os havia, mas a cerca do caminho nos informaram, assim eles como outros de várias nações
170

de tapuias selvagens, por entre os quais não há passar senão à força de armas como estes
tinham ido; ou à força de peitas e dádivas. (Fl. 4v, L. 448-453).
Nota: A tentativa de chegar ao Maranhão para apaziguar os tapuias por meio de diálogo foi
fracassada, neste contexto. Luís Figueira afirma que só poderiam passar para aquele lado do
Maranhão à força de arma, mas os missionários não trouxeram soldados na viagem de 1607,
preferiram arriscar a empreitada com a força do diálogo. Em outro momento, Figueira veio
acompanhado pelas armas dos militares portugueses para colonizar o Maranhão.

Passar à força de peitas. col. Transpor o caminho por meio de cobrança de tributos pagos ao
rei.
Mas estes não se tinham achado presentes, nem viram os franceses, certificaram, porém que
os havia, mas a cerca do caminho nos informaram, assim eles como outros de várias nações
de tapuias selvagens, por entre os quais não há passar senão à força de armas como estes
tinham ido; ou à força de peitas e dádivas. (Fl. 4v, L. 448-453).
Nota: O entendimento da expressão linguística tem sentido pelo contexto de uso. A palavra
peitas refere-se a um tributo pago ao rei por quem não era fidalgo. Dessa forma, entendemos
que para passar pelos tapuias que ocupavam o caminho do Maranhão, era necessário aplicar
uma pena tributária, como se eles compreendessem e aceitassem tal imposição.

Passar à força de dádivas. col. Transpor o caminho por meio de promessas ou de subornos.
Mas estes não se tinham achado presentes, nem viram os franceses, certificaram, porém que
os havia, mas a cerca do caminho nos informaram, assim eles como outros de várias nações
de tapuias selvagens, por entre os quais não há passar senão à força de armas como estes
tinham ido; ou à força de peitas e dádivas. (Fl. 4v, L. 448-453).
Nota: A palavra dádiva remete ao contexto de dar alguma coisa de suborno ou prometer algo.
Vemos como a dificuldade de alcançar os tapuias era imensa, assim como a necessidade dos
missionários chegar ao Maranhão. Este objetivo não foi alcançado por Figueira na sua viagem
de 1607.

Pôr em cobro. col. Pôr-se em segurança ou encoberto de qualquer perigo.


E bem procurei eu que nos puséssemos logo em cobro que bem fácil era, mas este era o
termo que havia de ter a santa vida do padre Francisco Pinto .[Fl. 8r, L. 851-853].

Pôr o pé na roça. col. Ir ao roçado ou à roça.


E de efeito mandou logo avisar a uma índia que não pusesse mais pé na roça que lhe tinha
dado outro índio, e com estes gostos passei quase seis meses que estive em sua casa. (Fl. 10v,
L. 1159-1162).
171

Nota: No caso aqui, não ir mais na roça, pois a índia estava proibida de ir ao roçado.

Pregar o evangelho. col. Falar ou discorrer sobre o Evangelho ou sobre temas religiosos,
ensinar a doutrina cristã.
[...] nós partimos para a missão do Maranhão, o padre Francisco Pinto e eu com obra de
sessenta índios, com intenção de pregar o evangelho àquela desamparada gentilidade, e
fazermos com que se lançassem da parte dos portugueses [...] (Fl. 1r, L. 6-10).
Nota: Um dos objetivos da Missão do Maranhão é exposto logo no início do texto de Figueira
que é a evangelização dos índios, missão que os jesuítas assumiram no Brasil.

Receber o santo batismo. col. Batizar-se e iniciar-se na vida cristã conforme a doutrina do
catolicismo.
Respondeu que sim com grande alegria e que queria ir para o céu, e logo mostrando uns
efeitos de predestinado, recebeu o santo batismo ao dia seguinte, e por ser em dia de São
Barnabé lhe pusemos o seu nome e com ele se foi para a glória. (Fl. 6v, L. 654-657).
Nota: Conforme a doutrina católica, o batismo é o primeiro sacramento da iniciação cristã.

Romper as dificuldades. col. Enfrentar e vencer os desafios da jornada.


Bem nos enfadaram com tanta cobiça junto com serem selvagens, sem medo nem respeito,
mas nós estávamos, contudo, apostados a romper por todas as dificuldades com o favor de
Deus. (Fl. 6r, L. 590-594).

Romper à forca de braço e ferro. col. Desbravar os caminhos utilizando os ferros como
facões e foices e a força braçal para abrir o espaço por onde passavam.
Gastamos -12- ou-13- dias sem sabermos bem quando era manhã nem noite com os espessos
e altíssimos matos, por baixo dos quais íamos rompendo à força de braço e ferro, subindo e
descendo montes e rochedos que excedem toda a exageração, saltando de pedra em pedra[...]
(Fl. 2v, L. 195-200).

Romper os matos. col. Traspassar a vegetação abrindo o caminho que haviam de seguir.
Os que foram a uma das partes tornaram-se do caminho a primeira vez por não poderem
romper os matos; os que foram a outra, levaram um presente ao principal deles [...] (Fl.5r, L.
499-501).
172

Sair das Lapas. col. Sair das covas ou esconderijos por onde andava escondido.
E ele então me fez uma grande prática em que dizia que eu fora causa de ele sair das lapas e
matos a roçar em público, o que estava fora de fazer se algum branco viera que não fosse
padre e que já agora estava descansado[...] (Fl. 12v, L.1374-1377).
Nota: A palavra lapa é dicionarizada em Caldas Aulete (1986) com a mesma acepção de
Morais Silva (1813), significando cova, gruta, buraco que serve de esconderijo.

Sair dos matos. col. Sair do esconderijo onde vivia dentro dos matos.
E quem me fez a mim sair dos matos, por ventura vós outros? É grande falsidade, por amor
do padre saí eu a pouco e estou hoje sem nenhum temor, ora isto baste que sois todos umas
mulheres[...] (Fl. 12v, L. 1388-1391).

Ser valha couto. col. Servir de proteção.


Estes da Ibiabapa ficam muito contentes por lhe ficarem os ossos do padre em sua terra, o
qual cuidam lhe será valha couto dos brancos e, aos que de lá vinham, ameaçaram que os
não trouxessem. (Fl. 11r, L.1194-1196).
Nota: Os índios acreditavam que o missionário sepultado na serra lhes dava proteção, como
também aos portugueses.

Ter palavra. col. Ter certeza de fazer algo, garantia.


Com isto nos ofereceu, um pouco de milho e de feijões que trazia, e tendo palavra de nós que
iríamos com ele. (Fl. 4r, L. 385-387).

Ter mãos nos braços. col. Segurar com as mãos os braços para estirá-los.
Chegaram então ao padre, e tendo-lhe uns mão nos braços estirando-lhos para ambas as
partes, ficando ele em figura de cruz, outros lhe deram tantas pancadas com um pau na
cabeça que lha fizeram pedaço[...] (Fl. 8r, L. 886-889).
Nota: A narrativa de Figueira sobre a morte do padre Francisco Pinto, descrevendo como
ficou seu corpo, faz uma nítida comparação com a narrativa da morte de Jesus Cristo narrada
no Evangelho. O corpo do padre ficou em forma de cruz como se fosse crucificado. A mesma
comparação se faz em relação ao seu sepulcro que foi ladeado por dois índios que morreram
com ele na mesma investida dos tapuias, como se percebe na passagem: “Mandei logo buscar
os dois índios, um deles estava já morto, outro morreu ao dia seguinte, ambos os fiz enterrar
173

junto do padre por cuja defensão morreram, um de uma parte, outro da outra, ficando ele no
meio”. (Fl.9r, L.954-967).

Ter pontas como de veados. loc. Ter chifres semelhantes aos do veado.
Há certo gênero de animais a que eles chamam veados arcados, os quais são muito
semelhantes a camelos, na grandeza, pescoço comprido e no serem arcados ou gibosos, e
mais me afirmo em terem pontas como de veado, e por não serem bravos, tem os índios por
agouro matá-los, dizendo que matando-os ficarão frouxos [...] (Fl.1r, L. 32-37).
Nota: Ter chifres semelhantes aos veados, significa que são duas espécies diferentes que o
narrador descreve: os veados e outros animais semelhantes os quais não podemos precisar.
Seriam as llamas, animais típicos do Andes, que chegavam até o norte do Brasil?

Ter por agouro. col. Acreditar em superstição ou presságio de coisas ruins no futuro.
[...] e por não serem bravos, tem os índios por agouro matá-los, dizendo que matando-os
ficarão frouxos e para pouco, e deve ser fácil domes- ticar e amansar estes animais. (Fl. 1r,
L. 35-38).

Ter pouca queda. col. Ter pouca inclinação.


[...] fazendo um muro de rochedo com suas como ameias naturais e por cima é terra cham e
campina, e para parte do poente tem muito pouca queda. (Fl. 3v, L. 211-213).
Nota: A subida da serra da Ibiapaba pelo lado leste ou nascente é muito íngreme com ladeiras
altas, o topo da serra é muito plano, por isso o nome de planalto. A descida para o lado oeste
que dá acesso ao Piauí apresenta pouca inclinação.

Ter efeito. col. Ter resultado ou resposta de uma proposta ou investida.


Rematando nossas coisas na aldeia do Diabo Grande, aonde nos detivemos passante de
quatro meses, tentando pazes com os tapuias sem terem efeito. (Fl. 7r e 7v, L. 765-769).

Tirar palavra alguma. col. Obter qualquer palavra ou informação de alguém.


Dali me fui ao lugar onde morrera o padre a ver o índio que com ele morreu que também
arquejava ainda, mas não lhe pude tirar palavra alguma [...] (Fl. 8v, L.945-947).
Nota: O que o narrador diz é que não tirou palavra alguma, não obteve nenhuma informação.

Tomar a dianteira. col. Pôr-se ou caminhar à frente de alguém.


Saiu comigo um nosso moçozinho que me foi a salvação o qual me tomou a dianteira
correndo e bradando-me, apressa-te, apressa-te pai. (Fl. 8v, L. 898-900)
174

Tomar língua. col. Buscar informações, saber ou ter conhecimento das coisas.
[...] desde Pernambuco para cá, que serão como 230 léguas, e nosso intento em a virmos
demandar foi para nela nos refazermos de mantimentos, e mandarmos daí ao Maranhão a
tomar língua do estado das coisas, principalmente se havia franceses [...] (Fl. 2v, L.176-
180).

Tomar em ponto de honra. col. Levar muito a sério, assumir com responsabilidade as
funções atribuídas.
Tomou ele isto muito em ponto de honra, e ao dia seguinte, de madrugada, saiu pregando
com grande fervor, dizendo entre outras coisas muitas que entrassem sempre todos na igreja
aos dias Santos [...] (Fl. 7r, L. 740-744).

Tomar o agravo. col. Aborrecer-se ou chatear-se com uma pessoa que ofendeu alguém da
família ou amiga.
Em ele saindo de casa, ficava nela uma velha, prima sua e juntamente sogra, que já não tinha
dentes de roer ossos humanos, a qual tomou o agravo a sua conta por ver o primo
perturbado, e falando no mesmo tom, acrescentou [...] (Fl.10r, L.1000-1004).
Nota: É muito comum dizer-se nessa situação tomar as dores do outro, ou responder
aborrecimentos por outra pessoa.

Tomar o machado às costas. col. Conduzir um machado ao ombro.


[...] não sabe ele que está aqui só e não tem quem o guarde? E com isto toma um machado
às costas e sai-se e vai-se para a roça que era o caminho por onde eu havia de ir para a
minha. (Fl. 10r, L. 1097-1100).

Tomar o peito. col. Pegar o peito com a boca para mamar.


Outra criança de poucas semanas, ainda estando com os olhos em alvo para espirar,
batizamos e foi o Senhor servido dar-lhe saúde tomando logo daí a pouco o peito da mãe que
dantes não tomava. (Fl. 6v, L. 661-663).

Tratar pazes. col. Negociar acordo de paz.


[...] e no mesmo tempo mandaram recado a outros tapuias com que também tratávamos
pazes, dizendo-lhe que não dessem por nós, nem por nossas pazes [...] (Fl.8r, L. 843-845).

Trazer em procissão. col. Carregar em forma de cortejo como sinal de respeito.


Para o enterramento se ajuntaram todos assim os nossos como os outros todos com suas
candeias acesas, o trouxemos em procissão à igrejinha em que dizíamos missa, em um
esquife que lhe tínhamos mandado fazer [...] (Fl.6r, L.631-634).
175

Nota: Observa-se como a cultura religiosa dos missionários vai sendo inserida aos poucos
entre os nativos, desfazendo todos os costumes antigos que eles tinham e impondo-lhes outros
que julgavam superiores e melhores. O costumes dos índios era comer os ossos dos seus ou
sepultar em um buraco em qualquer local.

Vir almagrado. col. Vir tingido com tinta.


Deteve-se ainda um pedaço depois de meu recado, enfim, veio com um maço de flechas e seu
arco na mão, e ele todo almagrado com urucu. (Fl.12v, L.1364-1366).
Nota: O índio se tingiu com urucu ou urucum, uma planta cujas sementes vermelhas liberam
tintas tanto para os usos indígenas de pintura do corpo quanto para tempero de comidas. Da
semente do urucu faz-se o colorau, uma mistura da semente com óleo e farinha muito usada
no Ceará para misturar as carnes dando-lhes o aspecto avermelhado.
176

4 EDIÇÃO INTERPRETATIVA E APARATO DAS VARIANTES

Este capítulo compõe-se de algumas considerações teóricas sobre a filologia e as


ciências auxiliares com o intuito de esclarecermos sobre o tema e embasar a atividade
filológica. Apresentamos a edição interpretativa com o aparato das variantes com 38 notas
referentes aos lugares críticos ou de variação que foram encontrados. Fizemos a classificação
dos tipos de erros e alguns comentários explicativos.
Apresentamos os lugares críticos e as variantes em uma tabela enumeradas de 1 a 38
com a forma do texto manuscrito (genuíno) e as variantes dos quatro testemunhos cotejados
que são identificados pelas siglas de seus editores, conforme se verá adiante.

4.1 Algumas considerações teóricas sobre filologia e crítica textual

Nessa seção trazemos alguns conceitos das ciências filológicas que embasam nossa
pesquisa. Um discernimento claro que devemos ter para nos direcionarmos é sobre a noção de
filologia. Não pretendemos fazer a história dessa ciência, tampouco problematizar a temática,
mas somente apresentar alguns pontos que nortearão o direcionamento do nosso trabalho.
A filologia é uma ciência muito antiga e muito abrangente que tem como objeto a
linguagem humana, sobretudo, o que foi registrado em suporte material em forma de escrita.
Centra-se, desde os primeiros momentos da sociedade ocidental, quando é registrada a ação
dos filólogos alexandrinos, na atividade de transcrição e correção dos textos poéticos de
autores gregos clássicos. Logo, percebemos sua atenção para a língua escrita, sem essa não
haveria Filologia. Essa filologia alexandrina concentrada na comparação, correção e
reprodução de textos, embora não tenha tido um método claro e definido, constitui uma das
atividades mais específicas do filólogo que é a crítica textual.
A crítica textual pode ser considerada o núcleo da filologia, ou seja, essa tem uma
abrangência maior e aquela seria uma atividade mais restrita, conforme Azevedo Filho (1987,
p.15) a crítica textual “está voltada apenas para o estabelecimento crítico de um texto e não
para a totalidade dos problemas que envolvem a técnica e a arte editorial”.
Muitos autores tomam o termo filologia por crítica textual ou outras nomenclaturas
que geram problemas de compreensão, como explica Carvalho e Silva.
177

Um problema terminológico praticamente insolúvel é o da multiplicidade de


denominações com que são rotuladas a teoria e a prática da Crítica Textual: as de
sentido amplo, como Filologia(a mais antiga), Ecdótica, Crítica Textual(também
Crítica dos Textose Crítica de Textos), Crítica Verbale Textologia; as de sentido
restrito, como Estemática, Variantística, Crítica Genética, Hermenêutica. A origem
e o emprego de cada uma dessas denominações merecem comentários e observações
críticas, que favoreçam a exata compreensão dos problemas acarretados por tal
diversidade de nomenclatura. 9

Outros preferem classificar uma filologia linguística, voltada para o estudo de


fenômenos das línguas nos textos editados e uma filologia textual, concentrada no processo de
criação e/ou reprodução dos textos, com o intuito de estabelecer uma crítica genética,
acompanhando o processo criativo ou uma edição crítica, processo de transmissão dos textos,
conforme os métodos desenvolvidos a partir do século XIX, sobretudo o método
lachammniano, que se firmou com rigor científico na época influenciado pelo positivismo; e
outros métodos que se desenvolveram na Europa como a bibliografia textual crítica das
variantes conforme Spaggiari e Perugi (2004) abordam.
Seja qual for a abordagem da filologia, esta abrange uma amplidão de tudo que
envolve o texto desde seu suporte, sua materialidade linguística e o contexto histórico e sócio-
cultural. Essa dimensão abrangente envolve conhecimento de várias ciências como a
Codicologia, a Paleografia, a Diplomática mais diretamente e o conhecimento histórico da
língua, da história e da sociedade em que os textos foram escritos. Segundo Spina (1994) a
filologia não pode se desenvolver plenamente sem o apoio ou o conhecimento dessas ciências
auxiliares.
Entendemos que o texto é o objeto de estudo da filologia e este foi escrito em um
contexto histórico, cujas marcas ou manifestações estão latentes por meio da escrita que
representa as ideologias, as crenças, os valores de uma sociedade. Todo texto é disposto em
um suporte que também fala muito de sua época, desde os materiais duros como a pedra à
matéria branda como o papiro até o ambiente virtual; cada texto tem uma forma
organizacional, uma estrutura que atende às convenções sociais e ao gênero a que se inscreve;
cada texto é escrito utilizando material do momento como a tinta; o objeto com o qual o
escriba traça as letras, o cálamo, a pena, a caneta ou um teclado de computador; e também, a
depender da época, há um tipo de letra adotado. Tudo isso constitui informações sobre o texto
e cabe ao filólogo, responsável por desvendar os segredos dos textos, explicar e tornar claro o
conteúdo exposto e analisar à luz das ciências todas as informações que envolve esse texto.

9
Não podemos estabelecer a data de publicação nem a página, pois este texto não se encontra em PDF.
Disponível em: <http://maximianocsilva.pro.br/doc7.htm>. Acesso em: 20 set. 2015.
178

Para Auerbach (1972) a filologia se ocupa de muitas tarefas e uma das atividades que
podem ser atribuída ainda hoje é a edição crítica de textos. De fato, a edição de textos é uma
das competências atribuídas àqueles que se dedicam à filologia na contemporaneidade. Assim,
numa abordagem mais antiga de filologia, envolve a prática de editar os textos, sejam os
textos de testemunho unicus em que se adotam modelos editoriais mais conservadores como a
edição diplomática, a semidiplomática ou a interpretativa, além, da reprodução por
instrumento mecânicos como a fotografia, a xerox, o fac-símiles. Em uma abordagem de
estudo de testemunhos plurimi voltada para o estabelecimento do texto crítico, aplicando-se o
método da crítica textual, o filólogo não foge da atividade de edição, portanto, o que identifica
essa prática filológica é o tratamento que se presta ao processo de transcrição e exposição de
um texto.
Qualquer que seja o modelo adotado para a edição filológica pelo editor filólogo,
esse trabalho é de grande importância para a sociedade atual, pois resgata a história e a
memória de um grupo social e de uma época, possibilita conhecer e reconstruir a história de
uma língua, quando tratamos de edições conservadoras dos textos. Já uma edição crítica
fornece textos limpos de ruídos e de desgastes de erros que podem ser transmitidos na
reprodução e transmissão dos textos. Dessa forma a crítica textual com sua ação de corrigir
um texto é uma atividade das demais relevantes para desfazer mal entendidos, dissolver
interpretações erradas de textos importantes como os bíblicos, para desfazer equívocos dos
nomes das pessoas em documentos cartoriais como registro de nascimento, dentre outros
problemas que poderão ser dissolvidos quando se tem uma formação ou, pelos menos, uma
noção de que os textos podem proliferar enganos.
Por tratarmos em nosso estudo de transcrição de texto manuscrito por meio de
edição, vale aqui apresentarmos os três tipos de edição que serão utilizados.

a) edição fac-similar ou mecânica que segundo Spina (1994, p.84) é “que reproduz com
muita fidelidade as características do original: o formato, o papel as ilustrações, as
margens e até a cor e o tamanho”. Sabemos que essa reprodução mecânica mantém a
fidelidade de um texto em todos os seus detalhes, sabemos que hoje há programas de
computadores que podem ser usados para limpeza da fotografia dos textos,
facilitando a sua leitura quando esse é muito borrado, tais programas também podem
ser usados fraudulentamente para apagar o conteúdo do texto, dessa forma a
reprodução mecânica poderá também sofrer interferência.
179

b) edição semidiplomática ou diplomático-interpretativo mantêm o texto conservado em


todos os aspectos, mas apresenta um grau de interferência do editor ao desenvolver
as abreviaturas, separar palavras ligadas e juntar palavras separadas ou acrescentar
algumas notas explicativas.

A transcrição diplomático-interpretativa (ou semidiplomática) vai mais longe na


interpretação do texto, pois já representa uma tentativa de melhoramento do mesmo,
com divisão das palavras, o desdobramento das abreviaturas[...] e às vezes até com
pontuação. (SPINA, 1994, p.85).

Numa edição semidiplomática, procura-se preservar a língua em todas as suas


manifestações reais de uso pelo escriba, pois esse modelo possibilita reconstruir a história de
uma língua, já que a sintaxe, o léxico, a grafia, a acentuação gráfica, os sinais de pontuação, a
paragrafação, a translineação são preservados, indicando as marcas de uso de uma época
história da língua. No entanto, há ocorrências no texto, como assinaturas, arabescos, riscos,
sinais e outros símbolos como carimbos, selos, desenhos que são importantes do ponto de
vista paleográfico, codicológico e linguístico que nenhum tipo de transcrição consegue
reproduzir, a não ser o mecânico. Em outras palavras é necessário que qualquer outro tipo de
transcrição seja acompanhado pelo fac-símile.
Apresentamos ainda o modelo de edição interpretativa em que ocorre maiores
interferências na reprodução, pois visa atingir a um público alvo diversificado. Na transcrição
interpretativa, além de desenvolver as abreviaturas, há uma padronização das formas gráficas
do texto. “O texto passa por um forte processo de uniformização gráfica e as conjecturas vão
além de falhas óbvias, compreendendo intervenções que aproximem o texto do que teria sido
sua forma genuína” (CAMBRAIA, 2005, p.97).
Em nosso trabalho consta além do fac-símile, da edição diplomático-interpretativa e
da interpretativa, como empregamos a padronização da língua atualizada, por isso preferimos
chamar de edição modernizada, pois toda a ortografia e a acentuação gráfica serão conforme
as normas vigentes atualmente.
Retomando o que falamos anteriormente, compreendemos que o trabalho filológico é
muito diversificado e muito interdisciplinar, porque além do texto propriamente dito em sua
realização linguística e tudo que o cerca pode ser objeto de interesse filológico. Devemos
partir do texto por meio da atividade de editá-lo, ou seja, torná-lo público, trazer à tona para o
conhecimento de todos, é isso que significa o sentido mais genuíno de ecdótica ou a prática de
editar. O texto preparado e editado por meio de qualquer modelo adotado serve de base para
vários estudos do campo da língua e da história social e cultural de um povo. A crítica textual
180

como uma atividade mais expressiva da filologia não prescinde do estudo abrangente do texto
em todas as suas manifestações.
Cremos que todas as formas de realização de trabalhos filológicos, tanto no que se
refere à edição de textos de testemunho unicus acompanhado de análise linguística, como
atualmente vem se fazendo no Brasil, como a edição crítica de textos de testemunhos plurimi
ou os estudos dos processos de criação por meio da crítica genética, da edição crítica por meio
do processo da recensio, da emendatio e da constituição do texto crítico ou de qualquer outra
abordagem, tudo isso é muito relevante para concretizar e firmar cada vez mais a área dos
estudos filológicos.

4.2 Edição interpretativa e notas


181

fl. 1r
Relação do MaranhãoI.11608.
XIX
Pax Cristi.
5 No mês de janeiro de 607 por ordem do padreII2Fernão
Cardim provincialIII3desta província nós partimos para a missão
do Maranhão, o padre Francisco Pinto e eu com obra de sessenta
índios, com intenção de pregar o evangelho àquela desam-
parada gentilidade, e fazermos com que se lançassem da
10 parte dos portugueses, deitando de si os franceses corsários
que lá residem, para que indo os portugueses, como determinam
os não avexassem nem cativassem, e para que esta nossa ida
fosse sem suspeita de engano, pareceu bem ao padre provincial que não
levássemos conosco portugueses nenhunsIV,4e assim nós par-
15 timos sós com aqueles sessenta índios.
O rio do Maranhão de que se denomina todo aquele sertão
dista de Pernambuco, trezentas e trinta léguas por
terra pouco mais ou menos, em toda esta região e comar-
ca do Maranhão, aonde há inumeráveis almas, e
20 muitas castas de gentio, não há grandes serras, mas tudo
ordinariamente são terras rasas, matos a que os índios
chamam verdadeiros, e em semelhantes terras cá entre nós
se dão os canaviais/ Da fertilidade da terra dizem
os índios que não tem comparação a mandioca
25 batata, e tudo o mais que cá há com o de lá por ser o de lá de muito
notável vantagem em grandeza e fertilidade.
Contam infinidade de bichos dos que se domesticam
como búgios e outros que cá não temos, e muitos pássaros que
se amansam, como canindés, araras de várias castas, e ou-
30 tros semelhantes, ainda que não há pau de brasil, há outros
paus assim de tintas como para catres, mesas etc.
Há certo gênero de animais a que eles chamam veados
arcados os quais são muito semelhantes a camelos na grandeza
pescoço comprido, e no serem arcados, ou gibosos, e mais me
35 afirmo em terem pontas como de veado, e por não serem
bravos, tem os índios por agouro matá-los, dizendo que matan-
do-os ficarão frouxos e para poucoV,5e deve ser fácil domes-
ticar e amansar estes animais.
O sertão é mui grande, e tem infinidade de gentio o
40 rio a que chamamos das Amazonas, tem a boca debaixo
da linha equinocial, e tem muitas e grandes ilhas, as quais
todas estão povoados das almazonas, as quais almazo-

I1
Relação do Maranhão,1608 [Ms] | Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta padre Luiz Figueira enviada a
Claudio Aquaviva [BS, RG, PS] Relação da missão do Maranhão [SL].
II2
Padre [MS] / Ø [BS, RG, SL,PS].
III3
Desta província [Ms, BS, RG, SL] | Ø [PS].
IV4
Nenhuns [Ms] | Ø [BS, RG,SL, PS].
V5
Para pouco [Ms]|e pequenos [BS, SL, PS]| Ø[RG].
182

nas são mulheres que não admitem consigo homens senão em certo
tempo para efeito de se multiplicarem, e logo os lançam fora
45 e depois parindo filhos machos os comem e conservam
as fêmeas; são guerreiras, e caçadoras e engenhosas
de mãos, para fazerem redes muito lavradas, e também seus arcos
todos são pintados; assim elas como o mais gentio usam to-
dos a mesma língua comum do Brasil - estão nestas
50 duas partes ou portos naus francesas a saber, no rio
do Maranhão a que os índios chamam Tapurucu e no das
almazonas que delas tem o nome.
fl. 1v
O trato destes é em madeiras preciosas, e paus de tintas e pi-
55 menta, algodão fio, redes, pássaros, e bichos, e em par-
ticular há grande fama que tem trato de prata com as
almazonas que parece têm minas dela a troco da qual
lhe dão ferramentas, vestidos, e as ensinam a usar de ar-
cabuzes; tudo isto me consta por várias informações de
60 índios que lá foram em vários tempos com quem falei; uns dos quais
afirmam o que viram, outros o que ouviram a seus parentes.
Partimos pois para esta empresa o padre Francisco Pinto e eu
de Pernambuco por mar até o rio chamado Jaguaribe que são
120 - ou -130 léguas, saímos em terra pusemos nosso fato em
65 ordem para o levarmos, e como levávamos alguns índios naturais de
Jaguaribe, logo se meteram pela terra para ver se achavam al-
guns de seus parentes, eis que dois dos nossos encontram com uns
que andavam escondidos, assim dos portugueses por não virem presos
por escravos, como muitos seus parentes, como também por medo
70 dos tapuias com os quais os ditos portugueses se confederaram
afim de os haver à mão mais facilmente.
Um dos nossos então foi com aqueles que se acharam a buscar
outros que estavam em certa parte escondidos para virem
ao seguinte dia, e o outro companheiro nos veio dar a nova que
75 foi bem recebida por nos faltar gente para nos levar o fato, e tam-
bém porque eram parentes dos de nossa companhia.
Ao dia seguinte lhe mandamos três ou quatro outros ao cami-
nho com farinha de refresco, os quais alta noite chegaram
e trouxeram consigo quatro homens e uma menina, estes nos con-
80 taram como no mesmo dia tinham os tapuias mortos os
mais companheiros, levando alguns consigo por escravos; e
foi que ao nosso recado não se abalaram mais que os quatro,
cuidando os outros que era ficção dos brancos para os haverem
às mãos por meio de seus mesmos parentes, partidos pois
85 os quatro, chegaram os tapuias e destruíram os mais que
eram por todos dez, dos quais só escapou um mancebelhão
que veio ainda alcançar os outros; um destes que vieram
tinha já fugido dos brancos, e fora escravo dos tapuias
até então, dos quais andava fugido atualmente e
90 trouxe consigo uma mui boa escopeta, e alguma munição
que seu senhor tapuia tinha tomado a um branco.
Vinham estes pobres sem arcos nem flechas como fugi-
183

tivos cativos, vendo-nos tomaram fôlego, e como ressuscitados


da morte à vida se alegraram com seus parentes; perguntei-lhe
95 se tinham os tapuias notícia dos padres, responderam que sim
e que desejavam muito de irmos a sua terra por que costumávamos tra-
zer muitas ferramentas, anzóis e roupas e que a todos dávamos o que
não faziam os brancos, enfim trazendo-os conosco nós partimos
do Jaguaribe, dia de Nossa Senhora das Candeias, 2º de fevereiro depois
100 de dizermos missa e comungarem alguns dos nossos.
O nosso ordinário modo de caminhar em todo este comprido ca-
minho até a serra da Ibiapaba (que serão cem léguas ao direito
foi em forma de peregrinos da Companhia, logo pela manhã rezá-
vamos o itinerário e ladainhas de Nossa Senhora, e depois entre
105 dia as dos santos e com nossos bordões na mão e nossos livros de re-
zar, e nosso cabaço de água nós íamos caminhando tendo
nossa oração pelo caminho como podíamos o tempo que nos
parecia, as jornadas eram de meia légua, uma légua
e -2- e -3- por nos acomodarmos aos das cargas e também
110 algumas crianças.
fl. 2r
Vindo pois continuando nosso caminho mandamos índios na-
turais daquelas partes diante para que se encontrassem al-
guns de seus parentes jaguariguaras que andavam espalhados
115 com medo os trouxessem e ajuntassem assim para nos ajudarem como para
lhe darmos as alegres novas da provisão de sua majestade em que
os havia a todos por livres e forros. Alguns destes pobres tiveram
vista de nós, e cuidando serem os brancos que iam para os acabar se es-
conderam e fugiram.
120 Um dia porém alguns dos nossos acharam um que nos andava
espreitando para saber de certo quem éramos e para onde íamos; tra-
zido este contou como tinha escondidos dois ou três companheiros
e umas mulheres e meninos; foi por eles com outro dos nossos, os quais
todos pareciam que ressuscitavam; mostrando grande prazer e ale-
125 gria, certificados de não irem em nossa companhia portugueses
dos quais alguns destes tinham fugido, tendo-os eles amar-
rados e com as mãos atadas, e acrescentavam que lhe tinham
mandados presos para a Bahia seus filhos irmãos e irmãs
e primos para serem cativos, e que por isso eles e os mais an-
130 davam tão amedrontados e não se fiavam de ninguém.
Depois de termos caminhado todo fevereiro, chegamos aos -2
de março ao Pará que é uma mui formosa e quieta enseada
que dista de Jaguaribe trinta e cinco léguas pouco mais
ou menos, em a qual entram três ou quatro riachos
135 de água doce, e outro rio caudal por um espraiado mui apra-
zível, está esta enseada em altura de quatro graus e é
de grandes pescarias; aqui achamos aposentados os índios
que proximamente tinham fugido aos portugueses, cujo princi-
pal se chama Acajuí; um sobrinho do qual trazíamos
140 em nossa companhia; e outros parentes dos seus. Estes pobres
nos receberam como vindos do céu porque tinham o mesmo medo
dos outros; o dia que chegamos, tínhamos andado cinco léguas
184

sem nos assentarmos em todo o caminho, por causa da infinita


água que choveu; em o qual caminho passamos, quatro rios todos
145 a pé com água pelos peitos, e um deles com tanta corrente que
foi necessário virem pegados em cada um de nós cinco ou seis ín-
dios para nos sustentarem com paus atravessados contra o
ímpeto das águas; enfim, daqui se pode colegir quais che-
garíamos à boca da noite; logo nesse comenos nos fizeram
150 uma choupana de palma que já tinham colhida por terem notícia
de nossa vinda, e nos saíram a receber todos os mancebos e
moços dando-nos com grande festa o erejupe que é o seu modo
de dar as boas vindas, e nos fizeram grande fogo para nos a-
quentar digo enxugarmos.
155 Depois de descansarmos nos trouxeram alguns presentes
de peixe com eles estivemos cinco dias aparelhando-nos, para o caminho
de peixe por se nos acabar a farinha que trazíamos, e também porque
do trabalho daquele dia nos adoeceram alguns dos nossos com-
panheiros, e foi necessário convalescerem e descansarem, quanto mais
160 nós desacostumados a fazer semelhante violências à natureza.
Os índios que aqui achamos seriam por todos -50- ou 60- almas
ficaram com intento de ajuntarem algumas relíquias dos seus que andam
espalhados por esses matos, para o qual nos pediram lhe levantásse-
mos uma cruz, o que fizemos com gosto para que à sombra desta árvore
165 por entretanto se vinham ajuntar estas avezinhas amedronta-
das dos gaviões e aves de rapina, para que depois de juntos todos
se viessem para a igreja como prometeram pelos certificarmos
da liberdade que sua majestade lhes dava.
fl.2v
170 Pouco depois de passarmos daqui nos apartamos do mar por car-
regar muito sobre nós o inverno que já nos tinha entrado, e nos
dificultar muito o caminho com as enchentes dos muitos e grandes
rios que se metem no mar, e também porque está afastada do mar
a serra da Ibiapaba, a qual vínhamos demandar por ser ela só po-
175 voada de gente amiga (se amigos se podiam chamar os que até agora
beberiam o sangue se pudessem aos portugueses) desde Pernambuco
para cá que serão como 230 léguas, e nosso intento em a virmos deman-
dar foi para nela nos refazermos de mantimentos, e mandarmos
daí ao Maranhão a tomar língua do estado das coisas, prin-
180 cipalmente se havia franceses que se nos representava a maior difi-
culdade deste caminho; este necessário apartamento do mar nos trouxe
outras infinitas incomodidades e dificuldades; que podendo
nós chegar à serra da Ibiapaba em -15- ou-20 dias, gastamos
dois meses, porque nos foi necessário metermo-nos por matos e brenhas
185 sem podermos dar passo senão com virem diante dois ou três índios
rompendo os matos, e em a maior parte do caminho com as lamas
e águas quase até o joelho, e tudo isto nos pareceu fácil quando
depois nos vimos metidos em uma serra a que chamam dos Corvos
que com o nome está declarando o triste caminho que leva quem nela
190 se vai meter; nela nos meteram os índios dizendo que acharía-
mos muito mel e ratos que é o melhor mantimento que há nestes sertões
afastados do mar; verdade é que disto achamos bastantemente
185

nesta serra, mas tudo mais caro do que fora se se comprara nas
lojas dos vendedeiros porque com as dificuldades do caminho
195 que ao princípio se mostrou fácil e com isso nos enganou, gasta-
mos -12- ou-13- dias sem sabermos bem quando era manhã
nem noite com os espessos e altíssimos matos, por baixo dos quais ía-
mos rompendo, à força de braço e ferro, subindo e descendo montes
e rochedos que excedem toda a exageração saltando de pedra em
200 pedra ora para as nuvens ora para os abismos, nem conto aqui
as quedas e coisas que se quebraram que nos deram bem de perda que
logo depois sentimos por nos ir faltando vinho para as missas
e assim, não dissemos mais que aos dias santos missa.
Nesta triste serra dos Corvos parece que se ajuntaram
205 todas as pragas do Brasil, inumeráveis cobras, e ara-
nhas a que chamam caranguejeiras, peçonhentíssimas de cuja
mordedura se diz que morrem os homens, carrapatos sem conto, mos-
quitos e moscas que magoam estranhamente, e ferem como lancetas
fazendo logo saltar o sangue fora, e assim pareciam os índios
210 leprosos das mordeduras, nem eu fizera caso de escrever estas
coisas se não foram extraordinárias. Enfim tornamos a
sair desta serra ao cabo dos -12-ou-13- dias sem termos an-
dado de nosso caminho mais que obra de duas ou três léguas e
no rodeio que fizemos andaríamos -5- ou-6-.
215 Todos estes trabalhos se nos remataram com um que nós muito
mais sentimos, que foi morrer-nos um índio mancebo, dentro em
15- ou -18- horas da mordedura de uma cobra; nem lhe aprovei-
tou pedra de bazar, nem alicórnioVI,15nem queimarmos-lhe a fe-
rida, nem finalmente outras mezinhas e benefícios.
220 Morreu contudo confessado, e sobre a sepultura lhe fizemos um
monumento, pondo-lhe uma cruz à cabeceira; era isto Domingo
de Ramos, em o qual depois de os benzermos em aquele deserto
nós partimos continuando nosso caminho ao longo da mesma
serra passando muitos e grandes rios que todos iam cheios
225 fl. 3r
pelas contínuas chuvas, e passamos todos aqueles dias tão santos e
de endoenças e paixão, caminhando por matos e lamas como dantes
e ao Sábado Santo passamos um rio muito maior que todos chamado
Aracategi, que compete com os grandes de Portugal, e nos deu bem de tra-
230 balho buscar paus para jangadas para passar no tempo em que por cá to-
dos se alegram e se dão as boas Aleluias, finalmente o passamos assen-
tados nos paus que iam por baixo da água, vindo-se o mundo abaixo
com chuva, trovões e relâmpagos, e ao longo deste rio debaixo de
um espesso e triste arvoredo estivemos aquela tão santa noite
235 e dia meios alagados d’água.
Nunca nestes caminhos me lembraram os colégios com sauda-
des deles, senão nestes santos dias por carecer da vista de tanta
devoção como neles há; mas isto mesmo por outra parte me consola-
va vendo que carecia eu de tanto bem por serviço daquele Senhor
240 que é causa de todo ele.

VI15
Alicornio[Ms] | o licornio [BS, RG, RG,PS]
186

Depois de deixarmos de todo esta serra dos Corvos caminhando


pelos campos, eram tantas as lamas que não havia dar passo sem
atolar; por onde nos foi necessário descalçarmo-nos; porém daí
a poucos dias das ervas e moscas, e mosquitos que
245 nos picavam se nos fizeram os pés leprosos, e a mim em especial
me incharam criando matéria em várias partes, pelo que
a necessidade nos constrangeu a nos tornarmos a calçar, por onde
nem descalços bem podíamos ir com lamas; não quero apontar
muitas particularidades nesta matéria por não parecer
250 que exagero muito nossos trabalhos, nem ainda isto que é o menor e
escrevera se me não persuadira que se consolarão muito nossos irmãos
com saberem o que por cá se passa para nos encomendarem maisVII16de propósitoVIII17
ao Senhor.
Com estas dificuldades do caminho se nos ajuntou boa
255 fome, porque por estes campos não há ratos, nem se matou neles ou-
tra caçaIX18alguma, de modo que nos foi forçado a comer das ervas quando
ainda as achávamos, e estas cosidas na água sem outra al-
guma benfeitoria; viemos a lançar mão da maniçoba brava
bem amargosa e sem sabor, e depois chegamos a comer da mesma
260 raiz da mandioca brava assada de que alguns se começaram a a-
char mal, eu então tive me mais à fome posto que não me fez mal
a que tinha comido, e ainda destas coisas nos veio a faltar, e passa-
mos alguns dias sem comer mais que umas poucas raízes de ervas
da feição de cebolinhas pequenas; cobras, lagartos, e lagartixas
265 para os índios era banquete, e eu também tirando cobras me es-
forçava a comer tudo, tendo por mais dificultosa de vencer a
fome que o asco, verdade é que em todas estas coisas achávamos mais
gosto que noutro tempo em coisas que o tem, mas o que sobejava no gosto
pela fome faltava nas forças pela sustância ser pouca.
270 Também nestes caminhos nos livrou o Senhor de muitos e evidentes
perigos quase milagrosamente. Em especial foi notável um que
passou nesta forma; estávamos um dia assentados e bem cansados
o padre e eu comendo uns caracóis d’água que nós mesmos tínhamos apa-
nhado, metendo-nos pelos charcos, e era bom banquete em seme-
275 lhante conjunção, e entre nós ambos algum tanto para uma banda es-
tavam umas ervas algum tanto altas nas quais alimpávamos as
mãos por não haver outro guardanapo mais à mão, senão quando
sentimos bulir as ervas e vimos sair delas muito pacificamente
uma façanhosa cobra da mesma casta da outra que matou o man-
280 cebo, em -15- ou -18- horas, mas muito maior que ela, era das que têm
na cauda uns cascavéis, e ela que usava de manha, porque passando
por pedras levantava a cauda para que não soassem os cascavéis.
Doutra, me livrou Deus a mim que lhe não pusesse os pés encima
por lhe ouvir os cascavéis vindo por baixo das ervas que eram altas.
285 fl. 3v
Outra se arremessou a uma índia, e lhe mordeu na roupa, mas quis
Deus que lhe não chegasse à carne, e outro índio teve bem de trabalho

VII16
Mais [Ms, BS, RG, SL]| Ø[PS].
VIII17
De propósito [Ms]|Ø [BS, RG,SL,PS].
IX18
Caça [Ms]| cousa [BS, RG, SL, PS].
187

em se livrar doutra, e finalmente na Ibiapaba indo um índio gen-


tio para a aldeia onde nós estávamos um dia antes de chegar
290 o mordeu outra cobra da mesma casta que cá são as mais ordi-
nárias eX19muitasXI20emXII21quantidade e em poucas horas o pobre índio
expirou; muito lhe aproveitara se chegara a nós ainda que não
fosse mais que por um quarto de hora com vida. E por serem estas cobras
tão peçonhentas lhe chamam estes índios cobras verdadeiras, como se as ou-
295 tras o não fossem, e não ousam de sair a caçar em todo o inverno
enquanto a erva está crescida, mas esperam que se seque para queimar
os campos e verem por onde vão.
Finalmente houvemos de chegar alguma hora a esta serra da I-
biapaba, aonde cuidávamos que pelo menos nos fartaríamos
300 de farinha, porém estava esta gente em tanta fome que vindo-nos
uns índios ao caminho com refresco a receber seus parentes como légua
e meia antes de chegarmos à aldeia nos apresentaram como coisa de
grande preço (e não era menos) umas -15- ou -18- espigas de milho
as quais repartimos com o principal de nossa gente, e com os nossos
305 moços, de modo que para o dia seguinte nos ficaram cada um suaXIII,22e
sobre este almoço nos pusemos ao caminho, e andamos aquela manhã
légua e meia que tinha por três pela altíssima ladeira que se sobe para
a aldeia que está no alto da serra, e para a subir é necessário haver escadas
em algns passos, ou de pau ou feitas na mesma terra e rochedos e
310 corre esta serra toda assim de Norte a Sul coisa de -25- ou mais
léguas, fazendo um muro de rochedo com suas como ameias naturais
e por cima é terra chã e campina, e para parte do poente tem muito
pouca queda.
Com caminharmos bem aquele dia e partirmos cedo, acabamos de
315 chegar à riba, às duas ou três horas depois de meio dia, e em uma
chã que faz aXIV23ladeira antes de chegar ao mais alto nos estava es-
perando o principal, e outros que para nos esforçarem para o restante do
caminho, nos tinham prestes umas poucas de raízes de mandioca
a que chamam macaxeira, cosidas e um pouco de sal e pimenta da terra
320 e um palmito para assentar o estômago; e chegando-se o princi-
pal a nós nos abraçou dizendo /Jesus/ e logo se seguiram os de-
mais a nos abraçar e dar as boas vindas, e uma índia nos que-
ria chorar por festa como costumam, mas o padre lhe mandou dizer que não
era necessário, e com isto nos recolhemos da chuva que ainda entre tantas
325 festas nos não deixou.
Metidos nós e gasalhados em uma das suas choças que para
isso tinham aparelhada, começaram a correr os presentes,
quem meia dúzia de espigas de milho, quem um palmito, quem uma
abóbora que era o demais preço, enfim palmitos e algum milho fo-
330 ram as mais ordinárias coisas que aqui tivemos quinze dias que
aqui estivemos nesta aldeia, estes são os recebimentos que por cá
há e eu posso escrever; escrevam outros embora os que se fazem

X19
E [Ms]| em [BS,RG,SL,PS].
XI20
Muitas [Ms] |Ø[BS, RG, SL,PS].
XII21
Em [Ms] | Ø [BS,RG,SL,PS].
XIII22
Sua [Ms]|hua[BS,RG,SL, PS].
XIV23
Que faz a [Ms] | e raza [BS, RG,SL,PS].
188

nas cortes dos reis e príncipes de Europa, que posto que tenham mais
que escrever, não terão mais gosto que eu em o fazer, mas contudo
335 logo contarei outro recebimento mais solene que este.
Um dos principais destes índios tinha dito a um mancebo
mameluco que aqui estava que lhe doía muito a cabeça, e que
se fosse caso que se achasse mal, que nos dissesse em chegando que o
batizássemos, nem era bastante para lhe tirar a dor um ferro
340 que fora de freio de cavalo quebrado, o qual tinha em grande es-
tima de santidade por lho ter dado outro como coisa que viera
do céu, este lhe tirei com muito trabalho; daí a alguns dias
dizendo eu a este índio que andava mal disposto, ele me respon-
deu dizendo que era porque eu não tinha confiança em Deus como ele ti-
345 vera, e que por isso se lhe fora a dor de cabeça e andava já são; enfim,
fazia bom entendimento das coisas de Deus, e vinha muitas vezes
perguntá-las dizendo que para as ensinar a sua mulher que lhos pergun-
tava, este veio depois para a igreja Deus o faça bom cristão.
fl. 4r
350 Este mancebo mameluco de que falei tinha ido com outros brancos e por
lá se ficou com outro e havia três anos que se não confessavam nem
ouviam missa; logo os fizemos aparelhar devagar, e confessar
e comungar; estes por lá andam conforme aos com que tratam, despidos
e em toda a miséria, e o espírito pouco pode ser entre bárbaros
355 infiéis sem missa nem sacramentos.
Nesta grande serra havia há dois ou três anos, mais de seten-
ta aldeias de gentio que nos contaram por seus nomes, e depois de os
brancos lá irem, e os receberem no princípio com guerra, se foram
todos para o Maranhão com medo dizendo que se os brancos tinham
360 destruído todos os moradores do Jaguaribe sendo recebidos deles
com paz muito melhor os destruiriam a eles que no princípio os recebe-
ram com guerra, e estes pobres, por derradeiro lá no Maranhão lhe fizeram
guerra os seus contrários com os franceses e destruíram muitos, e
outros morreram de doenças contagiosas, e dos que ficaram a metade
365 se tornaram e vindo foram mortos e cativos dos tapuias, de modo que
só seis ou sete chegaram por uma vez, e por outra obra de -20- casais e
nesta serra tinham ficado só duas aldeotas, uma das quais
é esta a que primeiro chegamos por estar mais perto do mar
e teria vinte casais e a outra alguns -50 - ou sessenta.
370 Posto-nos ali em tanta fome quanta dantes já trazía-
mos e estávamos como tísicos de magros que não tínhamos
mais que a pele sobre os ossos, e era necessário irmos fazer assento
aonde tivéssemos com que nos refazer; mandamos recado
para outra aldeia para sabermos se nos queriam lá, e que viessem
375 alguns a falar conosco, e também nós queríamos informar
dos que tinham vindo do Maranhão que lá estavam principal-
mente a cerca dos franceses que tínhamos por novas que
estavam lá de assento com duas fortalezas feitas em duas
ilhas na boca do rio do Maranhão.
380 O principal daquela aldeia chamado o Diabo Grande
nos mandou um irmão seu por nome o Diabo Ligeiro com outros ín-
dios que nos levassem para sua aldeia,este Diabo Ligeiro (que
189

é um índio mui bem disposto e em seu falar grandioso, e arrogante)


nos fez todos os cumprimentos significando-nos os desejos de seu irmão
385 e mostrando os seus de nos ver em sua aldeia, com isto nos ofere-
ceu, um pouco de milho e de feijões que trazia, e tendo palavra
de nós que iríamos com ele; despediu logo os seus que fossem certi-
car o irmão de nossa ida e do dia que chegaríamos etc. parti-
mo-nos com ele e toda a mais aldeia também se foi conosco fugin-
390 do da fome com intento de se virem para Pernambuco como vieram
gastamos neste caminho onze dias indo sempre di-
ante o Diabo Ligeiro agasalhando-nos, e assinalando-nos
lugar para nossas choupanas ou tejupares; no caminho ti-
vemos a festa da Ascensão e chegamos dois dias antes do
395 Espírito Santo à aldeia.
E por que para irmos da primeiraXV24aldeia à sua havíamos de descer
a serra e torná-la a subir por escusarmos um grande rodeio, coisa
que não só nos era penosa, mas quase impossível por nossa fraqueza
e fome; quando chegamos ao pé da ladeira que havíamos de subir coi-
400 sa de cinco léguas antes de chegarmos pelo trabalho da-
quele dia por ser o caminho aspérrimo e comprido, nos deitamos
sobre umas pedras ao longo de uma água sem podermos dar
passada por diante com fraqueza; nem podermos chegar ao
lugar aonde havíamos de dormir; senão quando chegam dois
405 mancebos com uma pouca de farinha de milho em um cofo
que para nós foram como o profeta Habacuc quando guiado do Anjo
levou o comer a Daniel, enfim comemos daquela fa-
rinha, e bebemos daquela água, e assim pudemos chegar
aos tejupares, aonde já os nossos estavam e tinham também
410 fl. 4v
chegado -15- ou-18- que o Diabo Grande tinha mandado em companhia
de outro irmão seu mais moço com refresco de farinha peixe, mi-
lho e abóboras, e com preceito que nos levassem em redes, não só
ao subir da ladeira mas todas aquelas cinco léguas, o que eles
415 fizeram com tanta diligência e caridade quanta se não pode en-
carecer (aquelas cinco léguas andamos em pés alheios
em todo este caminho) estando nós finalmente já uma só légua
da aldeia aposentados, chegou a mulher do Diabo Ligeiro que nos
fora a buscar com alguns índios que nos levaram outro presente
420 do principal, de feijões, peixes, e uma dúzia d’abóboras.
Ao dia seguinte nos veio o mesmo principal receber ao meio
do caminho meia légua da aldeia com todos os principais e al-
gumas mulheres com seus presentes, e eles todos com suas buzinas
gaitas e cascavéis que são seus instrumentos músicos com
425 tanta festa e alegria que eu fiquei pasmado, e o padre
com ser antigo sertanista me disse que nunca vira entre gen-
tios coisa semelhante; enfim dali nos trouxeram a correr
sempre revesando-se todos a trazer as redes em que vínhamos
como se ganhassem perdões; eram tantos os gritos e festas que
430 pareciam doidos.

XV24
Primeira [MS]|Ø[BS,RG,SL,PS]
190

Chegando à aldeia saiu um grande tambor que já toda a ma-


nhã íamos ouvindo e com seus maracás (que são uns cabaços
com uns feijões dentro) tangendo e cantando, e com essa sole-
nidade nos meteram na casa que nos tinham aparelhada e
435 nos trouxeram logo muitos presentes e as músicas e danças
continuaram dois ou três dias com suas noites, bendito
seja o Senhor que permite que estes bárbaros sem o conhecer a
Ele conheçam e honrem a seus servos só pelo serem.
Mas todos seus desejos eram ter-nos aqui consigo, e os nossos
440 eram levarmo-los conosco, ou mandarmo-los vir para à igreja
mas abaixo direi o sucesso disto. Logo o principal
nos ajuntou pela aldeia de seu modo próprio algum milho
que havia muito antes que se acabasse porque farinha havia muito
pouca por causa da seca do ano passado.
445 Enfim achamos os poucos que tinham vindo do Maranhão
os quais não tinham chegado ao mar; e por isso não sabiam dos france-
ses, mais que terem eles vindo com a gente da terra a dar guerra
a uns dos seus que se tinham dividido como já toquei; mas es-
tes não se tinham achado presentes, nem viram os franceses, cer-
450 tificaram porém que os havia, mas a cerca do caminho nos
informaram, assim eles como outros de várias nações de ta-
puias selvagens por entre os quais não há passar senão à força
de armas como estes tinham ido; ou à força de peitas e dádivas.
Conforme a isto, nos aparelhávamos e dispúnhamos nos-
455 sas coisas e traças para caminharmos e rompermos as grandes
dificuldades que se nos ofereciam, e medos que estes todos nos
metiam, mas com grande confiança de haver de facilitar tudo
Aquele por quem a tudo nos atrevíamos encomendando-nos a Ele.
De modo que desta serra da Ibiapaba até o Maranhão tudo
460 está cheio de selvagens, que a todos matam ou cativam, entram
porém com eles alguns destoutros índios de paz, quando vão tra-
tar algum resgate ou coisa semelhante, mas com grandes cautelas
dos tapuias que de ninguém se confiam, e quando lá vão alguns
não hão de levar armas algumas e com as flechas nos peitos ou
465 com o golpe feito lhe perguntam ao que vem, examinando-os mui
bem e fingindo que lhe não creem, e se trazem coisa alguma lha
tomam, ainda que lhe digam que é para o seu principal porque não lhe
têm mais respeito que isto, mas depois de bem provados
lhe dão mui bem de comer, e os fazem dançar e cantar.
470 fl. 5r
E eles também lhe fazem a mesma festa; estes que vieram do Maranhão
nos contaram, como a ida para lá vestiram uma roupeta comprida
a um dos seus, e puseram-lhe uma carapuça de rebuço, fingindo
com isto e dizendo aos tapuias que aquele era abaré, ou padre
475 e como os tapuias nenhuma notícia tinham de padres nem ainda
de brancos, facilmente se persuadiram ser assim, e por outra parte cuidan-
do que aquele e os de sua qualidade eram senhores da morte e da
vida etc; mostravam grandíssimo medo, dando-lhe mui bem de comer
e levando-o às costas porque lhe não fizesse algum mal, e se ele não
480 fora também acompanhado bem cuido que procurariam de lhe tirar
191

a vida por tirar tal peste deste mundo.


Têm também por costume, quando os seus morrem, se são homens, as mu-
lheres lhe comem a carne, e os ossos moídos lhos bebem para que não tenham
saudades daqueles que metem nas entranhas, tendo-se por mais pios
485 nesta impiedade, que os que enterram os mortos, apartando-os de si
de todo o que é causa das saudades. O modo de viver destes
é andar sempre como as antigas seitas com sua casa movida e to-
das suas riquezas e alfaias são seu arco e flechas com que buscam de
comer, e redes pequenas com que pescam, e outras grandes com que caçam.
490 E aonde acham de comer, ali dormem sem cama nem redes mais
que o chão; e como andam muitos raramente acham em um lugar
de comer dois dias arreio, pelo que quase infalivelmente andam
cada dia umas duas léguas.
Inquirindo-nos pois o modo que teríamos para passar por eles
495 a todos nos pareceu que cometéssemos pazes, por que não tínhamos
gente que bastasse para nos defender deles; tomada esta for-
çosa e mais própria de nosso hábito resolução; mandamos
a duas partes mais propínquas, por uma das quais de necessidade
havíamos de ir os que foram a uma das partes tornaram-se do cami-
500 nho a primeira vez por não poderem romper os matos; os que foram
a outra levaram um presente ao principal deles; a saber
um machado, umas facas, e um pouco de fumo, que é a melhor e
mais preciosa droga que se manda, e com esperanças que vendo-nos
e efectuando-se as pazes seriam melhor apremiados.
505 A cabo de um mês tornaram com resposta; a saber que os pri-
meiros com que encontraram lhe tomaram o machado, e o mais
que levavam, que assim costumam ordinariamente estes selvagens
nem aproveitou dizerem-lheXVI25que era para o principal, só uma faca lhe
chegou à mão, e que todos diziam que fossem os padres, e que lhe le-
510 vassem machados, facas, espelhos, tesouras etc. (nomeando
tudo por seu nome) e que eles fariam pazes com outros de diante
e dizendo-lhe os nossos que os padres não levavam muito disto
e que só aos principais poderiam dar alguma coisa, respon-
deram que a todos dariam, e quando não que lhe dariam os vesti-
515 dos, e já nós tínhamos notícia desta sua cobiça insaciável
que é tal, que vendo canastra ou caixa, a hão de revolver
e buscar tudo, e tomar o que lhe parecer, sem lhe irdes à mão
e se não derdes a todos, todos ficam descontentes, de modo que é
necessário uma nau carregada para os contentar. E ainda isto era
520 sofrível se fora só um magote deles, mas são muitas nações
de -60-80-100- e mais casais.
Ajuntando-nos e conferindo esta resposta com a notícia
que já tínhamos ficamos quase desconfiados de podermos entrar por
esta porta, porém encomendando sempre tudo a Nosso Senhor
525 e pedindo-lhe nos abrisse o caminho, tornamos a mandar lá a 2ª.
vez, indo por embaixador o soldado de nossa obrigação que fora co-
nosco do Rio Grande, e levando outro presentezinho; para que
nos desse a conhecer a estes tapuias, informando-os de como nós

XVI25
Dizerem-lhe [Ms]| dizerlho [BS,SL, PS] dizerlhe[RG].
192

éramos mui diferentes dos seus feiticeiros e dos outros índios


530 fl. 5v
a quem eles aborreciam e tinham por peste do mundo; e que vínhamos
a dar-lhe notícia da outra vida e do Criador de todo o mundo
e da vida santa etc. finalmente, levava recado que trouxesse de lá al-
gum tapuia ou algum escravo seu que fosse língua para que nos visse e
535 levasse certeza aos seus de ser tudo verdade, e que deixasse lá
alguns dos nossos em reféns, e no mesmo tempo mandamos cometer
pazes ao Milho Verde, que é inimigo capital dos brancos e
dos índios da Ibiapaba com quem estávamos, e também os mandamos
cometer a outro índio do mar, chamado Cobra Azul, para se fazer
540 também amigo destes mesmos da Ibiapaba, todas estas empresas
tomamos entre mãos, os que iam ao Milho Verde não puderam che-
gar lá por estar o caminho impedido com outros tapuias.
O mancebo que foi com os índios aos tapuias, de primeiro teve
o sucesso que aqui direi, primeiramente o recebimento foi com as ceri-
545 mônias que tenho dito e é ordinário entre eles, fez-lhe sua
prática por interprete, que era uma índia parenta de alguns dos nossos
escrava sua havia muitos anos, recebeu o principal o que lhe man-
dávamos, e principalmente fez muita festa a uma boceta de flan-
dres que lhe mandamos cheia de fumo; todos os vestidos que levava lhe
550 pediram, e todos deu, mas tinha pouco que dar, e um a quem ele dera os
calções, depois de os calçar se lhe ajuntaram as mulheres à roda
a pranteá-lo por vestir os feitiços do branco, como elas diz que diziam
e como estes todos o seu é matar, e nisto mostrarem sua valentia
um mais valente perguntou ao mancebo se era ele valente
555 e respondendo-lhe que tanto como ele, o levou para seu rancho
fazendo-lhe por isso festa.
Em resolução lhe deram a índia que era intérprete para vir
cá a nos ver e a lhe levar certezas e notícia clara de quem
éramos, e em seu lugar, ficaram três mancebos dos nossos.
560 Vendo-nos esta índia a primeira vez, como aquela que nunca vira gente
estava diante de nós com os olhos no chão sem olhar para nós, e di-
zendo-lhe um índio vês aqui os padres, este é o irmão mais velho
e estoutro é o irmão mais moço, levantou os olhos e imedia-
tamente os tornou a pôr no chão, e isto com medo, como ela depois
565 que o perdeu confessou que como ainda não fazia diferença dos feiti-
ceiros a nós, os quais feiticeiros temem e aborrecem, nem ver-
nos podia, porém depois falava e ria e olhava com alegria mos-
trando muita satisfação de tudo, e nós a fizemos deter, oito ou
nove dias - por esperar pela festa da Assunção de Nossa Senhora
570 em que tínhamos para fazer uma procissão, com uma dança de meninos
destes gentios e um diabrete etc. o que tudo causou assim a ela
como aos outros desta aldeia admiração por ser para eles grande
novidade; e depois dela todos se foram para suas casas a prantear
por verem que os antepassados morreram sem ver tanto bem
575 como eles agora viam, como depois nos explicou um principal
acrescentando que ele também se não pudera ter, e se fora pôr
a chorar, e quando isto nos dizia mostrava ainda os mesmos efeitos.
Passado o dia da festa despedimos a índia bem acom-
193

panhada dando-lhe um cueiro para ela, e mandando


580 ao principal um espelho, e um machado, e ela nos prometeu
que havia de fazer vir cá o principal dos tapuias o qual
já dantes tinha dito que mandaria alguns dos seus conosco para
nos guiarem, neste mesmo tempo mandamos também recado aos
outros tapuias do outro caminho a ida aos quais não ti-
585 vera efeito à primeira vez como já disse, e a resposta foi que estavam
alvoroçados por nos ver, e que fôssemos e lhe levássemos muitas
ferramentas que devíamos de as trazer, que os que daqui passavam
por suas terras lhe davam muitas coisas, quanto mais nós
fl. 6r
590 que éramos senhores das coisas, bem nos enfadaram com tanta
cobiça junto com serem selvagens, sem medo nem respeito, mas nós
estávamos contudo apostados a romper por todas as dificuldades
com o favor de Deus.
Depois de passarmos pelo Jaguaribe, como fica referido tiveram
595 notícia as relíquias que escaparam dos brancos e andavam
embrenhados de nossa passagem, e de como trazíamos pazes e
liberdade, pelo que foram saindo ao mar, um principal dos
quais se chama Algodão, o qual não podendo crer (como dizem,
tanto bem como os seus lhe certificavam, quis ir ao Ibiapaba a
600 nos ver com o olho e ouvir as boas novas de nossa boca; partiu e foi
por casa do Cobra Azul a quem tínhamos mandado recado, e levou
consigo um filho seu, e outros - 4 - ou -5- não posso explicar os
efeitos de alegria que este Algodão mostrava de nos ver, prome-
tendo que acabado de sair seus parentes, fariam o que nós quiséssemos
605 e iriam para onde nós mandássemos, e juntamente se assentaram
as pazes entre eles e estes da Ibiapaba. E o filho do Cobra Azul
fez também, em nome de seu pai pazes e trataram de se ajuntar
a morar junto do mar perto do rio Pará, que está entre a Ibi-
apaba e o Maranhão.
610 Agora direi alguns costumes destes da Ibiapaba e de algumas
coisas que aconteceram em - 4- ou-5- meses que com eles estivemos
primeiramente tivemos uma grande perda, e foi morrer-nos aqui o
principal de nossa gente chamado Belchior da Rosa capitão
dos índios de Pernambuco por provisões dos governadores pelos serviços
615 que tinha feitos com sua gente; este era um índio mui bem entendido
e de muita autoridade entre os seus, e no falar e entender as coi-
sas era mais que índio do Brasil pelo que todos lhe tinham muito respeito
em suas pregações punha os padres nas estrelas e falava
espiritualmente declarando ao que íamos e o que pretendíamos
620 e na verdade que me admirou a primeira vez que o ouvi pregar com
o não entender ainda perfeitamente porque a matéria de sua prega-
ção foi de como nós íamos por amor deles e de suas almas, e para
lhe darmos notícia do caminho do céu, e que bem o mostrávamos em
nosso modo de caminhar com nossos livros de rezar, que não íamos
625 buscar escravos nem fazer guerra o que bem mostravam nossos
bordões, e que se outra coisa pretendéramos que leváramos espin-
gardas e soldados e outras coisas desta qualidade que não me cau-
savam menos devoção que admiração; morreu ético mui bem apa-
194

relhado, confessando-se e comungando duas vezes e fazendo seus


630 apontamentos.
Para o enterramento se ajuntaram todos assim os nossos como
os outros todos com suas candeias acesas, o trouxemos em procissão
à igrejinha em que dizíamos missa, em um esquife que lhe
tínhamos mandado fazer, coisa que pasmou a estes gentios por
635 que o costume seu é enovelarem os seus mortos, e assim os me-
tem em um buraco que para isso fazem em qualquer mato.
Com esta e outras ocasiões a tomávamos para lhe falarmos na
morte e em sua infabilidade porque muitos destes tinham para si
que eram imortais e ficavam pasmados quando lhe dizíamos que
640 haviam de morrer, não podendo crer o que não queriam padecer
e o principal destes dizia que só a morte e o inferno o en-
tristecia de nossas coisas; finalmente, dissemos algumas mis-
sas pelo defunto com seus responsórios sobre a sepultura.
Estando nós um dia à noite em nossa casa, ouvimos um que tossia
645 com grande eficácia e escarrava procurando de vomitar fazendo
grande estrondo, mandamos saber que era aquilo, vieram nos
dizer que estava um menino doente e um feiticeiro que o curava.
fl. 6v
E a cura era chupá-lo como costumam, dizendo que lhe tiram o mal
650 de dentro, e para fingirem melhor o engano, metem na boca um prego
ou coisa semelhante, e com aquele seu escarrar fingem que o chuparam
e o tiraram ao doente e que aquilo era o que lhe fazia o mal, fomos
nós ver então o menino, e achando-o muito mal aparelhamo-lo, pergun-
tando se queria ser filho de Deus respondeu que sim com grande alegria
655 e que queria ir para o céu, e logo mostrando uns efeitos de predesti-
nado, recebeu o santo batismo ao dia seguinte, e por ser em dia de São
Barnabé lhe pusemos o seu nome e com ele se foi para a glória; fo-
mos por ele ajuntando-se todos os cristãos nossos companheiros
e o trouxemos a enterrar ao pé de uma grande cruz que di-
660 ante de nossa igrejinha tínhamos levantada.
Outra criança de poucas semanas ainda estando com os olhos em
alvo para espirar batizamos e foi o Senhor servido dar-lhe saúde to-
mando logo daí a pouco o peito da mãe que dantes não tomava.
Outro dia à noite de repente ouvimos bater as palmas em
665 uma casa, e logo noutra, e logo em todas geralmente com grande
estrondo, perguntamos que era aquilo responderam que um feiticei-
ro ouvira a voz de uma cobra que vinha voando pelos ares e que
dava sinal com aquele bater das palmas que estivessem todos
alerta para que não caísse sobre algum e o mordesse.
670 Até agora estes pobres não reconheciam outro Deus mais que os chu-
veiros, trovões, relâmpagos, mas a este seu deus nenhum amor ti-
nham tendo grande temor, e o culto e reverência toda consistia
em se pôr de cócoras pedindo aos trovões que os não matassem
e aos relâmpagos que os não queimassem; tiramos-lhe esta
675 gentilidade da cabeça facilmente com lhe declararmos a seu
modo que coisa eram trovões e relâmpagos, ficaram muito contentes
dizendo que agora acabavam de crer a verdade, e que lhe não cha-
mariam mais deus, e tudo são queixumes de seus antepassados
195

que nem souberam nada nem lhes ensinaram nada.


680 Toda esta gentilidade como é de fraco entendimento não
tem nenhuma resistência às coisas que lhe dizem ainda que os
não alcancem com o entendimento, nem sabem duvidar nem per-
guntar, e assim pouca ciência basta para os cultivar e fazer
deles o que quiserem; só lhe dá trabalho deixarem as muitas mu-
685 lheres que têm alguns, tendo muitos filhos delas, mas têm nisto um geral
costume e facilidade e é que o que se descontenta do outro, apar-
tasse dele como se nunca fosse seu marido, ou sua mulher sem por
isso serem reputados por ruins.
Entre estes há muitos de muito bemXVII26natural e de bem fazer, e posto
690 que geralmente todos nos faziam o que podiam de bem; contudo muitos deles
assim continuavam em nos darem o que tinham
e entre outros se assinalou muito, o principal desta aldeia o Dia-
bo Grande, dando-nos uma roçazinha de milho, e outra de man-
dioca além doutras miudezas de cada dia; Após ele se assi-
695 nalou uma índia anciã mulher de um principal, a qual
em nós vindo, começou com seus presentes dizendo-nos, eu sou
daqui senhora da terra e estou em minha casa por isso vos dou
de comer que vindes de longe e continuou sempre como que fôssemos
seus filhos.
700 São todos estes incrivelmente inclinados a cantar e dan-
çar, e porque os potiguares são nisto afamados e conosco iam alguns
nheengaraybas, ou mestres de capela desatinava-nos que
cantassem para os ensinarem, e fazendo revesar ora uns ora
outros, cantavam dias e noites - de-24-em-24-horas sem
705 interromper até não poderem falar de roucos, tendo isto por valentia
e delírios, e a nós, nos pediram que lhe ensinássemos seus filhos
o papel (como eles dizem) querendo dizer que lhos ensinássemos
a ler e cantar o nosso canto, o que nós com facilidade fizemos
fl.7r
710 para os domesticar, mas eles mostram mui pouco talento para o nosso
canto, os do mar facilmente, com isto domesticamos muito os meninos que
dantes fugiam de nós, e alguns que estavam em suas roças me vieram
dizer que queriam aprender o que eu ensinava aos outros, e muitos
diziam resolutamente que se haviam de ir conosco fugindo de seus pais
715 ou após nós, entre os quais teve graça um que representava -12-
anos em dizer que se os padres se fossem não tinha outra coisa que
fazer senão abrir uma cova, e meter-se nela e isto com grande sentimento.
E outro estando eu ocupado não sei em que, se chegou a mim e de-
pois de estar um pedaço, me disse não sei que é isto que dantes fu-
720 gia de ti, e agora não me posso apartar. Isto nos servia para os
ensinar e doutrinar, e já sabiam muitos deles a doutrina e
algumas coisas de nossa santa fé; também os fazíamos ensinar
a dançar ao modo português, que para eles era a coisa de mais
gosto que pode ser.
725 Uma índia esteve muito mal de parto toda uma noite e parte
do dia gritando, sem em todo este tempo aparecer nada da cri-

XVII26
Bem natural[Ms]|bonatural[BS,RG, PS]|bõ natural [SL].
196

anca, mandamos-lhe um relicário que o pusesse ao pescoço, e tivesse


fé que logo pariria, assim o fez, e em espaço de meia hora pariu
com facilidade; ficou o índio seu marido agradecido pedindo
730 que já que lhe fizéramos nascer seu filho lho batizássemos que queria
ir à caça para a festa, respondemos que como estivesse na igreja pelo
tempo em diante lho batizaríamos.
Pediram-nos estes que déssemos uma vara de nossa mão a um
deles para que fosse alcaide dos outros, e isto com tanta instância
735 que nos venceu, assinalou o principal Diabo Grande para
ela o irmão seu, o Diabo Ligeiro; deu-lha o padre um domingo
acabada a missa estando todos juntos para o qual ato os tinha
convidados o principal em uma pregação que fizera àquela
madrugada e dando-lha o padre lhe declarou o fim para que se lhe da-
740 va a saber, para emendar os que se embebedassem, para fazer vir todos
à igreja, para vigiar a aldeia etc. tomou ele isto muito em ponto
de honra, e ao dia seguinte de madrugada saiu pregando com gran-
de fervor, dizendo entre outras coisas muitas que entrassem
sempre todos na igreja aos dias Santos, e se não que tudo o que naqueles
745 dias plantassem, se lhe havia de secar; e que as mulheres tivessem
cuidado da pagar o fogo, indo fora para que não se queimassem
as casas, e que fossem todos filhos de Deus e de Nossa Senhora e não cressem
as coisas de seus antepassados, mas só cressem as coisas que os
padres lhe ensinassem, que Deus era o nosso Criador, e que logo
750 no ventre de nossas mães fazia uns homens outros mulhe-
res afeiçoando-os para isso, que bem claro estava que nossos
pais o não podiam fazer.
E noutra pregação depois de dizer coisas semelhantes a
estas acabou com um colóquio dizendo, e vós senhor Deus tende cuidado de
755 minha alma para que não se perca porque tenho muita repugnância
em ir ao inferno a ser queimado com os demônios; outra vez
vendo-me rezar, me perguntou se falava Deus conosco, eu lhe respondi
que naqueles livros tínhamos as palavras de Deus as quais lí-
amos e que nós podíamos falar com Ele cada vez que quiséssemos
760 pedindo-lhe alguma coisa que bem nos ouvia, logo ele come-
çou com grandes mostras de devoção a falar com Deus pedindo-
lhe saúde, e que o livrasse de todos os males. Com estas coisas
e fruto que se fazia nestas desamparadas almas aliviava
homemXVIII27o trabalho de caminhos e cansaços, e a carência da
765 vista e práticas de nossos padres e irmãos.
Rematando nossas coisas na aldeia do Diabo Grande, aonde
nos detivemos passante de quatro meses, tentando pazes com os tapuias
fl. 7v
sem terem efeito, no fim de setembro de 607- apareceu um cometa
770 para a banda do Maranhão a Loeste, o qual estendia uma mui com-
prida cauda para a banda de Leste e durou muitos dias, os índios
vendo tão grande novidade para eles vinham muitas vezes perguntar
que era aquilo, se se queimava o céu, e se cairia, e outras perguntas
conformes à sua capacidade, eu lhes declarei o que era e juntamente

XVIII27
Homem [Ms]| homeo [BS, RG]| o meo [SL]|ho meo [PS]
197

775 o que significava, e como ordinariamente quando aquilo aparecia


havia mortes de grandes e morubixabas, com o que o principal atemo-
rizado me perguntou se escaparia; Deus te dará vida lhe respondi
mas aparelha-te tu para seres filho de Deus, porque nós não sabemos da mor-
te nem da vida, e posto que este cometa significasse outras coi-
780 sas maiores, contudo eu muitas vezes imaginei com pena e afli-
ção se significaria algum trabalho na nossa missão do Maranhão
enfim aos -17- de outubro seguinte nós partimos daquela aldeia
continuando nossa peregrinação; partiu conosco o mesmo princi-
pal levando cosigo dois ou três filhos com outra gente com intento de ro-
785 çarem no caminho junto das terras dos tapuias, os quais querí-
amos acabar de apaziguar, e efeituar as pazes também começa-
das para continuarmos nosso caminho até o Rio do Pará afamado
entre eles para que dali palpássemos os vãos da terra e gentes
e mandássemos recado a nossos superiores como prometemos na carta
790 passada ao padre provincial.
Indo nós cinco léguas da aldeia nos alcançou um mancebo
que trazia novas de como eram vindos uns poucos de índios relí-
quias de -70 - aldeias que com medo dos brancos e por se verem livres de-
les fugiram e foram acabar no Maranhão a mãos de tapuias e fran-
795 ceses, e outra gente do mesmo Maranhaõ que com os franceses lhe fi-
zeram guerra, ajudando-os também a peste que lhes deu, e esperamos
que chegassem a nós alguns para nos informarmos do que lá passava.
Veio o principal chamado Mandiaré a nos ver e nos deu por novas
haver lá muitos franceses assim no Rio do Maranhão, como no Rio e Ilhas
800 das Almazonas, e que tinham comércio com elas de prata, a troco
da qual lhe davam vestidos e ferramentas, e demais disso as ensi-
navam a usar de arcabuzes; ele porém não viu disto mais que
os franceses com os quais teve guerra, e o demais o veio a seus paren-
tes, acrescentou este principal que queria tornar conosco a
805 buscar alguns seus parentes que lá lhe ficavam espalhados, e que já
sabia o caminho e terras, mas que para isto era necessário esperar-
mos que eles com os seus descansassem, e fizessem algumas milharadas
a qual ida sua nos era bem importante por não termos gente bas-
tante para ir conosco - mas o esperá-lo era de suma pena para nos
810 vir entrando o inverno, pegaram-se todos os nossos ao seu pa-
recer dizendo que esperássemos e roçássemos todos, e porque no cristão
eles não reconhecem nenhuma superioridade, tanto que os afastais
do que eles querem, ficamos em talas e necessitados a condescender
com eles por não haver outro remédio, e contudo tenhamos por pro-
815 vável haverem-nos de faltar com a palavra, pelo que nos pareceu
bem mandar apelidar os potiguares que fossem conosco; e por ventura
que tivera efeito se depois não sucedera a morte do padre
meu companheiro, por se terem já saído da aldeia do Diabo Gran-
de não quiseram tornar atrás como eu queria e persuadia ao
820 padre enfim um pouco mais adiante donde estávamos -12 léguas
da aldeia, roçaram todos e fizeram casas aonde o nosso mantimento
era palmitos e uns cocos cujos miolos são como bolotas na fei-
ção mas muito secos e dificultosos de engolir senão enquanto são
tenros, e quanto à farinha tínhamo-la por relíquias, e sem ou-
198

825 tro conduto mais que de quando em quando alguns peixinhos e por
grande festa umas favas secas cosidas sem mais azeite, nem vi-
nagre nem sal, muitas vezes desejávamos uma porção que os
nossos negros comem nos colégios, mas não deixávamos de fazer
bom rosto a estas faltas lembrando-nos que outros padres e irmãos
830 fl. 8r
nossos noutras partes do mundo os passariam também alegremente
por amor de Deus.
Daqui seriam como -15- ou -20- léguas à terra dos ta-
puias chamados cararijus pelos quais queríamos passar
835 e lhe tínhamos já por duas vezes mandado recados e presentes
dando eles boas mostras que queriam pazes, mas era tudo fin-
gido, procurávamos-nos que nos viessem ver para crerem sermos nós,
e nós vermos com o olho o que tínhamos neles, e para este fim lhe man-
damos a terceira vez recado com outros presentes que viessem fa-
840 lar conosco alguns deles, e eles porém usando de sua acostumada
brutalidade, nos mataram os mensageiros, queimando-os vivos
como costumam, reservando um só que depois lhe servisse de guia para
nos virem matar a nós, e no mesmo tempo mandaram recado a outros
tapuias com que também tratávamos pazes, dizendo-lhe que não des-
845 sem por nós, nem por nossas pazes, que tudo eram traças dos da Ibia-
paba para os colherem lá e matarem.
Enfim a tardança dos nossos extraordinária nos fazia
evidente serem mortos, o que confirmou depois um escravo dos ou-
tros tapuias a quem eles tinham mandado o recado que de lá veio e
850 esta certeza de sua morte nos fazia bem evidente que nos queriam vir
matar, e bem procurei eu que nos puséssemos logo em cobro que bem
fácil era, mas este era o termo que havia de ter a santa vida do padre
Francisco Pinto; finalmente daí há muitos dias nós quisemos pôr
em cobro; e vendo que totalmente se nos fechava a porta do Mara-
855 nhão (por que em -5- meses que tratamos fazer pazes com os tapuias
não podemos alcançar deles nem ainda verem-nos, sem dúvida
se nós partíramos e fôramos a suas terras, todos fôramos quei-
mados e acabados sem de nós se saber mais) traçamosXIX28de nos
descer ao mar e roçar, e entretanto escrever a nossos superiores e ao
860 senhor governador de como as coisas estavam impossibilitadas para se ir
por terra ao Maranhão, por não haver palmo de terra em cem léguas
de caminho que não esteja povoada de tapuias, que quem dos pri-
meiros e segundos escapasse, não escaparia dos terceiros e quartos
e conforme à ordem que nos viesse faríamos, e despedíamos um ín-
865 dio diante de nós à sexta-feira da infra octava da Epifania,
fazendo conta de nós descermos da serra, passado o seguinte do-
mingo, saía pela porta o índio despedindo-se para o mar.
Quando os tapuias de súbito apareceram a nossa porta
com mão armada começam as flechadas de uma e outra parte
870 com grande grita e em breve morreu um tapuia, e outro segundo
dizem foi com as tripas fora enchendo o caminho de sangue
e provavelmente logo morreria, e porque os selvagens saíram a nossa

XIX28
Traçamos [Ms] |tratamos [BS,RG, SL,PS]
199

porta, que estava no coice da aldeia à borda do mato, e o padre


estava dentro em casa rezando as horas menores; saiu com tra-
875 balho, tendo os nossos o ímpeto dos tapuias que o não matassem
logo, e o foram amparando até entrarem no mato, os tapuias
carregaram ali seguindo-os e como o mato ali era estreito, lo-
go sairam às roças limpas: bradavam os nossos aos tapuias
que estivessem quedos que aquele era o padre abaré que os queria
880 apaziguar e ensinar a boa vida etc., responderam eles que
não tinham de ver com isso que o haviam de matar, finalmente se
espalharam dois ou três nossos que ali iam ficando só junto
do padre um esforçado índio e bem feitor dos padres chamado An-
tonio Carajbpocu, o qual o defendeu enquanto pode até morrer
885 por ele e com ele, ainda ficou com vida mas sem sentidos nem fala
e durou poucas horas, chegaram então ao padre, e tendo-lhe uns mão
nos braços estirando-lhos para ambas as partes, ficando ele
em figura de cruz, outros lhe deram tantas pancadas com
um pau na cabeça que lha fizeram pedaço, quebrando-lhe os
890 fl. 8v
queixos e amassando-lhe os cachagens e olhos; o qual pau
cheio de sangue trouxe como relíquia, despiram-lhe a rou-
peta somente e o cobriram com terra e o pau encima, e porque
sempre os ruins e menos necessários no mundo escapam, acertei eu
895 no tempo em que se começou a briga de estar na casa dos moços
fora de meu costume naquele tempo, e posto que era de fronte
deles, contudo era um pouco mais desviado, e dali saí logo
para outra parte, saiu comigo um nosso moçozinho que me foi
a salvação o qual me tomou a dianteira correndo e bradando-
900 me, apressa-te, apressa-te pai, seguia-o eu não muito apressado
vendo ele que não corria eu tanto como ele queria meteu-se lo-
go em um matozinho bem estreito, mas fechado pelo que eu não
pude dar por ele muitos passos, e assim nós ficamos logo à borda
do mato, ouvindo gritos junto de nós por todas as partes
905 e esperando que logo chegassem, mas o que mais pena me da-
va era ouvir um cão que andava latindo no mesmo mato pers-
uadindo-me ser dos tapuias que com ele queriam descobrir os
escondidos, o qual passou por diante de nós, mas sem dar mostras
de nos sentir; aqui o moço meu companheiro me disse amedron-
910 tado pai eu aqui ei de morrer contigo, animei-o eu, dizendo
filho não morreremos que Deus nos guardará, e assim guardou-o
para que Ele o sabe, espero eu que seja para lhe fazer muitos serviços
na Companhia; enfim, foram se recolhendo os tapuias
o que se conhecia pela grita que levavam, e foram então esbu-
915 lhar tudo assim o que nós tínhamos em casa, como a ferramenta
que tínhamos emprestada aos índios, não nos ficando
mais que algumas coisinhas de pouca importância que tínhamos
mandadas já diante para onde nós queríamos ir.
Levaram tudo o da igreja, e nossa roupazinha que tí-
920 nhamos guardada para o restante de nossa missão e tudo o
mais, e juntamente levaram dois ou três meninos, e duas
índias moças, matando outras duas velhas; aquietan-
200

do-se tudo e bradando um nosso índio que saíssem todos que já eram
idos os tapuias, então me disse o meu companheiro que iria
925 ver em que estado estavam as coisas para me vir dar recado, foi
e tornou-me com recado e novas tristes dizendo, é morto o nosso
padre aqui comecei com ele a derramar lágrimas tristes e cho-
rar meu desamparo, in medio nationis praua /Sai final-
mente recolhendo-me a lugar mais seguro arreceando de me tor-
930 narem a buscar, como depois soube que estiveram para fazer, mas
Deus os impediu, naquele lugar nos ajuntamos quase todos-
ali fiz trazer as relíquias que os bárbaros deixaram por aí
espalhadas por lhe não servirem, como livros e papéis etc. e o cor-
po do santo padre com o vestido interior, tinha se achado uma roupe-
935 ta minha a qual lhe vestimos, e lavando-lhe o rosto e cabeça
cheia de sangue e terra e feita em pedaços o compusemos em uma
rede para o trazermos para o pé da serra.
Nisto me disseram que ficava lá em um mato um índio o qual
vivia ainda, mas que estava morrendo, e por que este era ainda
940 catecúmeno, temendo que morrendo no caminho sem batismo
se o mandasse buscar porque estava longe, levei comigo uns poucos
de índios e fui lá, ainda me respondeu a algumas coisas que
lhe disse, aparelhando-o para o batizar, batizei-o, e curei-lhe
uma grande ferida que tinha na cabeça apertando-lha com um
945 lenço meu, e assim o fiz trazer comigo, dali me fui ao lugar
onde morrera o padre a ver o índio que com ele morreu que também
arquejava ainda, mas não lhe pude tirar palavra alguma
nem sinal de acordo pelo que o deixei estar pelo não aca-
bar de matar com o movimento para o mandar trazer depois.
950 fl.9r
Com isto me fui e me desci da serra trazendo diante de mim o corpo
do padre; e ao pé da serra o enterrei, fazendo-lhe um monumento
de pedras sobre a sepultura para sinal dela, pondo-lhe
também uma cruz à cabeceira, mandei logo buscar os
955 dois índios, um deles estava já morto, outro morreu ao dia
seguinte, ambos os fiz enterrar junto do padre por cuja defensão mor-
reram, um de uma parte outro da outra ficando ele no meio.
Aqui se remataram e coroaram tantos trabalhos pas-
sados do santo padre com esta ditosa morte cujo intento
960 era fazer muitas igrejas no sertão do Maranhão, e converter
as Almazonas, cortou-lhe Deus o fio porque não era chegada ainda
a hora. Uma das índias que os bárbaros levaram, no ca-
minho lhes meteu medo dizendo-lhe vós outros todos haveis de
morrer porque logo hão de vir os brancos com instrumentos de fogo a
965 vos matar e vingar a morte do padre que queria fazer pazes con-
vosco tomando-vos por filhos e ensinando-vos a vida santa, e vós levais
a sua rede e o seu vestido que vos hão de ser causa da morte, res-
pondeu-lhe um que lhe levava a roupeta; dizes verdade porque já eu es-
tou tremendo e enfraquecido (e a como estes bárbaros são ima-
970 ginativos, sem dúvida morreria, por que só a imaginação de cui-
darem que alguém lhe lança a morte basta para os matar) mas já
que tu dizes isso (acrescentou ele) torna-te e dize a seu irmão que
201

aqui fica tudo que o mande buscar, e fez pôr toda a roupa sobre
uns paus altos, e se foram mandando a índia, a qual de tudo
975 tomou a rede do padre, sabendo que ficava eu com o chão por cama
e por que eles se não tornassem a arrepender com toda a pressa se veio
e referindo-me tudo, me certificou de como dantes disto
estiveram para me virem tornar a buscar do caminho; à tarde
se ajuntou comigo mais gente, mandei ao dia seguinte corpo de man-
980 cebos a buscar tudo; mas parece que os tapuias tornaram a-
trás a levar o que deixavam, porque só se achou a casula, estola
e manipulo e frontal, e os breviários, levaram cálix, alva,
cordão e o missal, e a farinha das hóstias etc., coisa que me deu
grande pena deixarem-me sem missa e sem sacramento naquele
985 desterro, seja o Senhor contudo louvado para sempre.
Depois que enterrei o padre ao pé daquela alta serra da
Ibiapaba, em um lugar que particularmente se chama Abayára
ao longo de um rio, dentro em um mato, esperei alguns dias
pelo principal que estava ausente para me despedir dele
990 pelas caridades que dele tínhamos recebido, veio final-
mente, convidei-o para vir comigo para a igreja, e a outros princi-
pais que ali se ajuntaram, e ele porém sempre se mostrou al-
gum tanto duro, mas os outros me deram palavra de virem
e em efeito se aparelharam querendo logo desfazer as ro-
995 ças, mas como eu por então não queria mais que vir-me ao
mar a esperar que passasse o inverno que entrava, pretendendo
entretanto fazer algumas milharadas, e avisar juntamente
a meus superiores os detive dizendo que me queria vir diante a
esperar que eles se aparelhassem no que ficaram bem.
1000 Foram-se para sua aldeia, e o Diabo Grande celebrou e fez ce-
lebrar a todas as exéquias do padre a seu modo, mandando que se fizessem
grandes e públicos prantos por toda a aldeia, e se ajuntaram
as índias na casa que fora nossa, e ao pé da cruz que no terreiro
tínhamos feito levantar, fazendo nestes lugares principal
1005 mente grandes gritos e derramando muitas lágrimas, e os filhos
do Diabo Grande deixaram crescer o cabelo tingindo-se e tisnan-
do-se em sinal de tristeza que é o seu luto.
fl. 9v
Partindo-se eles para sua aldeia, me parti eu também para o mar
1010 para casa do Cobra Azul que seriam trinta até 40 léguas, gas-
tei no caminho -17- dias, mandei recado diante ao Cobra Azul
de como me ia para sua casa, enfim cheguei fez-me medio-
cre gasalhado, recolhendo-me em uma casinha que me tinha
mandado fazer, deu-me logo uma roça para plantar
1015 de milho, e eu fiz fazer outra e comprei outra, e a fiz plan-
tar de milho, feijões favas e abóbaras, e aparelhando-me
para os que haviam de vir da Ibiapaba, mas foi pouco o que se colheu
assim por não chover, como por serem tantas as formigas que
destruiam tudo, e como eu não tinha quem me tivesse cuidado
1020 de as matar, porque cada um tinha bem que fazer, em acudir as
suas foi-me necessário fazer-me eu feitor mandando fazer uma ca-
sinha no meio das roças na qual me fui morar, levando co-
202

migo - 4- ou-5- moços, os quais me ajudavam a cavar e matar


as formigas e queimá-las, mas a importunidade e multi-
1025 dão delas venceu nosso trabalho, e neste que tempo foram quatro
meses nosso comer foram, algumas frutazinhas e peixe sem
outra coisa, eu porém tive algumas castanhas de cajus e
obra de uma quarta de farinha que eu tinha trazido da Ibiapaba
que fui guardando para a quaresma com a qual a jejuei toda condutando
1030 como era razão.
Aparelhavam-se neste tempo os da Ibiapaba para virem
e dois principais mandaram os filhos diante temendo-se
que me partisse e os deixasse; mas como o inimigo de nossa sal-
vação não dorme, lá revolveu os fantasmas aos feiticeiros
1035 e lhe meteu em cabeça que eu os queria trazer para os entregar
aos brancos em recompensa da morte do padre por ser morto em
suas terras sem eles o defenderem, e posto que eu trabalhei por des-
fazer estas suas imaginações como quer que estava ausente
não me foi possível; contudo isto queriam vir muitos, mas como
1040 o Diabo Grande é sagaz, armou-lhe dois laços um de medo
outro de esperanças com que os prendeu a todos metendo-lhes em
cabeça e traçando que iriam primeiro a dar nos tapuias
assalto para vingarem a morte do padre, e que fariam um presente
dos cativos, aos quais como em triunfo fariam carregar os
1045 ossos do padre e os trariam ao padre grande, e finalmente
se viriam para a igreja depois de fazer estas diligências
e satisfação. Nisto ficam, mas não me parece que terá efeito.
Depois destas traças e conselho, me mandou o Diabo
Grande visitar com dois irmãos seus de quem ele mais conta faz cha-
1050 mados um o Diabo Ligeiro, e o outro Carapecu grandes ca-
valeiros e valentes, estes me trouxeram dois cabaços de fari-
nha que teriam dois alqueires que chegaram ao tempo em que
nem frutos nem outra alguma coisa havia mais que algum
peixe, logo reparti um deles por toda a aldeota sem ficar pes-
1055 soa que não tivesse seu quinhão com que cobrei fama de liberal
que se estendeu por todo o sertão porque não se falava noutra coisa
senão na virtude do padre, que em tempo de tanta fome se lem-
brava de todos e os convidava, esta fama se acrescentou muito
com o ordinário costume meu que sempre tive a saber que quando
1060 alguém me trazia algum presente se eu tinha o que medriocre-
mente me bastasse, não lho aceitava, ou quando muito tomava al-
guma parte para dar a algum mais necessitado, o que vendo
diziam que bem diferentes eram os padres dos brancos que
nunca estes enjeitavam nada por mais que lhe sobejasse
1065 nem do que tinham os convidavam. Antes me diziam
fl. 10r
o quantas vezes desejávamos de comer um bocadinho de peixe
ou carne que nós mesmos matávamos, mas não podíamos nem
convidávamos nossos filhinhos; isto tudo conto e estimo pela
1070 glória do Senhor e honra da Companhia que para com estes se ganhava.
Depois destes me mandou outro principal outros dois caba-
ços de farinha com que me fui remediando até que houve feijões e
203

milho nas roças.


Neste tempo que gastei em casa do Cobra Azul não me fal-
1075 taram purgas e tragos bem amargosos com que o Senhor foi servido de
me exercitar em penitência de meus pecados, alguns re-
ferirei para glória do Senhor e consolaçãoXX29de meus padres e irmãos.
Este negro Cobra Azul é grande feiticeiro, e valentão don-
de lhe nasce ser soberbíssimo e falar sempre com grande arrogância
1080 no tempo que eu estava na roça, depois de lhe ter dado muitas
coisas e lhe mostrar muito amor e confiança, mostrando ele a mes-
ma de mim e mandando-me muitos presentes, fui um dia visitar
a todos, e passando pela sua porta perguntei por ele, e disseram-me
que não estava dentro, entrei logo em outra casa onde ele es-
1085 tava com outros, e um deles fazendo um arco, depois de os saudar
louvei ao outro o fazer arcos, e acrescentei dizendo, quem me
fará um arco para o meu moço, que não tem com que ir a caçar, ao que
o Cobra Azul acudiu dizendoXXI30queXXII31 por que o não mandava eu fender um
pau para isso, eu com alguma confiança lhe respondi, isso me dizes
1090 a mim sabendo que não tenho mais que um moço que sempre me acom-
panha e tem cuidado de mim; manda um de teus filhos que tens
muitos e és senhor de toda esta aldeia e todos te servem; calou-se
ele e dissimulando saísse e entra em sua casa falando alto
e dizendo.
1095 Parece que este me quer tratar como Pero Coelho pois me re
preende como ele me repreendia, se ele assim me trata em
minha casa, que fará se me colher lá na sua, não sabe ele
que está aqui só e não tem quem o guarde? E com isto toma um ma-
chado às costas e sai-se e vai-se para a roça que era o caminho
1100 por onde eu havia de ir para a minha; em ele saindo de casa, fi-
cava nela uma velha, prima sua e juntamente sogra, que já
não tinha dentes de roer ossos humanos a qual tomou o agravo
a sua conta por ver o primo perturbado, e falando no mesmo
tom acrescentou parece-me que alguém quer que o coma eu pois
1105 far-lhe-ei bem prestos um espeto e polo-ei nele; tudo isto
passou diante de uns mancebos que em sua casa se estavam a-
parelhando para ir pescar, e entre eles eram dois moços
meus, mas como estes são selvagens em muitas coisas, não
foram para me avisar, mas foram-se a pescar, e à tarde tornando
1110 vinham cuidando e tendo por certo que me não achariam vivo. E
emXXIII32chegando, me disseram que cuidavam que me teria já morto o Co-
bra Azul, no que eu me achei novo, e perguntando-lhe pelo caso
me contaram tudo como tenho dito, e alegando outro que também
o ouvira tudo o mandei chamar e soube dele o mesmo, estavam
1115 os meus moços bem afligidos e temerosos, mas eu me fingi muito
seguro e os animei de palavra posto que interiormente não me fal-
tavam agonias, sabendo quão fácil e gostoso é a estes mata-
rem e comerem os de que se dão por agravados, e era isto já

XX29
Consolação [Ms] | salvação [BS, RG, SL, PS].
XXI30
Dizendo [Ms] | dizes [BS]| dizendo [RG, SL, PS].
XXII31
Que [Ms] | lo [BS] |Ø [ RG, SL, PS].
XXIII32
Em [Ms] | Ø [BS, RG, SL, PS].
204

tarde não ousei de fazer nada de mim, mas confesso que vigiei
1120 fl. 10v
muitas horas àquela noite por não poder dormir encomendando-me
a Deus e aparelhando-me para tudo.
Ao dia seguinte mandei-lhe dizer que me achava mal disposto
que por isto não ia visitar que quisesse vir a minha casa que tinha
1125 que falar com ele, respondeu eu irei, mas não foi, e assim me teve
com a mesma perplexidade aquele dia e noite, ao outro dia
mandei-lhe o mesmo recado, porque queria de todo saber seu ânimo
respondeu ao moço, pois quem o meteXXIV33repreender-me, e contudo não
foi; neste comenos levou Deus uns índios com umas cartas do padre
1130 Gaspar de Samperez com a qual ocasião mandei chamar a todos
e ele também que viessem saber as novas, então veio com os outros
e depois indo-se os outros o fiz esperar apaziguando-o e descul-
pando-me, finalmente ao dia seguinte me mandou um presente
de cabaços verdes.
1135 Durou porém pouco tempo a amizade porque daí a alguns
dias se enfadou outra vez sem ocasião nenhuma mais que
dizer eu que era falsidade certa mentira de um índio que
fora do Rio Grande levar por nova que devagar estava minha vinda
e que não seria senão daí a três anos que assim lho dissera
1140 Jerônimo d’Albuquerque, e porque ele gostava com esta nova, contra-
dizendo-lho eu, levanta-se furioso bradando, espera, espera, es-
pera e com estes brados de doido se saiu do meu aposento e não
me falou daí há muitos dias passando algumas vezes pela minha
porta com grande tromba, e se foi fora a caça sem me falar.
1145 Eu também me fui para o mar que estava daí uma légua co-
mo já dantes tinha determinado com os moços que me acompanhavam
aonde fiz uma choça e estive vinte e tantos dias comendo
doXXV34 peixe que todos pescávamos ao cabo dos quais dias me tor-
nei, e ele chegou daí a três dias e me mandou dois quar-
1150 tos de porco do mato, e daí a alguns dias se me escusou de me
não visitar dizendo que eu não sabia ainda bem a sua língua eXXVI35
com esta capa se deu por bem coberto.
Neste tempo mandei recado aos da Ibiapaba convidan-
do-os ultimamente se queriam vir comigo./ entre os que de lá vieram
1155 vinha um a quem ele mandou pedir uma filha porXXVII36mulher ou man-
ceba a fora outras duas que tinha, e por que minha ordem lha negou
avisou a todos os de sua aldeia que nada dessem nem convidassem
os meus, e que algumas roças que alguns tinham dado lhas
tomassem outra vez, e de efeito mandou logo avisar a
1160 uma índia que não pusesse mais pé na roça que lhe tinha dado
outro índio, e com estes gostos passei quase seis meses que
estive em sua casa. E sabe o Senhor quantas vezes me fugia
o sono, e me punha a passear à meia noite por entre as redes
dos moços que comigo dormiam no aposento, esperando como o

XXIV33
Ø [Ms] | a [BS, RG,SL,PS].
XXV34
Do [Ms] | Ø [BS,RG, SL, PS].
XXVI35
E [Ms] | Ø [BS,RG,SL, PS].
XXVII36
Por[Ms] | para [BS,RG,SL, PS].
205

1165 nosso santo padre dom Gonçalo que entrassem a me acabar


e me consolava com Deus e com a consideração do mesmo padre.
Estes índios que ultimamente vieram da Ibiapaba trou-
xeram uma nova digna de se saber para nos compadecermos
desta cega gentilidade paraXXVIII37qual se hão de saber algumas
1170 cegueiras que têm, têm grande medo de cair o céu sobre eles
e para impediremXXIX38este mal, alguns deles pela manhã em
espertando, se levantam e fazem fincapé no chão com as mãos
ambas para o céu para terem mão nele que não caia, e assim lhe pare-
ce que fica direito para todo aquele dia; também os ator-
1175 menta muito o medo de se abrir a terra e de os alagar-
o mar, os que entre eles são feiticeiros falam com o diabo
fl. 11r
muitas vezes, o qual lhes fala de noite às escuras, e posto
que não o veemXXX,39ouvem-no, e dão-lhe o fumo que beba, o qual vem es-
1180 tar no ar, mas não vemXXXI40quem o tem, veem porém as baforadas
que lança, e lhes diz á volta de uma verdade, muitas mentiras
e quando vão à caça lhes diz aonde a acharão, e aonde está mel.
A nova pois que trouxeram os da Ibiapaba foi que passando dois
índios pelo caminho junto da sepultura do padre Pinto que
1185 Deus tem, lhe aparecera o padre vestido em sua roupeta preta seu
chapéu e sua rede às costas e um cofo de farinha e um grande cão
de caça, e lhes perguntou por dois grandes feiticeiros mandando-lhe re-
cado que logo ia ter com eles, foram eles contar esta nova à aldeia
saíram os feiticeiros a interpretar a visão,XXXII41uns diziam que era
1190 a alma do padre e outros outras coisas; por derradeiro saiu o fei-
ticeiro em que eles têm posto seu crédito e fé, dizendo que não
era senão o Deus criador dos mantimentos que os vinha criar para
terem que comer etc.
Estes da Ibiabapa ficam muito contentes por lhe ficarem os ossos
1195 do padre em sua terra, o qual cuidam lhe será valha couto dos brancos e
aos que de lá vinham ameaçaramXXXIII42que os não trouxessem; eu contudo
mandei à minha partida, quatro índios valentes saber se
estavam lá desfeitos para os trazerem, mas acharam o corpo in-
teiro, outra ocasião haverá em que poderão vir os ossos.
1200 Tinham eles ido com uns tapuias à guerra e trouxe-
ram alguns meninos, mandei-lhes oferecer que lhos pagaria que
mos trouxessem, mas são tão carniceiros que não deixaram
de comer um tapuia por preço algum dizendo que se vingam da
morte de seus parentes.XXXIV43
1205 Chegou finalmente recado do padre reitor de Pernambuco
Henrique Gomes, em reposta das minhas cartas que me

XXVIII37
para [Ms] | da [BS, RG,SL,PS]
XXIX38
empedirem [Ms] | empedir [BS, RG, SL, PS]
XXX39
veem [Ms] |vem [BS, RG, SL, PS]
XXXI40
vem [Ms] | vê [BS, RF,SL, PS]
XXXII41
a visão [Ms] |Ø [BS, RG,SL,PS]
XXXIII42
ameaçaram [Ms] | ameaçavam [BS, RG,SL, PS]
XXXIV43
Tinham eles ido com uns tapuias à guerra e trouxeram alguns meninos, mandei-lhes oferecer que lhos
pagaria que mos trouxessem, mas são tão carniceiros que não deixaram de comer um tapuia por preço algum
dizendo que se vingam da morte de seus parentes. [Ms] |Ø[BS, RG, SL, PS]
206

viesse em tempo que as milharadas estavam de vez, e o


inverno era passado, mandei recado a uma aldeia que estava
no Rio do Ceará - 25-ou-30 léguas mais para cá para
1210 o Jaguaribe pedindo que me fossem alguns buscar para me tra-
zerem algun mantimentozinho, e também me acompanha-
rem em certo passo perigoso de tapuias, foram eles e es-
tando para me partir se levantou outra tempestade nesta
forma.
1215 Este Cobra Azul tem um filho mancebo de -26-até-28 anos
de boa índole, valente, e bem quisto, e estimado entre os seus
também se chama Cobra Azul o moço, este desejava muito de vir
comigo para o Caeté, eXXXV44procurou com muitas veras de trazer o pai
e todos os seus parentes finalmente estando eu para partir
1220 se foi ao pai a lhe dar a última bataria com muitas razões que
para isso ele alegou, e achando-o sempre com a mesma dureza e
esquivança, se saiu agastado e enfadado; quando veio
ao dia seguinte de madrugada começa a falar alto que todos
o ouvissem desta maneira contra o pai.
1225 Aparelhai-vos vós outros todos e vamos com o padre e dei-
xemos ficar a este que tem o meu nome velho (decla-
rando o pai com este circunlóquio por modo de desprezo) porque
eu levarei o padre à sua casa, já que este se não lembra dos
grilhões em que Pero Coelho o teve três anos, e eu fui a causa
1230 de os brancos o não enforcarem, estando para o fazer três
vezes, não sei em que confia, e sendo eu seu defensor e
arrimo quem lhe fará agora bom indo me eu, ora já que
assim quer fique se ele e nós vamo-nos com o padre.
fl. 11v
1235 Esta foi a pregação do Cobra Azul o moço, e logo pela manhã
se foi ter comigo, a me referir o que tinha dito, acrescentando que
confiasse eu nele que já não era menino que se arrependesse
e que bem sabia já falar diante de gente e sem dúvida me
traria à minha casa, e que seu pai que havia medo dele pelo
1240 que estava bem fora de lhe pegar do braço e lhe impedir
a vinda, acrescentando outras muitas coisas com que me
pareceu um anjo, eu o animei confirmando em seu bom
propósito dizendo-lhe, que já havia dias que conhecia seu bom
ânimo, e que posto que já tinha fama de querimbaba
1245 e valente todos lhe queriam bem, contudo que agora sua fama
e nome se estenderia mais e os brancos o conheceriam e os
padres todos lhe fariam muito bom gasalhado, e roçaria em
muito boas terras, aonde vivesse muito a sua vontade
e lhe agradeceriam com boas obras o trazer-me.
1250 O pai ficou perturbadíssimo com ver contra si o filho
por minha parte; e todo aquele dia esteve brusco e empeço-
nhentando-se para o dia seguinte mostrar o veneno; le-
vanta-se de madrugada, e espertando todos começa a dizer
ide vós outros ide e levai o abaré que ele vos irá vender e

XXXV44
e [Ms] |Ø [BS, RG, SL, PS].
207

1255 distribuir a seus parentes e sereis todos escravos, e vós


outros que viestes com ele doXXXVI45Caeté, agora passareis de largo
por defronte de vossas casas, e com saudades desejareis de chegar
aXXXVII46elas mas debalde porque ireis para onde vos ele vender e
falando por ironia, dizia e eu que não sei o que faço me ficarei
1260 aqui perdido e miserável, dando-se por superior no saber a todos
os mais que eram nécios em se entregarem ao cativeiro vindo comigo.
Amanheceu finalmente o dia seguinte que havia de ser
o último de minha estada, aparelhamo-nos para nós
partirmos e mandei avisar para que ao outro dia pela manhã
1265 nós partiríamos, mas que primeiro nos ajuntássemos todos no
terreiro e dali nos abalaríamos; aquela noite foi a demais
medos e arreceios, porque como era a última e o coração da-
quele bárbaro estava tão azedado, quase que me persuadi
que se atreveria a cometer alguma coisa, quis chamar quem
1270 me guardasse, mas por não alvoroçar ou dar a entender meu
medo o não fiz, ainda que ele poucos dias havia que tinha dito
que antes que nós viéssemos nos havia de matar, e enfim pas-
sou aquela comprida noite de angústias, e pela manhã
nos ajuntamos todos no terreiro aonde estando todos ajoelhados
1275 diante de uma cruz recitei o itinerário em voz alta, o qual
acabado, desparando-se um mosquete nos despedimos ficando
o bárbaro dentro de casa sem parecer fora, passei-lhe pela
porta e da rua o saudei, e ele encadarroadoXXXVIII47de dentro
me respondeu vai-te embora, não lhe agradeço a ele não
1280 me matar,que boa vontade me mostrou, mas agradeço a divi-
na bondade que me livrou dos selvagens tapuias, e dele
também, mas estes são os passos em que se medita bem na morte
vendo-a de perto.
O filho deste também se partiu comigo e quase toda aldeo-
1285 ta, a primeira jornada o Cobra Azul o moço foi tão prudente que
ainda que vinha agastado contra o pai, contudo me foi falar
pelo pai dizendo-me que não me lembrasse de nada que seu pai
sempre tivera costume de falar áspero a todos, e que era
costume dos grandes morubixabas para terem autoridade
1290 e que ele o mandava comigo para que me trouxesse e visse
o que passava na igreja para depois vir também e que
não quisesse eu apartar de todo a seu pai de mim.
fl. 12r
Eu o consolei dizendo, que mais me lembrava das boas obras
1295 que me fizera que de suas palavras, que não cuidasse que lhe
queria mal, e bastava ser seu pai etc.
Dali a três ou quatro jornadas chega após nós um
mancebo sobrinho seu pelo qual para atemorizar os meus
e fazer tornar o filho e parentes como feiticeiro e sabedor
1300 das coisas futuras, lhes mandou dizer que todos morreriam no
caminho, e que os outros da aldeia para onde vínhamos nos não ha-

XXXVI45
do [Ms]| de [BS,RG,SL, PS].
XXXVII46
a [Ms]| p.[BS,RG, PS] | pera [SL].
XXXVIII47
encadarroado [Ms] | Ø [BS,RG, SL,PS].
208

viam de dar uma sede d’água que pereceríamos à fome, e coisas


semelhantes com que perturbou muito aos que vinham comigo, por
que dão mui facilmente entrada à imaginações e ficções de
1305 feiticeiros, mas contudo ninguém se me tornou.
Chegamos à outra aldeia que está junto ao rio chamado
Ceará vinte e cinco léguas além de Jaguaribe, recebe-
ram-nos com festas, caminhos feitos, emboscadas tamboris etc.
tinham me feito uma casinha mui bonita de pindoba adonde
1310 me recolheram parecendo-lhes que lhe vinha todo o remédio
contra os brancos que até agora os tinham feito andar brenhas
e rochas escondidos; e um velho me veio visitar que me disse
quando hoje vinhas não te pude ir falar porque estava chorando de a-
legria de ver agora juntos por amor de ti a estes meus parentes
1315 que até agora andavam pelas covas e brenhas escondidos
mas agora só nos ficam as saudades que temos de nossos filhos
e filhas que os brancos nos levaram pedindo-me com isto lhos fizesse
ir de cá.
A estes índios de Ceará convidei, e tinha já dantes convidado
1320 que viessem para a igreja, que além de haverem de ser filhos de Deus
estariam livres dos tapuias e mais inimigos que até agora
os desbaratavam, e que na igreja estariam livres das injúrias
dos brancos que é o em que mais falam que tudo, porém tinha-os já
prevenido, Jerônimo d’Albuquerque com três ou quatro
1325 recados que lhe mandou, que não se bulissem nem desamparassem
suas terras e pátria antiga de seus antepassados
e que não ouvissem minhas palavras nem lhe dessem orelhas
que logo iria outro padre a morar com eles e lhe fazer igreja
e outras muitas coisas a este tom e tais que pelas não dizerem
1330 com a pessoa de Jerônimo d’Albuquerque lhe não dei crédito, e me
persuadi que seriam fingidos pelos mensageiros, ainda que
é verdade que estes senhores, não cuidam outra salvação dal-
mas, mais que enquanto não se encontra com seus interesses.
Vendo eu que os mais não queriam vir procurei então
1335 de os ajuntar todos porque em todo aquele sertão do Jaguari-
be aonde dantes havia grandíssimo número de aldeias, agora serão
por todos grandes e pequenos, como oitocentas almas, as
quais estavam em sete ou oito aldeotas, de todas ajuntei
os principais, e os persuadi se ajuntarem a roçar em cer-
1340 ta parte mais acomodada, traçando-lhe as casas e le-
vantando-lhe uma formosa cruz de cedro lavrada com seu título
coisa que eles estimaram muito, e lhe pus nome a aldeia de
São Lourenço por ser em seu dia levantada a cruz, e agora esque-
cendo-se do nome antigo daquela terra lhe chamam
1345 São Lourenço, deixei-os animados e com segurança dos brancos
que já os não fariam escravos, nem lhe fariam guerra
fl. 12v
e que eu os encomendaria ao senhor governador que os defendesse e amparasse
deles, dei aos principais algumas relíquias de ferramenta
1350 velha que ficou dos tapuias, mas nem por isso os contentei porque
cuidam que tudo isso e muito mais se lhe deve, aonde não abran-
209

geram os machados e foices dei algumas facas ou tisouras


e entre estes havia um por nome Lagartixa Espalmada
o qual era soberbíssimo, e antes que eu viesse por várias vezes me
1355 ameaçou que me havia de matar e aos meus, e por lhe dizerem
outros alguns louvores meus com que o abrandaram, ulti-
mamente disse que se havia de ir da aldeia antes que eu chegasse por
me não ver e pelo não enganar com minhas palavras fazendo-o
vir para igreja, mandei do caminho desenganar que
1360 não fugisse de mim que não queria senão que roçasse em sua mes-
ma terra, e que lhe daria com que roçar, e ele contudo se foi apa-
nhar algodão, e não estava na aldeia quando eu cheguei.
Veio porém dali a dois dias ou três mas não me
foi visitar até que eu o chamei; deteve-se ainda um pe-
1365 daço depois de meu recado, enfim veio com um maço de fle-
chas e seu arco na mão, e ele todo almagrado com urucu
e depois de nos saudarmos, a primeira coisa que me disse foi
que não me perturbasse por lhe ver as flechas na mão que o seu
costume era trazê-las sempre, nisto pediu fogo a um
1370 moço meu, e acendendo a palma em que trazia o fumo para be-
ber mo oferece, respondi-lhe que não costumava a beber fumo.
Tratamos então prática em que eu o assegurei de
o querer trazer, e que já o conhecia e amava como a filho
e ele então me fez uma grande prática em que dizia que eu
1375 fora causa de ele sair das lapas e matos a roçar em públi-
co, o que estava fora de fazer se algum branco viera que não
fosse padre e que já agora estava descansado, e outras coisas
a este tom, prometi-lhe uma foice para roçar posto que
lha não dei logo, com que se despediu muito apaziguado, à-
1380 quele mesmo dia à noite estando os principais todos
em terreiro praticando como costumam, sai ele de casa e em
alta voz começa a falar desta maneira com os parentes.
Não sabeis vós que sou eu o vingador mor, que ninguém
me fez coisa que me não pagasse, que me vinguei dos ta-
1385 puias e dos mais contrários de todas as mortes dos meus
pois quem é agora o que por detrás anda murmurando de mim
dizendo que me ausentei por não ver o padre; quem isto diz mente
e quem me fez a mim sair dos matos por ventura vós outros
é grande falsidade, por amor do padre saí eu a pouco e estou
1390 hoje sem nenhum temor, ora isto baste que sois todos umas mu-
lheres; ouviram todos mas ninguém falou palavra.
Ao dia seguinte mais por medo que por vontade lhe dei uma
foice para roçar, soube-o um principalete a quem
eu só tinha dado uma faca; indignado começa a pre-
1395 gar dizendo estou mui agastado e agravado contra o padre
que dá foices a quem dele murmura e fala, e a mim,
não me deu foice, será por ventura porque eu o não convidei
neste tom esbravejou, dando-me muitas remocadas porque
não me tendo o outro dado nada ele me trouxera por al-
1400 gumas vezes, uns mingaus de mandioca brava que caro me cus-
taram, mas de tudo teve o Senhor por bem de me livrar.
210

fl. 13r
Parti-me finalmente daquela aldeia, aos -19- de agosto
de- 608- e estando aposentado daí a légua e meia me
1405 deram um escrito do padre Gaspar de Samperez que em um barco
de Jerônimo d’Albuquerque e com algumas farinhas e milho
me ia buscar, no que enxerguei a muita caridade sua
porque para este efeito desfez uma roça em farinha, e fretou
o barco e em pessoa se meteu nele apostando-se a viver ou
1410 morrer comigo, foi este um dia de ressurreição para um
pobre que de tantas mortes andava cercado, mandei-lhe logo
outro escrito, e ao dia seguinte me fui logo embarcar e viu-se a
providência de Deus que os marinheiros não conheciam a terra e cui-
dando que estavam em hum porto se acharam em outro, e che-
1415 garam em o mesmo dia em que [eu]de caminho também chegava.
Detivemo-nos neste porto -17- dias - ou-18- sem poder
sair com ventos contrários até que dia de Nossa Senhora do Nascimento
navegamos; não pode vir toda a gente no barco assim
por não ser capaz como por não haver tantos mantimentos
1420 por ser muita a detença no porto; embarcamos somente
os da Ibiapaba, porque os do Jaguaribe os não matassem que
são seus antigos contrários, os demais se partiram por terra
devagar, são por todos os que comigo vinham-160- estando
para me embarcar me disseram que se aprestaram mais dois prin-
1425 cipaletes, se vierem chegarão a 200 almas; chegamos
ao Rio Grande aonde fomos recebidos com muita alegria
do capitão-mor Jerônimo d’Albuquerque, e Antonio Ferreira
tenente e dos mais, e com muita caridade do padre Domingos Monteiro
e Diogo Nunes; ali me detive alguns dias esperando
1430 embarcação e tempo até que Deus o deu/ Seja Ele louvado com
tudo e tudo seja para sua honra e glória; isto se me ofereceu para
dar conta a Vossa Paternidade em cuja benção me encomendo hoje 26 de março de 608.

Luís Figueira
211

4. 3 As variantes e os comentários

Nesta seção descrevemos a metodologia usada para fazermos o cotejamento dos


quatro testemunhos em comparação com o texto genuíno (o manuscrito) que editamos,
relacionamos as variantes encontradas e as suas análises.
Tomamos por base a nossa edição interpretativa realizada diretamente do manuscrito
datado de 1608 e assinado por Luís Figueira. Esse é o texto genuíno identificado pela sigla
Ms. A partir desse testemunho levantamos 38 lugares críticos ou de variação em que ocorrre
algum tipo de erro nos quatro testemunhos posteriores, agrupamos os tipos de erro e fizemos
algumas interpretações sobre a motivação das ocorrências. É importante salientar que as
formas variantes computadas são dos quatro testemunhos avaliados, não contamos com a
forma do manuscrito.
Os testemunhos analisados são os seguintes: 1) o testemunho de 1903, cujo editor
não sabemos, mas como foi publicado pelo pesquisador cearense Barão de Studart, na Revista
do Instituto do Ceará em 1903, atribuímos a ele a responsabilidade e denominamos pela sigla
BS; 2) o testemunho de 1911 publicado pelo historiador da Companhia de Jesus, Pe. Rafael
Galanti, no tomo I do livro História do Brasil, o denominamos de RG; 3) o testemunho de
1945, publicado no livro Luiz Figueira: a sua vida heroica e a sua obra literária, pelo
padre Serafim Leite, ao qual denominamos de SL; 4) o testemunho de 1967, publicado no
livro Três documentos do Ceará colonial, com comentários e notas de Pompeu Sobrinho,
atribuímos a sigla PS. Desprezamos o testemunho de 1904 de responsabilidade também do
Barão de Studart por averiguarmos que é igual a de 1903.
Consideramos apenas as variantes substantivas, desprezando tudo quanto diz respeito
à acentuação gráfica, pontuação e grafia, tendo em vista ser o manuscrito do século XVII com
as normas da época ou sem seguir normas em alguns casos. Relacionamos trinta e oito lugares
críticos com suas variantes, conforme quadro abaixo. A grafia da linha do manuscrito é
atualizada conforme o modelo adotado, mas a dos outros testemunhos, mantivemo-la como se
encontra.
212

Tabela 1 – Lugares críticos ou de variação


Lugar
Ms BS RG SL PS
Crítico
Relação do Relação do Relação do Relação da Relação do
Maranhão, Maranhão, 1608, Maranhão, 1608, missão do Maranhão, 1608,
1608 pelo jesuíta pelo jesuíta Maranhão pelo jesuíta
1. padre Luiz padre Luiz 26 de março padre Luiz
Figueira enviada Figueira enviada de 1608 Figueira enviada
a Claudio a Claudio (1609?) a Claudio
Aquaviva Aquaviva Aquaviva
2. Padre Ø Ø Ø Ø
3. Desta província Desta província Desta província Desta província Ø
4. Nenhuns Ø Ø Ø Ø
5. Para pouco e pequenos Ø e pequenos e pequenos
6. A licornio o licornio o licornio o licornio o licornio
7. Mais Mais Mais Mais Ø
8. De propósito Ø Ø Ø Ø
9. Caça Cousa Cousa Cousa Cousa
10. E em em em em
11. Muitas Ø Ø Ø Ø
12. Em Ø Ø Ø Ø
13. Sua hua hua hua hua
14. Que faz a e raza e raza e raza e raza
15. Primeira Ø Ø Ø Ø
16. Dizerem-lhe dizerlho dizerlhe dizerlho dizerlho
17. Bem natural bonatural bonatural bõ natural bonatural
18. Homem homeo homeo o meo ho meo
19. Traçamos tratamos tratamos tratamos tratamos
20. Consolação salvação salvação salvação salvação
21. Dizendo dizes dizendo dizendo dizendo
22. Que lo Ø Ø Ø
23. Em Ø Ø Ø Ø
24. Ø a a a a
25. Do Ø Ø Ø Ø
26. E Ø Ø Ø Ø
27. Por para para para para
28. para da da da da
29. impedirem impedir impedir impedir impedir
30. veem vem vem vem vem
31. vem vê vê vê vê
32. a visão Ø Ø Ø Ø
33. ameaçaram ameaçavam ameaçavam ameaçavam ameaçavam
Tinham eles [...] Ø Ø Ø Ø
dizendo que se
34.
vingam da morte
de seus parentes
35. e Ø Ø Ø Ø
36. do de de de de
37. a p. p. pera p.
38. encadarroado Ø Ø Ø Ø
Fonte: Elaborado pelo autor.
213

4. 3.1 Analisando os dados

Analisando os tipos de ocorrências a partir do manuscrito (ressaltamos que a análise


é feita apenas do manuscrito em relação aos quatro testemunhos, o que significa não
compararmos os testemunhos entre si) e seguindo a classificação de Blecua (2001), sobre os
tipos de erros: erro por adição, por omissão, por alteração da ordem e por substituição,
encontramos apenas três dos tipos descritos: adição, omissão e substituição.

4.3.2 Erros de adição

Os erros de adição encontrados são poucos, aparecem em apenas dois lugares


críticos, no número 1 que se relaciona ao título do documento, como se observa no quadro
abaixo:

Tabela 2 – Erros de edição do título do documento


Ms BS RG SL PS
Relação do Relação do Maranhão, Relação do Relação da Relação do Maranhão,
Maranhão, 1608, pelo jesuíta Maranhão, 1608, pelo missão do 1608, pelo jesuíta
1608 padre Luiz Figueira jesuíta padre Luiz Maranhão padre Luiz Figueira
enviada a Claudio Figueira enviada a 26 de março de enviada a Claudio
Aquaviva Claudio Aquaviva 1608 (1609?) Aquaviva
Fonte: Elaborado pelo autor.

No manuscrito há apenas o nome do documento e a data. Os testemunhos BS, RG e


PS acrescentaram os nomes do autor e do destinatário “pelo jesuíta padre Luiz Figueira
enviada a Claudio Aquaviva”. Já no testemunho SL, há um acréscimo da palavra missão e da
data completa dia, mês e ano da escritura e ainda outra data, seguida de interrogação, por ser
duvidoso o ano de 1608, como data exata. Portanto, contabilizamos duas variantes por
acréscimo em relação à forma genuína, no lugar crírtico numero 1. Uma está em três
testemunhos e a outra forma diferenciada que aparece apenas em SL. Esse testemunho é o que
apresenta maior diferença em relação ao título.
O outro erro de adição está no lugar crítico 24 em que há uma variante por inserção
da letra a nos quatro testemunhos analisados, mas não existente no manuscrito, na seguinte
passagem “respondeu ao moço, pois quem o mete repreender-me”. Nos demais testemunhos
“respondeu ao moço, pois quem o mete a repreender-me”.
214

Contabilizamos, dessa maneira, 3 ocorrências de erros por acréscimos. Quanto às


inserções no título do texto, uma eventual motivação deve ser para explicar melhor a acerca
de detalhes do documento, pois são citados o autor, o destinatário e a data dando maiores
informações por parte dos editores que são historiadores. Essas informações para Luís
Figueira, enquanto autor do texto, eram desnecessárias, uma vez ele próprio estava ali
presente escrevendo, havia datado o documento e, além do mais, no pacote ou envelope a
quem se destinava, ou seja, o seu superior, já constava o nome desse. Não se fazendo
necessário no título do texto.
Em relação ao acréscimo da letra a pelos editores ao verbo meter a na passagem
acima, leva-nos a crer que houve uma tentativa de correção já que o verbo admite mais de
uma predicação por ser direto e transitivo indireto.

4.3.3 Erros de Omissão

Quanto aos tipos de erros por omissão, revelaram-se mais frequentes. Enumeramos
17 lugares críticos ou de variação, são os seguintes: 2, 3, 4, 5,7, 8, 11, 12, 15, 22, 23, 25, 26,
32, 34, 35 e 38.
Nos lugares críticos de número 3 e 7 há erro de omissão somente no testemunho PS;
No lugar crítico 5 há uma omissão no testemunho RG uma vez que o editor suprimiu quatro
parágrafos do texto. Na lição ou lugar crítico número 22 há uma omissão em três testemunhos
RG, SL, PS. Os demais lugares críticos são comuns nos quatro testemunhos. Contabilizamos
um total de 17 lugares críticos e 17 variantes por omissão.
A dificuldade de leitura, na maioria das vezes, fica evidente que é a principal causa
da omissão, já que o espaço omitido, algumas vezes, é preenchido por reticências, sinal de que
havia consciência da existência da palavra, mas não foi possível reproduzi-la. Isso ocorre no
testemunho de 1903 de BS e os demais seguem o parâmetro.
Além da dificuldade de leitura, há um caso evidente de salto bordão. Isso ocorreu no
lugar crítico 34 em que é omitido um parágrafo inteiro nos quatro testemunhos, cujo conteúdo
do Ms é o seguinte: “Tinham eles ido com uns tapuias à guerra e trouxeram alguns meninos,
mandei-lhes oferecer que lhos pagaria que mos trouxessem, mas são tão carniceiros que não
deixaram de comer um tapuia por preço algum dizendo que se vingam da morte de seus
parentes”.
215

4.3.4 Erros de substituição

Há erros de substituição em 21 lugares críticos ou de variação nas seguintes lições: 5,


6, 9, 10, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 27, 28, 29, 30, 31, 33, 36 e 37. Há algumas
variantes que ocorrem em apenas um dos testemunhos como é o caso da lição 16 em RG que
se diferencia dos demais testemunhos; em 21 BS substitui uma forma verbal gerúndio
dizendo por dizes em relação aos demais. Em 22 BS substitui que por lo, um erro evidante por
falta de compreensão leitora, enquanto os outros editores preferiram a omissão. O número
total de variantes contabilizam 22 casos.
A ocorrência de número 5, embora o sentido não esteja muito claro, mas no Ms a
forma gráfica é nitidamente legível “para pouco” e nos demais testemunhos é registrado “e
pequenos” na seguinte passagem: “dizendo que matando-os ficarão frouxos e para pouco”,
nas edições posteriores: “dizendo que matando-os ficarão frouxos e pequenos”. Vemos um
erro de leitura que foi passado para a edição de 1903 e reproduzido nos testemunhos
posteriores.
Na ocorrência 6, no manuscrito é grafado a licornio com letra a separada o que leva
a entender que é um determinante feminino. Nos outros testemunhos, também grafada
separada, mas a forma do determinante é masculina o licornio. A maioria dos dicionários não
registra a palavra alicórnio. O verbete é grafado licorne palavra do gênero masculino e é
remetido para unicórnio. Machado (1967) registra alicorne, alicórnio, mas também remete
para unicórnio. Parece que a palavra não era bem definida quanto a sua forma gráfica em
português. Ferreira (1999) apresenta alicorne como variante de alincorne vindo de unicórnio,
mas não dá definição. A palavra latina é unicornius que tem um só corno ou chifre. Não fica
clara a forma e a definição alicórnio ou licorne. O fato se refere ao tipo de antídoto que os
jesuítas trouxeram das missões do oriente e usavam para curar as feridas dos nativos das terras
por onde iam, sobretudo, as mordidas de cobras. É um antídoto feito a partir do chifre do
unicórnio, ou seja, animal mitológico de um único chifre.
Na lição 9 a palavra caça é substituída por cousa em todas os testemunhos. Houve
uma dificuldade de leitura porque no Ms a palavra encontra-se borrada pelo erro do autor,
dando duas possibilidades de interpretação na seguinte passagem: “Com estas dificuldades do
caminho se nos ajuntou boa fome, porque por estes campos não há ratos, nem se matou neles
outra caça alguma”. Vê-se que poderia também entender-se “nem se matou neles outra
cousa alguma” como foi reproduzido pelos editores.
216

Em 10 a conjunção e do Ms foi substituída pela preposição em “o mordeu outra


cobra da mesma casta que cá são as mais ordinárias e muitas em quantidade”. Nos outros
testemunhos “o mordeu outra cobra da mesma casta que cá são as mais ordinárias em muitas
em quantidade”
Na ocorrência de número 13, o pronome possessivo sua sofreu alteração por hua em
todos os testemunhos. No Ms “[...] umas -15- ou -18- espigas de milho as quais repartimos
com o principal de nossa gente, e com os nossos moços, de modo que para o dia seguinte nos
ficaram cada um sua, e sobre este almoço nos pusemos ao caminho”. Nos testemunhos
posteriores “[...] umas -15- ou -18- espigas de milho as quais repartimos com o principal de
nossa gente, e com os nossos moços, de modo que para o dia seguinte nos ficaram cada um
hua, e sobre este almoço nos pusemos ao caminho”. Observamos que mesmo não havendo
comprometimento do sentido do texto, mas há variante.
Na lição 14 a expressão que faz a do Ms na passagem “e em uma chã que faz a
ladeira antes de chegar...” foi alterada para e raza nas demais edições “e em uma chã e raza
ladeira antes de chegar...”. A ladeira faz uma chã, ou seja, a ladeira em algum local se torna
plana ou chã, tem muito mais sentido do que uma chã e raza ladeira que os editores leram,
pois o que seria uma raza ladeira?
A ocorrência 16 no Ms é grafada com o verbo na terceira pessoa do plural do infinito
pessoal dizerem-lhe, “A cabo de um mês tornaram com resposta; a saber que os primeiros
com que encontraram lhe tomaram o machado, e o mais que levavam, que assim costumam
ordinariamente estes selvagens nem aproveitou dizerem-lhe que era para o principal”. Os
testemunhos BS, SL e PS grafaram no infinito impessoal dizerlho, no testemunho RG,
dizerlhe; podemos observar que além de alterar o infinitivo pessoal de terceira para o
infinitivo impessoal também registraram uma forma gráfica diferente do pronome
complemento. O sujeito é de terceira pessoa, pois se trata dos índios mensageiros que foram
enviados para negociarem com os tapuias.
A ocorrência 17 grafada no Ms é bem natural, “Entre estes há muitos de muito bem
natural e de bem fazer, e posto que geralmente todos nos faziam o que podiam de bem”. Em
BS, RG e PS foi alterado para bonatural, já em SL bõ natural. Há alteração de bem para bom
além de se grafar junto e com grafia fonética.
Na ocorrência 18 homem como pronome pessoal registrado por Figueira marca a
existência dessa forma pronominal no português arcaico, como se observa na passagem “Com
estas coisas e fruto que se fazia nestas desamparadas almas aliviava homem o trabalho de
caminhos e cansaços, e a carência da vista e práticas de nossos padres e irmãos”.
217

Nos demais testemunhos a forma foi substituída por diferentes fromas gráficas que
não fazem sentido, talvez por não reconhecerem aquela forma pronominal. Em BS e RG
homeo, SL o meo e PS ho meo. Observamos uma falta de clareza no entendimento da palavra
que foi lida na edição do BS de 1903 por homeo e nas edições posteriores há uma tentativa de
correção. Não temos dúvida de que se trata de homem pronome na função de objeto direto
que pode ser substituído por a gente.
Na ocorrência 19, o verbo traçar do Ms, passou por alteração em todos os outros
testemunhos pelo verbo tratar conjugado na mesma pessoa e tempo verbal. Vejamos a
seguinte passagem: “e vendo que totalmente se nos fechava a porta do Maranhão (por que em
-5- meses que tratamos fazer pazes com os tapuias não podemos alcançar deles nem ainda
verem-nos, sem dúvida se nós partíramos e fôramos a suas terras, todos fôramos queimados e
acabados sem de nós se saber mais) traçamos de nos descer ao mar e roçar”. O verbo tratar
aparece no mesmo contexto o que poderia ter confundido a leitura por tratamos de nos descer.
Porém, no manuscrito é muito clara a forma grafada traçamos que também faz sentido, ou
seja, traçar um plano de descida da serra para o mar.
Em 20, consolação do Ms na seguinte passagem “alguns referirei para glória do
Senhor e consolação de meus padres e irmãos” é alterada para salvação em todos os quatro
testemunhos “alguns referirei para glória do Senhor e salvação de meus padres e irmãos”. A
palavra consolação faz mais sentido, pois o intento era narrar os fatos para consolar e dar
ânimos aos demais irmãos da Companhia de Jesus que estavam espalhados pelo mundo em
missão. Não se atribui o sentido de salvar os irmãos.
Em 21 a forma verbal dizendo no Ms e nos testemunhos RG, SL e PS “quem me fará
um arco para o meu moço, que não tem com que ir a caçar, ao que o Cobra Azul acudiu
dizendo que por que o não mandava eu fender um pau para isso, eu com alguma confiança
lhe respondi [...]”, foi alterada para dizes em BS. Chama-nos a atenção essa ocorrência, pois
geralmente todos os testemunhos seguem o modelo de BS e nesse caso não, pois os demais
seguem a forma do manuscrito.
Em 28, no Ms é grafada a preposição para a qual “Estes índios que ultimamente
vieram da Ibiapaba trouxeram uma nova digna de se saber para nos compadecermos desta
cega gentilidade para qual se hão de saber algumas [...]” Nos demais testemunhos a
preposição da qual “Estes índios que ultimamente vieram da Ibiapaba trouxeram uma nova
digna de se saber para nos compadecermos desta cega gentilidade da qual se hão de saber
algumas [...]”.
218

No lugar crítico 29, a variante da forma verbal impedirem no infinitivo pessoal no


Ms, sofre alteração nas demais edições sendo grafada no infinitivo impessoal impedir. Vale
ressaltar que tanto no Ms quanto nas edições BS, RG e PS, há erro gráfico em que a palavra
é escrita empedirem/empedir, somente SL grafa impedir.
Em 30, no Ms é grafado o verbo na terceira pessoa do plural de ver como se observa
“os que entre eles são feiticeiros falam com o diabo muitas vezes, o qual lhes fala de noite às
escuras, e posto que não o veem, ouvem-no, e dão-lhe o fumo que beba”. Os quatro
testemunhos alteram para o verbo vir na terceira pessoa do singular “os que entre eles são
feiticeiros falam com o diabo muitas vezes, o qual lhes fala de noite às escuras, e posto que
não o vem, ouvem-no, e dão-lhe o fumo que beba”.
A interpretação mais segura é do verbo ver, pois percebemos uma oposição expressa
pela própria conjunção, eles, os feiticeiros, sujeito de terceira pessoa do plural, não veem o
diabo, porém ouvem-no.
Na lição 31, no Ms é grafada foneticamente vẽ, ou seja, vem do verbo vir, conforme
no enxerto “muitas vezes, o qual lhes fala de noite às escuras, e posto que não o veem,
ouvem-no, e dão-lhe o fumo que beba, o qual vem estar no ar, mas não vem quem o tem,
veem porém as baforadas que lança”. Nos demais testemunhos a forma de grafar é vê o que
nos leva a entender que a leitura foi interpretada pelo verbo ver.
Na lição 33 a forma verbal no pretérito perfeito do indicativo do verbo ameaçar em
terceira pessoa do plural no Ms: “Estes da Ibiabapa ficam muito contentes por lhe ficarem os
ossos do padre em sua terra, o qual cuidam lhe será valha couto dos brancos e aos que de lá
vinham ameaçaram que os não trouxessem”, alterou-se para a terceira pessoa do plural do
pretérito imperfeito nos demais testemunhos. “Estes da Ibiabapa ficam muito contentes por
lhe ficarem os ossos do padre em sua terra, o qual cuidam lhe será valha couto dos brancos e
aos que de lá vinham ameaçavam que os não trouxessem”
Em 36 houve a substituição da aglutinação da preposição de mais o artigo o em do
grafada no Ms “e vós outros que viestes com ele do Caeté, agora passareis de largo por
defronte de vossas casas” para a preposição de em todos os testemunhos. Finalmente, em 37,
a preposição a do Ms “e com saudades desejareis de chegar a elas mas debalde” é substituída
pela preposição para de forma abreviada p. em BS, RG,PS e desenvolvida pera em SL. “e
com saudades desejareis de chegar p. elas mas debalde”
As causas que levaram aos erros de substituição poderiam ser várias, no entanto, é
mais plausível afirmar que a dificuldade de leitura é a mais evidente, pois quando o editor de
BS errou, esse erro é repetido nos outros testemunhos, o que significa dizer que aquele
219

testemunho de 1903 deve ter sido editado a partir do manuscrito que gerou dificuldades de
leitura. Por esse testemunho ser um datiloscrito os que se geraram a partir tiveram menos
dificuldades, no entanto, reproduzem o que lá está. Os erros cometidos nas edições posteriores
podem ser por pura falta de atenção e não mais por dificuldades de entendimento das
palavras.
Em relação ao tipo de erro de ordem, estabelecido por Blecua, não encontramos
nenhum. O total de variantes levantadas somam 42, distribuída em 3 erros de adição, 17 de
omissão e 22 de substituição, que demonstramos na tabela abaixo.

Tabela 3 – total de variantes


Natureza Ocorrência resultado
Adição 3 7,14%
Omissão 17 40,48%
Substituição 22
52,38%
Ordem 0 0%
Total 42 100%
Fonte: elaborado pelo autor.

No documento Relação do Maranhão foram contabilizados o total de 38 lugares


críticos ou de variação, parece não ser significativo se compararmos com outros trabalhos,
por exemplo, a obra Dom Casmurro, em que Santigo-Almeida (2015) relaciona 785 variantes
encontradas em 764 lugares críticos, distribuídas em: 294 adições, 292 substituições, 188
omissões e 11 alterações de ordem.
Na Relação do Maranhão, o número de páginas é bem menor e os testemunhos
também do que Dom Casmurro, mesmo assim percebemos que há uma disparidade enorme
dos números de erros por adição em D. Casmurro que supera todos os outros. A substituição
também é superior em relação à Missão e os casos de omissão são também alto. Vemos que
os três tipos de erros os mais comuns.
220

4. 3.5 Comentários sobre os testemunhos

O testemunho primeiro da Relação do Maranhão que chegou ao Ceará foi uma


fotocópia cuja origem é um acervo holandês. Barão de Studart a publicou na Revista do
Instituto do Ceará, em 1903. No ano seguinte, em 1904, o mesmo texto foi publicado em uma
coletânea intitulada Documentos para a história do Brasil principalmente do Ceará 1608-
1625, pelo mesmo pesquisador.
A cópia que o Barão teve acesso foi uma fotografia em letra de imprensa, recebida
do jesuíta P. J. B. van Meurs, do Limburgo Holandês, ou seja, uma província localizada no
extremo sul do território neerlandês, por ordem do superior geral da Companhia de Jesus,
conforme informações de Pompeu Sobrinho (1967). Não se sabe com certeza se esta cópia
trazida para o Ceará foi editada diretamente do manuscrito que se encontra no Archivum
Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Mas tudo indica que sim.
Não sabemos também quem é o editor da cópia de 1903, pois o Barão apenas
publicou. O fato é que existe a matriz de imprensa na Holanda, que gerou o testemunho do
BS e provavelmente outros espalhados pelas casas jesuíticas, como deve haver também outras
cópias feitas diretamente do manuscrito. Tudo isso são apenas hipóteses, não temos como
provar. Sabemos que a cópia do Barão de Studart foi a primeira publicada no Ceará, e todas as
demais edições de nosso conhecimento como as quatro referidas aqui tomam essa como
matriz. Se há outras cópias distribuídas pelo Brasil a partir da 1903, ainda não conseguimos
informações.
O testemunho BS tornou-se a vulgata, o texto mais conhecido e divulgado, a partir
dele podemos afirmar que constituiu-se uma tradição, pois os testemunhos que foram se
proliferando o tomam como modelo, reproduzindo os mesmos erros e outros eventuais.
Seguramente os testemunhos RG, LS e PS seguem a mesma linhagem do texto BS e ainda o
testemunho de 1904 do próprio Barão que não analisamos aqui. São quatro testemunhos
recenseados que se filiam á mesma matriz.
Quanto aos esclarecimentos editoriais, como as normas e o modelo de edição não são
informados pelo editor. Não há critérios normativos, as abreviaturas não são desenvolvidas, a
grafia fonética é mantida semelhante ao manuscrito, a disposição dos parágrafos apresenta
algumas alterações, às vezes junta os parágrafos, às vezes separa. Não há nenhum tipo de nota
explicativa. O conteúdo do texto é mantido fielmente, o léxico não sofre alteração a não ser
gráficas, e as variantes como já ressaltado por dificuldade de leitura ou por descuido.
221

O testemunho de 1904, não contemplado em nosso cotejo é similar a de 1903, pois é


uma reprodução do mesmo Barão de Studart.
O testemunho de 1911 de Rafael Galanti apresenta o primeiro parágrafo e faz um
salto para o quinto, omitindo quatro parágrafos sem fazer qualquer justificativa. Segue
fielmente o modelo de 1903 de Barão de Studart, com a mesma disposição dos parágrafos, a
mesma grafia e formas abreviadas. Indica em uma única nota de pé de página que o Barão
publicou pela primeira vez.
O testemunho de 1945 do padre Serafim Leite, esclarece que tem como base a cópia
do Barão e anuncia que desenvolveu as abreviaturas e corrigiu alguns erros, mas não
especifica, conforme já citado na introdução deste trabalho.
Em sua edição, Serafim Leite apresenta no texto seis subtítulos entre colchetes como
uma forma de localizar melhor as informações, mas não explica essa decisão. São
interferências do editor que não existem em nenhum outro testemunho. As abreviaturas foram
desenvolvidas sem marcação das letras acrescentadas, mas as formas da grafia fonética foram
mantidas com o sinal diacrítico representando as letras nasais m e n em comãdamos, algữs,
bastãte; as representações grafemáticas dos fonemas z em mez ou o contrário em tresentas;
mantém as marcas da escrita etimológica das consoantes geminadas, não atualizou a
acentuação gráfica, mantém a mesma pontuação e muitas outras marcas. A disposição dos
parágrafos segue o modelo de 1903. Há, porém, uma alteração no título do documento,
conforme já ressaltamos.
O último testemunho de nosso conhecimento é o de 1967, enfeixado no livro Três
documentos do Ceará colonial com introdução, notas e comentários de Thomás Pompeu
Sobrinho e a transcrição do documento. Não há nenhuma nota a respeito da transcrição, não
desenvolve as abreviaturas , mantém a mesma grafia fonética, a mesma disposição dos
parágrafos, há muitos erros de leitura, mas o testemunho do Barão de Studart é a base. Ao
longo do texto são introduzidas sessenta e duas notas explicativas que são remetidas para um
capítulo após a edição.
De acordo com os esclarecimentos podemos pensar numa família genealógica do
documento e na sua elaboração estemática. Temos um manuscrito real arquivado em um
acervo da Companhia de Jesus em Roma e dele obtivemos uma cópia. Temos ou tínhamos um
datiloscrito em outro acervo da Companhia de Jesus na Holanda. Não sabemos se há outras
cópias geradas tanto do manuscrito quanto do datiloscrito holandês, há possibilidades. Mas
sabemos que uma fotocópia do manuscrito veio para o Brasil, especificamente para o Ceará e
tornou-se pública em 1903, dela surgiram outras edições 1904, 1911, 1945 e 1967. Dessa
222

forma o estema pode ser aventado da seguinte maneira: o Ms (manuscrito) gerou o Dh


(datiloscrito holandês) que, por sua vez, gerou o testemunho BS1 (Barão de Studart1, 1903)10 . 48

Desse testemunho mais conhecido, vulgata, criou-se uma tradição: os testemunhos BS2
(Barão de Studart2 1904), RG (Rafael Galanti, 1911), SL (Serafim Leite, 1945) e PS (Pompeu
Sobrinho, 1967).

Figura 3 – Estema 1

BS2

RG
Ms Dh BS1
SL

PS
Fonte: Elaborado pelo autor.

Este estema pode ser modificado se incluirmos a edição que fizemos diretamente do
manuscrito. Esse testemunho será nomeado de EX de Expedito Ximenes (2017) e passa a
compor o estema a seguir.

Figura 4 – Estema 2

BS2

RG
Dh BS1
Ms SL

Ex
PS
Fonte: Elaborado pelo autor.

1048
Inserimos o número 1 para a edição de 1903 e o número 2 para a edição de 1904 porque agora foi necessário
expor dos dois testemunho do Barão e precisamos diferenciá-los.
223

De forma sucinta estes são alguns comentários acerca do documento que passou pelo
processo de reprodução constituindo uma linhagem que muito provavelmente pode ser
ampliada com uma recensio mais completa.
Quanto mais um texto é reproduzido a mais erros está sujeito, mais variações podem
ocorrer. Especificamente o texto Relação do Maranhão, há fatores relevantes a se enumerar
que podem causar modificações. Primeiro pelo distanciamento temporal do texto genuíno que
foi escrito no início do século XVII, há 410 anos atrás, quando o Ceará inda não constituía
uma capitania autônoma com um núcleo mínimo de organização administrativa. Não tendo
um meio de preservação do texto em arquivos locais.
Outro fator a se chamar a atenção é o lugar onde o documento foi gerado,
provavelmente em Olinda para onde Luís Figueira foi ser reitor do seminário. Podemos
também pensar que possa ser a cidade do Natal, pois foi para lá que ele se dirigiu quando saiu
do Ceará. Ainda podemos hipotetizar que tenha sido escrito em Salvador, mas não se tem
certeza do local em que Figueira se encontrava quando escreveu. Sabe-se que foi em uma das
capitanias situadas ao leste do Ceará, pois isso ele aponta em seu texto que chegou a uma
aldeia a vinte e cinco léguas além do Jaguaribe. O rio Jaguaribe situa-se ao leste do Ceará,
quase na divisa do Rio Grande do Norte, o autor do texto estava para além do Jaguaribe mais
para leste, que poderia ser Natal, Olinda, Recife ou Salvador.
A data cronológica revelada da Relação do Maranhão é 26 de março de 1608 como
está no final do documento assinado por Luís Figueira. Essa data de 1608 também está no
título. Duas vezes a mesma data no início e no fim do texto, mas poderá está errada, pois o
ano de 1608 Figueira ainda se encontrava no Ceará.
Os missionários adentraram o Ceará em 02 de fevereiro de 1607. Fizeram o percurso
da foz do Jaguaribe, passando pela Barra do Rio Ceará, Paracuru, serra da Uruburetama, até
atravessarem o rio Aracatiaçu no sábado de aleluia, pelo mês de abril. Seguiram para a
Ibiapaba, se instalaram em uma aldeia, depois se mudaram para outra mais acima da serra,
quando no mês de setembro o texto dá conta de um cometa no céu do Ceará. Em janeiro de
1608, o padre Francisco Pinto foi assassinado e Figueira, depois do funeral, desce para o
litoral, onde planta um roçado de milho e de feijão. Após passar vários meses ali, prepara sua
viagem para a Barra do rio Ceará e outra aldeia em um local cuja denominação não foi
revelada, mas ali ele organiza os índios e funda uma comunidade com o nome São Lourenço.
No dia 19 de agosto de 1608 ele recebe uma carta de seu colega o padre Gaspar de Samperez
que um barco com alguns mantimentos tinha sido enviado para ele ali. Após 17 ou 18 dias,
esperando por bom tempo, ele partiu com alguns índios para Natal.
224

Em março de 1608, com certeza ele se encontrava na aldeia do litoral liderada pelo
principal Cobra Azul. Portanto deve ter havido dois lapsos em relação à data do documento,
por isso Serafim Leite expõe as duas datas com interrogação.
O local onde se encontra arquivado o documento genuíno é muito distante de seu
nascedouro o que gera dificuldade de conhecimento e de comprovação ser ele mesmo o
original. Encontra-se no Archivum Romanum Societatis Iesu, na cidade de Roma, sob a
custódia da Companhia de Jesus. Hoje pela facilidade de comunicação via internet, foi
possível localizá-lo e receber uma cópia gravada em CD Room do manuscrito, cotejá-lo com
as cópias existentes de que temos conhecimento. Mas no passado recente tudo era muito mais
difícil.
Constitui dificuldade ainda fazer uma recensio completa de todos os testemunhos
existentes, pois há probabilidade de outras cópias a partir da de 1903, porque é esta a matriz
dos quatro testemunhos que conhecemos. Mas não localizamos outras no Brasil. A matriz do
Limburgo Holandês que foi enviada para o Barão de Studart deve ter gerado muitas outras
cópias que estão nas casas jesuíticas espalhadas pelo mundo. Também o manuscrito do ARSI,
deve ter gerado muitas cópias, o que amplia as possíveis tradições desse documento.
O que queremos afirmar é que há uma possível variedade de cópias e muitas
interferências no texto. Pelo que podemos apurar nessa pequena tradição que se constituiu no
Brasil a partir do testemunho de 1903, já podemos vislumbrar algumas variantes importantes
que constituem erros de adição, omissão e alteração.
O que tentamos fazer aqui foi uma leitura crítica do texto localizando os erros e
tentando corrigir para estabelecer o texto genuíno do qual temos a prova de sua existência que
é o manuscrito deixado pelo padre Luís Figueira.
225

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Nossa proposta de trabalho com o documento Relação do Maranhão 1608 foi


cumprida. De posse dos 25 fotolitos fac-similados do texto, empreendemos dois tipos de
edição: uma conservadora, em que preservamos a língua em todas as suas formas de registro,
a que chamamos de edição diplomático-interpretativa; a outra, com a grafia e acentuação
gráfica atualizadas, mas preservando a pontuação do manuscrito, a esse tipo chamamos de
edição interpretativa modernizada. Esse foi o primeiro propósito que estabelecemos.
Outro objetivo traçado foi o estudo do léxico com a intenção de facilitar uma
compreensão mais ampla do texto, tendo em vista que muitas palavras e expressões já caíram
em desuso e outras só têm significação dentro do próprio texto e no contexto do século XVII.
Há topônimos cearenses muito locais como nomes de rios e de serras; há antropônimos
indígenas e de membros da administração portuguesa; há nomes de culturas agrícolas
regionais; há um importante léxico do campo semântico religioso; há expressões de valor
muito ímpar, dentre outras ocorrências. Levantamos todo o léxico, organizamos e
selecionamos 288 lexias, distribuídas em simples, compostas e complexas, as colocações que
compõem o conjunto das entradas constituintes da macroestrutura do glossário com sua
microestrutura.
O último propósito deste trabalho é a análise dos testemunhos do texto que foram
publicados a partir de 1903 no Brasil e em Portugal. De nossa recensio obtivemos cinco
testemunhos. Tomamos por base a nossa edição interpretativa modernizada realizada
diretamente do manuscrito e comparamos com os demais testemunhos, excluímos apenas o de
1904. Fizemos o aparato crítico e encontramos 38 lugares críticos ou de variação com 43
variantes. Classificamos três tipos de erros: por adição 3 erros ou 6,98%; por omissão 17 erros
com 39,54% e por substituição 23 erros, contabilizando 53,48%. Erros de ordem como é
também comum ocorrer, não encontramos nenhum 0%.
Fizemos algumas conjecturas sobre as motivações dos erros e uma das conclusões
mais evidentes é que houve dificuldade de leitura e compreensão de palavras do manuscrito e
isto é comprovado em algumas passagens dos testemunhos quando preenchem o espaço não
lido com reticências. Também houve salto de um parágrafo em todos os testemunhos. O
testemunho datado de 1911 de Rafael Galanti salteou ainda quatro parágrafos, mas
propositadamente, pois marcou com reticências. Os casos de adição foram reduzidos, das três
ocorrências, duas estão no título do documento, a finalidade seja talvez para esclarecer
melhor a respeito do texto como o nome do autor, do destinatário e a data. O acréscimo está
226

em função de informações históricas para situar melhor os dados do documento uma vez que
todos os editores são historiadores.
O texto foi pela primeira vez publicado no Brasil, em 1903, na Revista do Instituto
Histórico Cearense, pela comemoração do tricentenário de colonização do Ceará, o ilustre
historiador Guilherme Barão de Studart trouxe a lume a Relação do Maranhão até então
desconhecida. O texto publicado é uma cópia cuja matriz encontra-se em um acervo jesuítico
na Holanda, esse testemunho publicado na Revista do Instituto serviu de matriz para as
demais edições. Todos os erros contidos nele são reproduzidos e outros foram se gerando.
Podemos dizer que o testemunho divulgado pelo barão tornou-se uma espécie de vulgata e
dele constitui-se uma tradição.
Até o presente momento, conhecemos no Brasil e em Portugal cinco testemunhos de
que falamos, a saber: o de 1903 e o de 1904 publicados pelo Barão de Studart, no Ceará; o
de 1911 pelo padre Rafael Galanti em São Paulo; o de 1945, pelo padre Serafim Leite em
Lisboa e de 1967, por Thomás Pompeu Sobrinho no Ceará. Todos esses testemunhos, como já
dito e repetido, tomam como modelo a fotocópia vinda da Holanda. Não sabemos quantas
outras cópias poderão existir. Sabemos que existe o manuscrito no Archivum Romanum
Societatis Iesu (ARSI) que provavelmente tenha gerado mais cópias. Dessa forma ainda há
muito o que fazer para se mapear todo o percurso dele.
Mergulhar no texto Relação do Maranhão é um aprendizado importante sobre as
origens da história do Brasil e de sua colonização, sobre a história da Companhia de Jesus,
sobre a história da língua portuguesa e, sobretudo, sobre a história das origens do Ceará. Esse
texto é um relato de viagem, recheado de dados sobre os nativos cearenses e do norte do
Brasil, é um registro primeiro da historiografia cearense, do clima, do relevo, das condições
humanas aqui encontradas e de como se constituiu e foi colonizada a capitania do Ceará nos
primórdios do século XVII.
A Relação do Maranhão foi escrita em 26 de março de 1608 ou 1609? Um ano a
mais ou a menos não faz a diferença de sua importância. Completa brevemente 410 anos. A
Relação permaneceu silenciosa até ganhar as páginas da Revista do Instituto Histórico
Cearense em 1903 pelo esforço do pesquisador Barão de Studart. Mas ainda permanece
silenciosa por muitos anos, pois a Revista do Instituto é pouco lida e divulgada e já faz mais
de cem anos de sua publicação. Os livros didáticos cearenses não divulgam o texto, há poucos
estudos sobre ele, a sociedade cearense pouco sabe ou quase nada sabe desse registro de
nascimento do estado do Ceará. Divulgar esse texto é uma necessidade para suprir as
informações nele contidas aos interessados pela história e o processo de colonização e
227

desenvolvimento do estado do Ceará, principalmente para a conservação da memória das


origens deste estado brasileiro.
228

REFERÊNCIAS

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