Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Rio de Janeiro
Abril de 2008
DAMIÃO DE GÓIS E SEU AMIGO ZAGA-ZABO: A HETEROGENEIDADE
ENUNCIATIVA NA FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM.
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Carlos Antônio Kalil Tannus.
_______________________________________________
Profª. Doutora Alice da Silva Cunha.
________________________________________________
Profª.Doutora Vanda Santos Falseth.
________________________________________________
Prof. Doutor Airto Ceolin Montagner.
________________________________________________
Prof. Doutor Francisco de Assis Florêncio.
________________________________________________
Profª. Doutora Flora Simonetti Coelho – UERJ, Suplente.
________________________________________________
Prof. Doutor Miguel Barbosa do Rosário – UFRJ, Suplente.
Rio de Janeiro
Abril de 2008
Dedico
Esta tese tem como escopo o estudo da polifonia, evidente no opúsculo Fides,
Religio Moresque Aethiopum, de Damião de Góis, não apenas pelas características do
texto, mas também por suas condições de produção, determinadas pelas relações de seu
autor nos meios cultos da Europa do século XVI, quer ao serviço da Coroa portuguesa,
quer empenhado em aperfeiçoar seu saber humanístico por meio do estudo nos maiores
centros culturais da época, o que teve como resultado a produção de uma obra singular,
condicionada por seu profundo patriotismo e pela lealdade à fé católica, embora
impregnada de piedade cristã, tolerância religiosa e ideais de concórdia.
Rio de Janeiro
Abril/2008
ABSTRACT
This thesis has as target the study of the polyphony, evident in the booklet Fides,
Religio Moresque Aethiopum, of Damião de Góis, not only for the text characteristics,
but also for its production conditions, determined by the relations of its author in
cultural environments of the Europe on the XVIth century, either to service of the
Portuguese Crown, either pledged in perfecting his humanistic knowledge through the
study in the biggest cultural centers of that time, what had as result the production of a
singular work, conditioned by his deep patriotism and by the loyalty in the catholic
faith, although impregnated of christian mercy, religious tolerance and concord ideals.
Rio de Janeiro
Abril/2008
RÉSUMÉ
Cette thèse a comme cible l'étude de la poliphonie, évident dans le livret Fides,
Religio Moresque Aethiopum, de Damião de Góis, non seulement par les
caractéristiques du texte, mais également par ses conditions de production, déterminées
par les relations de son auteur dans les cercles cultivés de l'Europe du XVI siècle, soit
mis à la besogne de la Couronne portugaise, soit au besoin de perfectionner son savoir
humaniste au moyen de l’étude aux plus grands centres culturels de l'époque, ce qu'a eu
en conclusion la production d'un travail singulier, conditionné par le sens de patriotisme
profond et par la loyauté à la foi catholique, bien qu'impregné de la piété chrétienne, de
la tolérance religieuse et des idéaux de concorde.
Rio de Janeiro
Abril/2008
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO..........................................................................................................12
2.1-Renascimento e Humanismo.................................................................................20
3.1-A origem.................................................................................................................38
3.3-Historiador e humanista.........................................................................................45
3.5-Cronista ou historiador?.........................................................................................72
4.1-Cultura e civilização..............................................................................................84
7.5-Intertextualidade...................................................................................................257
7.8-A negação............................................................................................................276
8.CONCLUSÃO ..........................................................................................................290
9.BIBLIOGRAFIA......................................................................................................296
1. INTRODUÇÃO.
A escolha, para a análise desta obra, da teoria polifônica, concebida por Mikail
Bakhtin a partir de um tropo da música e, posteriormente desenvolvida por Oswald
Ducrot e ampliada por Júlia Kristeva, Dominique Mangueneau e outros teóricos do
discurso, como os nossos José Luiz Fiorin e Diana Luz Pessoa de Barros¹, vem ao
_____________________
1-Estes autores procuram mostrar que, na verdade, “não há textos polifônicos ou monofônicos, pois, nestes últimos, as vozes se
ocultam sob a aparência de uma única voz.” (BARROS, 2003, p. 6)
13
encontro das próprias características estruturais e ideológicas do texto, pois ela atravessa
em sua totalidade as questões que se nos apresentam e permite analisar sob uma nova
ótica os textos latinos do Renascimento, signos de um movimento caracterizado tanto
pelo debate de questões polêmicas, sobretudo as religiosas, quanto pelo diálogo em
torno de interesses culturais comuns. Neste sentido, o opúsculo de Damião de Góis é
explicitamente polifônico, como também o era o próprio movimento humanístico.
Como este livro de Damião de Góis trata dos fundamentos da cultura etíope – o
que o próprio título da obra antecipa – e das suas tentativas de aproximação com o
ocidente europeu, incluímos um estudo sobre essa nação africana, que corresponde ao
capítulo 4. Para isso investigamos, não só a obra de autores modernos dedicados aos
estudos africanos, como Jean-Marie Lambert e Catherine Coquery-Vidrovitch, mas
também de autores ibéricos do século XVI e XVII, que muito escreveram sobre a
Etiópia, entre os quais o jesuíta espanhol Pero Paes e o padre português Baltazar Teles.
15
principais locutores – mas que foram acrescentados para facilitar a localização dos
enunciados recortados para análise da polifonia, tema central dessa tese, e que vem
desenvolvida no capítulo 7. Com a mesma finalidade procuramos também identificar as
partes constituintes do opúsculo, conforme esquema abaixo:
Carta I: Escrita em latim pelo próprio Damião de Góis e dirigida ao Papa Paulo III.
Parágrafo 12: Damião de Góis explica as origens das Grandes Navegações e fala dos
primeiros contatos de Portugal com a Etiópia.
Carta II: Escrita pela rainha Helena, regente e avó de Davi, futuro Imperador da
Etiópia ao rei dos portugueses D. Manuel I, escrita no ano de 1509, e vertida em latim
por Damião de Góis.
Parágrafo 26: Damião de Góis retoma a narrativa sobre a embaixada portuguesa à terra
do Preste João e dá algumas informações sobre a Fides.
Carta III: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para D. Manuel I,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.
Carta IV: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para D. João III,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.
Carta V: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para o Sumo Pontífice,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.
Carta VI: Escrita pelo Imperador Davi, Preste João da Etiópia, para o Sumo Pontífice,
vertida em latim pelo humanista Paulo Jóvio.
Parágrafo 53: Damião de Góis esclarece as condições de produção do livro até dar a
palavra a Zaga-Zabo, cujo relato o próprio humanista reproduziu em latim.
16
Parágrafo 55: Exposição de Zaga-Zabo, texto nuclear da Fides, Religio Moresque
Aethiopum, em versão latina do historiador português.
17
LE – discurso portador de verdades da religião etíope – (Locutor porta-voz das tradições
da Etiópia)
LP – discurso portador da mensagem do próprio L – (Sempre que L se representa por um
dêitico, afastando-se do discurso original)
LC – discurso portador do saber clássico (Quando o texto dialogar com os textos
antigos)
18
2. CONTEXTO HISTÓRICO
2.1-Renascimento e Humanismo.
Fazer descer o céu sobre a terra, trazer para baixo a Jerusalém celeste, tal foi o
sonho de muitos no Ocidente medieval. Se me demorei na evocação deste mito –
mesmo simplificando-o em demasia – foi porque, apesar de disfarçado e combatido
pela Igreja oficial, ele perturbou os espíritos e os corações e nos revela em suas
_____________________
1-A lenda do Preste João para as Grandes Navegações portuguesas. (N. A.): “O desejo de chegar a esse aliado da
Cristandade foi uma das motivações ideológicas conexas das grandes Descobertas”. (CERQUEIRA, 1997, p.1)
20
profundezas as massas populares da Idade Média, suas angústias econômicas e
fisiológicas ante esses dados permanentes de sua existência: a sujeição aos caprichos da
natureza, às grandes fomes, às epidemias; suas revoltas contra uma ordem social que
esmagava os fracos e contra uma Igreja que era beneficiária e garantia desta ordem; seus
sonhos: sonho religioso, mas que atrai o céu à terra e só entrevê a esperança ao fim de
terrores indizíveis. (LE GOFF, 2005, p. 189)
____________________
1-“A norma lingüística estabelecida por Valla demarcava definitivamente o latim medieval do que se denominará o
latim clássico”. (REBELO, 2002, p.128)
21
línguas clássicas, como fonte de todo o conhecimento necessário e desejado num mundo
em transformação. Mas essa cultura traz no seu bojo a revalorização do ser humano
como produtor do seu próprio saber, e apto a fazer escolhas, indo ao encontro do destino
que lhe convém, o que, isoladamente, define o Humanismo.
____________________
1-“Nos dois primeiros séculos da era cristã, florescera em Alexandria um dualismo gnóstico, cuja influência resultará
no maniqueísmo de Mestre Mani, da Pérsia, no terceiro século. Os bogomilos dos Bálcãs foram outro reduto, pode-
se dizer, de dissidentes hereges dentro dos limites do Ocidente cristianizado”. (BAIGENT & LEIGH, 2001, p. 23)
22
cada indivíduo, o sacerdote tornava-se supérfluo [....] e o dogma teológico
irrelevante, mera invenção intelectual que brotava da arrogante mente humana...”¹.
No início do século XIII, a adesão de um número cada vez maior de católicos a esse
cristianismo, cujos pregadores “não intimidavam, não extorquiam, nem traficavam com
a culpa”² resulta em significativa queda nas rendas da Igreja, e, diante da ameaça de
expansão dos cátaros fora dos limites da França, o Papa solicita, em carta, ao rei da
França e a outros dignitários da nobreza o auxílio da força militar para eliminar os
hereges, com a promessa de recompensá-los com as terras confiscadas. A preservação
dos tesouros já conquistados pela Igreja e seu crescimento potencial justificava lançar
cristãos contra outros, também cristãos. Tal foi a Cruzada Albigense, com instruções de
que não se levasse em conta idade, sexo ou status. Centenas de cátaros foram
queimados, mais de quinze mil pereceram no massacre; os que sobreviveram ou
conseguiram fugir, para a Catalunha ou a Lombardia, continuaram a praticar seu credo
na clandestinidade.
Mas a ameaça que representara num dado momento a heresia cátara causara
indignada impressão a um monge, ex-estudante da Universidade de Palência e subprior
dos monges da catedral de Osma, ao norte da Espanha, quando, em 1203 fazia sua
primeira viagem à França: era Dominic de Guzmán. Três anos depois, numa segunda
visita, e encontrando-se com os representantes locais do Papa, juntamente com seu
bispo elaborarou um projeto estratégico. Incapaz de concorrer com os cátaros, que
inegavelmente superavam os padres em virtudes cristãs, Dominic exortou seus frades,
que possuíam uma rica cultura, a viajarem descalços, fazendo pregações, pois estavam
mais habilitados que os monges locais para o debate erudito, podendo assim competir
com os pregadores itinerantes cátaros, que além da probidade, tinham igual cultura e
eloqüência.
O apoio dado ao flagelo dos cátaros, Simon de Montfort, valeu a Dominic – que
também julgou e condenou às chamas inúmeros suspeitos de catarismo – generosas
doações de ricos cidadãos católicos de Toulouse (três casas, numa das quais fundou a
Ordem dos Dominicanos, oficializada pelo Papa Honório III, em 1216). Obrigados
a se retirar de Toulouse, onde foram repudiados pela população, em virtude de suas
_____________________
1-Conf. BAIGENT & LEIGH, 2001, p.24.
2-Idem, p. 25.
23
práticas arbitrárias, espionagem, denúncias e perseguições, os dominicanos
estabeleceram-se em Paris, Bolonha e regiões da Espanha. Em 1233, o novo Papa,
Gregório IX, emitiu uma Bula em que os incumbia de dar incessante combate à heresia,
usando de todos os métodos disponíveis, solicitando o braço secular se necessário. Em
seguida anunciou a instalação de um tribunal permanente, constituído de irmãos da
Ordem e nomeou em Toulouse os dois primeiros Inquisidores oficiais, em 1234. Neste
mesmo ano, Dominic, morto em 1221, foi canonizado, tornando-se São Domingos, e
sua ordem já era detentora de quase cem casas.
24
isso instituíram sua própria Inquisição, que, portanto, não era, na origem, submetida ao
Papado. Tratava-se de um instrumento da ortodoxia religiosa, mas a serviço
principalmente da política real.¹
Fosse por razões políticas ou religiosas (um prolongamento das cruzadas), o fato
é que era ainda de inspiração medieval o projeto dos portugueses de se lançar ao mar.
Em 1406 já navegavam pelas costas da África e, em 1445, alcançaram Cabo Verde.
_______________________
1-DIAS, 1969, p.1.
2-DIAS, 1969, p. 33
3-MOUSNIER, 1995, v. IX, p 106.
26
reconquista de Granada, último reduto muçulmano na Espanha¹, os reis católicos
decidiram financiar a famosa viagem de Cristóvão Colombo, que indo à procura de uma
nova rota para as Ásia, na direção do Ocidente, chegaria ao continente americano em
1492. Assim como para Portugal, em relação às possessões pouco a pouco conquistadas
na África e à ocupação do Brasil a partir de 1500, o discurso da propagação da
verdadeira fé mantinha-se inalterado, e com isso podiam contar com o apoio da Igreja
para suas incursões cada vez mais lucrativas.
27
educação, em moldes humanísticos, a um dos filhos de D. João II, D. Jorge. (MOSER,
2006, p. 149)
Mas a produção cultural escrita também não esteve ausente do mundo português.
A esse respeito veja-se a menção do Professor Ramalho à oratio de Dom Garcia de
Meneses, bispo de Évora, feita perante o papa Sisto IV e o Sacro Colégio, em Roma, a
31 de agosto de 1481. Assim conclui sua defesa o eminente Professor:
28
Pela bula de Alexandre VI (Inter coetera, de 4 de maio de 1493) e de Júlio II
(Ex quae, de 24 de janeiro de 1506), os portugueses tinham sob o seu patrocínio todo o
Oceano Índico e os mares da China, podendo criar bispados, nomear bispos, dispondo
do monopólio da evangelização. Nenhum eclesiástico podia dirigir-se para as regiões
da Ásia das monções sem autorização do rei de Portugal e sem passar por Lisboa ou
Goa. (MOUSNIER, 1995, p. 250, v. X)
Suas pegadas foram seguidas por outros reinos, mas que não estavam igualmente
dispostos a se submeter à usurpação do papado.
_____________________
1-“Apenas os europeus conseguiram resolver os problemas da navegação de alto mar. [....] o leme axial com
charneira de cadaste, inventado no século XIII, possuía uma forte ação sobre a água, graças ao seu longo safrão.”
(MOUSNIER, 1995, p.25-26, v. X)
2-“A aliança do Humanismo e do Cristianismo tinha-se tornado uma espécie de idéia fixa do pensamento europeu
quando as inquietações religiosas de aquém Alpes se fundiram com as inquietações culturais da Itália. O fenômeno
processou-se, em fase intensiva, na França, nos Países-Baixos e na Baixa Alemanha, na segunda, terceira e quarta
décadas do século XVI. A sua idéia diretriz tem os pés fincados, se assim nos podemos exprimir, em dois campos: a
defesa das belas-letras, contra a barbárie literária e filosófica, e a acentuação dos fatores éticos, para lá dos esquemas
teológicos, encerrados na mensagem cristã. ” (DIAS, 1969, p. 21)
29
verdades contestadas, a Igreja aumenta a repressão e passa a identificar novas formas de
heresia, ou seja, tudo o que contrariasse os interesses da Igreja era então passível de
condenação pelos tribunais da Inquisição.
30
A valorização do homem preceituada pelo ideal humanístico com o tempo iria
demonstrar que não se referia a qualquer homem, mas ao homem ocidental e, sobretudo,
europeu. Mais uma vez os muçulmanos, que se deslocavam nas rotas de comércio
deixaram de interessar como parceiros comerciais. Eliminando-os a Península poderia
controlar, sozinha, o comércio por mar e também pelo interior do continente africano,
onde era praticado pelas caravanas organizadas e conduzidas por muçulmanos,
caravanas de sal e metais preciosos. Proveniente da África uma outra mercadoria veio a
despertar a cobiça cada vez maior dos mercadores portugueses, pois também alcançara
elevado preço na Europa, com a decadência do regime feudal: o escravo. A experiência
mal sucedida de escravização dos indígenas da América tornou mais atraente o negócio
do escravo africano. O comércio “perfeitamente organizado”, conforme a citação
acima, também se referia ao mercado de humanos, que os portugueses logo trataram de
aperfeiçoar e expandir.
O objetivo da Europa durante dois séculos foi, antes de tudo, a Ásia. Atingir ‘as
Índias’, Índias propriamente ditas, China, Japão, drenar suas riquezas, converter seus
habitantes ao cristianismo e à civilização européia [....], e com sua ajuda assaltar o Islã
pela retaguarda, esmagá-lo, a fim de haver na terra apenas uma fé e uma civilização, tal
foi sempre o fim último, o ideal por vezes longínquo e confuso, mas sempre presente,
sempre atraente. (MOUSNIER, 1995, p.147, v. IX)
Com isso tudo, eram, aliás, homens do Renascimento. Confessavam, não sem
ingenuidade, seu desejo de glória, sua sede de ultrapassar os grandes capitães da
31
Antigüidade, Alexandre, César, Pompeu, Aníbal. Um generoso orgulho sustentava-os
frente aos sofrimentos. (MOUSNIER, 1995, p.91. v. IX)
_____________________
1-“Não se sabe ao certo se o rei teria seguido uma sugestão de Ludouicus Viues (Luís Vives) que, ao dedicar-lhe o
trabalho De discipulis, em 1531, sugeria que transferisse a Universidade de Lisboa para um local mais propício ao
estudo que o movimentado porto da metrópole portuguesa.” (HIRSCH, 2002, p. 197)
33
Além do seu apreço pela cultura – ou por razões econômicas, pois se tornara
oneroso para a Coroa a manutenção dos seus “bolseiros” –, uma outra hipótese é
apresentada para explicar sua decisão de educar os jovens portugueses dentro dos
limites do reino: as idéias reformistas trazidas do exterior e que poderiam comprometer
as relações de Portugal com os dois maiores poderes católicos da época, a Santa Sé e
Carlos V, seu cunhado. Era o rei quem pessoalmente nomeava o reitor da Universidade,
o que, portanto, permitia-lhe manter o controle sobre o ensino que era ministrado.
Como parte de sua política de além-mar e por meio de uma vigorosa atividade
naval, conquistou Chalé, Diu, Bombaim, Baçaim e Macau, mas por razões econômicas
perdeu Safim, Azamor, Arzila, Arguz e Alcácer-Ceguer. À concorrência espanhola,
seguiu-se a francesa no Índico e no Pacífico, por isso resolveu investir na colonização
do Brasil, que se iniciou em 1548 com a distribuição das Capitanias Hereditárias e a
nomeação de um Governador-geral.
Mas a política de D. João III como um todo foi um grande paradoxo. No início
de seu reinado ratificou as leis criadas por seu pai, D. Manuel (leis manuelinas), contra a
discriminação dos judeus. O rei humanista, amante das belas letras e do progresso
científico, acabou por ceder à pressão espanhola – principalmente da parte de sua
mulher D. Catarina, que era irmã de Carlos V² – e instaurou a Inquisição em 1536,
finalmente autorizada pela Bula do papa Paulo III. Curiosamente isto aconteceu um ano
antes da criação do Colégio das Artes para o qual haveria de requisitar tantos mestres
humanistas portugueses e estrangeiros. Inicia-se então uma violenta perseguição aos
_____________________
1-Em 1525, D. Martinho de Portugal substituiu D. Miguel da Silva como embaixador de Portugal na Cúria. (conf.
DIAS, 1969, p. 90-108).
2-O acordo de casamento de D. Manuel com D. Maria já incluía uma cláusula de conversão obrigatória dos judeus ou
sua expulsão. A pressão cada vez maior da dos reis espanhóis nesse sentido levou D. Manuel a enviar uma missão
secreta a Roma, em 1515, para solicitar ao Papa autorização para o estabelecimento da Inquisição, ao estilo da
existente na Espanha. Na verdade, os judeus expulsos, ou que de lá conseguiram fugir, foram acolhidos em Portugal
por D. João II, mediante o pagamento de uma indenização, e a presença de judeus no reino, representava, sem dúvida,
um aporte de capital. Isso significava o fortalecimento também político do país vizinho, o que para os espanhóis não
era conveniente. (conf. BAIGENT & LEIGH, 2001, p. 142-3)
34
judeus, que se refugiaram, principalmente, nos Países Baixos. Em conseqüência,
agrava-se a crise econômica, e Portugal, que fora um dos países mais ricos e poderosos
da Europa, precisa recorrer a empréstimos externos. Pouco depois os humanistas que
lecionavam no recém criado Colégio começam a ser afastados e substituídos por
mestres ligados ao clero, e alguns são denunciados à Inquisição e presos, como
aconteceu a Diogo de Teive e George Buchanan. O desenvolvimento de algumas
ciências foi, assim, interrompido, pois o Colégio das Artes, em 1555, e o ensino em
geral foram entregues aos jesuítas, que expurgaram e perseguiram os antigos mestres e
passaram a ministrar ensinamentos totalmente desvinculados da realidade que se
avizinhava.
Não apenas o clero, mas também a nobreza e o próprio regime pressentiram que
a libertação do homem pelas idéias e pela apreensão do conhecimento acabaria por
reconfigurar o arranjo político-social – o que séculos mais tarde se verá acontecer –,
pois este é um sistema no qual o fortalecimento de uma parte fatalmente leva ao
enfraquecimento da outra ou a torna supérflua até à extinção. Ao promover o resgate
de uma forma de expressão que estimulava a igualdade do pensamento e a
internacionalização do conhecimento, o Renascimento corrigia os antagonismos e
igualava as forças. Mas toda autoridade necessita exercer um poder palpável e
mensurável, que a igualdade anula, pois o ser humano passa a se compreender a partir
de si mesmo e a repelir o jugo.
36
3. DAMIANVS A GOES, EQVES LVSITANVS.
Mais que o simples autor do livro ora estudado, sua instigante vivência, e suas
múltiplas facetas fazem de Damião de Góis também um personagem, a cuja trajetória
sempre vale a pena dar o devido destaque.
3.1-A origem
38
Limi – o futuro humanista português Damião de Góis. Pouco se sabe da sua primeira
infância, passada em sua vila natal, mas aos nove anos de idade é iniciado, como pagem
de D. Manuel, na vida da Corte, onde já vivia seu meio-irmão Frutuoso de Góis nas
funções de guarda-roupa. Há duas versões para explicar a presença dos jovens Góis
junto ao rei, que tomou a si também a formação intelectual, principalmente do pequeno
Damião. Valendo-se da prerrogativa de ficcionista, Fernando de Campos em A Sala das
Perguntas, relata um acontecimento semelhante à história de Anfitrião e Alcmena,
seduzida por Zeus (PLAUTO, O Anfitrião), alegando, para tanto, uma curiosa semelhança
física entre D. Manuel – que se teria tomado de amores por Isabel de Limi – e Rui Dias
de Góis, o que permitiu ao rei partilhar do seu leito enquanto o fidalgo encontrava-se
ausente, no desempenho de alguma missão. Também compartilha dessa suposição o
musicólogo e historiador do grande humanista, Mário de Sampaio Ribeiro¹, da
Academia Portuguesa da História, como explicação plausível para a proteção especial
que tanto O Venturoso quanto seu sucessor D. João III, dedicaram a Damião de Góis.
Para sustentar tal hipótese, o estudioso menciona a injustificada “permanência do
monarca na quinta da Telhada, desde o mês de setembro até outubro de 1501, quiçá
mesmo em data anterior, e o estranho nascimento do futuro humanista.”²
O fato histórico e atestado por documentos é que a vila de Alenquer fora doada
por D. João II à rainha D. Leonor³, em Carta de 22 de agosto de 1480, e o senhorio foi
mais tarde confirmado à irmã por D. Manuel I. Como era uma região de “ares
aprazíveis” servia de assento aos reis portugueses, que só viriam a substituí-la por
Almeirim, após o reinado de D. Sebastião. Daí teria nascido o grande apreço de D.
Manuel pelos habitantes da vila e a concessão de cargos de nomeação régia, bem como
os privilégios concedidos a muitos ilustres cidadãos alenquerenses, como João Martins
e Diogo Esteves.4
_____________________
1-O mesmo que em 1941, quando se fez a trasladação dos restos mortais do humanista para a Igreja de São Pedro,
observou, ao ver-lhe no crânio, a marca semelhante a uma fratura, que levantou a suspeita de um provável
assassinato. (conf. TAVARES, 1999, p. 41)
2-SERRÃO, 2002, p. 112.
3-“Além de ter fundado as Misericórdias, D. Leonor é também citada como protetora das artes e patrocinadora da
publicação de inúmeros livros da época. Com ela Gil Vicente divide as honras pela fundação do teatro em Portugal.”
(Idem).
4-Idem, p. 112-117.
39
Do lado paterno, Damião de Góis era neto de Gomes Dias de Góis, que recebeu
do infante D. Henrique, a quem acompanhara a Ceuta, em 1415, a exploração de
algumas saboarias, pois eram monopólio do infante. O filho de Gomes Dias, Rui Dias
de Góis, também cavaleiro da Casa Real e morador da cidade, tornou-se mais tarde
almoxarife da rainha viúva de D. João II, senhoria da vila de Alenquer, que de lá recebia
o principal das suas rendas. Tais fatos atestam, portanto, a origem nobre do humanista.
Apesar de oriundo de uma família abastada, nada se podia comparar ao fausto da Corte
que revelariam ao jovem pajem o vasto mundo que se estendia para além do porto de
Lisboa.
______________________________
1-Mas nas palavras do próprio embaixador “fui ter ao rei da Polônia, à cidade de Pósnia a tratar com mercadores e
outras pessoas com quem tinha que negociar.” (MARQUES, 2002, p. 18)
2-“...uma das figuras políticas cimeiras do tempo de D. João III e patrono dos círculos humanistas da Corte.” (BARRRETO, 2001,
p. 3)
3-“...convidado ao castelo da princesa, pôde ver por si próprio que a proposta noiva era ‘discreta e bem parecida’.”
(HIRSCH, 2002, p. 30)
4-“Portugal não desejava ver estremecidas suas relações com a Inglaterra, sobretudo pela importância do Canal da
Mancha para o tráfego marítimo para Antuérpia e outros portos europeus. Além do mais haviam-se espalhado boatos
de que Portugal pretendia atacar a ilha por mar.” (HIRSCH, 2002, p. 28)
5-“More estivera em Antuérpia antes da chegada de Góis, que soube dele por referências dos antigos feitores.” (Idem)
41
Mesmo assim, a participação do amigo na condenação e execução de Fisher e
Moore, de quem se tornara admirador e também amigo, não deixou de lhe causar
desgosto.
Na Dinamarca, em 1531, deveria fazer negociações com o rei Frederico que era
protestante e, a ele também, transmitir a neutralidade de D. João III, quanto ao conflito
que se desencadeara entre aquele e Carlos V¹. Observe-se o esforço do rei português
para evitar que as querelas religiosas prejudicassem suas boas relações com outros
países e Damião de Góis, pelo seu trânsito fácil entre personalidades de todas as
tendências, sem dúvida teve uma grande contribuição a dar ao seu monarca. Os
progressos econômicos na Prússia também atraíram a atenção do rei português; por essa
razão a missão à Polônia incluiu uma passagem por aquele país, “e guardou uma viva
recordação do caloroso acolhimento que lhe foi dado pelos russos.”²
Por sua própria conta realizou em seguida uma expedição ao rio Don para
conhecer as tribos tártaras, que seus amigos, Grapheus e André de Resende,
consideraram audaciosa, e não só lhe criticaram a intrepidez, por causa da reputação que
tinha aquele povo de ser brutal e incivilizado, mas também lhe dedicaram poemas
celebrando seu retorno a salvo de aventura tão arriscada.
_____________________
1-“D. João III tinha o problema de proteger seus interesses econômicos sem se deixar envolver em nenhuma liga e,
contudo, sentia-se obrigado a dar apoio moral a Carlos V por causa dos laços dinásticos que uniam Portugal e
Espanha (caso pudesse fazê-lo sem sacrificar seus próprios interesses).” (HIRSCH, 2002, p. 24)
2-HIRSCH, 2002, p. 32.
42
Em 1532 regressou a Antuérpia e iniciou seus estudos na Universidade de
Lovaina, ainda tentando conciliar a vida acadêmica com a atividade diplomática.
Manteve-se sempre um defensor ferrenho dos interesses de Portugal junto aos reinos
europeus, levando a bom termo a maioria de suas intervenções, graças à sua habilidade
nas relações humanas e ao seu notório prestígio, decorrente da circunstância de ser o
representante do rei de um pequeno país que, em virtude de suas conquistas e
descobertas, se tornara famoso e respeitado. A atividade desempenhada como
secretário e escrivão da Feitoria portuguesa em Antuérpia dotou-o de grande
conhecimento na área econômica e mercantil¹ que transparece em sua obra, tornando-a,
portanto, fonte de consulta indispensável e obrigatória para os analistas econômicos que
buscam levantar dados da economia portuguesa no século XVI. Em alguns de seus
trabalhos defendia o monopólio das especiarias, mas também a liberdade de comércio
dos estrangeiros em Portugal², além de algumas vezes alertar o rei sobre os
inconvenientes de sua política monetária e da cunhagem de moedas.³
_____________________
1-MARQUES, 2002, p. 14.
2-Outro humanista que também teria feito apreciações de caráter econômico foi Jerônimo Osório, professor da
Universidade de Coimbra e bispo de Silves; entretanto sua posição difere da de Damião de Góis, pois foi “um
paladino da agricultura e de suas vantagens”; em suas obras critica o comércio e a navegação “pela sua importância
subordinada e porque, embora sendo úteis, todavia [....] afrouxam os laços para com a pátria”. (conf. CASTRO, 1978,
p. 14)
3-“Com base nestas concepções (ou coincidindo com elas), o governo de D. Sebastião teria tentado evitar a saída de
ouro e de prata para a Inglaterra. A partir destas posições de Damião de Góis já se tem sustentado que foi ele,
possivelmente, o primeiro mercantilista português.” (CASTRO, 1978, p. 24)
43
tesoureiro da Casa da Índia, mas ele recusa e pede autorização ao rei para seguir em
peregrinação a Santiago de Compostela, a fim de pagar uma promessa e depois
prosseguir em seus estudos. Durante quatro anos permanece em Pádua, onde conclui
sua formação intelectual. Foi durante esse curto espaço de tempo em Portugal, em
1533, que conheceu e se tornou amigo do bispo etíope Zaga-Zabo do qual obteve o
relato que figura na obra estudada nesta tese. Esse relacionamento, ainda que breve,
pode ser encarado como um gesto característico do talento diplomático de Damião de
Góis, pois dedicou ao religioso um tratamento amável, com que procurou não apenas
satisfazer a sua curiosidade de investigador de assuntos religiosos e da cultura de povos
distantes, mas também dissipar a má impressão causada pelo tratamento hostil que
na ocasião o bispo vinha recebendo dos altos representantes do clero e da nobreza¹.
A tolerância de Damião de Góis era ditada pelo sonho que acalentava no seu
íntimo e várias vezes manifestou às autoridades eclesiásticas, incluindo o próprio Papa.
Ele alimentava a esperança da integração do cristianismo etíope no seio da Igreja
católica, como compensação pelas fraturas internas que a haviam enfraquecido com o
aparecimento do protestantismo. (LAVAJO, 2002, p. 35)
_____________________
1-“No encontro que tivera com os teólogos da Sorbonne Pedro Margalho e Diogo Ortiz Villegas, o embaixador etíope
evitara a discussão de pontos divergentes do cristianismo etíope para não provocar susceptibilidades. Apesar disso
não conseguiu evitar as críticas e hostilidades que contra ele se levantaram em Portugal...” (LAVAJO, 2002, p. 32)
2-Op. cit. p. 34.
44
3.3-Historiador e humanista.
_____________________
1-Pictura Illustris Damiani de Goes e Clarissimo Damiano Goi Lusitano, nomine Regio ex Scythis redeunti.
Grapheus regressava à cidade após um ano em cárcere da Inquisição em Bruxelas, o que lhe custou o cargo de
secretário de Antuérpia. (conf. HIRSCH, 2002, p. 36)
2-Resende foi estudante de Artes em Alcalá e de Teologia em Salamanca. Foi poeta e frade dominicano, entretanto de
pendor erasmista, tanto que em 1531 publicou o Erasmi Encomium. De volta a Évora em 1533, foi incumbido da
educação literária dos infantes D. Afonso e D. Duarte, que morreram em 1540. Então os inimigos de suas idéias
conseguiram afastá-lo do Paço. Teve o cuidado de silenciar sobre suas inclinações e assim evitou para si mesmo
maiores dissabores, o que nunca fez Damião de Góis que também ele celebrou em versos: Carmina ad Damianum a
Goes. (conf. HIRSCH, 2002, p. 84)
3-Professor da Universidade de Lisboa e depois de Coimbra, matemático, cosmógrafo régio, tradutor de Vitrúvio,
Plínio e Ptolomeu. Publicou de sua lavra: Tratado da Sphera (1537) e De Crepusculis (1542), as mais citadas. (conf.
LEITÃO, 2002, p. 40 e 46)
4-Jesuíta, poeta e historiador. Apesar da sua independência de espírito, foi um dos incentivadores do estabelecimento
da Inquisição em Portugal, talvez para apagar a impressão de falta de ortodoxia, que a defesa da fé “cultivada”
presente em suas obras, fazia suspeitar. A maior parte de sua produção humanística foi desenvolvida em plena
Contra-Reforma. Roma e a Inquisição de Lisboa expurgaram mais tarde alguns dos seus escritos, em particular o De
Iustitia. (conf. HIRSCH, 2002, p. 222)
45
“Mesmo sem dominar o alemão conhecia muito bem o latim.” (RODRIGES,
2002, p. 62)
“...pois ele, como salienta Bataillon, nunca possuiu com segurança o latim...”
(CHAVES, 1935, p. 8)
“...que ele falava o flamengo, língua que devia ter constituído, enquanto não
praticava aceitavelmente o latim...” (BATAILLON, 1935, p. 23)
“Como Góis tinha a noção de que sua habilidade lingüística estava bem pouco à
altura do que ambicionava...” (HIRSCH, 2002, p. 37)
“Foi certamente ele (Grapheus) quem lhe fez sentir a necessidade de aprimorar
o domínio da língua latina que adquirira na corte portuguesa...” (CASTRO, 1978, p. 126)
“De fato, ninguém deve exigir de Góis a fidelidade exclusiva a um modelo, que
ele não privilegiou, nem elegâncias retóricas que ele não pretendeu construir; muito
menos haverá que reclamar requintes de expressão em escrita quotidiana, feita no
intervalo dos negócios, sem retoques pela urgência do tempo, mas também sem deslizes
de maior.” (NASCIMENTO, 2002, p. 159)
46
“...Góis nunca chegou a ser um bom estilista em latim.” (HIRSCH, 2002, p. 42)
“Esse homem que não conhecia muito bem o latim, foi sobretudo um latinista, o
que, de alguma forma, constitui um paradoxo.” (TAVARES, 1999, p. 53)
Um latinista, sem dúvida nenhuma, pois de outra maneira não teria conseguido
produzir – em latim – uma obra tão vasta, abordando uma tal variedade de temas, e que
teve o reconhecimento de seus contemporâneos, principalmente nos círculos
humanísticos europeus e com os quais manteve intensa correspondência. Sempre em
latim. A crítica despropositadamente severa como se pôde observar, deve-se muitas
vezes à interpretação equivocada de testemunhos mais criteriosos como o de Marcel
Bataillon.
Com efeito, foi Cornelius Grapheus, membro do Conselho Privado da cidade, seu
primeiro mestre de latinidade, pois Góis, impressionado com a agitação cultural que
sacudia a Europa e solicitado com insistência para que disponibilizasse informações
sobre as navegações portuguesas – acabando por se tornar um porta-voz dos feitos
portugueses nos meios cultos que então freqüentava – sentiu a urgente necessidade de
aprimorar o conhecimento do latim, que sendo a língua comum a todos os intelectuais,
47
qualquer que fosse a língua materna, permitia que se lessem as obras produzidas, que
assim mais rapidamente se tornavam conhecidas.
Então conheceu Johann Magnus, arcebispo exilado de Upsala, que lhe foi
apresentado por Joannes Dantiscus, embaixador polonês junto a Carlos V. Magnus que
exercera a diplomacia a serviço do rei da Suécia, de lá fugiu quando Gustavo Vasa
converteu-se ao protestantismo. Suas opiniões sobre o catolicismo e a admiração por
Erasmo o tornaram merecedor da confiança de Damião, que submeteu à sua apreciação
o relato que fizera da questão da Etiópia, pois desde a visita de Mateus, legado etíope, a
_____________________
1-A Albert Dürer, pintor e escultor, é atribuído um controverso retrato de Damião de Góis. Era amigo de Grapheus e
suspeito como religioso. Também retratou Erasmo. (conf. BATAILLON, 1935, p. 23)
2-Depois da partida de André de Resende, Góis passou a ocupar o seu lugar na casa de Rescius, que além de
professor de grego no Colégio de Busleiden, era também editor. (conf. HIRSCH, 2002, p. 85)
48
Portugal vinha amadurecendo em seu íntimo o desejo de defender aquele cristianismo
perante as autoridades eclesiásticas. Assim ao regressar da segunda missão à Polônia,
com mais afinco entregou-se aos estudos, até que pôde verter para o latim as cartas do
Preste João para D. Manuel e para o Papa, trazidas por Mateus.
_____________________
1-João More, filho de Thomas More traduziu o opúsculo para o inglês. “A introdução de John fazia eco da tolerância
religiosa do pai e de Góis, que advogavam uma fé católica não dogmática.” (HIRSCH, 2002, p. 29)
2-“No século XVI, a missão comercial portuguesa em Antuérpia enviou à Suécia Damião de Góis, com o objetivo de
sondar as oportunidades de negócio, mas não há qualquer confirmação de que se tenha encontrado com o rei Gustavo
Vasa, primeiro monarca do reino independente., pois até 1523, a Suécia encontrava-se ainda ligada à Noruega e à
Dinamarca.” ( http://www.embassyportugal.se/relations_porto.html, 2006)
3-Não estaria nessa obra sua única contribuição à pesquisa geográfica. Os relatos, feitos por carta, de suas viagens
pelo norte europeu, a sua Descrição da Cidade de Lisboa e os opúsculos sobre a Etiópia muito auxiliaram na
reconfiguração do mundo pós-Quinhentos. (conf. NASCIMENTO, 2002, p. 130)
49
Na passagem pela Prússia, em 1531, encontrou-se, em Marienwerder, com
Paulus Speratus, um dos primeiros adeptos de Lutero, que era na ocasião bispo na
Pomerânia. O bispo, que estivera algum tempo na cadeia em virtude de suas idéias
protestantes, guardou uma profunda impressão desse contato, que foi, provavelmente,
incentivado pelos amigos de Wittenberg, e antes da partida de Góis enviou-lhe um
bilhete em que expressava o grande prazer que tivera por “encontrar nesse mundo
bárbaro um homem que merecia ser chamado de humano.”¹ Nessa mesma viagem
travou conhecimento com Tiedman Giese, de Dantzig, que além de cônego de
Frauenburg era primo e amigo de Nicolau Copérnico. Com ele Damião de Góis pode
debater francamente sobre a sua inquietação espiritual, visto que Giese era também um
observador atento dos fatos religiosos do seu tempo e tinha uma atitude conciliadora
perante a reforma protestante, demostrando vivo interesse pelo que o então diplomata
vira em Wittenberg. Com freqüência consultava tanto Erasmo quanto Melanchton sobre
assuntos religiosos; apesar disso, e porque tinha uma postura eclesiástica irrepreensível,
sua fé nunca foi posta em dúvida, mesmo nos meios mais radicais do
catolicismo, tanto que tempos depois escreveria a Góis falando de sua nomeação para
bispo de Culm e mais tarde sucederia Dantiscus no bispado de Ermland. Mas não foi
somente a compreensão do bispo para com as idéias do humanista que aproximou os
dois homens. Giese, que fora colaborador do primo astrônomo e defensor de suas
teorias, e Góis, familiarizado que era com os problemas de astronomia e navegação,
debateram, na ocasião, e depois por cartas², sobre as questões que a ambos interessava,
incluindo o gosto pela Geografia, que igualmente partilhavam.
_____________________
1-HIRSCH, 2002, p. 50.
2-“...durante anos Giese tentou manter-se a par das atividades de Góis e teve especial satisfação, como lhe disse numa
carta, ao tomar conhecimento das relações do amigo com Erasmo.” (HIRSCH, 2002, p. 52)
3-Principal amigo e colaborador de Lutero, apesar de alguns pontos de divergência com as teses deste. Apresentou
em Augsburgo a célebre Confissão de Augsburgo, onde pretendia provar que os protestantes, embora com inovações
mantinham-se dentro da Igreja. Foi professor de grego na Universidade de Wittenberg, humanista, amigo e
admirador de Erasmo, auxiliou Lutero na tradução da Bíblia para o alemão. Foi acima de tudo um educador. Veja-se
sua lição sobre a “Melhoria dos estudos dos jovens”, na qual inculcava o regresso às fontes e a importância das
línguas clássicas, não deixando de combater o latim degenerado. Também enalteceu o valor da história, das ciências
naturais e das matemáticas. Defendia como uma urgente tarefa do movimento reformador a necessidade de dar às
escolas, igrejas e universidades uma organização estável e um claro espaço interno. (conf. RODRIGUES, 2002, p.
67-73)
50
pensamento liberal admirava o reformador de Nurenberg, incluindo Erasmo e os
cardeais Sadoleto¹ e Bembo, que desejaram encontrar juntos um meio termo que
evitasse a separação irreversível entre as duas correntes da Igreja.
51
A obra que melhor reflete sua atitude conciliadora, e que despertou um grande
interesse nos meios cultos da Europa foi sua defesa, junto ao Papa Paulo III, da inclusão
do cristianismo etíope no seio da Igreja romana. O padre Francisco Álvares que
participou da primeira embaixada de Portugal à Etiópia, relatou suas experiências
naquele reino na Verdadeira Informação das Terras do Prestes João, que foi logo
traduzida para o alemão. Coube a Damião de Góis verter para o latim o relato do bispo
Zaga-Zabo – que procurou corrigir alguns equívocos do primeiro embaixador do Négus,
Mateus. Na carta introdutória, Damião procura chamar a atenção do Sumo Pontífice
para a sinceridade da fé daquele povo africano e para o seu desejo de submeter-se à
doutrina romana. Trata-se, com efeito, da Fides, Religio Moresque Aethiopum,
publicada em 1540 e que causou enorme furor entre o clero e a aristocracia portuguesa.
A obra foi condenada pelo censor, inicialmente só a parte referente ao relato do bispo,
depois passou a figurar no Index. Nos meios mais progressistas e fora de Portugal o
livro foi porém valorizado pela sua contribuição para o conhecimento da história, da
geografia e dos aspectos sociais dessa parte remota da África. Voltaremos, no capítulo
7, a esse opúsculo, que a par com a amizade por Erasmo de Roterdã, tanto dissabores
iria trazer ao seu autor.
_____________________
1-Bonifacius Amerbach era jurista, professor de Direito e amigo de Erasmo. (N. A.)
2-Marcial de Gouveia, membro de uma famosa família de estudiosos de várias religiões, foi mais tarde perseguido
pela Inquisição em Portugal. (conf. HIRSCH, 2002, p. 89)
52
O segundo encontro de Desidério Erasmo e Damião de Góis, que não
desanimara de pertencer ao círculo de amigos do mestre, que tanto admirava, deu-se no
final de 1533. De regresso à Flandres após a primeira passagem por Friburgo, mandou
a Erasmo uma bela taça dourada, para que se lembrasse dele, preparando assim um
ambiente amigável para uma futura visita.
Para Damião de Góis isso constituía o auge da sua carreira, bem como
uma felicíssima experiência pessoal. Conhecer Erasmo na intimidade e beneficiar
diretamente dos seus vastos conhecimentos criava em Góis um sentimento de veneração
e um afeto crescente. Vinte anos após a morte do seu grande amigo, Damião de Góis
ainda sentia a perda desse mestre venerando quase tão agudamente como se ele tivesse
acabado de falecer. (HIRSCH, 2002, p. 93)
53
Desde a ida para Pádua, Damião de Góis não voltaria a se avistar com o filósofo
holandês, mas continuaram a se corresponder até a morte deste. Numa carta escrita a
Amerbach, Góis dizia que lhe “tinha causado uma enorme mágoa despedir-se de
Erasmo.”
Pouco depois da discussão com o jesuíta, Damião foi procurado pelo Cardeal
Sadoleto que lhe pediu ajuda “num ousado passo religioso para se aproximar de
Melanchton.”³ O clima religioso da Itália não era mais ameno do que em outras partes
_________________________
1-HIRSCH, 2002, p. 119.
2-Trata-se da única contribuição de Góis para a difusão da literatura da Antigüidade [....] e representava a aplicação
direta dos ensinamentos de Erasmo sobre o valor do vernáculo. (conf. HIRSCH, 2002, p. 159)
3-Ao aceitar de bom grado o papel que devia desempenhar, Damião de Góis afirmou aquilo que o cardeal “já sabia,
isto é, que tinha contraído uma amizade que estava longe de ser medíocre com esses que se chamam protestantes.”
(HIRSCH, 2002, p. 123)
55
da Europa, que ele visitara; além disso, nas mais altas esferas da hierarquia católica,
examinavam-se as idéias protestantes e alguns já se inclinavam a ceder de boa vontade
em alguns pontos.
_____________________
1-HIRSCH, 2002, p. 123.
2-HIRSCH, 2002, p. 128.
3-HIRSCH, 2002, p. 121.
56
Entre os representantes italianos do movimento humanístico, apenas com Paolo
Giovio, ao que parece, Damião de Góis não chegou a se encontrar, apesar da comunhão
de interesses. Mas as divergências, relacionadas ao monopólio português das
especiarias, fez com que, somente por intermédio de amigos comuns, tivesse um,
notícias do outro.
O período que viveu em Pádua foi intercalado com algumas viagens a Roma e a
outros lugares de relevo do país; também viajou para o estrangeiro. Em 1536, quando
morreu Erasmo, esteve hospedado em Augsburgo e em Nurenberg. Mais tarde, já em
Portugal, pelo menos podia dividir com André de Resende as recordações da vivência e
das atividades de ambos na Europa que em muito se assemelhavam.
André de Resende, assim como Damião de Góis, era contrário à fúria com que
os católicos conservadores de Lovaina atacavam Erasmo. Um decreto proibindo as
obras do holandês fez com que Resende abandonasse definitivamente a Universidade e
a cidade onde vivera por muitos anos, e seguisse em diversas missões diplomáticas
juntamente com Pedro de Mascarenhas, mas não deixou de reagir aos ataques dos
“sofistas imbecis”, compondo, como era de praxe, um elogio à obra de Erasmo, o
Carmen Erutidum et Elegans Angeli Andreae Resendii Lusitani Stolidos Politioris
Literaturae Oblatratores, modernamente intitulado “Elogio de Erasmo”.¹
______________________
1-Resende enviou o poema a Erasmo, que o mandou publicar por Froben, em 1531, sem permissão do autor. (conf.
HIRSCH, 2002, p. 84)
57
De volta a Lovaina, em 1538, duas grandes mudanças operaram-se na vida de
Damião de Góis. Primeiramente decide fixar-se na cidade, mas recusando-se a maiores
envolvimentos em questões de verdades religiosas. Depois casa-se, em 1539, com a
irmã de Splinter, Joana van Hargen, que “provinha de uma proeminente família católica
holandesa”¹, buscando assim um ritmo de vida menos agitado. Além do casamento,
reatar os laços com os antigos amigos e retomar os estudos, agora na Universidade de
Lovaina, passaram a ser a tônica dos interesses de Damião de Góis.
Entre 1539 e 1542 publicou suas obras mais importantes, e pretendia passar o
resto de sua vida naquele ambiente que “tão bem se coadunava com a sua índole”,
conforme confessou em carta a Beatus Rhenanus.
58
cometidos por Sebastian Münster, que no seu Ptolomeu fizera observações depreciativas
sobre a Espanha. Em Hispania, Góis adverte o geógrafo da necessidade de visitar os
locais descritos para colher informações precisas e verdadeiras, e “descrever depois o
que tinha visto com seus próprios olhos”, e não, violando seu dever de intelectual,
basear-se em fontes duvidosas como a obra do aragonês Michael Servetus¹. Satisfeito
com o resultado de sua intervenção na produção do opúsculo e porque apoiava
integralmente o “motivo patriótico subjacente ao tratado”², Nannius fez o mesmo que
Grapheus, anos antes, fizera com a Legatio, deu-a a imprimir sem o conhecimento do
autor, incluindo o ensaio nela contido, Pro Hispania adversus Münsterum Defensio.
_____________________
1-“O famoso professor respondeu às acusações num longo parágrafo da Cosmografia”, atribuindo os erros contidos
no Ptolomeu, à falta de colaboração de Góis, que, por pura rivalidade, não tinha partilhado com ele seus
conhecimentos sobre o Oriente e as navegações portuguesas. (conf. HIRSCH, 2002, p. 163)
2-“És forte na apologia, mas isso é causado pelo teu amor à pátria. Quem amar o patriotismo e considerar que o
estudo da pátria é uma virtude há-de-te amar.” (HIRSCH, 2002, p. 162)
3-Para Damião de Góis, os portugueses eram civilizadores e evangelizadores. (conf. HIRSCH, 2002, p. 153)
4-“Devido à importância da vitória dos portugueses, o trabalho foi prontamente traduzido para italiano e para
alemão.” (HIRSCH, 2002, p. 173)
5-Idem, 2002, p. 174
59
O mesmo sentimento demonstrado na elaboração da Deploratio Lappiannae
Gentis, encontra-se presente na Fides, Religio Moresque Aethiopum. Damião de Góis
tinha prometido a Zaga-Zabo a tradução para o latim da exposição que o sacerdote
etíope fizera sobre os princípios da sua Igreja, não só para corrigir os erros que se
encontravam na Legatio, mas também para fazer chegar ao Papa a mensagem da
Cristandade dos confins da África¹. Embora privado dos seus livros que se perderam na
longa viagem da Etiópia à Europa, o bispo completou a narrativa em um ano e enviou-a
a Pádua, onde a tradução foi iniciada. Publicada em Lovaina, em 1540 pela primeira
vez, foi dedicada a Paulo III. Em 1541 foi reeditada em Paris, em 1544, novamente em
Lovaina, e seguiram-se a estas as reedições de Leão, Colônia, Genebra e Frankfurt.
No mesmo ano em que Góis conheceu Zagazabo, o Négus da Etiópia fez outra
tentativa para unir sua Igreja à de Roma. Deu poderes ao eclesiástico português
Francisco Álvares, que tinha ido à Etiópia como membro da delegação enviada por D.
Manuel I, em 1520, para que no regresso a Portugal fosse, em seu nome, prestar
obediência ao Papa. Ao mesmo tempo enviou Zagazabo para a Europa, ordenando-lhe
que trouxesse a resposta do Pontífice. O momento histórico ocorreu em janeiro de
1533, quando o Padre Álvares, acompanhado do embaixador Português D. Martinho, se
encontrou com Clemente VII em Bolonha2. Enquanto esperava pela resposta do Papa –
resposta essa, que quando chegou, era evasiva – Zagazabo passou muitos anos de
desencorajamento na Europa. (HIRSCH, 2002, p. 179-180)
60
Em Portugal houve enorme resistência ao trabalho. Góis trocou correspondência
com seu amigo Jorge Coelho, que era secretário do Cardeal D. Henrique, mas
inicialmente recebeu informações apenas sobre o entusiasmo da Corte e do Cardeal com
os Commentarii. Só mais tarde o secretário lhe daria notícias sobre a decisão de D.
Henrique de não deixar distribuir em Portugal a segunda parte da obra, pois o inquisidor
Margalho tinha grandes reservas sobre a religião de Zaga-Zabo. Entre os “erros”
apontados um dizia respeito ao casamento dos sacerdotes, que aproximava a religião
etíope do luteranismo; outro era a fidelidade ao Antigo Testamento, que os aproximava
do calvinismo; e também a prática da circuncisão, com que se assemelhavam aos
judeus. Por isso consideraram hereges o bispo e o povo que ele representava. Em
contrapartida, a Universidade de Lovaina¹, cuja Faculdade de Teologia era
reconhecidamente conservadora em assuntos de fé, deu seu selo de aprovação à obra.
Fora de Portugal, o livro teve o mérito da consagração definitiva de Damião de Góis
como historiador, e ele passou a ser referido como “o historiador da Etiópia”.
61
Damião de Góis regressasse a Portugal.
Logo que chegou foi designado para preceptor do infante D. João, pai do futuro
rei D. Sebastião, mas, para sua infelicidade, era confessor do jovem príncipe o jesuíta
Simão Rodrigues, seu companheiro de quarto em Pádua. Fosse por inveja ou por temer
a influência do pensamento de Góis sobre o infante, no mesmo dia o padre formaliza a
primeira denúncia contra o ex-colega à Inquisição de Évora. Assim o humanista não
assumiu a função, que de qualquer modo não foi transferida ao jesuíta, pois logo
Antônio Pinheiro ficaria encarregado da instrução do infante.
64
Cambaico Ultimo Comentarii Tres, sobre o segundo cerco de Diu, em 1546, publicada
em Lovaina e dedicada a D. Luís.
De volta à Corte, resgata o estilo de vida a que se acostumara durante sua longa
permanência na Europa do norte, e tanta ostentação escandalizou algumas pessoas. Ia à
missa todos os domingos e nos dias de festa, mas sempre atraía a si todas as atenções,
pois fazia-se acompanhar de um lacaio, um pajem e um escravo, que transportava uma
cadeira. Além do mais sua, casa era freqüentemente visitada por estrangeiros aos quais
ele prodigalizava sua hospitalidade, à maneira do que aprendera na Europa. Segundo
Antônio Álvaro Dória, teria sido essa conduta e as opiniões heterodoxas distraidamente
emitidas em conversas informais que levaram à segunda denúncia, que mais uma vez
não resultou na sua prisão, como desejava o inimigo jesuíta. Nesta ocasião era
Inquisidor Frei Jerônimo de Azambuja, tio de Damião, e a maioria dos seus biógrafos
atribui a esse fato o largo espaço de tempo decorrido entre a última denúncia e a sua
prisão em abril de 1571.
65
Em 1554, publica em Évora, Vrbis Olisiponis Descriptio, dedicando-a ao
Cardeal D. Henrique, que já convencido de suas qualidades de historiador demonstradas
nas suas produções latinas, encarrega-o, em 1558, após a morte de D. João III, de
escrever em vernáculo a Crônica de seu pai, o rei D. Manuel, que foi concluída em
1567. D. Henrique, então Regente, e alguns representantes da nobreza, protestaram
contra algumas declarações contidas (ou omitidas) na crônica. O Cardeal, porque nada
havia na obra que o engrandecesse, e os nobres, que eram, sobretudo, os da Casa de
Bragança, à qual também pertencia o Cardeal, porque, principalmente na Crônica do
Príncipe D. João, escrita por iniciativa do autor e publicada no mesmo ano, sentiram-se
ofendidos com o relato de alguns episódios.
_____________________
1-Sabe-se que D. João II pretendia que seu filho bastardo D. Jorge herdasse a coroa. (N. A.)
2-É bastante representativa da época e da sua vida pessoal as muitas cartas escritas ou recebidas por Damião de Góis:
em português, são em geral dirigidas ao rei, e em latim, objeto da tese de Doutorado do Prof. Amadeu Torres
intitulada Noese e crise na epistolografia goesiana, foram trocadas com outros humanistas e figuras eminentes com
as quais se relacionou em suas viagens a serviço da Coroa portuguesa. (N. A.)
3-Op. cit. p. 170
66
...foi músico e deleitava-se com a arte do canto, e muitas vezes organizou serões
em sua casa de Lisboa, a que assistiam estrangeiros que o visitavam; durante esses
serões ele executava motetes por si compostos. (DORIA, 1944, p. 13)
Com efeito, dedicou-se à música com a mesma devoção que aos estudos
humanísticos, e não apenas como ouvinte, mas como instrumentista e compositor, visto
que dele perduram três motetes, que mereceram figurar em grandes antologias musicais
da Europa quinhentista.: Surge propera, amica mea, incluído no “Tenor Cantiones”
(Augsburgo, 1545-1546); Ne laeteris, inimica mea, no “Dodecachordon”, de Henrique
Glareanus (Basiléia, 1547) e In die tribulationis meae, inserido no Livro II dos “Moteti
a tre voce da diversi eccelentissimi Musici composti” (Veneza, 1549) e nas coletâneas
de Nuremberg (1559). A famosa biblioteca musical de D. João IV, restaurador da
independência portuguesa, no século XVII, possuía outra coleção de motetes e canções
do século XVI, a 3, 4, 5 e 6 vozes, de autoria de Damião de Góis, ao lado de
composições de Josquin, Champion, Ricafort, e outros.
Foi assim que desde cedo, Damião de Góis manteve contato com diversos
instrumentos musicais e distinguiu-se como executante de clavicórdio, de címbalo e de
cítara. Quando foi para Antuérpia já admirava os famosos músicos flamengos
Ockeghem (pai do contraponto) e Josquin de Près¹, e procurava seguir-lhes os passos
em suas composições. Muito cedo também manifestou a preferência pela polifonia, da
_____________________
1-“Nestes dois compositores Góis encontrou heróis musicais [....] admirava-os tanto que os homenageou em dois
encômios: um deplorando que a voz de ouro de Ockeghem se tivesse silenciado, e outro celebrando Josquin como
sendo a glória dos templos e das musas.” (HIRSCH, 2002, p. 53)
67
qual muitos representantes freqüentavam os saraus do Palácio, pois esse gênero de
música se havia popularizado na Espanha, especialmente em Salamanca e na corte de
Carlos V. Nesse particular não se identificava com Erasmo, que considerava a música
polifônica como anti-religiosa. A Igreja católica (o Concílio de Trento aprovava com
reservas essa forma musical) e, nos meios protestantes, Calvino faziam oposição à
polifonia, enquanto Lutero, grande admirador de Josquin, estimulava o canto, dentro e
fora da Igreja¹, por isso desde a Reforma ouvia-se bastante música polifônica nas Igrejas
protestantes. As canções populares do poeta francês Clement Marot (que Góis
conheceu em Pádua e recomendou ao jurista Bonifacius Amerbach) foram das mais
apreciadas entre os evangélicos.
Erasmo, equivocadamente, achava que não havia lugar para a música polifônica
no ambiente litúrgico, porque, além de tornar a palavra subalterna, ela não existia no
tempo dos gregos e dos romanos. Mas, como Mrs. Hirsch afirma em seguida, a
familiaridade de Góis com a literatura latina teve certo impacto nas suas idéias básicas
sobre a música. Esse comentário como se pode ver elucida duas questões de relevo
nesse estudo: primeiro que Damião de Góis, de fato, estudou os clássicos; segundo, que
a polifonia, mesmo não tendo sido praticada pelos gregos, era conhecida pelos
romanos², que como sabemos eram muito devotados a Euterpe e Erato³.
_____________________
1-“Lutero, com seu grande amor pela música, não só tinha inspirado as congregações a cantarem hinos dentro das
Igrejas, como tinha criado fora delas uma atmosfera em que se encorajava o cantar por gosto...” (HIRSCH, 2002, p.
55)
2-CANDÉ, 2004, p. 79.
3-Duas das nove Musas, ambas relacionadas à música. (N. A.)
4-HIRSCH, 2002, p. 56.
68
musical com as palavras “ao excelentíssimo bispo da Pomerânia.”
Quando foi residir em Lisboa, Damião de Góis levou consigo alguns hábitos
adquiridos em sua vivência pelo norte da Europa, entre eles o de terminar as animadas
reuniões que promovia em casa com música, tanto missas, quanto motetes cantados a
várias vozes, que seu vizinho João Carvalho, ouvia incomodado, porque a polifonia já
não era familiar aos portugueses, e aquela “música estranha” acabou sendo alvo de
suspeita e denúncias ao Santo Ofício.
Nas palavras de Antônio Álvaro Dória, Damião de Góis “foi na realidade o tipo
acabado do uomo universale tal como o concebiam os renascentistas.”
_____________________
1-“...que só foi igualado pela reedificação de Lisboa, pelo Marquês de Pombal, após o terremoto de 1755.” (HIRSCH,
2002, p. 15)
2-DÓRIA, 2002, p. 13)
69
Tornou-se um colecionador aficcionado de quadros e acabou por se distinguir
também pela sua coleção de obras de grandes artistas contemporâneos. É
principalmente na documentação relativa ao processo da Inquisição que aparece um
inventário das inúmeras obras de arte que possuía, especialmente porque representavam
temas sacros e podiam ser o testemunho de sua fé, pois foram generosamente doadas a
pessoas do clero, da nobreza e a igrejas.
Damião de Góis presenteou o núncio Monte Pulciano com duas de suas telas da
autoria de Jeronimo Bosch: A tentação de Job e as Tentações de Santo Antão, sendo que
a segunda encontra-se hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Do mesmo
artista possuía uma Coroação de Cristo, pela qual teria pago um altíssimo valor em
virtude de sua “perfeição, originalidade e caráter inventivo” e que, na volta a Portugal,
doou à Igreja da Várzea. O “São Jerônimo” de Bosch encontra-se hoje no Museu das
Janelas Verdes e outros da mesma coleção, na biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
para onde foram trazidos quando a família real se transferiu para o Brasil.
70
3.4-Um “europeu” em Portugal.
Com exceção de D. João III, que não hesitou em desembolsar muitos ducados
para resgatá-lo das mãos dos franceses, e que sempre o cumulou de mercês, em
reconhecimento pelos muitos e valiosos serviços prestados ao reino, poucos foram os
que no seu regresso à pátria conservaram na memória ou fizeram saber quem fora
aquele homem no contexto europeu face aos Descobrimentos e a expansão de Portugal.
Além de não ter sido festejado na chegada, o próprio rei logo declinou da
decisão de nomeá-lo mestre e guarda-roupa do príncipe herdeiro, após a primeira
denúncia de Simão Rodrigues à Inquisição de Évora. O “herege”, que deveria ter ficado
pela Europa, estava de volta e ainda vinha-lhe roubar um cargo que ele decerto gostaria
de acumular com o de confessor do infante. Portugal havia mudado, e o rei, outrora
pragmático e de espírito arejado, também tinha mudado, pois, cedendo a pressões da
rainha, e de alguns setores do clero e da nobreza, instalara em vários pontos do seu
vasto império o sinistro tribunal.
Perdido o cargo, Damião de Góis retirou-se para sua cidade natal, onde
permaneceu algum tempo, dando continuidade à sua produção humanística e delas
prestando conta ao monarca. Algumas vezes – já que a confiança que sempre mereceu
em outras questões não fora abalada pela denúncia do jesuíta – intercedia junto ao rei
em favor de missões comerciais estrangeiras quando estas encontravam
71
dificuldades nas transações com a Coroa. Para isso contribuía sua larga experiência em
assuntos econômicos e financeiros, sua fama de hábil negociador e o prestígio de que
ainda desfrutava junto a D. João III.
A morte de Joana van Hargen pouco depois de 1567, deixou mais solitário o
humanista europeu em terras portuguesas. Era nos serões musicais que promovia em
sua casa, sempre que nela hospedava os estrangeiros que vinham a Portugal, que Góis
reencontrava o ideal de convívio e o aconchego a que se acostumara na Flandres e que
nunca haveria de experimentar em seu próprio país.
3.5-Cronista ou historiador?
Para Nestor Fatia Vital, Damião de Góis é “o último a ser integrado na notável
galeria dos cronistas medievais portugueses”¹, pois no século XVI se verificou a
transição do cronista para o historiador, na acepção moderna do termo e do ofício. O
_____________________
1-Conf. VITAL, 2002, p. 45.
72
desenvolvimento do conceito de historiografia atravessou as obras de Gomes Eanes de
Zurara, cronista de D. Afonso V, para quem “os feitos dos grandes homens eram dignos
de louvor e de serem lembrados”¹, e continuou no século XVI, com os escritos de Rui
de Pina, João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda e também do nosso humanista.
Sua opinião sobre Rui de Pina é abonada “pela sua larga cultura, sua experiência
cosmopolita, sua simpatia humana por gentes de outras raças, que o tornaram capaz de
sair do âmbito de conceitos e hábitos mentais da corte em que vivia e de avaliar na justa
medida o interesse de Fernão Lopes, representante de um mundo inteiramente diferente
do seu.”6
_____________________
1-“...o interesse de Portugal em conservar um registro geral dos seus reis só data do século XV.” (HIRSCH, 2002, p.
229)
2-Fernão Lopes parecia esquecido nos primeiros anos do século XVI, e a admiração manifesta de Damião resgatou a
dignidade do velho cronista. (conf. MAGALHÃES, 1993, p. 17)
3-“Damião de Góis foi o primeiro a identificar Fernão Lopes como sendo o autor duma História Geral dos Reis
Portugueses.até D. João I. [....] com base em fatores de evidência interna como organização e estilo.” (Idem, p. 23)
4-Conf. VITAL, 2002, p. 45.
5-Idem.
73
Mas acima de tudo foi um espírito sumamente tolerante e a quem todos os
excessos repugnavam por lhe parecerem indignos de seres pensantes. Com esse
perigoso estado de espírito – perigoso para a época em que viveu – se abalançou a
escrever a Crônica de D. Manuel, que levantou, quando publicada, enorme celeuma
entre certos setores palacianos. Góis devia sentir-se desgostoso e profundamente
abalado com o modo violento como lhe receberam em Portugal a crônica do pai do
Regente, quando toda a Europa culta lhe celebrava as obras latinas que eram, antes de
mais, obra eminentemente patriótica e levaram ao conhecimento de todos os europeus
cultos os feitos dos portugueses na Índia. (DORIA, 1944, p. 14)
Foi sem conta o número de mortos – homens, mulheres e crianças sem distinção
– porque os nossos, endurecidos pelos grandes sofrimentos e mais irritados agora com a
perda dos seus, não quiseram ouvir palavras de perdão. Manda a verdade que se diga
que nem só nas crianças ou nos ventres das mulheres grávidas se cevou o furor dos
soldados, mas até mesmo nos próprios animais. (LAVAJO, 2002, p. 26)
_____________________
9-RAMOS, 2002, p. 55.
75
Temos outro exemplo do fascínio de Góis por coisas sobrenaturais. Fala da
erva Bétel como sendo uma planta “miraculosa” e “sagrada” capaz de curar toda a
espécie de males, além do fato de ser usada como tabaco. (Deu uma amostra dela ao
embaixador francês em Lisboa, Nicot, que a levou para a França e se tornou responsável
pelo termo “nicotina”). (HIRSCH, 2002, p. 233)
Já no seu tempo, suas crônicas serviram de fonte para escritos de outros autores
portugueses. Jerônimo Osório, no seu De Rebus Emmanuelis, que dialoga com a
crônica goisiana², também relata o massacre de judeus havido durante o reinado de D.
Manuel. Este e D. João II são apresentados por Samuel Usque, autor de Consolaçam às
tribulações de Israel, como “inimigos do povo eleito”, embora tanto um quanto outro
rei, nem sempre, tenham agido segundo suas próprias convicções. Mesmo assim, D.
Manuel I não deixou de receber severas, porém cautelosas censuras dos dois humanistas
portugueses que melhor se ocuparam do assunto.
_____________________
1-“No que respeita aos empreendimentos do Infante Dom Henrique, Góis já não aceitou que tais feitos fossem de
inspiração divina. Enumerou todos os autores que o Infante havia lido, entre os quais se contavam Heródoto,
Estrabão, Plínio e Pompônio Mela, que lhe despertaram a curiosidade para as navegações.” (TAVARES, 1999, p.
116)
2-Essa obra em latim de Jerônimo Osório sobre o reinado de D. Manuel, baseada na crônica de Damião de Góis,
tornou-o famoso no estrangeiro. (conf. HIRSCH, 2002, p. 218)
76
Henrique, também não aprovou a escrupulosa objetividade de Damião, não só por ser
mesmo ele um Bragança, mas também porque sua expectativa de ser agraciado com
palavras de louvor não foi devidamente satisfeita, sendo muito superficiais as
referências do historiógrafo ao Cardeal-Inquisidor¹.
77
da prisão, consistiam apenas nas denúncias de Simão Rodrigues, feitas pela segunda vez
há vinte e um anos, sem que tivessem, na ocasião, surtido qualquer efeito.
Mas em 1571, D. João III já havia morrido; dos seus maiores amigos, só André
de Resende ainda estava vivo, porém, ao que se supõe, muito doente. A amizade com o
Cardeal ficara abalada depois da publicação da crônica de D. Manuel, e D. Sebastião,
que subira ao trono em 1568, era muito jovem para que entre os dois pudesse haver
_____________________
1-Op. cit. p. 21.
78
qualquer afinidade, além do mais, o rei vivia mergulhado em sonhos de grandes
aventuras e desejava recuperar os territórios abandonados pelo avô. No ano em que
Góis foi inexplicavelmente libertado, já o inexperiente rei seguiu em sua primeira
expedição à África. Quatro anos depois morreu em combate na mais desastrosa
empresa bélica em que o país se envolveu. Estava aberto o caminho para as pretensões
de Filipe de Espanha que em 1580 se tornou rei de Portugal.
Durante o processo, Góis ficou em uma cela individual, porém, como os demais,
não tinha privilégios. Logo no dia seguinte ao encarceramento, foi chamado à presença
dos inquisidores Jorge Gonçalves Ribeiro e Simão de Sá Pereira e, de forma
desafiadora, inquiriu-os sobre as razões do seu encarceramento, se é que tais existiam,
ao que lhe responderam que ninguém era preso antes de ter suas culpas muito bem
examinadas e que o mesmo se havia feito no caso dele, restando-lhe assim “confessar
toda a verdade, com arrependimento, para poder ser credor da misericórdia do
Tribunal”.
Entre a data de sua prisão e a leitura da sentença logo após a abjuração numa
sala do Palácio dos Estaus, em 6 de dezembro de 1572, Damião de Góis foi ouvido
diversas vezes. Nos intervalos dos interrogatórios inúmeras testemunhas desfilaram
perante os inquisidores. A primeira a ser ouvida foi seu próprio genro, e tesoureiro do
Cardeal D. Henrique, Luís de Castro, que se apresentou à mesa para declarar que o
sogro certa vez havia declarado que a Igreja tinha tido muitos papas tiranos e hipócritas
que muito mal trouxeram à nossa santa fé. E que também criticava os jesuítas por não
_____________________
1-“Com seu jeito irônico, pintou um quadro divertido mas deprimente do desprezo generalizado pelo trabalho. As
pessoas abastadas possuíam tantos escravos que se dispensavam de fazer a mais simples tarefa manual.” (HIRSCH,
2002, p. 249)
79
guardarem a pobreza como fora instituída pelo seu fundador que ele considerava um
padre “muito virtuoso e santo”. O segundo a ser ouvido foi o poeta e fidalgo Pero
Andrade Caminha, que também compareceu voluntariamente, para fazer uma acusação.
Contou que em conversas no Paço da Ribeira, Góis teria comentado, referindo-se ao
infante D. Duarte, “que na morte não havia quem não dissesse quatro parvoíces”.¹
Dez dias depois deu entrada no mosteiro da Batalha onde deveria cumprir pena
de prisão penitencial perpétua. E Simão Rodrigues, que movido pela inveja e pelo
fanatismo, desde Pádua, desejara ver derrotado aquele que se tornara o seu maior
inimigo, finalmente venceu.
_____________________
1-Aquele que não confessava suas culpas e que ao final, acabava queimado como herege. (N. A.)
2-Erasmo tivera muitos adeptos em Portugal até a Contra-Reforma; entre eles Sá de Miranda foi erasmista de
pensamento, e na comédia Estrangeiros está refletida essa sugestão ideológica. “Verdadeiramente fiel até o fim e
com a coragem suficiente para o declarar, só Damião de Góis, que no próprio cárcere proclamou a sua amizade e
tentou ilibar o amigo da fama de luterano. Os outros esconderam suas simpatias para não serem incomodados...”
(RAMALHO, 1998, p. 79)
81
Numa época da vida em que pela sua larga experiência e ampla cultura,
acumulada em muitos anos de estudo e aplicação, muito ainda tinha a contribuir para a
glória de Portugal (que como acertadamente afirmou um dia Diogo Pires, não honrava
seus heróis) e do humanismo, a intolerância pôs fim à carreira de um homem.
82
4. ASCENSÃO, APOGEU E QUEDA DO IMPÉRIO DO PRESTE JOÃO
*SILVA, 2000, p. 2.
Pode parecer num primeiro momento bastante inesperado que o estudo do latim
nos leve por caminhos tão inusitados como um conhecimento maior da história da
África Subsaariana. Mas logo se desfaz a surpresa, pois, quando descobrimos que, na
Antigüidade, a interação dos povos ia além do vulgarmente conhecido, percebemos que
esse desconhecimento se deve unicamente à existência de uma ideologia nitidamente
excludente no apagamento dos contatos havidos entre o mundo clássico e uma parte
bem maior e mais remota da África, para lá das regiões banhadas pelo Mediterâneo.
Isso nos leva à conclusão – e que merece ser referida antes de iniciarmos este
capítulo – de que a contribuição do latim como língua de cultura não se esgotou nos
textos das leis que o aboliram dos currículos escolares, pois todo o saber e todas as
realizações humanas estão registradas, também em grego, mas principalmente, em
latim, aí incluído o conhecimento das culturas africanas.
4.1-Cultura e civilização.
84
Não quer isso dizer que civilização, pela sua natureza mais dinâmica e perceptível,
pressuponha transformação para melhor. O próprio conceito de evolução¹ – por isso
preferimos dizer transformação – tem sido aplicado com reservas e senões pelos
pensadores modernos.
Povos como gregos, romanos, egípcios e outros mais, ainda que tenham,
igualmente, conhecido a decadência foram tomados como exemplo e modelo de
civilização. Sempre freqüentaram as páginas dos manuais de História e continuam
despertando o interesse de pesquisadores de várias partes do mundo, independentemente
da relevância das constantes descobertas para o conhecimento específico de suas
origens, costumes ou técnicas de produção e dominação. Consideremos que a principal
expectativa diante de qualquer dado novo, seja qual for sua natureza, é que ele sempre
possa lançar luz sobre antigas questões ou dar ensejo ao nascimento de um novo ramo
do saber; apesar disso dificilmente as atenções dos pesquisadores se voltam para o que
se poderia colher da experiência de povos que foram marginalizados pela moderna
ideologia ocidental, ainda que essa experiência esteja registrada nos textos antigos,
evidenciando a interação entre estes povos e aqueles, efetivamente, considerados
históricos.
Com base nos critérios estabelecidos sobre civilização e cultura, veremos de que
modo esse povo estaria inserido nos processos de transformação e desenvolvimento que
caracterizaram as sociedades mais antigas, que ainda hoje são objeto da investigação
científica e tentaremos identificar as possíveis causas (econômicas, religiosas,
lingüísticas) do pouco interesse pelo passado, presente e futuro do próspero reino do
Preste João após o Renascimento, sobretudo no Brasil, onde é tão significativa a
influência africana. Também aqui a cultura africana de um modo geral se destaca
principalmente pelos seus traços exóticos, pelo batuque de sua música e pelos mistérios
de seus orixás. Mas veremos que o conhecimento da lenda do Preste João nos leva a
repensar o significado da África como o autêntico elo perdido – ou simplesmente
desconhecido – entre nosso passado e presente, e faz-se mister abrir e ampliar esse canal
de conhecimento, pois já se encontra em vigor a lei 10.639 que tornou obrigatório no
país o ensino da História e da Cultura Afro-brasileira.
Podemos dizer que é clássico tudo o que tem potencial para se perpetuar e ser
reconhecido como modelo em qualquer tempo. Assim é clássico o que retoma os
modelos do passado ou o que consegue alcançar, no plano da atividade humana, um
ideal de perfeição almejado, em qualquer época. Não é por outra razão que ao se
manifestar, por exemplo, sobre uma obra de arte, os críticos, quando a aprovam
incondicionalmente, costumam dizer “já é um clássico”, ou seja, já revela as
características ideais para se tornar referência em seu contexto e servir de modelo para
produções similares posteriores.
A dinastia que pela tradição bíblica teve início com a rainha de Sabá foi a mais
longa da História, extinta em 1975 com a morte do Imperador Hailé Selassié, deposto
por um golpe militar em 1974. Quanto à região localizada ao sul do Egito atual, dava-
se a ela a denominação de Kush (Cuxe), e de kushitas (cuxitas) aos seus habitantes.
Parte desse reino alcançava o noroeste da atual Etiópia.
A concepção que gregos e romanos tinham desses homens dos confins da terra²
é bem diversa da visão moderna dos povos africanos. Em que momento então a África
Subsaariana perdeu seu prestígio e sua historicidade?
...a Etiópia é a mais remota das regiões habitadas; lá existe muito ouro e há
enormes elefantes, e todas as árvores silvestres; e ébano, e homens de elevada estatura e
muito belos e de uma longevidade excepcional. (HERÓDOTO, 1998, III, 114)
90
O próprio nome deste Império da Etiópia a Alta, ou sobre o Egito (de que
havemos aqui de falar) é Abássia, e, conseguintemente, o nome de seus habitadores é
Abexins, ou Abexis. Eles dizem Abex, carregando no x, e porque nós não pomos tam
facilmente o acento no x, dizemos em lugar de Abex, Abexim, e a eles chamamos
Abexins. (TELES, 1936, p.16)
É dessa Etiópia que fala a narrativa do bispo Zaga-Zabo a Damião de Góis, que
a verteu em latim para conhecimento de toda a Cristandade.
Além dos povos até agora identificados, originários da própria África, cujos
limites territoriais imprecisos não são descartados pelos historiadores como
determinante na formação do povo etíope, ajudam a compor a sua bela etnia algumas
tribos provenientes do atual Iemen (antes Sabá) que em tempos remotos fundaram
________________________
1-“Há uma abundante e surpreendente produção historiográfica sobre a Etiópia em Portugal, assim como já havia
referências interessantes não só pelos gregos, mas também pelos romanos. Entretanto foram os historiadores e
geógrafos árabes - como Leão, o Africano, convertido ao cristianismo - que mais se dedicaram ao estudo do povo e
do continente africano, em decorrência da expansão do Islã, que deu ensejo ao surgimento de prósperos Estados
africanos, como Gana, Mali e Songai.” (VIDROVITCH, 2003, p.14)
2-Mar Vermelho.
91
colônias de mercadores na região – onde ainda havia portos marítimos¹. Destes
herdaram o idioma, entre outras coisas, o que pode esclarecer as demais características
que os distanciam do grupo banto, pois os traços faciais, como o nariz fino, aproximam-
nos dos europeus, embora também tenham pele escura e cabelos crespos. É
principalmente a esta origem que daremos maior destaque nessa exposição.
Foi justamente por causa desse interesse incomum aos europeus que (re) nasceu
a lenda do Preste João, um Príncipe ou Soberano Cristão, cujo Estado estaria encravado
entre centenas de outros governados por Monarcas muçulmanos. O desejo de chegar a
esse aliado da Cristandade foi uma das motivações ideológicas conexas das Grandes
Descobertas. (CERQUEIRA, 1997, p.1)
Eis que havia na Etiópia um livro antiqüíssimo², que ao lado da Bíblia Hebréia
era muito venerado como um segundo Evangelho, conservado na Igreja de Axum, a
mais antiga Metrópole e sede do Império, onde a Rainha de Sabá teve sua
_____________________
1-Língua das antigas escrituras sagradas. (conf. SANCEAU, Elaine. Prefácio à História da Etiópia de Pero Pais, p.
18). “A língua vernácula encontrada na época dos descobrimentos é o amárico, língua semita próxima do árabe e do
hebraico.” (LAMBERT, 2001, p. 118)
2-“Obra central da literatura e da civilização etíope, a Glória dos Reis (Kebra Negast), escrito em geez, a língua
clássica da Etiópia, é um texto cuja forma atual foi fixada em finais do século XIII, na altura da ascensão da chamada
dinastia salomônica ao trono imperial nos planaltos do Tigré e Amhara.” (RAMOS, 1998, p.236)
93
corte.¹ Diz esse livro que quando reinava na Etiópia a rainha Maqueda, chegaram
notícias da sabedoria do rei Salomão, trazidas por um rico mercador que, retornando a
sua terra, contou maravilhas sobre a justiça, a modéstia, a doçura e a clemência, e
muitas outras virtudes daquele rei. Desejosa de ver e ouvir o sábio monarca, organizou
uma caravana com muitas riquezas, entre as quais ouro, aromas e incenso, e dirigiu-se a
Jerusalém. Com grande honra foi recebida por Salomão e hospedada perto de sua casa.
Quase diariamente o rei a visitava para verificar se o tratamento a ela dispensado estava
de acordo com suas ordens. Também ela ia visitá-lo para ouvir e aprender com sua
sabedoria e justiça, que eram dadas por Deus.
Também diz o livro que ao entregar o reino ao filho, Maqueda o fez jurar que
nunca mais seria admitida uma mulher como governante, e que só aos seus
descendentes varões e pelo lado masculino seria dado o comando do Império. Do
tempo da Rainha de Sabá5 até o nascimento de Cristo consta ter havido 24 imperadores,
_____________________
1-“...o livro onde põem o catálogo dos Imperadores diz que a Rainha Azeb (ou Maqueda) começou a reinar em
Axum, e as ruínas dos edifícios que ainda aparecem, mostram bem haver sido a mais suntuosa que houve em
Etiópia.” (PAIS, 1945, p. 25)
2-“....daqui vem que os Emperadores de Ethiopia mudão o nome do bautismo quando lhes entregão o Império.”
(PAIS, op. cit. p. 31)
3-“Muitos de nossos sagrados expositores dizem que esta rainha era da Arábia e não de Etiópia.” (TELES, 1936,
p..95)
4-Segundo uma outra tradição, a rainha se converteu ao cristianismo depois de batizada pelo seu eunuco. (Fides)
5- “O livro de Reis 1-10 localiza o reino de Sabá no Iêmen, noroeste da Arábia.” (ALMEIDA, 2002, p. 389). Com
efeito, na divisão que Heródoto faz dos etíopes aparecem os da Ásia, juntamente com os macróbios e os trogloditas.
(conf. BISPO, 2006, p. 28)
94
e que a fé católica foi adotada em 1437¹, no tempo do Imperador Zara Jacob, que para
isso enviou embaixadores abexins com carta ao Papa Eugênio IV.
Assim o desejo de encontrar esse “paraíso terreal” levaria os europeus cada vez
mais longe, em busca de uma aliança sólida contra os infiéis em regiões, que só os
mouros então conheciam, e que representasse, ao mesmo tempo, a posição estratégica
que lhes garantiria o acesso aos ricos mercados do Oriente. São os portugueses que
primeiro vão chegar à Etiópia, em circunstâncias dignas das histórias de aventuras,
conforme será narrado pelos seus mais célebres cronistas. Entretanto essas narrativas,
na sua maioria, reproduzem o testemunho do próprio povo, o conteúdo dos livros
etíopes, além de incluir os relatos de embaixadores nativos ou de missionários do
Ocidente.
95
próprios olhos o mito (em sua segunda morte)¹, que foi um dos grandes responsáveis
pela conquista da África Subsaariana, pois a procura de caminhos que levassem ao
Preste João impeliu os seguidores do Infante D. Henrique a penetrar o coração do
continente e descobrir seus tesouros. Mas a queda do mito não anulou suas
conseqüências: o canal entre a cristandade ocidental e a oriental estava aberto, e para a
Etiópia – de quem Portugal, na verdade, esperava receber auxílio – a aliança com os
portugueses, seus irmãos em Cristo², ao contrário do que ocorreu com as outras nações
do Oriente e da América, permitiu-lhes preservar seu Império, ora fragmentado, ora
aumentado, ainda por cinco séculos. A heróica – ou suicida – expedição de D.
Cristóvão da Gama, em 1541, arrancou o reino das mãos do chefe Mouro a quem eles
chamavam Granhe³, quando os exércitos do Imperador já tinham suas forças exauridas
depois de 14 anos de assédio4.
96
4.3-Breve História da Etiópia.
97
chegou próximo ao deserto; Sétimo Flaco, em 70 d. C. perseguiu os garamantes até
Fezânia; Júlio Materno, pretendendo combater os etíopes atravessou o deserto até a
região onde vivem os rinocerontes. Além destes, o Imperador Nero preparou uma
grande expedição à Etiópia que não se realizou (HARVEY, 1998, p. 216). Uma questão
que merece ser colocada é quanto ao possível destino da África Subsaariana caso a
dominação por Roma tivesse se concretizado: como seriam os africanos resultantes do
processo civilizador greco-romano? De qualquer forma, sabemos hoje que no interior
da África muita coisa se passava à semelhança da Europa e das regiões do
Mediterrâneo. Impérios surgiam, expandiam-se ou eram submetidos por outros mais
poderosos, que aumentavam seus territórios, pilhavam os tesouros dos inimigos e
escravizavam os vencidos. A própria Etiópia encontrada pelos portugueses constituía
um império, ao qual inúmeras províncias pagavam tributo. Seus domínios se estendiam
além das nascentes do Nilo na parte ocidental e até o Mar Vermelho onde aportavam
seus navios de combate ou mercantes e embarcações de países estrangeiros,
principalmente da Ásia, com os quais tinha relações de comércio.
_____________________
1-Muitos dos portugueses que não eram autorizados a partir, como ocorreu a Pero da Covilhã, instalavam-se em belas
quintas construídas no estilo português, beneficiados por essa liberalidade do rei. (conf. TELES, 1936, p. 73)
98
O Nilo Azul banha o país e nasce no Lago Tana, na região do contraforte
montanhoso setentrional, próximo de onde também ficava localizada a cidade de Axum,
antiga sede do governo. No período anterior à fundação de Axum, antes do século VI a.
C., tribos árabes do sul atravessaram o Mar Vermelho vindo se estabelecer no litoral da
Eritréia de onde em “vagas sucessivas” chegaram a Adulis. Uma dessas raças, a dos
Habashat deram origem ao nome do país, Abissínia, e a dos Gêes (ou Geez) trouxe a
língua que seria difundida pela maior parte da região. A presença dos árabes do sul é
atestada por inscrições dos reis de Axum (em gêes ou em grego) e monumentos
semelhantes aos encontrados na Arábia do tempo do reino de Sabá. É dessa época a
introdução de instrumentos agrícolas, como o arado e a construção das primeiras aldeias
em pedra, que ficaram como traço característico do país. Logo se desenvolveu uma
cultura local marcada por influências estrangeiras, pela africanização dos árabes e pelo
desenvolvimento da metalurgia a partir do século III a. C., confirmando a presença
meroíta na Etiópia e a presença de axumitas no vale do Nilo.
99
delas, provavelmente do século III, o rei da Abissínia¹ narra suas conquistas
verdadeiramente grandiosas, e a presença dos seus soldados no exército da rainha
Zenóbia contra os romanos confirma-o. E
A partir de 572 e até 975, Axum começa a perder algumas províncias para os
persas. Durante o século VIII os abissínios perdem seus portos no Mar Vermelho³ Em
franca decadência, o Império conhece um período de devastação e trevas, até o
surgimento no século XII de uma nova dinastia. Lalibela, o “São Luís etíope”, famoso
por sua devoção, construiu as famosas igrejas rupestres da Etiópia e transferiu a capital
para outra cidade que recebeu seu nome. A nova dinastia, que remontaria a Moisés e
não a Salomão, reinou por cento e trinta e três anos. Em 1270, ocorre a chamada
“restauração salomônica”, com a subida ao poder da antiga aristocracia axumita. É um
período de grande renascimento literário, quando enfim a História da Abissínia começa
a ser produzida por um escriba real.
________________________
1-Talvez Sembrutes, talvez Aphilas, do qual existem muitas moedas. (Conf. RAMOS, 1998, p. 12)
2-O país ficou assim unido à Igreja Copta do Egito (culto cristão etíope e norte-africano), que professa um
cristianismo monofisista (defende a natureza única de Jesus). (Idem, p. 13)
3-A Abissínia possuía os portos de Maçuá e Dalec, e mais ao sul, Zeila, todos ocupados por muçulmanos que
pagavam tributo ao reino. (conf. SANCEAU, 1940, p. 57-59)
100
A esta dinastia pertenceu Zara Jacob que reinou de 1434 a 1468. Foi um grande
administrador, soldado, reformador. Lutou pela extinção do paganismo e enviou uma
delegação da Igreja etíope a Florença, para o concílio de 1439. A ele coube também o
início das tentativas de estabelecer relações com os portugueses. Sobre o período que se
seguiu até o intercâmbio com o reino de Portugal já falamos no subcapítulo anterior.
Entre o século XVII e século XIX, mais uma, vez a Etiópia muito pouco será
lembrada, apesar dos conflitos de natureza religiosa que iriam resultar em desavenças
com os jesuítas. Em 1632, os missionários católicos foram expulsos das terras do négus
(rei), e a capital foi transferida para Gondar.
No século XIX o Imperador Teodoro II, que havia estabelecido relações com os
ingleses, suicidou-se quando estes decidiram invadir o país em 1867. A crise só se
resolveu com a subida ao poder de Menelik II, que concluiu a unificação do território,
deu início à modernização do país e fundou uma nova cidade, Adis Abeba (que em
amárico significa “Nova Flor”), para onde transferiu a capital. A Itália que nessa época
havia começado a controlar a Eritréia, se dá conta da tranqüila independência da Etiópia
e resolve – ela à qual não coubera até então nenhuma fatia na divisão do Novo Mundo
– empreender a conquista da região, mas foi derrotada por Menelik na batalha de Adua,
em 1896.
Reconduzido ao trono, Hailé Selassié deu início a uma era de reformas políticas
e modernização econômica, até ser destituído em 1974 pelo exército, que aboliu a
monarquia e proclamou uma república socialista na Etiópia.
_____________________
1-Le Dernier Rempart de l’Esclavage – L’Abyssinie, 1935.
2-A seita Rastafari mistura crenças animistas africanas com tradições judaico-cristãs e presta culto à personalidade do
Imperador Hailé Selassié. É uma espécie de messianismo à africana, a espera daquele que há de retornar para
governar todos os afro-descendentes do mundo. (CERQUEIRA, 1997, p. 9)
102
A originalidade da arquitetura, a existência de documentos escritos, a capacidade
de adaptar seu estilo de vida e estrutura social à topografia e a outras características
ambientais adversas sem prejuízo da unidade política tem relação direta com a
estabilidade e a continuidade que asseguraram a longa sobrevivência do Estado etíope,
portanto o atributo civilização, tantas vezes reconhecido para grupos humanos que
foram destruídos pelo tempo ou não resistiram a processos civilizadores impostos pela
força, aplica-se não só à velha Abissínia, mas a todo o continente africano, ainda que
para alguns eruditos equivocados a África não constitua uma parte histórica do mundo,
nem possua um povo capaz de se desenvolver ou ser educado. Na verdade, mesmo
negando os padrões ocidentais é possível considerar civilizado qualquer povo capaz de
se reconhecer como unidade cultural, e para a maioria das nações africanas isso é mero
detalhe, independentemente de terem ou não atingido o mesmo grau de
desenvolvimento alcançado pelos países do Primeiro Mundo. E é, inegavelmente, da
força dos seus mitos que veio esse poder de contínuo renascimento.
A lenda do Preste João tem a ver com o Estado Utópico, a Sociedade Ideal, o
Mundo Justo. Sem conflitos, sem carências, sem violência, daí toda a riqueza simbólica
dos presentes levados ao Menino Jesus. (CAMPOS, 2002, p.6)
104
A queda de uma civilização sempre coincide com a ascensão de outra que está
em seu momento de apogeu. A Grécia se tornou província não porque Roma se tornou
Império, mas por ter esgotado sua força criadora e sua capacidade de regeneração. Há
muito sua grandeza habita o passado, mas sobrevive no mundo das idéias pela riqueza
da sua herança cultural, que também encantou o mundo moderno e foi reconhecida e
eleita como paradigma. É difícil imaginar qual teria sido o destino da Europa se
nenhuma informação do mundo grego tivesse chegado até ela, se a Grécia não tivesse
revivido num novo “organismo” que era Roma. E como fomos muito bem treinados
para só dar crédito à matriz européia nunca poderemos saber de que modo um
conhecimento maior da matriz africana teria contribuído na formação da nossa
identidade, se fosse devidamente reconhecida como a outra parte de nós, ao menos na
sua imensa capacidade de desafiar o tempo.
105
5. FIDES, RELIGIO MORESQVE AETHIOPVM.
Magistro chori.
Caeli enarrant gloriam Dei, et opera manuum eius
annuntiat firmamentum. Dies diei eructat verbum, et nox
nocti indicat scientiam. Non sunt loquelae neque
sermones, quorum non intellegantur voces: in omnem terram
exivit sonus eorum, et in fines orbis terrae verba eorum.*
202
§6. Agora, enfim, chega o tempo em que acreditamos que essa profecia há de
ser cumprida por teu intermédio. Aqui estão os etíopes, grande povo e avidíssimo de
Cristo, cujo santíssimo imperador, desejando a amizade dos europeus cristãos, mandou
legados a ti e aos reis de Portugal, por intermédio dos quais, como é evidente em suas
cartas, não só deseja compartilhar a amizade e a caridade cristã dos príncipes europeus,
mas também, muito devotadamente, exortá-los (os que ele sabe que vivem
permanentemente em acirradas discórdias) à concórdia cristã. É um fato do qual
certamente devemos todos nos envergonhar.
§7. Surgiu agora a rainha de Sabá e nos chama à razão, já repreendendo nossos
erros. As profecias de Cristo se cumprem e ele próprio escolheu os que pouco a pouco
se afastarão do Seu convívio, e Sua promessa e Seus mandamentos são levados àqueles
que eram considerados pagãos e contrários a Cristo.
§8. Vemos que este imperador dos etíopes com todos os seus súditos, como será
observado em nosso relato, deseja também viver sob tua lei e nada mais deseja. Não
ignora, além disso, por causa da doutrina dos Apóstolos, que possui, dividida em oito
livros, que a primazia dos bispos e de todo o mundo é devida ao bispo romano, a quem
inteira e santamente quer submeter-se e também ser instruído por ele nos princípios da
Igreja de Cristo. Pede que, para isso, lhe sejam enviados homens sábios, o que mostra
desejar avidamente. E não contente com isso pede ainda que sua solicitação, no futuro,
sobreviva na memória, para que a prova disso permaneça nos anais dos Pontífices e
assim a prova fiel de sua carta seja honrada pela história eclesiástica, e a posteridade
saiba em que tempo e sob que pontífice aconteceram esses fatos.
§9. Não duvido, certamente, de que Vossa Santidade já tenha enviado a ele homens
doutos e bem instruídos na disciplina das letras sagradas e das outras artes ou que logo
há de enviar. Pelo saber e ensinamento destes, juntamente com a palavra e o trabalho de
alguns outros que os sereníssimos reis de Portugal, D. Manuel e D. João, seu filho,
enviaram, farás com que todos os cristãos que vivem na Etiópia e, igualmente, na Índia,
obedeçam às leis dos bispos romanos (os quais não temem reconhecer como
representantes de Cristo).
§10. Enfim, reunidos conosco pela verdadeira religião, com teu empenho e
juntos, também no mesmo rebanho e sob um único pastor, Cristo, entenderemos estar
sobre todos nós confirmada a misericórdia do Senhor e ser seu reino de todos os
203
séculos e seu domínio ser de todas as gerações. Então toda carne há de bendizer Seu
querido santo nome eternamente.
§11. E para que minha exortação não seja mais prolixa do que o necessário,
principalmente para este de cuja vida e doutrina todos devemos ser seguidores,
transporto-me ao início desta narrativa que repetirei um pouquinho mais detalhadamente
para que assim mais claramente eu mostre em que princípios os laços e esta santíssima
amizade do Preste João e do Rei de Portugal foram contraídos, esperando, enquanto
narro estas coisas que são verdadeiras e legítimas, poder abalar os ânimos dos leitores e
atraí-los deste modo para a missão em que a fé de Cristo seja mais abundantemente
conhecida e cultivada em todos os cantos da terra.
Carta II - Carta de Helena, avó de Davi, Preste João Imperador dos etíopes para D.
Manuel, rei dos portugueses (e colônias), escrita no ano de 1509.
§17. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, um só Deus em três Pessoas, que
a saúde, a graça e a bênção de Nosso Senhor e Redentor Jesus Cristo, filho de Maria
Virgem, nascido na casa de Belém, esteja sobre nosso dileto irmão, cristianíssimo rei D.
Manuel, dominador do mar, vencedor dos ferozes e infiéis mouros. Que o Senhor Deus
te conceda a boa sorte e te dê a vitória sobre os inimigos. Que Ele aumente e amplie
teus reinos e domínios longa e infinitamente pelas devotas preces dos mensageiros do
Cristo Redentor, os quatro evangelistas, João, Lucas, Marcos e Mateus, e que a
santidade e as orações deles te animem.
§18. Muito cordialmente te informamos, dileto irmão, que chegou até nós desse vosso
grande e majestoso palácio dois mensageiros, ambos com o nome de João um dos quais
se dizia presbítero, e o outro era João Gomes, que nos pediram provisões e soldados.
Por isso enviamos nosso irmão Mateus, embaixador a nosso serviço, com licença do
patriarca Marcos, que nos abençoa, é nosso pai e de todos os nossos reinos, coluna de fé
de Cristo e da Santíssima Trindade, levando presbíteros a Jerusalém. Este, por nossa
ordem, enviou mensagem ao maior comandante dentre os vossos, que, pela fé no Nosso
Salvador Jesus Cristo, lutam na Índia, informando-lhe que estaríamos prontos a enviar
tanto suprimentos quanto soldados se necessário fosse. Soubemos, entretanto, que o
príncipe do Cairo organiza uma grande armada contra vossas tropas certamente para se
vingar das injúrias e danos, que pelos comandantes das milícias que manténs na Índia,
freqüentemente são infligidos a eles (como é evidente para nós). Que Deus, em sua
207
santa bondade mais e mais te engrandeça, que sejas afortunado e dignificado em todos
os dias para que então todos os infiéis juntos sejam colocados inteiramente sob o teu
jugo.
§19. Nós, portanto, haveremos de enviar contra os insultos deles tropas de soldados,
que permaneçam no estreito de Meca, principalmente, Babel Mendel, ou, caso a ti
pareça mais conveniente, no porto de Judá ou Thor, para que deste modo então afastes e
elimines mouros e incrédulos da face da terra, e que também não mais sejam lançadas
aos cães os presentes e as oferendas levadas ao Santo Sepulcro.
§20. Eis que já é chegado o tempo prometido em que, como dizem, Cristo e Sua Mãe
Maria predisseram que nasceria, evidentemente num futuro distante, na região dos
francos, certo rei que eliminaria do universo a raça dos mouros e dos bárbaros, e é
exatamente este o próprio tempo de agora, o futuro que Cristo prometeu à sua Bendita
Mãe.
§21. Continuando, o que quer que nosso enviado Mateus vos disser, acolhei como
vindo de nossa parte e nele confiai. Ele figura com distinção entre os principais do
nosso palácio, por isso decidimos enviá-lo. Mandaríamos certamente estas notícias
junto com teus mensageiros para cá enviados, mas tomou-nos o medo de que nossas
informações não chegassem ao teu conhecimento, segundo nossa intenção.
§22. Pelo nosso orador Mateus, enviamos a ti uma cruz, feita indubitavelmente do
pedaço de madeira em que Nosso Salvador Jesus Cristo foi crucificado em Jerusalém.
Este sacrossanto pedaço de madeira de lá nos foi trazido. Fizemos dele duas cruzes:
uma delas permanece conosco, a outra demos a esse nosso embaixador para ser levada a
ti. A madeira é de cor negra e pende de uma pequena argola de prata.
§23. Além disso, se fosse vosso desejo unir em matrimônio vossas filhas a nossos
filhos, ou dar nossas filhas a vossos filhos, isso seria, acima de tudo, não só um grande
prazer para nós, mas também, para ambos; início de uma aliança útil e fraterna entre
nós, que decerto muito desejamos; que a realização dessas núpcias consolide a união
convosco tanto no presente como no futuro.
§24. Que a saúde e a graça de nosso redentor Jesus Cristo e de Nossa Senhora Maria
Virgem se estenda tanto sobre vós e todos os seus filhos e filhas quanto sobre vossa
casa. Amém.
§25. Além disso, mais certos vos deixamos de que, se quisermos unir nossas lutas e
nossos exércitos, há de ser bastante a nossa força para (juntamente com o auxílio
208
divino) destruirmos todos os inimigos da nossa santa fé. Contudo nossos reinos e
domínios ficam, de tal maneira, no interior do continente, que por nenhum lado nos é
possível chegar diretamente ao mar. Por isso nenhum poder temos no mar, onde (graças
a Deus) vós sois os mais poderosos de todos. Que Jesus Cristo vos auxilie, pois as
coisas que por vós foram realizadas na Índia são realmente mais milagrosas que
humanas. Quanto ao mais, se quiserdes armar mil navios, forneceremos, não só
provisões, mas também dispensaremos em abundância tudo o que for necessário para
essa armada.
§26.Damião de Góis: Esta carta, com outros artigos da fé, religião, costumes e situação
dos etíopes, que Mateus em pessoa explicou a D. Manuel e a seu Conselho, por
exortação de João Magno, Arcebispo de Upsala, no reino da Suécia, com o qual na
Prússia contraí grande amizade, passei-a do português em que a tinha escrito para a
língua latina; junto com os mesmos artigos foi ela depois, não sei como, publicada em
Antuérpia.¹
§27. D. Manuel, como era muito prudente, e também ávido de divulgar a fé cristã,
depois do relato dos embaixadores da Etiópia, mandou organizar uma embaixada com
homens muito sérios e ilustres cujos chefes foram Duarte Galvão, homem conceituado,
tanto pela idade quanto pela prudência e Francisco Álvares, sacerdote e incumbido das
coisas sagradas da corte, também este idoso e de costumes irrepreensíveis; a ambos
conheci de vista. Com Mateus seguem eles para a Índia, sob o comando de Lopo
Soares, e por fim de Diogo Lopes de Sequeira, comandante que o sucedeu, quando a
armada que tinha preparado contra os Turcos desviou-se do destino para o porto de
nome Arquico, no litoral da Eritréia e sob o domínio do Preste João. O navio aí aportou
no ano da salvação de 1520, no dia 2 de abril. Durante a viagem, em Camarões, ilha do
mar da Eritréia, morreu Duarte Galvão e substituiu-o no posto Rodrigo de Lima, que do
mesmo porto de Arquico, no dia 29 do mesmo mês, com os integrantes da mesma
embaixada, juntamente com o comandante e o companheiro Mateus (pois aquele jovem
abexim de quem acima falamos tinha morrido) começou a seguir em direção à corte do
Preste João; nesta viagem também morreu Mateus e foi sepultado pelos nossos num
célebre mosteiro chamado Bisayn. Depois dos ofícios fúnebres retomaram a viagem
_____________________
1-Trata-se da Legatio Magni Indorum imperatoris Presbyteri Joannis ad Emmanuelem Lusitaniae regem, que
Cornelius Grapheus entregou a seu irmão para imprimir, sem conhecimento de Damião de Góis. (conf.
BATAILLON, 1935, 30)
209
que haviam começado e após um longo percurso, infinitos trabalhos e enormes perigos
chegaram ao palácio do Preste João, pelo qual Rodrigo foi acolhido honrosamente junto
com seus companheiros e, finalmente,concluída a missão retornou com a resposta a D.
Manuel. Tendo seguido com sua embaixada em direção a Arquico, não encontrou a
armada comandada por Luís Meneses, que viera para reconduzi-los (a Portugal) e que
não pode esperá-los por causa do rigor dos ventos que naquelas plagas, por admirável
mistério da natureza sopram por seis longos meses e de uma direção do céu, depois, por
outros seis meses, da parte contrária¹. Em Arquico encontrou, em poder do governador
da fortaleza, uma carta deixada pelo comandante Luís do qual recebe a notícia da morte
de D. Manuel. Por isso decidiu retornar ao reino do Preste João, quando este então
escreveu para o Sumo Pontífice e entregou a carta a Francisco Álvares para, na volta,
ser levada a Roma. Todos eles, retidos já no espaço de seis anos naquelas províncias,
enfim embarcaram com o legado etíope² que o Preste João enviava ao nosso rei, em
outra armada real que viera por causa deles, e deu-se isto no ano de 1526, no mês de
abril. Daí, levantando âncora, dirigem-se à Índia e por fim, depois de uma longa
viagem, desembarcam em Lisboa, no mês de julho do ano de 1527, e em presença de D.
João, que por certas circunstâncias desta embaixada reteve o legado etíope na corte até
1539. Enviou ao Papa Clemente VII, com a carta do Preste João, o padre Francisco
Álvares, que viera como emissário da Etiópia. O próprio Pontífice recebeu a carta das
mãos do mesmo Francisco Álvares, em Bolonha, no mês de janeiro de 1533, na
presença do Imperador Carlos V. A leitura desta e de outras cartas para D. Manuel e D.
João, deve-se a Paulo Jóvio, varão erudito, que as verteu do idioma português em
que estavam escritas para o latim, como agora se pode ver.
§28. Em nome de Deus Pai, de Quem, como sempre foi, não se descobre a origem.
Em nome de Deus Filho, único, que é semelhante a Ele, antes que fosse vista a luz das
estrelas, antes que se lançassem os fundamentos do Oceano, que em outro tempo,
porém, foi concebido no ventre da Virgem Maria, sem pecado e sem núpcias. Deste
modo porque assim fora instruído. Em nome da santidade do Espírito Paracleto que
_____________________
1-Monções.
2-Zaga-Zabo. 210
conhece todos os segredos que existem, desde sempre até agora, de todas as alturas do
céu, que mesmo sem colunas e sem nenhum apoio se sustenta, que fez a terra, que antes
não estava criada nem era conhecida em todas as partes, de leste a oeste, e de norte a
sul. Nem é esse o primeiro, ou o segundo, mas é a Trindade Una, num só eterno criador
de todas as coisas, por uma só lei e por uma só palavra, pelos séculos dos séculos.
Amém.
§29. Esta carta enviou-a Atani Tinghil, isto é, Incenso da Virgem, que é seu nome de
batismo. Agora, ao assumir o reino de verdade, tomou o nome de David, querido de
Deus, coluna de fé, descendente da estirpe de Judá, filho de David, filho de Salomão,
filho da coluna de Sion, filho da mulher de Jacó, filho da mão de Maria, filho de Nau
pela carne, Imperador da grande e alta Etiópia, dos grandes reinos, domínios e terras, rei
de Xoa, de Cafate, de Fatigar, de Angote, de Baru, de Baaliganze, de Adea, de Vangue,
de Goiame, onde o Nilo nasce, de Damara, de Vaguemedri, de Ambea, de Vagne, de
Tigri Mahon, de Sabaym, de onde foi a rainha de Sabá, de Bernagaes e senhor até a
Núbia, na fronteira do Egito. Esta carta é dirigida ao poderosíssimo e excelentíssimo,
sempre vitorioso rei D. Manuel, que vive no amor de Deus e permanece firme na fé
católica, filho dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo, rei de Portugal e Algarves, amigo dos
cristãos, inimigo, juiz, imperador e dominador dos mouros e dos povos da África e da
Guiné, desde o promontório e da ilha da Lua do Mar Vermelho, da Arábia, da Pérsia e
de Ormuz, da grande Índia e de todos os seus territórios, de todas as ilhas, terras
adjacentes, vencedor dos Mouros e dos fortes pagãos, senhor de fortalezas, dos altos
castelos e muralhas, propagador da fé de Jesus Cristo. Que a paz esteja contigo, Senhor
D. Manuel, que apoiado no auxílio de Deus, elimines os mouros e, com tua armada, teu
exército e teus comandantes, de todas as partes expulses os infiéis como cães. Que a
paz esteja com a rainha, tua esposa, amiga de Jesus Cristo, serva de Maria Virgem, Mãe
do Salvador de todos os mundos; que a paz esteja com teus filhos, agora, como num
jardim viçoso e florido com lírios, a mesa farta preparada; que a paz esteja com vossas
filhas que são adornadas de vestes como se embelezam palácios com tapetes; que a paz
esteja com teus parentes, nascidos da coxa dos santos, pois como dizem as Sagradas
Escrituras, os filhos dos santos são benditos e grandes, fora e dentro da casa. Que a paz
esteja com teus conselheiros, servidores, autoridades e juízes; paz para teus
comandantes de fortalezas, fronteiras e de todas as regiões defendidas; paz para todas as
pessoas, cidadãos e cidades e todos os seus habitantes, exceto mouros e judeus; paz para
211
todas as paróquias e para todos os fiéis a Cristo e a ti. Amém.
§30. Eu soube, Senhor Rei e meu pai, que quando chegou a ti a fama do meu nome
levada por nosso embaixador Mateus, sem demora mandaste chamar um grande número
de bispos, arcebispos e prelados que deram graças ao Cristo Deus por esta embaixada, e
que o próprio Mateus foi recebido com grande honra e alegria, razão pela qual
maravilhosamente alegrei-me e dei igualmente graças a Deus; e isto fez também meu
povo com devotamento. Lamentei, porém, quando soube por eles que o mesmo Mateus
em seu retorno, ao entrar em meus domínios, morreu no mosteiro de Bisayn. Não fora
eu, entretanto, quem o enviara, pois era então uma criança de onze anos quando recebi o
cetro (do reino) após a morte de mau pai, mas a rainha Helena que eu venerava no lugar
de minha mãe e governava por mim. Esse Mateus era um mercador chamado Abraão,
mas adotara um novo nome para viajar mais seguro pelas terras dos mouros. Mesmo
assim em Dabul ele foi reconhecido como cristão e aprisionado pelos mouros. Quando
informou o fato ao comandante dos teus exércitos, este enviou homens fortes que
libertaram o cristão do terrível cárcere, principalmente quando soube que se tratava do
meu mensageiro. Desse modo, após resgatá-lo das mãos dos inimigos, cuidou que fosse
transportado em vossos navios à presença de Vossa Alteza. Mateus, em meu nome, te
apresentou, ó senhor rei, minhas recomendações e em resposta, informou-me que foi
recebido com honras e fartamente agraciado com toda sorte de presentes, o que
igualmente afirmaram vossos emissários, que o grande Capitão de vossa armada Diogo
Lopes de Sequeira nos enviou e que trouxeram a carta que Duarte Galvão deveria trazer,
mas este morrera na ilha de Camarões. Diante da referida carta muito me alegrei e dei
graças a Deus. Então senti grande prazer quando notei o peito de vossos emissários
repleto de cruzes e, perguntando, soube que observavam os preceitos da fé cristã, que
eram os mais verdadeiros. Aquilo me comoveu tão profunda e vivamente, pela rara
devoção inspirada que entendi que só por milagre fora descoberto o caminho para a
Etiópia. Supunham, com efeito, que o capitão da armada, andasse perdido, por muito
tempo, pelos mares da Arábia e por se desesperar com a impossibilidade de encontrar o
nosso porto quisesse voltar à Índia, principalmente por causa das cruéis tempestades do
mar. Mas ao amanhecer, providencialmente, apareceu no céu uma cruz vermelha que
foi saudada pelos marinheiros e quando Deus mostrou que as proas fossem dirigidas
naquela direção, nosso porto foi encontrado, coisa que por mim foi vista como um
milagre. E vimos que certamente o capitão deve ser muito amado pelo Pai, depois que a
212
ele fora concedida tanta felicidade que ninguém antes dele pudera obter de Deus.
§31. Sobre esta recíproca embaixada, já foi outrora predito pelo Profeta no livro da
vida de São Vítor e nos livros dos santos padres, que um grande rei cristão haveria de se
unir a um rei da Etiópia em mútua paz, mas de modo nenhum imaginava eu que tal se
daria em meus dias de vida. Deus, porém, certamente sabia que seria louvado o nome
daquele que confiou a mim a notícia para que eu igualmente a pudesse enviar a ti, meu
pai em Cristo e amigo, para que vivamos em uma só fé, pois de nenhum outro rei cristão
recebi mensageiro ou notícia precisa. Até agora à minha volta estavam os mouros,
filhos de Maomé e os pagãos; os demais são escravos que não conhecem a Deus, há
outros que veneram o fogo e a madeira, uns que adoram o sol e ainda outros que julgam
que as serpentes são deuses. Com esses nunca tive paz; recusam-se a alcançar a verdade
e eu, em vão, lhes pregava a fé. Agora estou realmente em paz com os meus e os teus
inimigos e Deus me deu de presente a tranqüilidade. Na verdade em meus domínios
quando armado contra eles avanço, viram a face e as costas e meus comandantes e
soldados alcançam vitórias sobre eles no campo de batalha. E Deus não volta sua ira
contra mim como diz o Livro dos Salmos e atende aos pedidos daqueles reis que pedem
coisas justas, e isto não se refere à nossa glória. Devemos, pois, dar graças a Deus, a
Ele que vos deu o mundo, e concedeu-vos para sempre a terra dos pagãos e as terras dos
outros, as quais estão desde os limites das vossas até o início da Etiópia. Por isso dou
infinitas graças a Deus e proclamo seu altíssimo poder, como espero que os filhos destes
povos que vierem para o teu domínio haverão de conhecer a verdade da fé sem
nenhuma dúvida. Eis por que dou graças a Deus e espero que vossos filhos, eu e vós
nos alegremos com os felizes êxitos destas ações. E tu deves rogar a Deus
continuamente, até que Ele te dê a graça de apoderar-se do templo santo em Jerusalém
que está em poder dos inimigos de Cristo: mouros, pagãos e hereges. E, se tal fizeres,
estará tua cabeça repleta de toda glória. Dos três emissários que vieram ao meu reino
com o já citado Mateus, um morreu¹, e o grande capitão de tua armada dirigiu-se a
Maçuá para conversar com o rei de Bernagais que é vassalo do meu império e logo me
enviou emissários e soberbos presentes que muito me agradaram, porém o vosso nome
parece-me mais precioso que toda gema ou tesouro. Mas passemos isto e ocupemo-nos
juntos de como poderemos invadir e conquistar as outras terras dos infiéis. Eu,
seguramente, participarei com centenas de milhares de dracmas de ouro e o mesmo
_____________________
1-Duarte Galvão.
213
tanto de milhares de soldados. E igualmente combinaremos em conjunto, amigo, o
material, seja ferro, ou cobre para construir e equipar a esquadra e também a grande
quantidade de provisões; e visto que não é do meu costume e dignidade enviar legados
para pedir a paz, tu primeiro a pediste por mim e com sinceridade para observar as
palavras de Cristo, pois foi escrito: Felizes os pés que trazem a paz. E eu estou
preparado para isso, conforme o costume dos Apóstolos que eram unânimes e de um só
coração.
§32. Ó rei e meu pai, D. Manuel, que Deus único que é o Deus do céu te queira e
conserve a salvo e sempre de uma única substância, sem rejuvenescer nem envelhecer.
Aquele que levou a ti minha mensagem, chamava-se Rodrigo Lima, o primeiro dos
melhores homens da embaixada e com ele Francisco Álvares, que pela probidade da
vida e singular religião e justiça tive em elevadíssima estima, sobretudo porque
respondia com palavras muito verdadeiras e sabiamente quando era interrogado sobre a
fé. Portanto deves não só exaltá-lo e considerá-lo um mestre, mas também incumbi-lo
da tarefa de converter os povos de Maçuá, Dálaca, Zeila e de todas as ilhas do Mar
Vermelho, pois estão nos limites do meu reino. Em sinal de poder, concedi-lhe a cruz e
o bastão; e também que tais coisas sejam a ele concedidas e que seja nomeado bispo
daquelas terras e ilhas, pois ele bem o merece e é digno do ofício de administrar.
Desejo que Deus muito te beneficie para que sempre sejas forte contra os teus inimigos,
obrigando-os a prostrar-se a teus pés. Que Deus prolongue a vida de Vossa Alteza e te
conceda um ótimo lugar no reino dos céus, como desejo para mim mesmo. Ouvi
também, com meus próprios ouvidos muito boas coisas sobre ti e vi com meus próprios
meus olhos o que de modo nenhum acreditava ver, e queira Deus que tudo de bom a
melhor te aconteça e que, onde é o lugar dos santos, lá seja o teu lugar sobre além da
linha da vida. Amém.
§33. Eu, assim como um simples filho, fiz o que ordenastes e mais farei se
sucessivamente vierem legados teus para que nos ajudemos mutuamente. A cada um
dos teus embaixadores que aqui vierem, como já fizeste ir a Maçuá, Dálaca e portos
dentro do estreito do Mar Vermelho, cuidarei para que sejam atendidos rigorosamente
como for o desejo de Vossa Alteza, para que quanto antes nos unamos nos propósitos e
nas ações. Efetivamente, quando tuas tropas aportarem nesta costa, no momento certo
estarei presente com meus exércitos. E, como nesta parte do meu reino, não se vê
nenhum cristão nem igrejas, darei permissão a teus homens para ocupar aquelas terras
214
que estão próximas dos domínios dos mouros; por isso é necessário que teus planos
sejam levados a efeito.
§34. Por agora, envia-me homens sábios e também cinzeladores de imagens de ouro e
de prata, bem como artífices em cobre, ferro, estanho e chumbo e impressores que
produzam livros da Igreja em letras da nossa língua; outros, também, que saibam fazer
do ouro finíssimas folhas e com estas dourar outros metais. Estes serão tratados em
minha corte com toda distinção e se quiserem desistir dos seus trabalhos a eles pagarei
uma grande remuneração. E juro por Deus e por Jesus Cristo, filho de Deus, que
haverei de deixá-los à vontade como bem quiserem. Isto te peço, também, totalmente
confiante, pois de ti só posso esperar virtude e bondade. E sei que sou muito amado por
ti e isto reconheci com mais certeza porque, em consideração a mim, recebeste Mateus
honrosamente e, livremente, o fizeste retornar. E para demonstrar meu empenho em
consegui-lo, tudo pagarei para que isto não te traga constrangimento. Aquilo que um
filho pede ao pai, este não deve negar, e tu sois meu pai e eu sou teu filho; sejamos
igualmente unidos como se juntam em uma parede um tijolinho com outro; assim
combinemos dois em um só coração e no amor de Jesus Cristo que é cabeça do mundo,
e portanto, os que se assemelham a ele são tijolinhos unidos em uma muralha.
Carta IV - Carta do mesmo David, Imperador da Etiópia, a D. João III, Rei de Portugal,
escrita no ano de 1524, traduzida por Paulo Jóvio.
§35. Em nome de Deus Pai onipotente, Criador do céu e da terra e de todas as coisas
feitas, visíveis e invisíveis. Em nome de Deus Filho, Cristo, que é Filho, desígnio e
profeta do Pai. Em nome de Deus do Espírito Santo Paracleto, Deus vivo, igual ao Pai e
ao Filho, que falou pela boca dos profetas, inspirando sobre os Apóstolos, para darem
graças e louvarem a Trindade Perfeita no céu, na terra, no mar e nas alturas sempre.
Amém.
§36. Envio esta carta e mensagem – eu, Incenso da Virgem, que é meu nome de
batismo, que, agora de fato, com o Cetro do Império assumi o nome de David, querido
de Deus, coluna de fé estirpe de Judá, filho de David, filho do rei Salomão de Israel,
filho da coluna de Sião, filho da mulher de Jacó, filho da mão de Maria e filho de Nau
pela carne - ao maior e mais poderoso e altíssimo rei João de Portugal e Algarves, filho
do rei D. Manuel. Que a paz esteja contigo e que a graça de nosso senhor, Jesus Cristo,
esteja sempre contigo. Amém. 215
§37. No tempo em que me foi falado sobre o poder do rei, teu pai, que debelava os
desprezíveis mouros, filhos de Maomé, muitas graças dei ao Pai pela expansão,
grandeza e pelo círculo de preservação da cristandade em vossa pátria. De modo
semelhante, enchi-me de satisfação com a chegada dos embaixadores que me trouxeram
palavras do próprio rei e por intermédio dos quais concretizou-se entre nós um especial
amor, amizade e aliança para juntos erradicarmos e repelirmos os terríveis mouros e
incrédulos pagãos que habitam entre o teu e o meu reino. Estando eu ainda nesta
alegria, soube que teu pai – e meu também – morrera quando daqui partiram meus
emissários. Por isso meu júbilo subitamente converteu-se em tristeza e, nesta dor do
meu coração, também com grande pesar, enlutaram-se comigo os nobres da minha
corte, prelados eclesiásticos e os que vivem em mosteiros, em suma, todos os meus
súditos. Assim igualou-se a satisfação da primeira notícia com a tristeza desta mais
nova.
§38. Senhor, desde o começo do meu reinado até agora, nenhuma embaixada e
nenhum emissário do rei ou do reino de Portugal chegou até mim, senão enquanto viveu
o rei, teu pai, que me enviou seus comandantes e comitivas com clérigos e diáconos que
trouxeram todo o aparato das missas solenes. Por isso imensamente me alegrei e
recebi-os com todas as honras e, pouco depois, deixei-os retornar com honra e em paz.
E depois que chegaram ao porto de mar que existe em meus domínios no Mar
Vermelho, não encontraram o grande capitão da armada que teu pai enviara. Como era
de costume de três em três anos nomear o alto comando da armada, este, na verdade,
não esperou e depois disso me explicou por que não pôde esperar.
§39. Só muito depois, chegou outro recém-nomeado, razão pela qual, os
embaixadores demoraram mais do que requeria a missão.
§40. Agora, porém, envio mensagens minhas pelo irmão de Cistóvão Licanato, cujo
nome de batismo é Zaga-Zabo, certamente por graça do pai que pessoalmente exporá a
ti minhas necessidades e, ao Papa Romano, envio também Francisco Álvares que em
meu nome prestará obediência como é justo.
§41. Ó Senhor Rei, meu irmão, observa atentamente a amizade que teu pai iniciou
entre nós e envia ininterruptamente embaixadores e cartas pois muito as desejo receber
como de um verdadeiro irmão, pois assim é uma vez que ambos somos cristãos. Os
mouros, que são maus, mostram-se sempre unidos em sua seita e agora declaro que não
quero no futuro receber embaixadas do rei do Egito nem igualmente de outros reis que
216
freqüentemente me enviam emissários, mas somente de Vossa Alteza, os quais, o
quanto possível desejo que venham, visto que os reis mouros não me têm na conta de
amigo por causa da diferença de religião, mas fingem amizade para praticarem, em
nossos reinos, o comércio de tudo e mais livremente, donde obtêm grandes lucros.
Levam de nossas terras grande quantidade de ouro do qual são avidíssimos, e como nem
são meus amigos, nenhuma satisfação me dão dos seus proveitos. Mas foi preciso
tolerar isto porque foi há muito estabelecido, desde os mais antigos dos nossos reis. E
se de algum modo não lhes declaro guerra e os derroto completamente é para que eles –
e julgo que devo evitar isto – não invistam contra o sagrado templo em Jerusalém e
destruam o sepulcro de Jesus Cristo, que Deus permitiu que caísse em poder dos
repelentes mouros, assim como arrasaram outros templos no Egito e na Síria. É esta a
razão por que não os ataco e debelo, muito me desgostando disso. Além de que, mais
facilmente me convenço de que isto deve ser feito, quando não tenho nenhum rei cristão
que me ajude e torne alegre meu coração. De modo algum, senhor meu rei, eu posso
alegrar-me com os reis cristãos da Europa quando ouço que eles não constituem um só
coração e fazem guerra entre eles. Vivei todos juntos em total harmonia. Deveríeis
realmente estreitar os laços entre vós. Com certeza, se existisse um rei cristão próximo
de minhas terras, em nenhum momento eu me afastaria dele e sobre isso não sei
claramente o que dizer ou mesmo fazer, já que parece que assim foi determinado por
Deus. Peço, Senhor meu rei, que me envies constantemente teus emissários, pois
quando vejo tuas cartas contemplo também tua face, porque nasce uma amizade maior
entre os que vivem separados e distantes do que entre os que vivem próximos por causa
da falta a que estão sujeitos. Assim aquele que tem tesouros escondidos, quando não os
vê com os olhos, sempre vê com o coração e portanto ama intensamente. Segundo diz
Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho, onde está o teu tesouro, aí está teu coração;
assim meu coração está contigo, pois tu és o meu tesouro e deveis igualmente tornar-me
o teu tesouro e o teu coração juntar-se sinceramente com o meu. Ó Senhor, meu irmão,
guarda esta palavra, pois és prudentíssimo e, segundo ouço, semelhante ao teu pai em
sabedoria. E em reconhecimento disso, logo dei graças a Deus, libertando-me da dor; a
alegria apoderou-se de mim e eu disse Bendito seja o filho sábio, filho do rei D.
Manuel, o de boa memória, que ocupou o trono dos seus reinos. Ó Senhor meu, cuida
de não te esgotares, porque és forte como teu pai, nem demonstrar fraqueza contra os
mouros e pagãos, pois com o auxílio de Deus e ajudado pela virtude que é grande em ti,
217
facilmente os debelarás e destruirás. E não digas que da parte de teu pai os recursos são
exíguos para ti, pois eles são com certeza bastante grandes e Deus sempre te trará a
abundância. Tenho homens, ouro e provisões equivalentes, na quantidade, à areia do
mar e às estrelas do céu. Juntos nós igualmente destruiremos toda a barbárie dos
mouros, e não te peço outra coisa senão homens peritos que ensinem meus soldados a
manter a ordem nos combates. Subiste ao trono, já homem de idade vigorosa. O rei
Salomão recebeu o império aos doze anos, teve muitos recursos e foi mais sábio que o
pai. Eu também quando Nau, meu pai, deixou a vida humana, era uma criança de onze
anos e, subindo ao trono com a ajuda de Deus, consegui maiores recursos e forças que
ele, pois em minha mão encontram-se todos os vizinhos e povos do reino. Assim sendo,
ambos devemos dar graças a Deus por tantas dádivas recebidas. Ouvi-me, senhor e
irmão meu: nesta única palavra proponho-te que me sejam enviados homens doutos e
também artífices que saibam fabricar imagens, livros impressos, espadas e toda sorte de
armas militares. Também arquitetos, carpinteiros e médicos que ensinem a fazer
remédios e a curar feridas. Desejo também os que saibam afinar o ouro em folhas e,
particularmente, sejam hábeis em cinzelar o ouro e a prata. Também os que saibam
cavar dos veios da terra o ouro e a prata e explorar as minas de todos os metais.
§42. Por todos em minha corte serão bem-vindos os que fizerem telhas de chumbo e
ensinarem a fazer telhas de barro, todos os artífices, enfim, me serão úteis,
especialmente os das armas de guerra. Ajuda-me, peço, nestas tarefas como um irmão
a outro irmão e Deus também te ajudará e livrará de todo mal. Que Deus atenda tuas
súplicas e orações como recebeu os sagrados sacrifícios em todos os tempos e nos
primeiros sacrifícios de Abel e Noé quando saiu da arca, o de Abrão quando esteve na
Terra de Madian, o de Isaac quando saiu da cova do juramento, o de Jacó na casa de
Belém, de Moisés no Egito, de Aarão no monte, de Jeson, filho de Nau em Galgala, de
Gedeão na praia, de Sansão quando teve sede na terra seca; do profeta Samuel em
Rhama, de Davi em Nacira, de Salomão na cidade de Gabeão, de Elias no Monte
Carmelo, quando ressuscitou o filho da mulher viúva de Rica sobre o poço, de Josafá no
combate, de Manassés quando pecou e se converteu a Deus, de Daniel na cova dos
leões, dos três companheiros Sidrá, Misac e Abdenago no calor ardente do fogo, de Ana
diante do altar, de Neemiania, que fez muros com Zorobobel, de Matias com seus filhos
sobre a quarta parte do mundo, e o de Esaú sobre a bênção. Assim, senhor, Deus
receberá teu sacrifício e súplicas e te ajudará e será por ti contra todas as perversidades
218
em todos os tempos e a cada dia.
§43. Que a paz esteja convosco, que eu abraço com os braços da santidade e, como
abraço a vós, também a cada um dos vossos conselheiros do santo reino de Portugal,
bem como os Arcebispos, Bispos, Sacerdotes, Diáconos e homens ou mulheres. A graça
de Deus e a bênção da Virgem Maria, Mãe de Deus esteja contigo e com todos. Amém.
§44. Em nome de Deus pai onipotente, criador do céu e da terra, visível e invisível.
Em nome de Deus Filho, Jesus Cristo, que é igual ao Pai desde o princípio do mundo e
é luz da luz de Deus Espírito Santo, do Deus vivo que provém de Deus Pai.
§45. Envio esta carta, eu, o rei cujo nome os leões veneram e com a graça de Deus
sou chamado Athani Tinguil, isto é, Incenso da Virgem, filho do rei Davi, filho do rei
Salomão, filho da mão de Maria, filho de Nau pela carne, filho de São Pedro e São
Paulo pela graça. A paz esteja convosco, justo Senhor, santo padre, poderoso, puro,
sagrado, que sois cabeça de todos os Pontífices e a ninguém temeis, porque ninguém
vos pode maldizer, que sois muito vigilante guardião sobre as almas e amigo dos
peregrinos, mestre consagrado e pregador da fé, inimigo de todas as coisas que ofendem
a consciência, amante dos bons costumes, homem santo que todos louvam e bendizem.
Ó feliz santo padre, eu vos obedeço com reverência, porque sois a paz de todos e
mereceis todas as boas coisas. É assim justo que todos prestem obediência a vós, como
os santos Apóstolos recomendam para com Deus. Na verdade isto é próprio de vós,
assim também recomendam que veneremos os Bispos, Arcebispos e Prelados, do
mesmo modo vos amemos como a um pai, temamos como a um rei e confiemos como
em Deus. Pois eu com o coração sincero vos digo humildemente e com os joelhos
postos no chão que vós santo padre sois meu pai e eu sou vosso filho. Ó santo e
poderosíssimo padre, por que jamais nos enviastes alguém para que melhor soubésseis
da minha vida e saúde? Porque vós sois pastor e eu vossa ovelha e o bom pastor nunca
esquece do seu rebanho, não devo ser considerado excessivamente afastado de vossas
terras ou de vós para que não possam vir a mim vossos mensageiros, como vêm de
remotíssimos reinos da terra. A propósito, o rei D. Manuel de Portugal, vosso filho,
enviou-nos seus emissários e se Deus lá no céu não quisesse chamá-lo a si, longe de
219
dúvida teriam bom êxito aquilo de que então tratávamos. Agora espero muitíssimo
ouvir de Vossa Santidade coisas propícias e salutares, por constantes embaixadores.
§46. Nunca, com efeito, recebi de Vossa Santidade uma única palavra, apenas tenho
ouvido alguma coisa dos nossos, que peregrinam por causa de seus votos. Mas estes
como não se afastam em meu nome nem trazem qualquer mensagem de vós, dizem sem
muita certeza, quando perguntamos, que uma vez cumpridos os votos, iam de Jerusalém
a Roma para visitar a morada dos Apóstolos, pois entendem que estes lugares podem
facilmente podem ser alcançados porque são ocupados por cristãos. E certamente tiro
das palavras deles imenso prazer visto que com tão doce inspiração contemplo a
imagem do vosso santo rosto que me parece semelhante à de um anjo e confesso amar e
venerar como tal. Mas realmente ser-me-ia mais grato e agradável apreciar com toda
devoção tuas próprias palavras em tuas cartas, por isso vos peço agora que me envieis
um emissário vosso com a bênção de Vossa Santidade para alegrar meu coração. E já
que comungamos na fé e na religião isto me parecerá antes de tudo muito desejável e
por isso peço também humildemente que guardeis a minha amizade no fundo do
coração, à semelhança do anel que trazeis no dedo e da corrente de ouro em vossos
ombros, para que minha lembrança nunca se apague do vosso espírito. Com efeito, a
amizade cresce infinitamente com cartas e palavras gentis quando cercada de santa paz
e da qual provém sem dúvida toda a alegria humana. Assim como aquele que
desesperadamente sedento deseja com ânsia a água fresca, como se tem nas sagradas
escrituras, assim meu espírito costuma acolher com incalculável júbilo as mensagens
que são trazidas por mensageiros e por cartas de terras mais distantes. E não só as
ouvirei se vierem da parte de Vossa Santidade, mas também me alegrarei
admiravelmente se forem notícias trazidas de cada um dos reis das terras cristãs. Como
acontece a estes, que combatendo escolhem e obtêm ricos espólios; isto facilmente pode
ser feito agora depois que o rei de Portugal, que a nós já em outros tempos enviou seus
embaixadores com intrépidos cavaleiros, descobriu todo o percurso. Durante o tempo
em que meu pai viveu e mesmo até agora não recebemos de algum outro rei cristão ou
do próprio Papa mensageiros ou pelo menos uma carta. Todavia em nossos arquivos,
do tempo do meu bisavô, conserva-se a memória de a carta que um Papa romano de
nome Eugênio enviou a estas terras quando reinava o filho de Jacó, rei dos reis de toda a
Etiópia, um rei temível. O prefácio desta carta era: “Eugenio, Pontífice Romano, ao
filho querido de nosso rei, da semente de Jacó, rei dos reis em toda a Etiópia, e muito
220
temido. Logo no início da carta ele indicava que seu filho João Paleólogo, que morrera
dois anos antes, tinha chamado o Imperador dos romanos para celebrar o Sagrado
Sínodo e com ele veio José, patriarca¹ de Constantinopla além de grande número de
arcebispos, bispos, e todo gênero de prelados, entre os quais estavam também
procuradores do patriarca de Antióquia, de Alexandria e de Jerusalém, todos que entre
si, com o amor da santa fé e religião firmemente se uniram e, constituída a unidade da
igreja, superaram, não sem o auxílio divino, as dificuldades de tempos antigos que
pareciam errôneas e contrárias à religião. Com a doutrina regularmente consagrada e
estabelecida, o próprio Papa proporcionou a todos especial alegria. Enviamos a Vossa
Santidade este livro do Papa Eugênio que conserváramos íntegro e enviaríamos também
toda ordem e poder da bênção pontifícia se não parecesse um volume muito grande o
conjunto destes dogmas e, pela magnitude, superasse inteiramente o livro de Paulo aos
povos. Os legados que isto nos trouxeram do Pontífice foram Teodoro, Pedro, Tiago e
Jorge, servos de Jesus Cristo. Vós, Santíssimo Padre, faríeis bem se mandásseis folhear
vossos livros, onde escrevemos sobre algumas destas coisas, para que, certamente, seja
encontrada alguma menção. Assim, Santo Padre, se escreverdes alguma coisa para nós,
considerai firmemente que há de ser registrada cuidadosamente em nossos livros para
que sempiterna memória destes fatos seja guardada para nossos descendentes. E
certamente me parece ser feliz aquele cuja memória registrada em cartas é conservada
na cidade santa de Roma, sede dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo. Estes, enfim, são os
senhores do reino dos céus e juízes de todo o universo. E porque assim creio, então
envio esta carta para que alcance a graça junto a Vossa Santidade e a Vosso Santíssimo
Senado e que daí provenha para mim a santa bênção e o aumento de todos os bens.
Com todas as forças peço então a Vossa Santidade que me envieis algumas imagens de
Santos e especialmente da Virgem Maria para que sempre esteja em minha boca e em
minha lembrança o nome de Vossa Santidade e colha de vossas dádivas júbilo
interminável.
§47. Por isso mesmo solicito com insistência que me envieis grandes conhecedores
das Sagradas Escrituras, e ainda artífices que fabriquem imagens e também espadas e
instrumentos bélicos de todo gênero, bem como cinzeladores de ouro e prata,
carpinteiros e principalmente arquitetos que construam casas de pedra e saibam fazer
_____________________
1-Os personagens do Antigo Testamento, habitualmente denominados “patriarcas”, eram chefes de grupos familiares
seminômades que iam de um lugar a outro em busca de comida e água para os seus rebanhos. (B.E.A, 1999, p. 9)
221
telhas de chumbo e cobre com que são protegidos os telhados das casas. Juntamente
com estes serão muito mais caros para nós os que souberem soprar o vidro, fazer música
com arte e habilmente tocar ao órgão, e também tocadores de gaita e flautistas. Gostaria
que estes artífices me fossem enviados especialmente de vossa casa, ou, se forem
poucos os de vossa terra, de outros reis vossos filhos, Vossa Santidade poderá consegui-
los, visto que facilmente obedecem às suas ordens e vontades. Quando eles chegarem
ao meu reino, pelos seus méritos serão tidos em altíssima conta e receberão grande
retribuição de minha liberalidade. E, se algum muito desejar voltar à pátria partirá
abundantemente carregado de presentes quando e conforme lhe agradar e não hei de
reter quem quer que seja obrigado, quando tiver obtido algum proveito da sua atividade.
§48. Agora devemos passar a outros assuntos, e já vos pergunto, Santíssimo Padre,
por que não exortais os reis cristãos, vossos filhos, para que deponham as armas e,
como convém a irmãos, queiram estar em harmonia, já que são vossas ovelhas e vós
mesmo seu pastor? Vossa Santidade, a propósito, conheceis o que recomenda e diz o
Evangelho: “Será totalmente destruído o reino dividido contra si mesmo”. Com efeito,
se os reis em espírito e comunhão de fato concordarem, facilmente derrotarão todos os
maometanos e, num ataque eficaz, destruirão e aniquilarão o falso profeta do sepulcro.
Diante disto fiqueis atento, Santo Padre, para que a boa paz se faça entre eles e que
sejam tocados por um sólido laço de amizade, e exortai-os a ficar a meu lado e trazerem
auxílio, pois nas fronteiras dos meus reinos estou de todos os lados cercado pelos
mouros maometanos, homens péssimos.
§49. Os próprios maometanos, com efeito, valem-se do mútuo auxílio entre eles, e os
reis com outros reis e seus vassalos com outros vassalos firme e constantemente
investem juntos contra nós. Como exemplo bastante, meu vizinho é um mouro a quem
outros mouros fronteiriços fornecem armas, cavalos e demais instrumentos de guerra.
São eles os reis da Índia, da Pérsia, da Arábia e do Egito. Por causa disso, sofro a
tristeza solitária em meu espírito quando percebo a cada dia que os inimigos da religião
cristã desfrutam de paz e fraterna caridade entre si. Por sua vez, os reis cristãos, irmãos
meus, nem um pouco incomodados com estas injúrias, não me trazem qualquer ajuda
como certamente conviria a cristãos enquanto que os horríveis filhos de Maomé
ajudam-se mutuamente. Não seria eu a pedir tropas militares para isso, pois em meu
reino sobram soldados. Peço apenas orações e preces e um lugar de graça junto a Vossa
Santidade e espero ansiosamente os reis meus irmãos. Devo buscar a amizade convosco,
222
ser atendido o quanto antes nestas coisas que acima propus para terror dos mouros, e
que os inimigos do nome cristão, meus vizinhos, percebam que, com especial gosto, os
reis, meus irmãos me ajudam e trazem auxílio, o que certa e comumente diz respeito à
honra, depois que concordamos em uma única religião e fé verdadeira. E havemos de
permanecer neste projeto porque firme e absolutamente será com ele mais útil o
resultado. Que Deus assim satisfaça os vossos desejos em louvor de Jesus Cristo e de
Deus nosso pai, que todos glorificam por todos os séculos. E vós, senhor Padre Santo,
guardai-me com todos os santos de Jesus Cristo que estão em Roma e igualmente sejam
recebidos neste abraço todos os habitantes do meu reino e os que vivem na Etiópia.
Que agradeçamos ao Senhor Jesus Cristo com vosso espírito. Esta carta, com efeito,
Vossa Santidade receberá da mão de meu irmão, D. João, rei de Portugal, filho do
poderosíssimo rei D. Manuel, por intermédio de nosso embaixador Francisco Álvares.
§50. Feliz Santo Padre, que fostes criado por Deus, consagrador dos povos e que
governais a Sé de Pedro. A vós foram dadas as chaves do reino dos céus e tudo aquilo
que ligardes ou desatardes sobre a terra será ligado ou desatado nos céus, como disse
Cristo e assim como Mateus escreveu no Evangelho. Eu, rei, cujo nome os leões
veneram e pela graça de Deus sou chamado Atani Tinguil, isto é, Incenso da Virgem,
que é meu nome de batismo; agora de fato no início do reinado, assumi o nome de Davi,
querido de Deus, coluna de fé, descendente da estirpe de Judá, filho de Davi, filho de
Salomão, filho da coluna de Sion, filho da mulher de Jacó, filho da mão de Maria, filho
de Nau pela carne, Imperador da grande e ilustre Etiópia, dos grandes reinos, domínios
e terras, rei de Xoa, de Cafate, de Fatigar, de Angote, de Baru, de Baaliganze, de Adea,
de Vangue, de Goiame, onde o Nilo nasce, de Damara, de Vagemedri, de Ambea, de
Vagne, de Tigri Mahon, de Sabaim, de onde foi a rainha de Sabá, de Bernagaes e senhor
até a Núbia, na fronteira do Egito. Essas províncias estão todas em meu poder e grande
número de outras grandes e também pequenas que agora de modo nenhum foram
contadas por mim, e não apresentei seus nomes levado como por orgulho e glória vã; na
verdade para que por isso mais e mais o altíssimo Deus seja louvado, o qual, com
especial bênção de tantos dos mais extensos reinos da religião cristã atribuiu o domínio
223
aos reis meus antepassados, mas sem dúvida me fez digno de graça mais evidente entre
os outros reis para que eu servisse continuadamente à religião, visto que me fez senhor
de Adel, inimigo dos mouros e pagãos que adoram ídolos. Envio para beijar os pés de
Vossa Santidade, segundo o costume dos demais reis da fé cristã, meus irmãos, aos
quais não sou inferior nem pela religião, nem pelo poder. Na verdade, em meus reinos
sou coluna de fé e não sou ajudado por auxílios externos, porque só em Deus, que me
sustenta e me guia, ponho minha esperança e minha força, desde o tempo em que o anjo
de Deus falou a Filipe, que ensinasse a fé ao eunuco da poderosa rainha Candace¹, da
Etiópia que peregrinava de Jerusalém para Gaza. Filipe então batizou o eunuco e este
por fim batizou a rainha, com grande parte da família e do seu povo, que nunca
deixaram de ser cristãos por todos os tempos e desde então persistiram fortes na fé.
Meus antepassados na verdade, ajudados apenas pela força divina, propagaram a fé em
seus vastíssimos reinos, o que eu diariamente procuro concluir. Permaneço, pois entre
as extensas fronteiras dos meus reinos como um leão na selva densa, rodeado e cercado
guerreando contra mouros sitiantes e outras nações inimicíssimas da fé cristã que não
querem ouvir a palavra de Deus, nem minhas exortações e eu os persigo, munido da
espada e apoiado apenas no auxílio divino, que nunca me falta, e aos poucos os expulso,
o que diferentemente acontece aos reis cristãos, pois, se estenderem os limites dos seus
reinos, podem facilmente conseguir isso visto que um pode levar auxílio ao outro,
prestar auxílio e serem ajudados com a bênção de Vossa Santidade, a que também tenho
direito, pois estão registradas em meus livros as cartas que, no tempo dos meus
antepassados, o Papa Eugênio enviou com sua bênção ao rei semente de Jacó. Desta
bênção recebida e transmitida das mãos deles às minhas mãos eu usufruo e muito me
alegro. Além do mais tenho em grande veneração o santo templo de Jerusalém ao qual,
incessantemente envio as devidas oferendas por nossos peregrinos, e muito mais
numerosas e abundantes enviaria se os caminhos não vivessem ameaçados por mouros e
infiéis. Além do mais, arrancam de nossos mensageiros os nossos presentes e tesouros
e também não lhes permitem atravessar livremente. Quanto a isso, se os caminhos se
abrissem ser-me-ia possível familiaridade e comércio junto à Igreja romana, como
ocorre com os demais reis cristãos aos quais não sou inferior na religião, e assim como
eles crêem numa única fé verdadeira e numa Igreja única, confesso e creio sinceramente
_____________________
1-Atos dos Apóstolos, João, 8.26-39.
224
na Santíssima Trindade, no Deus único e na virgindade de Maria Nossa Senhora,
preservo e observo os artigos da fé como foram reunidos pelos Apóstolos. Agora o
boníssimo Deus, pela mão do mui poderoso e devoto rei D. Manuel, abriu o caminho
para que nos uníssemos, por intermédio de nossos embaixadores, e juntos na mesma fé,
cristãos com cristãos servíssemos a Deus.
§51. Mas, enquanto seus embaixadores ainda estavam no meu palácio, a morte o
levou, e seu filho, meu irmão D. João sucedeu-o. Assim como pela morte do pai senti
insuportável dor, muito me alegrei desde que o filho feliz subiu ao trono pois, como
espero, reunindo
nossas tropas e forças abriremos caminho por terra e por mar pelos domínios dos
terríveis mouros e com o grande terror levado a eles hão de ser expulsos das suas sedes
e reinos para que, com o caminho calmo e tranqüilo, os cristãos possam viajar com
liberdade e buscar o templo de Jerusalém, e que eu, principalmente, como firmemente
desejo, possa partilhar do divino amor no templo de S. Pedro e S. Paulo. Anseio
muitíssimo também alcançar a sacrossanta bênção do vigário de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e sem dúvida Vossa Santidade sois este vigário. E quando, dos peregrinos, que
vão de nossos reinos a Jerusalém e de lá até Roma – e só por milagre retornam – ouço
muitas coisas sobre Vossa Santidade sinto incrível prazer e alegria. Muito maior,
porém, seria minha alegria se, por um caminho mais curto, meus embaixadores
pudessem mais rapidamente voltar com as notícias. Antes que eu morra, como espero,
hão de conseguir, com a graça de Deus onipotente que vos há de conservar na saúde e
na santidade. Beijo também os santos pés de Vossa Santidade e suplicante peço que me
envieis vossa bênção.
§52. Esta carta Vossa Santidade também receberá pelas mãos de meu irmão D. João,
rei de Portugal, por intermédio do mesmo Francisco Álvares, nosso embaixador.
§53.Damião de Góis: Estas cartas, traduzidas por Paulo Jóvio, juntamos ao nosso
opúsculo para maior conhecimento desta história e nada mudamos nelas (conquanto em
algumas partes necessitassem de mudanças) além de poucas coisas que do idioma árabe
ou abexim foram totalmente mal interpretadas na língua portuguesa mudando-lhes o
sentido. O mesmo Jóvio, no comentário destas cartas, prometeu também verter para o
latim a obra que Francisco Álvares compôs, sobre a situação, os costumes e a religião
dos etíopes, na qual descreve toda sua trajetória. Desse tratado tenho em meu poder um
225
exemplar, que se Jóvio se abstiver da tarefa não me apartarei de realizar a versão,
entretanto se não souber que esta missão me coube por ordem vossa, Santíssimo Padre,
dela não me encarregarei de boa vontade, para me resguardar inteiramente contra os
caluniadores aos quais possa parecer que não foi por zelo da república cristã, mas por
inveja da glória de Jóvio que me obriguei a este trabalho, o qual, com franqueza, não me
julgo pouco instruído para realizar, isto porque depois de concluída minha embaixada
na Alemanha e na Sarmácia no retorno da Bélgica a Lisboa e na presença de meu rei D.
João III, em cuja acolhida experimentei muito de humanidade e generosidade para
comigo, encontrei-me por acaso em entrevista com o legado etíope, venerável pelo
talento e dignidade episcopal e também pela fé, instrução e admirável domínio da língua
caldaica e árabe, suficientemente idôneo, enfim, para que fosse enviado pelo
poderosíssimo imperador da Etiópia à presença dos maiores príncipes em importantes
missões. Seu nome era Zaga-Zabo, com quem depois que entre nós teve início uma
firme e definitiva amizade, acompanhei em conversas e tive variados debates, sobretudo
sobre os costumes e a religião dos cristãos etíopes. Eu desejava, na verdade, conhecer
os detalhes não pelo relato dos peregrinos, mas somente pela boca de um nativo e
pessoalmente.
§54. Entre outras coisas, expus a ele também a carta enviada pelo embaixador
Mateus, a qual eu já há muito apresentara ao rei D. Manuel com artigos que eu (como
foi dito) vertera para a língua latina, e a conselho dele corrigi muitas partes onde o
sentido não era plenamente fiel ou a intenção não fora captada, o que tanto a mim
quanto a Jóvio não raro ele afirmava ter acontecido. Eu já tinha então comigo cartas do
próprio Jóvio que comparamos com muita atenção. Depois, já existindo entre nós a
verdadeira caridade e amizade de Cristo, ousei pedir a ele ampla e legítima narração da
fé e religião dos etíopes e que ela fosse escrita de próprio punho, o que ele atendeu com
grande entusiasmo e imediatamente começou a escrevê-la. Reproduzi seu relato com
toda fidelidade em língua latina como se pode ver do que segue. Com efeito, dei início
imediatamente à tarefa com a consciência de não ignorar que se essas linhas
desaparecessem de minhas mãos por nenhum dos mortais seriam um dia dadas à luz.
Por isso seriam assim organizados e adaptados ao estilo caldaico e etíope para que mal
pudessem ser entendidos por qualquer um senão por mim que, pela muita familiaridade,
já pudera entender todas essas coisas, tanto da boca quanto dos escritos do próprio
embaixador etíope.
226
§55.Zaga-Zabo: Estas são as coisas sobre a fé e a religião que entre nós etíopes são
observadas e executadas.
§56. Cremos em nome da Santíssima Trindade, no Pai, Filho e Espírito Santo, que é
um único Deus, porém com três nomes, única divindade, três faces, única semelhança,
porém união igual de três Pessoas, ou seja, igual em divindade, um só reino, um só
trono, um só juiz, uma só caridade, uma só palavra, um só espírito. Contudo a palavra
do Pai e do Filho é a palavra do Espírito Santo, e o Filho é o mesmo Verbo e o Verbo
está em Deus, no Espírito Santo e em si próprio, sem divisão ou defeito, Filho do Pai e
Filho do mesmo Pai, sem princípio, certamente em primeiro lugar Filho do Pai sem a
mãe. Pois ninguém conheceu o segredo e o mistério do seu nascimento, senão o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. Este filho, no princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus
e Deus era o Verbo. O espírito do Pai é o Espírito Santo, o espírito do Filho é o Espírito
Santo. O Espírito Santo é, portanto, espírito de si mesmo sem aumentar ou diminuir.
Este é na verdade o Espírito Santo, Paracleto, Deus vivo que provém do Pai e do Filho,
que falou pela boca dos profetas e desceu como chama viva sobre os apóstolos no átrio
de Sion. Estes por toda a terra anunciaram e pregaram a palavra do Pai que era a
palavra do próprio Filho. E desde então nem o Pai é o primeiro, ainda que seja pai, nem
o Filho o último, ainda que seja filho e o Espírito Santo nem é o primeiro nem é o
último. Três Pessoas e um só Deus que vê e por ninguém é visto, que por seu único
desígnio criou todas as coisas. Depois o Filho também por sua vontade, pela nossa
salvação e com a permissão do Pai e do Espírito Santo desceu das alturas, encarnou
como Espírito Santo, e nasceu da Virgem Maria, que era ornada com dupla virgindade,
uma espiritual e outra carnal, sem qualquer pecado por parte da mãe que, com grande
milagre, permaneceu virgem depois do parto, bafejada que foi pelo fogo sagrado da
divindade, pariu sem sangue ou dor seu filho Jesus Cristo, que foi homem inocente e
sem pecado, Deus perfeito e Homem perfeito tendo um único aspecto. Cresceu
naturalmente como qualquer criança, ao seio de sua mãe, a Virgem Maria e, quando
completou trinta anos foi batizado no rio Jordão. E, como os demais homens, caminhou
e se cansou, suou, teve fome e sede. Tudo isso sofreu por sua própria vontade e fez
incontáveis milagres. Por sua divindade restituiu a visão aos cegos, curou os coxos,
purificou os leprosos, ressuscitou os mortos. Mais tarde também, por que assim
desejou, foi preso, flagelado e esbofeteado; crucificado, desfaleceu e por fim morreu
pelos nossos pecados e com sua morte venceu a morte e o demônio; com seu vivo
227
sofrimento apagou nossos pecados e levou nossas fraquezas. E com o batismo do seu
sangue, porque a morte dele foi um batismo, batizou os patriarcas e profetas, desceu aos
infernos, onde estava a alma de Adão e de seus filhos, alma do próprio Cristo que vem
de Adão, porque o próprio Cristo recebeu a alma de Adão da Santa Maria Virgem. No
esplendor e poder de sua divindade rompeu com a força da cruz as portas de bronze e o
fogo dos infernos, com cadeias de ferro prendeu Satanás e redimiu Adão e seus filhos.
Todas essas coisas, Cristo fez, por isso era pleno de divindade e a mesma divindade
estava com sua alma e estava também com seu santíssimo corpo, divindade que deu
virtude à cruz. Esta divindade sempre a teve e partilha com o pai na Trindade e
Unidade. Nem mesmo caminhado na terra Cristo careceu por um momento da sua
divindade ou da sua dignidade. Então finalmente foi sepultado e, no terceiro dia, o
mesmo Jesus Cristo, Príncipe da ressurreição, Jesus Cristo dulcíssimo, Rei de Israel,
com grande poder e força ressuscitou. E depois que foi consumado tudo o que os santos
profetas predisseram, subiu aos céus com glória, está sentado à direita do pai e há de vir
com gloria, levando diante da face sua cruz e na mão a espada da justiça, para julgar os
vivos e os mortos, e seu reino não cessará. Creio na santa Igreja católica e apostólica,
creio num só batismo que é a remissão dos pecados, espero a ressurreição dos mortos e
a vida eterna. Amém.¹
§57. Creio em Nossa Senhora, Santa Maria Virgem, tanto no espírito quanto na carne
que como mãe de Deus é a caridade de todos os povos, santa dos santos , Virgem das
virgens, que de todos os modos venero. Creio na santa madeira da cruz, leito de dor de
Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, Cristo que é nossa salvação, por amor de
quem fomos salvos. Ruína, contudo, para os judeus, estupidez para outros povos. Nós
verdadeiramente pregamos e cremos no poder da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
assim como São Paulo, nosso mestre, ensinou. Creio que São Pedro é a pedra da lei,
que é a lei instruída acima dos santos profetas, fundamento e cabeça da igreja católica e
apostólica oriental e ocidental, onde está o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, de cuja
igreja o apóstolo Pedro tem o poder e as chaves do reino dos céus, com as quais pode
fechar e abrir, desligar e ligar. Ele também há de sentar com os outros apóstolos seus
companheiros em um dos doze tronos, com honra e louvor na casa de Nosso Senhor
Jesus Cristo que no dia do juízo há de nos ditar sua sentença, dia que será de júbilo para
_____________________
1-Todo esse parágrafo corresponde, como se pode observar, à oração do Credo. (N. A.)
228
os santos, porém de dor e ranger de dentes para os pecadores, quando serão lançados
nas chamas ardentes do inferno com o diabo, pai de todos eles. Creio que os santos
profetas e apóstolos, mártires e confessores foram verdadeiros imitadores de Cristo que
com o santíssimo anjo de Deus venero e honro e do mesmo modo também abraço e
beijo todos os seus seguidores.
§58. Creio, além disso, que devo fazer a confissão, com minha voz, de todos os meus
pecados a um sacerdote, por cujas preces espero obter de Cristo Nosso Senhor a
salvação de minha alma. Reconheço ainda o Pontífice Romano, primeiramente, como
bispo e pastor das ovelhas de Cristo e todos os patriarcas, cardeais, arcebispos e bispos
dos quais ele é o superior, aos quais, sendo ministros do mesmo Cristo, submeto-me e
obedeço.
§59. Esta é a fé e a lei, minha e do povo da Etiópia, que está sob o domínio do Preste
João; a fé confirmada e o amor de Cristo, estão assim em nós, que mesmo pela morte,
pelo fogo ou pela espada, apoiado no auxílio de Nosso Salvador Jesus Cristo, nunca hei
de a ela renunciar; uma fé que todos levaremos no dia do juízo à presença de Nosso
Senhor Jesus Cristo.
§60. Somando ao já citado será por nós explicada a disciplina, a doutrina e a lei que
os Apóstolos nos livros santos dos Sínodos e Cânones – que denominamos Manda e
Abethilis – deixaram para nos instruir. São estes, com efeito, os oito livros das leis da
Santa Igreja, que todos os Apóstolos reunidos em Jerusalém escreveram e sobre os
quais, em costumeiras conversas com alguns doutores desde que cheguei a Portugal,
nenhum encontrei que deles se lembrasse. São estas, portanto as observações que os
Santos Apóstolos nos prescreveram nestes livros:
§61. Primeiro é preciso jejuar a cada quarta-feira em memória do concílio dos Judeus,
dia em que foi por eles decretado e resolvido que Cristo devia morrer. Também
devemos jejuar toda sexta-feira, dia em que Jesus foi crucificado e morreu pelos nossos
pecados. Nestes dois dias foi recomendado jejuar até o pôr do sol. Nos quarenta dias
da quaresma reuniram-se para jejuar a pão e água. Às sete horas do dia e da noite
devem ocupar-se das coisas divinas. Por estes editos também é dever sagrado celebrar
a quarta-feira e as tardes de sexta-feira, pois foi quando Nosso Senhor Jesus Cristo
expirou na santa cruz. Nos dias de domingo, porém, todos, sem exceção, quiseram que
nos reuníssemos no templo sagrado, na terceira hora do dia desde o nascer do sol para
ler e ouvir os livros dos profetas. E depois fazermos também uma cerimônia para pregar
229
o Santo Evangelho. Além disso, estabeleceram nove datas festivas para serem
celebradas em memória de Cristo, a saber: da Anunciação, da Natividade, da
Circuncisão, da Purificação ou dos Círios, do Batismo, da Transfiguração, do Domingo
de Ramos, até a oitava, da Sexta-feira Santa (como chamamos). Com os feriados da
Ascensão e também Pentecostes, são na verdade dez dias.
§62. E por causa dos preceitos destes livros, todos os dias desde a Páscoa até
Pentecostes, sem nenhuma exceção, não nos alimentamos de carne, e durante os dias até
a oitava Pentecostes, guardamos jejum, isto, evidentemente, para maior veneração e
honra da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Do mesmo modo quiseram que
celebrássemos com toda honra o dia da morte e assunção da Virgem Maria.
§63. Além disso, em cumprimento dos preceitos dos apóstolos, o Prestes João
constituiu, em nome da semente de Jacó, para honra da mesma Santa Virgem a cada
trinta anos, três dias para serem celebrados. Ainda por causa do nascimento de Cristo
Salvador, manda celebrar ao menos um dia em cada mês, sempre no dia vinte e cinco.
Determinou também um dia em cada mês para celebrar São Miguel e por último, por
determinação dos Sínodos dos Apóstolos celebramos o dia do martírio de Santo Estêvão
e de outros mártires.
§64. Também por determinação dos Apóstolos costumamos celebrar dois dias: o
sábado e o domingo, nos quais não nos é permitido fazer qualquer coisa por mínima que
seja. Guardamos o dia de sábado porque foi quando Deus descansou, após concluir a
criação do mundo; por isto quis que este dia fosse chamado santo dos santos. Assim, se
com grande honra este dia não for celebrado parecerá inteiramente contra sua vontade e
desígnio e quem fizer quer perder o céu e a terra além da Sua palavra, sobretudo quando
o próprio Cristo veio não para desfazer a lei, mas para completá-la.
§65. Por isso o guardamos, não para imitar os Judeus, mas por ordem de Nosso
Senhor Jesus Cristo e dos Santos Apóstolos dos quais foi transcrita para nós Cristãos a
graça dos Judeus.
§66. No dia de sábado sempre comemos carne, exceto na quaresma. Isto, contudo,
não é observado no reino de Bernagaes e de Tigre Mahon; por hábito antigo os nativos
destes dois reinos alimentam-se de carne nos dias de sábado e domingo na quaresma.
§67. Por outro lado, celebramos o dia de domingo, como os demais cristãos, em
memória da ressurreição de Cristo. É pelos livros da lei, contudo, e não pelo Evangelho
230
que aprendemos que o sábado deve ser celebrado, mesmo não ignorando que o
Evangelho é o escopo da lei e dos profetas. Cremos que nestes dias as almas dos
devotos nada sofrem no purgatório, repouso que Deus concedeu nestes dias santíssimos
até que daí (depois do cumprimento das penas merecidas pelos pecados cometidos em
vida) se elevem definitivamente. Para diminuir estas penas e abreviar-lhes o tempo de
suplício, cremos que as esmolas dadas em favor dos mortos são úteis a estas almas que
estão no purgatório para cuja remissão o patriarca não concede indulgência; cremos que
ele espera que o estabelecimento da duração das penas, isto só a Deus caiba. O
patriarca também não concede dias de indulgência.
§68. São apenas seis os preceitos que devemos observar pela leitura do Evangelho
que
Cristo assim explicou pela própria boca: “tive fome e me destes de comer, tive sede e
me destes de beber, estava desabrigado e me acolhestes, nu e me cobristes, enfermo e
me visitastes, estava encarcerado e viestes a mim”, únicas palavras que Cristo há de
repetir no dia do juízo, pois, pelo testemunho de Paulo, a lei, que ninguém senão Jesus
Cristo pôde guardar mostrou nossos pecados.
§69. Como também é dito pelo próprio Paulo, todos nascemos em pecado por causa
do erro de nossa mãe Eva e de sua própria maldição. Além disso, o mesmo Paulo disse
que morremos por culpa de Adão e vivemos graças a Cristo que em sua infinita
misericórdia nos deixou estes seis preceitos para que sejamos salvos quando ele vier em
toda a sua grandeza para julgar os vivos e os mortos.
§70. Com estas palavras e preceitos no mesmo dia do juízo enviará a glória eterna
para os bons, e para os maus o fogo e a perpétua condenação. E contamos apenas cinco
pecados mortais (como chamam), certamente isto vem do último capítulo do Apocalipse
onde está dito então “fora os cães, feiticeiros, impudicos, homicidas, servidores de
ídolos e todo aquele que ama e pratica a mentira”. Também ficou determinado pelos
santos Apóstolos nos livros dos Sínodos que aos clérigos é permitido casar-se,
certamente depois que tiverem pelo menos algum conhecimento das coisas divinas.
Depois de casados são recebidos na ordem dos presbíteros para a qual ninguém é
admitido senão depois de três anos: nem filhos bastardos ou ilegítimos são tolerados por
nenhuma razão na santíssima ordem; e somente pelo patriarca as ordens são concedidas.
Contudo nem os bispos nem os clérigos podem tomar outra esposa se a primeira morrer,
a não ser que o patriarca os dispense desta proibição (que algumas vezes é concedido
231
aos mais graduados em vista do bem público), nem ter concubina, salvo se quiserem
abdicar do sacramento porque se o fizerem não podem mais lidar com as coisas divinas.
E isto é tão estritamente observado para que os presbíteros que tomarem esposa em
segundas núpcias não ousem sequer receber nas mãos uma só vela consagrada à Igreja.
Se for descoberto que um bispo ou clérigo tem filho bastardo, fica ele excluído de todas
as ordens sacras, e todos os seus bens, se não tiver prole legítima, retornam ao Preste
João e não ao Patriarca. E que os presbíteros entre nós tenham esposas, recebemos de
Paulo, que prefere que o clérigo e o laico se casem do que vivam abrasados¹. Ele
mesmo também diz que convém que o bispo seja homem de uma única esposa,
irrepreensível, sábio e, do mesmo modo, os diáconos. E também os eclesiásticos, bem
como os seculares, tenham suas esposas de matrimônio legítimo. Os monges,
entretanto, não se casam. E tanto leigos quanto clérigos possuem somente uma esposa e
o casamento não se realiza diante da porta do templo, mas na residência particular dos
padrinhos.
§71. Segundo a constituição dos Santos Apóstolos, temos, por exemplo, que se um
sacerdote for surpreendido em adultério, homicídio, latrocínio ou levantamento de falso
testemunho, seja destituído das ordens sacras e punido como os demais criminosos.
Voltando à determinação dos mesmos Apóstolos, se alguém, eclesiástico ou leigo, tiver
relações com a esposa ou poluir-se durante o sono, por vinte e quatro horas ao deve
entrar na igreja, o que também não é lícito às mulheres menstruadas, senão no sétimo
dia do mênstruo, isto certamente, sem qualquer das roupas que tenha usado durante o
período, e que a mesma esteja bem asseada e purificada de manchas.
§72. Também à mulher que deu à luz menino, não é permitido entrar na Igreja senão
depois de 40 dias; se, ao contrário, teve menina, somente após oitenta dias. Mantemos
este costume por causa da antiga lei e da nova Apostólica, que observamos
cuidadosamente e é em toda parte instituída e prescrita, até onde possível for. Além
disso, foi proibido entre nós que pagãos, cães, ou outros animais quaisquer entrem em
nossas igrejas. Por outro lado, só nos é permitido entrar no templo com os pés
descalçados; não é lícito rir na Igreja, andar à toa ou falar de coisas profanas, nem cuspir
ou escarrar, pois as Igrejas da Etiópia não são semelhantes à daquela terra onde o povo
de Israel comeu o cordeiro pascoal, ao fugir do Egito, quando Deus os mandou comer
_____________________
1-Cor. 1 (7.1-9)
232
usando sandálias e cintos, por causa da impureza da terra. Mas são semelhantes ao
Monte Sinai, onde o Senhor falou a Moises, dizendo: Moisés, Moisés, tira tuas sandálias
pois a terra que teus pés pisam é santa. E este Monte Sinai é o pai das nossas igrejas, do
qual receberam sua origem assim como os Apóstolos receberam dos Profetas e o Novo
Testamento do Velho. A partir de então nem a sacerdote, nem a leigo, ou a outra pessoa
de qualquer condição é permitido cuspir desde a manhã até o pôr do sol, se tiver
recebido a venerável Eucaristia; e se tal fizer é punido com severo castigo.
§73. Também em memória do batismo de Cristo, a cada ano todos nos batizamos na
Epifania do Senhor, o que fazemos não para alcançar a salvação, mas por amor, louvor e
glória do Nosso Salvador. E nem festejamos nenhum outro dia mais alegremente e
repleto de jogos, brincadeiras e cerimônias, pois neste primeiro dia manifestamente
apareceu a Santíssima Trindade quando Nosso Senhor Jesus Cristo foi batizado no rio
Jordão e o Espírito Santo em forma de pomba desceu sobre sua cabeça e disse uma voz
vinda do céu: “Este é meu filho amado no qual depositei minha benevolência”. O
Espírito Santo que apareceu como uma pomba branca, com o rosto e a figura do pai e do
filho mostrou-se em uma só divindade. E de igual modo Cristo foi visto pelos santos
profetas em muitas formas e semelhanças: primeiro como um cordeiro branco, para a
salvação de Isaac, filho de Abraão, e assim o chamou Jacó, Israel e Jacó, e seu filho
Judá de leão, a quem atribuiu autoridade sobre os outros irmãos, dizendo: “ subiste, meu
filho, até a presa, deitaste repousando como um leão, e como uma leoa., quem o
levantará?”. Manifestou-se também a Moisés no monte Sinai em forma de chama
ardente, mostrou-se ao profeta São Daniel, semelhante a uma pedra, apareceu
igualmente ao filho de Ezequiel como homem e a Isaías em forma de criança.
Manifestou-se ainda ao rei Davi e a Gedeão no orvalho sobre o velo. Além destas
formas, foi visto de muitas outras pelos santos Profetas. Ainda que parecesse de tão
diferentes aspectos, sempre exibiu a semelhança do Pai e do Espírito Santo. E Deus
também quando criou o mundo disse: “Que o homem seja feito à minha imagem e
semelhança”; e fez Adão à sua imagem e semelhança. Por isso dizemos que o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são três faces de uma única semelhança e divindade.
§74. Também praticamos, desde o tempo da rainha de Sabá a circuncisão, que
mantemos até hoje. Essa rainha chamava-se Makeda e cultuava ídolos como era
costume de seus antepassados. Como chegou a seus ouvidos a fama da sabedoria de
Salomão, enviou a Jerusalém um varão prudente para que bem informado de tudo, mais
233
seguro respondesse sobre a sapiência do rei. No retorno daquele e com os fatos
esclarecidos, ela se preparou imediatamente para ir a Jerusalém. Lá chegando, além de
muito ter aprendido com Salomão, conheceu a Lei e os profetas e retornando à pátria
(depois que lhe foi dada permissão), pariu um filho que concebera do rei e ao qual
chamou Meilech; a própria rainha educou-o na Etiópia e o manteve junto a si até os
vinte anos. Enviou-o depois a Salomão, seu pai, para que dele adquirisse conhecimento
e sabedoria e por carta suplicava ao rei que criasse e consagrasse seu filho Meilech rei
da Etiópia diante da Arca da Aliança do testamento do Senhor, e que mulheres não mais
tivessem direito de reinar na Etiópia como até então era costume, mas que os homens
herdassem o trono em linha direta de sucessão.
§75. Quando chegou a Jerusalém, Meilech facilmente obteve do pai o que a mãe
pedira e em lugar de Meilech passou a chamar-se Davi que depois de devidamente
instruído na lei e em outras ciências, Salomão decidiu reenviar à mãe, isto certamente
com as maiores honrarias e todo o aparato régio. E para completar com mais
generosidade, deu-lhe uma comitiva formada de nobres e filhos dos principais homens
que deveriam servi-lo, conforme a tradição. Além disso, resolveu enviar com ele
Azarias, príncipe dos sacerdotes, filho de Sadoch, também príncipe, o qual quando
soube convenceu Davi a pedir permissão a seu pai permissão para que realizasse um
sacrifício pelo sucesso da viagem diante da Arca da Aliança¹ do Senhor. Recebendo
autorização do rei Azarias imediatamente tratou de serrar secretamente algumas tábuas
para imitar as da arca, e depois de prontas preparou-se para o sacrifício no qual
furtivamente e com arte admirável arrebatou as verdadeiras tábuas e as substituiu pelas
falsas que levara consigo; somente Deus e ele souberam.
§76. Esta narrativa entre nós é considerada santíssima e muito estimada como aparece
na história do próprio rei Davi, que é agradabilíssima de ler. O livro da referida história
é da mesma espessura de todas as epístolas de Paulo.
§77. Ademais quando Davi já chegava às fronteiras da Etiópia, Azarias entrou em sua
tenda e a ele revelou o que sempre mantivera em segredo: que com ele certamente
estavam as tábuas da Aliança do Senhor. Assim que ouviu aquelas palavras, Davi
_____________________
1-A '''Arca''' é a primeira construção mencionada no livro do Êxodo. Sua construção é orientada por Moisés, que por
sua vez recebera instruções divinas quanto à forma e tamanho do objeto. Na Arca estavam guardadas as duas tábuas
da lei, a vara de Aarão, e um vaso do maná. Estas três coisas representavam a aliança do Deus Javé com o povo de
Israel. Para judeus e cristãos a Arca não era só uma representação, mas era a própria presença de Deus. Dentro da
Arca havia as tábuas com os Dez Mandamentos escritos por Deus, um pote com o maná e o cajado de Arão, que
floresceu. (Êx. 25.10-16 e Ex. 37.1-5).
234
correu até a tenda onde Azarias tinha as tábuas da Arca da Aliança e aí com enorme
alegria, a exemplo do avô Davi, diante da arca na qual estavam as tábuas, começou a
dançar. Pelo que viram e compreenderam, todos os seus com o igual júbilo celebraram
sua imensa alegria.
§78. Tendo percorrido grande parte da Etiópia, chegou finalmente ao reino de sua
mãe, que sem demora entregou-lhe o governo de todas as províncias e colocou em seus
ombros toda a responsabilidade da administração do reino. Desde este tempo até hoje,
decorridos já quase dois mil e seiscentos anos, o império da Etiópia é sempre
transmitido em linha direta de um varão a outro e desde então conservamos a lei do
Senhor e a circuncisão como já foi dito. E conservam-se também deste mesmo tempo
os ministérios que Salomão ordenou a seu filho Davi para governar sua corte, naquela
ordem e nas famílias em que então estavam. Nem o próprio imperador tem direito de
escolher de outra estirpe os ministérios reais.
§79. Ademais, por determinação e lei da mesma Rainha Maqueda, as mulheres
também são circuncidadas; a razão para isto vem de que assim como os homens têm
prepúcio, do mesmo modo as mulheres trazem nas genitais certa carne glandulosa que
chamam ninfa, apropriada para receber o sinal da circuncisão. Faz-se tanto no homem
como na mulher no oitavo dia, e depois da circuncisão, os meninos são batizados no
quadragésimo dia e as meninas no octogésimo, se nenhuma doença ocorrer que torne
necessária a antecipação. E se forem batizadas antes do tempo determinado as crianças
não poderão receber o leite da mãe, mas somente de uma ama-de-leite até que aquela
seja devidamente purificada. A água em que são batizados é consagrada e abençoada
para exorcismos, e no mesmo dia em que as crianças recebem o venerável corpo do
Senhor na forma de um pequeno pão.
§80. Praticamente antes de todos os outros cristãos nós recebemos o batismo, pelo
eunuco da rainha Candace da Etiópia, cujo nome era Indich assim figura nos Atos dos
Apóstoslos, e até hoje o mantemos juntamente com a circuncisão (que já então se
praticava como tínhamos dito antes) santa e cristãmente e, com a ajuda de Deus para
sempre conservaremos.
§81. Não praticamos ou admitimos seja o que for além do que está na lei, nos
Profetas, no Evangelho e nos livros dos Sínodos dos Apóstolos. E se outra coisa além
disso aceitamos, são observadas entretanto as que pareçam voltar-se para a ordem e a
paz da Igreja, sem qualquer relação com o pecado. Porque a nossa circuncisão não é
235
imunda, mas lei e graça que foi concedida por Deus a nosso pai Abrãao, que a recebeu
como um sinal, não para que fossem salvos ele ou seus filhos em virtude da circuncisão,
mas para que estes se distinguissem das demais nações.
§82. E preservamos singularmente o que intimamente se manifesta como símbolo da
circuncisão sem dúvida para que estejamos circuncidados (purificados) de coração. Não
nos vangloriamos por causa da circuncisão, nem também nos julgamos mais nobres que
os demais cristãos, ou mais aceitos por Deus, que, segundo Paulo, não escolhe pessoas.
Este também nos mostrou que somos salvos, não pela circuncisão, mas pela fé, pois
nada disso tem valor para Jesus Cristo a não ser uma criatura renovada¹. Paulo, com
efeito, não pregou a destruição da lei e sim o seu estabelecimento, pois ele também foi
circuncidado e circuncidou Timóteo – da semente de Benjamim, nascido de mãe hebréia
e de pai pagão – logo que este se tornou cristão, sabendo que Deus justifica tanto a
circuncisão quanto o prepúcio pela fé. E como ele mesmo diz tudo foi feito para todos,
para que todos fossem salvos². Judeu como os judeus, para ganhá-los, a estes que
estavam abaixo da lei, fez como se ele próprio abaixo dela estivesse, mesmo não
estando, para arrebanhar os que de fato estavam. Para os que não reconheciam a lei,
parecia igualmente fora dela, como se não estivesse na lei de Deus, mas na de Cristo e
assim atrair os que não tinham a lei. Fez-se enfermo, para converter os enfermos e para
provar que alcançaremos a salvação não pela circuncisão, mas pela fé.
§83. Assim, quando pregou aos hebreus, tal como hebreu proferiu vários sermões
dizendo: “Em muitos lugares e de muitos modos outrora Deus falou a nossos pais,
mostrando-lhes no livro dos Profetas e pelos próprios Profetas que Cristo viria da
descendência de Davi, pela carne, e depois predisse que Ele estaria com nossos pais em
suas tendas no deserto e os levaria à terra prometida pela mão de Josué”. Além disso,
Paulo também confirma que Cristo foi o Príncipe dos sacerdotes e que entrou na nova
tenda porque é o Santo dos Santos e pelo sacrifício do Seu corpo e de Seu sangue
abolira o sangue dos bodes e dos touros pelo qual nenhum dos imoladores pudera
justificar-se. E assim de muitos modos falou também aos judeus que Ele permite ser
adorado pelos seus, com muitas cerimônias na santa e incorrupta fé.
§84. Aquelas crianças que, por sua vez, ouvimos aqui serem chamadas pagãs pela
Igreja Romana, entre nós são consideradas semicristãs. Os que morrem sem batismo
_____________________
1-Rom. (3.21-30)
2-Rom. (1.16-17).
236
devem ser chamados semicristãos visto que nasceram filhos do sangue dos pais
consagrado pelo batismo, pelo espírito santo e pelo sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e por estes três testemunhos todos são considerados cristãos. Afinal, segundo
João, em sua primeira Canônica, são três os que dão testemunho na terra: o espírito, a
água e o sangue, e como diz também o Evangelho: “A boa árvore dá bons frutos e a
má os frutos maus”. E é por isso que os filhos dos cristãos não são como os filhos dos
pagãos, dos judeus e dos mouros, que são árvores estéreis, sem qualquer fruto. Os
cristãos, por outro, lado são eleitos no ventre de suas mães como o santo profeta
Jeremias e São João Batista. Sobretudo os filhos de mulheres cristãs são eleitos e
consagrados pela comunhão do corpo e do sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois
quando as mulheres grávidas recebem o venerável corpo de Nosso Salvador, o filho
nutrindo-se dele torna-se igualmente consagrado. Assim como um feto no útero da
mãe abate-se ou alegra-se conforme os sentimentos da mãe, é também do que alimenta a
mãe que ele se alimenta. E como o próprio Senhor diz em Seu santo Evangelho “aquele
que comer do meu corpo e beber do meu sangue viverá na eternidade.” E continuando:
“se alguém provar do meu corpo e beber do meu sangue estará comigo”. Por isso
Paulo, o doutor dos povos ensina: “O homem infiel foi justificado pela mulher fiel e a
mulher infiel foi santificada pelo homem fiel”¹, de outro modo vossos filhos seriam
imundos, ora porém são santos, porque sendo assim, para que o filho da mãe infiel seja
santificado na fidelidade do pai, muito mais sagrados devem ser os que nasceram de pai
e mãe fiéis. Portanto muito mais pio será chamar as crianças antes que sejam batizadas
de semicristãos que de pagãos. Isto também os Apóstolos disseram em seus livros dos
Sínodos: “Todos os que têm fé e não receberam o batismo, com justiça podem dizer-se
semicristãos”. E dizem também nos citados livros: “Aquele que, sendo judeu, mouro,
ou pagão quisesse abraçar a fé, não deveria ser logo admitido, mas quiseram antes que
ele viesse às portas do templo e aí ouvisse as pregações e a palavra de Cristo Salvador,
para que conheça o jugo da lei antes de ser impelido para a fé, como quem foi
arrebatado. Assim, quando tal fizer, poderá ser chamado de semicristão, ainda que não
esteja batizado”; como bem ensina o Evangelho “aquele que crer e for batizado será
salvo, mas o que não crer será condenado”.
§85. É também nosso costume que as mulheres grávidas sempre se confessem antes
_____________________
1-Cor. 1 (7.14)
237
do parto e recebam a comunhão. As que não o fazem e os maridos se a isto não as
obrigam são considerados ambos ímpios e maus cristãos.
§86. Além disso, deve-se saber que a confirmação, a crisma e a extrema unção com
óleo não são considerados como sacramento entre nós, nem está em uso como vejo
ser feito aqui, por costume da Igreja romana. Também pela lei de Moisés e
determinação dos Apóstolos não nos é permitido comer alimentos imundos conforme
toda observação da lei e das Escrituras, das quais consideramos oitenta e um livros tanto
do Velho, quanto do Novo Testamento, sendo quarenta e seis do Velho e trinta e cinco
do Novo. Temos expresso o número de cada um dos livros por contagem dos próprios
Apóstolos, segundo os quais não é lícito acrescentar ou retirar coisa nenhuma, mesmo
que um anjo viesse do céu tentasse nos persuadir. E quem ousasse tal fazer seria
considerado excomungado. Por isso nem o patriarca, nem nossos bispos por si ou em
Conselhos julgam ou pensam que podem alterar quaisquer leis com as quais possa
alguém ser obrigado ao pecado mortal.
§87. Nos mesmos livros dos Sínodos ficou determinado pelos santos Apóstolos que
nos cabe reconhecer nossos pecados e que devemos receber do confessor a penitência
conforme a gravidade de cada um; e também como se deve orar, jejuar e praticar a
caridade. Além do mais costumamos fazê-lo regularmente, porque logo depois de ter
cometido um pecado corremos aos pés do confessor; e todos assim procedem, tanto
mulheres quanto homens, qualquer que seja sua condição. E todas as vezes que
confessamos, comungamos e isto certamente sob uma e outra espécie no pão
fermentado de trigo, porque se nos confessarmos diariamente, em cada dia recebemos o
venerável sacramento. E isto é habitual tanto entre os clérigos como entre os leigos.
§88. Já o sacramento da Eucaristia não é ministrado entre nós na igreja como se faz
aqui entre os europeus, e nem os doentes recebem a comunhão, senão durante a
convalescença. Também isto é igual para todos; tanto clérigos como leigos
acostumaram-se a recebê-la pelo menos duas vezes por semana, e todos os que assim o
quiserem devem dirigir-se ao templo, pois a ninguém é dada a comunhão fora da igreja;
nem mesmo ao patriarca tal é concedido, ou ao próprio Preste João. Recorremos
sempre ao mesmo confessor e não aceitamos outro, a menos que ele esteja ausente, e só
até o seu regresso.
§89. E pelo poder da Igreja, que não é reservado, em qualquer caso, nem aos bispos
nem ao patriarca, os confessores nos dão a absolvição de todos os pecados, por mais
238
graves que sejam. Além disso, os presbíteros não podem ouvir confissão daquele a
quem se confessam.
§90. Entre nós, presbíteros, monges e todos os ministros da Igreja vivem do seu
trabalho, pois a igreja não tem nem recebe qualquer dízimo; tem, contudo, rendimentos
e campos que os próprios clérigos e monges aram e cultivam com seu esforço ou ajuda
alheia. E também não recebem esmolas, a não ser as que espontaneamente são
oferecidas nos templos por exéquias ou outras obras pias, nem lhes é permitido
mendigar de porta em porta nem extorquir dos pobres qualquer quantia.
§91. Em nossas igrejas celebramos por dia apenas uma missa, que temos em lugar do
sacrifício, e por costume antigo não é permitido celebrar muitas. Nenhum pagamento
ou presente recebemos pela missa, ministério em que não se expõe o sacramento da
Eucaristia como vejo ser feito aqui. E na ocasião, sacerdotes, diáconos, subdiáconos e
todos os presentes recebem a comunhão.
§92. Nenhuma missa celebramos pela remissão das almas, mas os mortos são
sepultados em lugar certo com cruzes e orações e sobre eles dizemos, entre outros
sermões, principalmente o início do Evangelho de João. No dia seguinte distribuímos
esmolas em favor do sepultado, e o mesmo fazemos depois em certos dias nos quais
também oferecemos banquetes fúnebres por todas as almas.
§93. Falamos sobre nossa fé e religião. Depois enfim, que cheguei a Portugal, porque
tivemos intermináveis conversas e debates com tantos doutores, sobretudo com nossos
mestres Rodrigo Ortiz, bispo da ilha de São Tomé e deão da capela do rei, e Pedro
Margalho sobre a escolha dos alimentos, não será inconveniente dizer algo a respeito.
Deve-se saber primeiramente que observamos a escolha dos alimentos pelo Velho
Testamento, escolha que foi determinada pelo Verbo de Deus, porque o Verbo depois
nasceu da Virgem Maria e caminhou e viveu com seus Apóstolos. Este Verbo de Deus
sempre teve viva, integra e inviolada a palavra e a linguagem. Nem o que outrora por
ser imundo proibiu de comer, disse depois, em outro lugar do seu Evangelho para ser
comido. De fato o Evangelho diz: “O que entra pela boca do homem não mancha, mas
sim o que dela provém”. Mas não disse por isso que se eliminasse o que antes
determinara, mas que se refutassem as superstições dos Judeus que criticavam os
Apóstolos porque comiam o pão com as mãos sujas. Mas os Apóstolos por este tempo
nunca se serviram de coisas imundas, enquanto viveram com Nosso Senhor Jesus
Cristo, nem provaram daquilo que fora proibido na Lei, e nenhum deles a transgrediu.
239
Nem naqueles tempos que se seguiram à paixão do Senhor, quando começaram a pregar
o Evangelho, por nenhum dos escritos que conservamos conosco pode-se provar que
eles comeram ou abateram alimentos imundos.
§94. Entretanto é verdade que Paulo disse: “Tudo o que vem ao mercado, comei, nada
perguntando em vista da consciência”. Depois: “Se algum dos infiéis vos convidar para
a ceia e quiserdes ir, tudo o que vos for oferecido, comei, nada interrogando à
consciência”. Ao contrário: “Se alguém acaso disser ‘isto foi imolado aos ídolos’, não
comais, em vista de quem avisou e da consciência”.¹
§95. Certamente Paulo disse todas estas coisas para agradar àqueles que ainda não
estavam firmes na fé, porque entre eles e os judeus surgiam várias disputas e contendas
que para apaziguar, mais tolerante procurava ser com eles, que ainda não estavam
suficientemente confirmados como cristãos. Assim, consentia, ainda que o fizesse não
porque quisesse violar a lei, mas abrindo o caminha para atrair mais fiéis, com o
relaxamento das cerimônias.
§96. O mesmo Apóstolo também diz : “Aquele que come não ofenda o que não come
e quem não come não julgue o que come, pois o que come, come em honra do Senhor e
o que não come também honra o Senhor não comendo”.
§97. Por isso é indigno repreender com tanta hostilidade e rigor os peregrinos
cristãos, porque eu mesmo fui repreendido por esta e por outras coisas que representam
muito pouco diante da verdadeira fé. Muito mais sensato seria acolher no abraço e na
caridade de Cristo os homens cristãos, sejam gregos, armênios, etíopes ou de qualquer
das sete igrejas de cristãos e, sem ultrajes, permitir que eles vivam e convivam entre
outros irmãos cristãos, pois todos somos filhos do batismo e comungamos da verdadeira
fé.
§98. Não existe razão para discriminar tão severamente em função das cerimônias;
que cada um mantenha as suas sem ódio ou perseguição dos outros e nem deve por isso
ser excluído do comércio da Igreja se, estando em outras províncias no estrangeiro,
conservar suas práticas familiares.²
§99. Além disso temos nos Atos dos Apóstolos que Pedro viu o céu aberto e uma
certa arca descer, assim como um grande manto de linho, com os quatro elementos ser
lançada do céu à terra, e nesta arca estavam todos os quadrúpedes, serpentes da terra e
_____________________
1-Cor. 1 (8.4 e 8.10)
2-Cor. 1 (6.1-11)
240
pássaros do céu. Uma voz então lhe falou: “Levanta Pedro, mata e come”. Pedro a ela
respondeu: “Que vá para longe, Senhor, pois nunca comi do que é vulgar ou imundo”.
Mas a voz novamente: “O que Deus purificou tu não chamarás de vulgar”. E depois de
acontecer por três vezes, seguidas imediatamente a arca foi recolhida ao céu. Depois
desta manifestação o Espírito o enviou a Cesaréia, à presença de Cornélio, homem pio,
e temente a Deus. Enquanto Pedro falava junto a ele, o Espírito Santo desceu, sobre
todos aqueles que ouviam a palavra de Deus. Depois de recebido, Pedro mandou que
toda a família de Cornélio fosse batizada. E quando os demais Apóstolos e irmãos que
estavam na Judéia souberam que Cornélio fora batizado por Pedro, começaram a
reclamar porque a palavra de Deus e o batismo tinham sido dados aos pagãos, dizendo:
“Por que te juntaste aos homens que têm prepúcio e comeste com eles?”
§100. Mas depois que Pedro os tranqüilizou, expondo-lhes toda aquela visão, deram
graças a Deus, dizendo: “Portanto também aos pagãos deu a penitência para a vida”. E
lembraram-se da palavra de Deus que subindo ao céu disse: “Ide pelo mundo e pregai o
Evangelho a toda criatura; aquele que crer e for batizado será salvo, o que não crer, este
será condenado”. Então os Apóstolos começaram a pregar o Evangelho por toda a terra
e a toda criatura em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e por toda parte a voz
deles ecoou.
§101. Sobre a visão na qual apareciam animais limpos e animais imundos explicamos
na Etiópia que os animais limpos seriam o povo de Israel e os imundos os povos pagãos.
Assim os pagãos são chamados imundos porque são adoradores de ídolos e se prestam
às obras do demônio, que são imundas.
§102. Por que, porém aquela voz disse: “Pedro, mata”, entre nós é deste modo
interpretado: “Pedro, batiza”. E quando disse: “Pedro, come”, interpretamos como se
fosse dito: “Ensina e prega a fé e a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo ao povo de Israel e
aos pagãos”. Por isso é certíssimo que não encontremos em nenhuma parte das
Escrituras que Pedro ou os outros Apóstolos matassem animais imundos ou os
comessem depois desta visão. Desde então, deve-se saber que quando a escritura fala
sobre o pão, não se deve pensar em alimento para nutrir o corpo, mas em pregações e
explicações da doutrina de Cristo e das Escrituras.
§103. Seria conveniente que todos os doutores sem dúvida ensinassem, sobre aquele
manto que foi mostrado a Pedro, coisas elevadas e sublimes e não as insignificantes que
em nada pareçam interessar à nossa salvação, e também não procurar indícios de que
241
seria justo e lícito comermos animais imundos quando é a última coisa que se pode
deduzir das Escrituras. .
§104. Aquilo que os mesmos Apóstolos prescreveram em seus livros dos Sínodos, que
não comêssemos animais enforcados, estrangulados, ou retalhados, nem roídos por
outros bichos e nem o sangue deles, pois o Senhor ama a pureza e a frugalidade e odeia
a gula e a imundície. O Senhor também ama muito os que se abstêm de carne e muito
mais o que jejuam a pão, água e ervas, como fez João Batista, o eremita, do outro lado
do Jordão, que sempre se alimentou de ervas. E o eremita São Paulo que viveu no
deserto por oitenta anos, sempre jejuando. E Santo Antônio e São Macário e muitos
filhos espirituais seus que nunca provaram carne.
§105. É por isso, meus irmãos, que não nos convém desdenhar nem maltratar o nosso
próximo, pois Jacó diz: “Aquele que rouba do irmão ou o julga, viola e julga a própria
lei”.
§106. Paulo também ensina que é melhor que cada qual viva contente com suas
tradições que discutindo sobre a lei com seu irmão cristão. Ao contrário, não saber mais
do que convém, mas saber pela temperança, pois Deus nos concedeu a medida da fé de
cada um. Portanto, é feio discutir com seu irmão sobre a fé ou a escolha dos alimentos,
pois o alimento não nos aproxima de Deus, principalmente porque o próprio Apóstolo
Paulo diz: Nada ganharemos se comermos, nem perderemos se não comermos¹. Por
isso busquemos as coisas elevadas e o alimento celeste, deixando de lado estas inúteis e
vazias disputas.
§107. Todas essas coisas que escrevi sobre as tradições não foi para debater ou
contestar, mas para que, até onde for possível, protegesse e defendesse os meus contra
as severíssimas críticas de muitos que nenhuma reverência prestaram, nem ao
poderosíssimo Preste João, nem a nós, seus súditos, e difamaram com insultos e nos
chamaram de judeus e maometanos, porque praticamos a circuncisão e guardamos o
sábado como os judeus. Além disso, jejuamos até o pôr-do-sol, como os maometanos,
se acharmos que isso convém. Também criticam severamente o casamento dos
sacerdotes que é lícito entre nós como o dos leigos. Também não deixam de nos criticar
porque desde o primeiro batismo, todo ano somos rebatizados, e além dos homens
também as mulheres sofrem a circuncisão, costume que nem entre os judeus se
verificou. Enfim porque queremos observar santamente a escolha dos alimentos e
_____________________
1-Cor. 1 (8.8)
242
porque chamamos semicristãs as crianças que antes do batismo costumam ser chamadas
de pagãs.
§108. Por causa destas difamações fui constrangido a dizer tais coisas para limpar os
nossos de calúnias desta natureza e para que os doutores da sagrada Igreja Romana se
tornassem mais afáveis para conosco, pois desde que cheguei a Portugal há sete anos fui
proibido por eles (não sei até que ponto por lealdade à fé) de receber a comunhão e (o
que direi não sem dor e lágrimas) sou considerado entre meus irmãos cristãos como
pagão e anátema. Sobre tais fatos, que avalie aquele que dá vida a tudo e a cuja justiça
tudo confio.
§109. Eu com certeza não fui enviado pelo meu poderosíssimo senhor, imperador da
Etiópia, ao Pontífice Romano e ao Sereníssimo rei de Portugal, D. João para debater e
discutir rivalidades mas para estabelecer amizade e parceria; não só para aumentar ou
diminuir as tradições humanas, mas para cautelosamente indagar sobre os erros de
Arrio, príncipe dos hereges, e saber se os cristãos europeus se juntariam aos nossos para
derrotar as opiniões deste homem. Por causa dos erros dele, no Pontificado de Júlio
trezentos e dezoito bispos reuniram-se no Concílio de Nicéia. Vim também para saber
se entre os cristãos europeus se observa o que os Apóstolos determinam em seu livro
dos Sínodos, a saber, que em todos os anos se realizem dois concílios para estabelecer
regras sobre questões de fé. Para o primeiro destes propuseram o dia de Pentecostes e
para o segundo, o dia dez de outubro. Depois, também para saber como acordaríamos
entre nós sobre os erros de Macedônio, em razão dos quais o Papa Damaso reuniu em
Constantinopla um Concílio de cento e cinqüenta bispos. Também sobre os erros de
Nestorio que levou o Papa Celestino a reunir em Concílio duzentos Bispos. Por último
para que eu soubesse também sobre o quarto e grande Concílio de Calcedônia no qual,
por causa dos erros de Eutíquio, reuniram-se seiscentos e trinta e dois bispos no tempo
do Pontificado de São Leão. Deste Concílio resultaram várias discussões, mas nada foi
realizado para a concórdia da Igreja e todos se retiraram, cada um calando sua opinião
sobre este questão mal resolvida.
§110. Meu poderosíssimo Senhor imperador da Etiópia tem em seu poder os livros
destes Sínodos e de outros que mais tarde foram celebrados, e sobre esta inveja que o
adversário da verdade, o demônio disseminou entre os cristãos, meu senhor lamenta
profundamente, bem como todos os seus súditos fiéis a Cristo.
§111. Desde os primórdios da nossa Igreja, os nossos reconheceram o Pontífice
243
Romano como primeiro bispo, a quem ainda hoje obedecemos na qualidade de vigário
de Cristo, em cuja sede freqüentemente estaríamos se não nos atrapalhassem as grandes
distâncias e os reinos interpostos repletos de maometanos que nos impedem a passagem,
e assim nada, pois, se leva a efeito, em vista dos enormes perigos.
§112. Todavia o prudentíssimo e muito poderoso Rei D. Manuel de feliz memória, que
primeiro, não sem a bênção de Deus, descobriu com suas navegações o caminho para as
Índias Orientais, trouxe grande esperança, de que isto há de ser mais proveitoso no
futuro.
§113. Este rei depois de ter ultrapassado o Oceano dominou o Mar Vermelho com sua
armada, em nada se desviando da grandeza de sua missão na qual também iria difundir a
fé de Cristo. E, como foi aberto o caminho para proveito da nossa amizade, que já está
consolidada, cada povo com a ajuda do outro pode como esperamos em pouco tempo
unindo a armada de Portugal com nossos exércitos expulsar todos os maometanos, e
demais pagãos de todo o mar da Eritréia, e de toda a Arábia, Pérsia e Índia.
§114. Igualmente confiamos que isso há de acontecer, com a paz estabelecida entre
todos os cristãos da Europa, para que os inimigos da cruz também sejam afastados de
todas as regiões do Mediterrâneo, do Ponto e de outras províncias, e, conforme as
palavras de Cristo haja, sobre a face da terra: “Uma só lei, um só rebanho e um só
pastor”.
§115. Temos disto dois oráculos, que não diferem entre si: um da profecia de São
Ficator e outro do Santo Sínodo, eremita nascido nos recônditos confins do Egito. E
desde que meu poderosíssimo Senhor recebeu os embaixadores do sereníssimo e
prudentíssimo rei D. Manuel a fé dos oráculos parece acelerar os acontecimentos.
Certamente nosso príncipe há muito cogita nada mais do que preparar-se para que os
maometanos, com seus conselhos e exércitos sejam banidos da face da terra.
§116. Por estas razões e por outras que expus em presença do sereníssimo rei D. João,
filho de D. Manuel, fui enviado pelo meu poderosíssimo senhor, e não para debates
frívolos e inúteis. E oxalá nosso grande Deus conduza para bom termo os planos e o
esforço do nosso governante em razão dos quais fui enviado, para sua glória. Amém.
§117. Depois de todas estas explicações falarei de passagem e brevemente alguma
coisa sobre a condição de nosso patriarca e de nosso imperador.
§118. Em primeiro lugar, deve-se saber que o nosso patriarca é escolhido em rito
solene com a aprovação dos nossos monges de Jerusalém, que lá habitam junto ao
244
sepulcro de Nosso Senhor, e isso deste modo: Quando morre o Patriarca, imediatamente
o nosso Imperador Prestes João envia a Jerusalém um mensageiro destinado aos monges
que ali vivem, como já foi dito, os quais, depois de receberem a mensagem e os
presentes que nosso Imperador oferece ao Santo Sepulcro, escolhem sem demora o
novo Patriarca com os votos da maioria. Mas não é permitido eleger outro que não seja
de Alexandria e íntegro nos costumes. Depois de escolhido selam seus votos e
entregam, em mãos, ao legado, que para isso veio, o qual segue imediatamente para o
Cairo, onde, ao chegar, apresenta o resultado da eleição ao Patriarca de Alexandria que
sempre ali tem sua sede. Conhecido o homem destinado a tantas honras, que foi
escolhido entre os alexandrinos, envia-o à Etiópia em companhia do legado que por
antiga tradição deve ser um monge da ordem de Santo Antônio eremita. O emissário
parte imediatamente com o novo Patriarca, que na Etiópia é acolhido por todos com
grande alegria e muitas honras. Nesta empresa às vezes se passa um ano ou dois, e
enquanto isso o Preste João administra os proventos do próprio Patriarca ao seu agrado.
§119. Em princípio é função do Patriarca conceder as ordens sacras, que ninguém além
dele pode dar ou receber. Porém, a ninguém confere bispado, ou outro beneficio da
Igreja; isto só cabe ao Preste João, que tudo dispensa ao seu arbítrio. E com a morte do
Patriarca, faz-se herdeiro da totalidade de seus bens e proventos que são de grande
monta.
§120. Além disso, existe a responsabilidade do Patriarca pela excomunhão dos
contumazes, o que é tão rigorosamente observado que se aplica ao prevaricador a pena
perpétua de privação de alimento (até a morte). Indulgências, não as dá nem concede;
nem os sacramentos da Igreja são (por ele) vedados a alguém, em virtude de qualquer
delito, por maior que seja, a não ser em caso de homicídio. O nome Patriarca em nossa
língua diz-se abunna. Por sua vez, aquele que hoje ocupa esse lugar, ao batizar-se
recebeu o nome de Marcos, homem de cem anos ou mais.
§121. Para nós o ano começa nas calendas de setembro, que cai sempre no dia da
vigília de João Batista. Os demais dias de festa, como Natal, Domingo de Páscoa e
outros na seqüência são celebrados entre nós na mesma época que na Igreja romana.
Também não deve ser esquecido o dia em que o Apóstolo São Felipe secretamente
pregou entre nós o Evangelho e a fé de Cristo Salvador.
§122. Se for do agrado perguntar a respeito do sobrenome do nosso Imperador, saiba
que ele sempre será chamado Preste João e não Presbítero João como aqui se diz
245
equivocadamente por aí. Escreve-se também em nossa língua com estes caracteres: (ver
original em latim, cap. 5), cujo significado é João Belul, isto é Preste ou Alto João e na
língua caldaica assim se escreve: (ver no texto original, cap. 5), que é João Encoe, e
traduzindo também tem o significado de Preste João ou Alto. Ele não deve ser
chamado, como equivocadamente Mateus indicou, Imperador dos abexins, mas dos
etíopes. Mateus, como era Armênio, não poderia conhecer profundamente as nossas
coisas, sobretudo as que dizem respeito à fé. Por isso muitas das coisas que expôs
diante do prudentíssimo rei D. Manuel de feliz memória, muito pouco nos diz respeito.
Se assim fez não foi porque quisesse mentir, pois era um homem bom, mas porque nas
coisas da nossa religião não era muito esclarecido.
§123. A sucessão dos reinos e também do império não é transmitida ao filho mais
velho, mas àquele que o pai indicar. E este que agora ocupa o trono é o terceiro em
ordem de nascimento, porque o mereceu por uma pia reverência. Quando os filhos
foram convidados pelo pai moribundo a sentar-se no trono real, o que os demais
fizeram, só ele se recusou a fazê-lo. “De modo nenhum – disse – dou-me o direito de
sentar no trono do meu senhor”. Observando esta atitude respeitosa, o pai – também
chamado Davi – transmitiu a ele os reinos e o império.
§124. Os domínios do seu império, tanto de cristãos como de pagãos são de extensão
admirável, nos quais existem muitos reis e vice-reis, barões, condes, chefes militares e
muitos nobres, todos muito obedientes às suas ordens. Em seus domínios não circula
qualquer moeda, a não ser a estrangeira. Mas o ouro e a prata são dados e recebidos em
grande quantidade. São muitas as nossas fortalezas e cidades, mas não tais como as que
vemos aqui em Portugal. Isto vem em grande parte do fato de o Preste João sempre ter
vivido em acampamentos e tendas, costume este que foi resgatado para que a nobreza
contínua e permanentemente se exercitasse nas coisas militares. E isto não parece
superado: estamos cercados de todos os lados por inimigos da nossa fé, com os quais
freqüentemente lutamos, sempre conquistando vitórias, que atribuímos ao auxílio
divino.
§125. Já o direito escrito não é usado entre nós nem as querelas dos litigantes são
resolvidas por manuais, mas verbalmente. Isto impede que as questões se arrastem
longamente pela avareza dos juízes e advogados.
§126. Também parece digno de nota que Mateus não tenha sido enviado ao invencível
e poderosíssimo rei D. Manuel de feliz memória pelo nosso Imperador Davi, que foi
246
avô deste Davi de quem falamos, mas pela rainha Helena, sua esposa, conhecida como
Mão de Maria, que na ocasião, devido à tenra idade deste Davi, comandava os reinos,
mulher sem dúvida muito prudente e santa.
§127. Esta mesma Helena escreveu dois livros em língua caldaica, pois era muito
instruída, um dos quais Enzera Chebaa, isto é, Louvai a Deus em música, no qual fala
com competência sobre a Trindade e sobre a virgindade de Maria, Mãe de Cristo. O
outro chamado Chedale Chaay, ou seja, Raio de Sol, em que constam dissertações
impressionantes sobre a lei de Deus.
§128. Todas estas coisas sobre a fé, a religião e a situação de nossa pátria eu, Zaga-
Zabo, que significa Graça do Pai, bispo, sacerdote e Bugana Rás, soldado e vice-rei da
província chamada Bugana, não pude recusar o teu pedido, meu querido filhinho em
Cristo, Damião, nem seria permitido negar a qualquer homem que o solicitasse, por
duas razões, das quais a principal é que, conforme o mandato que tenho do meu
poderosíssimo senhor Preste João, Imperador da Etiópia, a todos que me interrogassem
sobre a fé, a religião e o nosso país eu nada mantivesse oculto, mas expusesse a verdade
das coisas por escrito ou verbalmente, com toda fidelidade. A segunda porque eu
julgasse que o valor da missão estava em tornar conhecidos nossos costumes,
cerimônias e princípios e a situação dos nossos territórios. A ninguém até hoje escrevi
ou expus em palavras estas coisas, não porque quisesse abster-me do trabalho, mas
porque nenhum cristão desde que cheguei a Portugal desejou conhecê-las por meu
intermédio. Disto não pude nem posso me admirar. Mas como julgo que tu, com
inúmeras razões, estás muito desejoso de saber sobre nós, rogo pelas chagas e pela cruz
de Cristo que esta confissão da nossa fé e religião convertas em língua latina para que
permitas a todos os pios cristãos europeus conhecer nossa religião e a integridade dos
nossos costumes. E se continuando em tuas peregrinações te pedirem que chegue a
Roma, então fala em meu nome ao Pontífice, aos veneráveis cardeais, patriarcas,
arcebispos, bispos e demais bons seguidores de Cristo, saúda-os com um beijo de paz
por Jesus Cristo e pede ao mesmo Pontífice que me mande de volta Francisco Álvarez,
instruído com carta sua e responda à do meu poderosíssimo Senhor, Imperador da
Etiópia com a qual eu enfim retorne à minha pátria e reveja meu lar. De fato aqui fui
retido por um tempo excessivo, para que antes da minha morte - que já me bate à porta,
tão velho estou - concluísse a missão desempenhada nesta embaixada, e depois
dedicasse a Deus e consagrasse às coisas divinas o restante da minha vida.
247
§129. Enfim peço-te que se alguma coisa em nossos escritos não estiver bem composto
ou ordenado, tu mesmo a ajuste à frase latina, mas de maneira que nada do sentido
modifiques. E por fim que durante a versão pesquises cuidadosamente o Velho e o
Novo Testamento para que saibas de que partes extraí meus conhecimentos e
transcrevas com mais segurança. Porque se tudo não estiver tão corretamente tratado,
quanto alguém curioso ou escrupuloso exija, isto deverá ser atribuído ao cansaço e à
falta dos livros caldaicos que não tenho em meu poder. Os que tive, certamente por
iniqüidade da sorte, perdi na viagem. Eis por que desprovido do auxílio de todos os
livros nada pude relatar senão o que a memória recente trazia, mas tudo com absoluta
fidelidade.
§130. Adeus, meu diletíssimo filhinho em Cristo.
Lisboa, 24 de abril de 1534.
§131. Depois de tudo escrito, veio à minha mente aquela passagem em que digo que
Cristo desceu aos Infernos pela alma de Adão e pela alma do próprio Cristo, que o
mesmo Cristo recebera da Santa Maria Virgem, sua mãe. Coisa da qual temos
testemunho muito verdadeiro nos livros que chamamos de doutrina, que Nosso Senhor
Jesus Cristo transmitiu aos Apóstolos, nos quais se encontram estas palavras que são
chamadas de mistérios das doutrinas. Pela autoridade e testemunho deles, todos sem
qualquer hesitação nos mantemos nesta lei. Eu, contudo, depois que cheguei a Portugal,
descobri que os teólogos traduziam de modo diferente, contra a opinião de todos nós,
que é tão certa, que não afirmamos somente isto, mas também que as almas de todos os
homens descendem de Adão e que nossa carne vem da semente da carne de Adão, assim
como também a nossa alma, tal como lâmpada acesa na alma de Adão, retirou dele sua
origem e natureza. Disto fica evidente que todos nós somos da semente da carne e da
alma de Adão.
§132.Damião de Góis: Com estes caracteres tudo o que acima estava escrito vai
assinado embaixo pela própria mão do orador.
248
7. A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA NA FIDES.
Para um outro trabalho, talvez, fica a sugestão (ou a promessa) do estudo dessas
cartas – embora apenas uma seja de fato da autoria de Damião de Góis – principalmente
se levarmos em conta a inconstância (ou inconsistência?) das avaliações acerca do seu
latim pelos estudiosos de sua obra. O estilo do humanista português confrontado com o
do humanista italiano, de certo muito nos poderia revelar.
250
7.1-Heterogeneidade enunciativa e polifonia discursiva.
Nosso corpus, ou seja, a Fides, Religio Moresque Aethiopum foi elaborado com
dupla finalidade: primeiro, de obter junto à Sé romana o reconhecimento da comunidade
etíope como cristã católica, apesar dos sinais evidentes de heterodoxia do seu
catolicismo. Nesse aspecto o texto, como um todo, aproxima-se do discurso retórico
com finalidade persuasiva e como tal pode ser considerado, a partir de elementos que o
constituem. Entretanto é o seu estatuto de discurso polifônico que será aqui avaliado, e a
segunda finalidade confirma essa sua característica, pois o texto, por iniciativa de seus
locutores e enunciadores, expõe um diálogo em que são “ouvidas” diversas vozes que
polemizam entre si, completam-se ou respondem umas às outras sobre questões
relativas à fé.
_____________________
1-“Todo discurso define sua identidade em relação ao outro. Isso que dizer que o discurso apresenta uma
heterogeneidade constitutiva.” (MAINGUENEAU, 1987, p. 81)
2-Trata-se, grosso modo, da interseção entre campos discursivos distintos por meio de uma formação discursiva, que
pode, por vezes, associar-se “a certos trajetos interdiscursivos e não a outros”. (Idem, p. 82)
3-CHAVES, Castelo Branco. Prefácio a Marcel. Bataillon, 1935, p. 10.
251
Quanto ao aspecto formal – índice de sua heterogeneidade – o livro está
organizado em sete partes distintas: uma carta de Damião de Góis ao Papa Paulo III, a
quem a obra é dedicada, uma carta da regente Helena, avó do futuro Imperador da
Etiópia, seguida de outra do novo Imperador, ambas dirigidas a D. Manuel I, uma carta
do Imperador da Etiópia a D. João III, duas outras do mesmo Imperador dirigidas ao
Papa e, finalmente, o relato do bispo Zaga-Zabo, descrevendo, a pedido do amigo
Damião, a religião e os costumes do seu povo.
252
7.3-O latim e outros signos.
_____________________
1-“Lefèvre foi teólogo e professor de filosofia, tradutor da Bíblia e de Aristóteles, preceptor dos filhos de Francisco I
em 1526. Suspeito de luteranismo, precisou refugiar-se em Estrasburgo.” (RODRIGUES, 2002, p. 78)
2-“Ângelo Policiano foi poeta e mestre na Universidade de Florença; foi o primeiro a oferecer-se, no reinado de D.
João II para compor um poema épico sobre as Grandes Navegações. Budé foi um grande helenista e procurou
introduzir na França a cultura humanística surgida na Renascença italiana. Soube conciliar a sabedoria grega e a
revelação cristã, mas não foi um reformista.” (RODRIGUES, 2002, p. 79)
3-Uma solução moderna e adotada com base em certos critérios, é a classificação dos discursos segundo a “tipologia
textual”. Ver a esse respeito ORLANDI, 2006, p.224-237; PINTO, 2002, p.60, e MANGUENEAU, 1993, p. 16 e 35.
254
O locutor não é necessariamente o produtor físico do enunciado e, sob esse
aspecto, não se confunde com o autor efetivo de um discurso. Na Fides, seu autor
empírico, Damião de Góis, é também, predominantemente, o locutor L propriamente
dito. Mas como a teoria polifônica prevê o estabelecimento de uma hierarquia de
locutores, toda vez que Paulo Jóvio participa da enunciação na qualidade de tradutor –
apresentado pelo autor efetivo – das cartas provenientes da Etiópia, que identificamos
com a numeração III, IV, V e VI, assume também o estatuto de locutor L, ficando o
autor assimilado a λ.
_____________________
1-“Polifonia é apenas um outro termo para dialogismo e para o conceito das diferentes vozes instauradas num
discurso, como a intertextualidade.” (BARROS & FIORIN, 2003, p.22).
2-Texto e discurso são palavras aqui utilizadas indistintamente para se referir à obra em estudo. (N. A.)
255
Primeiramente vamos proceder à identificação dos locutores L. Como a
heterogeneidade mostrada compreende as formas marcadas e as formas não-
marcadas, é com base nessa distinção que serão classificados locutores e enunciadores.
Nas formas marcadas fica explícita a presença de outra voz e pode-se dar por meio de
uma ruptura sintática (discurso direto), ou sem ela (discurso indireto). Nas formas não-
marcadas, a fronteira entre a fala do locutor e do outro (que chamaremos de enunciador-
E) não é nítida e a heterogeneidade não pode ser recuperada no nível enunciativo, pois
depende de índices vários – é a voz que se manifesta na forma de pontos-de-vista, que
podem ou não coincidir com a ideologia do locutor, qualquer que seja L.
256
Nesse mesmo parágrafo, um enunciador-E1 manifesta-se em dois momentos
diferentes: na ressalva “se isso não puder ser feito de outro modo”, e na explicação “tu
que até já começaste com grande esperança para nós”; ambos são fenômenos da
heterogeneidade mostrada do tipo não-marcada e a eles voltaremos mais à frente.
Aqui
também podemos registrar a presença de outro dêitico, TU, que corresponde ao
coenunciador de L1, assimilado a Paulo III.
7.5-Intertextualidade.
3 ...et in primis sacrificia Abel, et Noe, quando fuit in arca: et illud Abraham,
quando fuit in terra Madian: et illud de Isaac, quando discessit a fossa iuramenti: et
illud Iacob, in domo Bethleem: et Moysis in Aegypto, et Aaron in monte, et Ieson filii
Nau in Galgala, et Gedeonis supra plagam, et Sampsonis, quando sitim habuit in terra
sicca: et Samuelis in Rhama prophetae, et Dauid Nacira, et Salomonis in ciuitate
Gebeon, et Heliae in monte Carmelo, quando suscitauit filium uiduae mulieris e Richa
supra puteum: et Iosaphat in praelio: et Manasse quando peccauit, et ad Deum est
conuersus: et Danielis in spelunca leonum, et trium sociorum Sydrach, Misach,
Abdenago in camino ignis: Annae ante altare et Neemieniae, qui fecit muros cum
258
Zorobobel, et Matathiae cum filiis supra quartam partem mundi, et Esau, supra
benedictionem.
4. ...apud Dominum nostrum Iesum Christum, qui in die iudicii sententiam est de
nobis laturus. Quae dies gaudii quidem Sanctis: doloris autem, et stridoris dentium,
peccatoribus erit, cum deiicientur in ardentes flammas inferni...
“...na casa de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no dia do juízo há de nos ditar sua
sentença, dia que será de júbilo para os Santos, porém de dor e ranger de dentes para
os pecadores, quando serão lançados nas chamas do inferno...” (§57, enunciação de L3)
Nos três excertos acima, é patente a referência ao texto bíblico, mas o recorte
não é tão nítido para caracterizar a citação – embora muitas vezes também não seja
nítida a fronteira entre citação e alusão –, por essa razão dizemos que a intertextualidade
se apresenta sob a forma de alusão, fenômeno da heterogeneidade mostrada na qual,
independente de ruptura sintática, existe uma seqüência de palavras que nos permite
perceber a mesma voz de enunciador-E, que se manifesta no excerto 1 e o mesmo
discurso originário.
259
O texto da Fides é perpassado em sua quase totalidade por essa “voz” suprema,
porque o fim a que se destina e a qualidade dos seus locutores e interlocutores têm no
discurso religioso uma via de acesso eficaz.
6. Surrexit iam Regina Saba, et uocat nos in iudicium, errata nostra reprehendens.
7. ...ut ex nostra enarratione apparebit, sub tua disciplina uiuere cupit [...] et
posteritas intelligat, quo tempore, sub quoque pontifice haec gesta fuere.
“...como será visto em nosso relato, deseja viver sob tua doutrina [....] e a
posteridade saiba em que tempo e sob que pontífice aconteceram esses fatos”.
(§8, carta I)
“E Deus não volta contra mim a sua ira, como diz o Livro dos Salmos...”
(§31, carta III)
“...foi escrito: Felizes os pés que trazem a paz.” (§31, carta III)
12. ...sicut Dominus Iesus Christus in Euangelio dicit, ubi thesaurus tuus, ibi cor
tuum...
“Segundo diz Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho, onde está o teu
tesouro, aí está teu coração...” (§41, carta IV)
14. ...Christus ore proprio ita explanauit: Esuriui, et dedistis mihi manducare:
Sitiui, et dedistis mihi bibere: Hospes eram, et collegistis me: Nudus, et operuistis me:
Infirmus, et uisitastis me: In carcere eram, et uenistis ad me...
15. Ipso Paulo quoque teste, omnes ex peccato nati sumus, propter Euae matris
nostrae transgressionem, et propter eius maledictionem.
“Como também é dito pelo próprio Paulo, todos nascemos em pecado por
causa do erro de nossa mãe Eva e de sua própria maldição.” (§69, enunciação de
L3)
262
16. ...ex ultimo Apocalypsis capite, ubi dicitur, Foris autem canes, et uenefici, et
impudici, et homicidae, et Idolis seruientes, et omnis qui amat et facit mendacium.
“...do último capítulo do Apocalipse onde está dito então ‘fora os cães,
feiticeiros, impudicos, homicidas, servidores de ídolos e todo aquele que ama e
pratica a mentira’.” (§70, enunciação de L3)
17. ...ex Paulo accepimus, qui mauult clericum et laicum nubere quam uri.
“Ele mesmo também diz que convém que o bispo seja homem de uma
única esposa, irrepreensível e sóbrio.” (§70, enunciação de L3)
19. Rursus ex eorum Apostolorum instituto, si aliquis siue Ecclesiasticus siue laicus
cum uxore congressus fuerit, uel in somnis pollutus fuerit, spacio quatuor et uiginti
horarum templum non ingreditur. Nec id quoque menstruatis mulieribus licet, nisi
septimo quoque die a menstruo, id quidem omnibus uestibus ablatis, quibus tempore
menstrui utebatur, ipsaque bene lota, atque a fordibus repurgata.
20. ...ubi Dominus locutus est Mosi dicens, Moses Moses, exue calciamenta tua,
quoniam terra, quam pedes tui premunt, sancta est.
263
“...onde o Senhor falou a Moisés, dizendo: Moisés, Moisés, tira tuas
sandálias pois a terra que teus pés pisam é santa.” (§72, enunciação de L3)
21. ...et uox de coelo dixerit, Hic est filius meus dilectus, in quo mihi complacuit.
“...e disse uma voz vinda do céu: ‘Este é meu filho amado no qual
depositei minha graça’.” (§73, enunciação de L3)
22. ...cui super alios fratres potestatem tribuit dicens, Ad praedam fili mi ascendisti,
requiescens occubuisti ut leo, et quase leaena, quis suscitabit eum?
23. Et cum Deus etiam creasset mundum, dixit, Faciamus hominem ad imaginem et
similitudinem nostra...
“E Deus quando criou o mundo disse: ‘Que o homem seja feito à Minha
imagem e semelhança...’.” (§73, enunciação de L3)
24. ...nec Deo acceptiores esse, apud quem nulla est acceptio personarum, teste
Paulo: qui etiam ostendit nos saluos fieri non propter circuncisionem, sed propter
fidem:
“nem mais aceitos por Deus, que, segundo Paulo, não escolhe pessoas.
Este também nos mostrou que somos salvos, não pela circuncisão, mas pela
fé...”. (§82, enunciação de L3)
25. Et ut ipsemet ait, factus est omnibus omnia, ut omnes faceret saluos.
“E, como ele mesmo (Paulo) diz, tudo foi feito para todos, para que todos fossem
salvos.” (§82, enunciação de L3)
264
26. ...uariis sermonibus locutus est, dicens, multifariae, multisque modis olim Deus
locutus est patribus nostris in Prophetis, ostendens eis ex opsis prophetis, Christum ex
semine Davuidis secundum carnem: deinde Christum eis predicauit cum patribus
nostris in tentoriis, in deserto fuisse, eosque in terram promissionis introduxisse per
manum Ipsuae.
“...Paulo também confirma que Cristo foi o Príncipe dos sacerdotes e que
entrou na nova tenda porque é o Santo dos Santos e pelo sacrifício do Seu corpo
e de Seu sangue abolira o sangue dos bodes e dos touros pelo qual nenhum dos
imoladores pudera justificar-se.” (§83, enunciação de L3)
28. ...et sic multis modis locutus est Iudaeis, multis quoque ritibus, sancta, et
incorrupta fide se a suis coli patitur.
“E assim de muitos modos falou aos judeus que Ele também permite ser
adorado pelos seus, com muitas cerimônias na santa e incorrupta fé.” (§83,
enunciação de L3)
29. Quoniam tres sunt, qui testimonium dant in terra, Spiritus, Aqua, et Sanguis,
teste Ioanne in sua prima Canonica, etiam ut Euangelium dicit, Bona arbor fert bonos
fructus: mala uero arbor, malos.
265
“Afinal, segundo João em sua primeira Canônica, são três os que dão
testemunho na terra: o espírito, a água e o sangue, e como diz também o
Evangelho: ‘A boa árvore dá bons frutos e a má os frutos maus’.” (§84,
enunciação de L3)
30. Et ut ipse Dominus ait in suo sancto Euangelio, si quis comederit corpus meum,
et bibere sanguinem meum, non gustabit mortem in aeternum.
31. ...dixerunt Apostoli in suis Synodorum libris, Omnes qui habent fidem, et non
acceperunt baptismum, merito possunt dici semichristiani.
“...os apóstolos disseram em seus livros dos Sínodos: ‘Todos os que têm
fé e não receberam o batismo, com justiça podem dizer-se semicristãos’.” (§84,
enunciação de L3)
32. ...Euangelium docet, Qui crediderit, et baptizatus fuerit, saluus erit: qui uero
non crediderit, condemnabitur.
“...o Evangelho ensina: ‘Aquele que crer e for batizado será salvo, mas o
que não crer será condenado’.” (§84, enunciação de L3)
33. Id uero quod in Euangelio ait, Quod per os intrat, hominem non coinquinare,
sed ea quae ex ore procedunt:
“De fato o Evangelho diz: ‘O que entra pela boca não mancha o homem,
mas o que dela provém’.” (§93, enunciação de L3)
34. Verum tamen est Paulum dicere, Omne quod in macellum uenit, manducate,
nihil interrogantes propter conscientiam. Postea , Si quis uos uocat infidelium ad
coenam, et uultis ire, omne quod uobis apponetur, manducate, nihil
interrogantes propter conscientiam. Rursus, Si quis autem dixerit, hoc immolatum est
266
Idolis, nolite manducare, propter eum, qui indicauit et propter conscientiam.
35. Idem Apostolus quoque; ait, Is qui manducat, non manducantem non spernat, et
qui non manducat, manducantem non iudicet: quoniam is qui manducat, domino
manducat; et qui non manducat, domino non manducat.
“O mesmo apóstolo também diz:: ‘Aquele que come não ofenda o que
não come e quem não come não julgue o que come, pois o que come, come em
honra do Senhor, e o que não come, também honra o Senhor não comendo’.”
(§96, enunciação de L3) L3
36. Id praeterea quod in Actis Apostolorum habemus, nempe quo pacto Petrus uidit
coelum apertum, et uas descendere quoddam, ueluti linteum magnum, quotuor initiis
submitti de coelo in terram, in quo erant omnia quadrupedia, et serpentia terrae, et
uolotilia coeli.
267
“Além disso temos nos Atos dos Apóstolos que Pedro viu o céu aberto e
uma certa arca descer, assim como um grande manto de linho com os quatro
elementos ser lançada do céu à terra, e nesta arca estavam todos os quadrúpedes,
serpentes da terra e pássaros do céu.” (§99, enunciação de L3)
37. Cui uox dixit, Surge Petre, occide, et manduca: cui Petrus, absit Domine,
quoniam nunquam manducaui omne commune, aut immundum. Cui uox iterum quod
Deus purificauit, tu commune tu commune ne dixeris.
“Uma voz então lhe falou: ‘Levanta, Pedro, mata e come’. Pedro a ela
respondeu: ‘Que vá para longe, Senhor, pois nunca comi do que é vulgar ou
Em Discurso direto, temos o diálogo entre Pedro e Deus, que nos excertos acima
manifestam-se na qualidade de LS.
38. ...ut aiunt, christus et mater eius Maria praedixere, quod scilicet
postremis
temporibus oriturus esset e regionibus Francicis Rex quispiam, qui aboliturus esset
uniuersum Barbarorum et Maurorum genus...
39. De hac autem mutua legatione antiquitus praedictum fuit a Propheta in libro de
uita et passione sancti Victoris, et in libris sanctorum Patrum, quod Rex magnus
Christianus, cum Rege aethiopiae esset cum mutua pace conunenturus.
269
“Sobre esta recíproca embaixada, já foi outrora predito pelo Profeta no
livro da vida e paixão de São Vítor e nos livros dos santos padres que um grande
rei cristão haveria de se unir a um rei da Etiópia em mútua paz...” (§31, carta III)
40. ...ab eo tempore quo Angelus Dei allocutus est Philippum, qui fidem doceret
Eunuchum potentis Reginae Candacis, Reginae Aethiopiae, quae ab Hierosolyma
Gazam pergebat.
41. ...constitutum a Sanctis Apostolis est oportere nos confiteri, atque quam
poenitentiam, pro magnitudine singulorum peccatorum, a confessore accipere debemus.
Instruunt quoque nos, quomodo orandum, et ieiunandum sit, et charitas exercenda.
42. ...per literas obsecrauit, ut filium Meilech coram arca foederis testamenti
Domini Regem Aethiopiae consecraret, ac crearet neue ulterius foeminae ius regnandi
in Aethiopia haberent ut tum in more erat, sed ut recto tramite masculi in regnum
succederet.
“...por carta suplicava ao rei que criasse e consagrasse seu filho Meilech
rei da Etiópia diante da Arca da Aliança do testamento do Senhor, e que
mulheres não mais tivessem direito de reinar na Etiópia como até então era
costume, mas que os homens herdassem o trono em linha direta de sucessão.”
(§74, enunciação de L3)
43.... id quod semper apud se occultum tenuerat ei reuelat, nempe tabulas foederis
Domini pene se esse...
“...a ele revelou o que sempre mantivera em segredo: que com ele
certamente estavam as tábuas da Aliança do Senhor.” (§77, enunciação de L3)
_____________________
1-Muitas coisas que são afirmadas pelos reis etíopes ou por Zaga-Zabo, como se pode depreender da leitura dos seus
textos, encontram-se em livros antigos da Etiópia. (N. A.)
271
7.6.2-Discurso indireto de LI.
“Nesta mesma carta lhes era ordenado que não voltassem à pátria sem ter
visitado Ormuz e sem ter saudado o Preste João, de cujo estado o rei muito
desejava ser informado”. (§14, carta I)
“...mas isso nunca conseguiram obter de Davi, que aos pedidos deles
respondeu que recebeu aquele homem de seu pai Nau, juntamente com o reino, e
que desejava conservá-lo com amor e cuidado como ao próprio reino...” (§15,
carta I)
48. Has Literas mittit Atani Tinghil, id est, Thus Virginis, quod nomen est a
baptismate [....] et fortium paganorum, domino arcium et altorum castellorum, et
murorum, propagatori fidei Iesu Christi.
“Esta carta enviou-a Atani Tinghil, isto é, Incenso da Virgem, que é o seu
nome de batismo [....] e dos fortes pagãos, senhor de fortalezas, de altos castelos
e muralhas, propagador da fé de Jesus Cristo.” (§29, carta III)
49. ...et dixi, Benedictus sit filius sapiens, et magni capitis, filius Regis Emanuelis,
qui sedet in cathedra regnorum suum.
“...e eu disse Bendito seja o filho sábio, filho do rei D. Manuel, o de boa
memória, que ocupou o trono dos seus reinos.” (§41, carta IV)
273
50. ...et iam a te postulo Sanctissime Pater, cur non hortaris reges christianos filios
tuos, ut arma deponant, et uti fratres decet, condordes inter se esse uelint, postquam
ipsi oues tuae sunt, et tu ipse pastor earum?
51. Postquam haec omnia scripsi, uenit mihi in mentem locus ille, ubi dico Christum
descendisse ad inferos, pro anima Adae, atque pro anima ipsiusmet Christi, quam ipse
Christus acceperat ex Sancta Maria uirgine matre sua.
274
52. Hi erunt in domo mea honestissime tractati, et si discedere uoluerint, laborum
suorum eis amplam mercedem soluam. Iuroque per Deum Iesum Christum Dei filium,
me eos libere cum uoluerint, esse dimissurum.
53. ...quo tutior esse possim aduersus caluniosos, quibus uideri possim non studio
Reipublicae Christianae, sed aemulatione gloriae Iouio...
275
“Esta narrativa entre nós é considerada santíssima e muito estimada
como aparece na história do próprio rei Davi, que é agradabilíssima de ler. O
livro da referida história é da mesma espessura de todas as epístolas de Paulo.”
(§76, enunciação de L3)
7.8-A negação.
55. Quapropter non ad imitatione Iudaeorum sed iussu Domini nostri Iesu Christi,
et sanctorum Apostolorum eum (diem Sabbatum) seruamus, quorum gratia in nos
Christianos
“Por isso o guardamos (o dia de sábado), não para imitar os judeus, mas
por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos Santos Apóstolos, dos quais foi
transcrita para nós cristãos...” (§65, enunciação de L3)
57. Quia Ecclesiae Aethiopiae non sunt similes terrae illi, ubi populus Israel
comedit agnum paschalem, decedens ab Aegypto, in quo loco Deus iussit eos comedere
indutos calciamentis, et zonis accintos propter terrae pollutionem.
58. Quare nec Patriarcha, nec Episcopi nostri per se, nec in conciliis putant, aut
opinantur ullas leges se condere posse, quibus ad mortale peccatum obligari quis
possit.
60. ...pro qua quidem missa nullum precium aut mercedem accipimus, in quo
ministerio sacramentum Eucharistiae non ostenditur, ut hic uideo fieri.
______________________
1-“O erasmismo é, sobretudo, um ‘cristianismo interior’, marcado pela tolerância, é a valorização do espiritualismo
face a exterioridade característica dos pesados rituais católicos e o retorno aos valores primitivos da fé cristã.”
(CARDOSO, 1997, p. 1)
278
pelo papa Júlio II. Estudou com afinco as disciplinas humanísticas e Teologia. Viajou
por quase toda a Europa, foi conselheiro de Carlos V e o idealizador do Colégio
Trilíngüe de Lovaina, onde também lecionou. Viveu a maior parte de sua vida nos
Países Baixos e produziu uma vasta obra que teve início com a publicação dos Adagia,
em 1500. A este seguiram-se o Enchiridion Militis Christiani (1504), as Annotationes
in Nouum Testamentum de Lorenzo Valla (1505) e o Moriae Encomium (1511), escrito
na Inglaterra, em casa de Thomas More. Em 1516 publicou o seu Nouum
Testamentum, dedicando-o a Leão X, e em 1518 os Colloquia. Muitas outras foram
compostas e mais tarde incluídas nas Opera Omnia, de cuja primeira edição Froben
encarregou Beatus Rhenanuse, e veio a lume em 1540, com uma dedicatória a Carlos V.
Recusou o chapéu cardinalício que lhe fora oferecido pelo papa Paulo III, bem como os
altos cargos com que vários reis, como Francisco I, Henrique VIII e o próprio D. João
III, tentaram seduzi-lo, preferindo conservar sua liberdade pessoal. Teve muitos amigos
e seguidores fiéis. Damião de Góis, cuja filosofia de vida sempre fora a tolerância e a
moderação não poderia ficar indiferente ao pensamento do humanista, a quem ele
chamava de mestre e que lhe dedicou um Compendium Rhetoricae.
Nos tempos de maior fervor ortodoxo, entre 1547 e 1561, principalmente após
1555, suas obras foram gradativamente incluídas no Index, embora circulassem alguns
textos, extirpados do “mal”, como os Colloquia, que integravam a biblioteca da rainha
D. Catarina e eram utilizados para ensinar os moços de sua capela.
279
Na primeira metade do século XV visitantes etíopes estiveram em Veneza e
Florença e participaram do Concílio de Constança (1414-1418) e de Florença (1438-
1439), onde, ao lado de representantes oficiais portugueses, houve trocas de
experiências entre cristãos do Ocidente e do Oriente. (DIAS, 1988, p.68-69)
E conclui:
61. Omnia haec dicit Paulus ut placeret iis, qui in fide non erant admodum
confirmati, quoniam inter hos et Iudaeus uariae consurgebant disputationes ac
contentiones, quas ut sedaret, Chistianis nondum satis confirmatis indulgentius
morigerabatur, et acquiescebat. Id tamen faciebat, non quod legem fragere uellet, sed
ut plures itain ceremoniis relaxandis gratificando ad fidem alliceret.
“Certamente Paulo disse todas estas coisas para agradar àqueles que
ainda não estavam firmes na fé, porque entre eles e os judeus surgiam várias
disputas e contendas que, para as apaziguar, mais tolerante procurava ser com
eles, que ainda não estavam suficientemente confirmados como cristãos. Assim,
consentia, ainda que o fizesse não porque quisesse violar a lei, mas abrindo o
caminho para atrair mais fiéis com o relaxamento das cerimônias.” (§95,
enunciação de L3)
(24). ...nec Deo acceptiores esse, apud quem nulla est acceptio personarum, teste
Paulo: qui etiam ostendit nos saluos fieri non propter circuncisionem, sed propter
fidem:
_____________________
1-Erasmo condenava a adoração de Santos. (conf. HIRSCH, 2002, p. 64)
281
“nem mais aceitos por Deus, que, segundo Paulo, não escolhe pessoas.
Este também nos mostrou que somos salvos, não pela circuncisão, mas pela
fé...”. (§82, enunciação de L3)
(25). Et ut ipsemet ait, factus est omnibus omnia, ut omnes faceret saluos.
“E, como ele mesmo (Paulo) diz, tudo foi feito para todos, para que todos fossem
salvos.” (§82, enunciação de L3)
62. Et nullas alias habent eleemosynas, praeter eas, quae grátis in templis offeruntur,
pro exequiis mortuorum, et aliis piis rebus, nec eis licet uicatim mendicare, nec a plebe
aliquid eleemosynarum extorquere.
282
contumeliis permittere inter alios fratres Christianos uiuere, ac uersari: quoniam
omnes filii baptismi sumus, et de uera fide unanimiter sentimus. Nec est causa, cur tam
acriter de cerimoniis disceptetur, nisi ut unusquisque suas obseruet, sineodio et
insectatione aliorum: nec commerciis Ecclesiae ob id excludendus est, si peregre in
alienis prouinciis domesticos ritus obseruet.
64. ...et recordati sunt uerbi Domini, quod in coelum ascendens dixit, Ite per omnem
terram et praedicate Euangelium omni craturae...
283
“E lembraram-se da palavra de Deus, que subindo aos céus disse: ‘Ide
pelo mundo e pregai o Evangelho a toda criatura...’.” (§100, enunciação de L3)
65. Consultum profecto esset, omnes doctores, et praedicatores de hoc linteo, quod
ostensum fuit Petro, sublimia et alta docere, et non illa quae infima sunt, et quod nihil
ad salutem uidentur pertinere...
66. ...ita in Aethiopia exponimus, munda animalia fuisse populum Israel, immunda
autem populum Gentilium.
67. Ideoque fratres mei, non oportet nos contemnere, neque insectari proximos
nostros, quoniam Iacobus ait, Qui detrahit fratri, aut indicat fratrem suum, detrahit
legi, et iudicat legem. Paulus quoque docet, melius esse ununquenque uiuere contentum
suis traditionibus, quam cum fratre Christiano de lege disputare. Rursus, non plus
sapere, quam oportet, sed sapere ad sobrietatem, et unicuique sicut Deus diusiit
mensuram fidei. Quapropter indecens est, cum fratribus de lege, aut de delectu ciborum
disputare: quod esca nos non commendet Deo: praesertim cum ipse Paulus Apostolus
dicat, Nec si manducauerimus abundabimus, nec si non manducauerimus, deficiemus.
Idcirco altiora, et coelestem cibum quaeramus, et has infimas et inanes disputationes
omittamus.
284
“É por isso, meus irmãos, que não nos convém desdenhar nem maltratar
o nosso próximo, pois Jacó diz: ‘Aquele que rouba do irmão ou o julga, viola e
julga a própria lei’.
Paulo também ensina que é melhor que cada qual viva contente com suas
tradições que discutindo sobre a lei com seu irmão cristão. Ao contrário, não
saber mais do que convém, mas saber pela temperança, pois Deus nos concedeu
a medida da fé de cada um. Portanto é feio discutir com seu irmão sobre a fé ou
a escolha dos alimentos, pois o alimento não nos aproxima de Deus,
principalmente porque o próprio apóstolo Paulo diz: ‘Não ganharemos se
comermos, nem perderemos se não comermos. Por isso busquemos as coisas
elevadas e o alimento celeste, deixando de lado estas inúteis e vazias
discussões’.” (§105-106 enunciação de L3)
”...deste Concílio resultaram várias discussões, mas nada foi realizado para a
concórdia da Igreja, e todos se retiraram, cada um calando sua opinião sobre esta
questão mal resolvida.” (§109, enunciação de L3)
71. His de causis, aliisque, quas coram serenissimo Rege Ioanne Emanuelis filio
exposui, istuc missus sum a domino meo potentissimo, non ad friuolas et inanes
disputationes.
“Por estas razões e por outras que expus em presença do Sereníssimo rei
D. João, filho de D. Manuel, fui enviado pelo meu poderosíssimo senhor, e não
para debates frívolos e inúteis. (§116, enunciação de L3)
O livro aqui estudado foi reprovado pelo clero português, e uma das alegações
dos censores é que Damião de Góis descreveu o catolicismo dos etíopes sem manifestar
qualquer juízo de valor quanto à doutrina equivocada adotada no país africano, nas
palavras dos mesmos, “sem se referir aos erros ali contidos”. Sobre essa questão, pode-
se dizer que o sujeito empírico Damião de Góis, por intermédio de L1, estaria
respondendo afirmativamente a um enunciador-E, assimilado a Erasmo, que, anos antes,
quando o aconselhou a seguir para Pádua, advertiu-o:
É altamente aconselhável que não fales nem bem nem mal das seitas², como
se por assim dizer, não te importasses ou não soubesses. São vários os fingimentos do
homem. Não se poderia dizer muito a teu favor se houvesse uma troca de
correspondência entre ti e Melanchton ou Grynaeus. (HIRSCH, 2002, p. 97)
72. Haec sunt, quae de fide, et religione apud nos Aethiopes habentur, et obseruantur
_____________________
1-TAVARES, 1999, p. 171.
2-Grifo nosso.
287
“Estas são as coisas sobre a fé e a religião que entre nós etíopes são
mantidas e observadas.” (§55, enunciação de L3)
75. Ius autem scriptum apud nos in usu non habetur: nec litigantium querelae
libellis, sed ore peraguntur: id fit ne lites auaricia iudicum et patronorum in longum
protrahantur.
“Já o direito escrito não é usado entre nós, nem as querelas dos litigantes
são resolvidas por manuais, mas verbalmente. Isto impede que as questões
se arrastem longamente pela avareza dos juízes e advogados.” (§125, enunciação
de L3)
_____________________
1-TELES, 1936, p.14. 288
Nesses enunciados em que Zaga-Zabo (L3) dirige-se declaradamente a Damião
de Góis, as críticas implícitas ou explícitas ao modo de vida ocidental, quanto à forma
de sucessão e à prática jurídica, não são refutadas por L1, nem omitidas, apenas
traduzidas.
76. Sciendum etiam, apud nos Calendis Septembribus annum incipere, qui dies
semper incidit in uigiliam Ioannis baptistae. (ao traduzir)
“Para nós o ano começa do dia primeiro de setembro, que cai sempre no
dia da vigília de João Batista.” (§121, enunciação de L3)
Naturalmente, essa maneira de enunciar a data do início do ano nada tem a ver
com a língua etíope e é, tão somente, um diálogo de L1 com o Classicismo que o
movimento humanista pretendeu resgatar. Quanto à semelhança com o Ano Novo
judeu – data móvel, entre setembro e outubro – trata-se de mais um elemento da cultura
e da religião etíope em desacordo com a Igreja romana e que muito deve ter
incomodado os guardiães da fé católica.
_____________________
289
8. CONCLUSÃO
Antes do primeiro contato com o sábio que tanto admirava e que depois se
tornou seu mestre sim, mas de humanidades e de retórica, Damião de Góis já havia
produzido a primeira obra em que deixou transparecer seu ecumenismo e irenismo, a
Deploratio Lapiannae Gentis. Mais tarde, a expressão da sua tolerância e pacifismo
veio materializar-se plena e inconfundivelmente na Fides, Religio Moresque Aethiopum,
que é uma obra de cunho erasmista, na medida que se identifica, na sua quase
292
totalidade, com a filosofia do mestre holandês, mas também e, principalmente com a
mensagem de São Paulo.
Pudemos constatar também que a obra de Damião de Góis, como um todo, não
resiste a qualquer tentativa de classificação, mesmo dentro do movimento humanista,
porque, carecendo de um modelo clássico não se alinhou ao humanismo literário, e, por
suas preocupações claramente mundanas, também não se aproximou do humanismo
cristão. Na verdade suas preocupações religiosas estavam mais voltadas para as
relações humanas – na busca de uma atitude espiritual, em que a fé, mesmo não sendo
única em seus princípios e práticas, servisse para unir os cristãos –, do que para a
investigação da bíblia. Para ele, somente a busca dos fundamentos da concórdia cristã
justificava a invocação dos textos sagrados, os quais, mesmo assim, demonstrou
conhecer profundamente, como verdadeiro cristão que foi.
Além de defender a unidade da Igreja cristã, procurou, com sua obra latina, ser
também um porta-voz entusiasta da gesta dos portugueses por toda a Europa, mas não
só pela voga do motivo patriótico dentro do movimento em que procurou se inserir, mas
também por ter testemunhado, ao lado do seu rei e tutor, todo o esforço dos portugueses
em sua missão que ele não duvidava ser civilizadora e, acima de tudo, evangelizadora.
295
9. BIBLIOGRAFIA.
Consultas e Leituras:
2. ARMSTRONG, Karen. Breve História do Mito. Trad. Celso Nogueira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
3. AUBIN, Jean. Damião de Góis dans une Europe Évangelique. Coimbra: Humanitas,
1979.
5. BEARD, Mary & HENDERSON, John. Antigüidade Clássica. Trad. Marcus Penchel.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
10. BLOCH, Marc. Apologia da História. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
11. BOAS. Franz. Antropologia Cultural. Trad. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
15. CIDADE, Hernani. A Simpatia Humana e o Espírito Crítico de Góis, vol I. 7 ed.
Coimbra: Coimbra Editores, 1984.
16. CURTIUS, Ernst Robert. “Classicismo” In: Literatura Européia e Idade Média
Latina. Trad. Teodoro Cabral e Paulo Rónai. Rio de Janeiro: INL, 1957.
296
17. DIAS, J. S. da Silva. Os descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI. 3
ed. Lisboa: Presença, 1988.
18. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador In: Uma História de Costumes. Trad. Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
19. ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70,
1963.
20. _______________ O Mito do Eterno Retorno. Trad. José Antônio Ceschin. São
Paulo: Mercuryo, 1992.
24. GAGNEBIN, Jeane Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
25. KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
27. MACEDO, Jorge Borges de. Damião de Góis e a Historiografia Portuguesa. Braga:
Calouste Gulbenkian, 1982.
29. MATOS, Luís de. Das Relações entre Erasmo e os Portugueses. Lisboa: BIB, 1963.
33. PROST, Antoine. Douze Leçons sur L’Histoire. Paris: Seuil, 1996.
34. RAMALHO, Américo da Costa. Estudos sobre o Século XVI. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1982.
297
35. ___________________________ Latim Renascentista em Portugal, Coimbra:
INIC, 1985.
36. ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Trad. Alex Marins. São Paulo:
Martin Claret, 2002.
38. SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. 15 ed. Mem Martins:
Europa-América, 1992.
Referências:
41. ALMEIDA. Bíblia de Estudo. Trad. João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade
Bíblica do Brasil, 2002.
43. BAIGENT, Michael & LEIGH, Richard. A Inquisição. Trad. Marcos Santarita. Rio
de Janeiro: Imago, 2001.
44. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud &
Yara Frateschi Vieira. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
50. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
298
51. BISPO, Cristiano Pinto de Moraes. Narrativa, Identidade e Alteridade nas
Interações entre Atenienses e Etíopes Macróbios nos Séculos VI e V a. C. Rio de
Janeiro: IFICS/PGHC, 2006.
52. CAMPOS, Fernando. A Sala das Perguntas. 5 ed. Algés: Difel, 1998.
53. CAMPOS, Pedro Celso. Reis Magos, a comunicação através do mito. São Paulo:
UNESP, 2002.
54. CANDÉ, Roland de. História Universal da Música. Vol. I. Trad. Eduardo Brandão.
2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
58. COELHO, António Borges. “Os Argonautas Portugueses e o seu Velo de Ouro”. In:
História de Portugal. org. José Tengarrinha. São Paulo: UNESP, 2001.
60. DIAS, José Sebastião da Silva. A Política Cultural da Época de D. João III, vol. I.
Universidade de Coimbra, 1969.
63. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, vol. I, Uma História de Costumes. Trad.
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
64. EPPLE, Angelika et alii. A História Escrita. São Paulo: Contexto, 2006.
67. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2001.
68. FRANCO JR., Hilário. As utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992
299
69. GIORDANI, Mário Curtis. História da África. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
70. GÓIS, Damião de. Fides, Religio Moresque Aethiopum. Paris: C.W., 1541.
71. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina. Trad.
Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
72. HERÓDOTO. História. Trad. Mário da Gama Cury. Brasília: Ed. UnB, 1998.
73. HESÍODO. Teogonia. Trad. João Torrano. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.
75. HIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Góis. 2 ed. Trad. Lia Correia Raitt. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2002.
76. HOMERO. Ilíada. Trad. Fernando C. de Araújo Gomes. 8 ed. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1999.
77. _________ Odisséia. Fernando C. de Araújo Gomes. 7 ed. Rio de Janeiro: Ediouro,
1997.
79. LAVAJO, Joaquim Chorão. “Damião de Góis e o Diálogo Religioso”. In: Damião
de Góis e o seu Tempo. org. Justino Mendes de Almeida. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2002.
81. LEITÃO, Henrique Sousa. “Pedro Nunes , leitor de textos antigos e modernos”. In:
Pedro Nunes e Damião de Góis, Dois Rostos do Humanismo Português. Lisboa:
Guimarães, 2002.
85. MOKHTAR. G. História Geral da África: A África Antiga. vol. II. São Paulo:
Ática, 1983.
86. MOUSNIER, Roland. História Geral das Civilizações, vol. IX. Trad. Pedro Moacyr
Campos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995.
300
87. __________________ História Geral das Civilizações, vol. X. Trad. Pedro Moacyr
Campos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995.
88. NASCIMENTO, Aires A. “Damião de Góis, leitor dos textos antigos: um percurso
pela Vrbis Olisiponis Descriptio”. In: Pedro Nunes e Damião de Góis, Dois Rostos do
Humanismo Português. Lisboa: Guimarães, 2002.
94. OVÍDIO. Metamorfoses. 12 ed. vol. I. Paris: Les Belles Lettres, 1957.
96. PAIVA, José Pedro. “‘Católico Sou e não Luterano’: O Processo de Damião de Góis
na Inquisição”. In: Damião de Góis: um Humanista na Torre do Tombo. Lisboa:
IAN/TT, 2002.
98. PINTO, Milton José. Comunicação e Discurso. 2 ed. São Paulo: Hacker, 2002.
99. POLO, Marco. O Livro das Maravilhas. São Paulo: Matin Claret, 2000.
102. RAMOS, Manoel João. “O Destino Etíope do Preste João: A Etiópia nas
Representações Cosmográficas Européias”. In: Condicionantes Culturais da Literatura
de Viagens: Estudos e Bibliografias. Lisboa: Cosmos, 1998
103. REBELO, Luís de Souza. “Damião de Góis e o Humanismo Português”. In: Pedro
Nunes e Damião de Góis: Dois Rostos no Humanismo Português. Lisboa: Guimarães,
2002.
301
104. RODRIGUES, Graça Almeida. Damião de Góis face à Ideologia e ao Poder
Vigente. Paris: Calouste Gulbenkian, 1977.
106. SANCEAU, Elaine. Em Demanda do Preste João. Trad. José Francisco dos
Santos. Porto: Civilização, 1946.
112. TELES, Baltazar. História Geral de Etiópia – a – Alta. Porto: Progredior, 1936.
117. VITAL, Nestor Fatia. Os Cronistas e a Numária Manuelina Tratada por Damião de
Góis”. In: Damião de Góis e o seu Tempo. org. Justino Mendes de Almeida. Lisboa:
Calouste Gulbenkian , 2002.
Verbetes:
1-Dicionário de História de Portugal, vol II. Dir. Joel Serrão. Porto: Iniciativas
Editoriais, 1965.
302
2-Dicionário de Literatura Português, vol I. Barcelos: Cia. Editora do Minho, 1969.
Internet:
3-CERQUEIRA, Bruno da Silva de. “Etiópia – Casa de Salomão”. In: Dinastias África,
Ásia e Oceania.1997.
(http://www.imperialereal.com/ingles/textodinastiasafricaasiaoceania.htm)
303