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CONTRIBUIÇÃO PARA A ABORDAGEM HOMEOPÁTICA RACIONAL NA COVID-19

Rubens Dolce Filho

Estamos diante de uma histeria coletiva assolando a humanidade, fomentada em boa parte pela imprensa do
mundo todo. A população compreensivelmente é a que está mais assustada com o Godzilla criado. O problema
é quando os médicos, humanos que são, entram nesse holograma. Vários, até autoridades médicas, colocando
seu temor pessoal para o público em geral, acabaram criando um cenário catastrófico no imaginário popular.
Na nossa especialidade, Homeopatia, infelizmente, o mesmo está ocorrendo. Pipocam diariamente, por susto,
por boas intensões ou por oportunismo, recomendações de medicamentos preventivos, estudos teóricos
sobre os medicamentos do “gênio” epidêmico da Covid-19, alguns antecipadamente já medicando parentes e
pacientes. Um terror injustificável.

Um adendo: devemos mudar esse termo “gênio” como caracterizador do tratamento homeopático das
epidemias. Gênio no dicionário Huaiss da Língua Portuguesa tem três significados: aquela entidade espiritual
da lâmpada mágica, uma pessoa muito inteligente e o temperamento ou comportamento de uma pessoa. O
termo ideal para se usar é “gênero”, ou seja, grupo de características que determinam um conjunto.

Antes de avaliar a Covid-19, vamos estudar nossas fontes de origem. Vamos relembrar a modus operandi de
Hahnemann nas epidemias que ele teve contato.

Hahnemann na abordagem que teve na epidemia de Escarlatina, magnificamente descreve detalhadamente


todos os sintomas e sinais que encontrou. Também descreve o raciocínio que o levou a usar Belladonna como
o profilático naquela epidemia (HAHNEMANN, DUDGEON págs. 359-361, 2006):

“O remédio capaz de manter a saúde sem ser infectada pelo miasma da escarlatina eu fui feliz o bastante
de descobrir. Percebi também que o mesmo remédio dado no momento em que os sintomas indicados
da invasão da doença ocorrem, abafa a febre já em sua origem; e além disso, é mais eficaz do que outros
medicamentos conhecidos em remover a maior parte dos transtornos posteriores que se seguem à
escarlatina que seguiu o seu curso natural, os quais são amiúde piores que a doença em si.”
“Raciocinei assim: um remédio, que é capaz de rapidamente bloquear uma doença em seus primórdios,
deve ser o seu melhor preventivo.” (...) “E um número de outras oportunidades apresentou-se para mim
em que esse remédio preventivo específico jamais falhou.”

Por outro lado, quando o paciente se apresentava a ele depois da fase inicial da Escarlatina, Hahnemann
observava duas manifestações da doença com tratamentos diferentes: 1) calor queimante, estupefação
sonolenta, agitação agonizante de um lado a outro com vômitos, diarreia, e mesmo convulsões, tratada com
Opium; 2) febre ao anoitecer, insônia, perda total de apetite, náuseas, rabugice lacrimosa intolerável, gemido,
ou seja, um estado que o Opium era contraindicado, sendo prescrito Ipecacuana. Também, em alguns casos
particulares, quando o médico foi procurado muito tarde para o tratamento, ele observava ulceração na pele
ou tosse sufocante e prescrevia Chamomilla. Além do tratamento medicamentoso, ele dava o seguinte
conselho para nós médicos: devemos tentar dispersar todo medo por meio de palavras doces e alegres, de
delicados presentinhos, sustentando as esperanças de rápida recuperação.

Na Cólera Asiática em 1831, na orientação que Hahnemann deu, salienta os diferentes medicamentos que
devem ser usados nas várias fases da doença, inclusive o preventivo, que deve ser usado não antes da doença
estiver pela vizinhança, além de medidas higiênico-dietéticas (HAHNEMANN, DUDGEON págs. 717-720, 2006):
“No primeiro estágio, a Camphora proporciona alívio rápido, mas os amigos do paciente devem, eles
mesmos, empregá-la, visto que esse estágio logo termina ou em morte ou no segundo estágio, o qual é
mais difícil de ser curado, e não com Camphora.” (...) “Se em tais casos (obs.: aqueles que evoluíram
para piora além do primeiro estágio) conclusivo benefício não é logo percebido, então não se deve mais
perder tempo em administrar o remédio (Camphora) para o segundo estágio. O paciente deve receber
um ou dois glóbulos da mais pura preparação de cobre. (...) Bons efeitos semelhantes resultam da
administração de uma porção também pequena de heléboro branco (Veratrum album), mas a
preparação de cobre deve ser bem mais preferida, e é a mais útil.”
“ A preparação acima de cobre, junto com boa e moderada dieta, e adequada atenção à higiene, é o
mais seguro remédio preventivo e protetor; aqueles que gozam de saúde deveriam tomar, uma vez por
semana um pequeno glóbulo dele (Cuprum) no jejum matinal, (...), mas isso não deveria ser feito até
que a cólera esteja na própria localidade, ou nas vizinhanças.”

Sabemos que em enfermidades agudas e epidêmicas, frequentemente há algumas fases de manifestação da


doença, uma inicial, uma com todo seu corolário sintomático e uma residual quando o pior passou. Em boa
parte das vezes, para cada uma dessas fases temos um ou mais medicamentos homeopáticos mais indicados,
de acordo com os sintomas característicos. No caso das epidemias, além disso, cada uma, em diferentes
épocas, mesmo sendo causada pelo mesmo agente etiológico e numa mesma população, a medicação do
gênero epidêmico é diferente (NUNES, 2016). O sucesso do tratamento homeopático no manejo das
epidemias se dá pelo respeito das premissas clássicas já descritas por Hahnemann como salientado nos
parágrafos anteriores. Isso é comprovado por dois estudos de tratamento de conjuntivite, um em Pittsburg
(USA) cujo medicamento escolhido, Euphrasia officinalis, foi baseado em tratamento feito em epidemias
anteriores, e outro em Cuba, cujo medicamento escolhido, Pulsatilla nigricans, foi baseado nos sintomas
daquela epidemia (o gênero epidêmico). No primeiro estudo não houve diferença estatística significativa entre
o grupo tratado com o medicamento proposto e o grupo controle com placebo. No segundo estudo o
tratamento homeopático foi significativamente mais eficaz do que o tratamento alopático, havendo melhora
dos sintomas, em média, menor que 72 horas (TEIXEIRA, 2010).

Então, como intuiu e comprovou Hahnemann, o medicamento profilático de qualquer epidemia seria o
medicamento do gênero epidêmico da fase inicial da doença, pois assim, por similitude, se aniquila os
sintomas iniciais da doença e aborta sua evolução. Não adianta indicar medicamentos da fase de estado
completo da doença como profilático, certamente seria ineficaz.

Vamos agora nos ater ao Covid-19. Como temos visto, tudo no nosso meio está sendo proposto de uma forma
voluntariosa, ansiosa e atabalhoada. Quando começaram a falar da epidemia na China já apareceram
propostas de tratamento. Justicia feita ao Farokh Master, que apressadamente fez indicação de tratamento
com esse medicamento baseado em sintomas de epidemia anterior de SARS – erro de premissa básica, ele
não tinha atendido ainda nenhum paciente de Coronavírus. Está circulando pelas redes sociais uma fórmula
homeopática com vários medicamentos, há semanas, muito antes de se confirmar o primeiro caso da doença
no Brasil. Outro erro de premissa.

Quando colocamos emoção numa situação deixamos de lado a racionalidade necessária para uma avaliação
mais adequada. O terror está no ar e ele provoca cegueira em quem deveria ver os fatos com maior clareza. A
maioria de nós está somente olhando o quadro grave da doença. Cerca de 80 a 90% dos pacientes tem
sintomas leves. Os pacientes graves admitidos nas Unidades de Terapia Intensiva chinesas, evoluíram com
hipoxemia e síndrome de desconforto respiratório entre o 9º e o 12º dia (SOCIEDADE BRASILEIRA DE
CARDIOLOGIA, 2020). Portanto, podemos inferir que a maioria desses pacientes tiveram as fases iniciais da
doença por vários dias antes de terem manifestações mais graves. Para elegermos um medicamento
profilático teríamos que nos ater somente aos sintomas iniciais, e não no quadro dramático que leva o
paciente para a UTI.

Infelizmente os sintomas relatados nos estudos até aqui publicados são muito pouco pormenorizados,
pobremente caracterizados. E os sintomas e sinais são nossa ferramenta de individualização. Na Covid-19
temos os seguintes sintomas que parecem ser do quadro mais grave, ou seja, descrição dos pacientes
internados (BHATIA, 2020):
- Febre (83% dos pacientes)
- Tosse (82%)
- Falta de ar (31%)
- Dor muscular (11%)
- Confusão (9%)
- Dor de cabeça (8%)
- Dor de garganta (5%)
- Rinorreia (4%)
- Dor no peito (2%)
- Diarreia (2%)
- Náuseas e vômitos (1%)

De acordo com os exames de imagem:


- Pneumonia bilateral (75%)
- Manchas múltiplas e opacidade em vidro fosco (14%)
- Pneumotórax (1%)

Evolução: 17% dos pacientes desenvolveram síndrome do desconforto respiratório agudo e, dentre eles, 11%
pacientes pioraram em um curto período de tempo e morreram por falência de múltiplos órgãos.

Vejam que em populações diferentes podem aparecer sintomas distintos. No Irã parece que o quadro de
sintomas é um pouco diferente. Muitos pacientes estão relatando cefaleia frontal com febre. Também muitos
pacientes parecem agravar repentinamente sem muitos sintomas prévios.

Relatos vindo da China de Farmacêuticos Homeopatas, baseados em casos reais atendidos, descrevem quatro
estados diferentes:

Grupo A: Leve Sem sintomas respiratórios.


Grupo B: Moderado Com sintomas respiratórios como tosse e febre. Um sintoma característico é que
os pacientes têm a língua pálida ou vermelho-pálida. Também a tosse é seca ou
tem pouca expectoração amarela. Ocorre garganta seca.
Grupo C: Grave Com dificuldade respiratória. Um sintoma característico é que os pacientes
apresentam língua vermelha ou saburra amarela. O paciente tem respiração
arfante.
Grupo D: Crítico Com insuficiência respiratória, cianose e colapso. Um sintoma característico é que
os pacientes têm língua roxa. O movimento agrava, há agitação e sudorese com
membros frios.

Se repetir-se aqui no Brasil esse quadro, temos que nos ater aos sintomas dos Grupos A e B para encontrar o
gênero epidêmico profilático.

O agravo repentino para sintomas respiratórios mais intensos parece ser corrente em vários relatos. Então,
para a fase mais grave da doença (Grupos C e D), podemos pensar em medicamentos que têm comportamento
agudo, ou seja, de ação rápida, como na lista de medicamentos agudos propostos por Sankaran. Mas não
devemos nos ater estritamente a esses medicamentos, é uma sugestão de análise, diante dos casos que se
apresentarem.
MIASMS; RAJAN'S MIASMS; ACUTE (46) : acon., aconin., aether, agath-a., apom., arbu., arn., bad., bell.,
berbin., beryl., bor., brucin., cactin., calen., camph., chlol., chlor., choc., coffin., conin., croto-t., digin., diosin.,
diph., elat., fic-i., glon., heli., hydrog., hyosin., hyper., lepi., lith., lyss., meli., menthol, morph., morph-s.,
muscin., narcot., nicot., oena., pyrus, stry., verat.
Diante desses parcos sintomas relatados, para os Grupos A e B o medicamento mais indicado parece ser
Bryonia alba, talvez o medicamento também profilático. Para os Grupos C e D talvez os medicamentos mais
indicados sejam Camphora ou Arsenicum album. Precisamos conhecer melhor a sintomatologia
detalhadamente. Teremos dificuldade para isso porque depois que a epidemia estiver franca, dificilmente
teremos o diagnóstico etiológico definido, especialmente para os casos brandos, porque não haverá como
fazer o exame laboratorial para todos. Também tenho atendido muitos pacientes com um quadro de resfriado
comum e até Influenza nas últimas 3 semanas, a qual vão se misturar aos pacientes com Covid-19. Então sugiro
o seguinte:

- Para os colegas que trabalham nos serviços onde foram feitos os diagnósticos dos primeiros pacientes,
verificar seus prontuários e, se possível, acessar seus cadastros e entrar em contato direto com eles tentando
modalizar melhor os sintomas que tiveram.

- O mesmo fazer com pacientes internados que ainda não estão em respiração mecânica.

- Tentarmos entrar em contato com colegas homeopatas dos países onde a epidemia está franca, como a Itália
e agora o resto da Europa.

Podemos dar nossa contribuição para minimizar essa situação, mas sempre embasados na ciência vigente e
na nossa experiência exitosa em epidemias passadas, utilizando-se sempre da similitude e estratégias de
abordagem já descritas por Hahnemann, que ainda se mantém modernas. Qualquer ato especulativo tem risco
maior de não ser efetivo no combate dessa epidemia e cairemos em descrédito perante a sociedade.

Referências:
BHATIA M. Coronavirus Covid-19 – Analysis of symptoms from confirmed cases with an assessment of
possible homeopathic remedies for treatment and prophylaxis. Disponível em
https://www.doctorbhatia.com/treatment/coronavirus-covid-19-symptoms-homeopathic-remedies-for-
treatment-and-prophylaxis/?v=19d3326f3137 . Acesso em 14/03/2020.
HAHNEMANN S, DUDGEON RE. Cura e Prevenção da Febre Escarlate. Escritos Menores. Tradução de Freitas
Bazilio. Pags 351-365. São Paulo: Editora Organon, 2006.
HAHNEMANN S, DUDGEON RE. Causa e Prevenção da Cólera Asiática. Escritos Menores. Tradução de Freitas
Bazilio. Pags 717-720. São Paulo: Editora Organon, 2006.
NUNES LAS. Experiência de Macaé/RJ com homeopatia e dengue, 2007-2012. Revista de Homeopatia.
2016;79(1/2): 1-16. Disponível em http://revista.aph.org.br/index.php/aph/article/view/368/409. Acessado
em 14/03/2020.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA. Infecção pelo Coronavírus 2019 (COVID-19). Disponível em
http://www.cardiol.br/sbcinforma/2020/20200313-comunicado-coronavirus.html . Acesso em 14/03/2020.
TEIXEIRA MZ. Homeopatia nas doenças epidêmicas: conceitos, evidências e propostas. Revista de
Homeopatia 2010;73(1/2):36-56. Disponível em http://revista.aph.org.br/index.php/aph/article/view/36/68.
Acesso em 14/03/2020.

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