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Tradução da corajosa e acachapante intervenção de Paul B.

Preciado nas Jornadas da


Escola da Causa Freudiana. Está mais do que na hora de resgatar o caráter mutante
da psicanálise!!!

***

“Bom dia, queridas damas, queridos cavalheiros, da Escola de psicanálise da França,


damas e cavalheiros da Escola da Causa Freudiana, e não sei se vale a pena que se
diga também bom dia a todos aqueles que não são nem damas nem cavalheiros,
porque creio que não há entre vocês alguém que haja renunciado legal e publicamente
à diferença sexual e que tenha sido aceito como psicanalista (...), depois de haver
conseguido exitosamente o passe. Falo aqui de um psicanalista trans ou não binário
que tenha sido admitido entre vocês. Se existe, permitam-me enviar a esse mutante,
imediatamente, a saudação mais calorosa.
[Fala em espanhol] Também quero saudar aqui a todos os psicanalistas
hispanofalantes da América Latina e da Espanha. Senhoras, senhores, e sobretudo
todos os outros, aqueles que não são senhoras, nem senhores.
[Retorno à fala em francês] Em 1917, Franz Kafka escreveu Um relatório para uma
Academia. O narrador do texto é um macaco que, depois de ter aprendido as
linguagens humanas, se apresenta frente a uma Academia das mais altas autoridades
científicas para explicar-lhes o que a evolução humana havia representado para ele.
O macaco, que se chama Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma
expedição de caça organizada pelo circo Hagenbeck, como foi em seguida
transportado a Europa e como logo conseguiu converter-se em um homem. Pedro
Vermelho conta como aprendeu as linguagens humanas e como, para fazê-lo, e entrar
na sociedade da Europa de seu tempo, teve que esquecer sua vida de macaco e
tornar-se alcóolatra.
Mas o mais interessante, no monólogo de Pedro Vermelho, é que Kafka não apresenta
sua história de humanização como uma história de liberação, mas sim como uma
crítica do humanismo europeu.
Uma vez capturados, os macacos, dizem que não havia outra opção, mas que, ou bem
morriam em uma jaula, ou bem viviam passando à jaula da subjetividade humana; e é,
a partir desta nova jaula da humanidade, que se dirige à Academia científica.
Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia de científicos, me dirijo hoje a
vocês, acadêmicos de psicanálise, desde minha jaula de homem transexual. Meu
corpo, marcado pelo discurso médico e jurídico como transexual, caracterizado na
maior parte de vossos diagnósticos psicanalíticos como sujeito de metamorfose
impossível, segundo vosso colega Pierre-Henri Castel; estando, segundo a maior parte
de suas teorias, mais além da neurose, na borda ou inclusive no interior da psicose;
tendo, segundo vocês, uma incapacidade de resolver corretamente um complexo de
Édipo, ou havendo sucumbido à inveja do pênis. Me dirijo a vocês, como um macaco
humano de uma nova era.
Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não binário, ao que nem a medicina, nem o
direito, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar nem a
possibilidade de produzir um discurso uniforme de conhecimento sobre eu mesmo;
aprendi como Pedro Vermelho, a linguagem do patriarcado colonial, vossa língua.
Estou aqui para dirigir-me a vocês.
Dirão que recorro a um conto kafkiano para começar a falar-lhes, mas vosso colóquio
me parece mais próximo da época do autor de “A metamorfose” que da nossa.
Vocês organizam um encontro para falar das mulheres na psicanálise em 2019 como
se todavia estivéssemos em 1917, e como se esse tipo particular de animal, que vocês
chamam de forma condescendente e naturalizada “mulher”, não tivesse sempre um
reconhecimento pleno enquanto sujeito político; como se ela fosse um anexo ou uma
nota em pé de página, uma criatura estranha e exótica entre as flores, sobre a qual há
que pensar de tanto em tanto, em um colóquio em mesa redonda. Pois bem, haveria
que organizar um encontro sobre homens brancos heterossexuais e burgueses, em
psicanálise.
O discurso psicanalítico gira em torno do poder discursivo e político desse tipo de
animal necropolítico que vocês tendem a confundir com o humano universal, e que é,
ao menos até o presente, o sujeito da enunciação central no discurso das instituições
psicanalíticas da modernidade colonial.
Não tenho, já verão, grande coisa que dizer sobre as mulheres em psicanálise, mas
que eu também sou, como Pedro Vermelho, um fugitivo, que eu também fui, um dia,
uma mulher em psicanálise; que me atribuíram um sexo feminino, e como o macaco
mutante, também saí dessa jaula apertada, talvez para entrar em outra jaula; mas ao
menos, dessa vez, por meus próprios pés.
Falo-lhes, hoje, desde essa jaula elegida e desenhada, do homem trans, do corpo de
gênero não binário. Uma jaula política que é, em todo caso, melhor que a dos homens
ou das mulheres, porque ao menos reconhece seu estatuto de jaula.
Queria transmitir-lhes hoje ao menos três ideias, se vocês me permitem. Com a
estranha liberdade de falar-lhes desde uma posição discursiva impossível; pois
enquanto está em trânsito, enquanto corpo de gênero não binário, mutante de uma
humanidade binária e colonial que vocês representam, consagrei toda minha vida a
estudar os diferentes tipos de jaulas onde os humanos se prendem.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer-lhes que o regime da diferença sexual, com o qual
trabalha a psicanálise, não é nem uma natureza nem uma ordem simbólica, mas uma
epistemologia política do corpo, e, como tal, é histórica e mutável.
Em segundo lugar, queria informar-lhes, no caso de que não o saibam, que esta
epistemologia binária e hierárquica está em crise a partir de 1940. Não somente por
causa da resposta exercida pelos movimentos políticas de minorias dissidentes, mas
também pela aparição de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos,
que tornam impossível a atribuição sexual binária.
Em terceiro lugar, gostaria de dizer-lhes que, agitada por estas profundas mudanças, a
epistemologia da diferença sexual está em mutação, e vai ceder lugar, provavelmente
durante os próximos dez ou vinte anos, a uma nova epistemologia.
O movimento trans-feminista, queer, de denúncia da violência hétero-patriarcal, mas
também as novas práticas de filiação, de relação amorosa, de identificação de gênero,
do desejo, da sexualidade, da nomeação, não são mais que indícios dessa mutação.
De cara com essa transformação epistemológica em curso vocês tenderão a dizer,
senhoras e senhores psicanalistas da França, da América Latina, da Europa, do
mundo. O que vão ter que dizer é o que vão fazer: Onde vão se localizar? Em que jaula
querem estar/ser [être] presos? Como vão jogar suas cartas discursivas e clínicas, em
um processo tão importante como este?
E mais, lhes peço alguns minutos de atenção, se vocês podem ainda, escutar ainda, o
gênero não binário, e conceder-lhe um potencial de razão e de verdade.
Em primeiro lugar, senhoras e senhores e outros, o regime da diferença sexual que
vocês conhecem e consideram como universal, e quase metafísico, sobre os que se
apoiam e se articulam em todas as teorias psicanalíticas, não é uma realidade empírica
nem uma ordem simbólica fundadora do inconsciente. Não é mais uma epistemologia
do vivente, uma cartografia anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão
coletiva desta energia reprodutiva.
Se trata de uma epistemologia histórica que se constrói em relação a uma taxonomia
racial, tanto como do desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza
na segunda metade do século XIX.
Esta epistemologia, longe de ser a representação de uma realidade, é uma máquina
performativa que produz e legitima uma ordem política e econômica específica: o
patriarcado hétero-colonial. Antes do século XIX, o corpo e a subjetividade feminina
não eram reconhecidos como sujeitos políticos. A mulher e as mulheres não existiam
nem anatomicamente, nem politicamente, como subjetividade soberana antes do
século XIX.
No regime patriarcal, anterior ao século XIX, somente o corpo masculino e a
sexualidade masculina eram reconhecidos como soberanos. O corpo feminino e a
sexualidade eram subalternos, dependentes e minoritários.
É interessante pensar que a psicanálise freudiana, como teoria do aparato psíquico,
como prática clínica, aparece precisamente no momento onde se cristalizam as noções
centrais da epistemologia da diferença sexual: o homem e a mulher definidos como
anatomicamente diferentes e complementares por sua potência reprodutiva, como
figuras potencialmente paternais e maternais, respectivamente, na instituição familiar,
colonial, burguesa; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade
pensadas como normal e patológica, respectivamente.
A psicanálise, vista desde o ângulo da história do corpo abjeto, da história do monstro
da sexualidade normativa, e a ciência do inconsciente, patriarcal e colonial. Lhes peço,
por favor, não tentar negar a complexidade... perdão, a cumplicidade... e a
complexidade, as duas, se vocês querem... a complexidade, assim como a
cumplicidade, da psicanálise com a epistemologia da diferença sexual heteronormativa.
Lhes ofereço a possibilidade de uma terapia política de vossa instituição. [aplausos]
Obrigado.
Mas esse processo não pode fazer-se sem uma análise exaustiva destes
pressupostos. Não os refoulent pas, não os neguem, não os reprimam, não os
desloquem. Não me digam que a diferença sexual não é crucial na experiência da
estrutura do aparato psíquico em psicanálise.
Todo o edifício freudiano está pensado a partir da posição da masculinidade patriarcal
do corpo masculino, heterossexual, entendido como um pênis eréctil, penetrante e
ejaculatório. É por isso que as mulheres em psicanálise, esses animais estranhos entre
as flores, com útero reprodutor e clitóris, são sempre e, todavia, um problema. É por
isso que vocês têm a necessidade, todavia, no início do século XIX, de uma jornada
para falar das mulheres em psicanálise. [aplausos]
Mas não me digam que a instituição psicanalítica não tem considerado, e não
considera ainda, a homossexualidade como um desvio em relação à norma. Do
contrário, como explicar que até faz muito pouco tempo não haviam psicanalistas
podendo publicamente identificar-se como homossexuais? Lhes pergunto: quantos de
vocês se definem hoje, inclusive aqui mesmo, nesta Escola da Causa Freudiana,
publicamente, como psicanalista homossexual? [silêncio... seguido de aplausos]
Eu não forço a revelação de posições subjetivas privadas [risos]... de qualquer
maneira, vejo que vocês não o fazem [risos], talvez não sirva, não sirva para nada.
O que lhes peço é o reconhecimento de uma posição de enunciação política, em um
regime de poder hétero-patriarcal e colonial.
Contrariamente a o que pensa a psicanálise, não creio que a heterossexualidade seja
uma prática sexual ou uma identidade sexual. Penso que é sim um regime político que
tem reduzido a totalidade do corpo humano, vivente, e sua energia psíquica, a um
potencial reprodutivo; uma posição de poder discursiva e institucional.
Os psicanalistas são epistemologicamente e politicamente ainda binários e
heterossexuais, até que o contrário seja dito ou denunciado. E temos tido hoje aqui
uma prova.
Eu não peço aos psicanalistas homossexuais para sair do armário – inclusive se pensa
que isso te faria bem [risos] -; são os psicanalistas heterossexuais em vocês, a
totalidade desta sala, os que devem sair urgentemente do armário da norma.
A psicanálise freudiana começou a funcionar desde finais do século XIX, como uma
tecnologia de gestão do aparato psíquico, encerrada na epistemologia patriarcal,
colonial, da diferença sexual. Não há tentativa na psicanálise freudiana de superar esta
epistemologia, mas sim de inventar uma tecnologia, um conjunto de práticas
discursivas e terapêuticas que permitam normalizar as posições de homens e
mulheres, e suas identificações sexuais e coloniais dominantes (...).
Nesta epistemologia hegemônica os sujeitos patriarcais, coloniais, modernos, utilizam a
maior parte de sua energia psíquica para produzir solidariedade normativa. Angústia,
alucinação, melancolia, depressão, dissociação, opacidade, repetição, não são mais
que os custos gerados para a manutenção desta epistemologia normativa. A psicologia
não é uma crítica desta epistemologia dominante, mas sim a terapia necessária para
que o sujeito patriarcal-colonial continue funcionando, apesar dos custos psíquicos
enormes da violência indescritível deste regime. Mas esta epistemologia da diferença
sexual, com a qual a psicanálise freudiana trabalha, mais além da crítica, lhes digo, tem
entrado em crise depois da segunda guerra mundial. E pode ser – não estou seguro
disso – se vocês são totalmente conscientes que esta epistemologia da diferença
sexual, com a qual vocês continuam trabalhando, está hoje em crise. Está em uma
profunda crise desde os anos 40.
A politização de subjetividades, de corpos considerados como abjetos nesta
epistemologia, a organização de movimentos de luta pela soberania reprodutiva e
política do corpo das mulheres e pela des-patologização da homossexualidade, como
também a invenção de novas técnicas de representação de estruturas bioquímicas da
vida, vai conduzir a uma situação sem precedentes depois dos anos 40. Os discursos
médicos e psiquiátricos parecem ter cada vez mais dificuldades, desde os anos 40 do
último século, para enfrentar a aparição de corpos nos quais não se pode
imediatamente atribuir um sexo feminino ou masculino no nascimento.
Com as novas técnicas cromossômicas e endocrinológicas, e a expansão da
medicalização do parto, cada vez mais bebês, antes chamados hermafroditas,
aparecem. De cara para estes bebês, a comunidade científica-médica inventou uma
nova taxonomia. O psiquiatra de crianças John Money, trabalhando na Universidade
John Hopkins de Nova Iorque, deixa de lado a noção moderna de sexo, como realidade
anatômica, e inventa a noção de gênero, para falar da possibilidade de produzir
tecnicamente a diferença sexual. As noções de intersexualidade, transexualidade,
aparecem também entre 1947 e 1960. Pela primeira vez, a medicina e a psiquiatria
realizam com esforço a existência de uma multiplicidade de corpos e de posições
sexuais mais além do binário. Mas, no lugar de mudar a epistemologia, a instituição
médica, psiquiátrica, psicológica, decide modificar os corpos, normalizar a sexualidade,
retificar as identificações.
Queria compartir, hoje, com vocês, a hipótese segundo a qual toda a psicanálise
lacaniana, que nasce precisamente depois dos anos 40, sua re-leitura de Freud, seu
rodeio pela linguística, é já uma primeira resposta a essa crise da epistemologia da
diferença sexual. Creio que é possível dizer que Lacan tentou, como John Money,
des-naturalizar a diferença sexual; mas, como John Money, terminou por produzir um
meta-sistema que é quase mais rígido que a noção moderna de sexo e diferença
anatômica. No caso de John Money este meta-sistema introduz a gramática do gênero,
pensada como construção social e endocrinológica. Em Lacan, este meta-sistema – e
vocês sabem muito melhor que eu – não é tampouco anatômico, mas sim aquele do
inconsciente estruturado como linguagem, mas, como no caso de John Money, se trata
de um sistema de diferenças que não escapa – desafortunadamente – ao binarismo
sexual e a genealogia patriarcal do nome.
Minha hipótese é que Lacan não conseguiu des-fazer-se do binarismo sexual, por
conta de sua filiação/apego político ao patriarcado heterossexual. Essa
des-naturalização está conceitualmente em marcha; ele mesmo, não estava pronto.
A partir de 1960, com a comercialização da pílula anticoncepcional, depois com a
des-patologização da homossexualidade, a epistemologia da diferença sexual entra no
processo de questionamento e de mutação incontrolável. Hoje sabemos que um bebê a
cada quatrocentos é identificado como intersexual. Não pode ser reconhecido nos
gêneros ordinários. No curso dos último vinte anos, as crianças que têm sido operadas
ou tratadas como intersexual, tem se organizado para pedir o fim da mutilação genital e
os processos de reatribuição forçada. Ao mesmo tempo, que cada vez mais corpos
começam a identificar-se como não-binários. De modo diferente nos Estados Unidos,
mas também na Argentina, como vocês sabem, ou na Austrália, se reconhece hoje os
gêneros não binários como uma possibilidade política.
Tenho o prazer também de contar a vocês que tem apenas umas semanas, minha
amiga e colega, Judith Butler, se inscreveu no registro de estado civil da Califórnia
como pessoa de gênero não binário. As identificações de heterossexualidade,
homossexualidade, pensadas em relação com a capacidade reprodutiva dos corpos de
sexo oposto, parecem cada vez mais obsoletas, de cara com a multiplicidade de
técnicas de gestão da procriação assistida. Não somente a pílula anticoncepcional ou a
pílula do dia seguinte, mas também a paternidade transexual, (...), gestação por outro,
externalização do útero, etc.
A epistemologia da diferença sexual está em plena mutação. Assistimos a um processo
de transformação na ordem da anatomia política e sexual, comparável àquele que
levou a passagem da epistemologia geocêntrica à epistemologia heliocêntrica
copernicana entre 1510 e 1730.
Nos próximos anos, deveremos elaborar coletivamente uma epistemologia capaz de
dar conta da multiplicidade de viventes, que não reduza os corpos a sua força
reprodutora heterossexual, e que não legitime a violência hétero-patriarcal e colonial.
Quando falo de uma nova epistemologia me refiro a começar um processo de
ampliação radical do horizonte democrático, para reconhecer como sujeitos políticos
todo corpo humano vivo, sem que a atribuição sexual ou de gênero seja a condição de
possibilidade deste reconhecimento, social ou político.
Vivemos um momento – gostaria transmitir-lhes isso hoje – de uma importância
histórica sem precedentes. A violência epistemológica da diferença sexual posta em
questão pelo movimento feminista, homossexual, intersexual, transexual, queer, e
apoiado igualmente pela confrontação de novos dados científicos, está em trânsito de
mudar. Estes processos de mudança deste paradigma científico e político conduzirão
ao reconhecimento, enquanto sujeitos políticos soberanos, de todo um conjunto de
corpos que até agora haviam sido marcados como politicamente subalternos.
Neste contexto de transição epistêmica, honoráveis membros da academia de
psicanálise da França, e da École de la Cause Freudienne, vocês têm uma enorme
responsabilidade. Vocês têm... e têm que saber... de que lado querem colocar-se. Se
querem permanecer do lado deste discurso patriarcal e colonial, e re-afirmar a
universalidade da diferença sexual e da reprodução sexual, heterossexual; ou entrar,
conosco, os mutantes deste mundo, em um processo crítico de invenção de outras
formas de subjetividade política. [aplausos]
Vocês não podem recorrer – já termino... vocês não podem recorrer a cada vez aos
textos de Freud e de Lacan como se estes tivessem um valor universal, não situado
historicamente; como se este texto não tivesse sido escrito no interior deste
epistemologia patriarcal da diferença sexual. Fazer de Freud e de Lacan a lei é também
absurdo, como pedir a Galileu que retornasse aos textos de Ptolomeo ou a Einstein
para seguir pensando desde a física de Aristóteles.
Hoje os corpos, outras vezes excluídos do regime da diferença sexual, falam e
produzem um saber sobre eles mesmos. Os movimentos transfeministas, me too, nem
uma a menos, operam uma transformação crucial.
Vocês não podem seguir falando do complexo de Édipo ou do Nome-do-Pai em uma
sociedade onde as mulheres são objeto de feminicídios, onde as vítimas da violência
patriarcal se expressam por denunciar a seus pais, maridos, chefes, namorados; onde
as mulheres denunciam a política institucionalizada de violação; ou onde milhões de
corpos descem às ruas para denunciar agressões homofóbicas, e as mortes, quase
cotidianas, de mulheres trans, assim como as formas institucionalizadas de racismo.
Não podem mais seguir afirmando a universalidade da diferença sexual e a
estabilidade das identificações heterossexuais e homossexuais em uma sociedade
onde é legal mudar de sexo, onde podemos identificar-nos, como pessoas de gênero
não binárias; em uma sociedade onde há já milhões de crianças nascidas de famílias
não heterossexuais e não binárias.
Continuar praticando a psicanálise, utilizando a noção de diferença sexual e com
instrumentos críticos como o complexo de Édipo seria hoje tão aberrante como
pretender continuar navegando no universo com um mapa geocêntrico ptolemaico ou
controlar as mudanças climáticas, ou afirmar que a Terra é plana. [aplausos]
Hoje... – sim, já sei, já termino -...; hoje meus queridos amigos psicanalistas, é mais
importante escutar os corpos excluídos pelo regime patriarcal colonial, que reler Freud
e Lacan. Não se refugiem nos pais da psicanálise. Vossa obrigação política é cuidar
das crianças, não a de legitimar a violência dos pais.
É chegado o momento de colocar o divã na praça e de coletivizar a palavra, de politizar
o inconsciente.
Nos enfrentamos com uma nova aliança necropolítica do patriarcado colonial e de
novas tecnologias farmacopornográficas. Sem dúvida nenhuma, já estamos
enfrentando uma nova farmacolonização crescente, (...), uma mercantilização da
indústria do cuidado.
[Sussurros... o chamam: “Paul”]
Sim, penso que é necessário que pare.
[Risos, aplausos]
A última coisa. Creio que a tarefa que nos resta por fazer é começar um processo de
des-patriarcalização, des-heterossexualização e de-colonização da psicanálise.
[Aplausos] (...) uma psicanálise mutante ao redor desta mutação de paradigma. Talvez
somente este processo de transformação, por mais terrível e desmantelador que
pareça, mereça hoje, de novo, chamar-se psicanálise.”

***

Paul B. Preciado
Intervenção nas Jornada n. 49 da Escola da Causa Freudiana (École de la Cause
Freudienne)

Tema: Mulheres em Psicanálise – 17 de novembro de 2019

Tradução ao português: Mila Kushnir

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