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O que não se pode deixar de

saber sobre o hemograma e


anemias?

2.1 HEMATOPOESE
Hematopoese é o processo pelo qual são formados os elementos do
sangue. O tecido hematopoético, localizado no adulto
predominantemente na medula óssea, é originado das células-
tronco hematopoéticas, que apresentam 3 propriedades:
1. Autorrenovação: capacidade de produzir células idênticas;
2. Diferenciação: produção de todas as linhagens das células
hematológicas maduras;
3. Plasticidade: capacidade de transdiferenciação, ou seja, de originar
células de outros tecidos.

A origem da Célula-Tronco Hematopoética (CTH) pode ser


entendida relembrando os conceitos da embriogênese. A Célula-
tronco totipotente (zigoto) é a que tem a capacidade de formar todos
os tecidos embrionários e extraembrionários. A célula-tronco
pluripotente – blastocisto, também chamada célula-tronco
embrionária – tem a capacidade de formar qualquer tecido
embrionário. A célula-tronco multipotente, também chamada
célula-tronco adulta, forma tecidos específicos, como neurológico,
epidérmico e sanguíneo, mas com propriedade de plasticidade.
A CTH é uma célula multipotente que dá origem a todo componente
celular sanguíneo pela sua propriedade de plasticidade. Essa
propriedade é fundamental para o desenvolvimento das técnicas
futuras de terapia celular, que consistem na reparação, pela célula-
tronco adulta, de tecidos lesados, como tecido cardíaco em
chagásicos ou coronariopatas, tecido neurológico em acidente
vascular cerebral e lesão medular, tecido ósseo e cartilaginoso etc.
Figura 2.1 - Embriogênese e propriedades da célula-tronco de diferenciação e
transdiferenciação

Fonte: elaborado pelos autores.

As células que povoam os espaços intertrabeculares da chamada


medula óssea vermelha ou hematopoética são as CTHs (stem cells),
em pequena quantidade, além das células derivadas da sua
diferenciação e maturação, que se desenvolvem devido ao
microambiente medular – constituído de vasos sanguíneos, células
estromais (fibroblastos e osteoblastos, por exemplo), matriz
extracelular e citocinas.
No processo de diferenciação celular, a CTH tem a capacidade de
originar novas células, mais diferenciadas para uma linhagem
específica, os chamados precursores mieloides e linfoides. Esses
precursores, por meio de sucessivas divisões e maturação, chegam à
formação dos elementos maduros que são, então, liberados para a
circulação periférica.
A divisão e a maturação dos elementos das diferentes linhagens
devem-se à ação de mecanismos intracelulares e à atividade de
mediadores humorais, fatores de crescimento e citocinas – stem cell
factor, fator de crescimento granulocítico, eritropoetina (EPO),
trombopoetina, interleucinas e o fator de necrose tumoral, entre
outros –, além da ação das chamadas moléculas de adesão
medulares. Assim, a ausência ou o excesso de algumas dessas
substâncias pode levar a estados patológicos.
Figura 2.2 - Hematopoese

Legenda: (CFU) unidade formadora de colônia; (BFU) unidade formadora de “ninhos” de


eritrócitos e megacariócitos; (GM) Granulócitos e Monócitos.
#IMPORTANTE
A eritropoese engloba os mecanismos de
diferenciação e maturação da linhagem
eritroide e compreende os elementos que
podem ser detectados na análise da medula
óssea.

A eritropoese envolve a diferenciação e a maturação da linhagem


eritroide, compreendendo, na sequência, pró-eritroblasto,
eritroblasto basofílico, eritroblasto policromatófilo, eritroblasto
ortocromatófilo e, por fim, os reticulócitos, que já são células
enucleadas e capazes de executar as atividades metabólicas de um
eritrócito maduro.
Figura 2.3 - Eritropoese

Nota: as formas vão desde a célula-tronco até a BFU-E e não apresentam características
morfológicas próprias quando visualizadas no esfregaço de sangue medular, mostrando-se
apenas como células mononucleares indiferenciadas. A partir do pró-eritroblasto, já
existem características morfológicas de cada elemento, e são essas características que
indicam sua maturação.
Fonte: adaptado de Análise da expressão gênica das peroxirredoxinas em pacientes
talassêmicos e com anemia falciforme, 2013.

A síntese de Hb faz parte do processo de maturação eritroblástica e


começa com os eritroblastos policromáticos. Ao final da maturação,
o núcleo, já sem utilidade para a célula, é extraído, dando origem ao
reticulócito.
Os reticulócitos, portanto, são anucleados e capazes de realizar todas
as atividades metabólicas de um eritrócito maduro, mas mantêm
restos de material ribossômico em seu interior e têm volume celular
discretamente maior do que as formas maduras. Após 3 dias de
permanência na medula óssea, o reticulócito cai na circulação
periférica, finalizando sua maturação em mais 1 dia, e, com a perda
do material ribossômico restante (retirado pelo baço), se
transformará em eritrócito maduro.
Os fatores necessários para uma eritropoese completa e eficiente são
a presença de CTH normal, nutrientes, como ferro, vitaminas B12 e
B6, ácido fólico, proteínas e lipídios, e do fator estimulante para a
síntese eritroide, principalmente EPO e IL-3. A primeira é uma
glicoproteína produzida no parênquima renal, pelas células
justaglomerulares, por meio de mecanismo autorregulatório – uma
alça de feedback cujo estimulante principal é a hipóxia, e o nível de
EPO circulante aumenta em proporção inversa à oxigenação tecidual
e à massa eritrocitária. À medida que a anemia se desenvolve, o
aparelho sensor dentro do rim aumenta a secreção de EPO, com
aumento da síntese eritroide na medula óssea.
Após 100 a 120 dias na circulação, o eritrócito
senil é destruído pelo sistema
reticuloendotelial, principalmente no baço.
Cerca de 0,8 a 1% da massa eritroide circulante é
reposta diariamente.
Figura 2.4 - Controle da eritropoese
Fonte: adaptado de Anemia of chronic kidney disease: Treat it, but not too aggressively,
2016.

A massa eritroide total do indivíduo é resultado


do balanço entre produção e destruição diárias.

2.2 COMPOSIÇÃO DO ERITRÓCITO


O eritrócito é composto, essencialmente, por uma membrana
envolvendo uma solução rica em eletrólitos (principalmente o
potássio) e Hb. É altamente dependente de glicose como fonte de
energia (ATP), e, como não existem organelas intracelulares como
mitocôndrias, a produção de ATP é quase exclusiva por meio da
glicólise.
2.2.1 Membrana eritrocitária
A membrana eritrocitária é constituída por uma bicamada lipídica,
na qual são inseridas proteínas transmembrana de disposição
vertical (proteínas integrais, banda 3 e glicoforina), que têm como
base de sustentação um citoesqueleto de proteínas de disposição
horizontal (malha de alfa e betaespectrinas).
A integridade da membrana é responsável por propriedades
importantes dos eritrócitos, que permitem sua passagem pelos vasos
sem haver lise celular. Essas propriedades são deformabilidade,
elasticidade e reestruturação do eritrócito, as quais se encontram
alteradas nos defeitos de membrana (esferocitose).
Figura 2.5 - Membrana do eritrócito

2.2.2 Hemoglobina
A Hb é a macromolécula presente no interior dos eritrócitos,
responsável diretamente pelo transporte de oxigênio até os tecidos.
A cor vermelha das hemácias é dada por esse pigmento, e a sua
concentração no interior do corpúsculo se traduz em diferentes
intensidades e padrões de pigmentação, que podem ser armas
propedêuticas importantes no diagnóstico da etiologia das anemias.
A concentração considerada normal de Hb para
mulheres é de 12 a 16 g/dL e, para homens, de 14
a 18 g/dL.

Cada molécula da Hb é composta por 4 cadeias heme e 4 cadeias de


polipeptídios de globina. As cadeias globínicas, responsáveis pela
caracterização do tipo de Hb, são formadas por 2 cadeias alfa e 2
cadeias não alfa (beta, gama e delta). As formas predominantes no
indivíduo normal após o nascimento são:
1. Hemoglobina A (HbA): 2 cadeias alfa e 2 cadeias beta;
2. Hemoglobina A2 (HbA2): 2 cadeias alfa e 2 cadeias delta;
3. Hemoglobina fetal (HbF): 2 cadeias alfa e 2 cadeias gama.

Contudo, outros tipos de cadeias globínicas e de Hbs aparecem


durante o desenvolvimento embrionário-fetal ou por mutações
específicas, como no caso das talassemias e da doença falciforme.
Cada cadeia de globina envolve 1 único núcleo contendo ferro,
denominado “porção heme da molécula”. O heme contém 1 anel de
protoporfirina e 1 átomo de ferro em seu estado ferroso, e pode
ligar-se a 1 única molécula de oxigênio. Portanto, cada molécula de
Hb é capaz de ligar 4 moléculas de oxigênio.
Em um adulto normal, cerca de 98% da Hb circulante consiste em
HbA; aproximadamente 2% da Hb restante aparece na forma A2.
Menos de 1% apresenta-se na forma fetal ou F, sendo esta de maior
afinidade pelo oxigênio do que as formas A.
Figura 2.6 - Hemoglobina A: 4 cadeias de globina (2 alfa, 2 beta) e 4 núcleos heme
2.3 CONCEITOS GERAIS EM ANEMIAS
A anemia é definida como o estado em que há diminuição da
concentração de hemoglobina (Hb) por unidade de sangue, abaixo da
média considerada normal para a raça, o sexo, a idade do indivíduo e
a altitude em que ele se encontra. Essa condição caracteriza-se pela
redução da capacidade de transporte de oxigênio, resultando, nos
quadros mais severos, em disfunções miocárdica e cerebral.
Segundo os critérios da Organização Mundial da
Saúde, os limites mínimos ao nível do mar são
de 14 g/dL para homens, 12 g/dL para mulheres e
11 g/dL para gestantes.

Erroneamente, considera-se a anemia uma patologia, e não o sinal


de uma doença de base. O raciocínio simplista de considerar a
anemia uma entidade individual leva a falhas graves na realização de
diagnósticos e no seu tratamento. Diagnosticar a etiologia é
essencial, pois, se não corrigida ou controlada, a anemia evolui de
forma recorrente ou com piora progressiva.
Alguns fatos devem ser citados no estudo da anemia: a anemia
congênita é sugerida pelas histórias pessoal e familiar. A causa mais
comum de anemia é a deficiência de ferro. Má alimentação pode
resultar em deficiência de ácido fólico e contribuir para deficiência
de ferro, mas o sangramento é muito mais comumente a causa da
deficiência de ferro em adultos. O exame físico demonstra palidez.
Deve-se ter atenção aos sinais físicos de doenças hematológicas
primárias (linfadenopatia, hepatoesplenomegalia ou sensibilidade
óssea), sobretudo no esterno ou na região tibial anterior. Alterações
na mucosa, como língua lisa, podem sugerir anemia megaloblástica.
2.3.1 Mecanismos adaptativos
2.3.1.1 Aumento do débito cardíaco

Para aumentar o aporte de oxigênio aos tecidos, o sangue circula em


maior volume por minuto. Tal procedimento é chamado “efeito
hipercinético da anemia”, que é consequência da queda da
resistência vascular periférica e do aumento da frequência cardíaca.
2.3.1.2 Aumento do 2,3-DPG no interior da hemácia
O 2,3-difosfoglicerato é produzido e destruído enzimaticamente
como intermediário da glicólise nos eritrócitos e liga-se à Hb
desoxigenada, diminuindo, assim, a afinidade desta pelo oxigênio,
liberando-o para os tecidos. Este metabólito reduz a afinidade da Hb
pelo oxigênio, facilitando a liberação de O2 nos tecidos e
minimizando os sintomas.
2.3.1.3 Aumento da perfusão “órgão-seletiva”

Tal aumento forma shunts, para melhorar a perfusão de órgãos


vitais. Na perda aguda, as maiores áreas de redistribuição são o leito
vascular mesentérico e ilíaco; nas perdas crônicas, pele e rim.
2.3.1.4 Aumento da função pulmonar

Este consiste no aumento da frequência respiratória para elevar a


oxigenação sanguínea.
2.3.1.5 Aumento da produção de eritrócito

Tal aumento é mediado pela produção de EPO. A taxa da síntese


desta é inversamente proporcional à concentração de Hb e
estimulada pela hipóxia do tecido renal.
Quando o sistema de adaptação da anemia está preservado, a
liberação tissular de oxigênio pode ser mantida, em repouso, com
valores de Hb de até 5 g/dL. Sintomas estabelecem-se com valores
abaixo desse no indivíduo em repouso, ao esforço físico ou, ainda,
nos casos de falha no sistema de adaptação.
2.3.2 Quadro clínico
Os sinais e sintomas associados à anemia devem-se à deficiência do
aporte tissular de oxigênio. A chamada síndrome anêmica varia em
suas manifestações, de acordo com a idade, o tempo de
estabelecimento, a intensidade da anemia e as performances
hemodinâmica e respiratória do indivíduo. Idosos com
comorbidades, como insuficiência cardíaca ou doença pulmonar
obstrutiva crônica, têm menor tolerância ao estado de hipóxia
tissular. Pacientes cujo quadro anêmico se estabelece lentamente,
como no caso da deficiência de ferro por perdas crônicas, suportam
níveis mais baixos de Hb (pela adaptação feita com os mecanismos
compensatórios) quando comparados àqueles em que há rápida
instalação da anemia, como nas perdas agudas.
Os sintomas mais habitualmente associados à síndrome anêmica,
independentemente de sua etiologia, são dispneia aos esforços, de
forma progressiva – até dispneia em repouso, tontura postural,
vertigem, cefaleia, palpitação, síncope, astenia, diminuição dos
rendimentos físico e intelectual, alteração do sono, diminuição da
libido, alteração do humor, anorexia, dor torácica e descompensação
de patologias cardiovasculares, cerebrais ou respiratórias de base.
No exame físico, encontram-se palidez da pele e das mucosas,
taquicardia, aumento da pressão do pulso, sopros de ejeção
sistólicos, diminuição da pressão diastólica e edema periférico leve.
Nos casos mais graves, letargia, confusão mental, hipotensão
arterial e arritmia cardíaca.
A anemia causada por perda sanguínea aguda é acompanhada de
sintomas de hipovolemia. De acordo com o volume de sangue
perdido, a intensidade do sintoma muda e pode variar desde
taquicardia até choque hipovolêmico e perda de consciência. Além
disso, os reflexos de adaptação vascular à perda volumétrica aguda
são mais intensos, e o quadro pode regredir apenas com reposição de
volume. É importante reconhecer a diferença entre sintoma de
anemia e hipovolemia, a fim de evitar transfusões de sangue
desnecessárias.
A transfusão de concentrado de hemácias deve ser considerada aos
pacientes das classes III e IV, pois, nos de classes I e II, pode ser feita
apenas a reposição volêmica com cristaloides. O cor anêmico é
possível em indivíduos previamente hígidos e acontece em razão da
insuficiência cardíaca de alto débito.
2.4 INVESTIGAÇÃO ETIOLÓGICA E
CLASSIFICAÇÃO

A anemia é sinal de doença, portanto nunca


deve ser admitida como normal, devendo-se
sempre procurar uma causa.

A abordagem inicial do paciente com anemia deve acontecer da


seguinte forma:
1. História clínica completa:
a) Questionar quanto aos sintomas da síndrome anêmica e ao
tempo de evolução;
b) Investigar história nutricional, incluindo ingestão alcoólica;
c) Questionar sobre sintomas de doenças que, sabidamente,
cursam com anemia (sangue nas fezes, dor epigástrica, artrite,
características da diurese);
d) Pesquisar comorbidades e medicamentos em uso;
e) Investigar história familiar de anemia e origem étnica,
considerando alterações hereditárias da Hb e do metabolismo do
eritrócito (talassemias, anemia falciforme, deficiência de G6PD
etc.);
f) Investigar história ocupacional, à procura de exposição a
agentes tóxicos.
2. Exame físico: realizar exame físico completo, além de estar atento
para sinais de anemia, como glossite, queilite angular, icterícia (sinal
de hemólise ou hepatopatia), sinais de neuropatia, esplenomegalia
(hemólise ou outra doença de base) e sinais de doenças associadas
como causa da anemia (adenomegalia, esplenomegalia, petéquias);
3. Exames laboratoriais na investigação inicial:
a) Hemograma: é importante para a análise dos índices
eritroides, auxiliando na classificação morfológica da anemia e na
avaliação dos outros componentes celulares sanguíneos;
b) Contagem de reticulócito: avalia a função medular,
importante na classificação funcional das anemias;
c) Avaliação do esfregaço de sangue periférico: contém
informações importantes quanto à alteração na produção eritroide
e nos mostra diferenças no tamanho e na forma das hemácias.

A avaliação da anemia depende da avaliação fisiopatológica, que


compreende a contagem de reticulócitos e classifica a anemia pela
produção medular, e a avaliação morfológica, que inclui os
elementos do hemograma e do esfregaço periférico e classifica a
anemia conforme as características dos exames laboratoriais.
2.4.1 Classificação fisiopatológica (hemograma e
contagem de reticulócitos)
O número de reticulócitos (precursores das hemácias) ajuda a
estimar a função medular e deve ser pedido na avaliação das
anemias. A contagem normal de reticulócitos varia de 0,5 a 2%, e sua
contagem absoluta de 25.000 a 75.000 µL, podendo ser utilizada
como marcador da eritropoese eficaz, pois eles são formas jovens da
hemácia recentemente liberados pela medula óssea. Diante do
quadro de anemia, se a EPO e a função medular estiverem
preservadas, a produção eritroide aumentará em 2 a 3 vezes o valor
normal dentro de 10 dias do início da anemia. Desta forma, se o valor
normal da contagem não for ampliado dessa maneira, será indício de
resposta medular inadequada.
O valor do reticulócito pode ser expresso em número absoluto ou
relativo (em porcentagem). Como geralmente é referido em
porcentagem, para utilizá-lo como indicador de função medular, são
necessários ajustes, descritos a seguir.
2.4.1.1 Ajustar para o grau de anemia

Na anemia, a porcentagem de reticulócitos pode estar aumentada,


enquanto o número absoluto pode estar baixo. Exemplo: em um caso
em que o valor de reticulócitos é de 5%, em uma contagem de
eritrócitos de 1.000.000/µL, o número absoluto é de 50.000/µL; isto
é, infere-se que não há reticulocitose. Para corrigir esse efeito,
utiliza-se o seguinte cálculo:
Nota: hematócrito normal para o homem: 45%; para a mulher: 40%.

Ambos, o hematócrito (Htc) e o reticulócito são mensurados em


porcentagem. A maturação depende do nível de Htc: 1 para Htc >
40%; 1,5 para Htc entre 30 e 39,9%; 2 para Htc entre 20 e 29,9%; e
2,5 para Htc < 20%. Um índice de reticulócito > 3 representa uma
reação medular normal, e um índice < 2 representa uma resposta
medular inadequada (insuficiente).
Outra fórmula que pode ser utilizada é o cálculo do número de
reticulócitos absolutos, como segue:

Quando o reticulócito é expresso em número absoluto, esse cálculo


não é necessário.
2.4.1.2 Índice reticulocitário

O reticulócito está presente na circulação pelo período de 1 a 2 dias,


tempo suficiente para o catabolismo final dos resíduos de RNAs. Em
situações com grande estímulo da eritropoese, o reticulócito pode
sair precocemente da medula e ficar mais dias no sangue periférico,
fato identificado pelo encontro de policromasia (variação de cor na
análise do sangue periférico). Portanto, nessas situações, pode-se
ter uma estimativa excessiva da eritropoese. Para corrigir esse
efeito, utiliza-se o índice reticulocitário.
Calcula-se, de forma prática, dividindo o reticulócito corrigido por 2
(ou o valor absoluto), pois a maioria dos pacientes se apresenta com
hematócrito entre 20 e 30%. Porém, quanto mais intensa for a
anemia, mais precocemente o reticulócito cairá na circulação e ali
ficará por maior tempo. Desta forma, o método correto de calcular o
índice é correlacionar com o hematócrito.
Quadro 2.1 - Fator de correção, segundo o hematócrito para o cálculo do índice
reticulocitári

Com a avaliação dos reticulócitos, pode-se dividir a função medular


em:
1. Medula hipoproliferativa: apresenta contagem de reticulócito
corrigida < 2% ou < 100.000/mm3;
2. Medula hiperproliferativa: quando a contagem atinge valores ≥ 2%
ou ≥ 100.000/mm3, indicando resposta medular normal à perda de
sangue ou à destruição excessiva dos eritrócitos.

Com esses dados, pode-se estabelecer a classificação fisiopatológica


das anemias:
1. Anemias hipoproliferativas: diagnosticadas pela reticulocitopenia,
resultam da baixa taxa de produção de hemácia. As causas mais
comuns são:
a) Deficiência nutritiva (em crianças e adultos) por falta de
absorção, ingesta inadequada ou perda crônica (especialmente
de ferro, folato e vitamina B12);
b) Falta de estímulo com diminuição de hormônios estimulantes
da eritropoese – EPO (disfunção renal), hormônio tireoidiano,
androgênio;
c) Doenças da célula-tronco (anemia aplásica, mielodisplasia) ou
infiltração medular tumoral;
d) Supressão medular: quimioterápicos, medicamentos;
e) Anemia de doença crônica secundária a processos
inflamatórios, infecciosos ou neoplásicos.
2. Anemias hiperproliferativas: diagnosticadas pela reticulocitose,
ocorrem em razão da perda ou destruição excessiva dos eritrócitos,
com resposta adequada da medula óssea. Hemólise é a destruição
prematura de hemácias e pode ser de causa congênita ou adquirida.

Quadro 2.2 - Classificação fisiopatológica


2.4.2 Avaliação da morfologia (hemograma e
esfregaço do sangue periférico)
A avaliação morfológica das anemias baseia-se, principalmente, na
hemoglobina corpuscular média, no volume corpuscular médio e no
red cell distribution width (RDW).
O VCM (que mostra o tamanho médio dos eritrócitos) e a HCM (que
mostra o valor médio de Hb nas hemácias – representado
morfologicamente pela cor do eritrócito) podem ser calculados com
base nos valores de hematócrito, número de eritrócitos e Hb.
Baseia-se na cor (CHCM) e no tamanho (VCM) das hemácias (Quadro
2.3).
Quadro 2.3 - Valores de referência para concentração da hemoglobina corpuscular média
e volume corpuscular médio

2.4.2.1 Hipocrômicas e microcíticas

São caracterizadas por células pequenas e de coloração menos


intensa, pelo pouco conteúdo de Hb, que pode ser decorrente de:
1. Diminuição da disponibilidade do ferro: deficiência de ferro, anemia
de doença crônica, deficiência de cobre;
2. Diminuição da síntese do heme: intoxicação por chumbo, anemia
sideroblástica;
3. Diminuição na síntese de globinas: talassemia, outras
hemoglobinopatias.

2.4.2.2 Normocrômicas e normocíticas

A média do tamanho e da coloração das hemácias é normal. Nessa


situação, a análise do sangue periférico é importante, pois pode
tratar-se de estágio inicial de anemia microcítica ou macrocítica.
Pode também ocorrer pela falta de estímulo da eritropoese
(insuficiência renal, endocrinopatia), pela anemia de doença crônica
ou pelas anemias por infiltração medular, entre outros.
2.4.2.3 Normocrômicas e macrocíticas

Trata-se de hemácias grandes e de coloração normal, maiores que a


média, porém com conteúdo globínico normal. Ocorrem
frequentemente em:
a) Anemias com metabolismo anormal do ácido nucleico –
megaloblásticas por deficiência de vitamina B12 ou ácido fólico,
medicamentos (zidovudina, hidroxiureia);
b) Reticulocitose importante, pois o reticulócito é uma célula grande –
anemia hemolítica, resposta à perda sanguínea aguda;
c) Alteração da maturação do eritrócito (mielodisplasia);
d) Outras causas, como hepatopatia, hipotireoidismo, alcoolismo.

Podem-se ainda classificar as anemias, além dos pontos de vista


fisiopatológico e morfológico:
1. Quanto à massa eritrocitária:
a) Relativas: aumento do volume plasmático, sem alteração da
massa eritrocitária (gestante, macroglobulinemia);
b) Absolutas: diminuição real da massa eritrocitária.
2. Quanto à velocidade de instalação:
a) Agudas: de instalação rápida;
b) Crônicas: de instalação lenta. Após a avaliação e a
classificação inicial das anemias, muitas vezes são necessários
exames específicos para confirmação diagnóstica, como na
anemia hipocrômica e microcítica com RDW alto – analisar perfil
de ferro; anemia macrocítica com RDW alto – analisar dosagem
de vitamina B12 e folato; anemia normocrômica e normocítica
com reticulócito baixo e RDW normal – dosar nível sérico de EPO,
avaliar funções renal e tireoidiana e solicitar mielograma.
O que não se pode deixar de
saber sobre o hemograma e
anemias?
Convém não esquecer de checar os níveis de hemoglobina,
VCM, HCM, CHCM e RDW para poder classificar as anemias
em micro/macrocíticas, hipo/hipercrômicas.
Quais são as principais
causas de anemias
hipoproliferativas?

3.1 CONCEITOS GERAIS


A baixa resposta reticulocitária perante a anemia é sinal
patognomônico das anemias por deficiência de produção ou
hiporregenerativas.
A faixa da normalidade no número de reticulócitos por volume de
sangue varia entre 25.000 e 100.000/mm3, esperando-se contagens
maiores ou iguais a 100.000/mm3 quando há regeneração medular,
ou seja, nas anemias hiperproliferativas, e valores menores que
100.000/mm3 quando não há resposta medular eficaz, no caso das
anemias hipoproliferativas ou por deficiência de produção.
3.2 ANEMIA POR DEFICIÊNCIA DE
FERRO
3.2.1 Conceitos gerais
O ferro é um mineral essencial ao organismo humano. Suas funções
são as de mediador enzimático para a troca de elétrons (citocromo,
peroxidases, catalases e ribonucleotídeo redutase) e carreador de
oxigênio (mioglobina e Hb). Nesta, é o componente central da
molécula heme e o responsável direto por levar oxigênio até os
tecidos.
A deficiência de ferro é a causa mais comum de anemia no mundo e
uma das doenças mais frequentes na prática médica. Sua
distribuição geográfica é mais extensa nos países em
desenvolvimento, onde o aporte dietético de ferro e o controle das
parasitoses intestinais são insuficientes. Dados norte-americanos
revelam que de 1 a 2% dos adultos apresentam anemia ferropriva,
sendo a deficiência de ferro sem anemia mais comum, acometendo
11% das mulheres e 4% dos homens. Entretanto, não existe faixa
etária de maior prevalência dessa patologia, podendo ser encontrada
em qualquer idade, com causas variáveis.
Em adultos, as causas mais comuns de anemia
por deficiência de ferro são ingestão
insuficiente, déficit de absorção, perdas
sanguíneas ou aumento rápido da demanda
(como no crescimento rápido dos adolescentes
e na gestação).

O desenvolvimento da deficiência de ferro e a velocidade com que ela


se instala dependem da reserva individual. O sexo, a idade e o
balanço entre ingestão e perda diária do paciente influenciam nesse
caso.
3.2.2 Metabolismo do ferro e fisiopatologia da
carência
O ferro total do organismo varia entre 2 e 4 g: por volta de 50 mg/kg
nos homens e 35 mg/kg nas mulheres. Nos homens, 1 mL de
concentrado de hemácias contém, aproximadamente, 1 mg de ferro,
portanto 1 mL de sangue total contém entre 0,5 e 0,6 mg de ferro,
perfazendo um total estimado de 2.100 mg de ferro no sangue de um
indivíduo que pesa 70 kg. Nas mulheres, a concentração é mais
baixa; calcula-se encontrar cerca de 1.350 mg de ferro, o que pode
ser explicado por perda menstrual, gravidez, lactação e menor
ingestão.
Quadro 3.1 - Distribuição do conteúdo de ferro no organismo

A produção do estoque de ferro é feita principalmente por 2


componentes:
1. Ferritina: formada pela proteína apoferritina + ferro, encontrada
virtualmente em todas as células do organismo (principalmente fígado,
baço e pulmões) e na corrente sanguínea, por ser hidrossolúvel. Sua
dosagem sérica reflete o estoque total corpóreo, visto ser essa a forma
de estoque mais abundante. É importante para disponibilizar ferro,
conforme a necessidade corpórea;
2. Hemossiderina: não é hidrossolúvel, representando cerca de 25 a
30% do estoque corpóreo; nos indivíduos normais, encontra-se
armazenada no sistema reticuloendotelial macrofágico e na medula
óssea; porém, em condições patológicas, pode acumular-se em
qualquer tecido, principalmente no fígado e no baço.

Figura 3.1 - Ciclo da cinética de ferro


Fonte: elaborado pelos autores.

3.2.2.1 Ingestão

A dieta média nos países desenvolvidos contém aproximadamente 15


mg/d de ferro. No Brasil, calcula-se que a dieta das classes B e C
apresente cerca de 10 mg/d de ferro nos alimentos. Está presente na
forma de anéis heme (carnes, peixes, aves), a mais biodisponível, e
na forma de complexos de hidróxido férrico (nos vegetais). Esta
necessita do pH ácido do estômago para ser reduzida à forma ferrosa
e para poder ser adequadamente absorvida.
3.2.2.2 Absorção

Do total de ferro ingerido, 30% da forma heme e 10% da não heme


são absorvidos; o restante é eliminado nas fezes. A absorção diária
no homem varia de 0,5 a 1 mg/d, sendo o dobro na mulher, o que é
justificado pela perda menstrual, e o quádruplo na gestante, em
razão do consumo pelo feto. A absorção pode ser ajustada, de acordo
com as necessidades orgânicas. Na deficiência de ferro, a eficácia da
absorção do metal pode aumentar até 5 vezes em relação ao basal.
O ferro, de maneira geral, é absorvido pela borda “em escova” das
células epiteliais da vilosidade intestinal, especialmente no duodeno
e no jejuno proximal. Os íons ferrosos (Fe++) são absorvidos mais
eficientemente do que a forma férrica (Fe+++); esta, por sua vez,
necessita da acidez gástrica para a estabilização e a ligação com a
mucina. Com tal ligação, uma enzima chamada redutase férrica
transmembrana converte Fe+++ em Fe++, o qual precisa atravessar a
membrana apical da célula intestinal pela proteína DMT1
(transportador de metal divalente do tipo 1), saindo, assim, do
lúmen intestinal e atingindo o interior celular.
Existem substâncias capazes de interferir na absorção do ferro,
como o ácido ascórbico, que modifica a valência de férrico para
ferroso e melhora a absorção, ou como os fitatos (farelos, aveia,
centeio), tanatos (chás), oxalatos (uvas-passas, figo, ameixa,
batatas-doces, amêndoas, tomate, chocolate, cacau), fosfatos (leite
e derivados), antiácidos, cálcio e até antibióticos (tetraciclina,
quinolonas), que reduzem a absorção.
O duodeno e a porção superior do jejuno são os locais de máxima
absorção; consequentemente, síndromes disabsortivas ou bypass
dessas áreas podem levar à deficiência de ferro.
Uma vez no interior celular, o ferro tem 2 vias possíveis: é
armazenado como ferritina, ou é transportado para o plasma,
passando pela proteína transmembrana ferroportina, que, por sua
vez, atua em conjunto com a hefaestina para nova transformação de
íon ferroso em férrico.
Atualmente, sabe-se, ainda, que a regulação da absorção é dada por
uma proteína de fase aguda chamada hepcidina; sintetizada no
fígado, atua diretamente na inibição da absorção de ferro, bem como
na diminuição da sua liberação do interior da célula intestinal, pelo
feedback negativo do seu transportador na membrana basolateral
ferroportina. Logo, sua superexpressão causa aumento dos estoques
de ferro, associado à diminuição da absorção desse íon e de sua
quantidade sérica circulante.
A hepcidina e a ferroportina são reguladoras da absorção de ferro:
aumentam a absorção quando os estoques estão baixos ou ausentes e
quando há aumento da eritropoese (principalmente em doenças que
cursam com eritropoese ineficaz: mielodisplasia, betatalassemia e
anemia sideroblástica); e diminuem a absorção quando os estoques
estão repletos. Além disso, a hepcidina regula a liberação de ferro
pelos macrófagos que fagocitaram eritrócitos senescentes.
#IMPORTANTE
A hepcidina está aumentada em infecções,
inflamações, doença renal crônica e aumento
do estoque de ferro, e diminuída em casos de
hipóxia, anemia, deficiência de ferro,
eritropoese inefetiva e altos níveis de
eritropoetina.

3.2.2.3 Transporte do ferro

O ferro ferroso (Fe++), absorvido pelo enterócito, pode ser


armazenado na forma de ferritina ou novamente ser oxidado em
férrico (Fe+++), para ligar-se à transferrina e ser transportado aos
diversos tecidos pela ação da hefaestina, enzima dependente de
cobre. Os tecidos que necessitam de ferro possuem receptores de
transferrina em quantidade proporcional e suficiente, pois, por meio
deles, ligam-se à transferrina e recebem o ferro.
Figura 3.2 - Absorção de ferro no duodeno
Fonte: adaptado de Iron and multiple sclerosis, 2014.

3.2.2.4 Reaproveitamento do ferro


Cerca de 20 a 25 mg de ferro são liberados diariamente pelas
hemácias senescentes para os macrófagos.
O núcleo heme da hemácia fagocitada pelo macrófago é
metabolizado, deixando o ferro livre para a circulação sanguínea por
meio da ferroportina ou para armazenamento na forma de ferritina,
a depender das necessidades do organismo.
3.2.2.5 Perda

Não há nenhum mecanismo de regulação da perda de ferro. Este é


perdido pelo suor e pela descamação da pele e do epitélio
gastrintestinal, na taxa de, aproximadamente, 1 mg/d; na mulher,
em cada ciclo menstrual, a perda é aumentada em 1 a 2 mg/d.
Nenhum mecanismo de excreção foi ainda detectado, nem pelo
fígado nem pelos rins, portanto, a homeostasia fica balanceada entre
a absorção diária de 1 a 2 mg e a perda diária da mesma quantidade.
Figura 3.3 - Homeostasia do ferro
Legenda: Tf-Fe+++: transferrina ligada ao ferro.
Fonte: acervo Medcel.

A gravidez pode modificar tal equilíbrio, em razão do aumento da


demanda de ferro de até 2 a 5 mg/d. A dieta normal, geralmente, não
supre essas necessidades, e a suplementação de ferro é indispensável
durante a gravidez. Gestações repetidas, principalmente quando
seguidas de amamentação, são causas frequentes de anemia
ferropriva, caso não haja aporte de ferro adicional.
As perdas crônicas desequilibram o cálculo entre o aporte diário e a
absorção de ferro. Deve-se pensar nesse fato como um balanço
comercial: se a absorção for equivalente a 2 mL de sangue por dia (1
mg), perdas acima dessa quantidade deverão ser compensadas pelo
mecanismo de aumento do aproveitamento do ferro alimentar.
Contudo, tal mecanismo nem sempre é suficiente, e os estoques de
ferro são lentamente depletados, até que a deficiência se instale. O
processo é frequente nas hipermenorreias, em que a mulher pode
relatar fluxo intenso e duradouro por muitos anos e considerá-lo
normal.
A redução da absorção do ferro, como na gastrite atrófica ou na
acloridria, na doença celíaca e na gastrite por Helicobacter pylori, leva
à deficiência. Contudo, o sangramento em algum local do tubo
digestivo é causa muito mais comum dessa condição.
Reitera-se que a causa mais frequente de deficiência de ferro em
adultos é a perda de sangue, seja menstrual, nas hipermenorreias ou
polimenorreias, seja digestiva, em úlceras gástricas, doenças
diverticulares ou tumores do trato gastrintestinal. As patologias
aparentemente não sangrantes, como a esofagite e a hérnia de hiato,
podem estar relacionadas.
A hemoglobinúria crônica também pode causar deficiência de ferro,
pois é possível perder acima de 1 mg/d por essa via. Esse quadro pode
ocorrer por hemólise mecânica, por válvulas cardíacas metálicas e
por hemólise intravascular sustentada, como na hemoglobinúria
paroxística noturna.
O Quadro 3.2 sintetiza os fatores que levam à deficiência de ferro.
Quadro 3.2 - Fatores etiológicos da deficiência de ferro
Em geral, a falta de ingesta como causa isolada de ferropenia é rara.
Deve ser um diagnóstico de exclusão, pois mesmo a quantidade de
ferro em dietas de extrema pobreza é suficiente para aporte
adequado de ferro, levando-se em conta a capacidade do organismo
em aumentar a sua absorção de ferro em até 5 vezes.
3.2.3 Quadro clínico
A apresentação clínica pode incluir tanto manifestações da doença
de base como do próprio estado anêmico.
A privação de ferro manifesta-se com sintomas
em outros órgãos e tecidos,
independentemente da presença ou não de
anemia, como queda de cabelo, redução do
rendimento intelectual e mialgia.
São queixas frequentes na ferropenia: perversão do apetite (pica –
vontade de comer terra, barro, arroz cru), pagofagia (compulsão por
comer gelo), unhas quebradiças e finas, língua lisa, com perda das
papilas, glossite, queilite angular (Figura 3.6), gastrite atrófica e
diminuição da saliva. Coiloníquia, que são as unhas em formato de
colher (Figura 3.5) também podem ocorrer na anemia ferropriva.
Algumas manifestações clínicas são pouco frequentes, como
disfagia, alteração nos mecanismos da imunidade e escleras
azuladas.
Os sintomas evoluem de maneira gradual e incluem fadiga,
taquicardia, palpitação, irritabilidade, tontura, cefaleia e
intolerância aos esforços de intensidade variável. Pela instalação
insidiosa e prolongada, os mecanismos adaptativos do organismo
permitem tolerância de níveis bastante baixos de Hb.
Figura 3.4 - Glossite atrófica: atrofia das papilas

Figura 3.5 - Coiloníquia


Fonte: Iweevy.

Figura 3.6 - Queilite angular


Fonte: Frank60.

3.2.4 Laboratório
Os achados laboratoriais acompanham a evolução do quadro clínico,
pois a deficiência de ferro se instala por etapas.
Inicialmente, ocorre depleção dos estoques de ferro, com redução
dos níveis de ferritina sérica abaixo de 30 ng/mL. A ferritina é o
indicador mais confiável do status do ferro no organismo, por ser
menos sensível às variações distributivas do que o ferro sérico e seus
indicadores de transporte. Contudo, é uma proteína “de fase aguda”,
ou seja, aumenta perante quadros inflamatórios, devendo ser
considerada com cautela quando há concomitância da anemia com
infecções ou inflamações severas. Para dosagens de ferritina
extremamente baixas (< 15 ng/mL), a especificidade do teste é de
99%.
Devido à falta de ferro, a formação de hemoglobina é deficiente,
fazendo que o conteúdo das hemácias seja pequeno, acarretando
volumes corpusculares médios mais baixos e anisocitose
importante, o que eleva o valor do red cell distribution width (RDW).
Posteriormente, a formação dos eritrócitos continua, porém os
níveis de ferro circulante e a saturação da transferrina caem,
mostrando que não resta mais ferro para ser mobilizado. A
Capacidade Total de Ligação do Ferro (CTLF) e a quantidade de
receptor de transferrina solúvel aumentam, mostrando que os
receptores do ferro estão “vazios”.
Outros parâmetros menos utilizados no cotidiano, porém de valor
acadêmico, são: receptor de transferrina solúvel, produzido pelos
eritrócitos de forma aumentada na carência de ferro, conferindo a
essas células maior capacidade de absorção do ferro, e protoporfirina
eritrocitária livre, que reflete diretamente a substituição do ferro
pelo zinco na formação do heme, estando aumentada nas
ferropenias.
A falta de ferro para formar Hb leva à formação de hemácias com
pouco conteúdo (hipocromia: Hemoglobina Corpuscular Média –
HCM – baixa), que, ao se adaptarem a essa situação, alcançam
volumes corpusculares mais baixos (microcitose: Volume
Corpuscular Médio – VCM – baixo), resultando em anisocitose
importante e RDW aumentado. Nas formas mais severas, podem ser
notadas formas bizarras das hemácias, apresentando poiquilocitose
intensa. A contagem de reticulócitos está diminuída, pois a
eritropoese também está. A contagem de plaquetas pode elevar-se
em razão do aumento da secreção de eritropoetina (EPO) pela
anemia. O padrão-ouro para a avaliação direta do estoque de ferro é
a análise da medula óssea com pesquisa do ferro medular, por meio
da coloração com azul da Prússia (Perls). Dessa forma, é possível
avaliar semiquantitativamente o estoque de ferro nos macrófagos;
porém, como sua aplicabilidade é limitada, opta-se por medidas
indiretas;
Deve-se sempre lembrar de investigar a causa: diante de ferropenia
ou anemia ferropriva, sem causa aparente (hipermenorreia,
gestação, adolescência ou infância), avaliar inicialmente: endoscopia
digestiva alta e colonoscopia, caso não seja identificada nenhuma
anomalia, avaliar intestino delgado (exame de imagem – tomografia
de abdome e cápsula endoscópica).
Quadro 3.3 - Perfil laboratorial da anemia ferropriva

Quadro 3.4 - Principais causas de anemia ferropriva, de acordo com a faixa etária

Diante de situações como gastroplastia redutora, gastrectomia,


doença gastrintestinal inflamatória crônica, nas quais se suspeita de
resposta insatisfatória com o tratamento com ferro por via oral
devido à má absorção deste elemento, um dos métodos preconizados
que pode ajudar a confirmar essa alteração é o teste de absorção
intestinal do ferro por via oral.
Nesse teste, é realizada a dosagem de ferro sérico em jejum, feita a
ingestão de ferro elementar por via oral e, após cerca de 2 horas, é
dosado novamente o nível de ferro sérico para comparação com o
anterior.
3.2.5 Diagnóstico diferencial
Outras causas de anemia hipocrômica microcítica devem ser
consideradas na avaliação clínica. Contudo, a história e o exame
físico geralmente são suficientes para confirmar o diagnóstico. São
diagnósticos diferenciais:
a) Anemia de doença crônica;
b) Talassemia;
c) Anemia sideroblástica;
d) Hemoglobinopatia C;
e) Intoxicação por chumbo.

É importante ressaltar que, no hipotireoidismo e na deficiência de


vitamina C, existe diminuição de ferritina sem depleção dos estoques
de ferro.
3.2.6 Tratamento

A transfusão para a correção de anemia


ferropriva deve ser reservada a quadros de
instabilidade hemodinâmica por sangramento
excessivo ou situações que apresentem sinais
de isquemia tecidual/cor anêmico.

Além de oferecer o aporte de ferro para o tratamento da deficiência


subjacente, deve-se tratar a causa, ou seja, investigar a fonte de
perda sanguínea e tratá-la, já que a persistência da perda é o
principal motivo de manutenção e até piora da anemia ferropriva.
É extremamente rara a necessidade de transfusão para a correção de
anemia ferropriva, pois esta é de instalação lenta, e o organismo
adapta-se a níveis bastante baixos de Hb. Deve ser reservada a
quadros de instabilidade hemodinâmica por sangramento excessivo
ou situações que apresentem sinais de isquemia tecidual/cor
anêmico.
A primeira opção para o tratamento da anemia ferropriva é o ferro
oral, pois é de custo bastante baixo, de fácil administração e sem
efeitos adversos graves.
O ferro parenteral, por ser mais custoso, com necessidade de infusão
em ambiente hospitalar e risco de reações adversas graves e até
fatais, deve ser reservado para casos especiais.
3.2.6.1 Ferro oral

Apesar do aparecimento de várias formas diferentes de ferro oral, o


melhor tratamento para a deficiência continua a ser o sulfato ferroso
na dose de 300 mg (60 mg de ferro elementar), 3 a 4x/d, que deve ser
ingerido longe das refeições, para garantir o máximo
aproveitamento. Em crianças, preconiza-se o uso de 2 mg/kg/d,
procurando não ultrapassar 15 mg/d, para não aumentar a
toxicidade.
Os principais problemas no uso do sulfato ferroso são os possíveis
efeitos colaterais: intolerância digestiva, com dispepsia, dor
epigástrica, diarreia, constipação, gosto amargo na boca e
escurecimento das fezes. Muitas vezes, conseguem-se controlar os
efeitos adversos com a ingestão do medicamento junto às refeições,
fracionamento ou redução da dose diária, lembrando, porém, que
essas medidas podem reduzir o aporte terapêutico de ferro
elementar em até 50%, resultando em maior tempo de tratamento. O
aporte de ferro oral deverá ser mantido por, pelo menos, 4 a 6 meses
após a normalização da Hb, para garantir a repleção dos estoques do
mineral. Contudo, recomenda-se realizar nova dosagem de ferritina
sérica após o término da reposição, a fim de confirmar a
normalização das reservas, que devem estar acima de 50 ng/mL e
com saturação de transferrina > 20%, deixando um intervalo de pelo
menos 7 dias entre a última dose da medicação e a coleta do exame,
já que a ingesta de suplementos de ferro é a principal causa de
resultados falsamente normais de ferro sérico e ferritina. Algumas
vezes, pode ser necessário manter o aporte de ferro oral por mais
tempo, principalmente quando a causa da deficiência ainda não foi
resolvida ou ultrapassada.
Atualmente, existe o ferro quelato ou quelatado, superior ao sulfato
ferroso quanto às queixas de intercorrências gastrintestinais, pois
não ocorre liberação de íons ferro no trato gastrintestinal, como
acontece com o uso de outros sais de ferro, o que pode estar
relacionado ao fato de a absorção desse tipo acontecer
principalmente no jejuno.
A eficácia da reposição pode ser avaliada por meio do pico
reticulocitário, que ocorre de 5 a 7 dias após o início do tratamento, e
pela elevação de Hb, em 3 semanas, de pelo menos 2 g/dL (0,2
g/dL/d). Em casos de refratariedade ao tratamento, deve-se pensar
em dose inadequada da medicação prescrita, falta de adesão, falta de
absorção e persistência da causa da ferropenia.
3.2.6.2 Ferro parenteral

O grau de anemia não faz parte das indicações de ferro parenteral;


assim, mesmo que o paciente esteja com baixos níveis de
hemoglobina, se não estiver sintomático a ponto de realizar
transfusão de hemácias e não houver nenhuma contraindicação ao
uso de ferro oral, opta-se por essa modalidade de reposição.
Em virtude de efeitos adversos graves (choque anafilático em 1% dos
casos), a administração de ferro parenteral deve ser reservada a
casos estritos:
a) Na intolerância ao ferro oral, apesar da alteração da posologia ou da
mudança na apresentação;
b) Na falta de absorção do ferro oral, como em alguns casos pós-
gastrectomia;
c) Na vigência de doença gastrintestinal (como as doenças
inflamatórias intestinais), pois pode haver piora dos sintomas;
d) Nos casos em que há perda intensa, com o ferro oral não sendo
suficiente para suprir as necessidades;
e) Pacientes em hemodiálise, que apresentam perdas constantes pelo
procedimento e pelo déficit de absorção intestinal.

Até pouco tempo, a única apresentação comercial de ferro parenteral


no Brasil era o sacarato de hidróxido de ferro III (Noripurum®), que
se encontra em formulação tanto para aplicação intramuscular
quanto para infusão intravenosa após diluição, sendo preferível esta
última. A administração de ferro intramuscular é dolorosa, de
absorção lenta e incompleta, podendo impregnar-se na região da
aplicação, e não é menos tóxica ou mais segura do que a outra
administração, estando atualmente proscrito o seu uso rotineiro. O
déficit de ferro é calculado pela determinação do decréscimo em
massa de células vermelhas do sangue normal, reconhecendo que há
1 mg de ferro em cada mL de células vermelhas do sangue.
Foi lançada no mercado uma apresentação de ferro para uso
intravenoso, a carboximaltose férrica (Ferinject®), a qual propicia
mais comodidade e apresenta posologia e cálculo de dose que levam
em conta somente o peso do paciente. Ela oferece excelentes
resultados, porém com maior custo para aquisição.
3.3 ANEMIA MEGALOBLÁSTICA
A anemia megaloblástica é um distúrbio provocado pela síntese
comprometida do DNA. A divisão celular é lenta, em razão da
inadequada conversão de desoxiuridilato em timidilato. O
desenvolvimento citoplasmático progride normalmente, de modo
que as células megaloblásticas tendem a ser grandes, com proporção
aumentada de RNA e proteínas em relação ao DNA. O aspecto das
células é característico, e o termo megaloblástico refere-se às
anormalidades que aparecem nos núcleos celulares dos precursores
eritroides, com a presença de grandes núcleos com cromatina
rendilhada, traduzida no sangue periférico pelo encontro de macro-
ovalócitos.
Existem 4 tipos etiológicos de anemia megaloblástica: por
deficiência de cobalamina (Cbl – vitamina B12), por deficiência de
folato, por drogas e por alterações variadas, que incluem síndrome
mielodisplásica, formas raras de deficiências enzimáticas e doenças
ainda inexplicáveis, como a síndrome de Lesch-Nyhan.
Existem 4 tipos etiológicos de anemia
megaloblástica: por deficiência de cobalamina,
por deficiência de folato, por drogas e por
alterações variadas.

As alterações morfológicas afetam todas as linhagens, inclusive a


granulocítica e a megacariocítica, podendo ocorrer pancitopenia.
3.3.1 Anemia por deficiência de vitamina B12
3.3.1.1 Considerações gerais

A vitamina B12 pertence à família das Cbls e atua em 2 reações


importantes:
1. Como metil-Cbl: coenzima da metionina sintetase, que catalisa a
transferência do radical metil da metil-Cbl para a homocisteína,
formando a metionina, importante na metilação de vários
neurotransmissores, fosfolipídios, DNA e RNA. O grupo metil do 5-
metiltetra-hidrofolato restabelece a metil-Cbl, doando seu radical metil,
o que resulta na formação do tetra-hidrofolato, importante para a
síntese de timidilato;
2. Como adenosil-Cbl: cofator para a conversão da metilmalonil-
coenzima A em succinil-coenzima A.

Figura 3.7 - Papel da metilcobalamina no metabolismo humano


Legenda: tetra-hidrofolato (THF).
Fonte: elaborado pelos autores.

3.3.1.2 Fisiopatologia

A vitamina B12 é encontrada somente em produtos de origem animal


(carnes, ovos e derivados do leite), e toda aquela presente no corpo
humano provém da dieta.
A dose necessária diária é de 2 µg/d para adultos e 2,6 µg/d para
gestantes e lactentes. A reserva é de 2.000 a 5.000 mg, sendo metade
estocada no fígado. Dessa maneira, desde que o consumo diário
esteja entre 2 e 5 µg, a carência pode levar mais de 3 anos para
estabelecer-se após a instalação de um bloqueio de absorção.
A Cbl da dieta está ligada a proteínas alimentares, precisando sofrer
ação da acidez e pepsina do estômago para ser liberada e ligada à
proteína R (ou haptocorrina), produzida pela saliva e pelo suco
gástrico. A combinação proteína R + B12 impede a absorção da
vitamina em meio gástrico. Proteases do suco pancreático produzem
meio alcalino no duodeno e liberam o ligante da B12,
disponibilizando-o para ligar-se ao Fator Intrínseco (FI), secretado
pelas células parietais do fundo gástrico e da cárdia. Vitamina B12 +
FI são absorvidos no íleo distal (99%), por meio do complexo
receptor cubilina-AMN, que é dependente de cálcio.
Posteriormente, a Cbl é transportada através do plasma pelas trans-
Cbls e estocada, principalmente, no fígado. As trans-Cbls são
proteínas de transporte de vitamina B12 e, até o momento, foram
identificados 3 tipos dessa proteína: I, II e III, cada qual com um
local de síntese diferente e variações na estrutura de glicoproteínas.
Aproximadamente 90% da B12 plasmática circula ligada às trans-
Cbls, porém apenas a trans-Cbl II tem a capacidade de transportar a
vitamina para o interior das células. Uma vez dentro das células, a
Cbl é metabolizada em metil-Cbl e adenosil-Cbl.
Dessa maneira, para a absorção adequada da vitamina B12, são
necessários os seguintes fatores:
a) Ingesta adequada;
b) Acidez gástrica;
c) Proteases pancreáticas;
d) Secreção de FI;
e) Receptor ileal funcionante.

Figura 3.8 - Absorção de vitamina B12


Fonte: ilustração Claudio Van Erven Ripinskas.

A principal consequência da deficiência de cobalamina é o aumento


da homocisteína, o que é tóxico ao endotélio, podendo acelerar a
arteriosclerose e causar tromboembolismo venoso.
Pela síntese inadequada de THF, ocorre eritropoese ineficaz, ou seja,
a medula óssea é repleta de precursores, porém, no sangue
periférico, há reticulocitopenia relativa e anemia, em consequência
de hemólise intramedular por formação de precursores alterados.
3.3.1.3 Causas de deficiência
As principais causas de deficiência de vitamina B12 são: anemia
perniciosa; gastrectomia/cirurgia bariátrica; doença péptica;
ressecção/bypass ileal; doença de Crohn/má absorção; síndrome da
alça cega; insuficiência pancreática; dieta vegetariana vegana;
gestante vegetariana; medicamentos que alteram a síntese de DNA,
como biguanida, neomicina, 6-mercaptopurina e agentes
alquilantes (ciclofosfamida); inibidor da bomba de prótons.
a) Deficiência de ingesta

Uma vez que a vitamina está presente em todos os alimentos de


origem animal, a deficiência por ausência de ingesta é raríssima,
podendo afetar os considerados vegetarianos veganos (que não
ingerem ovos nem produtos lácteos).
b) Deficiência de absorção

As cirurgias de gastrectomia podem causar deficiência de B12 pela


retirada da camada de mucosa produtora de FI, pela diminuição da
produção do suco gástrico e pela ocorrência da chamada “síndrome
da alça cega”, em que o crescimento bacteriano excessivo leva à
competição pela vitamina no lúmen intestinal. Ileostomias em que a
porção absorvedora de B12 é retirada também provocam carência.
Uma causa rara de deficiência de B12, porém frequentemente citada,
é a infestação por Diphyllobothrium latum, um parasita que afeta
peixes de águas frias. Essa larva atua competindo com a absorção da
vitamina.
Na pancreatite e na doença de Crohn grave, há deficiência por
retardo da absorção no íleo. Outras doenças que afetam a região de
absorção ileal, como tuberculose intestinal, linfoma intestinal e
irradiação pélvica, também são fatores que levam à falta da
vitamina.
Além disso, há relatos entre portadores de Helicobacter pylori, nos
quais o tratamento deste supre a deficiência da vitamina.
c) Deficiência de fator intrínseco

A causa mais comum de deficiência de B12 é a chamada anemia


perniciosa, doença autoimune que dificilmente se manifesta antes
da idade adulta. O FI diminui por meio de 2 mecanismos principais:
1. Anticorpos antifator intrínseco: detectáveis em 70% dos
pacientes com anemia perniciosa, possuem 100% de especificidade;
2. Gastrite atrófica: associada ao anticorpo anticélula parietal
(detectável em até 90%), diminuindo a secreção do FI. É mais sensível
do que o anticorpo antifator intrínseco, porém menos específico.

A gastrite atrófica também está associada ao risco aumentado


de neoplasia gástrica e tumor carcinoide gástrico,
recomendando-se vigilância com endoscopia anual.
Geralmente, a anemia perniciosa associa-se a outras alterações
imunológicas, como deficiência de IgA, vitiligo, hipotireoidismo e
insuficiência endócrina poliglandular.
As causas hereditárias são muito raras, mas podem acontecer por
secreção de FI qualitativamente deficiente, mutação do gene do
receptor ileal cubilina-AMN e deficiência congênita de trans-Cbl.
3.3.1.4 Quadro clínico

Há relato de sintomas relacionados à anemia, geralmente grave,


podendo ocorrer também sangramentos quando se instala
plaquetopenia.
Como a síntese de DNA alterada afeta todos os tecidos com alto
turnover, o estado megaloblástico produz mudanças nas mucosas,
levando à glossite, assim como a outros distúrbios gastrintestinais
inespecíficos, por exemplo, anorexia e diarreia.
As manifestações neurológicas associadas incluem polineuropatia,
mielopatia, demência e neuropatia óptica. Ocorre também síndrome
neurológica complexa e característica chamada “degeneração
combinada subaguda”, em que os nervos periféricos geralmente são
os primeiros afetados, com queixas iniciais de parestesia simétrica,
acometendo mais os membros inferiores do que os superiores. As
colunas posteriores da medula espinal começam a sofrer lesão, e os
pacientes queixam-se de alterações sensoriais mais graves,
caracteristicamente com redução da propriocepção, apresentando
ataxia e, nos casos mais severos, paraplegia, incontinência urinária e
fecal. Em casos mais avançados, podem ocorrer alterações
neuropsiquiátricas e até demência. Os sintomas neurológicos podem
aparecer independentemente da anemia; na verdade, de 12 a 25%
daqueles com carência de B12 podem evoluir com sintomas
neurológicos apenas, sem alteração hematológica.
A reposição de folato é capaz de corrigir a anemia, porém não afeta o
quadro neurológico ou há até piora deste, nos casos de deficiência de
B12.
Não é incomum, em pacientes com anemia perniciosa, o diagnóstico
de outras doenças autoimunes, como tireoidite de Hashimoto e
vitiligo.
Ao exame físico, encontram-se palidez e, às vezes, icterícia leve.
Durante o exame neurológico, redução da sensação vibratória e da
propriocepção pode estar presente, sendo o primeiro sinal de
neuropatia periférica. Constitui quadro clássico: pessoa idosa,
levemente ictérica e pálida, com língua careca, mentalmente lenta e
com passos largos e trôpegos.
3.3.1.5 Alterações laboratoriais

A anemia megaloblástica caracteriza-se por macrocitose com VCM


aumentado, que pode chegar a 140 fL.
A associação à deficiência de ferro não é rara; nesse caso, o VCM
pode estar normal ou até diminuído.
No esfregaço de sangue periférico, nota-se anisopoiquilocitose
acentuada, e o achado característico são os macro-ovalócitos. Os
neutrófilos maduros mostram hipersegmentação nuclear (5% com 5
segmentos ou mais, ou 1% com 6 segmentos ou mais –
polilobócitos).
A contagem de plaquetas e granulócitos pode estar reduzida, e os
reticulócitos estão baixos.
A morfologia eritroide medular é característica, com hiperplasia
eritroide como resposta à produção vermelha ineficaz, e há células
grandes, com assincronia de maturação do núcleo e do citoplasma
(já que o citoplasma continua a amadurecer, mas o núcleo, pelo
defeito de síntese de ácidos nucleicos, retarda sua progressão). Na
série granulocítica, além dos polilobócitos, podem ser vistos
metamielócitos gigantes.
A combinação de macro-ovalócitos e neutrófilos
hipersegmentados é patognomônica de anemia
megaloblástica.
Figura 3.9 - Neutrófilo hipersegmentado

Fonte: adaptado de Kantarose Boonyuen.


Como resultado da eritropoese ineficaz e da destruição intramedular
das células anômalas, os níveis séricos de bilirrubinas
(principalmente de bilirrubina indireta secundária à hemólise
intramedular) e desidrogenase láctica podem elevar-se, com
aumento discreto das primeiras e pronunciado da segunda.
O diagnóstico de deficiência de vitamina B12 é feito pela dosagem da
vitamina no sangue, que deverá estar baixa, desde que o paciente
não tenha recebido recentemente aporte exógeno da vitamina. É
comum encontrar deficiência de B12, mas com níveis séricos
normais, por terem recebido hidratação venosa ou suplementos
vitamínicos contendo complexo B. A dosagem sérica da vitamina
sofre várias limitações: gestantes com níveis diminuídos sem
deficiência, variação individual ampla, alguns com dosagem normal
diante do quadro de deficiência; portanto, em casos de dosagem
normal de vitamina B12, mas com quadro clínico e hemograma
altamente suspeitos, podem-se dosar homocisteína sérica e ácido
metilmalônico sérico e urinário (todos estarão aumentados). Essas
dosagens são atualmente o padrão-ouro para diagnóstico, tanto que
valores normais desses metabólitos intermediários, mesmo com
dosagens diminuídas de B12, excluem diagnóstico de anemia
megaloblástica.
Para o diagnóstico da anemia perniciosa, podem-se dosar o
anticorpo antifator intrínseco (especificidade > 95%, mas
sensibilidade de 50 a 70%), o anticorpo anticélula parietal
(encontrado em 80 a 90% dos pacientes, mas específico para
gastrite autoimune) e o anticorpo de dosagem sérica de gastrina
(bastante sensível – 90 a 95% –, mas pouco específico).
3.3.1.6 Diagnóstico diferencial

Deve-se, primeiramente, diferenciar a deficiência de B12 da


deficiência de folato, pela semelhança dos quadros clínico e
laboratorial, embora possa haver concomitância.
Afastar também a mielodisplasia, capaz de causar alterações
morfológicas medulares bem semelhantes, mas sem haver
concomitantemente queda dos níveis de B12 (normais na
mielodisplasia) nem quadros neurológicos associados. Pelo quadro
de pancitopenia que pode acontecer, deve-se diferenciar de anemia
aplásica e leucemias agudas.
3.3.1.7 Tratamento

Os pacientes com anemia perniciosa são tratados com aporte


parenteral de vitamina B12, sugerindo o uso diário de injeção de
1.000 µg IM. O esquema proposto é de 1 injeção/d por 1 semana; após,
1 injeção/sem durante 1 mês; e, depois, 1x/mês por toda a vida. Pode-
se, em alguns casos, utilizar a manutenção com Cbl oral de forma
alternativa, 1.000 µg/d, continuamente.
Também se deve evitar o uso de folato antes do início da reposição da
vitamina, pois pode agravar o quadro neurológico.
O primeiro sinal de resposta é sensação inespecífica de bem-estar,
seguida da redução dos outros sintomas. Já no segundo dia do
tratamento, há queda importante de ferro sérico, bilirrubina e
desidrogenase láctica, além da normalização das alterações
encontradas na medula óssea.
Pode acontecer hipocalemia nos primeiros dias de tratamento,
principalmente se a anemia é muito grave, pelo aumento da
utilização para a eritropoese. Espera-se aumento de contagem
reticulocitária em 3 a 4 dias de tratamento, com pico entre o sétimo e
o décimo dia. Os neutrófilos hipersegmentados desaparecem ao
redor do décimo ao décimo quarto dia. E a normalização
hematológica acontece em torno de 2 meses após o início da
terapêutica.
Os sintomas do sistema nervoso central são reversíveis em até 12
meses, caso haja pouco tempo de evolução (menos de 6 meses), mas
podem ficar sequelas permanentes, caso o tratamento não seja
iniciado prontamente.
3.4 ANEMIA POR DEFICIÊNCIA DE
ÁCIDO FÓLICO
3.4.1 Considerações gerais
O Ácido Fólico (AF) está presente na maioria dos vegetais e das
frutas, principalmente nos cítricos e nas folhas verdes, na forma de
poliglutamato, sendo hidrolisado em monoglutamato no jejuno,
onde é absorvido. As necessidades diárias variam entre 50 e 100 µg,
aumentando na gestação até 8 vezes. Os estoques corpóreos de folato
alcançam cerca de 5.000 µg, nível suficiente para suprir os
requerimentos orgânicos por 2 a 3 meses.
Os folatos constituem um grupo de compostos heterocíclicos nos
quais o ácido pteroico está conjugado com um ou diversos resíduos
de ácido L-glutâmico. O AF, para ser biologicamente ativo, necessita
sofrer redução, passando pelas formas intermediárias de
diidrofolato e THF, por meio da enzima diidrofolato redutase. Pode,
ainda, ligar unidades de carbono, que inclui grupos metil (CH3),
metileno (CH2), formil (-CHO-) ou formimino (-CHNH-),
conferindo ao folato a função de coenzima, em vários sistemas
enzimáticos, como carreador dessas unidades de carbono em
diferentes graus de oxidação.
Os folatos podem ser absorvidos ao longo de todo o intestino
delgado, preferencialmente no jejuno. Para sua absorção, os
poliglutamatos necessitam ser hidrolisados em monoglutamatos
pela enzima intestinal pteroilpoliglutamato hidrolase. Uma vez
absorvidos, os folatos monoglutamatos podem ser convertidos em
5-metiltetra-hidrofolato (5-metil-THF), principal forma
encontrada no plasma, onde é transportado para o fígado e os
tecidos periféricos via circulação porta.
O folato é estocado principalmente no fígado e secretado na bile,
onde a circulação êntero-hepática será responsável por sua
reabsorção e reutilização, diminuindo as perdas orgânicas.
A importância dessa vitamina está na participação de reações de
transferência de unidades de carbono, como reações de metilação,
síntese de metionina, biossíntese de purinas e formação de
timidilato (fundamentais para a síntese do DNA).
3.4.2 Causas da deficiência
A principal causa de deficiência é falha na ingesta: pessoas
anoréxicas, etilistas crônicas, aquelas que não ingerem frutas ou
vegetais crus e as que cozinham demasiadamente os alimentos (o AF
é termolábil, destruído após 15 minutos de cozimento). O alcoolismo
crônico pode resultar em deficiência de folato por diminuição da
ingesta alimentar, da circulação êntero-hepática e bloqueio da
absorção pela inibição direta do álcool sobre a enzima
pteroilpoliglutamato hidrolase.
Raramente é vista a deficiência por déficit de absorção. O AF é
absorvido no jejuno proximal, por isso a deficiência pode ocorrer
principalmente em indivíduos com síndromes disabsortivas crônicas
(espru tropical).
Existem condições em que os requerimentos diários de folato
aumentam intensamente, podendo levar aos quadros carenciais,
como na gestação, nas doenças esfoliativas cutâneas crônicas e nas
anemias hemolíticas.
É muito importante o suplemento durante a gestação, para prevenir
malformação fetal, como os defeitos de tubo neural (anencefalia e
espinha bífida).
Drogas como a fenitoína, que pode interferir na absorção do folato, a
sulfassalazina, o sulfametoxazol-trimetoprima (inibidores fracos da
diidrofolato redutase) e o metotrexato (inibidor forte da diidrofolato
redutase) levam à diminuição da síntese de DNA (diminui a síntese
de timidilato) e provocam anemia megaloblástica por deficiência
funcional. Paciente em esquema de hemodiálise por Insuficiência
Renal Crônica (IRC) pode apresentar deficiência de AF por este ser
dialisável, logo, perdido durante as múltiplas sessões às quais é
submetido.
3.4.3 Quadros clínico e laboratorial
O quadro é semelhante ao da deficiência de vitamina B12, com as
mudanças megaloblásticas e as alterações de mucosa, porém não se
apresenta quadro neurológico associado.
Acontece também a elevação da desidrogenase láctica e das
bilirrubinas, porém a dosagem de B12 é normal. O AF sérico está
abaixo de 3 ng/mL. Os níveis eritrocitários são mais específicos do
que a dosagem no soro, contudo esse é um exame de maior
complexidade e menor disponibilidade. Em caso de dúvida
diagnóstica, pode-se observar aumento da homocisteína sérica e
urinária, mas, diferentemente do que ocorre na deficiência de
vitamina B12, a dosagem do ácido metilmalônico está normal.
Quadro 3.5 - Dosagem de metabólitos intermediários

3.4.4 Diagnóstico diferencial


Os principais diagnósticos diferenciais de causas de macrocitose são:
a) Drogas;
b) Alcoolismo/doença hepática alcoólica;
c) Hipotireoidismo;
d) Mieloma múltiplo (falsa macrocitose);
e) Síndrome mielodisplásica;
f) Anemia aplásica;
g) Leucemias agudas.
3.4.5 Tratamento
Utiliza-se AF oral na dose de 1 a 5 mg/d (a maioria das formas
comerciais disponíveis no Brasil é de 2 ou 5mg), e espera-se
resposta rápida. O tratamento deverá ser continuado até a completa
recuperação hematológica ou durante todo o período de aumento da
demanda, quando for o caso.
3.5 ANEMIA DE DOENÇA CRÔNICA
3.5.1 Considerações gerais e fisiopatologia
A Anemia de Doença Crônica (ADC) é a etiologia mais frequente de
anemia entre indivíduos hospitalizados, pois a maioria das doenças
sistêmicas crônicas associa-se a quadros de anemia leve ou
moderada. Nessa condição, há resposta hematológica insuficiente
perante as injúrias sistêmicas dos mais variados tipos, como
inflamação, infecção, trauma, neoplasia, hepatopatia alcoólica,
insuficiência cardíaca congestiva, diabetes, trombose, doença
pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência renal, entre outros.
Quanto à fisiopatologia, os principais mecanismos que levam à
anemia são:
1. Distúrbio na hemostasia do ferro: é o principal mecanismo
fisiopatológico; há diminuição na captação e aumento no
armazenamento pelo sistema reticuloendotelial, diminuindo o nível
sérico do ferro e a disponibilização para os precursores eritroides, com
consequente queda do ferro sérico e aumento dos níveis de ferritina;
2. Diminuição da sobrevida e produção eritrocitária: ocorre pela
ação de interleucinas, que inibem a proliferação e a diferenciação de
precursores eritroides, e pela falha da medula óssea em compensar
adequadamente essa redução;
3. Diminuição relativa dos níveis de EPO: embora esta esteja pouco
aumentada quando da dosagem, seu nível não é suficiente para
aumentar a eritropoese, provavelmente por elevação da apoptose dos
precursores eritroides.
A hepcidina, já citada, tem sua liberação aumentada diante de
quadros infecciosos e inflamatórios, particularmente com liberação
de interleucina 6 (IL-6). Tal proteína provoca a retenção do ferro
dentro dos macrófagos, impedindo o retorno do ferro estocado à
circulação e bloqueando também a passagem daquele presente nos
enterócitos para a circulação (inibe a ferroportina), os quais perdem
esse metal ao sofrerem a descamação fisiológica. A hepcidina
aumentada nos quadros infecciosos e inflamatórios, e o aumento das
interleucinas IL-1, IL-6, fator de necrose tumoral e alfainterferona,
que diminuem a responsividade da medula óssea à eritropoetina,
têm papel importante no desenvolvimento da anemia de doença
crônica.
Aparentemente, níveis mais elevados de EPO e aumento do estímulo
de eritropoese levam à redução da síntese de hepcidina e ao aumento
da disponibilidade do ferro. A administração de EPO em doses
maiores também pode inibir o efeito de interleucinas,
particularmente de alfainterferona.
Existe uma variante da ADC, que é a anemia relacionada a eventos
agudos: trauma, infarto agudo do miocárdio, pós-cirúrgico e sepse –
é a chamada “anemia do doente crítico”, que apresenta a mesma
fisiopatologia de baixo ferro sérico e baixa resposta à EPO endógena.
Figura 3.10 - Fisiopatologia da anemia de doença crônica
Fonte: elaborado pelos autores.

3.5.2 Sinais e sintomas


Os achados clínicos são em geral modestos, correlacionados
usualmente com a doença de base, devendo-se suspeitar do
diagnóstico quando o paciente é portador conhecido de alguma
patologia crônica; entretanto, a confirmação será feita somente com
os achados laboratoriais.
Deve-se investigar a coexistência de causas de deficiência
nutricional concomitante, por déficit de ingesta, sangramento ou
disabsorção, e observar a presença de sinais/sintomas sugestivos das
carências.
A sintomatologia é de anemia, e o quadro específico da doença de
base pode dificultar o diagnóstico.
3.5.3 Quadro laboratorial
A anemia é de intensidade variável. Muitos pacientes apresentam
valor de Hb entre 10 e 11 g/dL, mas alguns casos podem ter anemia
grave, com Hb < 8 g/dL (até 30% dos casos). Em pacientes com esse
tipo de anemia, é sempre importante afastar outras causas de
anemia concomitante: insuficiência renal, carência nutricional ou
sangramento. A prevalência e a severidade estão relacionadas ao
estágio da doença de base e à idade do paciente.
A morfologia eritrocitária é normocítica/normocrômica, e a
contagem reticulocitária está diminuída como resultado da
eritropoese diminuída. Em 30% dos casos, a anemia pode ser
hipocrômica e microcítica, especialmente quando em associação à
anemia ferropriva.
O estudo do perfil de ferro completo demonstra:
a) Ferro sérico baixo, às vezes chegando a níveis mínimos;
b) CTLF baixa, refletindo o nível de transferrina diminuído;
c) Saturação de transferrina normal (mas em 20% dos casos pode
estar diminuída);
d) Dosagem de receptores de transferrina solúveis diminuída;
e) Ferritina normal ou elevada, por tratar-se de proteína de fase aguda
e pelo aumento dos estoques de ferro;
f) Pesquisa do ferro medular revelando quantidade normal ou
aumentada de ferro nos macrófagos e diminuída ou ausente nos
precursores eritroides (diminuição ou ausência dos sideroblastos).
Substâncias que sugerem atividade inflamatória elevada, como a
proteína C reativa, velocidade de hemossedimentação e fibrinogênio,
podem estar elevadas.
A ADC é um diagnóstico de exclusão, e sempre se devem investigar
outras causas de anemia, principalmente as nutricionais.
3.5.4 Diagnóstico diferencial
A ADC é uma anemia normocítica e normocrômica, hipoproliferativa
e com as demais linhagens celulares normais, tendo como principal
diagnóstico diferencial a anemia da insuficiência renal. Outras
situações que podem cursar com quadro semelhante são as anemias
secundárias às doenças endócrinas graves: hipotireoidismo,
hiperparatireoidismo, insuficiência adrenal e mesmo pan-
hipopituitarismo.
Nas poucas vezes em que a ADC se apresenta como anemia
hipocrômica e microcítica, o diagnóstico diferencial mais difícil é da
anemia ferropriva. Há de ressaltar que as 2 entidades apresentam
ferro sérico diminuído; na anemia ferropriva, porém, existe déficit
absoluto de ferro por depleção; já na ADC, existe menor
disponibilidade desse íon, que se encontra sequestrado nos estoques
teciduais. Assim, os exames mais fidedignos para diferenciar as 2
situações são pesquisa do ferro medular, que, na carência de ferro,
está ausente, e dosagem do receptor de transferrina, que está
aumentada na ferropriva e diminuída na ADC. A quantificação da
CTLF também é um dado importante, pois está aumentada na
ferropriva e diminuída na ADC. Deve-se estar atento para o fato de
que as 2 situações podem coexistir. Entretanto, na rotina clínica,
lança-se mão da ferritina, que usualmente está aumentada na ADC e
diminuída na anemia ferropriva.
Outros diagnósticos diferenciais de anemia hipocrômica e
microcítica: talassemia, anemia sideroblástica, deficiência de cobre,
intoxicação por chumbo e hemoglobinopatia C.
Quadro 3.6 - Diferenciação entre anemia ferropriva e anemia de doença crônica
3.5.5 Tratamento

Na anemia de doença crônica, o tratamento


deve ser da doença de base em si, uma vez que
a anemia geralmente é discreta e não necessita
ser tratada.

Em casos mais graves, ou nos quais a doença de base é de tratamento


mais difícil, podem ser necessárias transfusões de concentrados de
hemácias quando a oxigenação tissular for muito prejudicada.
Sangramento, deficiência de vitamina B12, folato e ferro devem ser
corrigidos, caso presentes.
A EPO recombinante injetável, indicada a pacientes com Hb < 10
g/dL, apresenta boa resposta em 40 a 80% dos casos. O nível sérico
de EPO < 500 UI/L é um bom preditor de resposta. Em 2 semanas de
tratamento com EPO, espera-se a elevação de, ao menos, 0,5 g/dL de
Hb, com a dose de EPO de 100 a 150 UI/kg, 3x/sem. Se não houver
resposta em 6 a 8 semanas, aumentar a EPO para 300 UI/kg, 3x/sem.
Se não houver resposta em 12 semanas, suspender e manter apenas
suporte transfusional quando necessário.
Deve-se fazer reposição de ferro oral concomitante para manter a
ferritina > 100 ng/dL e a saturação de transferrina > 20%. Se não
houver melhora dos níveis de ferro com a apresentação oral, utilizar
ferro parenteral (a hepcidina elevada diminui a absorção intestinal
do ferro). De maneira geral, a reposição de ferro somente é indicada
a casos de concomitância com anemia ferropriva ou refratariedade
ao uso de agentes eritropoéticos por depleção férrica.
3.6 ANEMIA DA INSUFICIÊNCIA RENAL
CRÔNICA
Na IRC, o grau de anemia é proporcional ao grau de insuficiência
renal, de modo que aproximadamente 90% da população com
clearance de creatinina < 25 a 30 mL/min apresenta anemia, muitas
vezes, com valor de hemoglobina (Hb) < 10 g/dL. A anemia pode,
ainda, surgir mesmo com menores valores de creatinina, como 2
mg/dL.
No paciente com IRC, a anemia contribui para a piora dos sintomas
relacionados à diminuição da função renal, como fadiga, depressão,
dispneia e alteração cardiovascular. Também está associada ao
aumento da morbimortalidade por eventos cardiovasculares e
maiores frequência e duração das hospitalizações.
A fisiopatologia da anemia na IRC pode ser explicada por 3
mecanismos:
a) Diminuição da produção de EPO;
b) Presença de produtos tóxicos metabólicos que diminuem a meia-
vida do eritrócito e inibem sua produção (baixa responsividade à EPO);
c) Sangramentos (disfunção plaquetária), hemólise e espoliação.
Coletas de exame frequentes, associadas à perda de hemácias
durante a hemodiálise, causam espoliação crônica de sangue e
depleção de ferro. Mais raramente, em pacientes com síndrome
nefrótica, pode ocorrer perda de transferrina (proteína carreadora
do ferro) na urina, comprometendo o ciclo do ferro e contribuindo
para a anemia.
A diálise pode contribuir para a anemia por meio de depleção de AF
(dialisável no procedimento); hemólise por trauma mecânico;
presença de alumínio na água do banho de diálise, que pode
interferir na incorporação do ferro aos precursores eritroides,
causando anemia microcítica, além da perda de pequena quantidade
de sangue, que fica retido no circuito a cada sessão.
Na avaliação laboratorial, encontra-se anemia normocrômica e
normocítica leve, na maioria dos casos, com Hb em torno de 9 a 10
g/dL (apesar da possibilidade, em até 30% dos casos, de anemia mais
intensa, abaixo de 8 g/dL), com reticulócito normal ou diminuído.
Deve ser feita a dosagem do perfil completo de ferro ao diagnóstico
da anemia e na monitorização durante todo o tratamento.
O tratamento é feito com a reposição de EPO recombinante, na dose
de 150 UI/kg SC, 3x/sem. O valor-alvo de Hb desejado com o
tratamento é de 10 a 12 g/dL (nunca excedendo 13 g/dL), o que ocorre
em mais de 95% dos casos, indicando que a ação dos outros
mecanismos na diminuição da eritropoese é mínima. Casos de
resistência a EPO decorrem de ferropenia, processo
inflamatório/infeccioso associado, hiperparatireoidismo secundário
à IRC ou intoxicação por alumínio. Como raros efeitos adversos da
EPO, podem-se ter hipertensão arterial, crise convulsiva, eventos
cardiovasculares e trombose, principalmente de fístula
arteriovenosa.
Recomenda-se a reposição de AF e ferro, com controle periódico do
perfil deste, que deve manter valores de ferritina entre 200 e 500
µg/L e/ou saturação de transferrina entre 20 e 50%. Para pré-
dialíticos ou em diálise peritoneal, a reposição de ferro pode ser feita
via oral ou parenteral; para aqueles em hemodiálise, a reposição é
feita com ferro parenteral.
3.7 ANEMIAS DAS DOENÇAS
ENDÓCRINAS
O sistema endócrino age direta ou indiretamente sobre a
hematopoese, sendo alguns distúrbios responsáveis por quadro de
anemia, que pode ser normo, macro ou microcítica. As principais
doenças endócrinas que podem cursar com anemia são:
hipo/hipertireoidismo (causa mais comum); hipoaldosteronismo
(doença de Addison); hiperparatireoidismo; deficiência androgênica.
O tratamento consiste em tratar a doença de base.
3.8 ANEMIAS SIDEROBLÁSTICAS
3.8.1 Considerações gerais
As anemias sideroblásticas, congênitas ou adquiridas, compõem um
grupo heterogêneo de doenças nas quais há o comprometimento da
síntese de Hb, em virtude da falha na síntese de protoporfirina, que,
junto ao ferro, forma o núcleo heme da Hb. O metabolismo do heme
ocorre nas mitocôndrias e, dessa forma, como está deficiente, o ferro
pode acumular-se particularmente nas mitocôndrias dos
eritroblastos e macrófagos.
A anemia sideroblástica hereditária mais comum é ligada ao X, de
baixa incidência e de manifestação precoce. Nessa forma, há
deficiência da enzima ácido aminolevulínico sintetase, necessária
para a formação da protoporfirina.
As formas adquiridas são mais comuns e ocorrem por alcoolismo,
toxicidade por drogas (cloranfenicol e agentes antituberculose),
intoxicação por chumbo, deficiência de cobre e, mais
frequentemente, como manifestação de uma desordem medular
(clonal) em célula-tronco hematopoética, a mielodisplasia ou
síndrome mielodisplásica, capaz de evoluir para leucemia aguda.
Figura 3.11 - Formação do heme

Legenda: succinil-coenzima A (SCoA); ácido delta-aminolevulínico (ALA).


Fonte: elaborado pelos autores.

3.8.2 Quadros clínico e laboratorial


Não há sintomas clínicos além dos relacionados à anemia, que
geralmente é moderada, com níveis de Hb entre 7 e 9 g/dL. O
diagnóstico é feito por meio do exame da medula óssea, que mostra
sinais de eritropoese ineficaz (ou seja, hiperplasia eritroide medular
que não se traduz em aparecimento de reticulócitos no sangue
periférico) e deficiência na maturação citoplasmática. A coloração de
ferro medular pelo corante azul da Prússia, ou coloração de Perls,
mostra aumento generalizado nos depósitos de ferro. Em algumas
situações, podem-se encontrar sideroblastos “em anel” (depósitos
de ferro ao redor do núcleo do eritroblasto). Os níveis séricos de ferro
e ferritina e a saturação de transferrina estão elevados, revelando a
sobrecarga daquele.
3.8.2.1 Hereditária
A anemia aparece nos primeiros meses de vida; pode haver
esplenomegalia. Apresenta microcitose e hipocromia, devendo haver
diferenciação da anemia ferropriva e das talassemias.
3.8.2.2 Adquirida

Tende a ser macrocítica, com subpopulação microcítica. Pode


apresentar leucopenia e/ou plaquetopenia.
No caso da intoxicação por chumbo, o pontilhado basófilo eritroide é
característico, e os níveis séricos desse metal estão acima do normal.
Figura 3.12 - Sideroblastos “em anel” pela coloração de Perls

Fonte: Avaliação da importância da coloração de Perls na rotina de mielogramas de


pacientes com anemia associada a uma ou mais citopenias em sangue periférico, 2005.

3.8.3 Tratamento
O tratamento é dependente da causa-base. Quando a etiologia é
secundária ao uso de drogas, a retirada delas é suficiente. Na
intoxicação por chumbo, está indicada a quelação do metal pesado.
Na deficiência de cobre, deve ser feita a suplementação do metal. No
alcoolismo, deve ser orientada a suspensão da ingesta alcoólica e
feita suplementação vitamínica com AF e vitamina B6. Na
mielodisplasia, alguns pacientes têm demonstrado resposta ao uso
de piridoxina (vitamina B6, necessária para as etapas iniciais da
síntese do heme), porém a maioria dos casos não responde a tal
terapêutica, sendo necessário tratamento quimioterápico e, quando
possível, transplante de células-tronco hematopoéticas. Na forma
hereditária, há ótima resposta com a reposição de piridoxina.
O uso de EPO pode ser eficaz em alguns casos; por sua vez, o suporte
transfusional depende da sintomatologia de cada paciente e pode ser
necessário por toda a vida nas displasias. Por fim, os níveis de ferro
devem ser monitorizados, e a quelação deve ser indicada àqueles
com ferritina > 1.000 µg/mL.
3.9 APLASIA PURA DA SÉRIE
VERMELHA
3.9.1 Considerações gerais
A Aplasia Pura da Série Vermelha (APSV) descreve uma condição em
que somente os precursores eritroides na medula estão praticamente
ausentes.
As formas congênitas mais frequentes são doenças crônicas, muitas
vezes associadas a anomalias físicas. Essa patologia foi descrita por
Joseph, Diamond e Blackfan na primeira metade do século passado;
por isso, geralmente é conhecida como anemia de Diamond-
Blackfan. Ocorrem lesões nas stem cells intraútero, iniciando a
anemia, que já se manifesta ao nascimento.
Nas formas adquiridas do adulto, a supressão dos precursores
eritroides é mediada por linfócitos T ou por anticorpos da classe IgG.
Algumas possíveis associações com aplasia pura da série vermelha
são descritas. Quadros linfoproliferativos, como leucemia de
linfócito large granular, leucemia linfoide crônica, mais raramente
linfomas não Hodgkin; Doenças autoimunes como lúpus
eritematoso sistêmico e artrite reumatoide; drogas como fenitoína,
ácido valproico, isoniazida, azatioprina e cloranfenicol; doenças
virais, como hepatite C e HIV, complicação dos usuários de EPO
recombinante por meio da formação de anticorpo anti-EPO, em
especial em pacientes com IRC e, mais raramente, em doping. Nos
timomas, a investigação é obrigatória em casos de APSV, presente
em 5% dos casos.
A infecção pelo parvovírus B19 caracteristicamente cursa com APSV,
embora, em alguns casos, possa afetar outras linhagens. As
manifestações clínicas são mais evidentes nos portadores de
anemias hemolíticas crônicas, como a anemia falciforme e a
esferocitose hereditária, em que a demanda medular está muito
aumentada e a queda dos níveis de Hb é súbita. O parvovírus destrói
os precursores eritroides e cursa com alteração morfológica
característica: pró-eritroblastos gigantes na análise da medula
óssea.
3.9.2 Quadros clínico e laboratorial
Os sintomas da APSV são apenas os relacionados à anemia, exceto
quando há patologia associada, como as linfoproliferações e o lúpus
eritematoso sistêmico. No timoma, pode haver quadro de miastenia
gravis associado à aplasia. A anemia é severa, normocítica,
normocrômica, com níveis de Hb abaixo de 6 g/dL e contagem de
reticulócitos baixíssima (< 10.000/mm3). Ao mielograma,
evidencia-se normocelularidade global da medula óssea, porém com
número muito diminuído, e, às vezes, ausência virtual de
precursores eritroides.
3.9.3 Diagnóstico diferencial
O principal diagnóstico diferencial é com a anemia aplásica, em que
há queda dos precursores de todas as linhagens celulares. Deve ser
afastada também a anemia hemolítica autoimune, já que nas
linfoproliferações e no lúpus eritematoso sistêmico pode ocorrer a
formação de autoanticorpos contra as células eritroides maduras;
entretanto, o laboratório na anemia hemolítica autoimune cursa
com bilirrubina indireta, reticulócitos e desidrogenase láctica
aumentados. As síndromes mielodisplásicas podem levar a quadros
de anemia normocítica normocrômica, mas a morfologia displásica
na medula óssea é característica.
3.9.4 Tratamento
3.9.4.1 Formas adquiridas

Se houver suspeita de ação de drogas, deve-se suspender o seu uso.


O tratamento da patologia de base, nas formas adquiridas, é
fundamental para a regressão do quadro de APSV. Particularmente
no caso do timoma, a exérese do tumor está relacionada à regressão
da aplasia.
Nos casos de infecção pelo parvovírus, o quadro tende a ser
autolimitado, resolvido em 2 a 3 semanas. Caso não haja resolução
espontânea nesse período, deve-se utilizar a imunoglobulina
intravenosa.
Nos demais casos, a conduta inicial é feita com prednisona em doses
imunossupressoras. Nos casos não responsivos nos primeiros 3
meses de tratamento, outras drogas imunossupressoras devem ser
associadas: imunoglobulina, ciclosporina, ciclofosfamida,
azatioprina, globulina antitimocítica ou até o rituximabe (anticorpo
monoclonal anti-CD20).
3.9.4.2 Formas congênitas (anemia de Diamond-Blackfan)

Nas formas congênitas, existe relato de aproximadamente 50% de


resposta ao uso de corticoterapia. Porém, em muitos casos, a
indicação é a de transplante alogênico de células-tronco
hematopoéticas, ou o paciente será dependente de transfusões de
concentrado de hemácias por toda a vida.
Quais são as principais
causas de anemias
hipoproliferativas?
As principais causas de anemias hipoproliferativas são a
anemia ferropriva (microcítica) e a anemia por deficiência
de vitamina B12 (macrocítica).
Quais são as principais
causas de anemias
hiperproliferativas?

4.1 ANEMIA PÓS-HEMORRÁGICA


A anemia pós-hemorrágica apresenta 2 mecanismos:
a) Perda direta de eritrócitos;
b) Em sangramentos crônicos, depleção gradual dos estoques de
ferro, resultando em deficiência.

A perda aguda de sangue varia, em suas manifestações


hematológicas, ao longo das horas, desde o evento sangrante até a
realização dos exames, podendo ser identificadas 3 etapas.
1. Primeira etapa: os primeiros sintomas estão relacionados à
hipovolemia e, nesta fase inicial, os níveis de hemoglobina (Hb)
detectados no exame podem manter-se normais, uma vez que tanto o
conteúdo plasmático quanto o celular são perdidos de maneira
proporcional, e ainda não ocorreram os mecanismos compensatórios;
2. Segunda etapa: diante da liberação de vasopressina e outros
peptídios, o fluido extravascular é mobilizado para o intravascular,
levando à reposição volumétrica e à hemodiluição. Nessa situação,
evidenciam-se queda dos níveis de Hb e consequente anemia, cujo
grau reflete a quantidade de sangue perdida. O processo de expansão
plasmática é lento: em uma perda de 20% da volemia, são necessárias
de 20 a 60 horas para restaurá-la, por exemplo;
3. Terceira etapa: finalmente, diante do quadro de anemia e hipóxia, a
produção de eritropoetina (EPO) aumenta, iniciando o estímulo da
produção de eritrócitos. A reticulocitose demora de 2 a 3 dias para ser
detectada, atingindo o pico em 8 a 10 dias após o quadro de
hemorragia. Nessa fase, é importante o diagnóstico diferencial com
anemias hemolíticas, apesar de não haver aumento dos metabólitos da
Hb (bilirrubina indireta) nem redução da haptoglobina. As pessoas com
reserva baixa de ferro, após manifestações hemorrágicas, não
conseguem realizar eritropoese adequada, sem reticulocitose e
recuperação eritrocitária no tempo esperado, necessitando de
suplementação de ferro para que isso ocorra.

Também poderá haver aumento transitório da leucometria e da


plaquetometria e, se houver sangramento intenso, liberação de
formas jovens de eritrócitos e leucócitos na corrente sanguínea. Tal
fenômeno decorre da resposta medular exacerbada ao estímulo da
EPO. Trata-se de quadro benigno e passageiro.
A primeira conduta diante da hemorragia aguda é a restauração da
volemia com cristaloides. Após a avaliação clínica, deve-se tentar
quantificar o sangramento e realizar reposição de sangue para
perdas > 30% da volemia total.
Nas perdas crônicas, a conduta consiste na correção da ferropenia e
na identificação da etiologia do sangramento.
4.2 ANEMIAS HEMOLÍTICAS
4.2.1 Conceitos gerais

As anemias hemolíticas se estabelecem por


redução do tempo de sobrevida eritrocitário,
que pode decorrer de alterações estruturais na
molécula de hemoglobina, como na anemia
falciforme e na esferocitose hereditária.
A medula óssea é capaz de aumentar a eritropoese (por estímulo da
EPO) em até 8 vezes para compensar as perdas ou a destruição
eritrocitária, mas nem sempre haverá hemólise associada à anemia,
já que os mecanismos compensatórios podem ser suficientes para
evitar a queda dos níveis de Hb circulante. Esse mecanismo pode ser
detectado pelo aumento de reticulócitos circulantes no sangue
periférico, característica primordial das anemias hiperproliferativas.
A anemia surge quando a destruição eritrocitária ultrapassa a
velocidade de eritropoese ou se a eritropoese não está aumentando
proporcionalmente (como no caso de deficiência de folato
associada). É exatamente com o objetivo de evitar quedas ainda
maiores de Hb por falta de folato que, nas anemias hemolíticas
crônicas, utilizam-se doses diárias e contínuas de ácido fólico.
Os motivos para a redução da sobrevida eritrocitária são variados e
vão de alterações estruturais da molécula da Hb, como na Anemia
Falciforme (AF), passando por defeitos no esqueleto da membrana
celular, como nos casos de esferocitose hereditária, chegando a
mecanismos fisiopatológicos extremamente complexos, como o
aumento da sensibilidade ao complemento ativado na
hemoglobinúria paroxística noturna.
A classificação das anemias hemolíticas pode ser feita em relação ao
local do glóbulo afetado (intracorpusculares ou extracorpusculares)
ou quanto ao local predominante da hemólise (intravasculares ou
extravasculares). Com raras exceções (hemoglobinúria paroxística
noturna), as hemólises intracorpusculares são congênitas e as
extracorpusculares são adquiridas (Quadro 4.1).
As hemólises intravasculares acontecem quando a alteração da
membrana eritrocitária é muito abrupta e intensa ou há trauma
direto da hemácia (microangiopatia, trauma mecânico,
queimaduras), e as extravasculares, quando a lesão da membrana é
menos intensa, pois o eritrócito alterado é captado pelo sistema
macrofágico e levado ao baço, onde ocorrerá sua destruição, o que
justifica, em muitos casos de hemólise crônica, a esplenomegalia.
A presença de Hb livre no plasma e na urina e a presença de
esquizócitos em sangue periférico são indicativas de hemólise
intravascular.
As características laboratoriais da hemólise estão relacionadas aos
processos de destruição globular (aumento dos níveis de
desidrogenase láctica – DHL), resposta medular (aumento dos
reticulócitos) e eliminação dos metabólitos da Hb (aumento da
bilirrubina indireta, diminuição do nível sérico da haptoglobina).
Essas alterações podem ou não ser acompanhadas de queda no nível
de Hb, conforme explicado. A haptoglobina é uma proteína capaz de
carrear a Hb livre, e a queda de seus níveis traduz a presença de
hemólise. Porém, quando a haptoglobina é completamente saturada,
a Hb livre pode estar presente no plasma e ser filtrada nos
glomérulos, aparecendo na forma de hemoglobinúria. Quadros como
esses são mais comuns em situação de hemólise intravascular.
A combinação de DHL aumentada (devido à
destruição globular) e diminuição de
haptoglobina (liga-se à hemoglobina livre
proveniente da hemólise) garante 90% de
especificidade para o diagnóstico de anemia
hemolítica.

Um quadro de hemólise não relacionado à doença hemolítica é a


reação transfusional hemolítica. Nessa situação, a transfusão de
concentrados de hemácias com presença de antígenos para os quais
o receptor apresenta anticorpos (como na incompatibilidade do
sistema ABO) leva à hemólise das hemácias transfundidas. Tal
reação grave pode ser prevenida por meio de testes pré-
transfusionais e, por isso, tem sido rara, mais associada a erros da
equipe de saúde (troca de bolsas, troca de amostras, entre outros).
Contudo, quadros de hemólise entre pacientes transfundidos
obrigam sempre a exclusão dessa etiologia.
Quadro 4.1 - Causas
As principais alterações no paciente com hemólise são:
a) Anemia de início rápido;
b) Palidez;
c) Icterícia e, se hemólise crônica, história de calculose biliar;
d) Esplenomegalia;
e) Aumento de reticulócitos e da DHL e diminuição de haptoglobina;
f) A análise do sangue periférico é muito importante para orientar a
investigação etiológica da hemólise.

4.3 ANEMIA FALCIFORME


4.3.1 Considerações gerais
A AF é a doença hematológica hereditária mais comum no mundo,
caracterizando-se pelo acometimento da cadeia beta da Hb,
originando uma Hb anormal denominada S (HbS). O padrão de
herança é autossômico e codominante. Em consequência de uma
mutação estrutural, haverá alteração qualitativa na Hb.
A alteração molecular primária é representada pela substituição, no
cromossomo 11, de 1 único aminoácido no códon 6 do gene da cadeia
betaglobina, tendo como consequência a formação da HbS. Com a
elevação desta, a HbS desoxigenada fica insolúvel e forma fibras
polimerizadas, resultando em alteração da morfologia da hemácia
(hemácia “em foice”).
Após a reoxigenação, o polímero se desfaz, e a célula volta ao
normal. Porém, a polimerização e a despolimerização frequentes
acabam provocando lesões progressivas na membrana, que
inicialmente são reversíveis; contudo, após vários processos de
falcização, as hemácias tornam-se definitivamente lesadas,
transformando-se nas chamadas hemácias irreversivelmente
falcizadas.
As células com formato alterado (de foice) são rígidas e, com menor
capacidade de deformabilidade, passam a circular com mais
dificuldade pelos pequenos capilares. Quando associadas a leucócitos
em número aumentado e moléculas de adesão, são responsáveis pela
lentificação do fluxo, oclusão vascular e lesão de tecidos, que
representam os fenômenos principais dessa doença.
A formação das células falcizadas também é responsável pela
hemólise crônica, pois, pelas alterações estruturais severas, ocorre a
retirada da circulação dessas células pelo sistema macrofágico, com
subsequente destruição.
A taxa de falcização é influenciada por vários fatores, o mais
importante deles a concentração de HbS intraeritrocitária. As lesões
na membrana celular do eritrócito e o rearranjo dos polímeros em
seu interior explicariam por que muitas células se mantêm
morfologicamente alteradas mesmo após a reoxigenação. Adesões
frequentes de eritrócitos e leucócitos ao endotélio levam à disfunção
endotelial, com aumento da geração de trombina e ativação
plaquetária, fatores que também contribuem para os fenômenos
vaso-oclusivos.
Em geral, os pais são portadores assintomáticos de 1 único gene
afetado (heterozigoto), produzindo HbA e HbS (AS) – conhecidos
como traço falciforme –, e cada um vai transmitir o gene alterado
para a criança, que o recebe em dose dupla (homozigoto SS). A
denominação “anemia falciforme” é reservada à forma da doença
que ocorre nesses homozigotos SS. Além disso, o gene da HbS pode
combinar-se com outras anormalidades hereditárias das Hbs, como
hemoglobina C (HbC), hemoglobina D (HbD), betatalassemia, entre
outras, gerando combinações também sintomáticas, denominadas,
respectivamente, hemoglobinopatia SC, hemoglobinopatia SD e S-
betatalassemia. No conjunto, todas essas formas sintomáticas do
gene da HbS, em homozigose ou em combinação, são conhecidas
como doenças falciformes. Apesar das particularidades que as
distinguem e da gravidade variável, todas essas doenças têm
espectro epidemiológico e de manifestações clínicas e hematológicas
sobreponíveis.
A cromatografia líquida de alta eficiência é um processo de troca
catiônica, permitindo a quantificação de hemoglobinas A, A2 e fetal,
bem como de Hbs variantes. Entretanto, seu uso deve ser sempre
monitorizado por outros métodos, uma vez que há sobreposição de
frações e a HbA2 pode estar falsamente elevada na presença de HbS.
A AF também pode estar associada a outras hemoglobinopatias
hereditárias, entre elas:
1. AF (doença SS): os indivíduos são homozigotos para o gene da
HbS;
2. Traço falciforme (doença AS): o paciente tem 1 gene que sintetiza
cadeias polipeptídicas globínicas normais (beta A) e 1 gene anormal
(beta S), com produção de ambas as Hbs (A e S), predominando a
hemoglobina A (HbA). Seus eritrócitos raramente falcizam, somente
sob circunstâncias específicas, como hipóxia severa;
3. AF associada à betatalassemia (S-betatalassemia):
a) S-talassemia beta0: não há produção de Hb beta pelo gene da
betatalassemia;
b) S-talassemia beta+: o indivíduo produz cadeias beta normais,
porém em pequenas quantidades.
4. AF associada a HbC (HbSC): o paciente tem 2 genes de cadeia beta
alterados (beta S e beta C), o que ocasiona a produção tanto de HbS
quanto de HbC;
5. AF associada à alfatalassemia: deleção de 1 ou 2 genes da
alfaglobina. Anemia hemolítica mais discreta, com menos
complicações se comparada à AF;
6. AF associada à talassemia delta beta: condição heterozigótica
combinada que constitui uma das várias deleções grandes dos genes
das globinas delta e beta e permite o desvio de produção da HbF para
a Hb do adulto;
7. AF associada a PHHF (persistência hereditária da HbF): resulta de
várias deleções grandes dos genes das globinas delta e beta que
retardam o desvio da produção de HbF para a Hb do adulto.

Figura 4.1 - Padrão de herança genética


Nota: traço falciforme – HbAS; normal – HbAA2; falciforme – HbSS.
Fonte: acervo Medcel.

Figura 4.2 - Fisiopatologia


Fonte: elaborado pelos autores.

De modo geral, além da anemia crônica, as diferentes formas de


doenças falciformes caracterizam-se por numerosas complicações
que podem afetar quase todos os órgãos e sistemas, com expressiva
morbidade e redução da capacidade de trabalho e da expectativa de
vida.
4.3.2 Diagnóstico
4.3.2.1 Quadro clínico

As síndromes falciformes apresentam manifestações clínicas


extremamente heterogêneas, variando de pacientes praticamente
assintomáticos durante toda a vida àqueles que necessitam de
internação hospitalar frequente desde a infância. Em geral, quanto
maior a quantidade de HbS, mais grave a doença. Os homozigotos
para HbS tendem a ter quadro clínico mais grave do que os pacientes
com hemoglobinopatias SC, SD etc. A associação à persistência
hereditária de HbF confere melhor prognóstico à doença, pois a HbF
tem maior afinidade com o oxigênio, diminuindo a polimerização.
A doença inicia-se normalmente após o sexto mês de vida, quando
os níveis de HbF caem e as hemácias perdem a proteção dessa Hb.
Inicia-se quadro de anemia hemolítica crônica, com icterícia e
esplenomegalia (nos primeiros anos de vida).
A esplenomegalia pode persistir por toda a vida entre os pacientes
com doenças mistas, como na HbSC, PHHF e S-betatalassemia,
porém, em indivíduos SS, a ocorrência frequente de infartos
esplênicos por obstrução dos capilares leva à chamada
autoesplenectomia (ou asplenia funcional), em que o baço se
transforma em órgão residual cicatricial, com pouca ou nenhuma
função. Isso provoca a redução da capacidade de opsonização e o
aumento da suscetibilidade a infecções por germes capsulados,
como pneumococo (Streptococcus pneumoniae), Haemophilus e
Salmonella sp. Os episódios de infecção também podem ser
facilitados pela disfunção de IgM e IgG, além de distúrbio na fixação
do complemento e da opsonização – anomalias observadas nesses
pacientes.
Retardos de crescimento e de desenvolvimento e atraso da
puberdade são bastante observados entre os falciformes, mas a
patogênese é pouco conhecida.
Nos 2 primeiros anos, um quadro clínico considerado característico é
a chamada “síndrome mão-pé” ou dactilite, em que ocorrem edema,
calor e rubor dos dedos das mãos e dos pés por infarto ósseo, com
dor intensa, que deve ser abordada de forma semelhante às das
crises álgicas dos adultos.
Figura 4.3 - Criança com dactilite

Fonte: Sickle Cell Disease (SCD), 2015.

A manifestação clínica mais característica é a chamada crise álgica


ou vaso-oclusiva, em que as micro-obstruções vasculares,
principalmente no interior dos vasos sanguíneos ósseos, levam a
quadros isquêmicos difusos, com intensa dor e, eventualmente,
febre baixa.
As crises álgicas costumam ser deflagradas por quadros infecciosos,
desidratação, exercício excessivo, mudanças bruscas na
temperatura, hipóxia, estresse emocional, menstruação e ingestão
de bebida alcoólica, mas muitas vezes não se encontra o motivo.
Diante de um paciente com crise dolorosa, contudo, é sempre
obrigatória a investigação de foco infeccioso.
Esses episódios podem durar de horas a semanas e afetam,
teoricamente, qualquer região do corpo, todavia parecem
predominar em ossos e articulações. A dor é muito intensa,
geralmente incapacitante, algumas vezes necessitando de
hospitalização para analgesia parenteral. Crises repetidas com
necessidade de internação (> 3/ano) têm correlação com pior
sobrevida, sugerindo que esses episódios sejam responsáveis por
lesões crônicas em órgãos-alvo.
As úlceras perimaleolares ocorrem pelas micro-obstruções
vasculares e podem cronificar-se, pois o déficit de perfusão local é
mantido. Quase sempre se desenvolvem nos tornozelos, acima dos
maléolos laterais e mediais; mais raramente, surgem na região pré-
tibial e no dorso do pé. O início pode ser espontâneo ou subsequente
a trauma, por vezes leve, como a picada de um inseto.
Figura 4.4 - Úlceras perimaleolares
A vaso-oclusão pode alcançar tecidos mais “nobres” e levar a
acidentes vasculares cerebrais, infartos pulmonares e priapismo. O
acidente vascular cerebral acomete mais as crianças e tende a ser
recorrente, sendo necessárias medidas de profilaxia; não é comum
em adultos. Infartos pulmonares subagudos e crônicos resultam em
hipertensão pulmonar e cor pulmonale, sendo, muitas vezes, causas
de óbito.
As complicações renais mais comuns são secundárias a
microinfartos renais, com hematúria dolorosa por infarto papilar;
proteinúria e hipertensão (que podem ser tratadas pelo uso de
inibidores da enzima conversora de angiotensina); necrose papilar;
isquemia parenquimatosa que culmina em glomeruloesclerose
segmentar e focal, e insuficiência renal crônica; diabetes insipidus
nefrogênico; e alto risco para carcinoma medular renal. Também
pode acontecer a chamada retinopatia proliferativa, similar à do
diabetes mellitus, podendo levar à cegueira, além de oclusão da
artéria retiniana, descolamento de retina e hemorragia, como
complicações retinianas.
Como complicação óssea, pode ocorrer a osteonecrose (necrose
óssea isquêmica ou necrose asséptica) da cabeça do fêmur ou do
úmero, além do favorecimento de osteomielite pela falha de
perfusão óssea. Os agentes etiológicos mais frequentes da
osteomielite na AF são Salmonella e Staphylococcus aureus. A
hiperproliferação da medula óssea e os microinfartos ósseos podem
levar a alterações crônicas, sendo a mais conhecida as vértebras “em
boca de peixe”, em que elas apresentam aumento do espaço medular
e adelgaçamento do córtex, com osteoporose. Também são citados o
infarto da medula óssea (com reticulocitopenia e/ou pancitopenia) e
a embolia gordurosa secundária ao infarto ósseo.
Figura 4.5 - Vértebras “em boca de peixe”

Fonte: Diagnóstico por imagem na avaliação da anemia falciforme, 2008.


Por sua vez, as complicações cardíacas, típicas da doença falciforme,
são usualmente derivadas da circulação hiperdinâmica. Raramente,
porém, ocorre crise vaso-oclusiva coronariana, ocasionando
isquemia miocárdica. Hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca
congestiva são, ainda, eventos possíveis.
Finalmente, as complicações hepatobiliares são representadas pela
formação de cálculos biliares. A hemólise crônica leva ao excesso de
bilirrubina indireta, que tem como complicação comum
colecistopatia calculosa por cálculos de bilirrubinato de cálcio.
Alterações hepáticas podem, ainda, ser derivadas de vaso-oclusão
naquele órgão, sobrecarga de ferro e infecções, sendo estas 2 últimas
determinadas por politransfusões.
Em resumo, os episódios repetidos e silenciosos de vaso-oclusão
podem afetar virtualmente todos os órgãos.
Quadro 4.2 - Tipos de crises álgicas em pacientes com anemia falciforme

Outros tipos de “crises” que afetam tais pacientes estão descritas a


seguir.
a) Crise hemolítica

Exacerbação da hemólise, com reticulocitose, diante de quadros


infecciosos (em especial por Mycoplasma), crises álgicas,
medicamentos e, raramente, associação da AF à deficiência de G6PD
ou à esferocitose hereditária. Esse diagnóstico deve ser feito após a
exclusão de todas as causas possíveis de piora da anemia.
b) Crises hiperemolíticas

Surgem quadros hemolíticos graves e súbitos, deflagrados por


transfusão de sangue ou anemia hemolítica autoimune. A Hb pós-
transfusão é inferior à Hb pré-transfusão. Mesmo que a bolsa de
sangue transfundida tenha sido compatível com antígenos
negativos, desencadeia-se um processo de hemólise severa,
intravascular, com hemoglobinúria, alteração da função renal, queda
da Hb e reticulocitopenia (mecanismo pouco conhecido, talvez por
destruição também dos reticulócitos). Nessa situação, deve-se evitar
transfusão, manter hidratação vigorosa e usar corticoide ou
imunoglobulina.
c) Crises aplásicas

Na AF, há redução importante na sobrevida dos eritrócitos (média de


17 dias), e qualquer supressão temporária na eritropoese pode
resultar em anemia grave. Na crise aplásica, ocorre diminuição
intensa e transitória da proliferação medular, com consequente
queda importante nos níveis de Hb. Geralmente, é precedida por
episódios infecciosos, e 70% dos casos decorrem de infecção pelo
parvovírus B19, sendo os demais por outros agentes infecciosos,
como Salmonella, Streptococcus ou vírus Epstein-Barr. A deficiência
de folato também deve ser lembrada como possível fator causal,
recebendo, então, a denominação de crise megaloblástica. Os
pacientes podem apresentar fadiga, dispneia, febre, infecção
respiratória alta e sintomas gastrintestinais. A reticulocitopenia é
marcante, com valores < 1% (ou < 10.000/mm3, diferenciando-se do
quadro clássico de reticulocitose em falcêmico). Embora a maioria
dos quadros regrida espontaneamente, a transfusão de glóbulos
vermelhos deve ser considerada entre pacientes sintomáticos.
Imunoglobulina intravenosa é o tratamento de escolha quando a
aplasia é causada pelo parvovírus B19, que não apresenta remissão
espontânea.
d) Síndrome torácica aguda

A Síndrome Torácica Aguda (STA) caracteriza-se por febre, dor


torácica, hipoxemia e opacidade radiológica pulmonar nova. Queda
no valor da Hb e na contagem de plaquetas pode preceder a alteração
radiológica. Cerca de 50% dos pacientes com AF apresentam ao
menos 1 episódio de STA no decurso da doença, sendo essa a segunda
causa mais frequente de hospitalizações desses pacientes e a
principal complicação em anestesias e cirurgias. A frequência é de
8,7 eventos/100 pacientes/ano, e a mortalidade é de 4 a 9%. A
etiologia é multifatorial e pode incluir infecção, embolia gordurosa,
hiper-hidratação, hipoxemia, microatelectasias. Sua gravidade varia
de acordo com a idade do paciente; em crianças, a manifestação
clínica é mais branda, e geralmente o fator desencadeante é uma
infecção; em adultos jovens, predominam eventos trombóticos
pulmonares que resultam em hipoxemia, hospitalização prolongada
e alta taxa de mortalidade.
Em cerca de 1 terço dos pacientes com STA, a radiografia simples de
tórax pode estar normal inicialmente, e, dependendo da evolução,
que pode variar de horas a dias, as anormalidades radiográficas
podem acentuar-se, como infiltrado localizado, lobar ou difuso,
unilateral ou bilateral e/ou derrame pleural. Como infarto pulmonar
e pneumonia nem sempre são diferenciáveis à radiografia simples de
tórax e à cintilografia de ventilação-perfusão, e como a arteriografia
pulmonar com contrastes hipertônicos é contraindicada àqueles com
AF, pelo alto risco de induzir alteração estrutural na Hb, a
tomografia computadorizada de alta resolução tem sido sugerida
como bom método para detecção de microêmbolos.
Os principais diagnósticos diferenciais da STA são pneumonia,
doença pulmonar vaso-oclusiva e isquemia coronariana nos
pacientes mais idosos. Outras condições que podem simular a
doença são Síndrome de Embolia Gordurosa (SEG) e infarto ósseo. A
SEG geralmente está associada à dor óssea, alteração do nível de
consciência, trombocitopenia, hipocalcemia e hiperuricemia;
petéquias na conjuntiva e no tórax podem reforçar o diagnóstico.
Acredita-se que a dor local provocada pelo infarto ósseo,
principalmente das costelas, do esterno e das vértebras, possa
resultar em hipoventilação, atelectasia, hipercapnia e hipoxemia.
O tratamento consiste em manter o paciente euvolêmico,
oxigenoterapia sempre que paO2 = 70 a 80 mmHg ou SatO2 < 92%,
controle da dor, terapêutica transfusional para deixar a HbS < 30%,
fisioterapia respiratória para evitar atelectasia, e antibioticoterapia
empírica (macrolídeos e/ou quinolonas) para cobertura de
Streptococcus pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e
Chlamydophila pneumoniae.
Para a prevenção da STA, pacientes com AF devem receber vacinas
antipneumocócica e anti-influenza.
A antibioticoterapia empírica também é recomendada aos indivíduos
com suspeita de pneumonia adquirida na comunidade, visando
cobrir os agentes mais comuns, que podem variar de acordo com a
história, o quadro clínico, a idade e a presença de outras doenças de
base. Hidratação com solução salina hipotônica deve ser utilizada
para prevenir ou reverter a depleção de volume intravascular e
diminuir a osmolaridade em crise de falcização.
O programa transfusional crônico, visando reduzir a concentração
de HbS para menos de 30%, pode ser útil na profilaxia em longo
prazo, por meio da transfusão simples ou da eritrocitaférese,
procedimento que consiste na troca automatizada do volume
hemático, suficiente para deixar a HbS no valor desejado.
Figura 4.6 - Radiografia de paciente com síndrome torácica aguda
Fonte: adaptado de Anemia falciforme e suas manifestações respiratórias, 2010.

e) Crises de sequestração ou sequestro esplênico

No sequestro esplênico, há retenção de eritrócitos no baço levando à


hipovolemia. No exame laboratorial, podem-se ter níveis de
hemoglobina muito baixos (2 a 3 g/dL), reticulocitose intensa e,
geralmente, diminuição de leucócitos e/ou plaquetas. e
esplenomegalia. É causado por aprisionamento de eritrócitos no
baço, podendo levar a choque hipovolêmico. Há associação ao
parvovírus B19. Observam-se sintomas de hipovolemia, como
taquicardia, palidez, taquipneia ou até hipotensão e choque;
percebe-se, também, aumento do volume abdominal com
esplenomegalia e dor no hipocôndrio esquerdo. O não atendimento
imediato e eficaz pode, muitas vezes, levar a óbito em poucas horas.
É mais frequente dos 3 meses aos 5 anos de idade e em pacientes com
HbSC e HbS beta, em quem ainda há persistência do baço.
O tratamento inicial consiste na correção da hipovolemia, com
reposição de cristaloides e transfusão de glóbulos vermelhos. A
transfusão deve ser feita com cuidado, visto que o sangue
aprisionado no baço pode entrar na circulação novamente. A
recorrência do quadro na infância é comum (50%), e a mortalidade
pode chegar a 15%. A profilaxia da recorrência pode ser observação
clínica ou esplenectomia, em razão de não haver consenso na
literatura. Nos adultos, opta-se pela observação clínica, pois os
episódios tendem a ser mais leves e com menor taxa de recorrência.
f) Priapismo

O quadro é definido como ereção involuntária com duração ≥ 4


horas, sustentada e dolorosa, em virtude da vaso-oclusão que
obstrui a drenagem venosa do pênis.
O priapismo prolongado é uma urgência
médica e requer avaliação urológica, pois, se
não tratado, pode causar disfunção erétil.

A média de idade é de 12 anos, e, aos 20 anos, 89% já apresentaram 1


ou mais episódios. Os pacientes devem ser orientados a reconhecer o
quadro, iniciar ingesta hídrica vigorosa e analgesia via oral, urinar
com frequência (a bexiga cheia pode ser um fator desencadeante) e
procurar atendimento médico de urgência. Outros fatores
desencadeantes são infecção, desidratação, ingestão de drogas
(álcool, cocaína, maconha, psicotrópicos) e traumatismo.
O tratamento consiste em analgesia vigorosa e hidratação
parenteral, e a não regressão imediata do quadro após a terapêutica
inicial indica aspiração do corpo cavernoso e irrigação com solução
salina, com ou sem alfa-adrenérgico (adrenalina, fenilefrina), a fim
de prevenir a disfunção erétil. Para os casos que não respondem à
irrigação, a cirurgia para colocação de shunt entre os corpos
cavernoso e esponjoso deve ser considerada.
g) Avaliação do paciente com crise álgica no pronto-socorro

Na crise álgica, sempre está indicado fazer uma


avaliação clínica minuciosa, hidratação e
analgesia, e, dependendo da avaliação clínica e
laboratorial, indica-se transfusão sanguínea,
antibioticoterapia e oxigenoterapia.

1. História: avaliar início (agudo ou crônico), intensidade (escala de


zero a 10), duração, localização e frequência da dor. Investigar
fatores desencadeantes, tratamento utilizado no domicílio, data da
última crise e hospitalização prévia;
2. Exame físico: sinais vitais (pressão arterial, pulso, frequência
respiratória, temperatura e oximetria de pulso). Avaliar local da dor,
edema e mobilidade articular. Pode-se encontrar icterícia, em razão
da hemólise. Procurar sinais sugestivos de quadro infeccioso;
3. Exames complementares: radiografia de tórax, hemograma com
contagem de reticulócitos, hemocultura e urocultura, função renal e
eletrólitos; outros exames, a depender da queixa e do exame físico;
4. Analgesia:
a) Dor de leve a moderada intensidade: Anti-Inflamatórios Não
Hormonais (AINHs), analgésicos comuns (dipirona, paracetamol) e
opioides fracos (codeína, tramadol). Deve-se ter cuidado com o uso de
AINH por possíveis alterações da função renal, comuns no paciente
falciforme. Sempre evitar o uso crônico, pelos mesmos motivos;
b) Dor forte: opiáceos fortes (cloridrato de morfina 0,1 mg/kg em bolus;
repetir a dose a cada 20 minutos, até o controle da dor ou a sedação
excessiva). Evitar meperidina, pelo alto potencial de dependência
dessa droga; outros opioides fortes, como metadona e oxicodona,
também podem ser utilizados. Para casos de dor grave e refratária,
pode-se utilizar bomba de infusão contínua de morfina;
c) Hidratação: encorajar a ingesta hídrica e manter o paciente
euvolêmico por meio da reposição de solução salina. Cuidado com a
hipo e a hiper-hidratação – fazer controle diário dos líquidos ingeridos
e administrados, perdas e controle de peso;
d) Transfusão: não diminui a duração da crise e está indicada na STA,
na crise aplásica, no sequestro esplênico e na anemia sintomática;
e) Tratamento das infecções: a principal causa de óbito entre crianças
é a sepse por Streptococcus pneumoniae;
f) Oxigenoterapia: apenas se houver hipoxemia.

O Quadro 4.3 descreve os principais quadros infecciosos e patógenos


relacionados em portadores de doença falciforme.
Quadro 4.3 - Quadros infecciosos
Toda criança com doença falciforme que apresenta febre > 38,5 °C
deve ser tratada, tendo em vista a possibilidade de septicemia.
Recomendam-se a internação e hemoculturas e culturas de
nasofaringe (procurando colonização por S. pneumoniae e
possivelmente identificando cepas resistentes). Imediatamente,
deve ser iniciada antibioticoterapia empírica utilizando-se, por
exemplo, de ampicilina ou amoxicilina. Estudos evidenciam a
ceftriaxona como antibiótico ideal para a maioria das infecções
bacterianas na AF. Qualquer sinal de gravidade, como taquicardia,
hipotensão e bacteriemia, deve ser tratado agressivamente com
ceftriaxona e, quando necessário, vancomicina.
Crianças com doença SS têm resposta imunológica normal a vacinas,
sendo essas armas importantes na profilaxia das infecções na
infância. Embora apresente eficácia limitada para determinados
sorotipos e em menores de 4 anos, a vacinação contra pneumococo
representou grande avanço na proteção da criança com AF, assim
como a vacinação contra Haemophilus. É interessante também que a
criança falcêmica seja submetida à imunização contra o vírus da
hepatite B, em razão do risco elevado dessa infecção, relacionado às
frequentes hemotransfusões.
Além das imunizações, o uso de penicilina oral 125 mg, 2x/d, até os 3
anos, e 250 mg, 2x/d, para maiores de 3 anos, de forma profilática,
visa, principalmente, evitar os casos de sepse por pneumococo. Há
controvérsias quanto à faixa etária em que a profilaxia por penicilina
deve ser descontinuada. Embora alguns estudos recomendem sua
manutenção por toda a vida, demonstrou-se ser seguro suspender a
penicilina oral após o quinto ano de vida.
4.3.2.2 Investigação laboratorial

Os sinais de anemia hemolítica crônica são evidentes, com níveis de


Hb em torno de 7, podendo ser mais baixos, principalmente nas
exacerbações hemolíticas e na associação ao gene talassêmico, e
reticulócitos entre 3 e 15%.
As alterações morfológicas do sangue periférico são características,
com a presença de hemácias “em foice”, reticulocitose, eritroblastos
circulantes e, quando ocorrer autoesplenectomia, presença de
corpúsculos de Howell-Jolly. As hemácias são normocíticas e
normocrômicas, exceto quando há alfa ou betatalassemia associada,
em que são encontradas microcitose e hipocromia.
A leucometria de base geralmente está elevada, entre 12.000 e
15.000/mm3, e pode ocorrer trombocitose (nos asplênicos). Entre os
pacientes com doença falciforme (HbSC, S-betatalassemia), a
leucometria é normal, e pode haver trombocitopenia (por
hiperesplenismo, quando há grande esplenomegalia).
As bilirrubinas estão elevadas, com evidente predomínio da indireta,
e pode haver elevações crônicas e não severas das enzimas
hepatocelulares. Elevações da fosfatase alcalina, da
gamaglutamiltranspeptidase (gama-GT) e da bilirrubina direta
podem ser evidências de colestase por cálculos de bilirrubinato de
cálcio. A confirmação diagnóstica é feita pela eletroforese de Hb,
também chamada de cromatografia líquida de alta eficiência. Nesse
exame, a Hb fetal está em torno de 5 a 15%, e níveis de HbS entre 85
e 98% nos indivíduos SS. A associação de outras hemoglobinopatias
pode reduzir os níveis de HbS, porém a HbA estará ausente (exceto
na S-alfatalassemia, em que a HbA pode chegar a 70 ou 75%, porém
sem oferecer proteção alguma contra a falcização).
Os níveis de HbF são pouco a moderadamente elevados, e os casos
com HbF mais alta costumam ter quadros clínicos mais brandos.
Exames, como o teste de solubilidade da Hb e o teste de falcização,
são excelentes provas para triagem, porém estão positivos nos
heterozigotos (traço falciforme), que são assintomáticos, não sendo
importantes para o diagnóstico.
Para o seguimento clínico dos pacientes com AF, devem ser
realizados exames periódicos em que se avaliem não só a Hb, mas
também o índice de hemólise (DHL, BTF – Bilirrubina Total e
Frações), a resposta medular (reticulócitos) e, anualmente,
verifiquem-se os efeitos sobre órgãos e sistemas (avaliações
cardiológica, oftalmológica, neurológica, entre outras).
4.3.3 Tratamento

Não existe tratamento específico para a AF,


apenas de suporte, ou seja, o paciente deve
fazer acompanhamento periódico com
especialista para profilaxia e diagnóstico
precoce das complicações.

O tratamento da AF é apenas de suporte, e o paciente deve fazer


acompanhamento periódico com o especialista para profilaxia e
diagnóstico de complicações. Além disso, os pacientes são mantidos
constantemente em uso de ácido fólico para evitar a falência
medular por esgotamento dos estoques da substância.
Exames recomendados periodicamente, além dos de sangue, são:
a) Ultrassonografia de abdome, com o objetivo de encontrar cálculo
biliar, para proceder à colecistectomia eletiva;
b) Ultrassonografia com Doppler transcraniano a partir dos 2 até os 16
anos, para detecção do risco de acidente vascular cerebral e inclusão
no programa de transfusão crônica para profilaxia primária, quando
necessário;
c) Exame oftalmológico;
d) Ecocardiograma após os 15 anos, para avaliação da pressão da
artéria pulmonar e função cardíaca;
e) Densitometria óssea e monitorização do nível sérico de cálcio e
vitamina D após os 12 anos;
f) Demais exames, conforme os sintomas.

As transfusões de concentrados de hemácias podem ser terapêuticas


ou profiláticas. As transfusões terapêuticas devem ser utilizadas
apenas quando a sintomatologia do quadro anêmico é severa, em
crises aplásicas ou de sequestração, fase aguda do acidente vascular
cerebral, STA e falência aguda de múltiplos órgãos. Não são
indicações de transfusão: anemia crônica, crise dolorosa e infecções
leves ou moderadas.
As transfusões de concentrados de hemácias
podem ser terapêuticas ou profiláticas. As
terapêuticas só devem ser utilizadas quando os
sintomas do quadro anêmico são severos, e a
profilática não deve ser realizada de rotina.

Uma complicação importante das múltiplas transfusões a que os


pacientes são submetidos é a sobrecarga de ferro, portanto devem
ser evitadas as que são desnecessárias. Deve-se quantificar a
ferritina a cada 3 a 4 meses e iniciar tratamento de quelação do ferro
com desferroxamina ou deferasirox com níveis de ferritina > 1.000
ng/mL, principalmente naqueles submetidos a esquema crônico de
transfusão (profilaxia de acidente vascular cerebral). A sobrecarga de
ferro é potencializada pelo aumento fisiológico de absorção de ferro,
secundário à eritropoese ineficaz, sendo contraindicação absoluta a
administração de ferro medicinal para esses pacientes. Tal
hemossiderose pode ocasionar problemas graves, como
insuficiências hepática, cardíaca e pancreática e endocrinopatia.
Outras complicações das múltiplas transfusões são a aloimunização
e a transmissão de infecção.
A profilaxia de infecções por germes capsulados inclui o uso de
vacinas contra pneumococo, Haemophilus B, hepatite B e influenza a
partir dos 2 anos de vida. A utilização profilática de penicilina via
oral, desde a fase lactente até os 5 anos, como forma de prevenção,
tem sido feita rotineiramente, assim como a imunização para o vírus
influenza. A orientação quanto aos sinais de infecção e ao uso
precoce de antibióticos deve ser sempre reforçada.
A hidroxiureia, um agente citotóxico utilizado classicamente nas
mieloproliferações, revolucionou o tratamento de casos
selecionados de AF, com diminuição da morbidade e aumento da
sobrevida. Ela eleva a síntese de HbF, diminui o número de
granulócitos e reticulócitos, aumenta o nível de óxido nítrico e
diminui a aderência da hemácia à parede vascular. Deve ser indicada
em pacientes com mais de 3 crises/ano, com necessidade de
internação; antecedente de STA; anemia sintomática frequente; e
história de outros eventos vaso-oclusivos severos como acidente
vascular encefálico e priapismo recorrente. Outros medicamentos
também vêm sendo estudados para o tratamento específico da AF,
por intermédio de vários mecanismos de ação, como 5-azacitidina,
decitabina, inalação de óxido nítrico, suplementação de magnésio e
EPO. Há grande esperança no tratamento da AF com a terapia gênica
em estudo.
O transplante de células-tronco hematopoéticas é considerado uma
alternativa nos casos mais graves, refratários aos tratamentos
tradicionais, já autorizado pelo Sistema Único de Saúde para essa
patologia.
Podemos resumir o tratamento da AF da seguinte forma:
a) Tratamento curativo com transplante alogênico de células-tronco
hematopoéticas, somente em casos selecionados;
b) Ácido fólico;
c) Vacinação contra pneumococo, Haemophilus B, hepatite B e
influenza;
d) Profilaxia infecciosa com penicilina oral até os 5 anos;
e) Hidroxiureia para pacientes com mais de 3 crises graves por ano,
antecedente de STA, anemia sintomática frequente com necessidade
transfusional elevada e história de outros eventos vaso-oclusivos
severos;
f) Profilaxia primária e secundária de acidente vascular cerebral em
pacientes de risco;
g) Transfusão de hemácias em situações especiais, como anemia
sintomática severa, crise aplásica ou de sequestração, fase aguda do
acidente vascular cerebral, STA e falência aguda de múltiplos órgãos;
h) Quelação do ferro – ferritina > 1.000 ng/mL;
i) Acompanhamento com especialista para monitorização e tratamento
de complicações diversas.
4.3.4 Prognóstico e sobrevida
A sobrevida global do paciente com AF é reduzida, mas tem
melhorado com acompanhamento médico e diagnóstico precoce das
complicações, imunização adequada, profilaxia antibiótica na
infância, uso precoce de antibióticos em quadros infecciosos,
suporte transfusional adequado e uso de hidroxiureia, quando
indicado.
O teste do pezinho é um exame de triagem, realizado na primeira
semana de vida (terceiro ao sétimo dia), para rastreamento de
algumas doenças congênitas, entre elas as hemoglobinopatias. Se
alterado, devem ser realizados exames confirmatórios (eletroforese
de Hb, no caso da AF). O teste é de extrema importância, pois
medidas profiláticas podem ser instituídas precocemente,
diminuindo a mortalidade e a morbidade.
As principais causas de óbito, em ordem decrescente de frequência,
são: infecção, principalmente na infância, com STA e falência de
múltiplos órgãos; acidente vascular cerebral; sequestro esplênico;
tromboembolismo; insuficiência renal; hipertensão pulmonar.
Alguns fatores estão associados à alta morbidade e menor sobrevida,
como dactilite antes de completar 1 ano de vida, leucocitose na
ausência de infecção e Hb < 7 g/dL.
4.3.5 Situações especiais
4.3.5.1 Acidente Vascular Cerebral Isquêmico (AVCI)

Devido ao risco de acidente vascular cerebral


em crianças com anemia falciforme, está
indicado rastreamento com Doppler
transcraniano, a fim de indicar ou não a
transfusão sanguínea crônica para evitar essa
complicação.
A tomografia computadorizada de crânio sem contraste deve ser
realizada para descartar quadros hemorrágicos ou não isquêmicos
nos pacientes sintomáticos. A ressonância é o melhor exame para a
avaliação das lesões isquêmicas, que são mais comuns entre crianças
de 2 a 9 anos; os quadros hemorrágicos são mais frequentes em
indivíduos entre 20 e 29 anos. Isso porque, com os microinfartos de
repetição na infância, há a formação de pequenos aneurismas de
circulação colateral peri-infarto (aneurismas de moyamoya), os
quais, na vida adulta, podem se romper, levando ao AVC
hemorrágico. Na criança, o tratamento na fase aguda consiste em
hidratação e transfusão, além de antiagregação. Na prevenção
secundária, utiliza-se o programa de transfusão crônica em razão do
alto risco de recidiva. O adulto deve ser avaliado para receber rt-PA
(ativador tissular do plasminogênio recombinante) na fase aguda do
AVCI; se não for possível, pode ser utilizado ácido acetilsalicílico
(325 mg).
Na infância, 25% podem ter lesões isquêmicas silenciosas,
resultando em alterações cognitivas. Dessa forma, está indicado o
rastreamento para toda criança com AF, por meio da
ultrassonografia com Doppler transcraniano; o fluxo aumentado na
artéria cerebral média ou na carótida interna (> 170 a 200 ms) é
interpretado como alto risco de evento isquêmico, estando indicada
a profilaxia primária do AVC por meio do regime de transfusão
crônica. A hidroxiureia está sendo estudada para essas situações.
A transfusão de sangue visa reduzir a concentração de HbS para
menos de 30%, com benefício no programa de profilaxia do AVC. A
transfusão crônica pode ser feita por transfusão simples ou
eritrocitaférese (procedimento que consiste na troca automatizada
do volume hemático, suficiente para deixar a HbS no valor desejado).
4.3.5.2 Falência de múltiplos órgãos

A falência de múltiplos órgãos aguda é vista, com mais frequência,


durante crises álgicas graves nos pacientes HbSS. A fisiopatologia
não é completamente entendida, mas sabe-se que suporte
transfusional com eritrocitaférese pode reverter o quadro.
4.3.5.3 Anestesia e cirurgia

O risco de morbimortalidade é maior do que o da população em


geral, por presença de anemia, propensão à falcização na
microcirculação, lesões de órgãos-alvo, risco de hipóxia e efeitos da
asplenia (risco aumentado de infecção). São orientações no pré-
operatório:
a) Correção da anemia (manter Hb entre 8 e 10 g/dL);
b) Se possível, transfusão de concentrado de hemácias fenotipadas
para evitar a aloimunização;
c) Manutenção de oxigenação e hidratação;
d) Seleção de procedimentos menos invasivos e extensos;
e) Fisioterapia respiratória no pós-operatório.

4.3.5.4 Gravidez

A gravidez em mulheres com AF traz uma série de riscos, tanto para


a mãe quanto para o bebê. Esses riscos não são impeditivos de
gravidez desejada, salvo em situações especiais. A incidência de
aborto espontâneo é elevada.
O pré-natal é fundamental, e a paciente deve ser aconselhada a
buscar acompanhamento médico logo no início da gestação. É
necessário pesquisar a presença de aloanticorpos,
independentemente da história transfusional. O acompanhamento
da paciente aloimunizada deve ser meticuloso, e a amniocentese
para pesquisar o desenvolvimento fetal e a concentração de
bilirrubina é recomendada, para investigação de doença hemolítica
do recém-nascido. Também é sugerida a administração de
imunoglobulina anti-Rh, em casos selecionados.
O retardo do crescimento intrauterino é frequente, assim como a
prematuridade. Toxemia gravídica, STA, infecções do trato urinário
e tromboflebite também são complicações comuns. É preciso
atentar, ainda, para episódios infecciosos, como infecção do trato
urinário, pielonefrite e endometrite.
Durante o trabalho de parto, a hipercinesia e o alto débito cardíaco
tornam-se acentuados, e a dor deve ser controlada pelo uso de
narcóticos. As perdas sanguíneas devem ser repostas de acordo com
a rotina obstétrica habitual, com oxigênio e hidratação de
manutenção.
No período pós-parto, deve-se manter hidratação adequada, e é
possível diminuir o risco de tromboembolismo com uso de meias
elásticas e deambulação precoce. A prevenção de atelectasia é
importante e, em caso de febre, deve-se diagnosticar a causa e tratá-
la agressivamente. O recém-nascido deve ser submetido a testes
para identificação de hemoglobinopatia, assim como de outras
desordens genéticas.
Em caso de aborto espontâneo ou provocado, a paciente Rh negativo
deve sempre receber a imunoglobulina anti-Rh. O emprego de
transfusões de concentrado de hemácias profilaticamente, para
manter níveis hematimétricos mais altos (Hb em torno de 10 g/dL)
com o intuito de reduzir a incidência de complicações, como
abortamento e/ou prematuridade, é discutível e, para alguns,
injustificável.
É sempre importante que seja realizado o aconselhamento genético
para mulheres que pretendem engravidar.
4.3.5.5 Traço falciforme

Os pacientes com genótipo heterozigoto apresentam uma condição


hereditária benigna, não uma doença: não apresentam manifestação
hematológica (valores de Hb, VCM – Volume Corpuscular Médio –,
HCM – Hemoglobina Corpuscular Média – e reticulócitos normais),
crises vaso-oclusivas, riscos gestacional, cirúrgico ou anestésico
adicionais em relação à população normal e têm expectativa de vida
normal. Apesar de ser condição benigna, algumas complicações
raras podem acontecer. Algumas complicações raras são:
1. Renais: a medula renal pode sofrer infartos microscópicos, o que
leva à incapacidade de concentrar a urina (hipostenúria); em infartos
da papila renal, episódios de hematúria macroscópica; risco
aumentado de carcinoma medular renal;
2. Trombose: há risco de infarto esplênico em grandes altitudes;
3. Pacientes com traço falciforme submetidos a exercícios extenuantes
e prolongados (militares): há risco 30 vezes maior de morte súbita,
provavelmente em razão de rabdomiólise, infarto do miocárdio e
arritmia.

Pela benignidade do quadro, não se indicam rotineiramente os


mesmos cuidados de vacinação ou reposição prolongada de ácido
fólico aplicados a indivíduos com AF. É importante o
aconselhamento genético, informando que se ambos os pais tiverem
traço falciforme, haverá 25% de chance de seus filhos apresentarem
a AF propriamente dita.
4.4 HEMOGLOBINOPATIA C
A HbCC tem herança autossômica e é resultado da substituição de 1
único aminoácido na molécula da cadeia betaglobina, trocando
glutamina por lisina na posição B6. A forma homozigota da HbCC
provoca o aparecimento de anemia hemolítica crônica leve, com
esplenomegalia discreta, icterícia leve e colelitíase por cálculos de
bilirrubinato.
Os heterozigotos para HbAC são assintomáticos, todavia apresentam
alterações morfológicas no sangue periférico (microcitose), sendo
importante diagnóstico diferencial com o traço talassêmico.
A HbC não é falcemizante, mas participa na polimerização se está
junto à HbS (HbSC). O sangue periférico mostra predomínio de
hemácias “em alvo” e, ocasionalmente, células contendo cristais
retangulares de HbC precipitada. O diagnóstico é confirmado pelo
achado de HbS e HbC na eletroforese de proteínas.
Os indivíduos com HbSC podem apresentar as
mesmas complicações daqueles com AF (HbSS),
mas em menor intensidade e mais tardiamente,
com episódios de dor óssea ou articular de
intensidade leve.

O tratamento é meramente de suporte, com ácido fólico, transfusões


(quando necessário) e tratamento sintomático das crises.
Das doenças falciformes, a hemoglobinopatia C
é a forma que mais apresenta risco de
retinopatia, com necessidade de consultas
periódicas com oftalmologista, mesmo se não
houver nenhum sintoma.

4.5 HEMOGLOBINAS INSTÁVEIS


Hbs instáveis são resultantes de mutações que levam à síntese de Hb
alterada, diminuindo a solubilidade da molécula no eritrócito e
deixando-a com maior propensão à oxidação, o que ocasiona a sua
precipitação, mesmo quando há um sistema de G6PD eficaz,
culminando com lesão na membrana celular.
A transmissão é autossômica dominante, e a severidade varia de
acordo com a quantidade de Hb mutada.
A maioria dos pacientes mostra quadro de hemólise crônica, com
icterícia, esplenomegalia, reticulocitose e colecistopatia calculosa
por bilirrubinato de cálcio.
O início da manifestação clínica depende da cadeia globínica afetada:
se cadeia alfa, o início é neonatal; se cadeia beta, após o terceiro ao
sexto mês de vida. Os pacientes com formas mais leves só
apresentam anemia sob condições de estresse oxidativo, como
infecção, febre e medicamentos. Alguns se queixam de urina escura
(pigmentúria), resultado da presença de anéis pirrólicos na urina.
O diagnóstico é feito por meio da evidência de corpúsculos de Heinz
eritrocitários, alteração no teste de precipitação de Hb instável e
níveis normais de G6PD. O encontro de hemácias “mordidas” no
sangue periférico também auxilia o diagnóstico (células que
perderam parte da membrana lesada em passagem pelo sistema
reticuloendotelial do baço).
Figura 4.7 - Lâmina de sangue periférico de paciente com hemoglobina instável

Legenda: (A) hemácias “mordidas”; (B) corpúsculos de Heinz.

O diagnóstico diferencial inclui outras formas de anemias


hemolíticas, não esferocíticas, que apresentam corpúsculos de
Heinz:
1. Congênitas: deficiência de G6PD, deficiência de piruvatoquinase;
2. Adquiridas: meta-hemoglobinemia por intoxicação medicamentosa,
doença de Wilson.

O tratamento nem sempre é necessário, visto que a maior parte dos


casos é de anemia leve. Para todos, recomenda-se o uso de ácido
fólico contínuo, a utilização precoce de antibióticos nos casos de
infecção e evitar medicamentos oxidantes. Nos casos em que há
hemólise mais intensa e mantida, suporte transfusional; pode ser
necessária a esplenectomia. O prognóstico é benigno na grande
maioria dos casos.
4.6 TALASSEMIAS
4.6.1 Considerações gerais
As talassemias são condições caracterizadas pela redução ou
ausência da síntese das cadeias de globina (as cadeias deficientes
são, assim, indicadas no nome da patologia, ou alfa, ou beta). A
síntese reduzida da cadeia globínica mutada leva à redução do
conteúdo eritrocitário de Hb e, finalmente, à anemia hipocrômica e
microcítica de intensidade variada. Em compensação, o excesso da
cadeia globínica normal pode levar à hemólise crônica e eritropoese
ineficaz.
A Hb normal circulante de um adulto é composta por 3 principais
tipos de Hb, os quais, por sua vez, apresentam sempre 2 cadeias
globínicas alfa associadas a 2 cadeias globínicas de outro tipo; em
média, 98% correspondem a HbA, que é formada por um tetrâmero
de 2 cadeias alfa e 2 cadeias betaglobínicas, podendo ser chamada de
“alfa 2 beta 2”; < 3% de HbA2, formada por 2 cadeias alfa e 2 cadeias
delta (alfa 2 delta 2); e < 2% de HbF, com 2 cadeias alfa e 2 cadeias
gama (alfa 2 gama 2). Esta HbF predomina na vida intraútero, sendo
gradativamente substituída pelas HbA e A2 na vida extrauterina.
Quadro 4.4 - Tipos de hemoglobina normal
4.6.1.1 Alfatalassemia

As 2 cópias do gene da alfaglobina estão localizadas no cromossomo


16, e não há substituto para esta na formação da Hb, podendo trazer
repercussões desde a vida intrauterina, já que todas as Hbs contêm
cadeias alfa. A deficiência de formação da alfaglobina leva,
consequentemente, ao excesso relativo de cadeia beta nas crianças e
nos adultos, formando a HbH (beta-4), e ao excesso intraútero de
globina do tipo gama, gerando a Hb de Bart (gama-4). O excesso de
cadeia beta é capaz de formar tetrâmeros solúveis (HbH), que são
instáveis e podem precipitar dentro da hemácia, gerando uma
variedade de manifestações clínicas. A HbH tem alta afinidade com o
oxigênio e distribui mal o O2 nos tecidos; a Hb de Bart apresenta
extraordinária afinidade com o oxigênio e resulta na hidropisia fetal
e na morte intrauterina ou pós-parto na alfatalassemia major, em
que não há produção da cadeia alfa.
As mutações dos genes da alfatalassemia são:
1. 3 genes normais e 1 gene mutado [ / -]: portador silencioso ou
alfatalassemia mínima (alfa + talassemia);
2. 2 genes normais e 2 mutados [ -/ - ou /- -]: talassemia
minor ou traço talassêmico alfa; não existem sintomas, mas o
hemograma pode apresentar anemia leve, microcítica;
3. 1 gene normal [ -/- -]: doença da HbH; anemia hemolítica,
esplenomegalia, alterações esqueléticas devido a eritropoese
aumentada;
4. Nenhum gene normal [- -/- -]: hidropisia fetal com Hb de Bart, pois a
cadeia alfa não é formada, sendo incompatível com a vida extrauterina.

4.6.1.2 Betatalassemia

As betatalassemias são causadas mais por mutações pontuais do que


por deleções e resultam na formação de cadeias beta incompletas ou
até na ausência das cadeias. Os defeitos moleculares que levam à
betatalassemia são múltiplos e heterogêneos. O único gene da
betaglobina localiza-se no cromossomo 11, adjacente aos locais onde
estão codificadas as cadeias delta e gama, capazes de substituir a
cadeia beta.
O excesso relativo das cadeias alfa provoca diminuição da
solubilidade e precipitação da Hb, levando a lesões de membrana e
alteração no transporte de oxigênio. Essas lesões provocam
hemólise, tanto dentro da medula óssea quanto no sangue
periférico, e são responsáveis por uma variedade de manifestações
clínicas. A intensidade destas depende da quantidade de cadeia
alfaglobina em excesso.
Quando não há síntese de cadeias beta, o subtipo é denominado
“zero”, enquanto aqueles com síntese reduzida são chamados “+”. A
redução na síntese de cadeias beta leva à formação de maior
quantidade de HbA2 e F.
O traço talassêmico beta é o termo usado para os heterozigotos, que
herdam 1 único gene mutado responsável pela redução da cadeia da
betaglobina ( / +).
A talassemia intermediária é o resultado da homozigose para
mutações talassêmicas – os 2 alelos apresentam mutação que
resulta na diminuição da síntese de cadeia beta ( +/ +) – ou
heterozigose – com alelos não produtores de cadeia beta ( +/ 0).
Talassemia major é o termo utilizado quando há mutação em
homozigose, que resulta na ausência da síntese de cadeia globínica
( 0/ 0).
4.6.2 Quadros clínico e radiológico
4.6.2.1 Alfatalassemia

As síndromes alfatalassêmicas predominam em indivíduos


originários da China e do Sudeste Asiático e, mais raramente, de raça
negra.
O portador silencioso é assintomático e não
manifesta alterações hematológicas. O traço
alfatalassêmico apresenta anemia leve,
microcítica e hipocrômica, com excelente
qualidade de vida e sintomatologia mínima ou
ausente.

A doença da HbH tem quadro de anemia hemolítica de intensidade


variável, mas geralmente em associação à necessidade transfusional
desde a infância, com esplenomegalia e alteração óssea variável pela
eritropoese ineficaz. O quadro de anemia e icterícia já se manifesta
logo ao nascimento, visto que há deficiência de alfaglobina para a
síntese de HbF.
Na hidropisia fetal, ocorre hepatoesplenomegalia intensa, com
anemia severa (Hb = 3 a 4) e insuficiência cardíaca, culminando com
óbito fetal ou natimorto.
Figura 4.8 - Hidropisia fetal
4.6.2.2 Betatalassemia
Os indivíduos mais afetados são os originários da costa do
Mediterrâneo (italianos e gregos, principalmente) e, em grau menor,
chineses, outros asiáticos e negros.
O traço talassêmico (betatalassemia minor) pode apresentar anemia
discreta, porém é assintomático. Geralmente, a suspeita é
confirmada com hemograma de rotina.
Na talassemia intermediária, os pacientes apresentam anemia
hemolítica crônica, de intensidade variável, habitualmente com
pouca necessidade transfusional ao longo da vida, sendo necessário
o aporte de sangue apenas em períodos de estresse. Podem
apresentar eritropoese extramedular, com formação de massas nos
mais diversos locais (pulmão, paravertebral), e ter deformidades
ósseas de intensidade variável em consequência da eritropoese
ineficaz.
Na betatalassemia major (anemia de Cooley), os sinais geralmente
são evidentes em torno do sexto mês de vida, período em que ocorre
diminuição da síntese de HbF e seria esperado aumento da Hb
contendo cadeia beta (HbA). Numerosos problemas clínicos
acontecem a partir desse momento, como anemia hemolítica crônica
intensa, falhas de crescimento e desenvolvimento, deformidades
ósseas devido a eritropoese intensa, hepatoesplenomegalia, icterícia
e hematopoese extramedular. Se as crianças não são tratadas, 8%
morrem no primeiro ano de vida por insuficiência cardíaca, inanição
e infecção. A evolução clínica é modificada pela realização de
terapêutica transfusional adequada, porém a sobrecarga de ferro
transfusional (hemossiderose) pode ser grave, com lesões de
múltiplos órgãos e redução da sobrevida, se não tratada.
Nas formas mais graves de talassemia, como resposta à eritropoese
ineficaz, a série eritroide medular aumenta, às vezes de maneira tão
intensa que pode levar à proliferação das camadas hematopoéticas
de ossos chatos e longos, com deformidades ósseas severas,
osteopenia e, eventualmente, fraturas patológicas.
As principais alterações ósseas na talassemia são: protuberância da
região frontal e das regiões malares; depressão na ponta do nariz;
horizontalização dos orifícios nasais e hipertrofia dos maxilares com
exposição de dentes e gengivas superiores.
Figura 4.9 - Alterações ósseas

No crânio, podem-se ter, ainda, o alargamento da díploe, o


desaparecimento da tábua externa e o aparecimento de estrias
perpendiculares, que conferem o aspecto característico de “porco-
espinho”. O exame radiológico de ossos em geral, por sua vez,
mostra redução do osso compacto da cortical e reabsorção das
trabéculas.
Figura 4.10 - Alargamento da díploe e diminuição da tábua externa no crânio
Figura 4.11 - Crânio “em porco-espinho”

4.6.3 Laboratório
4.6.3.1 Alfatalassemia minor (traço)

A Hb varia desde a normalidade até em torno de 10 g/dL. O VCM é


marcadamente baixo (entre 60 e 75 fL), e a contagem eritrocitária
está normal ou elevada.
O esfregaço de sangue periférico mostra microcitose, hipocromia,
hemácias “em alvo” e acantócitos.
A contagem de reticulócitos é normal, assim como o ferro sérico. A
eletroforese de Hb não mostra aumento de A2 ou de F, e não ocorre
HbH. Trata-se de diagnóstico geralmente de exclusão, quando se
afastam a deficiência de ferro, esferocitose e betatalassemia. Para
diagnóstico de certeza, é necessária a pesquisa molecular.
4.6.3.2 Doença da HbH
São pacientes com anemia hemolítica de intensidade moderada a
severa, que cursam com Hb em torno de 7 a 9 g/dL e que apresentam
uma morfologia rica de sangue periférico, com poiquilocitose,
microcitose, hipocromia e hemácias “em alvo”. Apresentam como
característica as chamadas hemácias “em bola de golfe” com
coloração supravital, em razão dos precipitados intraeritrocitários
de HbH. A contagem de reticulócitos é elevada, e, na eletroforese de
Hb, é identificada a HbH.
4.6.3.3 Betatalassemia minor (traço)

São indivíduos assintomáticos. Alguns cursam com anemia leve (Hb


em torno de 10 g/dL). Microcitose e hipocromia são marcantes, com
hemácias “em alvo” vistas na análise do sangue periférico; assim,
um diagnóstico diferencial importante é a anemia ferropriva. Na
talassemia, o RDW é normal, o número de eritrócitos é aumentado, e
a contagem de reticulócitos é normal ou pouco aumentada. Em
alguns casos, pode-se encontrar esplenomegalia discreta.
Deve-se pensar em anemia ferropriva como
diagnóstico diferencial para betatalassemia
minor, já que há microcitose, hipocromia e
hemácias “em alvo”.

4.6.3.4 Betatalassemia intermediária

A anemia é variável, geralmente em torno de 7 a 8 g/dL, com VCM


baixo (entre 55 e 75 fL) e contagem eritrocitária normal ou elevada.
O sangue periférico mostra poiquilocitose, microcitose, hipocromia,
hemácias “em alvo” e pontilhado basófilo. A contagem de
reticulócitos é normal ou elevada; o ferro sérico tende a ser elevado,
pela absorção aumentada, que é estimulada pela eritropoese
ineficaz. A eletroforese de Hb mostra aumento de A2 entre 4 e 8% e
de HbF entre 1 e 5%.
4.6.3.5 Betatalassemia major

Ocorre anemia severa, com hipocromia e microcitose intensas, e a


Hb pode chegar a valores de 3 g/dL.
O esfregaço de sangue periférico mostra múltiplas alterações, com
poiquilocitose, hipocromia muito intensa, pontilhado basófilo e
eritroblastos circulantes e eritrócitos em formas bizarras.
Corpúsculos de Heinz podem ser vistos, pois a cadeia alfa se
precipita. Pode haver, ainda, leucocitose e reticulócitos baixos como
resultado do aumento do estímulo medular e da eritropoese ineficaz.
Praticamente não há HbA na eletroforese, as quantidades de HbA2
são variáveis, e o predomínio é de HbF.
Quadro 4.5 - Talassemias: genética, clínica e laboratório

Legenda: produção normal de cadeia beta ( ); produção de cadeia beta diminuída, mas
não completamente ( +); produção de cadeia beta completamente ausente ( 0).
4.6.4 Diagnóstico diferencial
Ocorre principalmente com a deficiência de ferro, particularmente
nas formas menores. O paciente com talassemia tem VCM menor,
número de hemácias por mm3 normal ou elevado, RDW normal,
ferro e ferritina séricos normais ou elevados e reticulócitos normais
ou aumentados.
#IMPORTANTE
A eletroforese de hemoglobina é o exame de
eleição para o principal diagnóstico diferencial
entre a alfatalassemia, a betatalassemia e as
anemias carenciais por deficiência de ferro.

4.6.5 Tratamento
Nas formas heterozigóticas menores, não é necessário tratar nem
realizar aporte de ácido fólico, exceto em períodos de estresse ou
aumento da demanda, após perdas ou na gestação. Os pacientes
podem desenvolver deficiência de ferro por perdas ou aumento de
demanda, e não há contraindicações ao uso de suplementos de ferro
nesses casos.
As formas intermediária e major devem fazer uso contínuo de ácido
fólico. Na doença da HbH, devem ser evitadas as drogas oxidantes e o
uso de ferro medicinal.
As formas maiores necessitam de esquemas regulares de transfusão
desde a infância, para garantir crescimento e desenvolvimento
adequados, bem como minimização dos efeitos ósseos e
endocrinológicos da anemia severa crônica, com o objetivo de deixar
a Hb entre 9 e 10 g/dL.
Indica-se esplenectomia se o hiperesplenismo elevar os
requerimentos transfusionais ou se a talassemia intermediária
estiver com Hb em nível de transfusão frequente.
A terapêutica de quelação de ferro é essencial para as formas maiores
em transfusão, assim que os níveis de ferritina ultrapassem 1.000
ng/mL. A sobrecarga de ferro leva a complicações graves, como
disfunção endócrina e metabólica (diabetes mellitus,
hipotireoidismo, hipogonadismo e retardo de crescimento). As
opções terapêuticas são a desferroxamina, de administração
subcutânea e preferencialmente contínua, ou ainda o deferasirox, de
uso oral.
Na talassemia, podem acontecer, ainda, as crises aplásicas. Da
mesma forma que na AF, na maioria das vezes, estão relacionadas
com a infecção por parvovírus B19 ou deficiência de folato.
O transplante alogênico de células-tronco hematopoéticas vem
sendo realizado em casos selecionados de betatalassemia major,
particularmente em crianças que ainda não desenvolveram
sobrecarga de ferro, com índice de resposta em torno de 80% dos
casos com sobrevida sem necessidade transfusional.
4.7 ESFEROCITOSE HEREDITÁRIA E
OUTRAS DOENÇAS DA MEMBRANA
ERITROCITÁRIA
4.7.1 Considerações gerais
A membrana eritrocitária executa funções altamente especializadas
e apresenta estrutura básica de 2 camadas de fosfolípides e um
conjunto de proteínas de membrana, possibilitando que cada
proteína celular realize diferentes atividades. Essas proteínas são
classificadas basicamente como periféricas, que compõem o
citoesqueleto, e integrais, que ocupam toda a espessura da
membrana, sendo geralmente glicoproteínas com diversas funções.
As proteínas do citoesqueleto são constituídas principalmente por
membros da família das espectrinas e anquirinas, dispostas em
sentido horizontal ou vertical, sendo responsáveis, entre outras
funções, pela deformabilidade da hemácia. Por outro lado, uma
função importante das proteínas integrais é o transporte de água e
íons por meio das membranas.
A esferocitose hereditária é a anemia hemolítica por defeito de
membrana mais comum, cuja incidência é da ordem de 1 em 5.000
indivíduos europeus. O padrão de herança é autossômico dominante
em 75% dos casos, sendo os demais de padrão recessivo. Resulta de
mutações em genes que codificam as proteínas da membrana
eritrocitária (espectrinas, banda 3, anquirinas e proteína 4.2), com
consequente mudança na estrutura do citoesqueleto, deixando a
membrana instável e suscetível à perda de superfície por
vesiculações, formando os esferócitos, que são mais rígidos,
comprometendo sua passagem pelos sinusoides esplênicos, onde
são captados pelo sistema reticuloendotelial e fagocitados.
Figura 4.12 - Proteínas da membrana eritrocitária
Fonte: adaptado de Disorders of red cell membrane, 2008.

4.7.2 Quadro clínico


O diagnóstico normalmente é feito na infância, pelo quadro de
anemia, icterícia e esplenomegalia, e, muitas vezes, é confundido
com AF ou hepatite.
Doença leve ocorre em 20 a 30% dos casos, situação em que não há
anemia nem icterícia, pois a medula óssea compensa a hemólise,
ocorrendo reticulocitose moderada e discreta esplenomegalia. Esse
caso pode ser diagnosticado apenas na adolescência ou no indivíduo
já adulto.
De 60 a 75% dos casos são de intensidade moderada, com anemia
leve a moderada, reticulocitose intensa, esplenomegalia
significativa, icterícia e necessidade transfusional ocasional.
Os casos graves são minoria e caracterizam-se por necessidade
transfusional frequente, em consequência da hemólise intensa. Há
citação de morte intraútero por hidropisia fetal em casos extremos.
Em quaisquer dessas situações, a anemia pode ser muito agravada
quando há concomitância com deficiência de ácido fólico ou com
infecção viral, em especial pelo parvovírus B19. A hemólise crônica
leva ao quadro de colecistopatia crônica calculosa. Ao exame físico,
chama a atenção a presença de esplenomegalia e icterícia.
4.7.3 Laboratório
É encontrada anemia de gravidade variável, e eventualmente pode
não haver anemia.
Reticulocitose é um achado constante, e o esfregaço de sangue
periférico mostra a presença de esferócitos, podendo fazer parte de
apenas um percentual dos eritrócitos ou ocupar completamente a
lâmina.
Figura 4.13 - Sangue periférico com esferócitos (seta)
Fonte: Nonimmune Hemolytic Anemia, 2017.

A Concentração de Hemoglobina Corpuscular Média (CHCM) está


elevada (sendo essa uma das raras causas de anemia hipercrômica),
porém o VCM está diminuído ou normal (média entre o VCM dos
esferócitos – microcíticos –, e dos reticulócitos – macrocíticos), e o
RDW está elevado. Pela perda de parte de sua superfície de
membrana, os esferócitos têm aumento da vulnerabilidade quando
presentes em meios hipotônicos. Nessa característica, fundamenta-
se o teste da curva de fragilidade osmótica, no qual os eritrócitos são
expostos a soluções de cloreto de sódio cada vez menos
concentradas, e faz-se um traçado da hemólise percentual a cada
diluição, demonstrando que, nesse caso, começa a haver hemólise
com concentrações de NaCl que não causariam esse efeito sobre
eritrócitos normais. Contudo, a curva de fragilidade mostra apenas a
existência de esferócitos, não a etiologia deles, podendo estar
alterada, por exemplo, na anemia hemolítica autoimune.
Portanto, o diagnóstico é feito por meio de história familiar de
anemia, presença de anemia hemolítica, com esferócitos no sangue
periférico e alteração da curva de fragilidade osmótica.
Figura 4.14 - Curva de fragilidade osmótica normal

Figura 4.15 - Curva de fragilidade osmótica alterada


4.7.4 Tratamento
Os pacientes com hemólise devem permanecer constantemente em
uso de ácido fólico para garantir a resposta medular à hemólise
crônica. O tratamento de escolha para indivíduos que mantêm
hemólise severa, com necessidade transfusional, consiste na
esplenectomia. A retirada do baço não corrige o defeito da
membrana, mas elimina o principal sítio de hemólise, portanto não
deve ser indicada a casos de anemia leve. É recomendado, quando
possível, aguardar até 4 anos para realizar a esplenectomia, pelo
risco de sepse grave. É imprescindível vacinação pré-esplenectomia
com antipneumococos, meningococo e Haemophilus, além de
profilaxia com penicilina via oral até 5 anos após esplenectomia.
4.8 DEFICIÊNCIA DE GLICOSE-6-
FOSFATO DESIDROGENASE E
PIRUVATOQUINASE
4.8.1 Deficiência de glicose-6-fosfato
desidrogenase
A via da glicose-6-fosfato desidrogenase protege a hemoglobina e a
membrana eritrocitária do dano oxidativo dos radicais livres do O2
produzidos por infecções, drogas, toxinas e cetoacidose diabética, e
a oxidação de estruturas da membrana pode causar hemólise
intravascular. A glicose-6-fosfato (G6P), formada no início da
glicólise, pode ser desviada para a via das pentoses ou shunt da
hexose monofosfato. Nessa via, a G6P sofre ação da G6P
desidrogenase, formando a 6-fosfogluconato e restaurando o
NADPH. Este último é uma coenzima da glutationa redutase, que
leva à regeneração da glutationa reduzida (GSH). A GSH é usada pela
glutationa peroxidase na eliminação do peróxido de hidrogênio na
hemácia, evitando a oxidação da membrana plasmática da hemácia,
das globinas e das proteínas estruturais (já que isso causaria
instabilidade celular).
Figura 4.16 - Metabolismo da glicose-6-fosfato desidrogenase

Fonte: elaborado pelos autores.

A G6PD também atua, por meio da produção de NADH, para manter


o heme na forma reduzida Fe++. Na deficiência da G6PD, a meta-Hb
(heme contendo ferro na forma férrica) persiste e se precipita,
formando os corpúsculos de Heinz, que se ligam à membrana,
lesando-a de diversas maneiras.
Assim, a G6PD é necessária para a formação de NADPH e GSH,
protegendo a hemácia dos efeitos oxidativos e evitando a formação
de meta-Hb.
A deficiência da G6PD é uma doença ligada ao cromossomo X, que
afeta 1 a cada 100.000 pessoas na Europa, especialmente homens;
cerca de 10% dos negros americanos têm a variante africana (classe
III); no Brasil, 8% dos negros apresentam a deficiência.
Os corpúsculos de Heinz são observados no período precoce do
quadro no esfregaço de sangue periférico, pelo corante cristal
violeta. Os eritrócitos com corpúsculos de Heinz são rapidamente
retirados da circulação pelo baço, que detecta essa alteração, levando
ao aparecimento das bite cells, ou células “mordidas”.
Existem 4 formas de manifestação clínica da deficiência:
1. Anemia hemolítica aguda: pacientes apresentam crise hemolítica
aguda, intravascular e extravascular, quando expostos a agentes
oxidantes, como algumas drogas, com sintomatologia nos primeiros 2
a 4 dias após a ingesta. Ocorre queda rápida do hematócrito, com
elevação da bilirrubina indireta, queda da haptoglobina e elevação da
hemoglobinemia. Há queixas de mal-estar precordial, calafrios,
cefaleia, náuseas e vômitos, confusão mental, dor lombar, hematúria e
alteração da dinâmica cardiorrespiratória. Como toda crise hemolítica
intravascular, a destruição eritrocitária maciça pode levar à necrose
tubular aguda, por deposição de Hb e seus metabólitos. A queda de
Hb estimula a secreção de EPO, que resultará em reticulocitose, com
pico entre 7 e 10 dias do início da hemólise;
2. Anemia hemolítica não esferocítica congênita: apresenta hemólise
crônica de intensidade variável mesmo na ausência de agentes
oxidantes, mas os quadros hemolíticos costumam ser fulminantes após
a exposição a drogas;
3. Icterícia neonatal: pico de incidência de hemólise ocorre entre o
segundo e o quarto dia de vida; há mais icterícia do que anemia;
raramente a anemia é grave;
4. Favismo: principalmente em crianças de 1 a 5 anos. Após a ingesta
de fava (5 a 24 horas), há hemólise intravascular intensa.

Quadro 4.6 - Principais medicamentos e produtos químicos que podem levar a crises
hemolíticas na deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase
A Organização Mundial da Saúde preconiza classificar a deficiência
de G6PD, de acordo com a magnitude da deficiência e a severidade da
hemólise:
1. Classe I: deficiência enzimática severa (< 10% de atividade) e
hemólise crônica;
2. Classe II: deficiência enzimática severa, com hemólise intermitente
associada à infecção ou a medicamento;
3. Classe III: deficiência enzimática moderada (10 a 60% de atividade),
com hemólise intermitente associada a quadro infeccioso ou uso de
medicação.
4.8.1.1 Diagnóstico

É realizado com base no estudo quantitativo de G6PD em


hemolisados e na eletroforese da enzima em acetato de celulose.
4.8.1.2 Tratamento

O tratamento consiste no suporte transfusional durante as crises


hemolíticas graves. Entretanto, a profilaxia das crises, evitando-se o
uso/consumo das substâncias que podem desencadear os sintomas,
é a melhor recomendação para esses pacientes. Na icterícia neonatal,
a conduta é a mesma de qualquer doença hemolítica do recém-
nascido, sendo indicadas a fototerapia e a exsanguineotransfusão, a
depender dos valores de bilirrubina. A grande recomendação aos
portadores dessa deficiência é a profilaxia, evitando o uso das drogas
citadas e o consumo de fava. A esplenectomia é indicada apenas em
casos especiais.
4.8.2 Deficiência de piruvatoquinase
A piruvatoquinase está envolvida no metabolismo da glicose e
produz ATP por meio do catabolismo do fosfoenolpiruvato em
lactato.
O ATP assegura o funcionamento da bomba de sódio e é importante
para a manutenção dos lipídios da membrana. Além disso, mantém a
atividade da bomba Ca/Mg, evitando a calcificação da membrana
plasmática.
O déficit de ATP leva a alterações na membrana do eritrócito, com
tendência a hiper-hidratação, formação de esferócitos e destruição
da célula (anemia crônica).
Essa deficiência é a segunda causa mais comum de anemia
hemolítica decorrente de deficiências enzimáticas, sendo a herança
autossômica recessiva.
O quadro de hemólise crônica interfere no desenvolvimento da
criança, por isso pode estar indicada a esplenectomia.
4.9 HEMOGLOBINÚRIA PAROXÍSTICA
NOTURNA
A hemoglobinúria paroxística noturna, ou doença de Marchiafava-
Micheli, é uma doença clonal, adquirida e rara do tecido
hematopoético, capaz de afetar todas as suas linhagens. A incidência
exata não é conhecida; afeta todas as faixas etárias, particularmente
adultos jovens, e incide igualmente em ambos os sexos. Caracteriza-
se como doença crônica com significantes morbidade e mortalidade.
No entanto, muitos pacientes têm sobrevida longa (> 10 anos), e
alguns casos podem entrar em remissão espontânea. Raros casos (1 a
2%) evoluem para mielodisplasia ou leucemia aguda, ou, ainda, para
aplasia de medula.
É resultado da mutação somática do gene PIG-A localizado no
cromossomo X de uma célula-tronco pluripotencial. O produto do
gene PIG-A é essencial à biossíntese de glicosilfosfatidilinositol
(GPI), um fosfolípide necessário para que determinadas proteínas
(mais de 25) possam ser fixadas à membrana celular externa.
A trombose venosa e/ou arterial, outra característica da doença,
acontece por ativação plaquetária, junto à ativação do complemento
e à formação de trombos espontaneamente. Em 30 a 40%, esses
eventos são a principal causa de óbito. O evento mais descrito é a
síndrome de Budd-Chiari (trombose das supra-hepáticas).
Os sintomas são os relacionados às citopenias: fadiga pela anemia,
quadros infecciosos pela leucopenia e sangramento (raro) pela
plaquetopenia; urina escura pela manhã (hemoglobinúria) e após
estresse (infecção, cirurgia, exercícios vigorosos); icterícia pela
hemólise; esplenomegalia leve; deficiência de ferro pela perda na
urina; e os relacionados à trombose. Deve-se pensar em
hemoglobinúria paroxística noturna quando houver citopenias
associadas à anemia hemolítica e a eventos trombóticos.
Figura 4.17 - Ativação do complemento e hemólise na hemoglobinúria paroxística noturna

São situações que devem despertar suspeita de hemoglobinúria


paroxística noturna: citopenias associado a fenômenos trombóticos;
neutropenia ou plaquetopenia associadas à hemólise; hipoplasia de
medula óssea associada à hemólise; hemólise adquirida sem
esplenomegalia; hemólise adquirida com teste de Coombs negativo;
trombose hepática ou mesentérica; dor abdominal recorrente
associada às citopenias; acidente vascular cerebral ou qualquer
episódio trombótico sem risco conhecido.
Os principais testes diagnósticos são:
1. Testes indiretos da sensibilidade das células à lise pelo
complemento: testes de Ham (lise em meio ácido) e de sacarose (teste
de ativação do complemento em meio de baixa força iônica); pouco
utilizados na prática, por sua baixa sensibilidade;
2. Citometria de fluxo: deficiência de GPI detectada por redução na
expressão dos antígenos CD55 e CD59 em eritrócitos e granulócitos,
sendo o método diagnóstico padrão para essa patologia;
3. Biologia molecular: estudo do gene PIG-A.
O tratamento consiste na suplementação de ácido fólico e de ferro,
quando comprovada a associação à carência de ferro pela perda
urinária crônica, além de suporte transfusional nas crises
hemolíticas. Acreditava-se que alguns casos seriam beneficiados
pelo corticoide em baixas doses, androgênios ou imunossupressores,
porém todos já se comprovaram ineficazes. Atualmente, o anticorpo
monoclonal anti-C5 inibe a ativação final do complemento
(eculizumabe), droga utilizada com ótimos resultados na diminuição
da necessidade transfusional e de eventos trombóticos, apesar do
custo ainda bastante elevado, sendo o único medicamento eficaz, até
o momento, para essa patologia. Em casos de citopenias graves e
persistentes, sem resposta à terapêutica, deve-se considerar o
transplante alogênico de células-tronco hematopoéticas, apesar dos
resultados de moderado sucesso.
4.10 ANEMIA HEMOLÍTICA AUTOIMUNE
A membrana eritrocitária, além da bicamada lipídica e das proteínas
de membrana, possui várias estruturas antigênicas, que identificam
os grupos sanguíneos (detectados mais de 300 antígenos).
A anemia hemolítica autoimune é uma
patologia bem caracterizada, cujo diagnóstico
se baseia na demonstração da existência de
hemólise, conduzindo a grau variável de
anemia.

Anticorpos IgG, IgM, IgA e ativação do sistema complemento contra


os antígenos eritrocitários são responsáveis por essa destruição. As
anemias hemolíticas autoimunes (AHAIs) podem classificar-se em 2
grandes grupos:
1. De acordo com a temperatura na qual a reação antígeno-anticorpo
será máxima:
a) Anticorpos quentes: geralmente IgG, que reage à temperatura
corpórea de 37 °C; representa 70 a 80% de todos os casos de
AHAI;
b) Anticorpos frios: geralmente IgM, que reage a temperaturas
inferiores a 37 °C (doença das hemaglutininas frias); constituem
20 a 30% dos casos.
2. De acordo com o local da hemólise:
a) Extravascular: IgG aderida ao eritrócito rapidamente
reconhecida pelos receptores Fc dos macrófagos teciduais e
eliminada pelo baço e/ou pelo fígado;
b) Intravascular: IgM que rapidamente ativa a via clássica do
complemento, produzindo hemólise intravascular.

As AHAIs por anticorpos quentes podem estar associadas a doenças


linfoproliferativas, colagenoses (como o lúpus eritematoso
sistêmico, a artrite reumatoide e outras), infecções virais (vírus
Epstein-Barr, HIV) e tumores sólidos. As AHAIs por anticorpos frios
podem ser secundárias a infecções (como Mycoplasma sp.,
mononucleose) e linfoproliferações. Dessa forma, diante de um
quadro de AHAI, sempre se deve investigar um fator causal, e, em
algumas situações, a AHAI pode preceder a doença à qual está
relacionada, que deverá ser tratada para o controle adequado do
paciente. Quando não se encontra nenhuma causa, trata-se de AHAI
idiopática.
Inúmeras drogas podem provocar a formação de anticorpos
dirigidos contra antígenos eritrocitários e, consequentemente,
causar AHAI – as principais classes de medicamentos são
cefalosporinas, penicilinas e derivados, AINHs e quinidina.
A patogênese da AHAI tem diversos mecanismos:
1. Adsorção da droga: a droga (exemplo: penicilina), que funciona
como hapteno, liga-se fortemente às proteínas da membrana
eritrocitária, resultando na síntese de anticorpos dirigidos contra a
droga ligada às hemácias;
2. Adsorção de imunocomplexos: os anticorpos reagem com a droga
(quinidina, fenacetina, cefalosporinas de terceira geração) para formar
imunocomplexos que são adsorvidos por receptores específicos das
hemácias e podem ativar o sistema do complemento e desencadear
hemólise intravascular;
3. Indução de autoimunidade: drogas (alfametildopa, procainamida)
alteram antígenos da superfície eritrocitária, induzindo à formação de
autoanticorpos, que, inclusive, apresentam reação cruzada com
antígenos não alterados, em geral relacionados ao grupo sanguíneo
Rh.

Quando a droga é a responsável pela hemólise, na maioria das vezes,


a sua suspensão é suficiente para assegurar a resolução do quadro.
Quando o anticorpo tem atividade sobre outras glicoproteínas ou
antígenos eritrocitários, o processo é autolimitado e requer cerca de
2 a 12 semanas para a resolução completa do quadro hemolítico após
a suspensão da droga. Alguns pacientes permanecem com teste de
Coombs direto positivo durante alguns dias após a interrupção do
medicamento. Têm sido relatados casos de AHAI, geralmente
quadros graves, secundários ao uso de drogas que interferem no
sistema imunológico, como fludarabina, pentostatina, tacrolimo e
alfainterferona.
A hemoglobinúria paroxística ao frio, por sua vez, é rara,
compreendendo um autoanticorpo IgG que reage ao frio (4 °C) e ao
calor (37 °C) – anticorpo de Donath-Landsteiner. Após a exposição
ao frio, constatam-se hemoglobinúria, febre, dor lombar e sintomas
de anemia.
4.10.1 Diagnóstico
Caracteristicamente, encontra-se anemia de instalação rápida, que
geralmente pode colocar a vida em risco, por sua severidade. Há
queixas de astenia e dispneia intensas, muitas vezes podendo haver
insuficiência cardíaca e quadros de hipofluxo cerebral grave.
Icterícia e esplenomegalia ocorrem frequentemente, e, caso o
indivíduo apresente uma patologia de base, os sinais e sintomas
desta podem ser confundidos com os da AHAI. Nos casos da doença
das hemaglutininas frias, o paciente pode apresentar sintomas
relacionados à aglutinação das hemácias na exposição a ambientes
frios: acrocianose (coloração azulada da pele nas extremidades –
dedos, orelhas e nariz – que desaparece após aquecimento).
Os pacientes chegam a níveis de Hb de 3 ou 4 g/dL, com
reticulocitose intensa e esferócitos no sangue periférico, aumento de
DHL e de bilirrubina indireta e diminuição da haptoglobina. Se o
estresse sobre a medula óssea for muito intenso, poderão aparecer
eritroblastos na circulação periférica.
Nos casos de hemólise intravascular, ocorre hemoglobinúria,
podendo evoluir com insuficiência renal, pelo depósito de Hb livre.
Cerca de 10% apresentam trombocitopenia imune associada
(síndrome de Evans).
Utiliza-se o teste de antiglobulina direto (denominado antigamente
Coombs direto) para detectar a presença de anticorpos ou
complemento aderidos aos antígenos eritrocitários, porém pode
estar negativo em aproximadamente 5% dos casos.
O teste de Coombs indireto (Pesquisa de Anticorpos Irregulares –
PAI) detecta a presença de autoanticorpos livres no plasma. Quando
a titulação de autoanticorpos é elevada ou a afinidade destes com os
eritrócitos é intensa, pode haver positividade inespecífica nas PAIs
pré-transfusionais, e as provas cruzadas podem ser positivas a todas
as unidades de hemácias testadas, sendo requeridas “manobras”
imuno-hematológicas para identificar as bolsas compatíveis em
caso de necessidade transfusional.
4.10.2 Tratamento
Como tratamento, sugere-se a suplementação com ácido fólico e o
início do uso de prednisona 1 mg/kg/d, que pode ser dividida em 2
tomadas para minimizar a intolerância. Se não houver resposta, ou
em casos de anemia severa, pode-se fazer pulso com
metilprednisolona intravenosa, imunoglobulina intravenosa ou
imunossupressão com ciclofosfamida. A esplenectomia fica
reservada aos casos mais graves, em que não há resposta clínica às
drogas, ou aos de corticodependência ou recidivas frequentes. Em
alguns casos refratários, pode-se lançar mão do anticorpo
monoclonal anti-CD20 (rituximabe), pois, inibindo os linfócitos B, a
síntese de anticorpo também é inibida.
Nos casos de AHAI por anticorpo frio, como o mecanismo de
hemólise se dá por meio da ativação do complemento, o corticoide
apresenta benefício limitado, visto que atua modulando a fagocitose;
a esplenectomia não está indicada, pois a destruição eritrocitária
ocorre em pequena porcentagem no baço. Pode-se, ainda, proceder à
plasmaférese (procedimento em que há a troca de plasma rico em
anticorpos do paciente por plasma normal proveniente de estoques
de banco de sangue), porém o tratamento recomendado nessa
patologia é o uso de alquilante (clorambucila, ciclofosfamida) ou o
rituximabe.
A transfusão de concentrados de hemácias deve ser feita apenas nos
casos com risco de vida, e serão usadas unidades que apresentem o
fenótipo eritrocitário mais compatível com o do receptor, pois as
provas cruzadas podem tornar-se invalidadas pela presença dos
autoanticorpos.
4.11 ANEMIA HEMOLÍTICA
MICROANGIOPÁTICA
A anemia hemolítica microangiopática, ou hemólise por
fragmentação, ocorre por lesão mecânica da membrana eritrocitária
durante a circulação, levando à hemólise intravascular e ao
aparecimento de esquizócitos, que são os achados característicos
dessa síndrome no esfregaço de sangue periférico.
Quando as hemácias atravessam um vaso onde houve lesão
endotelial com deposição local de fibrina e agregação plaquetária no
local, sofrem lesões de membrana (cisalhamento). Essa
fragmentação acontece em diversas patologias, como na púrpura
trombocitopênica trombótica, na síndrome hemolítico-urêmica, na
coagulação intravascular disseminada – essas 3 entidades serão
mais bem estudadas no capítulo de hemostasia e trombose –, na
eclâmpsia, na hipertensão maligna e nas crises de esclerodermia.
Além das patologias descritas, o estresse de cisalhamento induzido
por próteses valvares, próteses vasculares, aparelhos de circulação
extracorpórea e shunts portossistêmicos pode ocasionar anemia
microangiopática, em razão do turbilhonamento não fisiológico.
A chamada hemólise do corredor ocorre em atletas de alta
performance (como fundistas, maratonistas, jogadores de basquete
ou praticantes de judô), em que o impacto dos pés contra o chão
provoca hemólise mecânica, muitas vezes com hemoglobinúria
macroscópica.
4.11.1 Púrpura trombocitopênica trombótica
A Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT) é uma
microangiopatia trombótica disseminada, caracterizada pela oclusão
difusa da microcirculação por microtrombos plaquetários. Estes
causam anemia hemolítica microangiopática com formação de
esquizócitos. Pode resultar em isquemia do sistema nervoso central
e insuficiência renal aguda, com grande probabilidade de
mortalidade, se não tratada rápida e adequadamente.
O principal mecanismo é a deficiência ou a inibição (congênita ou
adquirida) da metaloproteinase ADAMTS13 (A Disintegrin And
Metalloproteinase with ThromboSpondin III motifs), responsável
fisiologicamente pela degradação dos polímeros de alto peso do FvW
(Fator de von Willebrand – forma inicial hiperfuncionante e maior)
em polímeros de baixo peso (forma final e normofuncionante). A
presença de anticorpos IgG antimetaloproteinase parece ser um
fenômeno habitualmente associado às formas adquiridas de PTT,
permanecendo, no entanto, pouco claros os mecanismos que levam
esses anticorpos inibitórios a reconhecerem o complexo enzimático,
bem como a razão pela qual são produzidos. Por outro lado, as
formas congênitas de deficiência da enzima parecem estar
relacionadas a mutações no gene da ADAMTS13, situado no braço
longo do cro9q34.
A disfunção endotelial é o elemento desencadeante da
microangiopatia, em que haverá a adesão plaquetária persistente
pela presença constante dos multímeros de alto peso do FvW (já que
não há ADAMTS13), originando direta e indiretamente a trombose
microvascular e promovendo a formação de um trombo
primariamente plaquetário na microcirculação (microangiopatia
trombótica disseminada). As hemácias, ao tentarem vencer o trombo
plaquetário, chocam-se, o que resulta em hemólise (anemia
hemolítica microangiopática) e formação dos esquizócitos.
Uma lista crescente de agentes etiológicos tem sido descrita, com
especial destaque para as toxinas bacterianas, vírus e fármacos,
como alguns antiagregantes plaquetários – ticlopidina e clopidogrel.
Todavia, somente em 15% dos casos se detecta um fator causal.
Figura 4.18 - Fisiopatologia da púrpura trombocitopênica trombótica

Legenda: (A) normal; (B) púrpura trombocitopênica trombótica.


Fonte: adaptado de ADAMTS-13 in the Diagnosis and Management of Thrombotic
Microangiopathies, 2014.

Figura 4.19 - Formação de trombos plaquetários na púrpura trombocitopênica trombótica

Legenda: (A) no cérebro; (B) no rim.

Essa síndrome predomina na idade adulta, com pico de incidência na


terceira década de vida e com uma razão sexo feminino:masculino de
3:2. Os dados sobre a incidência são escassos, mas parecem indicar
aumento progressivo, com valores estimados de 3,7
casos/1.000.000/ano.
4.11.1.1 Como investigar

Avaliação clínica (com alta suspeita de síndrome de microangiopatia


trombótica) em pacientes com evidência de microangiopatia
trombótica – trombocitopenia e anemia hemolítica
microangiopática – com hemólise não imune (teste direto de
Coombs negativo, reticulocitose, esquizócitos no esfregaço
periférico, desidrogenase lática – DHL – elevada, haptoglobina não
detectável, aumento de bilirrubina indireta) e painel de coagulação
normal (TP, TTPa, fibrinogênio, D-dímero).
O aumento da DHL é intenso e característico, indicando hemólise e
lesão pela isquemia tecidual, e o acompanhamento dos níveis séricos
de DHL é útil na avaliação da resposta ao tratamento.
4.11.1.2 Quadro clínico

O quadro clínico assenta-se, sobretudo, na pêntade composta por


trombocitopenia, anemia hemolítica microangiopática (sinais de
hemólise e esquizócitos), febre, disfunções neurológica e renal.
Apesar da utilidade diagnóstica, a pêntade está presente em apenas
25% dos pacientes; febre, púrpura e sinais neurológicos flutuantes
são encontrados em cerca de 90%.
Em 40% dos casos, é identificado quadro semelhante à síndrome
gripal, que antecede imediatamente o aparecimento do quadro
clínico típico de PTT. A púrpura é o sinal clínico inicial em 90% dos
pacientes, sendo a trombocitopenia comumente inferior a 20.000
plaquetas/µL, em razão do consumo na formação dos trombos
plaquetários. A anemia é de grau moderado a grave. A febre está
sempre presente em algum momento da evolução da doença. A
disfunção neurológica está presente inicialmente em 60% dos
pacientes, ascendendo a 90% em qualquer momento da
enfermidade. Nos sinais neurológicos, tipicamente transitórios e
flutuantes, predominam síndromes confusionais, alterações do
campo visual, parestesias e paresias, afasia, disartria, síncope,
vertigens, ataxia, paralisias centrais, convulsões e alterações do
estado de consciência. Podem ainda ser observados distúrbios na
condução miocárdica, associados ou não à insuficiência cardíaca,
bem como infiltrados intersticiais pulmonares. Anticorpos
antinucleares (ANAs) são identificados em até 20% dos pacientes.
Geralmente, a insuficiência renal aguda não decorre da necrose
cortical, podendo cursar com hematúria e proteinúria; acomete 40%
dos pacientes, mas, com frequência, é ligeira e transitória, e
raramente torna-se crônica (ao contrário do que acontece na SHU –
Síndrome Hemolítico-Urêmica).
Figura 4.20 - Esquizócitos
Fonte: adaptado de Paulo Henrique Orlandi Mourão, 2009.

O diagnóstico da PTT é clínico. Como visto, nem sempre se


encontram os 5 principais sintomas; assim, em qualquer
plaquetopenia associada à presença de esquizócitos em sangue
periférico, o diagnóstico de PTT deve ser lembrado, em especial se
associado ao achado de anemia microangiopática e DHL alta.
Infelizmente, não há nenhum teste que confirme o diagnóstico. A
dosagem da metaloprotease ADAMTS13 é de difícil realização, e
ainda não há a padronização dos seus resultados, não tendo utilidade
no diagnóstico da doença, talvez apenas no prognóstico (quanto
mais severa a deficiência, pior a sobrevida, mais lenta é a
recuperação das plaquetas e maior o risco de recidiva).
4.11.1.3 Tratamento

Antes do desenvolvimento de um tratamento eficaz, o desfecho era


fulminante. Atualmente, a mortalidade é inferior a 10% em caso de
tratamento adequado.
Recomenda-se início imediato de plasmaférese,
mesmo diante da suspeita diagnóstica, pois o
retardo do tratamento pode comprometer
consideravelmente o prognóstico.

O objetivo é a retirada dos anticorpos anti-ADAMTS13 (quando


presentes) e dos multímeros de alto peso, por meio da troca de
grandes volumes de plasma (cerca de 40 a 60 mL/kg ou uma volemia
plasmática em cada sessão), com reposição de plasma fresco
congelado normal, que contém a proteinase. A presença de
depressão grave do estado de consciência não é contraindicação para
plasmaférese, visto que, com tratamento eficaz, verifica-se a
reversão completa do quadro neurológico.
É possível que os sintomas neurológicos amenizem já nas primeiras
horas e que o número de plaquetas e os níveis de Hb comecem a
elevar-se em 3 a 5 dias (porém, a normalização só é observada após
semanas).
A plasmaférese deve ser mantida até a resolução do quadro
neurológico, a normalização da contagem plaquetária e a
estabilização da DHL, por pelo menos 3 dias. Cerca de 90% dos
pacientes respondem ao tratamento nas primeiras 3 a 4 semanas.
Recomenda-se o uso de prednisona, 1 mg/kg, associado à
plasmaférese, na tentativa de inibir a formação de mais anticorpos.
Há controvérsia sobre o início imediato do corticoide ou se deve ser
utilizado apenas em caso de resposta inicial ruim.
O antiagregante plaquetário compreende tratamento adjunto que
deve ser utilizado quando a contagem plaquetária ultrapassar
50.000/mm3.
A transfusão plaquetária pode piorar os quadros neurológico e renal,
portanto é reservada apenas a casos de sangramento que coloquem o
paciente em risco de vida.
Em indivíduos refratários, opta-se por aumentar a troca plasmática,
realizando 2 procedimentos por dia, com o uso de plasma isento de
crioprecipitado (menos multímeros de alto peso), e aumentar a
imunossupressão com vincristina, rituximabe, ciclosporina ou
azatioprina. A esplenectomia foi considerada tratamento de primeira
linha para PTT antes do uso das aféreses, não sendo mais indicada.
4.11.1.4 Diagnóstico diferencial

Fazem parte todas as causas de microangiopatia, ou seja, anemia


secundária à hemólise por trauma mecânico microvascular,
portanto, com presença de esquizócitos no sangue periférico e
plaquetopenia de consumo: SHU, síndrome HELLP, vasculites e
coagulação intravascular disseminada (CIVD).
4.11.1.5 Síndrome hemolítico-urêmica

A SHU também é uma forma de microangiopatia trombótica


disseminada com anemia hemolítica microangiopática; logo,
clinicamente se apresenta com sintomas e achados laboratoriais
similares à PTT. Entretanto, a diferenciação entre essas 2 entidades é
de extrema importância para o tratamento de cada uma.
A SHU afeta principalmente crianças (95% dos casos),
independentemente do sexo, mas é ocasional em adultos. Existe a
formação de microtrombos na circulação, que atingem
principalmente os rins, podendo causar insuficiência renal
oligoanúrica. A SHU típica é associada à febre, à disenteria e à
infecção pela Escherichia coli produtora de verotoxina (VTEC) ou
toxina de Shiga (STEC). O subtipo O157:H7 está presente em,
aproximadamente, 80% dos casos, mas a SHU pode ser causada
ainda por outros sorotipos de E. coli produtores de toxina ou por
Shigella dysenteriae tipo I. Cerca de 15% dos pacientes que cursam
com diarreia pela E. coli VTEC evoluem para SHU.
O mecanismo fisiopatogênico exato dessa entidade mantém-se
desconhecido, mas provavelmente se correlaciona com lesão renal
vascular provocada pela toxina.
Os demais tipos de SHU não são associados a VTEC e podem
correlacionar-se com uso de medicamentos, em especial
ciclosporina, quinidina, quimioterápicos, ticlopidina e interferona.
A maioria dos casos apresenta-se com plaquetopenia, porém em
níveis não tão baixos como na PTT. Sintomas neurológicos são bem
menos comuns e menos severos: convulsões, coma e acidente
vascular cerebral ocorrem somente em 10% dos casos. Em
compensação, os microtrombos na microcirculação renal são bem
mais comuns, evoluindo com insuficiência renal.
O objetivo do tratamento inicial é manter a perfusão renal com
fluidos intravenosos, ao mesmo tempo em que se evita a congestão
pelo excesso de líquidos. Aproximadamente 50 a 60% dos pacientes
com insuficiência renal evoluem para insuficiência renal oligúrica,
necessitando de hemodiálise. Entretanto, 90% das crianças
sobrevivem com tratamento de suporte clínico. Não há benefício
adicional pela infusão de plasma e/ou plasmaférese, enquanto o uso
de antibioticoterapia específica para os germes envolvidos é
controverso. Infelizmente, em até 1 terço dos pacientes haverá
prejuízo da função renal por anos após o evento inicial da SHU.
#PERGUNTA AÍ
Quais são as indicações para se fazer antibiótico
profilático nos pacientes com anemia falciforme?
Penicilina profilática deve ser prescrita para todos os pacientes com
anemia falciforme até os 5 anos. Após 5 anos, pode-se optar por
parar a profilaxia ou seguir com ela, dado que a disfunção esplênica
faz parte do curso da doença. Alérgicos a penicilina devem fazer uso
da eritromicina.
Quadro 4.7 - Comparação entre púrpura trombocitopênica trombótica e síndrome
hemolítico-urêmica

Quadro 4.8 - Diferenças entre púrpura trombocitopênica trombótica e síndrome hemolítico-


urêmica
4.12 ANEMIA HEMOLÍTICA ALCOÓLICA
A síndrome de Zieve, também conhecida como anemia hemolítica
alcoólica, consiste em um distúrbio metabólico agudo, resultante da
ingestão abusiva de bebidas alcoólicas. Clinicamente, esse
transtorno caracteriza-se por anemia hemolítica,
hiperlipoproteinemia, icterícia e dor abdominal.
O diagnóstico pode ser feito por meio de exames de sangue e de
imagem, como ultrassonografia abdominal, sendo confirmado por
meio de biópsia hepática.
O tratamento consiste na suspensão do consumo de bebidas
alcoólicas.
Quais são as principais
causas de anemias
hiperproliferativas?
As anemias hemolíticas são de causa intrínseca, as mais
comuns as talassemias e a anemia falciforme, ou
extrínseca, principalmente púrpura trombocitopênica
trombótica e síndrome hemolítico-urêmica.
Quais as características
clínicas que sugerem o
diagnóstico de
hemocromatose?

5.1 INTRODUÇÃO
O conteúdo de ferro corpóreo é resultado do constante equilíbrio
entre a absorção pela dieta e as perdas pelo suor, da descamação da
pele e mucosas, além de sangramentos, como a menstruação. O
principal estoque de ferro no corpo é feito pela hemoglobina. As
mulheres com hemocromatose (HH) costumam apresentar sintomas
mais tardiamente, em razão da menstruação, gravidez e
amamentação.
5.2 FISIOPATOLOGIA
A maioria dos pacientes apresenta a mutação do gene HFE (C282Y e
H63D), porém outras mutações gênicas, como da hepcidina (HAMP),
hemojuvelina (HJV) e ferroportina, podem causar a doença.
Na HH há excesso de absorção intestinal do
ferro, que, em longo prazo, provoca lesões em
diversos órgãos, como fígado, coração e
pâncreas.

5.3 APRESENTAÇÃO CLÍNICA


A doença acomete 2 a 3 vezes mais homens do que mulheres e,
inicialmente, apresenta sintomas inespecíficos. Após anos de
acúmulo de ferro nos tecidos, acarreta diversos sinais e sintomas,
relacionados a seguir:
1. Anormalidades da função hepática: o fígado é o principal órgão
envolvido (75% dos casos). O depósito progressivo de ferro está
associado a hepatomegalia, alteração de enzimas hepáticas
(aumento de TGO e TGP) e fibrose, podendo culminar em cirrose
hepática. Todos os pacientes com HH e cirrose devem realizar
endoscopia digestiva alta para avaliar a presença de varizes
esofágicas e o risco de hemorragia.
O carcinoma hepatocelular é uma das complicações mais temidas,
responsável por aproximadamente 45% das mortes. O paciente deve
ser aconselhado a interromper o uso de álcool por causa do aumento
do risco de hepatopatia;
2. Fraqueza e letargia: muito comum, ocorre em 75% dos casos;
3. Pigmentação da pele: difusa, mas pode ser maior na face, no
pescoço e nas faces extensoras dos antebraços;
4. Diabetes mellitus: ocorre em 50% dos pacientes, e é causado pelo
acúmulo de ferro no pâncreas. O tratamento com flebotomia
normalmente não reverte a doença, mas pode haver diminuição nas
doses de insulina;
5. Artropatia: as articulações das mãos (segundo e terceiro
metacarpos) são as primeiras acometidas. Posteriormente, ocorre
lesão dos punhos, quadris, tornozelos e joelhos, podendo evoluir
para artropatia destrutiva. Os sintomas não costumam responder à
terapia de remoção do ferro;
6. Outras alterações endocrinológicas:
a) Hipogonadismo: endocrinopatia mais comum na HH, causando
diminuição da libido, impotência sexual em homens e amenorreia;
b) Hipotireoidismo: causado pelo depósito de ferro na tireoide;
c) Hipopituitarismo: raro.

7. Acometimento cardíaco: a HH pode culminar em miocardiopatia


dilatada (sintomas clássicos de insuficiência cardíaca), além de
poder lesar o sistema de condução e causar arritmias cardíacas,
como flutter e fibrilação atrial, e graus variados de bloqueio
atrioventricular;
8. Infecções: o risco aumentado de infecções bacterianas ocorre em
razão da diminuição na ação de macrófagos e avidez de algumas
bactérias por ferro.
A tríade clássica, composta por cirrose hepática, diabetes mellitus e
pigmentação da pele (“diabético bronzeado”), ocorre apenas em
casos mais avançados.
Existe a forma juvenil da HH, que é mais agressiva, e cursa com
sintomas mais precoces (segunda ou terceira década da vida),
predominantemente endocrinológicos e cardíacos (principal causa
de morte).
Figura 5.1 - Principais sintomas da hemocromatose hereditária
5.4 DIAGNÓSTICO
A associação de hepatomegalia, pigmentação cutânea, diabetes
mellitus, miocardiopatia, artrite e hipogonadismo deve sugerir o
diagnóstico.
Na suspeita de HH, é importante excluir outras
causas de hepatopatia crônica, anemias
hemolíticas crônicas e histórico de múltiplas
hemotransfusões.
Na investigação, o perfil de ferro é o exame inicial, apresentando
geralmente ferro sérico, ferritina e saturação de ferro elevados, com
transferrina normal.
A saturação de ferro > 45% sugere prosseguir investigação, com a
pesquisa de mutações (C282Y e H63D) do gene HFE. Caso negativo,
as outras mutações gênicas (genes HAMP, HJV e ferroportina)
podem ser pesquisadas. A ferritina > 200 ng/mL em mulheres e >
300 ng/mL em homens sugere sobrecarga, e valores acima de 1.000
ng/mL indicam cirrose hepática. Deve-se ter especial cuidado com
falsos positivos, pois a ferritina é um reagente de fase aguda.
No diagnóstico de HH, deve-se ter cuidado com falsos positivos
relacionados à ferritina, pois ela é um reagente de fase aguda. No
passado, a biópsia hepática era utilizada para confirmar o
diagnóstico, porém, com os novos testes genéticos, a ressonância
magnética (quantificação do ferro) e a elastografia hepática
(FibroScan®) têm sido mais utilizadas para determinar a gravidade
do quadro em pacientes com hepatopatias subjacentes.
5.5 TRATAMENTO
A instituição de terapia precoce pode reverter a toxicidade pelo ferro
e restaurar a expectativa de vida.
#IMPORTANTE
A sangria terapêutica é um método efetivo e
seguro para a remoção dos estoques de ferro.
São retirados de 200 a 500 mL de sangue
semanais, até que a saturação de ferro fique <
30% e a ferritina < 50 ng/mL.

A sangria terapêutica é um método efetivo e seguro para a remoção


dos estoques de ferro. O transplante de fígado pode ser realizado
desde que os estoques de ferro estejam corrigidos.
É importante que o paciente seja orientado a interromper a ingestão
de álcool pelo maior risco de cirrose hepática. Alimentos ricos em
ferro e uso de suplementos com ácido ascórbico (vitamina C)
também devem ser evitados.
Com o tratamento precoce e adequado, podem ocorrer regressão da
fibrose hepática, melhora no controle do diabetes mellitus,
diminuição da pigmentação e reversão da insuficiência cardíaca. A
artropatia e o hipogonadismo não costumam responder ao
tratamento.
Quais as características
clínicas que sugerem o
diagnóstico de
hemocromatose?
As principais características clínicas associadas à
hemocromatose são hepatomegalia, pigmentação da pele,
fraqueza, diabetes mellitus e hipogonadismo.
Como diagnosticar as
alterações da coagulação?

6.1 INTRODUÇÃO E FISIOLOGIA DA


COAGULAÇÃO
A hemostasia é o processo resultante do equilíbrio entre proteínas
pró-coagulantes, anticoagulantes e fibrinolíticas, para manter o
sangue fluido e, quando necessário, coibir o sangramento. O
equilíbrio é alcançado pelo bom funcionamento de vasos sanguíneos
(endotélio), plaquetas, proteínas da coagulação, da fibrinólise e dos
anticoagulantes naturais. Muitos fatores, genéticos ou adquiridos,
podem contribuir para romper esse equilíbrio, levando a estados de
hipocoagulabilidade ou hipercoagulabilidade. Didaticamente, a
hemostasia pode ser dividida em 3 etapas (Figura 6.1).
Figura 6.1 - Etapas da hemostasia
Fonte: acervo Medcel.

6.1.1 Hemostasia primária


A hemostasia primária é responsável por estancar o sangramento
por meio da formação do tampão plaquetário.
Após lesão endotelial, ocorrem exposição do colágeno e
vasoconstrição reflexa. Plaquetas circulantes aderem ao colágeno
por meio do fator de von Willebrand, liberado pelo endotélio em
razão do estresse de cisalhamento. Essa adesão ocorre por
intermédio das glicoproteínas Ib (GPIb) e Ia-IIa localizadas,
respectivamente, na superfície das plaquetas e do colágeno. As
plaquetas aderidas ao colágeno são ativadas, liberando secreções dos
conteúdos granulares (adenosina difosfato, prostaglandinas,
tromboxano A2 e serotonina), e sofrem alteração de sua estrutura,
expondo outra glicoproteína de membrana: GPIIb/IIIa. Esta é
responsável pela agregação plaquetária por meio da sua ligação ao
fibrinogênio: agregação plaqueta-plaqueta (Figura 6.2).
As secreções dos grânulos plaquetários são responsáveis por maiores
vasoconstrição, adesão, ativação e agregação plaquetária. Assim,
forma-se o tampão plaquetário, responsável pelo controle do
sangramento em poucos minutos.
Por fim, o tampão plaquetário tem atividade pró-coagulante, por
meio da exposição de fosfolípides pró-coagulantes e complexos
enzimáticos na superfície da plaqueta, o que resulta na inter-relação
entre ativação plaquetária e ativação da cascata da coagulação.
As principais doenças relacionadas com distúrbios da hemostasia
primária são relacionadas com o aumento da fragilidade da parede
vascular (púrpura trombótica e púrpura de Henoch-Schönlein),
alterações na forma e na quantidade das plaquetas (púrpura
trombocitopênica imunológica), além de alterações quantitativas e
qualitativas do fator de von Willebrand, que levam à doença de
mesmo nome.
Figura 6.2 - Hemostasia primária
6.1.2 Hemostasia secundária
Hemostasia secundária é o nome dado às reações da cascata da
coagulação, que consistem na ativação sequencial de uma série de
pró-enzimas ou precursores proteicos inativos em enzimas ativas,
resultando na formação de fibras de fibrina que fortalecem o tampão
plaquetário.
A hemostasia secundária é capaz de evitar o ressangramento por
meio da formação de uma rede adesiva de fibrina que consolida o
tampão plaquetário (a partir daí, chamado de coágulo).
No caso das alterações da hemostasia secundária, temos, como
principais problemas, a hemofilia por deficiências do fator VIII ou
IX, a coagulação intravascular disseminada e a deficiência de
vitamina K comum nos usuários de cumarínicos.
Todos os fatores de coagulação são produzidos pelo fígado, com
exceção do fator VIII e do fator de von Willebrand, que são
secretados pelo endotélio.
Essa cascata da coagulação é dividida didaticamente em 2 vias
principais: a via intrínseca, desencadeada por fatores de contato, de
carga negativa, presentes no intravascular, e a via extrínseca,
desencadeada pelo Fator Tecidual (FT), que confluem para uma via
comum.
A cascata da coagulação é dividida em 2 vias principais: a via
intrínseca, desencadeada por fatores de contato, de carga negativa, e
a via extrínseca, desencadeada pelo fator tecidual, que confluem
para uma via comum.
Na via extrínseca, o fator VII circulante liga-se ao FT
(tromboplastina) exposto pelo endotélio lesado e, juntos, ativam o
fator X (via comum).
Na via intrínseca, o fator XII, na presença de Cininogênio de Alto
Peso Molecular (CAPM) e pré-calicreína (PK), é ativado por fatores
de contato (substâncias de carga negativa, como toxinas
bacterianas). O XIIa ativa o fator XI, que atuará na ativação do fator
IX. O fator IXa, na presença do VIIIa, ativa o fator X.
Após a geração de fator Xa por ambas as vias, o fator Xa se associa ao
fator Va e ativa a protrombina (fator II) em trombina (fator IIa),
sendo esta a responsável pela transformação do fibrinogênio em
fibrina. O fator XIII é fundamental para a estabilização do coágulo de
fibrina.
Cálcio e fosfolípides são cofatores importantes para a cascata da
coagulação.
Os fatores de coagulação dependentes de vitamina K são: II, VII, IX,
X, proteínas C e S.
Figura 6.3 - Cascata da coagulação sanguínea
Nota: as pró-enzimas estão mostradas nos retângulos brancos, e os fatores ativados, nos
retângulos vermelhos; os fatores anticoagulantes (TFPI – inibidor do fator tissular –,
proteína C ativada e antitrombina) e a plasmina estão mostrados nos retângulos de cantos
arredondados.
Fonte: elaborado pelos autores.

Tal maneira clássica de apresentar a cascata da coagulação é


importante para o raciocínio na interpretação dos exames
laboratoriais, mas não é o que acontece no organismo.
Fisiologicamente, sabe-se que o FT exposto após a lesão endotelial é
o evento primário da cascata da coagulação, pois o complexo FT-
VIIa ativa os fatores X e IX, gerando pequena quantidade de
trombina. Sabe-se também que os fatores da antiga via intrínseca
(como XI, IX, VIII) funcionam como amplificadores do processo
dessa geração de trombina, peça-chave na formação do coágulo de
fibrina. Tal amplificação ocorre na membrana das plaquetas ativadas
(aquelas ativadas no processo da hemostasia primária), utilizadas
como fonte de fosfolípides, importante para a localização do coágulo
apenas no tecido lesado.
Três importantes substâncias agem como moduladoras da cascata da
coagulação: antitrombina (AT), o inibidor da via do Fator Tecidual
(FT) e a proteína C ativada/proteína S.
A AT, produzida no fígado e, possivelmente, nas células endoteliais,
é um dos mais potentes inibidores da cascata da coagulação. Exerce
seu papel como anticoagulante pela inibição da trombina, dos
fatores XIIa, XIa, IXa, Xa e da calicreína.
O inibidor da via do FT bloqueia a ação do complexo VIIa-FT ao
ligar-se com o fator Xa, diminuindo a geração de trombina em sua
fase mais inicial. A principal fonte do inibidor da via do FT são as
células endoteliais.
A trombina gerada pela cascata da coagulação liga-se à
trombomodulina, presente no endotélio sem lesão. O complexo
trombomodulina-trombina ativa a proteína C circulante (PCa), e
esta, a proteína S (PSa). Tanto a PCa quanto a PSa exercem seus
papéis como anticoagulantes ao inativarem os fatores Va e VIIIa,
bloqueando a geração de mais trombina. Além dessa ação
anticoagulante, a proteína C ativada é capaz de bloquear a ação do
PAI-1 (inibidor do ativador do plasminogênio-1) e do TAFI (inibidor
da fibrinólise ativado pela trombina), diminuindo o efeito supressivo
desses compostos sobre a fibrinólise. Portanto, a proteína C ativada
apresenta papel pró-fibrinolítico e, por fim, também é capaz de
reduzir a resposta inflamatória por vários mecanismos.
Figura 6.4 - Modulação da cascata da coagulação
Fonte: elaborado pelos autores.

Além desses mecanismos, o tromboxano, a prostaciclina e o óxido


nítrico modulam a reatividade da parede vascular e das plaquetas,
contribuindo para o controle da cascata da coagulação e para a
fluidez do sangue.
6.1.3 Fibrinólise
Além dos fatores de coagulação e de anticoagulação, o organismo
conta também com um sistema fibrinolítico. O plasminogênio é uma
proteína inativada circulante no plasma que se liga à fibrina à
medida que o coágulo se forma. Ao se ligar à fibrina, converte-se em
plasmina, a qual dissolve o coágulo e inicia a fibrinólise. Essa
conversão ocorre pela ação do ativador tecidual do plasminogênio
(tPA – tissue Plasminogen Activator), sintetizado pelo endotélio, e
do ativador do plasminogênio tipo uroquinase (uPA – urokinase-
type Plasminogen Activator), secretado por diversos tecidos. A
liberação endotelial do tPA é estimulada pela presença de trombina,
serotonina, bradicinina, adrenalina e citocinas.
Os compostos que controlam a fibrinólise são PAI, especialmente o
PAI-1, TAFI e alfa-2-antiplasmina. O TAFI é ativado pelo complexo
trombina-trombomodulina e liga-se à fibrina já parcialmente
lisada, impedindo a ligação do plasminogênio e a formação de mais
plasmina.
Os distúrbios da hemostasia terciária são causados principalmente
pelas alterações adquiridas da fibrinólise que ocorrem também na
coagulação intravascular disseminada, em hepatopatias crônicas,
em neoplasias de próstata e em cirurgias cardíacas. Essas doenças
são abordadas no capítulo distúrbios da hemostasia secundária e
terciária.
Figura 6.5 - Fibrinólise
Fonte: elaborado pelos autores.

6.1.4 Avaliação laboratorial da hemostasia


Na avaliação da hemostasia, deve ser realizada avaliação laboratorial
a depender do tipo de distúrbio de hemostasia a ser suspeitado
(primário ou secundário).
Nos distúrbios da hemostasia primária, devem ser solicitados:
a) Contagem de plaquetas;
b) Tempo de sangramento;
c) Curva de agregação plaquetária;
d) Fator de von Willebrand e fator VIII (investigação de doença de von
Willebrand).

Nos distúrbios da hemostasia secundária, devem ser solicitados:


a) Tempo de Protrombina (TP);
b) Tempo de Tromboplastina Parcial Ativada (TTPA);
c) Tempo de trombina;
d) Fibrinogênio;
e) D-dímero.

Quadro 6.1 - Diferenças entre hemostasias primária e secundária


Quadro 6.2 - Interpretação laboratorial da hemostasia primária
1 Os valores podem variar de acordo com o laboratório de referência.

Quadro 6.3 - Interpretação laboratorial da hemostasia secundária


1 Os valores podem variar de acordo com o laboratório de referência.

Figura 6.6 - Resultados de agregação plaquetária

6.1.5 A via da coagulação


Para a análise da hemostasia secundária, deve ser lembrada a divisão
didática em via intrínseca/extrínseca, pois assim é possível
desenvolver raciocínio clínico com a história do paciente e os exames
laboratoriais.
#IMPORTANTE
O TP/INR avalia a via extrínseca, o TTPA, a via
intrínseca, e a via comum é avaliada por ambos.

TP alargado corresponde à presença de inibidores ou deficiência de


VII; TTPA alargado, à deficiência ou inibidores de VIII, IX, XI, XII,
cininogênio de alto peso molecular e pré-calicreína; TP e TTPA
(ambos) alargados, à deficiência ou inibidores da via comum – V, X,
II, fibrinogênio.
Figura 6.7 - Cascata da coagulação
Fonte: adaptado de Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise, 2001.

6.1.6 Avaliação de situações especiais


6.1.6.1 Pseudoplaquetopenia

A pseudoplaquetopenia (plaquetopenia espúria) é um diagnóstico


diferencial importante. Corresponde à aglutinação plaquetária in
vitro, interpretada pelos contadores automáticos como
plaquetopenia, geralmente relacionada ao EDTA (anticoagulante do
tubo de coleta – tubo roxo). Para confirmar a pseudoplaquetopenia
causada pelo EDTA, utiliza-se o anticoagulante citrato de sódio
(tubo de tampa azul), que previne a aglutinação das plaquetas. Pela
análise de sangue periférico, pode-se avaliar a morfologia
plaquetária (presença de macroplaquetas, comuns nas púrpuras
trombocitopênicas imunes).
A plaquetopenia dilucional acontece nas transfusões sanguíneas
maciças, em que o aporte transfusional chega ao correspondente a
uma volemia ou próximo disso. Transfusão de 15 unidades de
hemácias em 24 horas resulta na contagem plaquetária entre 47 e
100.000/mm3, e transfusão de 20 unidades pode levar à contagem
entre 25 e 61.000/mm3.
Figura 6.8 - Plaquetas aglutinadas, típicas do uso de anticoagulante EDTA
Fonte: Tleonardi.

6.1.6.2 Razão Normatizada Internacional (RNI)

A fim de padronizar a monitorização dos pacientes que fazem uso de


anticoagulante oral (cumarínicos como a varfarina), o valor do TP
deve ser dado na forma de RNI. A RNI nada mais é do que o TP
corrigido a padrões mundiais.
O uso de anticoagulantes orais é avaliado somente pela RNI.
6.1.6.3 Diferença entre deficiência de fator e presença de inibidor

É feita por meio do teste com o plasma do paciente misturado com


plasma normal, à proporção 1:1. Em caso de deficiência, o
alargamento do tempo em estudo será corrigido completamente,
visto que foi ofertado o fator deficiente. Em caso de presença de
inibidor, após a mistura a 50%, o tempo não corrige ou o faz
parcialmente.
A utilidade dos testes de coagulação é avaliar a deficiência de fator ou
presença de inibidor, detectadas pelo alargamento daqueles. O
encurtamento dos testes é possível em algumas circunstâncias
especiais, sendo as principais erro de coleta e técnica inadequada na
realização dos testes. Afastadas essas causas, os fatores de
coagulação podem estar aumentados em neoplasias malignas,
coagulação intravascular disseminada ou após exercícios, resultando
no encurtamento dos testes.
Finalmente, pode-se solicitar a dosagem dos fatores
individualmente, como no caso da hemofilia A (fator VIII) e
hemofilia B (fator IX).
6.1.6.4 Avaliação de fibrinólise

Além dos anteriores, pode-se utilizar o teste do tempo de lise de


euglobulina, que consiste em separar do plasma do paciente a fração
de euglobulina (proteínas que incluem fibrinogênio, plasminogênio,
plasmina ativa, ativadores e inibidores do plasminogênio –
ativadores da fibrinólise). Essa fração separada é ressuspensa junto à
trombina, e, a partir daí, conta-se o tempo para a formação do
coágulo; tempo encurtado equivale a hiperfibrinólise, e tempo
alargado, a hipofibrinólise.
Como diagnosticar as
alterações da coagulação?
Para avaliar o tipo de distúrbio de hemostasia, é
importante avaliar o coagulograma, fator de von
Willebrand, fibrinogênio e D-dímero.
Quais são as doenças
relacionadas com distúrbios
da hemostasia primária?

7.1 INTRODUÇÃO
Os distúrbios da hemostasia primária são resultantes de 3
mecanismos:
a) Fragilidade da parede vascular;
b) Alterações quantitativas ou qualitativas das plaquetas;
c) Alterações quantitativas ou qualitativas do Fator de von Willebrand
(FvW).

A manifestação clínica dos distúrbios da hemostasia primária mais


comum é o sangramento mucocutâneo (petéquias, gengivorragia,
epistaxe, hematêmese/melena, hematúria, menorragia) espontâneo
e/ou imediatamente após pequenos traumas.
7.2 FRAGILIDADE DA PAREDE
VASCULAR
A maior fragilidade da parede vascular causada por alterações
microvasculares. de causa inflamatória ou não, leva a um distúrbio
da hemostasia primária que pode ocasionar sangramento
mucocutâneo, causando as púrpuras não trombocitopênicas.
Na investigação, é importante determinar se há púrpura palpável
(depósito de fibrina, edema ou infiltração celular), se há sinais
inflamatórios (calor local, dor ou eritema) e se há alteração nos
exames laboratoriais que denotem causa hematológica (contagem e
função plaquetárias, coagulograma).
As púrpuras não trombocitopênicas são um diagnóstico diferencial
muito importante das púrpuras trombocitopênicas, visto que sua
manifestação clínica é semelhante: petéquias, púrpuras,
sangramento mucoso (gengivorragia ou epistaxe), e raramente
apresentam sangramento digestivo ou urinário.
Os principais exemplos de púrpuras não trombocitopênicas são
púrpura trombótica, púrpura de Henoch-Schönlein, pioderma
gangrenoso e eritema multiforme.
A telangiectasia hemorrágica hereditária (doença de Rendu-Osler-
Weber) é um distúrbio autossômico dominante com o aparecimento
de vasos tortuosos, dilatados, com paredes finas, geralmente na
submucosa do tubo digestivo e na mucosa respiratória. Manifesta-se
com epistaxes frequentes e sangramento de mucosa oral e
gastrintestinal, consequentes à malformação vascular. No exame
físico, é característico o encontro de telangiectasias na face, nos
dedos, na língua, nos lábios e no nariz. Parece púrpura, mas não é.
Quadro 7.1 - Etiologias mais frequentes das púrpuras vasculares
Nota: a púrpura de Henoch-Schönlein – principal causa de vasculite na infância, afeta
predominantemente a população pediátrica (3 a 15 anos); 90% dos casos ocorrem em
crianças com idade abaixo de 10 anos; mais comum em meninos (1,8:1). A causa não é
bem esclarecida, mas acredita-se que infecções virais, bacterianas (principalmente por
Streptococcus), medicamentos, alergia alimentar ou picada de insetos possam ser
desencadeadores. Ocorre vasculite leucocitoclástica por depósito de complemento e
imunocomplexo (à custa de IgA e C3). Manifesta-se pela tétrade clínica: púrpura palpável
simétrica, na ausência de plaquetopenia ou alteração da coagulação (principalmente nos
membros inferiores e nádegas); artralgia/artrite; dor abdominal de intensidade variável
(com ou sem sangramento digestivo); nefrite (glomerulonefrite aguda). O diagnóstico é
clínico, e a biópsia do local afetado (pele ou rim) é reservada aos casos de apresentação
clínica incompleta ou atípica. É uma doença autolimitada, que necessita apenas de
tratamento de suporte (ingesta de líquidos, repouso e analgesia). O uso de corticoide é
reservado aos casos complicados com envolvimento renal ou não responsivos aos
sintomáticos. O prognóstico é muito bom: apenas 1/3 dos casos apresenta recidiva nos 4
meses seguintes ao quadro inicial, de forma mais branda e com menor duração. A
complicação com perfuração ou intussuscepção intestinal é rara, e 94% das crianças e
89% dos adultos que apresentam alteração renal evoluem com recuperação completa.

7.3 ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS DAS


PLAQUETAS
A trombocitopenia (também chamada plaquetopenia) é definida
como contagem de plaquetas < 150.000/mm3.
As principais causas são diminuição da produção, aumento da
destruição (imune ou não imune) e sequestro esplênico. A
identificação da etiologia é essencial para a indicação do tipo de
tratamento, já que, em alguns casos (como na púrpura
trombocitopênica imunológica), o uso de concentrados de plaquetas
para transfusão pode piorar o quadro clínico.
A trombocitopenia é causa importante de sangramento de pequenos
vasos. Essas manifestações hemorrágicas estão relacionadas à sua
etiologia e à contagem plaquetária: sangramento clinicamente
significativo em geral não ocorre na presença de contagens
plaquetárias acima de 10.000 a 20.000/mm3, e pacientes com
púrpura trombocitopênica imunológica têm menor tendência a
sangramentos, pois, com a destruição periférica excessiva, há maior
produção medular e consequente liberação de plaquetas mais jovens
circulantes e com maior poder hemostático.
A seguir, são analisadas as formas mais frequentes de
plaquetopenia, suas manifestações clínicas e tratamentos.
7.3.1 Trombocitopenia por diminuição de
produção
Pode ser congênita ou adquirida. A primeira é muito rara,
destacando-se as síndromes de Wiskott-Aldrich, de Bernard-
Soulier, tromboastenia de Glanzmann e May-Hegglin. As causas
mais comuns são:
1. Carências nutricionais de vitamina B12 e ácido fólico: são causas
importantes de plaquetopenia por déficit de produção, geralmente
acompanhada por anemia e/ou leucopenia;
2. Doenças primárias da medula óssea: distúrbio na produção dos
megacariócitos, anemia aplásica, mielodisplasia, infiltrações medulares
por leucemias, tumores e mielofibrose. Destaca-se, ainda, a agressão
medular por quimioterapia ou radioterapia, ou ainda por outros agentes
tóxicos (benzeno e álcool);
3. Megacariopoese ineficaz: ocorre produção medular de
megacariócitos anômalos, com liberação inadequada de plaquetas
para o sangue periférico, como a mielodisplasia;
4. Quadros infecciosos: em especial o HIV, que leva à trombocitopenia
nos primeiros estágios, por reações antígeno-anticorpo e por
supressão megacariocítica direta pelo vírus. A hepatite por vírus C e
Epstein-Barr causam, frequentemente, um quadro semelhante.

Carências nutricionais de vitamina B12 e de


ácido fólico são causas importantes de
plaquetopenia por déficit de produção,
geralmente acompanhada por anemia e/ou
leucopenia.

7.3.2 Trombocitopenia por excesso de destruição


As principais causas são:
1. Púrpura Trombocitopênica Idiopática (PTI): destruição plaquetária
por formação de anticorpos antiplaquetários ou por interação dos
anticorpos com outros elementos, em que a plaqueta atua como
hapteno ou, ainda, por produção ineficaz de plaquetas. Pode estar
associada a outras doenças autoimunes, como Lúpus Eritematoso
Sistêmico (LES), anemias hemolíticas autoimunes, quadros infecciosos
virais e ingestão de drogas, ou pode ser idiopática;
2. Destruição mecânica: como na hemólise por próteses valvares
cardíacas, hemangioma cavernoso, aneurisma de aorta ou
aterosclerose;
3. Consumo: por quadros inflamatórios ou infecciosos, como na
meningococcemia, dengue hemorrágica, mononucleose,
citomegalovirose, HIV e sepse; nas microangiopatias trombóticas, em
que as plaquetas são consumidas em razão da trombose na
microcirculação (Púrpura Trombocitopênica Trombótica – PTT –,
Síndrome Hemolítico-Urêmica – SHU –, síndrome HELLP, coagulação
intravascular disseminada – CIVD). As microangiopatias trombóticas
PTT e SHU também cursam com anemia hemolítica;
4. Medicamentos: uso de heparina, quinidina, ácido valproico, sulfas,
interferona e vacina de catapora;
5. Púrpura aloimune: destruição plaquetária em razão de aloanticorpos
(anticorpo antiplaquetário não presente no indivíduo, adquirido por
transfusão ou transmissão materno-fetal, contra antígeno presente na
superfície de sua plaqueta). Ocorre em indivíduos que recebem muitas
transfusões de plaquetas e na púrpura aloimune neonatal;

Figura 7.1 - Fatores etiológicos da trombocitopenia

Legenda: MO: Médula Óssea; CIVD: coagulação intravascular disseminada; PTT: Púrpura
Trombocitopênica Trombótica; SHU: Síndrome Hemolítico-Urêmica; PPT: Púrpura Pós-
Tranfusional; PTI: Púroura Trombocitopênica Idiopática; LES: Lúpus Eritematoso Sistêmico
Fonte: elaborado pelos autores.

6. Trombocitopenia aloimune neonatal: acontece quando as plaquetas


do feto contêm antígenos herdados do pai, não possuídos pela mãe.
Assim, há desenvolvimento de anticorpos maternos diretamente contra
esses antígenos plaquetários do feto (HPA 1a ou PLA1,
principalmente), semelhante ao que ocorre na doença hemolítica do
recém-nascido.

A mãe passa a produzir anticorpos específicos (IgG), que cruzam a


barreira placentária e destroem as plaquetas em formação. Os
recém-nascidos podem apresentar plaquetopenia leve, moderada ou
severa. Deve-se manter o nível de plaquetas > 30.000 a 50.000, pois
a maior complicação é o sangramento intracraniano, que ocorre em
10 a 20% dos recém-nascidos acometidos, sobretudo nas primeiras
72 a 96 horas, ou ainda intraútero (25 a 50% dos casos). O quadro
reverte-se em 1 a 4 semanas, período necessário para o clearance dos
anticorpos maternos. Enquanto isso, devem-se transfundir
plaquetas com antígenos plaquetários compatíveis com os da mãe
(inclusive a própria plaqueta da mãe) e/ou administrar
imunoglobulina. A transfusão será indicada se a contagem de
plaquetas for < 30.000 a 50.000/mm3, principalmente nas primeiras
96 horas, em que o risco de sangramento é muito alto. A taxa de
recorrência nas gestações subsequentes é de 75 a 90%, sendo
indicada transfusão intraútero imediatamente antes do parto e/ou
infusão de imunoglobulina na mãe, associadas ou não a corticoide.
7.3.2.1 Púrpura trombocitopênica idiopática

Também chamada de púrpura trombocitopênica imunológica, é uma


das causas mais comuns de plaquetopenia em crianças. Trata-se de
uma doença autoimune, que pode ser aguda (com duração de até 3
meses), persistente (de 3 a 12 meses) ou crônica (acima de 12 meses),
e cursa com destruição plaquetária imunologicamente mediada por
anticorpos, à semelhança do que acontece na AIDS, no LES, nas
infecções virais (hepatites B e C), na leucemia linfoide crônica, no
linfoma não Hodgkin e nas complicações de terapias
medicamentosas diversas (púrpuras trombocitopênicas
imunológicas secundárias). Essas etiologias secundárias devem ser
devidamente investigadas e descartadas, pois o diagnóstico de PTI é
de exclusão.
a) Patogênese

A patogênese da PTI ainda é incerta, mas acredita-se que está


relacionada:
1. Ao aumento da destruição das plaquetas por anticorpos IgG
produzidos por linfócitos B (podem coexistir anticorpos IgM em 40%
dos casos) contra os complexos glicoproteicos plaquetários IIb/IIIa e
Ib/IX. As plaquetas opsonizadas após essa reação antígeno-anticorpo
são fagocitadas pelo sistema reticuloendotelial, levando à destruição
plaquetária, principalmente no baço;
2. À participação importante de linfócitos T helper CD4+, tanto no
estímulo da ação dos linfócitos B quanto na possível ação citotóxica
direta;
3. À diminuição da secreção de trombopoetina; fisiologicamente, em
situações de plaquetopenia, essa substância encontra-se elevada, o
que não ocorre na PTI.

b) Epidemiologia

A incidência maior é na infância, porém pode afetar virtualmente


todas as faixas etárias em ambos os sexos. Em crianças, é mais
frequente o aparecimento da plaquetopenia após quadro viral ou
vacina (principalmente a SCR – Sarampo, Caxumba e Rubéola),
iniciando-se, geralmente, 3 semanas após a infecção, com taxa de
remissão espontânea bastante alta nessa faixa etária, chegando a
80%. Infecção pelo Helicobacter pylori tem sido associada à PTI em
alguns relatos. Nos adultos, acomete em geral mulheres em torno da
segunda à quarta década de vida ou, ainda, idosos; nessas situações,
a remissão clínica é menos comum, com maior chance, por
conseguinte, de cronicidade do quadro, mesmo com tratamento
adequado.
Figura 7.2 - Incidência de púrpura trombocitopênica imunológica por faixa etária

Fonte: elaborado pelos autores.


c) Quadro clínico e laboratorial

A PTI se apresenta como um distúrbio da hemostasia primária,


destacando-se a presença de petéquias, geralmente ascendentes.
Pode ocorrer sangramento em, virtualmente, todos os tecidos do
organismo, sendo mais comuns epistaxe, gengivorragia e
menorragia. Idosos tendem a apresentar sangramentos mais graves,
como digestivo ou urinário. O Sistema Nervoso Central (SNC)
raramente apresenta fenômenos hemorrágicos potencialmente
fatais, tendo em vista hiperfunção das poucas plaquetas presentes.
Os pacientes encontram-se em bom estado
geral e afebris, com ausência de
esplenomegalia ou de outras alterações no
exame físico, além de petéquias, púrpuras e
equimoses. Diferentemente da púrpura de
Henoch-Schönlein, a PTI é indolor, não palpável
e não ocorre de forma exclusiva ou principal nos
membros inferiores.

Os pacientes apresentam bom estado geral, sem febre,


esplenomegalia ou outras alterações além de petéquias, púrpuras e
equimoses. Também podem ocorrer sangramentos, sendo mais
comuns epistaxe, gengivorragia e menorragia.
A contagem plaquetária pode alcançar valores abaixo de
10.000/mm3, muitas vezes com megatrombócitos circulantes
(macroplaquetas), consequentes ao aumento da demanda medular,
sem qualquer outra evidência de alteração no hemograma.
Eventualmente, pode haver anemia ferropriva, secundária aos
episódios de sangramento.
As outras linhagens celulares estão normais, porém 10% têm anemia
hemolítica autoimune associada (síndrome de Evans).
d) Como investigar

Avaliação inicial deve incluir anamnese e exames físicos detalhados,


hemograma completo e avaliação do esfregaço de sangue periférico.
Em pacientes com mais de 50 anos, devem-se considerar aspirado e
biópsia de medula óssea, a fim de afastar um processo
mielodisplásico.
A análise do sangue periférico é importante para descartar
pseudoplaquetopenia e presença de células anômalas (leucemia) e de
esquizócitos (sinal de microangiopatia). Na púrpura
trombocitopênica imunológica, é comum aparecerem
macroplaquetas.
Ao mielograma, evidenciam-se linhagens celulares normais,
podendo haver aumento do número de megacariócitos, muitos deles
imaturos, basofílicos, com núcleo grande e não lobulado,
demonstrando eritropoese acelerada e resposta medular elevada.
Pode-se encontrar também número de megacariócitos normais ou
diminuídos, nos casos em que estes são afetados. Logo, o
mielograma não é importante para o diagnóstico da PTI, mas para a
exclusão de outras doenças que afetam a medula. Deve ser solicitado
em crianças, ou menores de 18 anos (pela possibilidade de
diagnóstico de leucemia aguda), idosos (pelo diagnóstico diferencial
de mielodisplasia), pacientes corticorrefratários e aqueles que não
apresentaram boa resposta à esplenectomia.
Podem-se, ainda, detectar anticorpos antiplaquetários por
citometria de fluxo; entretanto, a sensibilidade e a especificidade
desse teste são muito baixas, o que impede sua utilização para o
diagnóstico.
É importante a realização de investigação laboratorial extensa, dado
que não há nenhum exame laboratorial que confirme PTI, e o
diagnóstico é de exclusão. É importante descartar outras doenças
para o diagnóstico de PTI, como:
1. Doenças autoimunes;
2. Anemia megaloblástica;
3. Doenças infecciosas, em especial hepatite C e HIV;
4. Agamaglobulinemia (solicitar eletroforese de proteínas e dosagem
de imunoglobulinas);
5. Tireoidopatias (se houver sintomas de hipo ou hiperfunção
tireoidiana);
6. Síndrome mielodisplásica (principalmente em idosos);
7. Leucemia aguda (principalmente em crianças);
8. Uso de medicamentos.

Já que não há nenhum exame laboratorial que


confirme a PTI, deve-se realizar investigação
laboratorial extensa, e o diagnóstico de PTI é de
exclusão.

e) Tratamento

Considerando-se que nas crianças geralmente há remissão


espontânea, e em alguns poucos casos nos adultos (< 10%), o início
da terapia está indubitavelmente indicado apenas em 3 situações:
nível plaquetário abaixo de 30.000/mm3, quadro de sangramento
ativo ou previsão de intervenção cirúrgica.
Outras situações podem ser levadas em conta para a indicação
terapêutica objetivando plaquetometria maior, como risco de trauma
(geralmente idosos ou pacientes que exercem atividade de risco),
uso de medicamentos anticoagulantes ou antiagregantes e a
presença de comorbidades.
A primeira opção terapêutica é o corticoide, para reduzir a afinidade
dos macrófagos com as plaquetas marcadas por anticorpos, além de
diminuir a ligação dos anticorpos à superfície das plaquetas. Quando
mantida a corticoterapia por longos períodos, a produção de
anticorpos diminui. A corticoterapia pode ser administrada em
diferentes formas:
1. Prednisona: 1 mg/kg de peso/d, pelo mínimo de 4 semanas (mais
utilizada);
2. Pulsos com dexametasona: 40 mg/d, por 4 dias, a cada 14 a 28
dias, quantas vezes forem necessárias para aumentar a contagem
plaquetária (em geral, de 1 a 6 vezes);
3. Pulso com metilprednisolona: 30 mg/kg/d, respeitando a dose
máxima de 1 g/d, por 3 dias, seguido da prednisona na dose já
descrita. Nessa opção, obtém-se resposta mais rapidamente, mas sem
diferenças na frequência e/ou na duração da resposta completa, sendo
reservada apenas a pacientes com quadro de sangramento importante
ou refratários à dose convencional de prednisona.

O sangramento geralmente diminui de intensidade após o primeiro


dia de corticoide, mesmo antes do início da elevação plaquetária,
talvez por aumento da estabilidade vascular. Após o início da
corticoterapia, a contagem de plaquetas pode levar até 4 semanas
para se elevar.
Em pacientes com sangramento importante, em pré-operatório
(particularmente para a esplenectomia), gestantes e/ou refratários
ao uso de corticoide, a imunoglobulina é indicada. Tal agente atua no
bloqueio dos receptores Fc dos macrófagos e na diminuição da
captação de plaquetas recobertas por anticorpos. Preconiza-se dose
de 400 mg/kg de peso/d, por 3 a 5 dias, ou 1 g/kg/d, por 2 dias.
Espera-se resposta laboratorial em 1 a 5 dias.
A transfusão de plaquetas só é recomendada
em casos de sangramento ativo e com risco de
vida iminente, geralmente com o dobro da dose
usual.

A transfusão de plaquetas está contraindicada, recomendada apenas


em casos de sangramento ativo e com risco de vida iminente
(sangramentos no trato gastrintestinal ou no sistema nervoso
central), geralmente calculando-se o dobro da dose usual –
enquanto a dose usual de plaquetas randômicas é 1 unidade a cada 10
kg, aqui se faz 2 a 3 unidades a cada 10 kg de peso. Não há
contraindicações para transfusões de concentrados de hemácias caso
haja anemia severa sintomática associada, em razão das perdas.
Não há contraindicação para transfusão de
concentrados de hemácias em casos de anemia
severa sintomática associada, em razão das
perdas.

Para os casos refratários, a esplenectomia é indicada aos casos em


que não há resposta a prednisona, quando há dependência de altas
doses do uso desta ou em casos de recidiva da doença. Deve-se
aguardar pelo menos 6 meses para indicar esse procedimento, tendo
em vista a chance de remissão espontânea nesse período.
Entretanto, a cirurgia não é garantia de sucesso a 100% dos
pacientes, tendo índice de resposta em longo prazo que varia de 60 a
90%, dependendo da série estudada.
O anticorpo monoclonal anti-CD20 (rituximabe), responsável pela
supressão de linfócitos B e, portanto, da síntese de anticorpos, vem
sendo bastante estudado na tentativa de diminuir as indicações de
esplenectomia, mas ainda carece de estudos que comprovem
superioridade quanto à sua eficácia como primeira linha,
principalmente em longo prazo, porém é reservado aos refratários à
esplenectomia ou àqueles com contraindicação cirúrgica, com boas
taxas de sucesso.
Os análogos de trombopoetina (eltrombopague e romiplostim) são
aprovados para uso em pacientes refratários às terapias anteriores;
não induzem à remissão, entretanto melhoram a plaquetometria
durante seu uso em pelo menos 50% dos casos. Ambos os
medicamentos já foram lançados no Brasil.
Descreve-se, também, que o uso do danazol, um agente
anabolizante, está associado à melhora em pacientes refratários a
corticoides, o mesmo acontecendo com o quimioterápico
ciclofosfamida e o imunossupressor ciclosporina. Ressalta-se,
porém, que esses medicamentos são de terceira linha terapêutica,
apresentando respostas menores do que os demais supracitados.
É importante lembrar que, em pacientes com HIV, a terapia
antirretroviral auxilia no incremento dos níveis plaquetários.
f) Prognóstico

Nas crianças, a maior parte apresenta remissão completa (80%),


enquanto nos adultos, a maioria dos casos (aproximadamente 60%)
regride com uso de prednisona. O prognóstico é bom na maioria dos
casos, com resolução após terapêutica medicamentosa ou
esplenectomia. A mortalidade relacionada à PTI é pequena (< 1%) e
secundária a sangramento ou infecção.
Figura 7.3 - Tratamento na púrpura trombocitopênica idiopática
Fonte: elaborado pelos autores.

7.3.3 Plaquetopenia por sequestro esplênico


Pacientes com esplenomegalia podem reter até 90% das plaquetas
circulantes no baço. Portanto, a massa plaquetária do paciente pode
ser normal, mesmo quando a contagem representar apenas 20% do
valor normal.
A causa mais importante da plaquetopenia por sequestro esplênico é
a hepatopatia crônica com hipertensão portal e esplenomegalia
congestiva. Hiperesplenismo é uma situação distinta, em que a
esplenomegalia está associada ao aumento da destruição de
plaquetas, leucócitos e hemácias, com aumento dos precursores
medulares (citopenia, esplenomegalia e medula hipercelular).
Ocorre nas citopenias autoimunes, doenças infecciosas e
inflamatórias, como lúpus, esquistossomose, mononucleose,
malária ou leishmaniose.
7.3.4 Defeitos qualitativos das plaquetas
Podem ser congênitos ou adquiridos e são responsáveis por quadro
clínico semelhante ao das plaquetopenias.
7.3.4.1 Defeitos congênitos

1. Síndrome de Bernard-Soulier: doença autossômica recessiva em


que há deficiência no complexo glicoproteico plaquetário GPIb,
resultando em menor número de receptores para o FvW e defeito na
adesão plaquetária. Além da alteração da função, também apresenta
diminuição da contagem plaquetária;
2. Tromboastenia de Glanzmann: é uma síndrome hemorrágica rara,
causada por um defeito autossômico recessivo, com perda do receptor
de fibrinogênio (GPIIb/IIIa), resultando em déficit de agregação
plaquetária;
3. Storage pool disease: é uma “doença do armazenamento”,
ocorrendo por defeitos das reações de liberação do conteúdo dos
grânulos plaquetários, levando a respostas anormais na produção de
prostaglandinas ou liberação de ADPs, alterando agregação e ativação
plaquetárias.

7.3.4.2 Defeitos adquiridos


1. Ingestão de ácido acetilsalicílico: liga-se de forma irreversível à
cicloxigenase 2 (COX-2), enzima responsável pela produção de
prostaglandinas e tromboxano A2 na membrana plaquetária, levando à
alteração da agregação plaquetária e ao aumento do tempo de
sangramento;
2. Ingestão de outros anti-inflamatórios não hormonais: inibem
reversivelmente a COX e a agregação plaquetária, porém esta última
de forma menos intensa;
3. Tienopiridinas: a ticlopidina e o clopidogrel agem inibindo o receptor
plaquetário de ADP e a sua agregação;
4. Inibidores da glicoproteína IIb/IIIa: são drogas que inibem
especificamente esse componente, impedindo a agregação plaquetária
(abciximabe, eptifibatida e tirofibana, utilizados no tratamento da
insuficiência coronariana);
5. Uremia: o mecanismo exato para a alteração da função plaquetária
é desconhecido, porém, acredita-se que o acúmulo do ácido
guanidinossuccínico possa alterar a adesão, agregação e secreção de
grânulos plaquetários. A gravidade do quadro clínico associa-se à
severidade da insuficiência renal concomitante.

7.3.5 Doença de von Willebrand


7.3.5.1 Considerações gerais

A Doença de von Willebrand (DvW) é um distúrbio autossômico


dominante (o tipo 1, forma mais comum, afeta cerca de 80% dos
casos) ou recessivo (o tipo 3, mais raro), em que pode haver redução
da síntese do FvW ou produção de substância alterada, ineficaz, que
é incapaz de realizar as funções de adesão plaquetária e manutenção
adequada dos níveis de fator VIII. É a coagulopatia hereditária mais
frequente e raramente pode ser adquirida, em geral associada a
mieloproliferações ou a tumores sólidos.
O FvW é uma glicoproteína multimérica sintetizada nos
megacariócitos e nas células endoteliais e circula no plasma como
multímeros de tamanhos variáveis. Só os multímeros de alto peso
atuam na adesividade plaquetária. Desmopressina, trombina e
colágeno estimulam a secreção de multímeros ultragrandes, que são
clivados na circulação, pela metaloprotease ADAMTS13, em
multímeros menores e menos ativos.
O FvW tem 2 funções na hemostasia: adesão plaquetária e
manutenção adequada dos níveis de fator VIII, pois o FvW ligado ao
fator VIII na corrente sanguínea o protege da degradação plasmática
pelas proteínas C e S. Assim, na sua deficiência, além de existirem
distúrbios da adesividade plaquetária, pode ocorrer a redução dos
níveis de fator VIII.
A DvW pode ser de 3 tipos:
1. Tipo 1: deficiência quantitativa parcial do FvW;
2. Tipo 2: deficiência qualitativa do FvW.
a) 2A: redução da função de ligação às plaquetas e ausência de
grandes multímeros de alto peso molecular;
b) 2B: maior afinidade pela glicoproteína Ib;
c) 2M: redução da função da ligação às plaquetas, sem ausência
de grandes multímeros de alto peso molecular;
d) 2N: redução da afinidade do fator VIII coagulante.
3. Tipo 3: deficiência quantitativa virtualmente completa do FvW
(deficiência total).

A pseudodoença de von Willebrand consiste em alterações da


membrana plaquetária, com excessiva avidez pelas formas
multiméricas grandes, causando sua retirada precoce do plasma.
7.3.5.2 Quadro clínico

Ocorre manifestação clínica de patologia da hemostasia primária:


sangramento mucocutâneo, com exceção do subtipo 2N, que se
comporta como hemofílico (deficiência de fator VIII), com
sangramentos articulares e musculares profundos e sangramento
tardio após trauma. Deve-se ter atenção para a história familiar, que
pode apresentar episódios de sangramento prolongado após
extração dentária, procedimentos cirúrgicos, parto e sangramento
menstrual excessivo.
A perda sanguínea diminui na vigência de estrogênios ou durante a
gravidez, pois essas situações aumentam a síntese de FvW.
7.3.5.3 Diagnóstico laboratorial

O diagnóstico laboratorial da DvW pode ser difícil, pois o nível sérico


de FvW é influenciado por diversos fatores, e os resultados dos
vários testes relacionam-se mal com a gravidade da situação clínica.
Esse fato exige frequentemente a repetição das análises se a suspeita
clínica for grande, e os resultados, inconclusivos. Vários testes
podem e devem ser utilizados no diagnóstico da DvW e na sua
classificação e são agrupados em 3 níveis: de rastreamento;
específicos para o FvW, que permitem estabelecer o diagnóstico;
testes classificatórios, que permitem caracterizar precisamente os
diferentes subtipos da doença.
1. Testes de rastreamento:
a) Tempo de sangramento: importante na suspeita inicial de
muitos casos de DvW, pois estará aumentado em todos os tipos,
exceto no subtipo 2N (deficiência de fator VIII);
b) Tempo de tromboplastina parcial ativada: pode ser normal ou
prolongado, a depender do valor do fator VIII;
c) Contagem plaquetária: estará normal, descartando outras
patologias de hemostasia primária. Exceção ao subtipo 2B, em
que, em razão da alta afinidade GPIb-FvW, é possível haver
plaquetopenia.
2. Testes específicos:
a) Dosagem do fator VIII plasmático: estará diminuído no subtipo
2N e no tipo 3;
b) Dosagem do antígeno FvW plasmático: estará diminuído nos
tipos 1 e 3 e normal ou limítrofe no tipo 2, lembrando que um
grande número de fatores pode alterar os níveis plasmáticos do
antígeno FvW, como o sistema ABO do sangue (os indivíduos do
grupo O têm níveis de FvW plasmático mais baixos do que os do
AB), estrogênios, hormônios tireoidianos, idade e estresse;
c) Atividade de cofator da ristocetina: avalia alteração funcional do
FvW. A ristocetina é um antibiótico capaz de induzir a interação
entre o FvW e o complexo GPIb-IX. Logo, a determinação do
cofator da ristocetina estará diminuída em todos os tipos da DvW.
3. Testes classificatórios:
a) Eletroforese do FvW em gel de agarose: permite a análise dos
diferentes multímeros;
b) Aglutinação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA):
aumentada no subtipo 2B e diminuída nos demais tipos;
c) O diagnóstico pré-natal da DvW já é possível por meio de
análise genética.

7.3.5.4 Tratamento

Deve-se evitar sempre o uso de anti-inflamatórios não esteroides e


anticoagulantes orais.
O tratamento da doença de von Willebrand é
feito com desmopressina, e, para os casos não
responsivos, pode-se usar fator VIII liofilizado.

A desmopressina, um análogo sintético do hormônio antidiurético,


provoca aumento dos níveis de fator VIII e FvW, mas não da pressão
arterial, vasoconstrição nem contração uterina ou gastrintestinal,
sendo bem tolerada pelos pacientes. Seu uso não está associado ao
aumento de infecções virais, e o produto é comercializado em várias
formulações (intravenosa, subcutânea ou inalatória), com custo
relativamente baixo. Apresenta boa resposta terapêutica na DvW tipo
1 e resposta variável no tipo 2.
O uso de concentrados de fator VIII liofilizado (contendo FvW) é
preconizado para os que não respondem à desmopressina, na dose
de 20 a 50 UI/kg, a ser repetida 3x/d enquanto for necessário.
Agentes antifibrinolíticos, como o ácido tranexâmico ou o ácido
épsilon-aminocaproico e cola de fibrina, podem ser utilizados como
terapêutica adjuvante durante pequenos procedimentos invasivos.
O estrogênio pode ser utilizado em mulheres com sangramento
menstrual excessivo, com boa resposta na DvW tipo 1 e resposta
variável no tipo 2.
Quais são as doenças
relacionadas com distúrbios
da hemostasia primária?
Os distúrbios de hemostasia primária mais comuns são a
doença de von Willebrand e a púrpura trombocitopênica
idiopática.
Quais características
clínicas ajudam no
diagnóstico de distúrbios da
hemostasia secundária?

8.1 DISTÚRBIOS DA HEMOSTASIA


SECUNDÁRIA
8.1.1 Introdução e considerações gerais
As coagulopatias causadas por alterações da hemostasia secundária
manifestam-se quase sempre por grandes equimoses ou hematomas
após traumas menores e por tempo de coagulação prolongado após
lacerações ou cirurgias. O sangramento é tardio após o trauma,
diferentemente das alterações da hemostasia primária, em que o
sangramento é imediato. Sangramentos articulares são bastante
comuns, também sendo possíveis no trato gastrintestinal.
Quase todos os fatores de coagulação têm descrições de alterações,
que podem ser adquiridas ou hereditárias.
Os distúrbios da hemostasia secundária podem ser:
1. Adquiridos: geralmente, são deficiências múltiplas, como no caso
da hepatopatia ou da deficiência de vitamina K (nesta última, há menor
síntese de fatores II, VII, IX, X e de proteínas S e C). Nas doenças
hepáticas, há deficiência de síntese de todos os fatores de coagulação
de síntese no fígado, inclusive os antifibrinolíticos;
2. Hereditários: geralmente, envolvem apenas um fator de coagulação
deficiente. Por exemplo, as deficiências do fator VIII (hemofilia tipo A,
mais comum) e do fator IX (hemofilia tipo B ou doença de Christmas)
são desordens com transmissão ligada ao cromossomo X.

8.1.2 Alterações hereditárias


8.1.2.1 Hemofilia

a) Etiologia

Doença de caráter recessivo ligado ao X, afetando particularmente


homens, pois as mulheres portadoras heterozigotas do gene são
assintomáticas. Raros casos de mulheres homozigotas foram
descritos. Pode ser de 2 tipos, hemofilia A (fator VIII ou hemofilia
clássica) e hemofilia B (deficiência do fator IX ou doença de
Christmas).
b) Classificação

Em qualquer um dos tipos de hemofilia, ocorre diminuição de fator


VIII ou IX, que pode ser secundária à deficiência quantitativa ou
qualitativa de síntese do fator. A classificação da hemofilia se dá de
acordo com a quantidade presente de fator, conforme o Quadro 8.1.
Quadro 8.1 - Classificação da hemofilia
c) Quadro clínico

As hemofilias A e B são clinicamente indistinguíveis. Ocorrem


hemartroses espontâneas (em grandes articulações, como joelhos,
tornozelos e cotovelos) e são responsáveis por 80% das
manifestações hemorrágicas de hemofilia. Também ocorrem
sangramentos musculares, do trato gastrintestinal e do trato
geniturinário.
Em alguns casos, o diagnóstico é feito logo ao nascimento, pois pode
ocorrer hemorragia intracraniana ou subgaleal nos casos graves, no
período perinatal.
Figura 8.1 - Hemartrose em paciente hemofílico grave

Aos pequenos traumas, inicialmente ocorre parada do sangramento,


porém, após algum tempo, com difícil controle local, o sangramento
retorna, podendo muitas vezes durar vários dias. De todos os tipos
de sangramento, o mais temido é o que ocorre no sistema nervoso
central. Pode acometer virtualmente qualquer região (subdural,
epidural, parenquimatosa ou subaracnóidea) e deve ser sempre
diagnosticado e tratado de forma agressiva. Sempre que houver um
episódio de cefaleia não habitual, intensa, que dure mais de 4 horas e
que não responda à analgesia comum, é importante excluir
sangramento no sistema nervoso central.
A artropatia hemofílica crônica é uma complicação derivada de
repetidas hemorragias em articulação, causando destruição da
cartilagem articular, hiperplasia sinovial resultando em
deformidade articular permanente e contraturas musculares. Pode
ocorrer em qualquer articulação, em especial nos joelhos,
tornozelos, cotovelos e na articulação coxofemoral. Todo esse
processo inflamatório e fibrótico resulta em perda da função
articular (inclusive com articulação anquilosada) e intensa atrofia
muscular.
Figura 8.2 - Artropatia crônica no joelho

Os hematomas musculares são a segunda causa mais comum de


sangramento em hemofílicos. Quando em pequena quantidade,
apresentam dor local e desconforto, sendo facilmente manejáveis;
entretanto, nos hemofílicos graves, esses hematomas podem ser de
volume crescente, fazendo compressão e dissecção de tecidos, com
risco de complicações, podendo apresentar leucocitose, febre e dor
intensa. Sangramentos espontâneos ou pós-traumáticos de vias
aéreas (língua, musculatura ou partes moles do pescoço ou da
garganta) podem aumentar rapidamente e causar sua compressão,
devendo ser prontamente tratados.
Figura 8.3 - Hematomas em hemofílico

Legenda: (A) região dorsal; (B) região glútea.

De acordo com o local acometido, os hematomas podem causar


síndromes compressivas: no antebraço, podem causar paralisia dos
nervos mediano ou ulnar, ou a contratura isquêmica da mão
(contratura de Volkmann); e sangramento abundante na panturrilha
pode causar paralisia de nervo fibular. Em especial, devem-se
destacar hematomas no músculo iliopsoas que, de acordo com o
volume, podem acarretar dor no abdome inferior, simulando outras
patologias abdominais cirúrgicas, como apendicite aguda.
Por sua vez, a hematúria é um sintoma comum, ocorrendo em até
75% dos hemofílicos em algum momento de seu acompanhamento,
em geral após os 12 anos. Pode ser totalmente assintomática ou
ocasionar sintomas de dolorimento no flanco e dor no abdome
inferior/disúria. Usualmente, esse quadro é autolimitado, devendo-
se, porém, sempre investigar patologias do sistema geniturinário,
especialmente em hematúrias de repetição.
Pode-se ter ainda o chamado pseudotumor hemofílico, complicação
pouco frequente, porém grave. Também chamado de cisto
hemorrágico, ocorre quando o sangramento abundante não é
completamente reabsorvido, com a formação de lesão capsular
cística, contendo fluido serossanguinolento ou viscoso. Esta
estrutura pode, por sua vez, crescer ocasionando compressão óssea
ou vascular e destruição tecidual. Os locais mais acometidos são
pelve, fêmur e tíbia nos adultos, enquanto nas crianças ocorre
predominantemente nos ossos das mãos e dos pés.
d) Avaliação laboratorial

Devem ser solicitados: tempo de tromboplastina parcial ativada,


tempos de sangramento e protrombina, agregação plaquetária e
níveis séricos dos fatores VIII e IX.
Nos exames laboratoriais, o Tempo de Tromboplastina Parcial
Ativada (TTPA) encontra-se prolongado, enquanto os tempos de
sangramento e de protrombina e a agregação plaquetária estão
normais. Os níveis séricos de fator VIIIc (fator VIII “coagulante”) e
de fator IX estão diminuídos.
e) Tratamento

O tratamento básico fundamenta-se no aporte dos fatores VIII e IX,


hoje disponíveis na forma de concentrados liofilizados, tratados de
maneira a inativar vírus como o HIV, pois são hemoderivados.
Procura-se alcançar níveis de fator VIII suficientes para tratar o
sangramento ativo ou prevenir hemorragias, como em pré-
procedimentos cirúrgicos. É importante destacar que o uso do fator
tem como objetivo suspender a hemorragia ativa, enquanto o
organismo reabsorverá por si só o hematoma formado.
A dose de fator VIII é calculada assumindo que 1 UI/kg de fator VIII
aumenta em 2% o seu valor plasmático.
A partir desse valor, calculam-se o volume plasmático do indivíduo e
o número de unidades de fator que deverá receber para alcançar
níveis de atividade de fator VIII suficientes para tratar a condição do
momento.
Considera-se que, em sangramentos menores, 30% de atividade do
fator será suficiente, ao passo que, para perdas moderadas, indica-
se alcançar 50% de atividade. Para grandes cirurgias, sugere-se
100% de atividade como nível seguro.
As infusões de fator VIII devem ser repetidas a cada 12 horas, para
garantir a ação desse fator dentro da sua vida média.
As formas leves de hemofilia A podem ainda favorecer-se com o uso
de desmopressina, já que esta substância aumenta a liberação de
fator VIIIc.
Na hemofilia B, utilizam-se concentrados de fator IX, na dose
calculada de 1 UI/kg de peso de fator IX, o que leva a aumento de 1%
do seu valor plasmático, pois o seu volume de distribuição tecidual é
maior. O tempo de vida média do fator IX é de 24 horas, o que reduz o
número de infusões, sem indicação para uso da desmopressina nesta
doença.
Atualmente, entretanto, o Sistema Único de Saúde brasileiro já
autoriza o uso de fatores VIII e IX de forma profilática, o que traz
resultados bem mais benéficos para o paciente hemofílico. Enquanto
na transfusão tradicional “sob demanda”, dá-se fator quando o
paciente apresenta algum evento hemorrágico (como hemartrose ou
hematomas), a profilaxia mantém um nível quase constante de
fatores VIII ou IX por meio do uso desses concentrados liofilizados
de 2 a 3 vezes por semana. Assim, mantém-se sempre a atividade do
fator deficiente acima de 30%, evitando-se sangramentos de
qualquer tipo, refletindo diretamente na melhora da qualidade de
vida e na prevenção de sangramentos graves que evoluam com
disfunção articular ou risco de vida.
Como medidas coadjuvantes, têm-se, ainda, ações locais (curativos
compressivos ou tampões com adrenalina), uso de agentes
antifibrinolíticos, como ácido tranexâmico ou ácido gama-
aminocaproico. O atendimento multidisciplinar, com orientações de
psicólogo, enfermeiro, nutricionista e dentista, é de extrema
importância. Finalmente, deve haver treinamento dos pais ou
responsáveis para aplicação domiciliar de fator, prevenindo ao
máximo as complicações da hemofilia, como artropatia hemofílica
crônica.
f) Prognóstico

Como complicações tardias da hemofilia, podem-se ter, além das


anormalidades ortopédicas secundárias a hemartroses de repetição,
a transmissão de infecção viral pelos derivados do sangue e
desenvolvimento do anticorpo antifator VIII e antifator IX. A
disponibilidade de fator VIII liofilizado para reposição tem
modificado a história natural da hemofilia A, e a inativação viral
eficaz dos concentrados de fator seguramente interferiu no aumento
da sobrevida desses pacientes.
Cerca de 40% dos pacientes desenvolvem anticorpos inibidores do
fator VIII e necessitam de abordagem mais específica, como
aumento da dose do fator, uso de complexo protrombínico ativado
(FEIBA) ou fator VII ativado (NovoSeven®). Já na hemofilia B,
somente 6 a 10% evoluirão com inibidores de fator IX, lançando-se
mão, nesses casos, das mesmas medidas para hemofilia A.
8.1.2.2 Deficiência do fator XIII

O fator XIII é responsável pela estabilização da fibrina formada;


logo, sua deficiência leva à tendência hemorrágica por instabilidade
do coágulo de fibrina, com maior suscetibilidade à sua degradação. É
uma doença hereditária rara, que se manifesta por sangramento
persistente, imediato ou tardio após procedimentos cirúrgicos ou
traumas (imediatamente ou até 12 a 36 horas depois), com alteração
da cicatrização. Caracteristicamente, apresenta persistência de
sangramento no coto umbilical após queda do cordão. Apesar de ser
uma deficiência de fator de coagulação, hemartroses e hematomas
musculares são bem menos comuns do que na hemofilia.
Na avaliação laboratorial, Tempo de Protrombina (TP), TTPA, tempo
de sangramento e contagem plaquetária estão normais, podendo
apresentar somente um discreto aumento do tempo de trombina
(este pode ser o único exame alterado a levantar a suspeita para
deficiência de fator XIII). O diagnóstico confirmatório é feito com o
teste da urease concentrada (5M). A quantidade de fator XIII para
adequada hemostasia é extremamente baixa, sendo utilizada para
tratamento a transfusão de plasma fresco congelado na dose de 2 a 4
mL/kg ou crioprecipitado (1 UI; 10 kg). Como a meia-vida é longa (14
dias), a reposição com plasma, quando necessária, pode ser feita a
cada 20 dias.
8.1.2.3 Outras deficiências

É possível apresentar deficiência de quaisquer um dos fatores: XI


(hemofilia C ou síndrome de Rosenthal), V, X, VII, XII, fibrinogênio
ou disfibrinogenemia ou, ainda, uma combinação dessas
deficiências. O diagnóstico é feito pela manifestação hemorrágica e
pela dosagem do fator deficiente. O tratamento é realizado por meio
da reposição do fator deficiente com a infusão de complexo
protrombínico (para deficiência dos fatores II, VII ou X), fator VII
ativado (para deficiência de fator VII), transfusão de crioprecipitado
(para deficiência de fibrinogênio ou disfibrinogenemia) ou de
plasma fresco congelado, nos casos que não dispõem de produto
liofilizado. Deve-se realizar a reposição do fator deficiente nos casos
de sangramento ativo ou em profilaxia pré-procedimento invasivo.
A deficiência do fator XII, particularmente, não apresenta tendência
hemorrágica; ao contrário, estuda-se a possibilidade de deficiências
severas (< 1%) estarem relacionadas a fenômenos trombóticos. É
importante para diagnóstico diferencial de TTPA alargado, mas não
exige cuidado para profilaxia de sangramento.
8.1.3 Alterações adquiridas
8.1.3.1 Coagulação intravascular disseminada

a) Considerações gerais

A coagulação intravascular disseminada (CIVD) é uma síndrome


adquirida, caracterizada pela ativação maciça dos fatores da
coagulação, plaquetas e fibrinólise, com manifestação clínica de
trombose e/ou sangramento excessivo.
É uma síndrome caracterizada pela ativação sistêmica da coagulação
intravascular, levando à formação e deposição de fibrina na
microvasculatura e ao consumo de fatores de coagulação e de
plaquetas.
A deposição de fibrina em excesso pode levar a oclusão
microvascular e consequente comprometimento do fluxo sanguíneo,
o que, em conjunto com alterações metabólicas e hemodinâmicas,
pode contribuir para a falência de múltiplos órgãos.
O consumo e a consequente depleção dos fatores da coagulação e das
plaquetas, resultantes da ativação contínua da coagulação, podem
levar ao quadro de sangramento em diversos sítios.
b) Etiologia e patogênese

A CIVD é sempre secundária e pode ocorrer em associação a grande


variedade de patologias.
As principais causas de CIVD são:
1. Doenças infecciosas: infecções bacterianas são as mais
associadas (Gram positivos e negativos). Exotoxinas de bactérias
resultam em resposta inflamatória generalizada, com liberação
sistêmica de citocinas e ativação de macrófagos. Estes espalham fator
tissular em sua superfície e, junto à lesão endotelial pela ação direta
das toxinas, ativam a cascata da coagulação;
2. Trauma grave: mecanismos incluem liberação de gordura e
fosfolípides tissulares na circulação, hemólise e lesão endotelial;
3. Tumores sólidos e neoplasias hematológicas: o mecanismo
envolvido parece estar relacionado ao fator tissular expresso na
superfície das células tumorais. De 10 a 15% dos pacientes com
tumores metastáticos e de 15 a 20% daqueles com leucemia
apresentam evidências de ativação intravascular da coagulação;
4. Leucemia promielocítica aguda (LMA M3): forma distinta de
CIVD, caracteriza-se por hiperfibrinólise decorrente da liberação de
substância fibrinolítica dos grânulos dos promielócitos patológicos;
5. Condições obstétricas: o descolamento prematuro de placenta e a
embolia de líquido amniótico são relatos clássicos, e considera-se que
a liberação de material tromboplástico é que provavelmente
desencadeia o quadro. Pré-eclâmpsia e eclâmpsia, síndrome do feto
morto retido, rotura uterina e aborto séptico são outros exemplos;
6. Doenças vasculares: hemangiomas gigantes (síndrome de
Kasabach-Merritt) ou grandes aneurismas de aorta, que resultam em
ativação local da coagulação pelo turbilhonamento não fisiológico.

Quando a CIVD é de instalação aguda, há o consumo excessivo de


fatores de coagulação, os quais o fígad> não consegue “repor”. Esse
fato, associado à fibrinólise intensa, explica os fenômenos
hemorrágicos que acompanham a CIVD.
Quando a CIVD é de instalação crônica, o consumo dos fatores de
coagulação é compensado pela produção hepática, e os pacientes
apresentam alto risco de trombose. Como exemplo, têm-se as
neoplasias malignas, que muitas vezes se apresentam inicialmente
com quadro de trombose profunda ou tromboflebite superficial
migratória (síndrome de Trousseau).
Figura 8.4 - Fisiopatologia da coagulação intravascular disseminada
Fonte: elaborado pelos autores.

c) Quadro clínico

O quadro clínico é de sangramento importante em feridas


operatórias, locais de punção ou drenos, petéquias, sangramento
digestivo ou urinário, eventos trombóticos e falência
multissistêmica em casos avançados. Os trombos formados podem
ser encontrados em diferentes topografias (em ordem decrescente
de frequência): cérebro, coração, pulmões, rins, adrenais, baço,
fígado e hipófise, culminando nos casos mais avançados com a
falência de múltiplos órgãos.
Necrose hemorrágica da pele e púrpura fulminante também podem
ser manifestações da CIVD.
Os principais diagnósticos diferenciais são doença hepática grave,
trombocitopenia induzida por heparina (devendo ser considerada
nos pacientes sépticos em UTI recebendo heparina não fracionada ou
de baixo peso molecular), púrpura trombocitopênica trombótica e
outras patologias que cursam com anemia microangiopática.
d) Alterações laboratoriais

As principais alterações são alargamento do TP e do TTPA, aumento


do D-dímero, trombocitopenia (consumo), anemia hemolítica
microangiopática (trauma mecânico), elevação dos produtos de
degradação da fibrina e dos multímeros de von Willebrand. A
antitrombina e a proteína C podem estar diminuídas pelo mesmo
motivo de consumo, contribuindo para eventos trombóticos.
Em casos iniciais ou de CIVD crônica, encontram-se apenas
contagem plaquetária discretamente alterada, D-dímero e Produto
de Degradação da Fibrina (PDF) aumentados, podendo o tempo de
trombina também estar alargado (pelo aumento de PDF). Os demais
exames (TP, TTPA e fibrinogênio) são normais.
e) Tratamento

Inicialmente, deve-se tratar a causa que desencadeou o processo e


proceder com estabilização hemodinâmica. As outras medidas, como
reposição de plasma fresco e crioprecipitado, devem basear-se no
quadro clínico de sangramento ativo ou na necessidade de
submissão a procedimentos cirúrgicos.
A reposição de plasma fresco e de concentrados de plaquetas deve
ser criteriosa e usada apenas quando há fundamento laboratorial,
sangramento ativo ou necessidade de procedimento
invasivo/intervenção cirúrgica. Tenta-se manter TP e TTPA normais
e as plaquetas acima de 50.000/mm3, nesses casos.
O fibrinogênio é reposto por intermédio do crioprecipitado, a fim de
manter as concentrações acima de 100 mg/dL, sempre que há
sangramento ativo ou necessidade de intervenção invasiva.
Não há evidência de que a transfusão de plaquetas, plasma fresco
congelado ou crioprecipitado, na ausência de sangramento ativo ou
risco de sangramento (procedimento invasivo), traga benefício.
Tampouco há estudos que comprovem o benefício do uso da
heparina na CIVD aguda para melhora da disfunção orgânica, sendo
reservada só aos casos de CIVD crônica, com manifestação
trombótica e antes de procedimentos cirúrgicos.
A utilização de concentrado de proteína C recombinante é
controversa. No passado, já foi indicada em algumas situações de
sepse grave, com risco de morte e disfunção de órgão, mas,
recentemente, essa medicação foi retirada do mercado. A
antitrombina recombinante não mostrou benefício nos pacientes
estudados e evidenciou maior risco de sangramento, e fator VII
ativado é reservado para casos com sangramento muito grave, com
risco de morte, sem melhora com a reposição de plasma fresco,
plaquetas e crioprecipitado. Há estudos que mostram que o uso de
concentrado de proteína C pode reduzir a mortalidade em casos de
púrpura fulminans. É utilizada na dose de 100 UI/kg em bolus,
seguida de 50 UI/kg a cada 6 horas até a normalização ou decréscimo
nos níveis de D-dímero.
Já a utilização de agentes antifibrinolíticos é contraindicada, pois, ao
inibir a fibrinólise, aumenta o risco trombótico.
f) Prognóstico

A CIVD é uma complicação grave, com mortalidade chegando de 40 a


80%. Depende da causa-base, da rapidez no diagnóstico e da pronta
instituição de terapêutica adequada.
8.1.3.2 Deficiência de vitamina K

A vitamina K é essencial para a funcionalidade dos fatores de


coagulação que apresentam radical glutâmico: fatores II
(protrombina), VII, IX, X, proteína C e proteína S. Ela é sintetizada
no organismo pela flora bacteriana intestinal, em pequenas
quantidades. A ingesta alimentar de vegetais de folhas verdes (que
contêm a vitamina) é necessária para complementar a necessidade
diária de 90 a 120 µg. Após a ingesta, a vitamina K é separada do
alimento pelas enzimas pancreáticas e, por ser lipossolúvel,
necessita de sais biliares para ser absorvida no intestino delgado.
A função da vitamina K é de coenzima para a gamacarboxilação dos
fatores de coagulação citados, junto à enzima gamacarboxilase. Após
esse processo, tem-se a formação da vitamina K na forma inativa
(epóxido), que é novamente ativada pela enzima epoxirredutase.
Figura 8.5 - Oxirredução da vitamina K e ação dos dicumarínicos sobre a vitamina K
redutase

Fonte: acervo Medcel.

Os principais fatores de risco para deficiência de vitamina K são:


1. Alcoolistas crônicos: ocorre pela diminuição da ingesta e pela
insuficiência pancreática;
2. Pacientes com doença inflamatória intestinal ou pós-ressecção
ileal: ocorrem redução da absorção e alteração da flora bacteriana;
3. Uso de antibióticos e nutrição parenteral por períodos
prolongados: levam à alteração da flora bacteriana. São exemplos
cefalosporinas de segunda e de terceira geração e cloranfenicol;
4. Lactentes: em razão do fígado imaturo, ausência de vitamina K no
leite materno e ausência de flora bacteriana. Manifesta-se pelo quadro
clínico da doença hemorrágica do recém-nascido, que consiste em
sangramento cutâneo, gastrintestinal ou até intracraniano na primeira
semana de vida e pode ser prevenido pela administração de vitamina
K 0,5 a 1 mg IM;
5. Uso de dicumarínico: essa classe de medicamentos inibe a enzima
vitamina K-redutase, diminuindo a atividade da vitamina K.

O diagnóstico é feito pelo TP alargado, visto que é um teste


altamente sensível para detectar redução nos fatores vitamina K-
dependentes, sendo o fator VII o principal deles, pois apresenta
baixa meia-vida (6 horas). Nas deficiências extremas, também pode
haver prolongamento do TTPA. No teste da mistura a 50%, observa-
se a correção do tempo prolongado. A manifestação clínica é de
hematomas após pequenos traumas, e, nas deficiências severas,
podem ocorrer hematêmese, melena ou hematúria.
O tratamento é feito com a reposição de vitamina K na dose de 1 a 10
mg VO, IM ou IV. Em casos de sangramento com risco de vida,
transfundir plasma fresco congelado na dose de 10 a 15 mL/kg,
complexo protrombínico ou fator VII ativado, a depender da
urgência e das condições do paciente.
8.1.3.3 Hepatopatia

O fígado é o local de síntese de todos os fatores de coagulação, com


exceção do fator VIII e do fator de von Willebrand. Também é local de
carboxilação dos fatores dependentes da vitamina K, de síntese de
antitrombina e de fatores fibrinolíticos.
Hepatopatas crônicos têm deficiência de vitamina K tanto pela falta
de ingesta quanto pela diminuição da absorção pela colestase em
estágios terminais. Diminuição da síntese dos fatores de coagulação,
da carboxilação dos fatores dependentes da vitamina K, da síntese de
antitrombina e alfa-2-antiplasmina, disfibrinogenemia (em razão
do excesso de ácido siálico, que interfere na formação de fibrina)
colocam o hepatopata em risco de sangramento e de trombose,
sendo necessário um equilíbrio muito justo para não acontecer
nenhum desses eventos. Muitas vezes, também cursa com
plaquetopenia secundária a esplenomegalia, contribuindo para as
manifestações hemorrágicas.
O tratamento deve basear-se apenas na manifestação clínica, nunca
em exame laboratorial. Pode-se administrar profilaticamente a
vitamina K, e, enquanto o fígado for capaz de produzir fatores, ela
será benéfica. Em casos de sangramento, deve-se transfundir
plasma fresco congelado e, em caso de trombose, anticoagulação
cautelosa.
8.2 DISTÚRBIOS DA HEMOSTASIA
TERCIÁRIA
8.2.1 Definição
Anormalidade congênita da fibrinólise é uma condição muito rara,
sendo mais comuns as alterações adquiridas. Como resultado dessas
anormalidades, podem-se encontrar:
a) Aumento excessivo da plasmina, decorrente do aumento dos
ativadores do plasminogênio ou deficiência dos inibidores. Tais
situações cursam com manifestação clínica de sangramento
(hiperfibrinólise);
b) Aumento dos inibidores da fibrinólise ou deficiência dos ativadores,
cursando com manifestação clínica de trombose (hipofibrinólise). As
causas de distúrbio da fibrinólise podem ser:
Congênitas: afibrinogenemia ou disfibrinogenemia;
hipoplasminogenemia, displasminogenemia;
deficiência de PAI-1; deficiência de alfa-2-antiplasmina;
Adquiridas: CIVD por aumentar t-PA e diminuir alfa-2-
antiplasmina; hepatopatia crônica, por diminuir o clearance de t-
PA e a síntese de alfa-2-antiplasmina; neoplasias, por
aumentarem u-PA; cirurgias cardíacas.

Na hiperfibrinólise, o diagnóstico diferencial com CIVD aguda é


muito difícil, visto que há alargamento de TP e TTPA, diminuição de
fibrinogênio, aumento de D-dímero e PDF e encurtamento do tempo
de lise de euglobulina.
A diferença é que não há consumo de plaquetas e esquizócitos nem
consumo de antitrombina. Na hipofibrinólise, o diagnóstico é
bastante difícil, visto que a dosagem dos ativadores do
plasminogênio e dos inibidores da fibrinólise é muito variável e sofre
diversas interferências. O exame que sugere esse quadro é o tempo
de lise de euglobulina alargado.
No tratamento dos quadros de hiperfibrinólise, utilizam-se os
antifibrinolíticos; nos casos de hipofibrinólise, anticoagulante oral.
Quadro 8.2 - Diagnósticos diferenciais entre coagulação intravascular disseminada,
hiperfibrinólise primária e púrpura trombocitopênica trombótica
Quais características clínicas
ajudam no diagnóstico de
distúrbios da hemostasia
secundária?
A hemostasia secundária é caracterizada por início do
sangramento tardio ao trauma, hematomas profundos,
hemartrose, sangramentos profundos e história familiar
comum.
Como diagnosticar o
paciente com trombofilia?
Como realizar sua
anticoagulação?

9.1 INTRODUÇÃO
A trombose está relacionada ao desequilíbrio de um dos fatores da
chamada tríade de Virchow: estase sanguínea, lesão endotelial e
hipercoagulabilidade (Figura 9.1).
Figura 9.1 - Tríade de Virchow
Fonte: Rudolf.hellmuth, 2012.

Exemplos comuns dessas situações são a cirurgia com longos


períodos de imobilização (estase), a arteriosclerose, que provoca
alterações endoteliais severas (lesão endotelial) e doenças
hereditárias ou adquiridas com redução das substâncias que atuam
na modulação da cascata da coagulação ou fibrinólise, como a
deficiência de antitrombina (AT – alteração da coagulação).
Em 80% dos casos de trombose, é possível identificar um fator de
risco para o evento trombótico e, em muitos casos, detectar
múltiplos fatores.
O tromboembolismo venoso inclui a embolia pulmonar e a trombose
venosa profunda.
Os principais fatores de risco para tromboembolismo venoso são:
a) Idade > 40 anos;
b) Obesidade (índice de massa corpórea > 35 kg/m2);
c) Diagnóstico de trombofilia hereditária;
d) Varizes ou insuficiência arterial periférica;
e) Câncer;
f) Anemia falciforme e hemoglobinúria paroxística noturna;
g) Insuficiência cardíaca congestiva classe funcional III/IV;
h) História prévia de trombose;
i) Síndrome nefrótica;
j) Procedimento cirúrgico;
k) Imobilidade prolongada (estar acamado ou passar > 50% do dia
deitado ou sentado, por mais de 72 horas);
l) Trauma;
m) Gestação e puerpério;
n) Uso de anticoncepcional oral ou reposição hormonal;
o) Alguns quimioterápicos (talidomida, asparaginase);
p) Infecção grave;
q) Acidente vascular cerebral;
r) Infarto agudo do miocárdio.

Quadro 9.1 - Causas de hipercoagulabilidade

9.2 TROMBOFILIAS HEREDITÁRIAS


Compreendem situações em que a trombose acontece por alteração
de substâncias moduladoras da coagulação ou fibrinólise herdadas
por meio de mutação genética, associada ou não a fatores
desencadeantes. Os pacientes, uma vez tendo apresentado episódio
de trombose, poderão necessitar de anticoagulação por toda a vida, a
depender das circunstâncias nas quais a trombose ocorrer.
As trombofilias hereditárias mais associadas a eventos trombóticos,
em ordem decrescente, são homozigose para o fator V de Leiden
(mutante e resistente à inativação pela proteína C), deficiência de
antitrombina (juntas causam 50 a 60% dos casos) e deficiência de
proteína C.
Os principais exames a serem solicitados na investigação de
trombofilias hereditárias são:
a) Pesquisa de fator V Leiden;
b) Mutação no gene da protrombina;
c) Proteína C;
d) Proteína S;
e) Dosagem de antitrombina III.

Outros exames que podem ser solicitados são:


1. D-dímero: o D-dímero é produzido quando a plasmina começa a
degradação do coágulo (fibrina). É utilizado no diagnóstico de
trombose, mas não permite identificar trombofilias hereditárias.
Apresenta alta sensibilidade e baixa especificidade para o diagnóstico
de trombose venosa profunda. Pela sua baixa especificidade, seu uso
exclusivo não permite o diagnóstico de trombose venosa profunda,
sendo necessários outros exames;
2. Homocisteína: a hiper-homocisteinemia é um fator etiológico-
metabólico para a doença vascular prematura e trombose,
principalmente arterial.

Após um evento trombótico agudo, é interessante aguardar em torno


de 3 meses para iniciar a investigação de trombofilias. Os testes para
investigação de trombofilias hereditárias não são indicados
imediatamente após um evento trombótico significativo, pois
podem depletar algumas proteínas do plasma transitoriamente e
levar a diagnóstico equivocado de deficiência hereditária de
antitrombina III e proteínas C e S. A anticoagulação também pode
interferir em alguns dos testes funcionais; a heparina pode reduzir
os níveis de antitrombina, e a varfarina pode reduzir os níveis de
proteínas C e S, levando potencialmente ao erro diagnóstico.
Diante de um evento trombótico, aqueles que devem ser
investigados para trombofilia hereditária são:
a) Trombose idiopática;
b) Trombose em indivíduos com idade abaixo de 50 anos sem evento
predisponente;
c) História familiar de trombose (em familiares com menos de 50
anos);
d) Trombose recorrente;
e) Trombose em locais pouco comuns (retina, mesentério e cérebro);
f) Associação de trombose venosa e arterial;
g) Tromboflebite migratória;
h) Púrpura fulminante;
i) Resistência a heparina.

9.2.1 Fator V de Leiden


Trata-se de uma mutação genética que resulta na formação de fator
V mutante, resistente à inativação pela proteína C. Essa resistência é
um dos principais fatores de risco para tromboembolismo venoso
(TEV), sendo a mutação do fator V de Leiden uma das causas.
A presença da mutação aumenta o risco de doença trombótica em 3 a
10 vezes para heterozigotos e em 80 vezes para homozigotos, e é
maior quando associada a outros fatores de risco (utilização de
contraceptivos orais, gravidez, imobilização após cirurgias,
traumatismo ou doenças malignas). Essa mutação também favorece
abortos espontâneos, e descreve-se possível correlação com a
síndrome microangiopática, conhecida como síndrome HELLP.
Estima-se que, no Brasil, tal gene esteja presente em cerca de 2 a 4%
da população, e a detecção é feita por meio da pesquisa da mutação.
9.2.2 Deficiência de antitrombina
Doença autossômica dominante, em que ocorre síntese reduzida do
inibidor dos fatores IIa, Xa, XIa e IXa. Como a anticoagulação nos
pacientes acometidos de trombose é feita inicialmente pela heparina
não fracionada, caracteristicamente esses indivíduos têm maior
dificuldade de alcançar níveis de anticoagulação, visto que a ação
dessa heparina depende da antitrombina.
O diagnóstico é feito pela dosagem dos níveis da atividade de
antitrombina sérica.
9.2.3 Deficiência de proteína C
Doença autossômica dominante que pode apresentar-se sob 3
formas clínicas características, além da Trombose Venosa Profunda
(TVP):
a) Tromboflebite superficial recorrente;
b) Púrpura fulminante neonatal, que ocorre em recém-nascidos com
deficiência grave, nos primeiros dias de vida, manifestando-se como
tromboses venosa e arterial extensas e rapidamente progressivas,
culminando com coagulação intravascular disseminada (CIVD) e
falência de múltiplos órgãos, caso não seja feita a reposição do fator
deficiente;
c) Necrose cutânea induzida pela varfarina, uma necrose extensa e
rapidamente progressiva que acontece nos primeiros dias de uso da
varfarina (habitualmente, altas doses) em pacientes com deficiência de
proteína C, em razão do período transitório inicial de
hipercoagulabilidade, visto que a proteína C é dependente da vitamina
K.

O diagnóstico é feito pela pesquisa da atividade da proteína C sérica.


9.2.4 Deficiência de proteína S
Trata-se de uma doença autossômica dominante. A proteína S é uma
glicoproteína dependente da vitamina K e é cofator da proteína C.
Sintetizada por células hepáticas, endoteliais e megacariócitos,
apenas a sua forma circulante livre possui atividade anticoagulante.
Sua ação se dá pelo aumento da velocidade de inativação dos fatores
Va e VIIIa, na presença da proteína C. Fase aguda do evento
trombótico, gravidez, uso de contraceptivos orais ou agentes
varfarínicos são causas de diminuição da atividade da proteína S e
devem ser considerados na avaliação laboratorial. Sempre que
possível, a dosagem da sua forma livre deve ser solicitada na
suspeita dessa patologia.
9.3 TROMBOFILIAS ADQUIRIDAS

As principais causas de trombofilias adquiridas


incluem gestação/puerpério, cirurgias
(especialmente as ortopédicas), neoplasias
malignas e uso de anticoncepcionais
hormonais.

1. Gestação e puerpério: são os principais exemplos de trombofilia


adquirida, associados a risco de trombose 6 vezes maior em razão de
diversos fatores, como diminuição do nível sérico de proteína C, estase
sanguínea pela compressão uterina, imobilização prolongada e
obesidade;
2. Cirurgia e trauma: pode ocorrer devido à exposição de grande
quantidade de fator tecidual por lesão endotelial, imobilidade
prolongada e patologia de base. O risco trombótico é bastante
aumentado em pacientes submetidos a procedimento cirúrgico,
principalmente cirurgias ortopédica, vascular, neurológica e oncológica.
Outros fatores de risco que aumentam ainda mais o risco trombótico
nessa população são idade, evento trombótico prévio, trombofilia
hereditária, tempo cirúrgico e imobilização prolongada. Os pacientes
devem receber profilaxia antitrombótica primária no período pós-
operatório, pois, sem isso, o risco de TVP sintomática e embolia
pulmonar é bastante alto;
3. Neoplasias malignas: decorrentes da exposição de fator tecidual
em células neoplásicas, levando à formação excessiva de trombina,
manifestando-se como tromboflebite migratória (síndrome de
Trousseau), endocardite trombótica não infecciosa ou CIVD crônica;
4. Deficiência adquirida da antitrombina: decorre de consumo
(CIVD, pré-eclâmpsia e eclâmpsia), diminuição de síntese (doença
hepática) e perda urinária (síndrome nefrótica);
5. Deficiência adquirida de proteína C: em razão de consumo em
infecções graves, CIVD e pós-operatório;
6. Anemias hemolíticas: hemoglobinúria paroxística noturna
(trombose venosa, principalmente no leito hepático, ou arterial),
anemia falciforme e talassemia;
7. Hiperviscosidade: plasmática (mieloma múltiplo, Waldenström),
eritrocitária (policitemia vera), leucocitária (leucemia aguda) ou
plaquetária (trombocitemia essencial, mieloproliferação crônica);
8. Medicamentos: talidomida, L-asparaginase, bevacizumabe e
anticoncepcional oral/terapia de reposição hormonal.

9.3.1 Síndrome do anticorpo antifosfolípide


Caracterizada por fenômenos trombóticos (venosos e/ou arteriais)
e/ou morbidade gestacional na presença persistente de alguma
evidência laboratorial de anticorpos antifosfolípides, essa síndrome
pode ocorrer como uma doença primária, responsável pela maioria
dos casos (na ausência de outra patologia) ou que faz parte de outra
doença, geralmente do lúpus eritematoso sistêmico. Outras
condições associadas são neoplasia, infecções e drogas.
Os principais anticorpos antifosfolípides são anticoagulante lúpico,
anticardiolipina e antibeta-2-glicoproteína I.
O anticoagulante lúpico é uma IgM ou uma IgG autoimune que
provoca o prolongamento paradoxal do Tempo de Tromboplastina
Parcial Ativada (TTPA) in vitro e leva ao aumento do risco trombótico
e a abortos de repetição. O TTPA prolongado, que não se corrige com
a adição de plasma normal, com Tempo de Protrombina (TP) e
fibrinogênio normais, é bastante característico. O tempo de Russel,
realizado com veneno de cobra, é o teste mais específico.
Os anticorpos anticardiolipina ou antibeta-2-glicoproteína I
também podem ser IgM ou IgG e afetam diretamente a camada
fosfolípide plaquetária, levando, paradoxalmente, à plaquetopenia e
à trombose, por ativação das plaquetas e formação de
microcoágulos. Também estão associados a abortamentos de
repetição, por microtrombos placentários.
Para o diagnóstico, é necessária a presença de, pelo menos, 1 critério
clínico (trombose vascular ou morbidade gestacional) em associação
a, no mínimo, 1 critério laboratorial (presença de anticorpos
antifosfolípides em 2 ou mais ocasiões com pelo menos 12 semanas
entre estas e menos de 5 anos antes de alguma manifestação clínica).
Quadro 9.2 - Critérios diagnósticos de síndrome do anticorpo antifosfolípide

9.4 ANTICOAGULAÇÃO
9.4.1 Heparina
A heparina é comumente utilizada no tratamento de eventos
trombóticos, iniciada assim que se dá a trombose. A forma não
fracionada exige controle por meio do tempo de tromboplastina
parcial ativada (deve ficar entre 1,5 e 2,5), enquanto a forma de baixo
peso molecular não o exige. É utilizada principalmente em ambiente
hospitalar, previamente ao uso de anticoagulantes orais e em
pacientes que fazem uso de anticoagulantes orais no pré-operatório
de cirurgias.
A heparina amplia a capacidade inibitória da antitrombina. A
heparina não fracionada inibe os fatores IIa, Xa, IXa, XIa, sendo
necessário o controle do nível terapêutico por meio do TTPA (manter
entre 1,5 e 2,5 vezes o valor basal). As Heparinas de Baixo Peso
Molecular (HBPMs – enoxaparina, dalteparina, tinzaparina,
nadroparina) inibem apenas os fatores IXa, Xa e XIa, não
necessitando do controle com o TTPA. A heparina deve ser iniciada
imediatamente diante de episódio agudo de trombose. Sugere-se
uma forma dessa droga (não fracionada ou de baixo peso molecular)
nos primeiros 2 a 5 dias, podendo-se iniciar o anticoagulante oral
(cumarínico ou anticoagulantes orais diretos) concomitantemente, e
retirando-se a heparina após ação evidente da droga oral. No caso
dos cumarínicos, é pelo prolongamento de TP, com INR (razão
normatizada internacional) acima de 2, por pelo menos 2 dias
consecutivos.
As principais complicações são sangramento e Trombocitopenia
Induzida pela Heparina (TIH). Em casos de sangramento, está
indicada a interrupção do tratamento até ser resolvida a causa; e, em
casos de sangramentos graves, pode-se utilizar a protamina, o
antídoto da heparina.
A TIH acontece em 2 a 5% dos pacientes que recebem heparina, é
imunologicamente mediada e inicia-se entre o quarto e o décimo dia
de uso, sendo mais associada à heparina não fracionada quando
comparada à ocorrência após o uso de HBPM.
A TIH está relacionada a potencial risco de vida, com possíveis
complicações tromboembólicas, sendo os mais frequentes os
tromboembolismos venosos, especialmente nos membros
inferiores, e a embolia pulmonar. As complicações arteriais
geralmente envolvem as grandes artérias dos membros inferiores,
levando à isquemia aguda das extremidades.
Diante da suspeita de TIH (diminuição de pelo menos 50% da
contagem plaquetária basal do paciente, sem justificativa), é
obrigatória a suspensão imediata da heparina. A contagem de
plaquetas geralmente se normaliza após 7 a 10 dias da interrupção.
Entretanto, só a sua suspensão não é suficiente, devendo ser
instituída nova anticoagulação, pelo alto risco trombótico, até que a
contagem plaquetária se normalize.
A HBPM não é recomendada como alternativa para anticoagulação
na TIH, por apresentar reatividade cruzada in vitro com os
anticorpos formados em mais de 90% dos casos. Anticoagulantes
orais também não devem ser usados como substitutos da heparina:
apresentam lento início de ação e promovem queda dos níveis de
proteína C que, associada ao aumento na geração de trombina já
existente nesses pacientes, coloca-os em risco maior de
complicações tromboembólicas. Seu uso tem sido associado à
gangrena venosa de extremidades. A terapia com anticoagulante oral
deve ser postergada até que a trombocitopenia seja resolvida. A
alternativa ideal para anticoagulação deve incluir uma droga que
reduza a síntese/ação de trombina. Entre essas drogas estão os
inibidores diretos da trombina, a hirudina, argatrobana ou
bivalirudina ou um inibidor indireto da trombina, como o
danaparoide. Fondaparinux (inibidor do fator Xa) é uma alternativa.
Quadro 9.3 - Meia-vida, dose convencional e dose corrigida das principais heparinas

9.4.2 Cumarínicos
Foram a primeira classe de drogas utilizadas para a anticoagulação
em longo prazo nos pacientes com TEV. O principal medicamento
dessa classe é a varfarina (Marevan® e Coumadin®). Tais drogas
agem no fígado, inibindo os fatores de coagulação dependentes da
vitamina K (fatores II, VII, IX, X, proteínas C e S).
No tratamento do TEV, a varfarina deve ser iniciada no primeiro dia
de tratamento, concomitantemente ao começo da heparinização,
após se obterem os valores basais de TP (INR) e TTPA. Nas primeiras
48 horas de uso, o cumarínico pode ter efeito pró-coagulante,
piorando a trombose. Por esse motivo, no início de seu uso, deve ser
associado o uso de heparina. A dose atualmente preconizada é de 1
comprimido de 5 mg, 1x/d, em jejum, com controle periódico do INR
nos primeiros dias de tratamento para ajuste da dosagem.
Quadro 9.4 - Tratamento da anticoagulação excessiva com cumarínicos

São inúmeros os fatores que interferem na dose ideal de varfarina


para cada paciente: genéticos (alguns pacientes metabolizam muito
lentamente os anticoagulantes orais, necessitando de doses
extremamente baixas), alimentação (alimentos que contenham
vitamina K) e diversos medicamentos (alteram o metabolismo da
vitamina K e do anticoagulante oral). Há uma vasta lista de
medicações que interagem com a varfarina, como anti-
inflamatórios não esteroides, antibióticos da classe das quinolonas,
macrolídeos e cefalosporinas, alopurinol, estatinas e diversos
antidepressivos. Da mesma maneira, diversos alimentos aumentam
a ação dos cumarínicos, principalmente os vegetais verde-escuros. É
imprescindível checar a interação medicamentosa dos fármacos de
uso do paciente ao prescrever cumarínicos.
Devido à extensa interação medicamentosa e necessidade de
monitoração constante do INR, seu uso tem sido reduzido e
substituído pelos novos anticoagulantes orais.
9.4.3 Anticoagulantes orais diretos
Novos anticoagulantes estão sendo utilizados no tratamento do TEV.
Conhecidos pela sigla DOAC (direct oral anticoagulants), apresentam
como vantagem sobre os cumarínicos o fato de não necessitarem de
monitorização laboratorial do INR e vantagem sobre as HBPMs pela
administração ser oral. Como principal desvantagem, não
apresentam antídoto específico para os casos de sangramento.
A falta de correlação com métodos laboratoriais de rotina (TP, TTPA,
TT) dificulta a quantificação do efeito anticoagulante dos novos
agentes. Apesar da comodidade de não requerer monitorização, o
uso de provas de coagulação que correlacionem com a atividade (e
nível sérico) das novas drogas é desejável em situações de
complicações hemorrágicas, pré e pós-operatórias.
São exemplos de novos anticoagulantes orais: rivaroxabana;
apixabana; edoxabana; dabigatrana.
O fondaparinux é um novo anticoagulante, mas não é classificado
como DOAC por ser de administração subcutânea.
As principais características dos novos anticoagulantes orais,
indicações e antídotos são mostrados no Quadro 9.5.
Quadro 9.5 - Diferenças entre os principais anticoagulantes

1 Indicações clínicas aprovadas da droga, não necessariamente no Brasil.

Legenda: Acidente Vascular Cerebral (AVC); Fibrilação Atrial (FA).

Quadro 9.6 - Manejo do sangramento com novos anticoagulantes orais


1 Preferencialmente para rivaroxabana e apixabana.

2 Preferencialmente para dabigatrana.

A Figura 9.2 mostra o mecanismo de ação dos novos anticoagulantes


orais na cascata da coagulação.
Figura 9.2 - Cascata da coagulação e mecanismo de ação dos novos anticoagulantes orais
Fonte: elaborado pelos autores.
Como diagnosticar o
paciente com trombofilia?
Como realizar sua
anticoagulação?
No diagnóstico do paciente com trombofilia, é importante
solicitar o fator V de Leiden, proteína C, proteína S e
antitrombina.
Quando pensar no
diagnóstico de leucemia
aguda?

11.1 DEFINIÇÃO E EPIDEMIOLOGIA


As leucemias agudas formam um grupo heterogêneo de doenças que
apresentam a proliferação de um clone maligno originado da stem
cell hematopoética, com a produção de células imaturas que
perderam a capacidade de diferenciação, chamadas blastos. Esses
blastos infiltram a medula óssea e, progressivamente, o sangue
periférico, ocasionando redução na produção de células sanguíneas
normais. A perda da função normal da medula óssea leva às
complicações das leucemias agudas: infecções, sangramento e
anemia. Se a proliferação clonal for de precursor mieloide, que
origina granulócitos, eosinófilos, basófilos, monócitos, hemácias e
plaquetas, a doença será chamada Leucemia Mieloide Aguda (LMA);
caso os blastos tenham origem em precursor linfoide, que resultam
em linfócitos B, T, células NK e plasmócitos, é denominada
Leucemia Linfoide Aguda (LLA). Ambas são fatais e rapidamente
progressivas, se não instituída terapêutica imediata, portanto, em
caso de suspeita, o hematologista deve ser consultado
imediatamente.
A incidência anual de novos casos é de cerca de 8 a 10 por 10.000
habitantes, representando cerca de 3% dos cânceres na população
em geral.
A LLA é o câncer mais comum na infância, sendo de 20 a 30% dos
casos de neoplasia e 75 a 80% dos casos de leucemia, incidindo
principalmente na faixa etária de 2 a 10 anos, com excelente
prognóstico, alcançando 80% de índice de cura. No adulto, essa
neoplasia incide à taxa de 20%, com prognóstico mais reservado,
alcançando sobrevida em 5 anos de 50%.
A LMA, por sua vez, representa somente cerca de 10% das leucemias
em crianças menores de 10 anos e 80% em adultos, aumentando
gradativamente a incidência de acordo com a idade – metade dos
casos acontece em pacientes com menos de 50 anos.
11.2 PATOGÊNESE
A maioria das leucemias agudas acontece “de novo”, ou seja, em
consequência da mutação genética de um precursor hematopoético
sem motivo aparente, resultando em proliferação maligna (sem
controle) da célula anômala. Entre as alterações genéticas envolvidas
nesse processo, podem-se citar mutação em oncogene e perda de
gene supressor tumoral, com alteração de processos regulatórios do
controle e da diferenciação celular (Figura 11.1).
Essas células perdem a capacidade de diferenciação celular,
produzindo um número elevado de células imaturas (“blastos”) na
medula óssea, que vão para o sangue periférico e podem infiltrar
outros órgãos (sistema reticuloendotelial, Sistema Nervoso Central
– SNC – e outros tecidos).
Figura 11.1 - Genética das leucemias
A Célula-Tronco Hematopoética (CTH) origina, por meio de diversos
estímulos, o progenitor mieloide; tanto este quanto a própria CTH,
porém, podem sofrer mutações em seu material genético, ativando
oncogene antes silencioso. Dessa forma, existe parada de maturação
das células, que não mais produzem células maduras, como o
granulócito, aumentando somente as formas imaturas (blastos),
resultando na LMA. Para a LLA, o raciocínio é o mesmo, porém com
células progenitoras linfoides.
No entanto, sabe-se que alguns fatores genéticos e ambientais estão
associados à “predisposição” ao aparecimento dessas neoplasias,
principalmente:
1. Genéticos: anemia de Fanconi e síndromes de Down (trissomia
21), Patau (trissomia 13) e Klinefelter (XXY);
2. Ambientais: exposição a agentes potencialmente mutagênicos,
como radiação, derivados de benzeno, solventes orgânicos, agentes
alquilantes e epipodofilotoxinas (para o tratamento de outras
neoplasias, como etoposídeo e teniposídeo);
3. Doenças adquiridas: mielodisplasia, doenças mieloproliferativas
crônicas, hemoglobinúria paroxística noturna e anemia aplástica.
11.3 CLASSIFICAÇÃO
A distinção das linhagens celulares mieloide e linfoide pode ser feita
por diferentes métodos: morfológico, citoquímico, imunofenotípico,
citogenético e molecular.
11.4 LEUCEMIA MIELOIDE AGUDA
11.4.1 Morfologia celular
Blastos mieloides apresentam, em grande parte dos casos,
citoplasma claro, abundante e frequentemente granular. Os
grânulos, quando agrupados, formam os chamados bastonetes de
Auer, e sua presença é patognomônica de leucemia mieloide aguda.
11.4.2 Citoquímica
Os blastos positivos para os métodos de Sudan Black B (SBB) e
mieloperoxidase (MPO) são característicos da linhagem mieloide.
11.4.3 Imunofenotipagem
A imunofenotipagem é um método mais preciso do que a
citoquímica e foi incorporado ao diagnóstico, à classificação, ao
prognóstico e, em alguns casos, à monitorização das leucemias
agudas.
A citometria de fluxo é um método que utiliza anticorpos
monoclonais fluorescentes para analisar padrões de expressão de
antígenos (Cluster of Di erentiation – CD) em populações celulares
específicas. Existe um tipo de anticorpo monoclonal para cada tipo
de CD; caso haja ligação CD versus anticorpo, pela capacidade
fluorescente deste, há a emissão de luz registrada por um aparelho
especial, o citômetro, o qual traduz esses sinais em gráficos. Da
avaliação desses gráficos, ou seja, da positividade ou negatividade
dos diferentes CDs, surge o diagnóstico específico da linhagem
acometida.
11.4.4 Citogenética
Leucemias são doenças que apresentam alterações cromossômicas
numéricas e/ou estruturais frequentes e, muitas vezes, específicas
de determinados subtipos, envolvendo genes que, uma vez alterados
qualitativa ou quantitativamente, atuam como fatores de iniciação e
progressão neoplásicas. Anormalidades cromossômicas
caracterizadas por translocações balanceadas e por perda e ganho de
cromossomos são encontradas em mais de 65% dos casos.
A avaliação pode ser feita pelo cariótipo convencional ou pelo
método FISH (hibridização fluorescente in situ), e a aplicação clínica
é de contribuição diagnóstica e prognóstica, já utilizada desde a
classificação MIC para LMA: Morfológica, Imunofenotípica e
Citogenética.
Na estratificação prognóstica, os achados no estudo citogenético são
divididos em cariótipos favorável, intermediário e desfavorável
(Quadro 11.1).
Como regra geral, as translocações apresentam bom prognóstico,
enquanto as deleções e inversões (salvo se inversão 16) são de mau
prognóstico.
Quadro 11.1 - Estratificação de risco dos achados
11.4.5 Pesquisa genética molecular

A pesquisa genética molecular é feita por meio


de PCR e tem sua importância no diagnóstico e
no prognóstico do paciente, uma vez que pode
ser utilizada para acompanhamento da resposta
terapêutica.

Recentemente, têm sido estudadas algumas mutações ou expressões


gênicas com importância prognóstica, o que teve vital importância,
em especial nos pacientes com cariótipo normal. Observa-se que,
neste grupo, alguns evoluem de forma melhor, com maior resposta à
quimioterapia e sem recidiva de doença, do que outros. Foram,
assim, detectadas por meio de pesquisa molecular mutações de mau
e bom prognósticos, justificando as diversas respostas desse grupo.
As alterações moleculares são muito importantes na classificação do
prognóstico da leucemia mieloide aguda. Com base nelas, planeja-se
o tratamento quimioterápico e avalia-se a indicação de transplante
de medula óssea.
As mutações consideradas de mau prognóstico são FLT3 e c-Kit, e as
de bom prognóstico são NPM1 e CEBPA.
11.4.6 Classificação da leucemia mieloide aguda
Encontram-se, em grande parte das LMAs, características
morfológicas sugestivas da linhagem afetada, por exemplo, células
de aspecto monocitoide nas leucemias mielomonocíticas ou
promielócitos anômalos na Leucemia Promielocítica Aguda (LPA).
Assim, de acordo com a classificação FAB (Franco-Americana-
Britânica), usam-se critérios morfológicos para classificar a LMA em
M0 a M7. Essa classificação vem sendo cada vez menos utilizada na
prática clínica. Em 2008, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
reformulou os critérios e a nomenclatura da classificação da LMA,
levando em conta, em especial, a alteração genética encontrada e a
origem da leucemia, sendo a classificação de escolha.
O Quadro 11.2 mostra a classificação da OMS e a classificação
correspondente da FAB.
Na classificação FAB, as LMAs ditas “do meio”
são de bom prognóstico (M2, M3 e M4); as
demais são de mau prognóstico. E deve-se dar
atenção especial à LMA M3, de características e
tratamento diferentes das demais.
Quadro 11.2 - Classificação das leucemias agudas – Organização Mundial da Saúde
(2008) e classificação Franco-Americana-Britânica
11.4.7 Manifestações clínicas
O quadro clínico das leucemias agudas é secundário à falência
medular e à infiltração orgânica pelos blastos. As manifestações
clínicas da leucemia mieloide aguda são decorrentes da anemia,
neutropenia e plaquetopenia e envolvem palidez cutânea, astenia,
dispneia aos esforços, infecções oportunistas e sangramentos que se
manifestam por meio de petéquias, equimoses e hematomas,
podendo ocorrer hemorragias mais graves. Raramente, na leucemia
mieloide aguda, há infiltração linfonodal ou hepatoesplenomegalia.
Quando presentes, a primeira suspeita diagnóstica é a leucemia da
série monocítica, após descartar leucemia linfoide aguda.
As leucemias apresentam, inicialmente, sintomas e sinais
inespecíficos, que podem simular o quadro clínico de muitas
patologias: artrite reumatoide juvenil, febre reumática, lúpus
eritematoso sistêmico, púrpura trombocitopênica idiopática, aplasia
medular e mononucleose infecciosa, entre outras.
A ocupação medular pelos blastos leva à deficiência de produção de
elementos normais do sangue, ocasionando anemia, neutropenia e
plaquetopenia graves. Os sintomas principais são decorrentes das
alterações hematológicas:
1. Anemia: astenia, dispneia aos esforços, palidez cutânea e
taquicardia, podendo chegar a cor anêmico;
2. Leucopenia e neutropenia: febre e infecções oportunistas, como
candidíase e micoses profundas (pela neutropenia severa e
prolongada). É muito rara a manifestação de febre como sinal da
própria leucemia, portanto, quando presente, deve ser investigada e
tratada como secundária à infecção; o termo neutropenia febril é
utilizado para definir a presença de febre, com temperatura oral >
38,3 °C (ou temperatura axilar > 37,8 °C), ou persistência de
temperatura entre 38 e 38,3 °C por mais de 1 hora. Já a neutropenia é
definida por contagem de neutrófilos < 500/mm3 ou entre 500 e
1.000/mm3 e com tendência à queda;
3. Sangramentos: desde petéquias, equimoses e hematomas,
passando por sangramentos de mucosas, até hemorragias cranianas
ou pulmonares (pela plaquetopenia severa);
4. Leucostase: grandes contagens de leucócitos no sangue periférico,
geralmente acima de 100.000/mm3, estão associadas ao aumento da
viscosidade sanguínea e à síndrome de leucostase (caracterizada por
lentificação e obstrução da microcirculação pelos blastos circulantes,
em geral, maior do que 100.000/mm3), que podem levar à
insuficiência respiratória, alterações neurológicas graves, evoluindo,
muitas vezes, para o coma ou o sangramento cerebral, priapismo e
fenômenos trombóticos. O mecanismo ainda não é bem
compreendido, pois se evidencia falha na capacidade de reduzir os
efeitos da leucostase apenas por meio da remoção mecânica das
células (leucoaférese), e há casos em que se instala a síndrome com
contagens não tão elevadas de leucócitos. O tamanho, a
deformabilidade e os receptores celulares, além da capacidade de
liberação de citocinas pelas células neoplásicas, parecem estar
relacionados ao quadro;
5. Infiltração extramedular: a infiltração extramedular por blastos é
conhecida como cloroma ou sarcoma granulocítico. Os sítios mais
comuns são pele (leukemia cutis) e mucosa (hiperplasia gengival),
mais frequentes na LMA de linhagem monocítica. O cloroma (mais
comum no subtipo M2) pode aparecer virtualmente em qualquer
tecido e é também descrito atrás dos olhos e na meninge
(particularmente relacionado à LMA promielocítica), epidural,
ovário, intestino e mediastino. É pouco comum o seu aparecimento
sem a detecção da doença medular, mas é possível (daí a
classificação da OMS separadamente de sarcoma mieloide), e o
tratamento é igual.
Dor óssea, principalmente no esterno e em ossos longos, é pouco
comum entre adultos com LMA e corresponde à expansão leucêmica
na cavidade medular.
Figura 11.2 - Hiperplasia gengival por infiltração leucêmica na leucemia mieloide aguda M5
Fonte: Gingival Hyperplasia as an Early Diagnostic Oral Manifestation in Acute Monocytic
Leukemia: A Case Report, 2007.

Figura 11.3 - Leukemia cutis


Figura 11.4 - Cloroma retro-orbitário

Fonte: Sarcoma granulocítico em órbita: relato de caso, 2005.

11.4.7.1 Leucemia promielocítica aguda ou LMA M3

De acordo com a classificação FAB, a LPA ou LMA M3 representa de


10 a 15% das LMAs. Pela classificação da OMS, é conhecida como
LMA t(15;17) com a fusão gênica PML/RARa. É uma variante clínica e
biológica distinta das LMAs. Esse tipo de leucemia apresenta
morfologia celular característica, com promielócitos anormais,
núcleo excêntrico e abundantes granulações no citoplasma.
Caracteriza-se também pela presença de múltiplos bastonetes de
Auer no citoplasma, formando feixes, conferindo a essas células a
denominação de faggot cells (células com maços ou feixes – Figura
11.5).
Os indivíduos com LPA apresentavam alta taxa de mortalidade
devido à coagulopatia que lhe é característica, sendo, por isso, uma
emergência médica. Tal complicação é consequente à liberação de
substâncias fibrinolíticas pelos grânulos dos promielócitos, que
resulta em quadro de coagulação intravascular disseminada (CIVD).
Os pacientes beneficiam-se do uso do ácido transretinoico (ATRA),
que leva à maturação dos blastos por ação direta no ponto de
bloqueio induzido pela translocação, com diminuição dos
promielócitos anômalos e consequente melhora da coagulopatia. O
uso do ATRA levou a LMA t(15;17) a ser um dos subtipos mais
curáveis, devendo esse medicamento ser iniciado prontamente após
a suspeita diagnóstica.
Nas raras situações de LPA em que não se observa tal translocação
(15;17) ou seu equivalente molecular, o rearranjo PML/RARa, pode
haver translocações variantes, como t(5;17), t(11;17) ou outras que
também respondem ao ATRA, exceto a t(11;17)(q23;q22).
Figura 11.5 - Promielócitos anômalos e faggot cells de leucemia promielocítica aguda
11.5 LEUCEMIA LINFOIDE AGUDA
11.5.1 Morfologia celular
Os blastos de linhagem linfoide geralmente são de dimensões
menores do que os mieloides e apresentam, em sua maior parte,
citoplasma basófilo e sem granulações. Podem ser monomórficos ou
pleomórficos e não apresentam grânulos ou bastonetes de Auer. A
classificação morfológica das LLAs da FAB em L1, L2 e L3, muito
utilizada anteriormente, é pouco específica e não fornece dados
precisos sobre o subtipo leucêmico e os índices prognósticos. Deve-
se destacar morfologia para a LLA L3, atualmente conhecida como
LLA Burkitt, que tem vacúolos citoplasmáticos bastante
característicos e prognóstico reservado (Figura 11.6).
Quadro 11.3 - Classificação Franco-Americana-Britânica de leucemia linfoide aguda
Figura 11.6 - Leucemias linfoides agudas
Legenda: (A) L1; (B) L3.
Fonte: Leucemia linfoide aguda e seus principais conceitos, 2017.

11.5.2 Citoquímica
Nas LMAs, o advento da citoquímica, por meio de colorações capazes
de aproveitar a atividade enzimática celular, possibilita diferenciar
as LMAs das LLAs (com exceção da LMA M0 e, algumas vezes, da
M1). Os blastos linfoides são positivos para o ácido periódico de
Schi (PAS) e negativos para MPO e Sudan Black.
11.5.3 Imunofenotipagem
A determinação do CD na LLA é fundamental para:
a) Diferenciar a linhagem linfocitária B da T;
b) Determinar o ponto de parada de maturação do linfócito neoplásico;
c) Diferenciar da linhagem mieloide, principalmente nos casos de LMA
M0 e M1 e, algumas vezes, LMA M6 e M7;
d) Determinar prognósticos e auxiliar a indicação da terapêutica.

Quadro 11.4 - Perfil imunofenotípico das leucemias linfoides B

Quadro 11.5 - Perfil imunofenotípico das leucemias linfoides T


11.5.4 Citogenética
Na LLA, anormalidades citogenéticas são encontradas em cerca de
60 a 85% dos casos; algumas delas apresentam implicações
prognósticas importantes. Em 30% dos casos das LLAs nos adultos,
encontra-se a translocação entre os cromossomos 9 e 22, formando
o cromossomo Filadélfia (o mesmo da LMC), conferindo mau
prognóstico a esse tipo de LLA.
Quadro 11.6 - Anormalidades citogenéticas e implicação prognóstica

De forma semelhante às LMAs, a OMS organizou, também em 2008,


a classificação das LLAs, mais uma vez levando em extrema
consideração as alterações cariotípicas dessa doença:
a) Leucemia/linfoma linfoblástico B com anormalidades citogenéticas
recorrentes:
Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(9;22); BCR-ABL1;
Leucemia/linfoma linfoblástico com t(v;11q23); rearranjo MLL;
Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(12;21); TEL-AML1;
Leucemia/linfoma linfoblástico B com hiper/hipodiploidia;
Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(5;14); IL3-IGH;
Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(1;19); E2A-PBX1.
b) Leucemia/linfoma linfoblástico B não especificado;
c) Leucemia/linfoma linfoblástico T.

11.5.5 Pesquisa genética molecular


A pesquisa genética molecular visa identificar a presença do
cromossomo Filadélfia (translocação entre os cromossomos 9 e 22).
A principal pesquisa molecular nas LLAs é da fusão gênica BCR-ABL,
correspondente à alteração cromossômica da t(9;22), que, algumas
vezes, pode não ser detectada pelo método de cariótipo comum. A
PCR e a RT-PCR são métodos mais sensíveis e, inclusive, utilizados
para o seguimento da resposta terapêutica. Pacientes com essa
alteração constituem um grupo distinto no tratamento das LLAs.
11.5.6 Quadro clínico
Além do quadro clínico decorrente das citopenias (anemia,
plaquetopenia e neutropenia), com fadiga, sangramentos e infecção,
não é rara a ocorrência de sintomas B. Sintomas B são definidos
como febre (temperatura > 38 °C), emagrecimento (perda de > 10%
do peso corpóreo em 6 meses) e sudorese noturna.
Adenomegalia e hepatoesplenomegalia podem ser vistas em 50%
dos pacientes ao diagnóstico. Os locais extranodais mais acometidos
na leucemia linfoide aguda são o sistema nervoso central e o
testículo. O envolvimento do SNC é comum e pode ser acompanhado
por sintomas de neuropatia de par craniano, hipertensão
intracraniana, crise convulsiva e sintomas meníngeos.
A LLA T é mais comum na infância tardia, nos adolescentes e nos
adultos jovens. Além dos sintomas já citados, particularmente
apresentam-se adenomegalias cervical, supraclavicular e axilar,
inclusive com massa mediastinal em 50 a 75% dos casos, cuja
manifestação clínica é tosse seca (Figura 11.7). Como complicação
desse quadro, é possível haver derrame pleural, derrame pericárdico
(com ou sem tamponamento), obstrução traqueal ou compressão da
veia cava superior.
O SNC e os testículos, pela presença das barreiras hematoencefálica e
hematotesticular, respectivamente, são considerados “santuários”,
em que a quimioterapia tem mais dificuldade para infiltração,
tornando esses locais possíveis fontes de recidiva, se não tratados
adequadamente. A presença de infiltração meníngea ou testicular
sugere uma doença mais agressiva.
Figura 11.7 - Massa mediastinal anterior na leucemia linfoide aguda T

Legenda: (A) à radiografia; (B) à tomografia computadorizada.

11.5.7 Leucemia linfoide aguda na infância


O pico de incidência está entre os 2 e os 5 anos, com predomínio no
sexo masculino.
Na manifestação clínica, além dos sintomas inespecíficos de astenia,
inapetência, febre e sangramento cutâneo-mucoso, destaca-se a dor
óssea, particularmente em ossos longos, como consequência da
infiltração leucêmica do periósteo, da metáfise e da região articular
ou, ainda, de osteonecrose asséptica por células leucêmicas.
Acomete de 20 a 30% das crianças, e, em metade dos casos, é
possível encontrar imagem radiológica: tarja leucêmica (imagem
radiotranslúcida na região metafisária), periostite, osteólise e
osteoporose. É importante salientar que a tarja leucêmica não é
patognomônica da leucemia aguda e que, em casos bastante
precoces (raro), o hemograma pode ser normal, com manifestação
exclusiva de dor osteomuscular. Trata-se de diagnóstico diferencial
importante da artrite reumatoide e da febre reumática.
Toda criança com dor osteomuscular e
alteração no hemograma deve ser avaliada
quanto à possibilidade de leucemia aguda.

11.5.7.1 Diagnóstico

O diagnóstico das leucemias agudas é feito por meio da detecção de


mais de 20% de blastos na medula óssea, pelos novos critérios da
OMS (em detrimento da já antiquada classificação FAB, que
considerava como ponto de corte 30% de blastos). O exame que
possibilita esse diagnóstico é o mielograma. Para “medulas secas”,
em que a aspiração de sangue medular durante o mielograma não é
produtiva (dry tap), a infiltração deve ser confirmada pela análise
histológica do tecido (biópsia de medula óssea). Esses casos têm
como diagnóstico diferencial as aplasias medulares e a mielofibrose.
O diagnóstico também pode ser feito pela avaliação do hemograma,
com número de blastos maior do que 20% da contagem diferencial
de leucócitos.
Para a definição da linhagem acometida e do subtipo de leucemia,
utiliza-se de imunofenotipagem, citogenética e pesquisa molecular,
conforme explicado nos itens anteriores. Atualmente, para o correto
diagnóstico e o manejo terapêutico das leucemias agudas, são
imprescindíveis mielograma ou biópsia de medula óssea,
imunofenotipagem e cariótipo (ao menos, pelo método
convencional).
Outras alterações laboratoriais frequentemente encontradas são:
1. Hemograma:
a) Citopenias, como plaquetopenia, anemia e leucopenia;
b) Leucocitose, à custa de blastos, promielócitos anômalos ou
monócitos;
c) Eritroblastose (rara).

2. Bioquímica:
a) Hiperuricemia, acidose metabólica, hiperpotassemia ou
hipopotassemia, hipocalcemia, hiperfosfatemia, aumento de ureia e
creatinina, elevação de enzimas hepáticas, DHL aumentada
(principalmente nas LLAs);
b) Particularmente na LMA promielocítica (M3): alargamento de Tempo
de Protrombina (TP) e Tempo de Tromboplastina Parcial Ativada
(TTPA) e diminuição do fibrinogênio;
c) Hematúria, cilindrúria, pH ácido, cristais de urato.

São necessários, em alguns casos, outros exames complementares, a


depender dos sintomas, com o intuito de avaliar o
comprometimento de outros órgãos e sistemas. Exames de imagem,
a depender da suspeita clínica, liquor com pesquisa de células
neoplásicas em todas as LLAs e nas LMAs que apresentam sintomas
no SNC, avaliação de fundo de olho nas suspeitas de leucostase,
biópsia testicular para avaliação de infiltração em testículo.
11.6 PROGNÓSTICO E EVOLUÇÃO
Como em todas as neoplasias, as LMAs e as LLAs apresentam fatores
prognósticos que contribuem para a decisão de terapêutica mais ou
menos agressiva e para a distinção daqueles que terão maior chance
de resposta completa, sustentada ou não.
As leucemias de melhor prognóstico são a LMA promielocítica com
t(15;17) e as LLAs na infância.
Quadro 11.7 - Fatores prognósticos das leucemias mieloides agudas

1 Sem patologia prévia que predispõe à leucemia.


2 Proteína de resistência a multidrogas, que confere maior resistência aos quimioterápicos.
3 Existe previamente alguma patologia que predispõe à leucemia, como SMD,
mieloproliferação crônica ou tratamento com quimioterapia/radioterapia.

A idade e o performance status são os melhores preditores de


mortalidade, enquanto os demais fatores são preditores de doença
refratária ou recidiva precoce.
Figura 11.8 - Performance status ECOG
São fatores prognósticos desfavoráveis na leucemia linfoide aguda
em adultos:
a) Idade > 30 anos;
b) > 30.000 leucócitos na LLA B;
c) Tempo para alcançar remissão completa > 4 semanas;
d) Imunofenótipo pró-B, T precoce e T madura;
e) t(9;22); t(4;11).

Quanto maior o número de fatores desfavoráveis na LLA, pior a


sobrevida em 3 anos, variando entre 21 e 91%.
A taxa de remissão completa e a sobrevida livre da doença em 5 anos
dependem do tipo e do subtipo da leucemia e dos fatores
prognósticos, sendo as leucemias de melhor prognóstico a LMA
promielocítica com t(15;17) e as LLAs na infância.
11.7 TRATAMENTO
O tratamento das leucemias pode ser feito de forma específica, por
meio de poliquimioterapia, seguindo as etapas de indução da
remissão, pós-remissão (intensificação/consolidação) e
manutenção, ou de forma inespecífica, na qual se devem fazer
hidratação vigorosa, prescrição de alopurinol, controle diário de
hemograma, eletrólitos, TP, TTPA e fibrinogênio.
11.7.1 Específico
É feito por meio de esquemas de poliquimioterapia, diferentes para
cada tipo de leucemia. Para a escolha do tratamento adequado, é
importante o diagnóstico do tipo e do subtipo da leucemia e da
estratificação de risco por intermédio dos fatores prognósticos. Com
isso, os pacientes de baixo risco são preservados dos efeitos tóxicos
da quimioterapia e há a tendência a ser mais agressivo na tentativa
de obter maior êxito naqueles de alto risco.
Vale lembrar o importante papel do ATRA, especificamente no
subtipo M3/promielocítico, transformando uma das leucemias de
maior mortalidade na leucemia de melhor prognóstico atualmente.
A radioterapia está indicada a situações específicas, não sendo
amplamente utilizada.
O Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas (TCTH) alogênico
nas leucemias agudas, de um modo geral, apresenta as seguintes
indicações: pacientes cuja doença se caracteriza por alto risco assim
que entram em remissão; pacientes de qualquer risco diante da
recidiva ou refratariedade da doença; e, finalmente, pacientes com
LMA secundária. Por sua vez, o TCTH autólogo pode, ainda, ser
utilizado na LMA de baixo risco ou na LMA de risco intermediário ou
alto na ausência de doador compatível para realização de
procedimento alogênico. Já na LLA, o TCTH autólogo encontra-se
em desuso, pois essa modalidade de transplante apresentou
resultados inferiores aos da quimioterapia isoladamente.
11.7.2 Inespecífico
A profilaxia e o tratamento das infecções são fundamentais para a
sobrevivência, visto que a imunossupressão é muito severa e
prolongada, tanto pela doença quanto pelo tratamento.
Outras medidas são a hidratação vigorosa durante a quimioterapia e
o uso de medicações para evitar a síndrome de lise tumoral
(alopurinol ou rasburicase).
11.8 COMPLICAÇÕES CLÍNICAS
11.8.1 Hiperleucocitose e leucostase
Pacientes com leucemia aguda podem apresentar o quadro inicial
com contagens muito elevadas de leucócitos no sangue periférico, o
que caracteriza a chamada hiperleucocitose (> 100.000
leucócitos/mm3). No adulto, a hiperleucocitose pode ocorrer em 10 a
30% das LLAs e em 5 a 20% das LMAs. É mais comum entre crianças
e em certas variantes das leucemias agudas (por exemplo: M3, M4,
M5 e LLA T). Também é muito frequente hiperleucocitose em
leucemias crônicas indolentes, como a Leucemia Mieloide Crônica
(LMC) e a Leucemia Linfoide Crônica (LLC).
Entre os pacientes com hiperleucocitose, alguns podem manifestar
uma síndrome chamada leucostase, em que há lentificação e
obstrução da microcirculação pelos blastos circulantes. A
viscosidade na hiperleucocitose aumenta principalmente em
situações de baixo fluxo sanguíneo, daí o predomínio de
manifestações em território microvascular. A leucostase está, em
geral, associada a contagens elevadas de blastos, sendo mais comum
nas leucemias agudas e incomum nas leucemias crônicas, como a
LLC. Em geral, tem-se leucostase com > 100.000 blastos/mm3 nas
LMAs e > 300.000 blastos/mm3 nas LLAs, porém já foram descritos
casos com < 50.000 blastos/mm3, apontando que outros fatores,
como possível interação do blasto com a célula endotelial, devem ter
seus papéis na patogênese dessa condição.
A leucostase apresenta sintomas predominantemente nos territórios
pulmonar e cerebral, sendo insuficiência respiratória e hemorragia
intracerebral as principais causas de morte. No entanto, qualquer
órgão pode ser afetado pela contagem excessiva de blastos. A
suspeita diagnóstica de leucostase deve ser feita em indivíduos com
quadro neurológico ou pulmonar que apresentam contagens
elevadas de blastos no sangue periférico.
Quadro 11.8 - Sintomas da síndrome de leucostase

Deve-se fazer avaliação laboratorial com hemograma, funções renal


e hepática, eletrólitos e coagulograma.
O exame de fundo de olho pode ser muito útil, assim como em todas
as síndromes de hiperviscosidade, demonstrando dilatação e
tortuosidade de veias retinianas, hemorragias retinianas,
papiledema etc.
A leucostase é uma emergência médica e deve ser tratada como tal. A
mortalidade pode ser muito alta, chegando a 34 a 40% em 1 semana
em algumas séries de casos, devendo a terapêutica ser iniciada
prontamente em caso de suspeita clínica.
O tratamento da leucostase envolve leucoaférese (medida de efeito
mais imediato), uso de hidroxiureia e quimioterapia. O tratamento
de suporte envolve hidratação vigorosa, uso de alopurinol para evitar
síndrome de lise tumoral e transfusão de hemoderivados, caso
necessário.
11.8.2 Síndrome do ácido transretinoico
A síndrome ATRA (ácido transretinoico) é uma complicação
possivelmente fatal, causada pela liberação de citocinas pelos
promielócitos. Tem ocorrência bimodal, podendo surgir logo na
primeira semana após o início do tratamento, ou entre a terceira e a
quarta semana, acometendo cerca de 25% dos pacientes submetidos
à terapia. Os achados mais comuns são dispneia, infiltrado
pulmonar, edema periférico, febre inexplicada e hipotensão; casos
graves podem cursar com hipoxemia, disfunção hepática e renal,
edema cerebral e serosites (derrame pericárdico e pleural). O
tratamento baseia-se na corticoterapia com dexametasona, 10 mg,
2x/d, por pelo menos 3 dias, ou até o desaparecimento dos sintomas.
A suspeita precoce da síndrome é fundamental para que seja iniciado
o tratamento, visto que a mortalidade pode chegar a mais de 30% em
pacientes com insuficiência respiratória e edema cerebral.
Quando pensar no
diagnóstico de leucemia
aguda?
Principalmente em pacientes jovens (crianças ou adultos
jovens), com leucocitose de grande monta (linfocitose ou
neutrofilia), associado a blastos no sangue periférico,
podendo estar associado a anemia e plaquetopenia. Febre,
fadiga e sintomas constitucionais acompanham o quadro.
Quais são as manifestações
da leucemia crônica?

12.1 INTRODUÇÃO
De acordo com a classificação da Organização Mundial da Saúde
(2008), as doenças mieloides crônicas do adulto são divididas em:
a) Síndromes mielodisplásicas (SMDs);
b) Neoplasias mieloproliferativas;
c) Neoplasias mieloides associadas à eosinofilia e a anormalidades do
PDGF (fator de crescimento derivado de plaquetas).

Todas as síndromes mieloproliferativas são neoplasias


hematológicas cujo clone neoplásico se origina de células-tronco,
com diferenciação em células maduras (hemácias, leucócitos e
plaquetas); logo, todas são doenças crônicas.
Quadro 12.1 - Principais tipos de neoplasia com origem em precursor mieloide
As neoplasias mieloproliferativas incluem 4 doenças clássicas:
leucemia mieloide crônica, policitemia vera, trombocitemia
essencial e mielofibrose primária. Existem, ainda, outras doenças
menos comuns, também inclusas nesse grupo: leucemia neutrofílica
crônica, leucemia eosinofílica crônica, mastocitose e neoplasia
mieloproliferativa não classificável.
12.2 HEMATOPOESE
Seguindo a hematopoese fisiológica, podem-se classificar as
neoplasias hematológicas em mieloides ou linfoides. Estas podem
ser subdivididas em aguda ou crônica, a depender da proporção de
células morfológicas e imunofenotipicamente imaturas na medula
óssea. As neoplasias agudas apresentam maior proporção de células
precursoras (imaturas), enquanto as neoplasias crônicas são
constituídas de células maduras.
#IMPORTANTE
Existem várias neoplasias do tecido
hematopoético, que incluem leucemias,
linfomas, neoplasia de células plasmáticas,
neoplasias mieloproliferativas, tumor
histiocítico e neoplasia de células dendríticas.

A classificação das neoplasias hematológicas foi atualizada pela


Organização Mundial da Saúde em 2008, e leva em conta aspectos
clínicos, histológicos, histoquímicos, citogenéticos e moleculares.
Figura 12.1 - Hematopoese
Fonte: adaptado de MD.Saude.

12.3 LEUCEMIA MIELOIDE CRÔNICA


12.3.1 Introdução
A Leucemia Mieloide Crônica (LMC) é a mais frequente das
síndromes mieloproliferativas crônicas (nesse grupo, ainda existem
a policitemia vera, a trombocitemia essencial e a mielofibrose
primária).
A LMC evolui inexoravelmente para uma fase aguda ao longo dos
anos e na ausência de tratamento, semelhante à leucemia aguda.
Caracteriza-se pela proliferação clonal da célula-tronco
multipotente anômala, que gera células mieloides granulocíticas, as
quais mantêm sua capacidade de diferenciação – logo, com
aparecimento de células normais e diferenciadas na medula óssea e
no sangue periférico, contrastando com as leucoses agudas, em que
ocorre parada de maturação –, com infiltração lenta e progressiva da
medula óssea. Existe marcadamente hiperplasia mieloide, que se
revela como leucocitose, predominantemente à custa de neutrofilia,
mas também pode haver basofilia e eosinofilia, além de volumosa
esplenomegalia.
A LMC constitui de 15 a 20% das leucemias nos adultos, e sua
incidência é de 1,6 caso por 100.000 habitantes/ano. A idade mediana
clássica do diagnóstico está entre a quinta e a sexta década de vida,
entretanto, não são poucos os casos diagnosticados entre a terceira e
a quarta década), com discreto predomínio no sexo masculino
(1,4:1).
12.3.2 Patogênese

#IMPORTANTE
A LMC resulta de uma anormalidade genética
adquirida, a translocação entre os cromossomos
9 e 22 – t(9;22) (q34;q11) –, caracterizada
citogeneticamente pela formação do
cromossomo Filadélfia (Ph).

A LMC resulta de uma anormalidade genética adquirida, a


translocação entre os cromossomos 9 e 22 – t(9;22) (q34;q11) –,
caracterizada citogeneticamente pela formação do cromossomo
Filadélfia (Ph). O produto resultante é a expressão de oncogene
denominado BCR-ABL, derivado da fusão do gene BCR, no
cromossomo 22, com o gene ABL, do cromossomo 9. Esse oncogene
codifica a proteína P210, ou BCR-ABL, e quase a totalidade dos casos
de LMC está associada a essa mutação.
Figura 12.2 - Formação do cromossomo Filadélfia

Fonte: Attacking cancer at its foundation, 2009.

12.3.3 Manifestações clínicas e laboratoriais


A LMC evolui de forma lenta, mas progressiva, e o diagnóstico é
feito, em média, cerca de 12 meses após a instalação da doença.
Aproximadamente 20 a 50% dos pacientes são assintomáticos,
sendo a primeira suspeita diagnóstica feita em exames de rotina. Os
sintomas são inespecíficos, como queixa de fraqueza progressiva,
febre, perda de peso, sudorese noturna, aumento do volume
abdominal e sensação de plenitude gástrica (pelo aumento do baço).
Dor óssea também pode ser uma queixa comum, principalmente na
região esternal, correspondendo à expansão medular. Raramente, há
fenômenos trombóticos ou hemorrágicos (por plaquetose ou
disfunção plaquetária), adenomegalias e hepatomegalia.
A LMC pode evoluir com 3 fases. Primeiramente a fase crônica, de
evolução lenta e que costuma persistir por tempo médio de 3 a 5
anos, podendo evoluir posteriormente se não houver tratamento
adequado ou se houve resistência ao tratamento para a fase de
agravamento (Fase Acelerada – FA) e, a seguir, para a fase de
leucemia aguda (fase ou Crise Blástica – CB).
Na Fase Crônica (FC), ocorre proliferação clonal maciça das células
granulocíticas, mantendo estas a capacidade de diferenciação, sendo
a doença controlada por medicamentos tradicionais.
Posteriormente, em um período variável, o clone leucêmico perde a
capacidade de diferenciação, e a doença passa a ser de difícil controle
(FA) e progride para leucemia aguda ou CB. Algumas vezes, os
pacientes apresentam-se, ao diagnóstico, já em CB.
É importante a diferenciação de tais casos com casos de leucose
aguda de novo, pois aqueles se beneficiam do uso de inibidores de
tirosinoquinase.
12.3.3.1 Fase crônica

Cerca de 85% têm o diagnóstico de LMC enquanto estão na FC.


Essa fase caracteriza-se por marcada hiperplasia medular e
capacidade de maturação preservada das células mieloides. O
paciente, geralmente, apresenta-se oligossintomático ou com
queixas inespecíficas, podendo ser apenas um achado incidental
laboratorial, durante exames de rotina. Não há aumento de
incidência de infecções pela presença de leucócitos funcionantes. Por
vezes, o paciente apresenta quadro de priapismo como primeira
manifestação, caso haja hiperviscosidade por hiperleucocitose. Essa
fase leva cerca de 3 a 5 anos e é a mais provável de responder
satisfatoriamente ao tratamento. Os principais achados laboratoriais
da LMC (fase crônica) são:
a) Leucocitose (em geral, acima de 25.000) com granulócitos em todas
as suas fases de maturação, podendo chegar a blastos, o chamado
desvio escalonado com maturação preservada ou, simplesmente,
desvio à esquerda. Um achado clássico da LMC na FC é o “hiato
leucêmico”, quando há mais mielócitos (granulócitos imaturos) do que
metamielócitos (granulócitos mais maduros), ou mesmo ausência
desses precursores intermediários. A basofilia e a eosinofilia podem
ser encontradas em 90% dos casos, e a monocitose não é incomum;
b) A presença de anemia normocítica e normocrômica é mais comum
do que a poliglobulia;
c) A plaquetose é mais frequente do que a plaquetopenia;
d) Mielograma e biópsia de medula óssea apresentam
hipercelularidade global, das 3 séries, com todas as formas de
maturação mieloide em abundância (hiperplasia granulocítica com
aumento da relação mieloide: eritroide), observando-se, no
anatomopatológico, diferentes graus de fibrose medular.

Figura 12.3 - Biópsia de medula óssea

Legenda: (A) medula óssea normal, com celularidade normal e alguns adipócitos; (B)
medula óssea de leucemia mieloide crônica com hipercelularidade global, com algumas
traves ósseas de permeio.
Quadro 12.2 - Exemplo de hemograma na leucemia mieloide crônica
Figura 12.4 - Sangue periférico de paciente com leucemia mieloide crônica, revelando
leucocitose com desvio à esquerda
12.3.3.2 Fase acelerada ou de transformação

A FA caracteriza-se por perda progressiva da capacidade de


diferenciação dos neutrófilos e por dificuldade de controle da
leucocitose com medicamentos, constituindo-se como fase
intermediária entre a leucemia crônica e a aguda, com duração
aproximada de 3 a 18 meses.
Pode haver pacientes assintomáticos, entretanto, geralmente se
observam piora de sintomas constitucionais e aumento da
esplenomegalia, bem como do número de leucócitos, da basofilia, de
células blásticas, da trombocitose ou plaquetopenia.
Os critérios para fase acelerada da LMC (Organização Mundial da
Saúde, 2008) são:
a) Leucocitose progressiva não responsiva à terapêutica;
b) Trombocitopenia < 100.000/µL, não relacionada à terapia;
c) Trombocitose > 1.000.000/mm3, não responsiva à terapia;
d) Esplenomegalia progressiva, não responsiva à terapêutica;
e) Blastos entre 10 e 19% no sangue ou na medula óssea;
f) Basófilos ≥ 20% no sangue periférico;
g) Anormalidade citogenética adicional à presença do cromossomo Ph.

12.3.3.3 Crise blástica ou aguda

Na CB, os mieloblastos ou linfoblastos perdem a capacidade de


diferenciação. A LMC em CB é agressiva e ainda mais resistente à
terapia convencional, com quadro clínico da leucemia aguda,
permitindo ao paciente uma sobrevida muito curta.
Essa fase se caracteriza por 20% ou mais de blastos no sangue
periférico ou na medula óssea; ou por infiltrado extramedular de
células blásticas. Em 70% dos casos, os blastos são de características
mieloides e, em 20%, são linfoblastos. Raros casos podem ser
formados por células indiferenciadas ou bifenotípicas (que
expressam tanto características mieloides quanto linfoides à
imunofenotipagem).
Na CB, os sintomas constitucionais pioram bastante, com febre,
sudorese noturna, anorexia, perda de peso, dores ósseas e aumento
ainda maior da esplenomegalia. Se não tratada, a sobrevida é de
cerca de 3 a 6 meses.
A hiperleucocitose é uma alteração laboratorial caracterizada por um
total de leucócitos acima de 5x109 (50.000/µL) ou 100x109 (100.000/
µL). A leucostase é a hiperleucocitose sintomática, uma emergência
médica que normalmente ocorre em pacientes com Leucemia
Mieloide Aguda (LMA) ou LMC em CB. As principais manifestações
clínicas de leucostase estão relacionadas com o sistema nervoso
central (40%) e os pulmões (30%).
12.3.3.4 Subtipos especiais

A leucemia mielomonocítica crônica é uma N-MD/MP caracterizada


por monocitose persistente no sangue periférico, com variado grau
de neutrofilia, incluindo neutrófilos maduros e seus precursores,
além de ausência do cromossomo Ph t(9;22) e do oncogene BCR-
ABL1 da LMC, menos de 20% de blastos no sangue ou na medula e
displasias envolvendo 1 ou mais séries da linhagem mieloide.
A Leucemia Eosinofílica Crônica (LEC) caracteriza-se por
mieloproliferação ou linfoproliferação, isto é, pode ter manifestação
de LEC, de leucemia mieloide aguda ou mesmo de linfoma, com
eosinofilia persistente, em geral > 1.500/µL; infiltração orgânica
pelos eosinófilos ou mastócitos; presença de rearranjos envolvendo
PDGFR-alfa, PDGFR-beta ou FGFR1; ausência de cromossomo Ph ou
rearranjo de proteínas de fusão BCR-ABL1; menos de 20% de blastos
na medula óssea.
12.3.4 Outros achados laboratoriais
12.3.4.1 Fosfatase alcalina leucocitária

Dosagem sérica da fosfatase alcalina leucocitária intensamente


baixa, que está presente no citoplasma de granulócitos maduros e
reduz ou desaparece completamente na LMC, denotando a
anormalidade das células presentes no sangue periférico e
diferenciando essa leucemia da reação leucemoide granulocítica, em
que há aumento evidente da fosfatase alcalina de neutrófilos.
12.3.4.2 Desidrogenase láctica aumentada

A desidrogenase láctica aumenta em razão da proliferação celular


excessiva.
12.3.4.3 Ultrassonografia de abdome

Este exame evidencia esplenomegalia intensa e hepatomegalia.


12.3.5 Diagnóstico
O diagnóstico é feito pelo encontro de anormalidades no hemograma
e na medula óssea (mielograma e biópsia de medula óssea),
conforme já descrito, e confirmado pelo encontro do cromossomo
Filadélfia – t(9;22) –, por meio da citogenética convencional ou pelo
método FISH (Fluorescence In Situ Hybridization) ou, ainda, pelo
encontro da fusão gênica resultante dessa translocação, o BCR-ABL
(por PCR Real Time – RT-PCR).
Atualmente, pela sensibilidade de métodos diagnósticos como FISH
e RT-PCR, é consensual que, para o diagnóstico da LMC, é necessário
que o t(9;22) seja encontrado. Caso contrário, mesmo que haja
quadro clínico sugestivo, na ausência dessa alteração genética por
tais métodos de maior sensibilidade (o que ocorre em 1% dos casos),
o diagnóstico é de outra doença mieloproliferativa (classificada pela
Organização Mundial da Saúde como doença
mieloproliferativa/mielodisplásica, correspondente à antiga LMC
atípica). Os exames obrigatórios para o diagnóstico de LMC são:
hemograma com avaliação do esfregaço de sangue periférico;
mielograma; cariótipo (banda G – FISH realizado isoladamente, ao
diagnóstico, não consegue identificar anormalidades
cromossômicas adicionais ao t(9;22)); RT-PCR para BCR-ABL.
12.3.6 Evolução e prognóstico
A evolução costuma ser lenta, porém progressiva. No entanto, hoje
se dispõe de terapêutica menos agressiva e que fornece períodos de
sobrevida maiores.
12.3.7 Tratamento
O tratamento da leucemia mieloide crônica é feito com base na fase
de evolução da doença (FC, FA ou CB) e envolve o uso de inibidores
de tirosinoquinase, o transplante de células progenitoras
hematopoéticas e, por fim, o tratamento paliativo. As opções
terapêuticas são:
a) Controle da doença com inibidores de tirosinoquinase (ITK);
b) Tratamento curativo com transplante de células progenitoras
hematopoéticas;
c) Tratamento paliativo.

As opções de tratamento para pessoas com LMC dependem da fase


da doença, da idade do paciente, das comorbidades, dos fatores
prognósticos, da existência de doador de medula em potencial
compatível e da resposta ao tratamento inicial com inibidores de
tirosinoquinase Os inibidores da tirosinoquinase são medicamentos
considerados de primeira linha para o tratamento da leucemia
mieloide crônica.
12.3.7.1 Tratamento por fases

a) Fase crônica

Os ITKs de primeira (mesilato de imatinibe) e segunda geração


(dasatinibe, nilotinibe) são inibidores seletivos de TK e induzem à
remissão hematológica em 98% e à citogenética em pelo menos 80%
dos casos, sendo atualmente o tratamento de primeira linha para
LMC na fase crônica.
Devemos considerar o Transplante de Células-Tronco
Hematopoéticas (TCTH) alogênico para pacientes com doença
resistente e/ou sem resposta ideal aos ITKs de primeira e segunda
linha, após obtenção de resposta máxima à terapia de salvamento.
De forma geral, com o tratamento, objetiva-se alcançar:
1. Resposta hematológica: contagem de leucócitos < 10.000/mm3,
sem desvio à esquerda, com < 5% de basófilos, contagem de
plaquetas < 450.000/mm3 e baço não palpável;
2. Resposta citogenética: ausência do cromossomo Ph;
3. Resposta molecular: gene BCR-ABL não detectável pelo método
de RT-PCR.

A monitorização da resposta deve ser feita, ao ser alcançada a


resposta hematológica, a cada 3 meses, com RT-PCR associada ou
não ao cariótipo, e, diante da perda de resposta, deve ser revista a
terapêutica.
b) Fase acelerada

As opções de tratamento nesta fase são semelhantes às da FC.


Para pacientes que ainda não utilizaram o imatinibe, este deve ser
utilizado em maiores doses. Pacientes em FA têm alta taxa de perda
de resposta e progressão para CB com ITK isolada, devendo ser
obrigatoriamente considerado o TCTH.
Em pacientes que evoluem para a FA durante o uso de imatinibe,
pode-se optar pelo aumento da dose ou, preferencialmente, pelo uso
de ITK de segunda geração antes do transplante.
c) Crise blástica ou aguda

Nesta fase da LMC, as células doentes assemelham-se às células da


LMA ou da Leucemia Linfoide Aguda (LLA), sendo resistentes às
drogas usadas para tratá-la.
O tratamento-padrão quimioterápico da LMA raramente consegue
atingir remissão da doença. A opção, então, é o uso concomitante de
imatinibe, para os virgens de tratamento ou usuários prévios, em
doses maiores do que na FA, ou ITK de segunda geração, para os
refratários ao imatinibe.
Aqueles que não responderem ao tratamento inicial não terão boa
resposta ao transplante (sobrevida em 4 anos < 10%), sendo
indicado o tratamento paliativo para o alívio dos sintomas.
12.4 LEUCEMIA LINFOIDE CRÔNICA
12.4.1 Introdução
A Leucemia Linfoide Crônica (LLC) é uma neoplasia constituída por
acúmulo progressivo de linfócitos maduros funcionalmente
incompetentes, de origem clonal. É considerada idêntica ao linfoma
linfocítico de pequenas células B – são estágios diferentes da mesma
doença: um apresenta acúmulo das células na medula óssea
(leucemia), podendo ou não acometer linfonodos, e o outro cursa
apenas com adenomegalias (linfoma).
Em 98% dos casos, os linfócitos clonais maduros são da linhagem B,
e somente 2% são linfócitos T. A doença pode evoluir assintomática
por longas fases, e, de acordo com o estadiamento, pode-se tanto
optar por tratamento quimioterápico quanto adotar conduta
expectante.
A LLC é a leucemia mais comum em adultos. A
idade média ao diagnóstico é 70 anos, mas
pacientes < 50 anos também podem ser
acometidos; a incidência aumenta com a idade,
e a frequência é maior em homens, à proporção
de 2:1.
A etiologia é desconhecida; fatores ambientais, como exposição a
agentes químicos e a derivados de petróleo, parecem estar
associados ao aumento do risco de doença, porém ainda sem
comprovação científica. Sabe-se que parentes de primeiro grau de
pacientes com LLC apresentam frequência maior do que a esperada
para casos da doença, outras neoplasias linfoides ou hematológicas,
inclusive neoplasias sólidas, mas não está demonstrado nenhum
padrão de transmissão genética.
Como é usual nas neoplasias hematológicas, anormalidades
citogenéticas estão entre os fatores causais e de prognóstico em 50%
dos casos, sendo as mais comuns a deleção do braço longo do
cromossomo 13 e a trissomia do 12.
12.4.2 Quadro clínico
A maioria dos pacientes com LLC é assintomática, e não é incomum
que a suspeita diagnóstica seja feita na realização de exames de
rotina, por outras causas quaisquer. Entre os sintomáticos, as
queixas mais comuns são linfadenopatia generalizada, cansaço,
intolerância aos exercícios e sintomas B: febre > 38 °C inexplicada,
perda de peso (> 10% do peso em 6 meses) e sudorese noturna.
Os gânglios são geralmente pequenos, mas podem ser volumosos,
móveis e indolores. Os locais mais acometidos são as regiões
cervical, supraclavicular e axilar. Hepatomegalia é bem mais
frequente, e a esplenomegalia, bem menos volumosa do que na LMC.
Além disso, a infiltração leucêmica pode estar presente em qualquer
parte do corpo, sendo os locais não linfoides mais comuns a pele e as
tonsilas. Sintomas de anemia, petéquias e equimoses ou infecções de
repetição podem estar presentes, mas não são comuns.
Algumas situações paraneoplásicas podem acompanhar a LLC, como
pênfigo paraneoplásico, reação excessiva à picada de insetos e
glomerulonefrite membranoproliferativa.
Cerca de 0,5 a 3% dos casos podem evoluir para a chamada síndrome
de Richter, que se caracteriza pela transformação em linfoma difuso
de grandes células, associada a febre, emagrecimento, sudorese
noturna (os chamados sintomas B), aumento importante de
linfadenopatia, anemia e trombocitopenia; ou seja, parte-se de uma
doença indolente (LLC) para uma doença extremamente agressiva
(linfoma não Hodgkin difuso). O prognóstico nesses casos é muito
ruim, com sobrevida média de 6 meses. Pode ocorrer ainda aumento
de pró-linfócitos (leucemia pró-linfocítica), ocasionando
resistência ao tratamento instituído. Adicionalmente, em 1% dos
casos ocorre progressão para leucemia aguda, não somente linfoide,
mas também mieloide, bem como há relatos de evolução para
mieloma múltiplo, linfoma de Hodgkin e carcinomas.
12.4.3 Achados laboratoriais

A característica laboratorial marcante é o


achado de leucocitose à custa de linfócitos:
linfocitose persistente > 5.000/mm3, de aspecto
morfológico maduro.

É comum a descrição de manchas de Gumprecht, que são restos


celulares encontrados na lâmina de sangue periférico. Com a
evolução da doença, aumenta o número de linfócitos. Anemia pode
estar presente, especialmente pelo déficit de produção proveniente
da ocupação e infiltração medulares pelos linfócitos clonais. Pode
haver desenvolvimento de autoanticorpos contra hemácias em cerca
de 35% dos casos (no entanto, somente 11% evoluem com anemia
por essa causa, a despeito da detecção de anticorpos) ou induzidos
pelo tratamento com fludarabina. O Teste da Antiglobulina Direta
(TAD ou Coombs direto) deve ser realizado com o intuito de afastar
ou confirmar essa patologia.
Tal fato também pode acontecer na série plaquetária, tanto déficit de
produção quanto formação de autoanticorpos, bem como sequestro
esplênico pela esplenomegalia. Mais rara é a agranulocitose em
consequência de autoanticorpos antineutrófilos.
A hipogamaglobulinemia é comum, podendo ser detectada em 60%
dos pacientes, e é possível piorar com a evolução da doença,
contribuindo para os quadros infecciosos de repetição. Pode-se,
ainda, detectar aumento da fração gamaglobulina, podendo ser
policlonal (a maioria) ou monoclonal.
Não há anormalidades características da LLC nos exames
bioquímicos, mas a desidrogenase láctica e a beta-2-microglobulina
podem estar elevadas em 60% dos casos, correlacionando-se com a
massa tumoral.
As características imunofenotípicas dessa leucemia também devem
ser investigadas, sendo os resultados de imunofenotipagem um
critério diagnóstico. Os critérios diagnósticos para LLC são:
a) Aumento de linfócitos de aspecto maduro no sangue periférico,
presente por pelo menos 3 meses, > 5.000/µL;
b) Características imunofenotípicas importantes:
Positividade para marcadores de células B: CD19, CD20, CD23;
Presença anômala de marcador para célula T: CD5;
Presença fraca de imunoglobulina de superfície: IgM ou IgD com
cadeia leve kappa ou lambda (nunca ambas) – marcação fraca ou
negativa para: FMC7, CD22 e CD79b.

Figura 12.5 - Características dos linfócitos


Legenda: (A) linfócitos maduros; (B) manchas de Gumprecht.
Não é necessária a avaliação da medula óssea para o diagnóstico da
LLC; apenas a análise do sangue periférico com hemograma, estudo
morfológico e imunofenotipagem são suficientes.
12.4.4 Diagnóstico diferencial
1. Linfocitose reacional a quadros infecciosos: mononucleose,
toxoplasmose, pertussis (apresenta quadro clínico da doença
infecciosa); a linfocitose é transitória, e os linfócitos geralmente têm
morfologia atípica (sem aspecto maduro) e não são monoclonais;
2. Outras doenças linfoproliferativas: diagnóstico diferencial feito
pelo perfil imunofenotípico;
3. Linfocitose B monoclonal: situação benigna que ocorre em
indivíduos assintomáticos, sem adenomegalia ou visceromegalia,
com linfocitose monoclonal e contagem < 5.000/mm3. Ocorre mais
em idosos (> 60 anos), com risco de evoluir para LLC com
necessidade terapêutica na taxa de 1 a 2% ao ano;
4. Linfocitose B policlonal persistente: como o próprio nome diz, é
policlonal. Faz diagnóstico diferencial com LLC pela contagem
persistentemente alta de linfócitos (> 4.000/mm3). É uma condição
benigna que acomete principalmente mulheres jovens tabagistas.
Além do perfil imunofenotípico (policlonal), difere da LLC pela
morfologia (os linfócitos são binucleados). Pode estar acompanhada
de adenomegalias discretas ou esplenomegalia. A causa é
desconhecida.
12.4.5 Estadiamento e prognóstico
O estadiamento da leucemia linfoide crônica apresenta papel
importante na definição do prognóstico e na decisão terapêutica,
pois alguns podem viver de 10 a 20 anos, com óbito não relacionado à
doença (30% dos casos), enquanto outros evoluem rapidamente a
óbito em um período de 2 a 3 anos. As principais causas de morte são
quadro infeccioso e sangramento.
O prognóstico é estabelecido com base nas características clínicas e
hematológicas e leva em conta a história natural da doença, que é
resultante do acúmulo progressivo de células leucêmicas no
organismo. Os 2 sistemas mais utilizados são os de Rai (com 5
estágios) e o de Binet (com 3 estágios, mais simples de serem
lembrados). Em 1987, foi introduzida modificação no estadiamento
de Rai, em que os pacientes eram subdivididos em 3 grupos, de
acordo com o risco: baixo (estádio 0), intermediário (estádios I e II) e
alto (estádios III e IV).
Quadro 12.3 - Estadiamento de Rai

Quadro 12.4 - Estadiamento de Binet

* Áreas linfoides: cervical, axilar, inguinal, baço e fígado.

Além dos sistemas de estadiamento, as anormalidades citogenéticas


deleção 11q e deleção 17p, quando presentes, conferem pior
prognóstico à doença.
12.4.6 Tratamento
O tratamento da leucemia linfoide crônica varia de acordo com o
estádio da doença e é feito com quimioterapia, utilizando-se as
seguintes opções: agentes alquilantes (clorambucila,
ciclofosfamida); análogos da purina (fludarabina) e anticorpos
monoclonais (como o rituximabe – anti-CD20 – e o alentuzumabe –
anti-CD52), ou a combinação destes. Até o momento, não há
tratamento curativo para a LLC, estando as indicações de tratamento
de acordo com o estadiamento do paciente. Aos pacientes em estádio
Binet A ou baixo risco de Rai, assintomáticos, o tratamento não é
indicado. Torna-se necessário um período de observação, e se a
doença for estável e assintomática, serão indicados apenas
observação com hemograma e exame clínico. As principais situações
para as quais a terapêutica está indicada são:
a) Na presença de sintomas B, fraqueza e adenomegalia dolorosa ou
com sintoma compressivo;
b) Presença de anemia e/ou plaquetopenia (Binet C);
c) Presença de anemia hemolítica ou plaquetopenia autoimune não
responsivas a corticoide;
d) Sinal de progressão de doença – aumento de 2 vezes na contagem
de linfócitos em um período menor que 12 meses e aumento
importante do tamanho dos linfonodos, baço ou fígado (Binet B);
e) Quadros infecciosos de repetição.

O tratamento da LLC é feito com quimioterapia, com as seguintes


opções: agentes alquilantes (clorambucila, ciclofosfamida);
análogos da purina (fludarabina) e anticorpos monoclonais (como o
rituximabe – anti-CD20 – e o alentuzumabe – anti-CD52), ou a
combinação destes, das mais diversas formas. O TCTH alogênico
deve ser pensado apenas em jovens pertencentes aos grupos de alto
risco que não responderam ao tratamento-padrão. Em alguns casos,
ainda se pode realizar radioterapia quando ocorre compressão por
conglomerado de linfonodos.
12.4.6.1 Leucemia de células pilosas (tricoleucemia)
Caracterizada pelo acúmulo de pequenas células linfoides maduras
com citoplasma abundante e projeções citoplasmáticas (lembrando
pelos ou cabelos), é mais comum em homens (5:1), com idade média
de 55 anos. Pode cursar com esplenomegalia de grande monta,
pancitopenia, linfocitose relativa, e até 80% dos pacientes podem
apresentar monocitopenia (marco da doença). A punção aspirativa
da medula óssea é caracteristicamente seca. O paciente tem maior
suscetibilidade a infecções por Aspergillus, Histoplasma,
Cryptococcus e Pneumocystis jirovecii. O tratamento de escolha é
feito com cladribina, geralmente realizado em protocolos de 5 ou 7
dias.
12.5 OUTRAS NEOPLASIAS
MIELOPROLIFERATIVAS
Outros exemplos de neoplasias mieloproliferativas incluem a
policitemia vera, a trombocitemia essencial e a mielofibrose:
1. Policitemia vera:
a) Manifestações clínicas: caracterizada pela proliferação de
eritrócitos, com a elevação persistente do hematócrito. Apresenta
prurido aquagênico, eritromelalgia (sensação de queimação de pés e
mãos com eritema, palidez ou cianose e pulsos palpáveis);
b) Complicações: eventos tromboembólicos (principalmente arteriais).
Sangramentos são raros;
c) Diagnóstico: Hb > 18,5 g/dL (homem) ou > 16,5 g/dL (mulher) +
mutação no gene JAK2 positivo + biópsia de medula óssea
hipercelular nas 3 séries + dosagem de eritropoetina diminuída ou
normal;
d) Tratamentos:
Baixo risco: flebotomia + ácido acetilsalicílico;
Alto risco (> 60 anos ou trombose prévia): flebotomia +
hidroxiureia + ácido acetilsalicílico.
e) Prognóstico: baixo risco de transformação hematológica
(mielofibrose e LMA), sobrevida longa.

2. Trombocitemia essencial:
a) Manifestações clínicas: doença clonal que envolve, primariamente, a
linhagem megacariocítica. São comuns sintomas vasomotores (como
cefaleia, síncope, dor torácica atípica, parestesias de extremidades,
alterações visuais transitórias, livedo reticularis e eritromelalgia). Os
eventos hemorrágicos são menos frequentes e consistem em
sangramento cutâneo, mucoso ou do trato gastrintestinal;
b) Complicações: evento tromboembólico, hemorragia;
c) Diagnóstico: plaquetas > 450.000/mm3 + JAK2 positivo +
hipercelularidade medular (principalmente de megacariócitos) +
exclusão de plaquetose reacional, LMC, policitemia vera, mielofibrose,
mielodisplasia ou outra mieloproliferação;
d) Tratamentos:
Baixo risco: ácido acetilsalicílico – se sintoma vasomotor ou
plaquetas > 1.000.000, após descartar doença de von Willebrand;
Alto risco (> 60 anos ou trombose anterior): hidroxiureia + ácido
acetilsalicílico.
e) Prognóstico: bom/baixo risco de transformação hematológica
(mielofibrose e LMA).

3. Mielofibrose:
a) Manifestações clínicas: sintomas sistêmicos de compressão
mecânica pela esplenomegalia e de anemia;
b) Complicações: estado hipercatabólico, hepatoesplenomegalia
maciça com hipertensão portal, outros sintomas de eritropoese
extramedular, a depender do local acometido, infecção, transformação
leucêmica;
c) Diagnóstico:
No sangue periférico, há eritroblastos, acompanhados de
mielócitos e células mais jovens da linhagem mieloide – esse
quadro é denominado reação leucoeritroblástica;
Hemácias “em lágrima” (dacriócitos);
Plaquetas podem estar normais ou diminuídas em número; a
trombocitose é rara e, frequentemente, há plaquetas gigantes
degranuladas (fragmentos de megacariócitos);
↑ megacariócitos + fibrose medular na biópsia de medula óssea +
JAK2 ou MPL positivo + exclusão de LMC, policitemia vera e
SMD;
Leucoeritroblastose + esplenomegalia + ↑ DHL + anemia.
d) Tratamentos:
Tratamento curativo: transplante de células-tronco
hematopoéticas;
Tratamento paliativo: androgênio, danazol, eritropoetina e
transfusões (anemia); talidomida com prednisona, lenalidomida
(sintomas sistêmicos, anemia, plaquetopenia); esplenectomia ou
radioterapia esplênica (refratários); radioterapia de tecido
sintomático de eritropoese extramedular (exemplo: compressão
medular).
e) Prognóstico: possivelmente bastante ruim, a depender dos fatores
prognósticos, com sobrevida de 26 meses entre os pacientes de alto
risco.

#FALA AÍ
Uma leucemia crônica pode converter-se em uma
leucemia aguda?
Leucemia mieloide crônica pode evoluir em alguns casos para crise
blástica. Este é um quadro de difícil tratamento. Leucemia linfoide
crônica também pode apresentar, apesar de mais raro, crise blástica.
A crise blástica se caracteriza por número maior ou igual a 20% de
blastos na medula ou no sangue periférico, focos de blastos na
biópsia de medula e infiltração blástica extramedular.
Quais são as manifestações
da leucemia crônica?
Na leucemia crônica, são comuns a fadiga, a anemia, os
sangramentos e os quadros de infecções de repetição.
Quais são os tipos de
linfoma? Como fazer o
diagnóstico?

13.1 INTRODUÇÃO
Os linfomas são tumores sólidos com origem no tecido linfoide
normal, geralmente nos linfonodos, e incluem várias apresentações,
que cursam com quadros clínico, morfológico e imuno-histoquímico
bastante diversos. São responsáveis por 4% de todas as mortes
relacionadas a neoplasias.
Os linfomas são divididos em Hodgkin ou não Hodgkin, com base em
achados clínico-patológicos. O diagnóstico do Linfoma de Hodgkin
(LH) baseia-se no encontro da célula de Reed-Sternberg (RS) ou
suas variantes, o que não ocorre no Linfoma Não Hodgkin (LNH).
Os linfomas são a principal causa de quilotórax por causa neoplásica.
Haja vista ser uma neoplasia relacionada ao sistema linfático e
causar maior risco de imunossupressão (tanto pela neoplasia quanto
pelos tratamentos quimioterápicos), aumentam o risco de infecções
oportunistas, como a tuberculose.
O pseudolinfoma é um diagnóstico diferencial importante que pode
gerar dificuldades no diagnóstico. Trata-se de um grupo de
desordens de curso benigno, mas com características clínicas e
histológicas sugestivas de linfoma. A diferenciação é feita por
biópsia: o pseudolinfoma é caracterizado por infiltração benigna das
células linfoides ou histiócitos que microscopicamente lembram
linfoma.
13.2 INVESTIGAÇÃO
Independentemente do tipo de linfoma, a abordagem inicial é igual:
a) História clínica e exame físico;
b) Exames diagnósticos;
c) Exames de estadiamento;
d) Estratificação de risco.

13.2.1 História e exame físico


Na história clínica, é importante avaliar manifestações sistêmicas
que têm importância prognóstica: emagrecimento (perda de mais de
10% do peso nos últimos 6 meses), febre (temperatura > 38 °C,
geralmente vespertina, persistente ou recorrente no último mês) e
sudorese noturna recorrente no último mês. Esses sintomas são
chamados de sintomas B.
A manifestação clínica mais comum é o surgimento de
adenomegalias indolores com consistência endurecida, que podem
ser localizadas (em estádios precoces) ou disseminadas (em estádios
avançados). Todos os tecidos do organismo apresentam células
linfoides; dessa forma, pode-se desenvolver linfoma em qualquer
órgão (linfoma extranodal), como ovário, testículo, tireoide,
pálpebra, fígado, pulmão etc. Por isso, história e exame físico
detalhados são muito importantes.
13.2.2 Diagnóstico
Para diagnosticar o tipo de linfoma, utiliza-se o exame
histopatológico da região acometida.
A biópsia excisional (biópsia de todo o linfonodo, e não apenas de um
fragmento) é recomendada sempre que possível.
O exame de punção por agulha fina não
permite a análise histológica, o que, muitas
vezes, compromete o diagnóstico do tipo e do
subtipo de linfoma, não sendo encorajado como
exame diagnóstico.

Quando há adenomegalia palpável, opta-se por biopsiar o maior


gânglio, com a seguinte ordem de preferência: supraclavicular,
cervical, axilar ou inguinal.
As indicações para biópsia de linfonodo são: crescimento
progressivo; tamanho > 2 cm em adultos e 1 cm em crianças;
localização supraclavicular ou escalênica; consistência endurecida,
aderida aos planos profundos; persistência por mais de 4 a 6
semanas.
13.2.3 Estadiamento
O estadiamento objetiva avaliar a extensão da doença. Para isso, são
usados exames de imagem e laboratoriais. Além da classificação da
extensão da doença (estádios I a IV), a classificação pode utilizar
letras complementares para especificar a presença de sintomas B e
do acometimento de órgãos específicos.
Os exames utilizados para o estadiamento são:
a) Tomografia computadorizada de pescoço, tórax, abdome e pelve ou
PET-scan (preferencialmente nos linfomas mais agressivos, se
disponível);
b) Biópsia de medula óssea unilateral, que avalia se há
comprometimento medular por meio da análise histológica. O
mielograma faz análise apenas citológica e não é indicado para
estadiamento de linfoma; não é necessário no linfoma de Hodgkin se o
PET-CT for utilizado no estadiamento;
c) Liquor, pois alguns linfomas agressivos tendem a comprometer o
Sistema Nervoso Central (SNC), estando indicado esse exame como
parte do estadiamento em casos selecionados, como nos pacientes
HIV positivos (pela maior chance de infiltração no SNC) e naqueles em
que há acometimento da linha média facial (oronasofaringe, anel de
Waldeyer, cavidades paranasais e olhos, pela proximidade com SNC);
d) Endoscopia digestiva alta para subtipos específicos, como linfomas
de orofaringe (anel de Waldeyer);
e) Hemograma e bioquímica completa.

Há outros exames laboratoriais que não fazem parte do


estadiamento, mas são importantes para a avaliação dos linfomas:
1. Desidrogenase láctica: é um preditor independente de sobrevida;
2. Beta-2-microglobulina: está relacionada à massa tumoral;
3. Dosagem de cálcio sérico: está elevada principalmente em alguns
tipos de LNH;
4. Dosagem de ácido úrico sérico: está possivelmente elevada em
linfomas de alto turnover e é indicativa de lise tumoral;
5. Eletroforese de proteínas: alguns linfomas podem cursar com
síntese de proteína monoclonal, inclusive com síndrome da
hiperviscosidade (particularmente o linfoma linfoplasmocítico);
6. Sorologias para vírus das hepatites C e B, e HIV: alguns linfomas
podem cursar com essas alterações sorológicas, que, inclusive, têm
implicação terapêutica. A sorologia positiva para vírus da hepatite B
exige cuidados aos pacientes que são submetidos à quimioterapia.
Após os exames, o paciente pode ser classificado conforme a
extensão da doença em estádios de I a IV (Figura 13.1 e Quadro 13.1).
Figura 13.1 - Estadiamento pelo sistema de Ann Arbor
Nota: os pontos coloridos caracterizam-se como acometimento linfomatoso.

Quadro 13.1 - Estadiamento dos linfomas: sistema de Ann Arbor


13.2.4 Estratificação de risco
A estratificação de risco é feita por meio da pontuação de fatores
prognósticos, que variam de acordo com o tipo de linfoma (LH ou
LNH), importante no planejamento terapêutico.
13.3 LINFOMA DE HODGKIN
13.3.1 Introdução
Trata-se de uma doença proliferativa que tem origem no linfócito B
do centro germinativo e caracteriza-se, histopatologicamente, pela
presença das células de Reed-Sternberg. Está associado a agentes
infecciosos, como o Epstein-Barr, e tem chances aumentadas em
parentes de primeiro grau de indivíduos com a doença e naqueles em
estado de imunossupressão.
Representa 10% de todos os linfomas e 0,6% de todas as neoplasias
do adulto. Observa-se curva bimodal de incidência, caracterizada por
baixa ocorrência na infância, rápida elevação com pico em torno dos
20 anos, platô ao longo da meia-idade e novo pico após a quinta ou
sexta década. Há maior incidência em homens do que em mulheres e
em brancos do que em negros.
Figura 13.2 - Curva bimodal de distribuição dos casos
Fonte: elaborado pelos autores.

13.3.2 Etiologia
Os principais fatores relacionados ao desenvolvimento de linfoma
são:
1. Agentes infecciosos: o fator etiológico mais estudado na doença de
Hodgkin é o vírus Epstein-Barr. O antecedente de mononucleose
infecciosa, confirmado por testes sorológicos, confere risco 3 vezes
maior para o aparecimento do LH;
2. Fator genético: o risco de LH é maior entre parentes de primeiro
grau de indivíduos com a doença, devido à suscetibilidade genética e
à exposição ambiental comum dos membros da família. A agregação
familiar de incidência é de 3 a 5 vezes maior em parentes de primeiro
grau quando em comparação com a população geral. Gêmeos
idênticos têm risco ainda maior;
3. Imunossupressão: existe incidência bastante aumentada do LH na
população imunossuprimida por transplante de órgão sólido,
transplante de células-tronco hematopoéticas, HIV e doença
autoimune. As doenças autoimunes podem predispor ao linfoma B,
mais especificamente do tipo MALT (principalmente nos casos de
síndrome de Sjögren e tireoidite de Hashimoto).
13.3.3 Classificação histopatológica

As células de Reed-Sternberg são descritas


como “olhos de coruja” e estão imersas em um
conteúdo inflamatório com apenas 1 a 2% de
células neoplásicas.

As células de Reed-Sternberg são descritas como “olhos de coruja” e


estão imersas em um conteúdo inflamatório com apenas 1 a 2% de
células neoplásicas. São grandes, binucleadas ou multinucleadas,
com nucléolo evidente e eosinofílico, e o citoplasma é abundante,
sendo também eosinofílico (Figura 13.3). As células classicamente
expressam o CD30 (em quase 100% dos casos) e o CD15 (de 75 a 85%
dos casos).
Figura 13.3 - Célula de Reed-Sternberg
Fonte: adaptado de Instituto Nacional do Câncer.
A subclassificação do LH clássico baseia-se na diferença da
composição do tecido inflamatório que acompanha as células de
Reed-Sternberg.
A classificação do LH é feita de acordo com a Organização Mundial da
Saúde (2008):
a) Predominância linfocítica nodular;
b) LH clássico:
Subtipo esclerose nodular;
Subtipo rico em linfócitos;
Subtipo depleção linfocitária;
Subtipo celularidade mista.

13.3.3.1 Esclerose nodular

Subtipo histológico mais comum, corresponde a cerca de 70% dos


casos de LH clássico. Apresenta células lacunares e bandas de
colágeno que, caracteristicamente, separam o tecido linfoide em
nódulos. Acomete, em geral, adolescentes e adultos jovens.
Normalmente, tal subtipo histológico envolve os linfonodos
cervicais inferiores, supraclaviculares e mediastinais e, em cerca de
70% dos casos, é diagnosticado ainda em estágio limitado (estádio I
ou II).
Figura 13.4 - Bandas de colágeno separando nodulações no linfonodo, no subtipo
esclerose nodular
13.3.3.2 Celularidade mista

Trata-se do subtipo mais comum de linfoma de


Hodgkin associado ao HIV. Não podemos
esquecer também da importante associação ao
vírus Epstein-Barr.

Corresponde a até 25% dos casos de LH nos 2 extremos de idade


(crianças e idosos) e é mais comumente associado a estágios
avançados ao diagnóstico, sintomas constitucionais e
imunodeficiência. A celularidade mista passa a ser o principal tipo
histológico quando há associação de LH e HIV. As clássicas células de
RS são facilmente encontradas com fundo celular composto de
linfócitos, eosinófilos, células plasmáticas e histiócitos.
13.3.3.3 Predominância linfocítica nodular

A principal característica morfológica do subtipo Predominância


Linfocítica Nodular (PNL) é a ausência da célula RS clássica, contudo
há uma variante, conhecida como célula “em popcorn”. Representa,
aproximadamente, 5% dos casos de LH. É um tipo distinto do LH
clássico, inclusive pela epidemiologia, pois o pico de incidência é
maior em adultos entre 30 e 50 anos, predominantemente do sexo
masculino. Setenta e cinco por cento dos casos são classificados
como estádio I ou II, sendo os linfonodos periféricos as regiões mais
acometidas. É bastante raro o acometimento mediastinal, esplênico
e medular. Ao diagnóstico, são pouco comuns os sintomas B (6 a
15%). Sua evolução é bastante lenta, apresentando alta taxa de
recidiva, mas com ótima resposta terapêutica.
13.3.3.4 Rico em linfócitos

Corresponde a cerca de 5% dos LHs clássicos, que contêm, em tecido


inflamatório, muitos linfócitos e poucos neutrófilos e eosinófilos. A
apresentação clínica habitualmente é em estádio precoce, raramente
acometendo o mediastino, com predomínio em homens e em idosos.
Trata-se de um subtipo histológico de bom prognóstico, com baixa
taxa de recidiva.
13.3.3.5 Depleção linfocitária

É o LH menos comum. Há 2 tipos histológicos descritos: fibrose


difusa e fibrose reticular. Em qualquer uma delas, as células de RS
são esparsas e de difícil achado. Geralmente, são encontradas em
pacientes idosos e nos HIV positivos, que apresentam, ao
diagnóstico, sintomas sistêmicos e estadiamento avançado. O
envolvimento abdominal é bastante comum, logo icterícia e
hepatoesplenomegalia podem, inicialmente, estar presentes. É
pouco frequente o comprometimento linfonodal e mediastinal.
13.3.4 Manifestações clínicas e laboratoriais
A apresentação clínica mais comum é o aparecimento de
adenomegalias indolores (em 60% dos casos, cervicais ou
supraclaviculares; nos demais casos, axilares ou inguinais), de
consistência de borracha. O paciente pode referir dor na região
acometida após a ingestão de álcool, mesmo em pequena
quantidade; tal queixa é bastante rara (< 10%), mas, se presente, é
bastante específica de LH. A doença geralmente progride de forma
contígua, isto é, cervical, supraclavicular, axilar e mediastinal,
retroperitoneal e inguinal.
A segunda forma de apresentação mais comum é a massa
mediastinal, detectada por radiografia, em virtude de sintomas
respiratórios (tosse seca, dispneia, dor torácica, rouquidão,
pneumonite obstrutiva, até síndrome da veia cava superior), ou
durante investigação de prurido intratável (outra queixa inespecífica
que pode se correlacionar com LH). O baço pode estar envolvido em
25% dos casos, e a medula óssea, infiltrada em 15%. Áreas
extraganglionares, raramente, são afetadas no LH, incluindo pele,
SNC e trato gastrintestinal; se envolvidos, devem suscitar a
associação da doença ao HIV ou ao diagnóstico de LNH.
Um terço dos pacientes apresentará sintomas B ao diagnóstico. Há
uma particularidade bastante rara, mas específica do linfoma de
Hodgkin, que é a febre de Pel-Ebstein, caracterizada por períodos de
dias ou semanas de febre alta, separados por intervalos afebris de
mesma duração.
O prurido, apesar de não ter valor prognóstico e, por esse motivo,
não ser considerado sintoma B, é um sintoma importante, pois pode
ser precoce ou inclusive preceder o diagnóstico de linfoma em
meses, devendo ser sinal de alerta para pessoas com queixa de
prurido difuso sem motivo aparente.
São alterações inespecíficas encontradas na avaliação laboratorial:
a) Hemograma com anemia de doença crônica, ou seja,
normocítica/normocrômica; podem estar presentes anemia hemolítica,
leucocitose com neutrofilia e/ou eosinofilia (sinal indireto de atividade
de doença), linfopenia, plaquetas em número normal, aumentado ou
diminuído;
b) Hipoalbuminemia;
c) Desidrogenase láctica (DHL) aumentada;
d) Velocidade de hemossedimentação (VHS) aumentada, sendo o
principal fator inespecífico correlacionado com atividade de doença.

13.3.5 Evolução e prognóstico


Alguns fatores estão diretamente relacionados ao prognóstico, a
depender do estadiamento clínico, os quais se separam em 2 grupos:
de prognóstico favorável ou desfavorável. A estratificação de risco é
importante para determinar a intensidade do tratamento e reavaliar,
após o término, a efetividade da terapêutica instituída.
Quadro 13.2 - Fatores de mau prognóstico

Para pacientes em estádio precoce, a presença de apenas 1 fator de


mau prognóstico classifica-o como desfavorável. Nos estádios
avançados, quanto maior o número de fatores de mau prognóstico,
pior a sobrevida em 5 anos, variando de 84% para aqueles com
nenhum fator a 42%, se 5 ou mais fatores estiverem presentes.
Com as opções terapêuticas atuais, é possível alcançar até 94% de
sobrevida em 10 anos, o que torna o LH a doença onco-hematológica
com maior taxa de cura da atualidade.
13.3.6 Tratamento
O tratamento do linfoma de Hodgkin é feito com base no estádio
clínico do paciente e é baseado em quimioterapia. Radioterapia pode
ser utilizada em estádios avançados.
Em pacientes com estádio precoce favorável, a proposta é de 2 a 4
ciclos de quimioterapia e radioterapia da região linfonodal
acometida. O uso de radioterapia exclusiva apresenta maior taxa de
recidiva quando em comparação com o da terapia combinada. Já em
pacientes com estádio precoce desfavorável, a proposta é de 2 a 6
ciclos de quimioterapia e radioterapia de campo estendido.
Pacientes em estádio avançado devem receber quimioterapia isolada.
Radioterapia só é usada na lesão volumosa ou se houver lesão
residual.
Mesmo nos casos refratários, ou seja, resistentes à quimioterapia, ou
nas recaídas, que responderam ao tratamento inicial e voltaram a
apresentar a doença, a probabilidade de cura ainda chega a 50% com
tratamento adequado. A proposta, nesse caso, é quimioterapia de
resgate, com drogas quimioterápicas diferentes das do tratamento
anterior, seguida do transplante de células-tronco hematopoéticas
autólogo.
Um dos principais esquemas quimioterápicos de primeira linha para
o tratamento é o “ABVD” (Adriamicina, Bleomicina, Vimblastina e
Dacarbazina).
O papel do transplante de células-tronco hematopoéticas alogênico
(de doador) limita-se aos casos refratários a todas as terapias
prévias, com resultados bem menos promissores
(aproximadamente, 10 a 15% de resposta).
Como a maior parte dos pacientes com LH com PLN apresenta-se em
estádio precoce favorável e tem evolução e prognóstico muito bons,
o tratamento pode ser menos agressivo, com base em radioterapia
exclusiva. Para os estádios precoces desfavoráveis e avançados, o
tratamento é semelhante ao do LH clássico.
13.3.7 Linfoma de Hodgkin e HIV
Nos pacientes em que ocorre infecção pelo HIV, o LH apresenta-se
com maior frequência de sintomas B, diagnóstico de doença em
estadiamento avançado com maior incidência de infiltração de
medula óssea e/ou extranodal. Quase universalmente, encontra-se
coinfecção com vírus Epstein-Barr. Os subtipos histológicos mais
incidentes são a celularidade mista e a depleção linfocitária,
deixando de ser o LH clássico esclerose nodular. Apesar da melhora
dos resultados da quimioterapia após o uso de terapia antirretroviral
de alta potência (HAART, ou TARV, em português), o prognóstico é
pior do que no HIV negativo, denotando doença extremamente
agressiva.
13.4 LINFOMA NÃO HODGKIN
13.4.1 Introdução
O linfoma não Hodgkin caracteriza-se por uma proliferação anômala
de linfócitos T, linfócitos B ou células reticulares que estão em
estágios variados de maturação. Ocorre principalmente nos
linfonodos, mas pode acometer qualquer região onde haja essas
células. Apresentam, assim, ampla variedade histológica, imuno-
histoquímica e clínica.
13.4.2 Epidemiologia
É a sexta neoplasia mais diagnosticada e a sexta principal causa de
óbito por câncer. A incidência aumenta com a idade, e homens são
mais acometidos que mulheres.
A incidência dos diversos tipos difere geograficamente. Por exemplo:
o linfoma T/NK (Natural Killer) nasal tem maior incidência no sul da
Ásia e em partes da América Latina; ATLL (leucemia/linfoma de
células T do adulto) é mais comum no sul do Japão e no Caribe.
São consideradas causas do aumento da incidência:
a) Melhoria do diagnóstico;
b) AIDS;
c) Exposição ambiental;
d) Advento de terapias imunossupressoras.

13.4.3 Etiologia
Existem alguns agentes infecciosos relacionados já bem definidos:
1. HTLV-1 (vírus humano linfotrópico T): ATLL;
2. Vírus Epstein-Barr: linfoma de Burkitt, linfoma primário do SNC,
linfomas relacionados à imunossupressão e linfoma T/NK nasal;
3. Helicobacter pylori: linfoma MALT (Mucosa-Associated Lymphoid
Tissue) de estômago;
4. Borrelia sp.: linfoma B cutâneo;
5. Chlamydia psittaci: linfoma MALT ocular;
6. HIV: linfoma difuso de grandes células B e linfoma de Burkitt;
7. Vírus da hepatite C: linfoma esplênico da zona marginal;
8. Herpes-vírus humano tipo 8: linfoma primário de efusão
(também conhecido como linfoma de cavidades serosas).
Investigam-se ainda as incidências familiares aumentadas de LNH.
Doenças imunossupressoras, congênitas ou adquiridas também
estão relacionadas com o aumento da incidência.
Em cerca de 50% dos linfomas de células B, podem-se identificar
anormalidades cromossômicas, geralmente translocações. Pelo
menos em 3 entidades (linfoma de Burkitt, linfoma folicular e
linfoma do manto), translocações distintas estão presentes na
maioria dos casos, o que parece constituir eventos críticos no
desenvolvimento da doença.
13.4.4 Quadro clínico
A manifestação clínica depende muito do tipo de linfoma e do local
acometido. Tipicamente, manifesta-se como adenomegalia indolor,
confluente e de aumento progressivo; sintomas B estão presentes
em 25 a 40%, principalmente nos linfomas agressivos; outros
sintomas sistêmicos são menos comuns (< 10%) e sem valor
prognóstico, como fadiga, mal-estar e prurido. O tecido linfoide da
orofaringe (anel de Waldeyer) pode estar envolvido, em geral em
associação ao trato gastrintestinal. A hepatoesplenomegalia é bem
mais comum no LNH do que no LH, principalmente nos linfomas
indolentes.
A história e o exame físico completos são fundamentais para
detectar evidências de envolvimento extranodal (mais frequente no
trato gastrintestinal, mas também no SNC, nos testículos, no
pulmão, na pele e na medula óssea), sendo essa infiltração
extranodal bem mais comum do que no LH, com incidência em torno
de 35% dos casos.
O performance status é de valor prognóstico muito importante e
influi na decisão terapêutica, devendo ser documentado. As 2 escalas
mais utilizadas são a de Karnofsky e a do ECOG (Eastern Cooperative
Oncology Group – Quadro 13.3).
Quanto às síndromes paraneoplásicas, a hipercalcemia da
malignidade é vista no LNH, principalmente na doença mais
agressiva. A síndrome paraneoplásica mais rara é o pênfigo
paraneoplásico. Aproximadamente 80% das neoplasias associadas
ao pênfigo paraneoplásico são LNH, leucemia linfocítica crônica ou
doença de Castleman.
Quadro 13.3 - Escala de performance status do Eastern Cooperative Oncology Group

Complicações possíveis, como manifestação inicial do linfoma, que


necessitam de rápida identificação e tratamento, caracterizando
emergência médica, podem ocorrer principalmente nos subtipos
mais agressivos e nos pacientes com doença avançada.
As principais emergências médicas relacionadas com o linfoma são:
a) Síndromes compressivas, como compressão medular, síndrome da
veia cava superior, obstrução da via aérea superior (em geral, por
massa mediastinal), obstrução ou intussuscepção intestinal e
obstrução ureteral;
b) Tamponamento cardíaco;
c) Hipercalcemia, particularmente na ATLL;
d) Meningite linfomatosa ou lesão com efeito de massa no SNC;
e) Lise tumoral em linfomas de alto turnover (Burkitt e linfoblástico);
f) Hiperviscosidade em linfoma linfoplasmocítico;
g) Anemia ou plaquetopenia autoimune severas – habitualmente,
associadas ao linfoma linfocítico.

13.4.5 Classificação
Atualmente, é usada a classificação da OMS, que considera aspectos
morfológicos, imunofenotípicos, genéticos e clínicos.
Quadro 13.4 - Classificação da Organização Mundial da Saúde resumida
Os pacientes também podem ser agrupados em
apresentações clínicas de sobrevida
semelhante; assim, os LNHs são agrupados em
indolentes, agressivos e muito agressivos,
classificação importante para a programação
terapêutica.

Os linfomas indolentes têm crescimento lento e acometem


principalmente os idosos. Os pacientes podem apresentar-se com
poucos sintomas por vários anos, mesmo após o diagnóstico, sendo
comuns, por esse motivo, a apresentação em estádios avançados
(estádio III ou IV) e o envolvimento do sangue e da medula óssea.
Como o curso é lento, a sobrevida é de vários anos, mesmo se não
tratados. Pode-se, inclusive, observar ocasional regressão
espontânea em alguns casos. Entretanto, a cura em tais situações é
menos provável do que nos pacientes com formas agressivas de
linfoma, pois a taxa de recidiva é muito alta. Os linfomas indolentes
correspondem a, aproximadamente, 40% dos diagnósticos de LNH.
Por sua vez, os linfomas agressivos atingem qualquer idade,
geralmente adultos, apresentando-se com massa de rápido
crescimento. O envolvimento do sangue e da medula óssea, ao
contrário, é menos comum, e, caso não haja tratamento, a sobrevida
é curta, com duração de meses.
Por fim, os LNHs muito agressivos acometem crianças e adultos
jovens, com crescimento tumoral extremamente rápido; como
consequência, o estádio ao diagnóstico também é avançado. É
comum, inicialmente, a medula óssea e o SNC estarem
comprometidos, com sobrevida de semanas, se não houver
tratamento.
Os principais tipos de linfoma são indolentes (sobrevida de anos),
que incluem os linfomas linfocítico, linfoplasmocítico, folicular,
MALT e micose fungoide; agressivos (sobrevida de meses), que
compreendem os linfomas do manto, de grandes células B,
anaplásico e angiocêntrico T/NK; e, por fim, os altamente agressivos
(sobrevida de semanas), envolvendo o linfoma linfoblástico e o de
Burkitt.
13.4.6 Principais linfomas não Hodgkin
13.4.6.1 Difuso de grandes células B

É a neoplasia linfoide mais comum e corresponde a 25% de todos os


linfomas. A incidência aumenta com a idade, com mediana ao
diagnóstico de 64 anos e predomínio no sexo masculino. Apresenta-
se como massa de rápido crescimento, com diagnóstico em estádio
avançado em 60% dos casos. O acometimento extralinfonodal ocorre
em 40%, sendo o local mais comum o trato gastrintestinal, mas
pode acometer qualquer tecido: pele, testículo, SNC, ovários, osso,
tireoide, amígdalas etc. A medula óssea pode estar envolvida em até
30% dos casos ao diagnóstico. É agressiva, com taxa de sobrevida em
4 anos de 53 a 94%, de acordo com os fatores prognósticos e o
tratamento. A associação de poliquimioterapia ao rituximabe
(anticorpo monoclonal anti-CD20) melhorou em 15% as taxas de
remissão completa e sobrevida.
13.4.6.2 Folicular

É o linfoma indolente mais comum (20% dos LNHs e 70% dos LNHs
indolentes) de células B. Ocorre, sobretudo, em idosos (mediana de
idade ao diagnóstico de 60 anos), com discreto predomínio nas
mulheres, com linfadenopatia generalizada, indolor e, muitas vezes,
extensa. O comprometimento de órgãos que não linfonodos ou
medula óssea é incomum. Em 60 a 70% dos casos, a medula óssea
está acometida ao diagnóstico. Histologicamente, é subclassificado
pela OMS em graus I, II ou III (predomínio de células pequenas,
mistas ou grandes, respectivamente), sendo essa divisão de
importante valor prognóstico, pois o grau III é de evolução mais
rápida e com menor sobrevida. Pode evoluir para formas
rapidamente progressivas (linfoma de células B difuso), de
prognóstico mais reservado. A sobrevida de 8 a 12 anos é comum,
mesmo sem indicação terapêutica.
13.4.6.3 MALT

O MALT é um linfoma indolente de células B, que pode ser dividido


em 3 classes: nodal, esplênico e extranodal, sendo o último o mais
comum. O linfoma MALT extranodal pode desenvolver-se em
inúmeros tecidos: estômago, intestino, glândulas salivares, tireoide,
pulmões, anexos oculares, pele etc., sendo o quadro clínico
dependente do local acometido.
A maioria dos casos de linfoma MALT é localizada, muitas vezes
alcançando longos períodos de remissão apenas com tratamento
cirúrgico ou radioterápico, mas apresenta alta taxa de recidiva e
potencial de disseminação e transformação em linfoma agressivo ao
longo dos anos.
O linfoma MALT gástrico é o principal representante dessa classe de
LNH, associado ao Helicobacter pylori em mais de 90% dos casos. Os
sintomas são semelhantes aos da úlcera e do adenocarcinoma
gástrico (com dispepsia inespecífica, epigastralgia e síndrome
consumptiva), e o aspecto endoscópico pode ser de gastrite
inespecífica a úlcera péptica, pólipo e adenocarcinoma, localizados
principalmente no antro ou de padrão multifocal. A biópsia permite
fazer o diagnóstico. Alguns linfomas MALT gástricos, quando
localizados, curam-se com a erradicação do Helicobacter pylori (60 a
70%); a radioterapia é reservada aos casos refratários ao tratamento
antimicrobiano, mas com doença localizada, e aos casos em que a
pesquisa de H. pylori é negativa.
A quimioterapia concomitante está indicada apenas quando a doença
está avançada; já a cirurgia é prescrita somente quando há
complicações (obstrução ou perfuração). O paciente com linfoma
MALT tem prognóstico, na maior parte das vezes, muito bom.
13.4.6.4 Linfoblástico
Pode ter origem em célula B ou T. Trata-se de um espectro
linfomatoso da leucemia linfoide aguda, ou seja, a célula que dá
origem às 2 doenças é a mesma (linfócito imaturo – linfoblasto),
mas as manifestações clínicas são diferentes.
No Linfoma Linfoblástico (LL), há aumento de gânglios linfáticos,
caracteristicamente do mediastino, e na medula óssea há menos de
25% de blastos. Na leucemia, podem existir adenomegalias, mas há
mais de 25% de blastos na medula óssea. O LLT (linfócito T
intratímico imaturo) ocorre, predominantemente, em adultos
jovens, adolescentes e crianças. É 2 vezes mais frequente em homens
e tem, como característica clínica mais importante, o aparecimento
de adenomegalia difusa e de massa mediastinal, muitas vezes, com
derrames pleural e pericárdico associados.
No LLB, é menos comum o envolvimento mediastinal, sendo mais
frequente o acometimento extranodal. Junto à LLAB, perfaz o tipo de
câncer mais comum da infância. Ambos apresentam alto risco de
infiltração no SNC. Tanto o LLB como o T apresentam envolvimento
precoce de medula óssea e evoluem rapidamente para LLA, devendo
ser tratados como uma leucemia aguda. Os poucos que conseguem
manter a doença na fase linfomatosa alcançam alta taxa de cura.
13.4.6.5 Burkitt

Consiste em um linfoma morfologicamente formado por pequenas


células não clivadas.
Observam-se 3 formas clínicas distintas:
1. Endêmica: principalmente em crianças africanas, com
comprometimento mandibular ou intra-abdominal, sendo considerado
endêmico nessa região, onde é comum o encontro de evidências de
infecção pelo vírus Epstein-Barr;
2. Esporádica: mais frequente na África e na América, envolvendo
mais comumente o intestino, o retroperitônio e os ovários;
3. Em associação a imunodeficiência: mais comum em adultos e
pacientes HIV positivos (acomete aqueles com alto valor de CD4 e
sem infecção oportunista).
É considerado o linfoma de crescimento mais rápido, que pode
dobrar o volume das massas em 24 horas, com habitual
envolvimento extranodal, principalmente intra-abdominal, do SNC
e da medula óssea. Em vista da velocidade de crescimento
exacerbada, é comum apresentar, ao diagnóstico, sinais de lise
tumoral espontânea (hipercalemia, hiperfosfatemia, hiperuricemia,
hipocalcemia, alto valor de DHL, disfunção renal, convulsões e
arritmias cardíacas ou morte súbita), e o prognóstico pode ser muito
comprometido, se o tratamento não é iniciado o mais rápido
possível. A taxa de cura com as opções terapêuticas atuais chega a
80%.
Figura 13.5 - Criança com linfoma não Hodgkin de Burkitt

Fonte: adaptado de Mike Blyth.

13.4.6.6 Do manto
Corresponde a 7% dos LNHs. O diagnóstico é feito em estádio
avançado em 70% dos casos, sendo bastante frequente o
envolvimento extranodal, como a medula óssea, o baço e o trato
gastrintestinal, principalmente o intestino e o anel de Waldeyer. É
um subtipo de linfoma de prognóstico ruim, com sobrevida em 5
anos entre 25 e 50%, de acordo com os fatores prognósticos.
13.4.6.7 Micose fungoide

É um linfoma de células T cutâneo que geralmente leva a variado


quadro clínico dermatológico, incluindo placas, nódulos e/ou
eritrodermia esfoliativa generalizada. Quando ocorre a leucemização
desse linfoma (pela presença de células de Sézary, de núcleos
convolutos e cerebriformes), dá-se o nome de síndrome de Sézary.
A sobrevida média desse tipo de linfoma é de cerca de 10 anos,
caracterizando-se como doença indolente, podendo variar até 1 ano,
de acordo com estadiamentos mais avançados.
Figura 13.6 - Placas elevadas e eritematosas, cuja biópsia resultou em infiltração difusa
por linfócitos T, típicos de micose fungoide
Fonte: Bobjgalindo, 2009.

Figura 13.7 - Eritrodermia difusa em micose fungoide


Figura 13.8 - Células de Sézary
13.4.6.8 Leucemia/linfoma de células T do adulto

Rara nos países ocidentais, é a forma mais comum de linfoma na


Ásia e é causada pelo vírus HTLV-1. A ATLL pode ter comportamento
extremamente agressivo, mas algumas apresentações clínicas
podem ter curso mais indolente. De maneira geral, essa patologia
não pode ser curada, apresentando diferentes formas clínicas:
1. ATLL aguda: apresenta-se na forma leucêmica com elevada
contagem leucocitária à custa de linfócitos cujo núcleo tem aspecto
“de flor” (flower cells), rash cutâneo, linfadenomegalia generalizada,
visceromegalia, sintomas constitucionais, aumento de DHL e
hipercalcemia. A sobrevida pode variar de algumas semanas a 1 ano;
2. ATLL linfomatosa: caracterizado, como o nome indica, por
proeminente linfonodomegalia, porém sem envolvimento de sangue
periférico. Hipercalcemia é menos frequente do que na forma aguda;
em contrapartida, o estadiamento ao diagnóstico é usualmente
avançado. A sobrevida varia no mesmo período do que na fase aguda;
3. ATLL crônica: apresenta quadro clínico mais protraído, com
sobrevida mais longa, podendo, entretanto, transformar-se na fase
aguda agressiva. Pode haver lesões de pele e linfocitose sem
linfócitos atípicos no sangue periférico. Nesta forma, não há
hipercalcemia;
4. ATLL indolente/smoldering: quadro bastante lento, caracterizado
apenas por imunofenotipagem com células neoplásicas em pequena
quantidade, usualmente abaixo de 5%. Como as demais
apresentações, pode tornar-se agressiva.
Figura 13.9 - Flower cells típicas de leucemia/linfoma de células T do adulto – forma
leucêmica
Fonte: Human T-cell leukemia virus type I (HTLV-I) infection and the onset of adult T-cell
leukemia (ATL), 2005.

13.4.7 Fatores prognósticos


Alguns fatores prognósticos são utilizados na tentativa de predizer a
sobrevida em caso de LNHs agressivos, submetidos ao tratamento
convencional.
Quadro 13.5 - Prognóstico internacional para linfoma não Hodgkin
Esse índice pode ser adaptado de acordo com a idade (indivíduos >
60 anos têm sobrevida pior), o subtipo histológico (o folicular
considera a hemoglobina também como fator importante) ou o uso
de anticorpo monoclonal anti-CD20 no tratamento do linfoma de
grandes células B (a estratificação é feita em prognóstico muito bom,
bom e ruim, e a sobrevida em 4 anos varia entre 55 e 94%).
13.4.8 Linfoma não Hodgkin e HIV

Em pacientes HIV positivos, os LNHs ocorrem


com uma frequência muito maior que a
esperada na população HIV negativo.
Nos pacientes HIV positivos, os LNHs ocorrem a uma frequência
extremamente maior do que a esperada na população HIV negativo,
constituindo, assim, a segunda neoplasia mais comum nesse grupo,
só perdendo para o sarcoma de Kaposi. Comparando o LH e o LNH,
este último é o mais comum em pacientes com HIV. Apesar de o uso
de antirretrovirais altamente ativos ter mudado a história natural da
AIDS e a incidência das neoplasias nessa população, a ocorrência de
LNH se mantém alta quando comparada com a população HIV
negativo.
Em contraste com o sarcoma de Kaposi, que tem maior incidência
em homens que fazem sexo com homens, o LNH não tem predileção
por comportamento de risco, acometendo todas as faixas etárias,
especialmente homens. O risco de desenvolvimento do linfoma
correlaciona-se diretamente com a intensidade e o tempo de
imunossupressão (CD4 < 100/mm3) e com a alta carga viral;
configura-se, então, em um evento tardio na evolução da doença.
Exceção se faz ao linfoma de Burkitt, que habitualmente acomete
indivíduos mais jovens e com contagem de CD4 relativamente alta
(cerca de 200/mm3).
Esses linfomas são histologicamente heterogêneos e quase sempre
derivados de células B.
Os tipos mais comuns de linfomas associados ao HIV são:
a) LNH sistêmico, com destaque para o difuso de grandes células B e
suas variantes imunoblástica e plasmoblástica (acometem a cavidade
oral) e o linfoma de Burkitt;
b) Linfoma de efusão primária, que se apresenta com derrames pleural
e pericárdico ou ascite, sem massa associada, diagnosticado por
imunofenotipagem desses líquidos;
c) Linfoma primário de SNC.

Em quaisquer de suas formas, o curso é extremamente agressivo e de


acometimento extranodal frequente. O tratamento do linfoma
concomitante com esquema antirretroviral é fundamental.
13.4.9 Tratamento
A orientação terapêutica depende do tipo
histológico e do estadiamento clínico e baseia-
se em esquemas de poliquimioterapia
associados ou não a anticorpos monoclonais ou
à radioterapia. Para algumas formas específicas
de linfoma, o rituximabe (um tipo de anticorpo
monoclonal anti-CD20) associado à
quimioterapia é utilizado.

Nos linfomas indolentes, observa-se baixa fração de proliferação


celular neoplásica; logo, apesar do curso lento, em sua maioria, são
doenças incuráveis, embora sejam indolentes e de curso arrastado, e
dificilmente respondem ao tratamento de forma definitiva. Mesmo
após o tratamento e a aparente remissão, as chances de recidivas são
enormes. Por isso, muitas vezes, é possível adotar uma conduta
expectante em que o paciente é mantido sem tratamento até haver
sintomatologia ou progressão da doença. O tratamento
habitualmente é realizado com quimioterapia. Nos linfomas T
cutâneos (micose fungoide), pode-se optar por tratamento tópico
com esteroides ou quimioterapia, bem como quimioterapia ou
radioterapia nos estadiamentos mais avançados.
Já os linfomas agressivos apresentam alta taxa de proliferação
celular, tornando-os mais sensíveis à ação quimioterápica e com
potencial chance de cura. Em estádios mais localizados, pode-se
optar por poucos ciclos de quimioterapia em associação a
radioterapia ou mais ciclos de quimioterapia e sem radioterapia –
apenas para casos que não apresentarem doença bulky. A
radioterapia exclusiva apresenta altas taxas de recidiva, não sendo
encorajada. Nos estádios avançados, é imperioso o tratamento
quimioterápico completo, com 6 ciclos contendo antracíclico e, se
linfoma B, rituximabe, sendo associados à radioterapia apenas em
situações especiais. A taxa de remissão completa e a sobrevida livre
de doença dependem do tipo de linfoma, do escore prognóstico e do
tratamento utilizado.
Finalmente, os linfomas altamente agressivos têm extrema
sensibilidade ao tratamento quimioterápico, pela altíssima taxa de
proliferação celular, sendo neoplasias potencialmente curáveis.
Destaca-se que esses linfomas têm incidência importante de
infiltração extranodal no SNC, necessitando, na grande maioria dos
protocolos, de quimioterapia profilática ou terapêutica intratecal.
No tratamento de recidivas dessas doenças, o raciocínio é
semelhante àquele utilizado para o LH: deve-se proceder à terapia de
salvamento com protocolos de quimioterapia não utilizados, dando
preferência ao transplante de células-tronco hematopoéticas
autólogo (agressivos) e alogênico (indolentes e muito agressivos).
13.4.10 Evolução e prognóstico
Os linfomas com melhor prognóstico apresentam como
características principais: histologia favorável; menor volume de
massa tumoral; nenhum comprometimento extranodal; ausência de
leucocitose no sangue periférico; idade < 60 anos; estádios menos
avançados (I ou II); bom performance status; DHL normal.
13.5 DIFERENÇAS CLÍNICAS
Quadro 13.6 - Diferenças entre linfoma de Hodgkin e linfoma não Hodgkin
Quais são os tipos de
linfoma? Como fazer o
diagnóstico?
Os principais tipos de linfoma são o de Hodgkin e o linfoma
não Hodgkin. Para o diagnóstico, é importante biópsia
excisional e exames de imagem para avaliação da doença.
Quando pensar no
diagnóstico de mieloma
múltiplo?

14.1 INTRODUÇÃO
O Mieloma Múltiplo (MM) é uma neoplasia resultante da
proliferação dos plasmócitos, que são células oriundas de
precursores linfoides. Essas células são linfócitos B maduros
destinados a produzir imunoglobulinas (anticorpos), normalmente
presentes na medula óssea, mas que podem ser encontrados em todo
o corpo, em qualquer lugar que exista uma resposta imune.
Os plasmócitos produzem diferentes anticorpos, de acordo com os
estímulos antigênicos (ou seja, levam ao aumento policlonal de
imunoglobulinas). No MM, entretanto, ocorre a proliferação de um
único tipo de plasmócito neoplásico, produtor de um único tipo de
imunoglobulina, sem necessidade de estímulo antigênico, levando
ao aumento da chamada proteína M, que resulta no seu pico
monoclonal e é detectada no sangue e/ou na urina.
O MM corresponde a 1% de todos os tipos de câncer e a 10% das
neoplasias hematológicas. É responsável por 20% de todas as mortes
por neoplasia hematológica.
A incidência é de, aproximadamente, 4 casos por 100.000
habitantes/ano nos países industrializados, sendo mais comum em
negros do que em brancos, e acomete mais homens do que mulheres,
segundo trabalhos norte-americanos. A doença acomete,
principalmente, indivíduos mais velhos, com idade média de 65
anos, entretanto 10% dos casos são de pessoas com menos de 50
anos, e 2%, de pessoas com menos de 40 anos, denotando a
tendência atual de aumento de incidência em faixas etárias mais
precoces.
Algumas anormalidades cromossômicas têm importância na
patogênese do MM. A translocação mais encontrada na patogênese
do MM envolve os cromossomos 11 e 14; vale destacar que as
deleções 13q e 17p, quando detectadas, conferem pior prognóstico à
doença, principalmente a 17p. Também são frequentes as trissomias
(cromossomos 3, 5, 7, 9, 11, 15, 18, 19, 21), monossomias (8, 13, 16,
20, 22), translocações dos tipos t(11;14), t(8;14) e t(14;18),
hipodiploidias e deleções. Estas, por sua vez, determinam rearranjos
genéticos que aumentam a expressão de certos genes (proto-
oncogenes que se tornam oncogenes) e diminuem a atividade de
outros (como as mutações do gene supressor p53).
14.2 FISIOPATOLOGIA
Após anormalidade genética, origina-se um clone de plasmócitos
anômalos, produtores de proteína monoclonal, resultando em uma
condição clínica chamada Gamopatia Monoclonal de Significado
Indeterminado (GMSI). É necessário que novas anormalidades
citogenéticas aconteçam para que o plasmócito anômalo interaja
com as células do estroma medular e proteínas da matriz
extracelular por meio de moléculas de adesão, desencadeando vias
produtoras de citocinas (IL-6, IGF-1, VEGF, alfa-SDF-1),
responsáveis pelo crescimento e pela sobrevida da célula tumoral,
efeito antiapoptótico e inclusive de resistência a drogas.
O crescimento descontrolado dos plasmócitos, a inibição de sua
apoptose e o aumento da síntese de proteína M têm várias
consequências clínicas, incluindo destruição óssea, anemia,
aumento da viscosidade plasmática, supressão da síntese das
imunoglobulinas normais e insuficiência renal, responsáveis pelo
quadro clínico do MM.
Em alguns casos, a doença pode permanecer assintomática por anos,
pois o crescimento tumoral pode ser muito lento.
14.2.1 Proteína M
As imunoglobulinas são proteínas formadas por 4 cadeias
polipeptídicas: 2 cadeias pesadas e 2 leves (Figura 14.1). As cadeias
pesadas podem ser de 5 tipos e dão nome ao tipo de imunoglobulina
(G, A, D, E, M), enquanto as cadeias leves são de 2 tipos: lambda e
kappa.
Figura 14.1 - Estrutura de uma molécula de imunoglobulina
As imunoglobulinas formadas normalmente têm diferentes cadeias
pesadas e ambas as cadeias leves, sendo, portanto, policlonais,
enquanto as proteínas sintetizadas por plasmócitos e linfócitos B
neoplásicos ou monoclonais têm sempre o mesmo tipo de cadeias
pesadas e/ou leves, sendo então chamadas de proteína M (proteína -
monoclonal).
A síntese excessiva da proteína M resulta em:
a) Déficit de produção e do funcionamento normal das imunoglobulinas
normais;
b) Quadro de hiperviscosidade, a depender da quantidade e do tipo da
imunoglobulina – quanto maior em tamanho e quantidade, maior o
risco de sintomas relacionados ao aumento da viscosidade sanguínea
(maior risco com a IgM);
c) Ligação a fatores de coagulação com disfunção destes,
ocasionando quadros de sangramento;
d) Pseudo-hiponatremia;
e) Redução do ânion-gap;
f) Ligação a hormônios circulantes, resultando em disfunções
endócrinas variadas;
g) Disfunção renal por depósito de cadeias leves.

Em cerca de 30% dos casos, a proteína monoclonal produzida não é


uma imunoglobulina inteira, somente fragmentos desta; quando
essa proteína é uma cadeia leve (kappa ou lambda), pode passar
pelos glomérulos renais e ser excretada na urina, sendo chamada
proteína de Bence Jones. Em outros casos, ainda mais raros, a
proteína M é formada apenas por cadeias pesadas (ocasionando a
chamada doença das cadeias pesadas). Existem ainda casos menos
comuns em que o MM, apesar da proliferação excessiva de
plasmócitos, não é capaz de produzir cadeias de imunoglobulina,
chamado de “mieloma não secretor”.
A eletroforese de proteínas é o exame laboratorial capaz de avaliar a
concentração das proteínas séricas e a proporção das diferentes
frações, permitindo quantificar as imunoglobulinas que se movem
de forma heterogênea pelo campo elétrico, e, quando há componente
monoclonal, este se move de maneira homogênea, formando um
pico na região gama (menos comum na região beta ou alfa 2 –
Figuras 14.2 e 14.3). A quantidade de anticorpo deve ser de, no
mínimo, 0,5 g/dL para ser detectada por esse método, podendo
passar despercebida em pacientes com neoplasia pouco secretora.
Figura 14.2 - Eletroforese de proteínas: padrão normal
Fonte: adaptado de Eletroforese de proteínas séricas: interpretação e correlação clínica,
2008.

Figura 14.3 - Eletroforese de proteínas: padrão monoclonal na região gama

Fonte: adaptado de Eletroforese de proteínas séricas: interpretação e correlação clínica,


2008.

A imunoeletroforese de proteínas, ou imunofixação, é o exame que


confirma a monoclonalidade da proteína, mesmo em pequenas
quantidades, sendo um exame muito mais sensível e específico do
que a eletroforese, devendo, sempre que possível, ser solicitado em
associação à eletroforese de proteínas tradicional.
O encontro da proteína monoclonal não é exclusivo do mieloma e
pode ser detectado em outras situações: outras doenças dos
plasmócitos (amiloidose primária, macroglobulinemia de
Waldenström), linfoproliferações malignas (leucemia linfoide
crônica, linfomas B ou T), outras neoplasias (leucemia mieloide
crônica, câncer de mama, câncer de cólon), outras doenças não
neoplásicas (cirrose, sarcoidose), doenças autoimunes (artrite
reumatoide, miastenia gravis) e raras doenças de pele (líquen
mixedematoso, xantogranuloma necrobiótico).
14.3 QUADRO CLÍNICO
O quadro clínico do MM manifesta-se comumente por dor óssea,
anemia (associada a fraqueza e astenia), poliúria e polidipsia
(associadas a lesão renal e hipercalcemia), infecções e
sangramentos.
14.3.1 Dor óssea
A dor óssea é o sintoma mais comum do mieloma, acometendo 70%
dos pacientes, enquanto a lombalgia é caracterizada por ser
mecânica, tendendo a poupar os pedículos vertebrais
(diferentemente das metástases ósseas). A maior parte dos pacientes
de MM apresenta dor de intensidade variável, com frequência no
dorso ou nas costelas, que piora ao movimento e melhora ao
repouso. Dor súbita e severa sugere fratura patológica ou colapso de
corpo vertebral.
Existe intensa inter-relação entre os plasmócitos anômalos e as
outras células do estroma medular, incluindo osteoclastos e
osteoblastos. No MM, observa-se aumento da ativação de
osteoclastos. Paralelamente, há inibição de osteoblastos por ação das
mesmas citocinas locais, resultando, desse desequilíbrio entre
osteoblastos e osteoclastos, na hipercalcemia, na osteoporose
difusa, nas lesões líticas, na diminuição da estatura e na
suscetibilidade a fraturas patológicas.
Figura 14.4 - Achatamento de vértebras por fraturas patológicas
Figura 14.5 - Lesão lítica no crânio

Deve-se suspeitar da compressão da medula espinal por


plasmocitoma ou fragmento ósseo quando há dor intensa, fraqueza e
parestesia de membros, disfunção ou incontinência urinária ou fecal.
Esse caso compreende uma emergência médica.
O principal diagnóstico diferencial das lesões líticas é feito com
metástases ósseas líticas oriundas geralmente de carcinomas de
mama e pulmão. Destacam-se as seguintes diferenças entre MM e
lesões metastáticas:
1. Dor óssea do MM: é, em geral, movimento-dependente, enquanto
na metástase a dor costuma ser contínua e com piora noturna (esse
padrão pode ocorrer no mieloma, sugerindo fratura óssea);
2. Lesões do MM: poupam os pedículos vertebrais, enquanto as
metastáticas têm preferência por estas estruturas.
14.3.2 Anemia
Mal-estar geral, fraqueza e queixas vagas são frequentes e
comumente associados à anemia. A anemia no MM é geralmente
hipoproliferativa, normocítica e normocrômica. Pequena
porcentagem dos casos apresenta anemia megaloblástica secundária
à deficiência de vitamina B12 ou folato, de etiologia não esclarecida.
Neutropenia e plaquetopenia também podem ocorrer.
14.3.3 Hipercalcemia
A hipercalcemia, presente em 30% dos casos ao diagnóstico, pode
ser assintomática, apresentar sintomas inespecíficos, como astenia,
obstipação e depressão, ou sintomas mais severos, como poliúria,
polidipsia, desidratação, náusea e vômito, confusão mental,
rebaixamento do nível de consciência ou até coma. A precipitação
tubular de sais de cálcio piora a função renal desses indivíduos.
14.3.4 Disfunção renal

As principais causas de disfunção renal no MM são obstrução tubular


por proteínas monoclonais de cadeia leve associada à atrofia e à
inflamação tubular (rim do mieloma), além de hipercalcemia. Não
podemos esquecer também a nefrotoxicidade causada por
medicamentos, como os anti-inflamatórios não esteroides. A
creatinina sérica está aumentada em 50% dos casos ao diagnóstico
(> 2 mg/dL, em 20%), e pode-se estabelecer correlação entre
presença e severidade da disfunção renal ao diagnóstico e sobrevida
(80% de sobrevida em 1 ano para creatinina 1,5 mg/dL versus 50%
para creatinina > 2,3 mg/dL). Dois fatores principais contribuem
para a insuficiência renal: acúmulo de proteínas monoclonais e
hipercalcemia.
O acúmulo tubular de proteínas monoclonais de cadeias leves resulta
em nefropatia obstrutiva (rim do mieloma), caracterizada por
atrofia dos túbulos proximais, obstrução dos túbulos distais e
coletores, inflamação e fibrose intersticial. É a primeira causa de
insuficiência renal no MM. O principal dano tubular causa acidose
tubular renal do tipo II (proximal, com redução na capacidade de
reabsorção do bicarbonato).
A hipercalcemia é a segunda principal causa de nefropatia,
ocasionando diminuição da capacidade de concentração urinária,
por induzir resistência ao hormônio antidiurético, levando a poliúria
e desidratação. A hipercalciúria acarreta aumento da diurese por
osmose e, consequentemente, depleção volêmica e insuficiência
renal do tipo pré-renal (causa vômitos e anorexia). Nesses casos, a
vasoconstrição renal aumenta a toxicidade das cadeias leves. Pode
haver, ainda, depósito de cálcio nos túbulos renais, evoluindo para
nefrite intersticial.
Outros fatores também importantes são o uso de drogas nefrotóxicas
(anti-inflamatórios não esteroides e contrastes radiográficos),
infecções e hiperuricemia, que podem contribuir na evolução para a
falência renal; 50% dos pacientes que apresentam creatinina < 4
g/dL manifestam reversão completa da função renal após o início do
tratamento. Também tem valor prognóstico a recuperação completa
da função renal após o tratamento: sobrevida de 28 meses para
aqueles que a recuperam e 4 meses para os que não a recuperam.
14.3.5 Infecções
As principais manifestações clínicas infecciosas no MM são
pneumonia e pielonefrite, e os principais agentes, Streptococcus
pneumoniae, Haemophilus influenzae, Klebsiella pneumoniae e
Escherichia coli. Infecção viral, como o herpes-zóster, também é
comum.
As infecções são causadas por diminuição da produção e aumento da
destruição das imunoglobulinas normais (por elevação do
catabolismo), diminuição dos linfócitos T CD4+, diminuição de
plasmócitos normais, comprometimento da função de neutrófilos,
monócitos/macrófagos e do sistema complemento e uso de
medicamentos imunossupressores, como a dexametasona.
14.3.6 Sintomas constitucionais
Há perda ponderal em 24% dos casos, ao passo que febre aparece em
menos de 1% e, quando presente, provavelmente, está relacionada à
manifestação de quadro infeccioso.
14.3.7 Síndrome de hiperviscosidade
Trata-se de complicação em menos de 10% dos pacientes com
diagnóstico de mieloma, mais comum nos casos de IgA e IgM. As
altas concentrações de proteína M plasmática levam ao aumento da
viscosidade do plasma, responsável por distúrbio circulatório, que se
manifesta principalmente por disfunções cerebral, pulmonar,
cardíaca e renal. Em geral, está associada à manifestação
hemorrágica pela relação entre coagulopatia e distúrbio circulatório,
provocados pelo excesso de imunoglobulina.
Na síndrome de hiperviscosidade, o quadro clínico pode ser bastante
severo, com sangramento de mucosas (epistaxe é frequente),
distúrbios visuais, hipoacusia, cefaleia, sonolência (até coma),
infarto agudo do miocárdio e grande quantidade de sintomas
neurológicos isquêmicos, causados pela redução da oxigenação
tecidual.
O risco aumentado de sangramento é causado pela ligação das
proteínas monoclonais aos fatores de coagulação e às plaquetas, e
muito raramente há trombocitopenia. A uremia, quando presente,
faz piorarem os quadros hemorrágicos.
O tratamento da hiperviscosidade é feito com plasmaférese.
A macroglobulinemia de Waldenström é caracterizada
principalmente por síndrome de hiperviscosidade.
14.3.8 Sintomas neurológicos
A radiculopatia configura-se como a principal complicação
neurológica do MM, resultante, em geral, de plasmocitoma
paravertebral compressivo ou colapso vertebral. Compressão da
medula espinal por plasmocitoma ou fragmento ósseo é uma
emergência médica e necessita de intervenção imediata, com
radioterapia e/ou com corticoterapia em altas doses.
Plasmocitoma no sistema nervoso central é raro e, quando ocorre,
em geral se deve à extensão de lesão na calota craniana ou na base do
crânio.
A hipercalcemia pode ser responsável por sintomas como letargia,
fraqueza, depressão e confusão mental.
A hiperviscosidade pode causar cefaleia, fadiga, distúrbio visual ou
até sinais e sintomas de isquemia cerebral.
Neuropatia periférica, pouco comum, ocorre como resultado do
depósito de substância amiloide ou efeito adverso de medicamento
(talidomida, bortezomibe).
Finalmente, as infecções (em especial, a varicela-zóster) podem
levar a quadros neurológicos, como a paralisia de Bell.
O Quadro 14.1 traz a fisiopatologia das principais manifestações do
MM.
Quadro 14.1 - Fisiopatologia das manifestações do mieloma múltiplo
14.4 TIPOS DE MIELOMA
As diferentes imunoglobulinas produzidas pelas várias formas do
MM caracterizam padrões de doença diversos. A imunoglobulina
mais usual produzida no MM é a IgG, e a mais rara, a IgE. O MM IgA é
aquele associado à monoclonalidade da imunoglobulina A,
comumente ligado ao envolvimento extraósseo. O MM IgD
(produção exacerbada e exclusiva de imunoglobulina D) está, com
frequência, relacionado a leucemia de células plasmáticas, lesões
renais mais severas e pior prognóstico (junto às imunoglobulinas de
cadeia leve).
Quadro 14.2 - Distribuição dos diferentes tipos de mieloma múltiplo
14.5 DIAGNÓSTICO
Alguns exames laboratoriais são importantes para o diagnóstico de
mieloma múltiplo: hemograma, mielograma, imunofenotipagem,
eletroforese de proteínas séricas e urinárias, urina de 24 horas,
imunofixação de proteínas urinárias. Certos exames são
confirmatórios para o diagnóstico, como imunofenotipagem e -
citogenética.
A urina I detecta aumento de proteína à custa de albumina, mas não
proteína monoclonal, portanto não pode ser utilizada para a triagem
de mieloma. Deve-se solicitar imunoeletroforese ou imunofixação
para detecção da proteína monoclonal e eletroforese para
quantificação.
No hemograma, há a formação do chamado rouleaux de hemácias
(glóbulos vermelhos empilhados – “empilhamento de moedas”, em
virtude do excesso de paraproteínas séricas), anemia normocítica e
normocrômica em 75% dos casos, leucopenia (< 4.000/mm3) e
plaquetopenia (< 100.000/mm3) podem ocorrer, apresentando-se
em 20 e 5% dos casos, respectivamente. Leucemia de células
plasmáticas é definida como plasmocitose no sangue periférico >
20% do diferencial de leucócitos, ou > 2.000/mm3, bastante rara
(15% dos casos) e de prognóstico muito ruim.
Figura 14.6 - Hemácias “em rouleaux”
Fonte: Interpretación del Hemograma, 2017.

O mielograma ou biópsia de medula óssea evidencia > 10% de


plasmócitos monoclonais maduros, pró-plasmócitos ou
plasmoblastos.
A imunofenotipagem ou imuno-histoquímica é importante para
comprovar a monoclonalidade do plasmócito, detecta cadeia kappa
ou lambda, nunca ambas (a relação kappa–lambda > 4:1 ou < 1:2
preenche a definição de monoclonalidade kappa ou lambda,
respectivamente). Dessa forma, é possível a diferenciação de
quadros com plasmocitose reacional.
Figura 14.7 - Células plasmáticas

Fonte: LindseyRN.

Não há alteração citogenética típica ou diagnóstica do MM, mas se


pode investigar alterações que tenham valor prognóstico e possam
influenciar a conduta terapêutica, por meio do exame de cariótipo
convencional ou, preferencialmente, por técnicas mais sensíveis,
como o FISH (hibridização fluorescente in situ); o cariótipo
convencional, por sua vez, é de extrema dificuldade nessa doença,
pelo baixo índice mitótico plasmocitário, com pobres resultados e
ausência de metáfases.
O índice de replicação plasmocitária na medula óssea é pouco
utilizado na prática clínica, mas tem valor prognóstico importante –
índice ≥ 1% apresenta pior prognóstico quando comparado com
índice < 1%.
A identificação da imunoglobulina monoclonal é possível em 97%
dos casos com o arsenal diagnóstico atual. Pode ser feito pelo sangue
periférico e urina. No sangue, a eletroforese de proteínas revela, de
forma quantitativa, pico de proteína monoclonal, e a
imunoeletroforese de proteínas, ou imunofixação, é importante para
esclarecer a monoclonalidade de forma qualitativa. Na urina, a
proteinúria de 24 horas e a eletroforese de proteínas quantificam a
perda proteica e diferenciam a perda de albumina (síndrome
nefrótica ou amiloidose AL) da perda de proteína monoclonal (de
Bence Jones), além de fazer análise quantitativa. A imunofixação de
proteínas na urina determina proteína M qualitativamente e
pesquisa cadeias leves livres em pacientes oligossecretores, nos
quais não se identifica alteração na eletroforese de proteínas ou na
imunofixação.
Em 3% dos casos, não é possível identificar a proteína monoclonal
(mesmo com a pesquisa de cadeia leve livre no sangue ou na urina),
ao que se dá o nome de mieloma não secretor. Os pacientes não têm
risco de desenvolver doença renal e apresentam prognóstico
semelhante ao do mieloma secretor.
Outros exames necessários para avaliação do MM são: dosagem das
imunoglobulinas séricas, importante para detectar redução das
imunoglobulinas normais; cálcio sérico, ureia e creatinina, que
geralmente estão elevados; ânion-gap, que está diminuído
secundária à hipercalcemia e pela presença de IgG aumentada
(catiônica); ácido úrico e coagulograma, que estão eventualmente
alterados; dosagem de beta-2-microglobulina, que está elevada em
75% ao diagnóstico, indicando tanto carga tumoral quanto valor
prognóstico.
14.5.1 Métodos de imagem
1. Radiografia de esqueleto: espera-se encontrar osteoporose difusa,
lesões líticas e/ou fraturas patológicas em aproximadamente 80% ao
diagnóstico. Os locais mais acometidos são corpos vertebrais, calota
craniana, caixa torácica, pelve, úmero e fêmur;
2. Ressonância magnética e/ou PET-TC: devem ser consideradas
sempre que possível ou ao menos em pacientes com quadro de dor
sem alterações na radiografia simples. Ressonância é obrigatória
quando há sinais de compressão medular ou na suspeita de
plasmocitoma ósseo solitário.
14.6 CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO
Para o diagnóstico de mieloma, é necessária a presença de 3 fatores:
a) Presença de proteína monoclonal sérica ou urinária – não é
estipulado nenhum valor mínimo, visto que 40% apresentam < 3 g/dL
dessa proteína (porém, esta deve estar presente);
b) Presença de > 10% de plasmócitos monoclonais na medula óssea
ou plasmocitoma;
c) Presença de sintomas, ou seja, alteração em tecidos/órgãos-alvo
(pelo menos 1 dos 4 sintomas, conhecidos pelo acrônimo CRAB:
Calcemia elevada, insuficiência Renal, Anemia e Bone lesions – lesão
óssea lítica).

A diferença entre mieloma indolente (ou smoldering) e mieloma


sintomático se faz exatamente pela presença de lesões de órgão-alvo
(CRAB), ausentes no indolente e presentes no MM sintomático.
14.7 ESTADIAMENTO E PROGNÓSTICO
O sistema de estadiamento de Durie e Salmon é utilizado desde 1975,
porém diversos novos parâmetros foram adicionados na avaliação
prognóstica dos pacientes com MM, com especial destaque para o
ISS (International Staging System), que utiliza a beta-2-
microglobulina e a albumina como fatores prognósticos, sendo mais
usado atualmente.
Quadro 14.3 - Sistema de estadiamento de Durie e Salmon

Os estádios são subclassificados como:


1. A: função renal relativamente normal (valor de creatinina sérica < 2
mg/dL);
2. B: função renal anormal (valor de creatinina sérica > 2 mg/dL).

As lesões ósseas são classificadas como:


1. Esqueleto normal: 0;
2. Osteoporose: 1;
3. Lesões líticas: 2;
4. Destruição externa e fraturas: 3.

Quadro 14.4 - International Staging System

Outros fatores de prognóstico são anormalidade citogenética –


hipodiploidia, deleção do 13q ou 17p, t(4;14) e t(4;16) –, índice de
replicação plasmocitária ≥ 3%, DHL aumentado, VHS aumentado,
célula plasmática circulante e escala de performance status.
14.8 VARIANTES DE IMPORTÂNCIA
CLÍNICA DA DOENÇA DOS
PLASMÓCITOS
14.8.1 Gamopatia monoclonal de significado
indeterminado
A chamada Gamopatia Monoclonal de Significado Indeterminado
(GMSI, ou Monoclonal Gammopathy of Undetermined Significance –
MGUS –, na sigla em inglês) é uma patologia em que o pico
monoclonal aparece, mas não se evidencia mieloma ativo, ou seja, há
proteína monoclonal em pequena quantidade (< 3 g/dL),
plasmocitose medular discreta (< 10%) e ausência de alteração em
órgão-alvo (ausência de CRAB). Também devem ser excluídas
doenças autoimunes e outras linfoproliferações, visto que a GMSI
pode estar associada a essas doenças.
A GMSI pode evoluir para doença sintomática de proliferação
plasmocitária (MM, amiloidose primária) ou para linfoproliferação
(linfoma não Hodgkin, leucemia linfoide crônica e
macroglobulinemia de Waldenström). O risco de progressão é
pequeno, em torno de 1% ao ano.
É bastante comum permanecer estável ou sofrer mínimas alterações
nos níveis de proteína monoclonal por muitos anos. Se a GMSI
permanecer estável por 2 anos, apenas 30% desenvolverão MM após
10 anos de evolução.
14.8.2 Mieloma indolente
Também é conhecido como mieloma assintomático ou smoldering.
Nesse tipo de mieloma, há proteína monoclonal ≥ 3 g/dL,
plasmocitose > 10%, porém não se detectam lesões de órgãos-alvo,
que devem ser lembradas pelo acrônimo CRAB.
14.8.3 Plasmocitoma
Trata-se do acúmulo de células do mieloma de forma localizada.
Existem 2 tipos:
1. Plasmocitoma solitário ósseo: lesão lítica única;
2. Plasmocitoma extramedular: forma massas tumorais nos tecidos
moles, nas mais variadas localizações, mais comumente no tecido
submucoso, na nasofaringe e no seio paranasal. Quando ocorre na
medula espinal, pode ocasionar compressão e deslocamento de
nervos, situação que configura emergência médica.

Ambas as situações cursam com ausência de plasmocitose medular e


de lesão de órgãos-alvo (CRAB), e apenas 30% dos casos apresentam
proteína M no sangue ou na urina. Ambos os plasmocitomas são
altamente responsivos à radioterapia local.
A evolução é variável: cerca de 50% dos pacientes vivem
aproximadamente 10 anos. Entretanto, cerca de 2 terços daqueles
com plasmocitoma ósseo desenvolvem MM nos 3 anos subsequentes
ao diagnóstico. O plasmocitoma extramedular raramente recidiva ou
progride para mieloma.
14.8.4 Macroglobulinemia de Waldenström
Trata-se da proliferação neoplásica desordenada de pequenos
linfócitos que maturam até plasmócitos, atualmente chamada
linfoma linfoplasmocítico, com produção excessiva de IgM, cujas
características biológicas provocam a maioria das manifestações
clínicas. Acomete, principalmente, indivíduos de idade média de 60
anos, sendo caracterizada clinicamente por hiperviscosidade,
crioglobulinemia, coagulopatia, polineuropatia e deposição tecidual
de amiloide.
Em contraste com o mieloma, essa doença cursa com
linfadenomegalia e hepatoesplenomegalia. A principal manifestação
clínica é de hiperviscosidade, visto que a IgM é uma molécula
grande. Não apresenta lesão lítica nem hipercalcemia. Deve-se
evidenciar o pico monoclonal correspondendo a IgM, com
mielograma usualmente seco e maior necessidade de biópsia de
medula óssea.
14.8.5 Mieloma osteoesclerótico/síndrome de
POEMS
Esta síndrome rara corresponde ao acrônimo formado por
Polineuropatia, Organomegalia, Endocrinopatia, Monoclonal
(presença de proteína monoclonal) e Skin (lesões de pele). Não é
necessária a presença de todos os sintomas para se pensar em
POEMS: a polineuropatia periférica crônica desmielinizante é a
principal manifestação clínica, em conjunto com a proteína
monoclonal (que usualmente é cadeia leve lambda). Presume-se que
o plasmócito produza substância tóxica aos nervos periféricos,
resultando na polineuropatia. É uma doença cuja mediana de idade
está em torno de 50 anos. Em contraste com o MM, não se observa
plasmocitose na medula (usualmente menos de 5%), além da
ausência de alterações no hemograma e na bioquímica. Outros
possíveis achados são hepatoesplenomegalia, hiperpigmentação de
pele, ginecomastia, edema, baqueteamento digital, hipertricose,
testículos atróficos e impotência.
14.8.6 Amiloidose primária
Trata-se de uma situação em que plasmócitos monoclonais
sintetizam cadeias leves monoclonais, que se depositam em
estrutura fibrilar virtualmente em qualquer tecido (menos no
sistema nervoso central), tornando-o mais rígido e aumentado de
tamanho. Caracteriza-se principalmente por aumento da língua
(macroglossia), disfagia, sensação de empachamento, neuropatia
periférica e autonômica, disfunção renal com aumento do volume
dos rins, insuficiência cardíaca congestiva e hepatomegalia.
Os sintomas gerais são extremamente vagos, como fadiga e perda de
peso.
Nos exames laboratoriais, encontram-se plasmocitose < 10% e
proteína monoclonal < 3 g/dL, além da alteração decorrente de cada
tecido acometido.
Vale destacar que pode existir superposição de patologias, ou seja, há
a possibilidade de o paciente apresentar MM (preenchendo os
critérios diagnósticos para tal) e, ainda, depósito amiloide tecidual,
caracterizando amiloidose.
De forma geral, deve-se suspeitar de amiloidose quando há:
a) Proteinúria intensa (usualmente em níveis de síndrome nefrótica),
com ou sem insuficiência renal;
b) Insuficiência cardíaca ou suspeita de cardiomiopatia restritiva;
c) Hepatomegalia inexplicada;
d) Neuropatia periférica idiopática.

A coloração com vermelho do Congo confere ao depósito amiloide


uma birrefringência verde na microscopia polarizada.
14.9 TRATAMENTO
O tratamento é recomendado quando o mieloma é sintomático,
refletido por aumento no componente M e/ou lesões de órgãos-alvo
(CRAB).
O tratamento consiste em poliquimioterapia que contenha
bortezomibe, um agente inibidor de proteassoma. Após o alcance de
resposta máxima, o paciente é encaminhado para o transplante de
células-tronco hematopoéticas autólogo, caso tenha boa condição
clínica.
Para pacientes frágeis e com comorbidades, deve ser avaliado uso de
poliquimioterapia ou monoquimioterapia associada a bortezomibe e
à corticoterapia.
Em esquemas em que se utilizam antracíclicos (vincristina,
doxorrubicina e dexametasona, por exemplo), é importante a
realização de ecocardiograma, haja vista os antracíclicos, como a
doxorrubicina, serem cardiotóxicos. A radioterapia é reservada para
o tratamento de plasmocitoma, de dor por lesão óssea não
controlada com quimioterapia, ou para alguns quadros
compressivos (exemplo: síndrome da cauda equina). A terapia de
suporte inclui eritropoetina, uso de bisfosfonatos para combater a
doença óssea do mieloma e antibioticoterapia profilática.
14.9.1 Recidivas
Recidivas são tratadas com esquemas de quimioterapia. Após tais
esquemas, avalia-se a condição clínica do paciente para o
tratamento de consolidação com transplante de células-tronco
hematopoéticas.
Quando pensar no
diagnóstico de mieloma
múltiplo?
Pacientes com anemia, alterações ósseas e disfunção renal
devem ser investigados para mieloma múltiplo.
Quando e como indicar
uma transfusão?

15.1 INDICAÇÕES DE TRANSFUSÕES


A coleta de sangue pode ser feita de forma manual ou automatizada.
Na forma manual, a bolsa de sangue total coletada é fracionada por
meio de centrifugação e separada em concentrado de hemácias,
plaquetas, plasma e crioprecipitado. Na coleta automatizada,
utiliza-se a máquina de aférese para realizar coleta seletiva de
concentrado de hemácias ou plaquetas.
Alguns fatores devem ser considerados para a decisão clínica de
transfundir um paciente, como natureza da anemia – aguda ou
crônica, uma vez que os pacientes crônicos se adaptam melhor aos
estados anêmicos –, sintomas atenuados pela transfusão e a
possibilidade de indicar terapêuticas alternativas (exemplos:
eritropoetina, ferro, ácido fólico e vitamina B12). A transfusão deve
ser planejada sempre que possível.
A indicação da transfusão deve basear-se
principalmente em critérios clínicos, evitando,
sempre que possível, adotar limites
exclusivamente laboratoriais (exemplo: nível de
hemoglobina abaixo de 10 g/dL).
15.1.1 Concentrado de hemácias
15.1.1.1 Rendimento

Uma unidade de concentrado de hemácias eleva os níveis de


hemoglobina em 1 g/dL, e os de hematócrito, em 3%. A dose a ser
prescrita, em adultos, é de 1 a 2 concentrados de hemácias,
habitualmente, a depender do valor da hemoglobina; em crianças, a
dose é de 10 a 15 mL/kg.
15.1.1.2 Indicações de transfusão em adultos

A transfusão é indicada com base nos sintomas


clínicos do paciente, como fadiga, taquicardia,
dispneia aos esforços, cefaleia, hipovolemia e
hipofluxo, associados à hipotensão, à confusão
mental e à diminuição da diurese.

Não existe valor ideal de hemoglobina para indicação transfusional,


a qual depende dos sintomas de anemia (fadiga fácil, taquicardia,
tontura postural, dispneia aos esforços, cefaleia, dor torácica).
Jovens, em geral, apresentam sintoma com hemoglobina inferior a 7
g/dL (hematócrito = 21%), ao passo que idosos com doença
cardiovascular habitualmente toleram bem níveis de até 8 g/dL.
As transfusões não são indicadas nas seguintes situações: para
aumentar a sensação de bem-estar dos pacientes, promover melhor
cicatrização de feridas cirúrgicas e expandir o volume intravascular
quando a capacidade de oxigenação estiver adequada ou, ainda,
profilaticamente (na ausência de sintomas).
Pacientes críticos obedecem às orientações anteriores, utilizando
parâmetros mais objetivos para caracterizar “sintoma” ou baixa
oxigenação tecidual, como lactato, taxa de extração de oxigênio
(indicado se > 0,3) e oferta de O2 (se < 10 a 12/kg/min).
Anemias carenciais necessitam de transfusão apenas em casos
excepcionais, pois é possível recuperar a massa eritrocitária com
reposição vitamínica, e é maior a tolerância a baixos valores de
hemoglobina.
Em situações de perda sanguínea aguda, como em politrauma,
acidentes por armas ou cirurgias, a indicação transfusional depende
estritamente dos sintomas da hipovolemia e do hipofluxo
(taquicardia, hipotensão, confusão mental e diminuição da diurese).
São aceitáveis as transfusões de concentrado de hemácias também
nas situações de anemia crônica descritas no Quadro 15.1.
Quadro 15.1 - Indicação de concentrado de hemácias a adultos

Nota: quanto a pacientes acima de 65 anos ou com doença cardiorrespiratória, considerar


transfusão quando Hb < 8 g/dL.

15.1.1.3 Indicações de transfusão em crianças

São sintomas associados à anemia do Recém-Nascido (RN):


taquipneia, taquicardia, dispneia, períodos de apneia, períodos de
hipoatividade e diminuição do ganho de peso.
Quadro 15.2 - Indicação de concentrado de hemácias a crianças
15.1.1.4 Situações especiais

Algumas situações merecem maior atenção do médico para a


indicação de transfusão, como pacientes em perioperatório, em que
se deve considerar a perda cirúrgica prevista e pacientes com anemia
falciforme. Nestes, raramente é indicada transfusão quando
hemoglobina > 7 g/dL, exceto no caso de esquema de
hipertransfusão para profilaxia secundária de acidente vascular
cerebral, crise de sequestro esplênico, crise aplásica, síndrome
torácica aguda, priapismo recorrente ou preparo cirúrgico com
anestesia geral.
As transfusões para manutenção do nível de hemoglobina acima de 9
g/dL e/ou de hematócrito de 27% são aceitáveis nas situações de
portadores de coronariopatia instável e em portadores de talassemia
major, em que está indicado esquema de hipertransfusão com
quelação de ferro associada, para não comprometer o crescimento e
o desenvolvimento.
15.1.2 Plaquetas
15.1.2.1 Rendimento

Uma unidade de concentrado de plaquetas randômicas usualmente


aumenta a contagem plaquetária de um adulto de 70 kg em 5.000 a
10.000.
Pessoas com febre, esplenomegalia, sangramento e uso de
determinados medicamentos apresentam menor rendimento
plaquetário.
A dose prescrita é de 1 unidade a cada 10 kg de peso, esperando-se
aumento plaquetário em torno de 30.000 a 50.000/mm3. Nessa
modalidade de transfusão, cada plaqueta randômica provém de um
doador de sangue, havendo possibilidade de exposição antigênica e
formação de aloanticorpos, em associação ao maior risco de reação
transfusional.
Podem-se, ainda, obter plaquetas por aférese, em que, por meio da
máquina de aférese, centrifuga-se o sangue do paciente, separando
as plaquetas em concentração elevada, formando a bolsa de aférese
plaquetária.
A dose de plaquetas por aférese é de 1 unidade, tendo em vista que
esta equivale de 6 a 8 unidades de plaquetas randômicas. A vantagem
desse hemocomponente é o alto rendimento plaquetário por meio de
única doação, associado à menor exposição do receptor a antígenos
de outros doadores e menor chance de reação transfusional.
O tempo máximo para o estoque de plaquetas é de 7 dias.
15.1.2.2 Uso profilático

O uso profilático de plaquetas deve ser feito nos casos de deficiência


de produção, pacientes com febre ou outra coagulopatia que leve à
redução do número plaquetário; pré-cirúrgicos ou em procedimento
invasivo; em cirurgia do sistema nervoso central ou cirurgia
oftalmológica, por exemplo.
A transfusão de plaquetas está contraindicada profilaticamente na
púrpura trombocitopênica idiopática, na púrpura trombocitopênica
trombótica, na síndrome hemolítico-urêmica, na síndrome HELLP e
na trombocitopenia associada à heparina. Em todas essas situações,
deve ser utilizada apenas se houver sangramento com risco de vida.
Também não é utilizada profilaticamente na coagulação
intravascular disseminada ou na transfusão maciça de sangue e no
bypass cardiopulmonar (na ausência de sangramento ativo).
Quadro 15.3 - Uso profilático de plaquetas

O uso terapêutico de plaquetas é indicado quando:


a) Contagem plaquetária < 50.000/mm3 a pacientes com sangramento
ativo;
b) Contagem plaquetária < 100.000/mm3 a RNs doentes e com
sangramento ativo;
c) Púrpura trombocitopênica imunológica associada a sangramento
com risco de morte;
d) Suspeita ou presença de defeitos qualitativos plaquetários na
existência de sangramento ativo.

15.1.2.3 Refratariedade plaquetária


Nesta situação as transfusões plaquetárias deixam de ser eficazes, há
ausência de resposta clínica nos pacientes que recebem as
transfusões e/ou que não aumentam a contagem de plaquetas no
sangue periférico. É complicação apresentada por 5 a 15% dos
receptores crônicos de plaquetas.
As causas que levam à refratariedade podem ser imunológicas (40%)
e não imunológicas (60%). As principais causas não imunes são
infecções graves e septicemias, sobretudo se acompanhadas de
febre, uso de antibióticos (vancomicina) e antifúngicos (anfotericina
B), grandes esplenomegalias, hemorragias ativas e coagulação
intravascular disseminada (CIVD).
A refratariedade imunológica é causada pela aloimunização contra
antígenos HLA de classe I, presentes em todas as células nucleadas e
nas plaquetas, ou contra antígenos plaquetários específicos (HPAs).
Decorre da transfusão repetida de concentrado de plaquetas ou de
outros hemocomponentes. A refratariedade também pode resultar
do uso de plaquetas ABO-incompatíveis.
Uma vez estabelecida a causa das transfusões ineficazes, as condutas
a serem adotadas baseiam-se no tratamento da causa clínica ou na
transfusão de plaquetas HLA-compatíveis com o receptor.
15.1.3 Plasma fresco congelado
15.1.3.1 Indicação

A transfusão de plasma fresco congelado está destinada aos casos de


sangramento ativo, sangramento relacionado ao uso de
anticoagulantes orais, ou necessidade de procedimentos invasivos,
como nos casos de púrpura trombocitopênica trombótica ou na
síndrome hemolítico-urêmica. O plasma fresco congelado é
administrado para corrigir sangramentos decorrentes de
anormalidades nos fatores de coagulação, quando a terapia
específica não estiver disponível.
A dose terapêutica de plasma a ser administrada nas coagulopatias é
de 10 a 20 mL/kg, levando-se em conta o quadro clínico e a doença
de base. A frequência da administração depende da vida média de
cada fator a ser reposto.
O Tempo de Protrombina (TP) e o Tempo de Tromboplastina Parcial
Ativada (TTPA) devem ser realizados antes e depois da transfusão.
Os critérios aceitáveis para indicação de plasma fresco congelado
são:
a) Sangramento ativo ou necessidade de procedimentos invasivos a
pacientes com deficiência de fatores de coagulação, documentada por
TP ou TTPA prolongado (desde que não haja o fator deficiente
liofilizado);
b) Protocolos de suporte transfusional em transfusão maciça;
c) Reversão em caráter de emergência (sangramento ativo, pré-
operatório ou procedimento invasivo) do efeito de anticoagulantes
orais;
d) Plasmaférese para púrpura trombocitopênica trombótica ou
síndrome hemolítico-urêmica;
e) Em alguns casos de deficiência de antitrombina, na vigência de
fenômenos trombóticos com necessidade de heparinização.

15.1.3.2 Contraindicações

O Plasma Fresco Congelado (PFC) não deve ser utilizado meramente


como expansor de volume, pois as soluções coloides ou cristaloides
são produtos mais seguros para expansão volumétrica. Não deve ser
usado, ainda, para reverter coagulopatia provocada por
dicumarínicos, quando não houver sangramento ativo ou
programação cirúrgica de emergência, independentemente do INR
(razão de normatização internacional); também não deve ser usado
como fonte proteica.
15.1.3.3 Outros preparos de plasma e suas indicações

1. Plasma comum (plasma normal ou plasma simples): é utilizado


pela indústria para síntese de hemoderivados (albumina, fator VIII
liofilizado, fator IX liofilizado);
2. Plasma isento do crioprecipitado: é o plasma do qual foi retirado
o crioprecipitado. Utilizado, de forma controversa, em casos de púrpura
trombocitopênica trombótica refratária à plasmaférese convencional.

15.1.4 Crioprecipitado
15.1.4.1 Indicações

a) CIVD com nível de fibrinogênio < 100 mg/dL e sangramento ativo


(coagulopatias de consumo);
b) Hipofibrinogenemia (< 100 mg/dL) ou disfibrinogenemia congênita
nos sangramentos ativos ou nos procedimentos invasivos/cirúrgicos;
c) Reposição terapêutica da deficiência do fator XIII, em situações
clinicamente significativas;
d) Apenas em raríssimas situações, nas quais não há disponibilidade
de fatores liofilizados, o crioprecipitado pode ser utilizado como forma
de reposição de fator VIII ou do fator de von Willebrand.

A dose é de 1 unidade de crioprecipitado para cada 10 kg de peso.


15.1.4.2 Contraindicações

O crioprecipitado não deve ser usado no tratamento de pacientes


com deficiências de outros fatores que não fator VIII, fibrinogênio,
fator de von Willebrand ou fator XIII.
15.1.5 Hemoderivados
15.1.5.1 Concentrados de fator VIII e fator IX

São o tratamento de escolha para hemofilia A (fator VIII) e hemofilia


B (fator IX). Não apresentam risco de transmissão de doenças. O
grande risco desses hemoderivados, após exposição crônica, é a
formação de autoanticorpos (inibidores), bem mais comuns contra o
fator VIII do que contra o fator IX.
15.1.5.2 Concentrado de complexo protrombínico
O concentrado de complexo protrombínico contém fatores II, VII, IX
e X, além de proteínas C e S. Faz parte do arsenal terapêutico para
pacientes com inibidor de fator VIII; porém, pela quantidade de
fatores de coagulação, tem o importante risco de induzir trombose,
especialmente em pacientes no pós-operatório, imobilizados ou
com disfunção hepatocelular. Outra indicação importante são
pacientes com coagulopatia, em uso de anticoagulantes orais. Existe
ainda o complexo protrombínico ativado, que deve ser utilizado para
os mesmos fins.
15.1.5.3 Concentrado de fator VIIa recombinante

Licenciado para tratar pacientes com hemofilia A com inibidor ou


pacientes com inibidor adquirido de fator VIII, pode, ainda, ser
aplicado em sangramentos na presença de doença hepática,
tromboastenia de Glanzmann e deficiência congênita de fator VII.
15.2 AUTOTRANSFUSÃO
Na doação autóloga, coleta-se uma bolsa de sangue dias antes de
procedimentos cirúrgicos com grandes perdas sanguíneas, como os
ortopédicos e os vasculares.
15.2.1 Recuperação intraoperatória de sangue
Trata-se de um procedimento que possibilita a aspiração do sangue
perdido no campo operatório ou nos drenos cirúrgicos, sua lavagem
e reinfusão no paciente, minimizando e, muitas vezes, eliminando o
uso de transfusões alogênicas. Está indicado para cirurgias que
apresentam grande perda sanguínea (como cirurgia cardíaca,
transplante hepático e aneurisma de aorta torácica).
Não é permitida a recuperação intraoperatória quando existem
riscos de veicular ou disseminar agentes infecciosos e/ou células
neoplásicas. O sangue resgatado no intraoperatório não pode ser
transfundido em outros pacientes e deve ser utilizado em até 4 horas
da coleta.
15.2.2 Hemodiluição normovolêmica
A hemodiluição normovolêmica é a coleta de sangue antes ou
imediatamente depois da indução anestésica com reposição
simultânea de volume com cristaloides e/ou coloides. O volume de
sangue colhido dependerá do hematócrito inicial e da perda
estimada no intraoperatório.
As unidades obtidas devem permanecer na sala de cirurgia durante
todo o transcorrer do ato cirúrgico e devem ser transfundidas antes
de completarem 8 horas da coleta.
Qualquer paciente pode beneficiar-se dessa técnica, exceto aqueles
com incapacidade de compensar a perda do hematócrito com
aumento do débito cardíaco (insuficiências cardíaca e renal graves,
por exemplo).
15.2.3 Autotransfusão pré-depósito (doação
autóloga)
O procedimento de doação autóloga pré-operatória requer a
aprovação do médico hemoterapeuta e do médico do paciente. Este
coleta a bolsa de sangue total dias antes da cirurgia, que fica
estocada para seu uso exclusivo. Está indicado para cirurgias com
perda sanguínea que, invariavelmente, resultam em transfusão
sanguínea, como prostatectomia, mastectomias, cirurgias
ortopédicas e cirurgias vasculares de médio porte.
Não é autorizada a coleta de sangue em caso de quadro clínico
instável, doenças cardíacas, como angina instável, hipertensão não
controlada, insuficiência cardíaca descompensada e cardiopatias
restritivas, processos inflamatórios presentes, existência de infecção
ativa ou tratamento antimicrobiano e anemia com hemoglobina < 11
g/dL.
15.3 MANIPULAÇÃO DE
HEMOCOMPONENTES

#IMPORTANTE
Para reduzir o risco de reações transfusionais,
os hemocomponentes podem ser irradiados
para a inativação de linfócitos, lavagem para a
retirada de proteínas e processos de filtração
para a retirada de leucócitos.

Para reduzir o risco de reações transfusionais, os hemocomponentes


podem ser irradiados para a inativação de linfócitos, lavagem para a
retirada de proteínas e processos de filtração para a retirada de
leucócitos. Esses procedimentos não são mutuamente exclusivos
(por exemplo, um mesmo hemocomponente, se necessário, pode ser
irradiado e filtrado).
A irradiação é recomendada, mas não mandatória, quando os
receptores são pacientes oncológicos, transplantados de órgãos
sólidos, medicados e com imunodeficiência celular congênita.
Pacientes HIV positivos não necessitam receber componente
irradiado.
Quadro 15.4 - Indicação de procedimentos especiais
15.4 PROCEDIMENTOS ESPECIAIS
15.4.1 Sangria terapêutica
Consiste em extrações de sangue com fins terapêuticos, visando à
redução da massa eritrocitária ou da sobrecarga de ferro. O sangue
extraído não pode ser utilizado para transfusão alogênica, e o
volume a ser retirado é determinado pelo médico, de acordo com a
finalidade terapêutica.
As principais indicações de sangria terapêutica incluem pacientes
não anêmicos com sobrecarga de ferro e
hemossiderose/hemocromatose, pacientes com poliglobulia
(eritrocitose secundária) sintomática e pacientes com policitemia
vera com hematócrito > 55%.
15.4.2 Exsanguineotransfusão
A exsanguineotransfusão é utilizada em crianças com doença
hemolítica do recém-nascido que não respondem ao tratamento
com fototerapia ou que apresentam encefalopatia decorrente da
hiperbilirrubinemia.
A doença hemolítica do RN é uma patologia em que ocorre hemólise
do feto ou neonato por anticorpos maternos. A causa mais comum é
a incompatibilidade Rh ou ABO, podendo acontecer isso também
com outros grupos sanguíneos.
No tratamento, utiliza-se de primeira linha a fototerapia, sendo a
exsanguineotransfusão reservada para casos sem resposta à
fototerapia ou nos quais já existam sinais da encefalopatia pela
hiperbilirrubinemia.
A exsanguineotransfusão é feita por cateterismo da veia umbilical,
por onde é realizada troca de 2 volemias, com reposição de sangue
total reconstituído (hemácias compatíveis com a mãe e PFC
compatível com o bebê), preferencialmente colhido há menos de 5
dias. Com esse procedimento, retiram-se de 25 a 45% do valor da
bilirrubina e trocam-se cerca de 85% dos eritrócitos do bebê. As
hemácias devem ser irradiadas, lavadas e leucodepletadas.
As complicações relacionadas ao procedimento são infecção,
enterocolite necrosante, trombose de veia umbilical, arritmia,
coagulopatia dilucional, plaquetopenia, hipocalcemia e
hipercalemia, sobrecarga volêmica, hipovolemia e embolia gasosa.
15.4.3 Transfusão maciça
Existem várias definições, e uma delas é a transfusão de 1 volemia ou
mais, em um intervalo de 24 horas (mais de 10 unidades). Ocorre em
situações de trauma, principalmente de bacia, SNC, pescoço e
ferimentos múltiplos, grandes cirurgias, como transplante hepático
e aneurisma de aorta, complicação obstétrica e hemorragia digestiva
alta.
A principal manifestação clínica diante da perda sanguínea maciça é
a hipovolemia. A depender do volume da perda, têm-se diferentes
sinais do choque hipovolêmico. Tentando padronizar o volume de
perda e a conduta a ser tomada perante a hipovolemia, o Committee
on Trauma do American College of Surgeons criou a classificação
encontrada no Quadro 15.5.
Quadro 15.5 - Classificação do choque hipovolêmico
A conduta inicial diante da perda sanguínea maciça é garantir acesso
venoso calibroso, manter o paciente aquecido e colher exames:
hemograma, TP, TTPA, tempo de trombina, fibrinogênio, tipagem
sanguínea, bioquímica e gasometria. Inicia-se a ressuscitação
volêmica com cristaloides ou coloides aquecidos a 40 °C, sendo a
transfusão sanguínea indicada quando há perda estimada superior a
30 a 40% da volemia ou quando não há resposta à ressuscitação com
cristaloides. O restabelecimento urgente da volemia é essencial para
a prevenção da falência de múltiplos órgãos, que, depois de
instalada, dificilmente é reversível. A mortalidade de pacientes
submetidos a transfusão maciça é de 45 a 50%.
Deve-se preferir a transfusão ABO compatível, visto que a tipagem
sanguínea leva de 10 a 15 minutos para ser feita. Em urgência
extrema, os primeiros 2 a 4 concentrados de hemácias devem ser do
tipo O, até que se obtenha a tipagem do paciente. O grupo Rh
negativo deve ser reservado a mulheres em idade fértil e crianças.
Mulheres na menopausa e homens podem receber tipo O+, em razão
da dificuldade em obter sangue do tipo O-.
15.4.4 Complicações da transfusão maciça
As principais complicações de transfusões maciças incluem a
coagulopatia dilucional, com redução de fatores de coagulação, a
coagulação intravascular disseminada, a hipotermia e a toxicidade
ao citrato (presente na solução anticoagulante dos hemoderivados),
causando hipocalcemia, hipercalemia e acidose.
15.4.4.1 Coagulopatia dilucional

A ressuscitação inicial com 5 concentrados de hemácias é suficiente


para desencadear a coagulopatia dilucional, que consiste na
diminuição de fatores de coagulação em virtude da perda e diluição
sanguínea com hemácias, aumentando a suscetibilidade ao
sangramento.
Dessa forma, deve-se monitorizar o coagulograma frequentemente,
de preferência, a cada 5 a 7 unidades de hemácias transfundidas.
Para INR > 1,5, iniciar a reposição de PFC ou, se a velocidade de
infusão de hemácias for muito rápida, 1 unidade de PFC a cada 1 a 2
de hemácias.
A plaquetopenia ocorre geralmente após a troca de 2 volemias,
devendo-se monitorizar e transfundir sempre que o número de
plaquetas for inferior a 75.000/mm3 ou, se a velocidade de infusão
de hemácias for muito rápida, transfundir 1 unidade de plaquetas
para cada 10 kg de peso, a cada 10 a 15 concentrados de hemácias
transfundidos. Indivíduos com politrauma grave devem ser
conduzidos de forma diferente: em estudos recentes, observou-se
grande impacto na mortalidade com a introdução precoce de
concentrado de hemácias, PFC e plaquetas. Isso se deve ao fato de
que esses pacientes já chegam ao centro de atendimento hospitalar
com coagulopatia grave, em consequência de hipotermia, lesão
tecidual extensa, lesão muscular, consumo de fatores de coagulação
e fibrinogênio. Assim, recomenda-se, já no início da ressuscitação
volêmica, a transfusão de concentrado de hemácias, PFC e plaquetas,
à proporção de 1:1:1.
15.4.4.2 Coagulação intravascular disseminada

Complicação que acontece em razão do excesso de exposição do fator


tecidual, da extensão da lesão e da estase sanguínea (duração do
choque). A CIVD resulta em trombose microvascular, levando à
falência de múltiplos órgãos e a sangramento difuso (em razão da
hiperfibrinólise e do consumo dos fatores de coagulação). Após sua
instalação, a mortalidade é de 70%.
Para o diagnóstico, adotam-se como parâmetros o alargamento
excessivo de TP e TTPA, a diminuição excessiva da contagem
plaquetária e o consumo de fibrinogênio. O tratamento é feito com
transfusão de crioprecipitado, plaquetas e PFC, em caso de
sangramento (sempre em associação ao tratamento da causa
primária da CIVD).
15.4.4.3 Hipotermia

Em virtude da perda sanguínea e do choque, há diminuição


importante da temperatura corpórea que, associada à infusão de
grande quantidade de cristaloides e hemocomponentes, pode gerar
hipotermia grave, com arritmia e óbito. A hipotermia também
diminui a atividade de fatores de coagulação e da função plaquetária,
contribuindo para a coagulopatia. Deve-se manter o paciente
aquecido com manta térmica e infundir solução cristaloide, solução
coloide e hemácias aquecidas a 40 °C em aquecedores especiais para
esse fim.
15.4.4.4 Toxicidade do citrato

Os hemocomponentes contêm o citrato como solução


anticoagulante, um quelante do cálcio, impedindo a coagulação do
sangue após sua coleta e durante sua conservação. Infusão de grande
volume de hemocomponentes, principalmente em pacientes com
dificuldade de metabolizar o citrato (hepatopatia aguda ou crônica,
hipotermia e hipotensão severa e prolongada), pode resultar em
quadro de intoxicação pelo excesso de citrato, com hipocalcemia e
alcalose metabólica.
A alcalose metabólica decorre do fato de que, no metabolismo
hepático, cada mmol/L de citrato gera 3 mEq de bicarbonato. Dessa
forma, em pacientes com insuficiência hepática ou renal (quando
não há eliminação adequada do excesso de bicarbonato), pode
ocorrer alcalose metabólica, com hipocalcemia, que se manifesta
com arritmia e vasodilatação com piora do sangramento e da
hipotensão.
Para corrigir essas complicações, é recomendada a monitorização
frequente do cálcio iônico, pH e potássio, e deve ser feita a reposição
com cloreto ou gluconato de cálcio, para manter níveis acima de 1,13
mmol/L, e com cloreto de potássio nos casos de hipocalemia.
15.4.4.5 Hipercalemia e acidose
A acidose/hipercalemia, nas situações de perda sanguínea maciça,
decorre da má perfusão periférica. A transfusão de
hemocomponentes com mais de 14 a 21 dias de estocagem tem maior
quantidade de K+ consequente à lise celular, porém pode ser
realizada sem gerar impacto clínico negativo, uma vez que o excesso
de K+ é perdido pela urina, entra nas células e é diluído com a
reposição de cristaloides. Deve-se ter cuidado apenas nos casos de
exsanguineotransfusão em RNs ou em transfusão maciça na
presença de insuficiência renal grave, quando se devem utilizar
hemácias com menos de 5 dias de estocagem ou hemácias lavadas,
para retirar o excesso de K+.
Para o sucesso terapêutico nas transfusões maciças, são
fundamentais o restabelecimento rápido da perfusão periférica, a
prevenção da coagulopatia e a resolução rápida da causa do
sangramento.
15.5 REAÇÕES TRANSFUSIONAIS
Trata-se dos agravos ocorridos durante ou após a transfusão
sanguínea e a ela relacionados. São classificadas em imediatas e
tardias.
15.5.1 Imediatas
Ocorrem dentro das primeiras 24 horas após a transfusão, mas, em
geral, durante o procedimento ou nas primeiras 4 horas.
As reações imediatas a transfusões de sangue ocorrem nas primeiras
horas de transfusão e são: reação hemolítica aguda (por
incompatibilidade ABO), reação febril não hemolítica, contaminação
bacteriana do sangue doado (manifestada por febre, calafrios,
hipotensão e choque), TRALI, reação alérgica (que se apresenta por
prurido, urticária, angioedema e choque anafilático), sobrecarga
volêmica e hipotensão.
Nas reações imediatas, deve-se, inicialmente, suspender a
transfusão e avaliar sinais vitais e oximetria para tentar identificar o
tipo de reação. Avalia-se o uso de oxigenoterapia e medicações
sintomáticas e, posteriormente, a depender do tipo de reação, o
retorno da transfusão.
As principais reações transfusionais imediatas e seu manejo são:
1. Reação hemolítica aguda:
a) Definição: há aloanticorpos no soro do receptor que reagem contra
os antígenos das hemácias do doador, provocando hemólise;
b) Incompatibilidade ABO: esse é o quadro mais grave, ocorrendo em
1 a cada 12.000 transfusões, por erros logísticos (troca de bolsas ou
de amostras). Como os anticorpos anti-A e anti-B são IgM e têm alto
potencial de ativação do sistema complemento, o resultado é intensa
hemólise intravascular que se inicia logo após a transfusão. Os
primeiros 30 mL de sangue transfundidos já são suficientes para
desencadear reação hemolítica, com repercussão clínica grave,
inclusive óbito. Quase todas as hemácias infundidas são
imediatamente hemolisadas. O sistema complemento é hiperativado,
produzindo fatores quimiotáticos para neutrófilos (C3a, C5a), que
liberam citocinas pró-inflamatórias e ativam o sistema de coagulação,
provocando CIVD;
c) Sinais e sintomas: febre (elevação da temperatura em pelo menos 1
°C em relação à temperatura pré-transfusão), calafrio, mal-estar,
ansiedade, taquidispneia, dor lombar, taquicardia, flush facial,
hemoglobinúria, choque, oligúria e insuficiência renal aguda (necrose
tubular aguda por hemoglobinúria + ação de citocinas) e sinais de
CIVD (sangramento microvascular e falência de múltiplos órgãos), com
letalidade em torno de 40%. Os sintomas geralmente acontecem no
início da transfusão;
d) Conduta: suspende-se imediatamente a transfusão; realiza-se
hidratação vigorosa para manter o débito urinário > 100 mL/h, com o
objetivo de reduzir a lesão renal, terapia de suporte respiratório e
hemodinâmico. Hemoglobinemia, haptoglobina, bilirrubina indireta e
teste de Coombs auxiliam no diagnóstico;
e) Prevenção: faz-se uma pronta identificação após coleta de amostra
para tipagem sanguínea do receptor, dupla checagem de bolsa e
identificação do receptor.
2. Reação febril não hemolítica:
a) Definição: é a mais frequente das complicações pós-transfusionais,
ocorrendo de 1 a cada 30 ou 100 transfusões (0,3 a 1%), ainda mais
comum após a transfusão de plaquetas. São 2 os mecanismos
principais:
Aloimunização contra antígenos HLA de leucócitos (presentes no
concentrado de hemácias ou plaquetas);
Formação de citocinas pelos leucócitos da bolsa infundida
(eventualmente, essa produção também pode ser feita pelas
plaquetas), entre elas o pirogênio endógeno e a interleucina 1.
b) Sinais e sintomas: calafrios, rash cutâneo, evoluindo com
hipertermia (elevação da temperatura em pelo menos 1 °C em relação
à temperatura pré-transfusão) e mal-estar. Em geral, a manifestação
acontece ao final da transfusão ou até 4 horas após;
c) Conduta: embora a evolução seja benigna, recomenda-se a
suspensão imediata da transfusão para averiguar a possibilidade de
reação hemolítica aguda ou contaminação bacteriana. Antipiréticos
devem ser prescritos para a febre, difenidramina para reações
alérgicas (rash cutâneo), e meperidina 25 a 50 mg, para os tremores;
d) Prevenção: recomenda-se pré-medicação com antipiréticos
(paracetamol ou dipirona), ou a transfusão de hemácias pobres em
leucócitos (hemácias leucodepletadas por meio de filtração).

3. Contaminação bacteriana:
a) Definição: complicação potencialmente grave que pode ocorrer em
razão da contaminação do sangue doado no momento da coleta, da
manipulação ou da estocagem. O sistema fechado de bolsa dupla ou
tripla reduziu drasticamente essa complicação. A maioria das bactérias
não resiste à temperatura de armazenamento do concentrado de
hemácias (4 °C), exceto a Yersinia enterocolitica. Por isso, essa
bactéria é o agente etiológico mais comum da sepse por transfusão de
hemácias. No concentrado de plaquetas, a chance de contaminação é
bem maior, por ser armazenado em temperaturas mais próximas da
temperatura ambiente, ao redor de 22 °C);
b) Sinais e sintomas: calafrios, febre (elevação da temperatura em pelo
menos 1 °C em relação à temperatura pré-transfusão), hipotensão e
choque;
c) Conduta: interrupção imediata da transfusão, coleta da amostra do
receptor e da bolsa para hemocultura, introdução de antibiótico e
suporte clínico;
d) Prevenção: assepsia adequada na coleta, esterilidade na
manipulação e cuidados na estocagem.

4. Injúria pulmonar aguda relacionada à transfusão:


a) Definição: complicação grave, presente em 1 a cada 5.000
transfusões, sendo a principal causa de mortalidade relacionada ao
procedimento no Reino Unido. A patogênese depende de
aloanticorpos do plasma do doador que reagem contra os leucócitos
do receptor, induzindo-os à agregação e adesão no endotélio alveolar,
liberando citocinas e aumentando a permeabilidade vascular. Pode
ocorrer, também, reação entre anticorpo do doador e mediador lipídico
de neutrófilo do receptor e, raramente, anticorpo do receptor contra
leucócitos do doador;
b) Sinais e sintomas: podem surgir até 6 horas da transfusão; incluem
febre, calafrios, taquidispneia, hipóxia, cianose, hipotensão arterial,
edema pulmonar e aparecimento de infiltrados difusos à radiografia de
tórax. O quadro pode agravar-se e transformar-se em síndrome da
angústia respiratória aguda, com hipoxemia grave e óbito (o
diagnóstico diferencial com sobrecarga volêmica é feito pela pressão
capilar pulmonar normal);
c) Conduta: suportes ventilatório e hemodinâmico, muitas vezes com
necessidade de ventilação mecânica. Evitar uso de diurético, pois o
paciente é hipovolêmico e geralmente hipotenso. A administração de
corticoide não apresenta benefício comprovado. Contudo, com suporte
intensivo adequado, a maioria se recupera bem após 48 a 96 horas;
d) Prevenção: ainda não há consenso sobre a melhor forma de
prevenção da TRALI. Sugerem-se utilizar componentes plasmáticos
apenas provenientes de indivíduos do sexo masculino, pois as
mulheres são expostas a diferentes antígenos HLA durante a
gestação, com maior chance de formação de anticorpos antileucócitos.

5. Reação alérgica:
a) Definição: alergia aos componentes (proteínas) do plasma.
Apresenta incidência relativamente alta, comparável à da reação febril
não hemolítica. Obviamente, é mais comum na transfusão de PFC e
plaquetas, mas também pode acontecer com a transfusão de
concentrado de hemácias. Os pacientes com quadros alérgicos mais
graves são aqueles que apresentam deficiência hereditária de IgA (1 a
cada 900 brasileiros). Esses indivíduos geralmente apresentam
anticorpos anti-IgA que reagem com a IgA do plasma transfundido;
b) Sinais e sintomas: compreendem manifestações alérgicas de
intensidade variável, desde prurido, urticária, angioedema e
broncoespasmo leve até choque anafilático (raro, com uma incidência
de 1 a cada 150.000 transfusões);
c) Conduta: interromper a transfusão e administrar anti-histamínicos
associados ou não a corticoide; em caso de choque anafilático,
associar adrenalina. É a única reação transfusional que permite
continuar a transfusão após o controle do sintoma (em caso de
manifestação alérgica leve).

6. Sobrecarga volêmica:
a) Definição: hipervolemia que ocorre quando o paciente é incapaz de
compensar a expansão do volume sanguíneo infundido (geralmente,
pacientes com insuficiência cardíaca e insuficiência renal);
b) Sinais e sintomas: cefaleia, dispneia, hipoxemia, taquicardia, edema
pulmonar e hipertensão arterial sistólica;
c) Conduta: interrupção da transfusão, elevação do decúbito, suporte
ventilatório e diuréticos;
d) Prevenção: infusão do concentrado de hemácias lentamente na
velocidade de 2 a 4 mL/kg/h, com cuidado para não exceder 4 horas.

7. Hipotensão:
a) Definição: após a transfusão de plaquetas e hemácias, ocorre a
geração de bradicinina pela ativação das vias das cininas secundária
ao contato do plasma com superfícies artificiais (filtro de leucócitos).
Pacientes medicados com inibidores da enzima conversora de
angiotensina já têm níveis mais elevados de bradicinina e, quando
transfundidos com filtro de leucócitos bedside, podem desenvolver
essa reação;
b) Sinais e sintomas: compõem-se de hipotensão, dor abdominal e
eritema facial;
c) Conduta: cessar transfusão, infundir cristaloides e adotar posição de
Trendelenburg;
d) Prevenção: evitar filtro de leucócitos bedside e preferir filtragem pré-
estocagem, quando o filtro estiver indicado.

As condutas a serem tomadas nas reações transfusionais são:


a) Interrupção imediata da transfusão;
b) Exame dos rótulos das bolsas e de todos os registros pertinentes,
para verificar se houve algum erro na identificação do paciente ou das
bolsas transfundidas;
c) Notificação ao banco de sangue;
d) Coleta de novas amostras de sangue do receptor, as quais,
apropriadamente rotuladas, devem ser rapidamente remetidas ao
serviço de hemoterapia, junto à bolsa que estava sendo transfundida,
ainda que esta já esteja vazia. Serão repetidas as provas pré-
transfusionais do receptor e da bolsa, prova antiglobulina direta, prova
cruzada maior com o resíduo da unidade, pesquisa de anticorpos
irregulares e de sinais de hemólise e cultura para bactérias da bolsa e
do paciente;
e) Registrar o ocorrido em prontuário.

Todas as informações relativas à reação devem ser registradas no


prontuário, e toda unidade envolvida em uma reação transfusional
deve ser descartada.
15.5.2 Tardias
Quadro 15.6 - Reações tardias
1 A triagem sorológica nas bolsas de sangue coletadas é feita para HIV, HCV, HBV (anti-
HBc e HBsAg), sífilis (teste treponêmico e não treponêmico), HTLV e Chagas. A pesquisa
de malária é feita apenas nas regiões endêmicas.

A transmissão de doenças pelas transfusões é algo muito raro. As


mais importantes são as hepatites A, B, C e D e outras viroses,
malária, sífilis, doença de Chagas, a AIDS, além de CMV e
retrovisores transmitidos pelos vírus HTLV-I e HTLV-II. A doença
de Lyme e a encefalopatia espongiforme bovina (ou “doença da vaca
louca”) apresentam risco muito baixo de transmissão.
A triagem sorológica dos vírus HIV, HCV e HBV pode ser feita pelo
método ELISA, para pesquisa de anticorpos, ou pelo NAT (testes de
ácidos nucleicos), para a detecção molecular de ácidos nucleicos. A
técnica do NAT ainda não é uma realidade amplamente disponível no
Sistema Único de Saúde do Brasil.
Quando e como indicar
uma transfusão?
Deve-se indicar transfusão de hemácias, geralmente, em
pacientes sintomáticos com níveis de hemoglobina <
7g/dL, e de plaquetas se < 50.000 e antes realização de
procedimentos cirúrgicos ou < 10.000 em qualquer
situação.
Quando indicar um
transplante de medula
óssea?

16.1 INTRODUÇÃO
A identificação pelo sistema HLA (sistema humano de
histocompatibilidade) contribuiu de forma decisiva para o sucesso
dos transplantes, pois dele depende o grau de compatibilidade
imunológica entre o doador e o paciente.
O Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas (TCTH) é
constituído de quimioterapia em altas doses, que tem o objetivo de
fazer uma ablação da medula óssea doente, seguida da infusão de
células tronco, as quais podem ser provenientes do próprio paciente
ou de um doador.
16.2 DEFINIÇÕES
1. Transplante alogênico: as células-tronco provêm de indivíduos
diferentes. Podem ser aparentados ou também chamados de
relacionados (por exemplo, de irmãos), não aparentados ou não
relacionados (provenientes de banco de medula);
2. Transplante autólogo: a fonte das células-tronco é do próprio
paciente.
16.3 INDICAÇÕES
A indicação ideal do TCTH é para o paciente em remissão da doença,
e não naquele com a doença em atividade.
Quadro 16.1 - Indicações do transplante de células-tronco hematopoéticas

16.4 FONTES DE CÉLULAS


As células progenitoras hematopoéticas podem ser provenientes da
medula óssea, do sangue periférico por aférese ou do sangue de
cordão placentário. Para a escolha da fonte de células, levam-se em
conta a doença de base do paciente e a presença ou não de acesso
periférico no doador.
As fontes de células hematopoéticas e suas possíveis complicações
são:
1. Medula óssea: inerentes à anestesia, dor no local da punção,
depleção de ferro nos doadores;
2. Sangue periférico: relacionado à passagem do cateter para
retirada de células, podendo provocar dor óssea, cefaleia e febre;
3. Cordão umbilical: contaminação.
16.5 COMPLICAÇÕES PÓS-
TRANSPLANTE
As complicações podem ser agudas ou tardias. Complicações agudas
são geralmente causadas pela toxicidade da quimioterapia e pelo
próprio estado inflamatório apresentado durante o transplante. O
risco de infecções após o transplante é alto, sendo necessário o uso
de diversas profilaxias. Complicações tardias podem ocorrer de
semanas a meses após o TCTH e ser decorrentes, principalmente, de
quimioterapia utilizada ou dos imunossupressores prescritos. A
complicação tardia mais temida é a doença do enxerto versus
hospedeiro.
As principais complicações do transplante de células-tronco
hematopoéticas são:
1. Aplasia da medula óssea: após a infusão da medula, o paciente fica
em aplasia por um período aproximado de 10 (TCTH autólogo) ou 14
dias (TCTH alogênico). Nesse período, é maior o risco de infecções,
anemia e sangramentos, sendo necessários os suportes
transfusional e de antibióticos;
2. Doença do enxerto versus hospedeiro: todos os pacientes que
receberam células progenitoras hematopoéticas alogênicas estão
sujeitos a desenvolver doença do enxerto versus hospedeiro. A
doença aguda é mediada por células imunocompetentes do doador,
particularmente os linfócitos T, que afetam principalmente a pele, o
fígado e o trato gastrintestinal do receptor. Pacientes com doadores
relacionados têm risco de cerca de 20% de desenvolver a doença,
enquanto aqueles com doadores não relacionados têm risco de até
80%. É uma doença alo e autoimune que envolve pele, fígado, olhos e
mucosa oral; porém, também podem estar envolvidos trato
gastrintestinal, pulmão e sistema neuromuscular;
3. Complicações infecciosas: as infecções bacterianas são as mais
frequentes, e pacientes em tratamento para doença do enxerto versus
hospedeiro crônica têm maior risco de infecções por agentes
bacterianos encapsulados. O uso de fluconazol profilático durante o
período de neutropenia diminui o número de infecções por Candida
albicans. Menos frequentes, as infecções por Aspergillus acometem
pulmões e seios paranasais. Citomegalovírus é comum, sendo
geralmente secundário à reativação de vírus latente no organismo. O
vírus sincicial respiratório pode causar pneumonite intersticial grave
e, muitas vezes, fatal. Outros vírus, como o parainfluenza e o
influenza, também podem causar complicações pulmonares nos
transplantados. O adenovírus está associado a diarreias e cistite
hemorrágica tardia. A reativação dos vírus do herpes-simples e do
herpes-zóster é prevenida com a administração de aciclovir;
4. Complicações gastrintestinais e hepáticas: vômitos são
frequentes durante e após a quimioterapia de condicionamento.
Vômitos tardios podem estar associados à doença do enxerto versus
hospedeiro ou à infecção por citomegalovírus. Mucosite é frequente.
Diarreia é frequente no período pós-transplante de medula óssea.
Pode ser por mucosite, doença do enxerto versus hospedeiro aguda e
infecções por enteropatógenos. A complicação hepática mais grave é
a síndrome de obstrução sinusoidal. É uma obliteração das vênulas
hepáticas com congestão centrolobular que se manifesta nos
primeiros 20 a 30 dias pós-transplante de medula óssea com ganho
de peso, ascite, hepatomegalia, icterícia e dor no quadrante superior
direito;
5. Complicações cardiopulmonares: pneumonias bacterianas,
fúngicas e virais, bronquiolite e doença do enxerto versus hospedeiro.
Fibrose pulmonar pode ocorrer tardiamente, devido a radioterapia
ou drogas. Cardiotoxicidade pode estar presente pela ciclofosfamida
ou antraciclina como quimioterápicos. A radioterapia na região
torácica pode induzir ou potencializar efeitos cardiotóxicos;
6. Complicações geniturinárias: cistite hemorrágica é um
importante efeito adverso da ciclofosfamida; recomendam-se
hidratação adequada e associação para diminuir a toxicidade.
Insuficiência renal aguda está associada a radioterapia e drogas
utilizadas durante o transplante de medula óssea, como a
ciclosporina, a quimioterapia de condicionamento e aos antibióticos;
7. Disfunção imunológica: após o transplante de medula óssea, o
nível das imunoglobulinas e dos linfócitos T e B fica abaixo do
normal. Ocorre imunoterapia adotiva, em que parte da imunidade do
doador pode ser transferida para o receptor. Exemplo: pacientes
anti-HBsAg negativos podem tornar-se positivos se receberem
medula de doador previamente imunizado contra hepatite B. A
recuperação imunológica é progressiva, mas pode ser atrasada com a
ocorrência de doença do enxerto versus hospedeiro crônica. É
recomendável vacinar os pacientes 1 ano após o transplante;
8. Rejeição do enxerto: a rejeição aguda do enxerto é pouco
frequente, ocorrendo mais na anemia aplásica;
9. Recidiva pós-transplante: indica presença de doença resistente. O
tratamento é feito com suspensão das drogas imunossupressoras
(efeito enxerto versus leucemia/linfoma), infusão de linfócitos do
doador para estimular um efeito enxerto versus leucemia/linfoma
(êxito em leucemia mieloide crônica e em leucemia mieloide aguda),
segundo transplante ou cuidado paliativo;
10. Neoplasias secundárias: o tratamento tem potencial
carcinogênico. Pode haver, também, doenças linfoproliferativas
associadas ao vírus Epstein-Barr. Há probabilidade de 6% de
segunda neoplasia em um período de 15 anos após o transplante de
medula óssea.
Quando indicar um
transplante de medula
óssea?
O transplante de medula óssea é indicado aos pacientes
com mieloma múltiplo em remissão, pacientes com
leucemia aguda de alto risco e certos pacientes com
linfomas.

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