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BUROCRACIA

Lara Rocha1

O imperativo de compreender os elementos que possibilitaram a instauração do


totalitarismo fizeram com que Hannah Arendt analisasse as implicações da burocracia como
forma de governo que inviabiliza a liberdade. No corpus teórico arendtiano, estas leituras
podem ser enquadradas em seis interpretações principais: 1) o estudo histórico-filosófico do
surgimento desta forma de governo, em Origens do totalitarismo; 2) a investigação da
burocracia como o último estágio do Estado-nação, a forma social, e não política, de governo
que se baseia na substituição da ação pelo comportamento, tese defendida em A condição
humana e no Diário filosófico; 3) a identificação da burocracia como a forma de governo
caracterizada pela ausência de responsabilidade, presente em Pensar sem corrimão e Sobre a
violência; 4) a investigação sobre os burocratas, tal como proposto em Eichmann em Jerusalém
(com Adolf Eichmann) e Crises da república (com os decision-makers); 5) o exame sobre como
a burocracia possibilita a execução de assassinatos em larga escala, contido em
Responsabilidade e julgamento e Compreender: formação exílio e totalitarismo; 6) as
reverberações da burocracia nas atividades espirituais, como é feito em A vida do espírito.
Apesar da diversidade de prismas sob os quais Arendt analisa a burocracia, é possível
defini-la como forma híbrida de governo que se caracteriza pela substituição da estabilidade
das leis pelos decretos e relatórios, provisórios e mutáveis, pelo anonimato (não é possível
conhecer a face de onde emanam as deliberações, nem de quem as executa) e pela inviabilidade
da participação política (se as resoluções ficam restritas aos especialistas, não cabe ao homem
comum fazer parte dos procedimentos que as originam).
Por mais que os decretos sejam recursos constitucionais previstos para lidar com
situações de exceção, fazendo da excepcionalidade sua justificativa e seu limite, na burocracia
eles representam a encarnação do poder: como não é possível conhecer a persona responsável
por eles, governar através de decretos cria uma atmosfera de anonimato e arbitrariedade que
serve aos regimes de opressão. Este caráter amorfo engendra uma aura de pseudomisticismo
que confere a estes regulamentos uma origem supostamente superior, tornando a burocracia o
modus operandi ideal para pôr em movimento as ideologias que se baseiam em legislações
supraterrenas, como a lei da história e da natureza. Porquanto a política é uma atividade feita

1
Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista CAPES. E-mail:
larafr87@gmail.com.
por homens e, portanto, essencialmente deliberativa e contingencial, ao servir a estatutos sobre-
humanos, a burocracia estabelece um governo anti-humano e antipolítico.
Os predicativos da burocracia, tomados separadamente, são utilizados desde a
Antiguidade: o militarismo e a valorização da obediência remontam ao Império Romano, os
funcionários concessionários no Egito, na Mesopotâmia e no Império Chinês, responsáveis por
organizar a produção agrícola e a tributação, os cargos de confiança e o uso de decretos, comuns
com o surgimento dos Estados-nação, demonstram que, desde sua gênese, a burocracia se baseia
na cisão entre aqueles que governam e planejam e, no polo oposto, aqueles que executam e
obedecem, de modo que o que os vincula não é o comum acordo, mas o segredo e o alheamento
dos últimos com relação às decisões políticas. Entretanto, a concatenação destes elementos em
uma forma única de governar remonta ao imperialismo inglês, sendo a solução encontrada para
substituir o governo das colônias, subjugando povos supostamente inferiores e carentes de
proteção, especialmente a Índia e o Egito, no final do século XIX. Posteriormente, ela forneceu
as bases para a organização administrativa dos regimes totalitários e se manteve como estrutura
básica das instituições públicas e privadas, mesmo após o seu declínio (ROCHA, 2020).
Os comentários sobre a interpretação arendtiana da burocracia podem ser divididos em
três interpretações principais: 1) após Eichmann em Jerusalém (mesmo que o interesse da obra
não fosse empreender uma análise fenomenológica da burocracia, foi necessário expor o
labirinto burocrático nazista para investigar as atividades desenvolvidas por Eichmann), as
investigações de Arendt foram consideradas reverberações diretas do modelo burocrático
weberiano e de sua origem na racionalidade instrumental (BAUMAN, 1989; PARVIKKO,
2004); 2) a defesa da influência de Franz Kafka (em especial O Castelo e O processo) na
descrição arendtiana dos efeitos nocivos da burocracia e dos perigos ínsitos à desumanização
que ela promove (CANOVAN, 1992; BERNSTEIN, 1996); 3) as leituras que apontam as
semelhanças entre o retrato feito pela autora do burocrata nazista Adolf Eichmann e do
burocrata imperial Lorde Cromer em uma análise que se contrapõe à compreensão da
burocracia como resultado unívoco da razão instrumental (SHENHAV, 2013; LEE, 2007).
Enquanto a leitura weberiana da burocracia a interpreta como a dominação que,
diferente da tradicional e da carismática, não se justifica nem nas autoridades constituídas nem
nos atributos pessoais dos líderes, mas nos imperativos modernos de racionalidade, cálculo de
consequências, lucro, eficiência, impessoalidade e hierarquização de funções (WEBER, 2000,
v. 2), Arendt se distancia da análise de Weber, apesar de reafirmar que estes elementos
constituem a burocracia. Esse afastamento se funda na equiparação weberiana entre poder e
dominação, o que, na ótica da autora, reduz política à coação. Outra divergência é a
categorização da burocracia como dominação racional-legal: segundo Arendt, não é a existência
de um corpus jurídico que assegura e justifica o aparato burocrático, mas a profusão de decretos
que possuem força de lei, mesmo prescindindo da deliberação que legislar exige: os decretos
não precisam ser submetidos à uma assembleia, mas apenas seguir a estrita recomendação dos
especialistas, o que garante o aval do governante. Nesse sentido, administrar através de decretos
é governar de modo indireto.
Já as interpretações que identificam a influência kafkiana na análise de Arendt sobre a
burocracia justificam-se pela presença do autor em textos como “Franz Kafka: uma
reavaliação”, na obra Compreender e “O judeu como pária: uma tradição oculta”, em Escritos
judaicos. Para a autora, a dupla sensação que seus textos despertam – a estranheza e o absurdo
contrapondo-se à uma estranha familiaridade com o que é narrado – conduz os leitores a
adentrar em um mundo sustentado por organizações tirânicas e invisíveis, nas quais “a mentira
se converte em ordem universal” (KAFKA, 1997, p. 61). Na sociedade kafkiana, os homens
são engolfados pelo automatismo dos processos, pelo ritualismo das rotinas administrativas,
pela insensatez de seus trâmites e pela própria estrutura do aparelho, “medonha e oculta,
contrapondo realidade e simulação” (ARENDT, 2011b, p. 99).
A irrealidade e a normalização do absurdo que tecem o pano de fundo das obras de
Kafka anteveem a destruição que “a burocracia, a substituição do governo pela administração
e das leis por procedimentos arbitrários” (ARENDT, 2011b, p. 101), especialmente em seus
moldes totalitários, seria capaz. Assim como Kafka, Arendt acreditava que fazer da política um
meio para fins supostamente maiores, seja a ideologia, seja a necessidade, faz com que os
homens abdiquem da ação e do pensamento para seguir o fluxo dos acontecimentos de modo
irrefletido. Com efeito, a sentença dada por Arendt de que “um homem apanhado na máquina
burocrática já está condenado” (ARENDT, 2011b, p. 98) remete-nos à condenação feita por
Kafka: “há esperança, mas não para nós” (BENJAMIN, 1987, p. 142).
O advento da burocracia como forma de governo se origina da necessidade de gerenciar
grandes contingentes humanos supérfluos e massificados, reduzidos à sua força de trabalho, de
modo que o exercício de suas funções laborais passou a ser considerado o ponto alto de sua
existência. Se a burocracia é o corpo político de uma sociedade de trabalhadores (CANOVAN,
1992), o fato dela ancorar-se na radical valorização do trabalho, em detrimento da obra e da
ação, relaciona-se com a constatação de que esta forma de governo se coaduna com o
crescimento econômico: quando o oikos adentra a cena pública, a política se restringe à gestão
das necessidades individuais, afastando-se dos interesses comuns. Como a oikonomia é um
campo especializado, tornou-se gradativamente corrente a concepção de que apenas os experts
estariam capacitados para o exercício das funções públicas.
A burocracia não apenas se origina no horizonte que reduz a política à questão de quem
domina quem, mas radicaliza-o, pois nela não há um quem que possa ser questionado – e
responsabilizado – pelas decisões. Destituída do elemento pessoal do governar, a burocracia se
apresenta de acordo com o que sua nomenclatura denuncia: é o governo de peritos, exercido
em gabinetes e escritórios, o domínio da minoria às custas da não-participação da maioria. Se
não há um quem por trás das “resoluções aleatórias dos procedimentos” (ARENDT, 2021, p.
65), a burocracia é o domínio de ninguém, um regime despersonalizado, destituído de persona:
uma forma de governo que não se baseia no desvelamento do quem, do agente e do
pronunciador de palavras, inviabiliza a ação, o discurso e, consequentemente, a política.
Outro predicativo da dominação burocrática é que ela se assemelha às tiranias, sendo
mais perigosa que elas: enquanto o poder tirânico caracteriza-se como aquele que não presta
contas a respeito de si mesmo, na burocracia “pode haver muitas pessoas que exijam uma
explicação, mas ninguém para dá-la, porque ninguém pode ser considerado responsável por
ela” (ARENDT, 2021, p. 65). Ela é a forma de governo em que todos estão privados de sua
capacidade de agir e de sua liberdade, “pois o domínio de ninguém não é um não-domínio, e
onde todos são impotentes temos uma tirania sem tirano” (ARENDT, 2011c, p. 101).
Em Origens do totalitarismo, Arendt fundamenta em torno de Lorde Cromer, secretário
do vice-rei na Índia e cônsul-geral no Egito de 1883 a 1907, a sua argumentação sobre a
burocracia imperial. Isto deve-se a dois motivos: primeiro, porque a partir dele é possível
compreender a mentalidade burocrata do período. Cromer acreditava que a missão ínsita ao
povo inglês era o domínio, revestido de proteção, dos povos estrangeiros que, na perspectiva
imperial, eram incapazes de se autogerir politicamente. Nesse horizonte de reflexão, o fardo do
homem branco, do típico cavaleiro inglês, era o senso de sacrifício com relação às raças
subjugadas e o irrenunciável dever à glória da Grã-Bretanha.
Segundo, porque o governo de Cromer no Egito se situa na transição entre os interesses
coloniais e a dominação imperial. Evitando cair no equívoco francês de combinar ius e
imperium, o telos do imperialismo britânico concebeu uma forma de dominação indireta para
substituir o governo das colônias sem que fosse necessário anexar estes novos territórios, nem
os educar para o autogoverno. Devido ao contato forçado com pessoas que julgavam inferiores,
Cromer e seu séquito de burocratas administraram as questões políticas de modo apartado da
população egípcia; por outro lado, a incapacidade de autogestão que imputavam a este povo os
fez recusarem-se a levar para a colônia as instituições e leis nos moldes britânicos. Este
alheamento dos egípcios com relação ao que os governava, mantendo-os “sob domínio perpétuo
do acaso” (ARENDT, 2011, p. 278), fundou uma nova forma de governo, baseada no abismo
indissolúvel entre governantes e governados e no anonimato que recobre os burocratas.
Ao não se basear nos marcos de confiabilidade das leis, a burocracia necessita de
especialistas dispostos a exercer suas funções em sigilo, longe da luminosidade da esfera
pública. Ao sentirem-se participantes deste processo, incomensuravelmente maior do que
qualquer homem isolado, os burocratas tendem a considerar sua função como a sua mais alta
realização, frente a qual as singularidades que tornam um homem o que ele é tornam-se
acessórias. Reduzido à sua atividade laboral, cria-se uma identificação mágica do homem com
o próprio aparelho burocrático que, ao reduzi-lo a um mero instrumento (CROMER, 1913),
retira o seu estatuto humano.
Cinco décadas após o início do governo de Cromer no Egito, os regimes totalitários,
com sua duplicação de cargos e funções, funcionalismo carreirista e obediência cadavérica às
autoridades (a autoridade, no contexto burocrático, se radica no cargo e na hierarquia, e não na
pessoa que o exerce), transformou a racionalidade das instituições burocráticas em máquina de
execução dos inimigos objetivos do regime, em um processo de fabricação de cadáveres em
larga escala. Nesse regime surgiu um novo tipo de criminoso, o burocrata, que comete crimes
no exercício de sua função, e de delito, os crimes cometidos através de uma assinatura, de um
bureau¸ sem nenhuma relação entre carrasco e vítima, a não ser ideológica (ARENDT, 2021).
Neste horizonte de reflexão, Adolf Eichmann, burocrata nazista perito na questão
judaica e na logística de evacuação e transporte para os campos, chefe da seção B-IV – o Bureau
IV – é um caso exemplar dos extremos aos quais a burocracia pode alcançar (ARENDT, 2017).
Em uma burocracia plenamente desenvolvida, a sensação de anonimato fomentada pela
extinção da pessoa individual envolve os indivíduos em uma existência fraudulenta, na qual os
distintivos humanos da ação e do pensamento dão lugar ao comportamento e à obediência, o
leitimov da existência burocrática (ARENDT, 2021).
A burocracia imperial não conheceu a perigosa aplicação dos procedimentos
administrativos aliada ao racismo. Porém, serviu de laboratório para a totalitária, pois
“mediatizar a população por meio de administrações, partidos e organizações burocratizadas
complementa e fortalece as formas de vida privatistas que fornecem a base psicológica para a
mobilização do apolítico, isto é, para o estabelecimento de um regime totalitário”
(D’ENTREVES, 1994, p. 196-197). Como “quanto maior a burocratização da esfera pública,
maior a atração pela violência” (ARENDT, 2011c, p. 101), o totalitarismo, ao trazer o ódio,
forte elemento antipolítico, para a cena pública, serviu-se da organização burocrática para
manter os indivíduos sob o cinturão de ferro do terror, solapando tanto sua existência pública
quanto seus vínculos privados, buscando tornar a todos participantes do seu aparelho
organizacional e, desse modo, cúmplices de seus massacres.
A tendência burocrática em desumanizar os homens, tornando o pensamento e a
singularidade desnecessários, inviabiliza não apenas a participação política dos indivíduos, mas
também a responsabilidade pela política e a reflexão sobre as consequências de suas próprias
atividades. No outro vértice destes eventos, ficou cabalmente demonstrado o quanto a relação
entre burocracia e ideologia agudiza a influência que esta forma de governo exerce não apenas
na vita activa, mas também na inviabilização do livre exercício das atividades espirituais.

Referências

ARENDT, H. Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. Trad. Denise Bottman. São


Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011b.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad.
José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
ARENDT, H. Pensar sem corrimão. Compreender 1953-1975. Trad. Beatriz Andreiuolo et. al.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Anti-semitismo. Imperialismo. Totalitarismo. Trad.
Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
ARENDT, H. Sobre a violência. Trad. André Duarte. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011c.
BAUMAN, Z. Modernity and the Holocaust. New York: Cornell University Press, 1989.
BENJAMIN, W. Franz Kafka. A propósito do decimo aniversário de sua morte. In: Obras
escolhidas. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
BERNSTEIN, R. Hannah Arendt and the jewish question. Cambridge: MIT Press, 1996.
CANOVAN, M. Hannah Arendt: a reinterpretation of her political thought. New York:
Cambridge University Press, 1992.
CROMER, Earl of. The government of subject races. In: Political and Literary Essays. (1908-
1913). London: The Macmillan Company, 1913.
D’ENTRÈVES, M. P. The political philosophy of Hannah Arendt. London: Routledge, 1994.
KAFKA, F. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
LEE, C. Race and bureaucracy revisited. In: KING, R.; STONE, D. Hannah Arendt and the
uses of history: imperialism, nation, race and genocide. New York: Berghahn Books, 2007.
PARVIKKO, T. A note on Max Weber’s impact on Hannah Arendt’s tought. Max Weber
studies. v. 4, n. 2, p. 235-252, jul./2004.
ROCHA, LF. A burocracia como o não-lugar da política na perspectiva de Hannah Arendt.
In: SILVA, F.G.P. et. al. (Orgs.). Pilares da Filosofia: estudos acerca da ética, política,
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SHENHAV, Y. Beyond ‘instrumental rationality’: Lord Cromer and the imperial roots of
Eichamann’s bureaucracy. Journal of genocide research. v. 15, n. 4, p. 379-399, 2013.
WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da Sociologia compreensiva. Vol. 2.
Brasília: Editora da UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000.

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