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A Influência cultural nas recordações palatáveis Artigo de Pesquisa

Original Research
Artículo de Investigación

A INFLUÊNCIA CULTURAL ALIMENTAR SOBRE AS RECORDAÇÕES


PALATÁVEIS NA CULINÁRIA HABITUAL BRASILEIRA
CULTURAL FEEDING INFLUENCE ON PALATIVE MEMORIES IN THE USUAL
BRAZILIAN CUISINE
LA INFLUENCIA CULTURAL ALIMENTAR SOBRE LAS RECORDACIONES
PALATABLES EN LA CULINARIA BRASILEÑA

Patrícia FerraccioliI
Eliane Augusta da SilveiraII

RESUMO
RESUMO: A compreensão do comportamento alimentar habitual brasileiro é indispensável para o êxito das atividades
educacionais em saúde. A culinária brasileira transmitida por várias gerações advém basicamente da mescla étnica adaptativa
indígena, lusitana e africana. Culturalmente adotadas, as preferências palatáveis persistem no conhecimento tácito dos
brasileiros. Definiu-se como objetivo identificar a influência cultural alimentar sobre as recordações palatáveis na culinária
habitual dos brasileiros. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa e cultural e de natureza exploratória delineada
através de pesquisa bibliográfica cuja trajetória metodológica percorrida apresenta um eixo temático apoiado em especialis-
tas, muitos deles acessados no acervo do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação
Getúlio Vargas. Concluiu-se que as preferências gustativas e a seleção alimentar transmitida ao longo de gerações interiorizaram
hábitos e fixaram sabores. Constatou-se a predisposição pela mistura, pela textura gelatinizada do amido, sob cocção,
agregado às gorduras, pelo alimento socialmente aceito que transmite saciedade, repleção e prazer.
Palavras-Chave
Palavras-Chave: Alimentação; culinária brasileira; influência cultural; educação em saúde.

ABSTRACT
ABSTRACT: The comprehension of the Brazilian usual feeding behavior is essential to the success of health education.
The Brazilian cuisine has been basically inherited through generations from the adaptive ethnical combination of
indigenous, Portuguese, and African origins. Culturally adopted, palatable preferences persist in Brazilian tacit knowledge.
The aim of this research was to identify cultural feeding influences on palative memories in the usual Brazilian cuisine.
This is a piece of exploratory and cultural research based on bibliographic data, whose methodological process shows
a theme axis based on expert writing and selected articles from the collection of Center for Research and Documentation
of Foundation Getulio Vargas. Conclusions show that gustative preferences and food selection inherited through generations
have generated habits and fixed flavors. A predisposition for mixes, for starch jelly texture under cooking gathered to fat,
for food socially accepted, which provides satiation, repletion, and pleasure.
Keywords
Keywords: Feeding; brazilian cuisine; cultural influence; health education.

RESUMEN
RESUMEN: La comprensión de la conducta habitual de alimentación brasileña es indispensable para el éxito de las
actividades de educación em salud. La culinaria brasileña transmitida a través de varias generaciones proviene principal-
mente de la mezcla étnica de adaptación indígena, lusitana y africana. Culturalmente adoptada, las preferencias palatables
persisten en el conocimiento tácito de los brasileños. Se ha definido como objetivo identificar la influencia cultural
alimentar sobre los recuerdos palatables en la culinária habitual de los brasileños. Esta es una investigación de caracter
cualitativo y cultural y de naturaleza exploratória delineada a través de una búsqueda bibliográfica cuya trayectoria
metodológica se basa en expertos, muchos de ellos pertenecientes a la Fundación Getúlio Vargas. Se confirmó que las
preferencias de gusto y selección de los alimentos transmitidas a lo largo de varias generaciones internalizaron hábitos y
establecieron sabores. Fue demonstrado entonces, la predisposición por la mezcla, por la textura gelatinizada del amido,
sob cocción, añadido a grasas, por alimento socialmente acepto que transmite saciedad, plenitud y placer.
Palabras-Clave
Palabras-Clave: Alimentación; culinária brasileña; influencia cultural; educación en salud.

INTRODUÇÃO
Poucas são as percepções entre comida e Histó- necessidade básica, inerente ao desenvolvimento dos
ria, a interpretação de que as receitas culinárias nada valores vitais, comum a todo ser humano1.
mais são que retratos fiéis do contexto no qual surgi- Na história humana, o ato de comer e beber é
ram, ou seja, de sua origem. O ato de comer é uma constante e indispensável para a subsistência, deter-

I
Acadêmica de Enfermagem, aluna do 8 o período do curso de Enfermagem da Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. Brasil. E-mail:
ferracciolip@gmail.com.
II
Mestre em Enfermagem. Professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Gama Filho. Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
elianeaugusta@clinenf.com.

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minando trajetórias históricas e acomodações de soci- ças em suas técnicas culinárias. Para que se aprove
edades. Necessariamente, uma sociologia da alimen- qualquer alteração, é necessário um longo período de
tação deriva, de maneira lógica, dos próprios funda- experiências. “Não há, na cozinha comum e normal,
mentos do fato social. É uma atividade indispensável a improvisação. Existe a combinação de elementos
à vida e valorizada na história humana2. antigos em nova proporção”2:394.
Ressaltando a importância do aspecto sociocul- A elaboração consecutiva conduz à fidelidade ao
tural na determinação dos hábitos individuais, o pre- paladar, definido através de séculos no prosseguimen-
sente estudo teve por objetivo identificar a influencia to alimentar. “[...] é uma permanente tão profunda,
cultural alimentar sobre as recordações palatáveis na arraigada, já possivelmente biológica, como a cor dos
culinária habitual dos brasileiros. olhos, a disposição do cabelo, o índice facial”2:373.
As recordações palatáveis nada mais são que re-
REFERENCIAL TEÓRICO tratos fidedignos do complexo sensitivo acumulado ao
longo da história alimentar de cada indivíduo, das re-
O ato de comer significa não somente ingerir cordações da infância, da comida compartilhada com
e absorver nutrientes, está diretamente associado às familiares próximos, das investidas sobre novos sabores.
relações sociais, às escolhas inseridas em cada indi- A nutrição humana abrange padrões de comporta-
víduo através de gerações e às sensações proporcio- mento que frequentemente fogem do controle dos seus
nadas pelos sentido. próprios agentes, educados para considerá-los natural-
Alimento é aquilo que pode ser ingerido para a mente aceitos6. A memória estimulada através de odo-
manutenção do homem vivo; comida é tudo que se res projeta algum momento vivenciado, como também
ingere prazerosamente, conforme as normas da comu- sabores que remetem a determinados momentos e que
nhão e comensalidade. Entre outras palavras, o alimen- influenciam diretamente a seleção dos alimentos a se-
to é como uma grande moldura; a comida é aquilo que rem ingeridos. Portanto, a comida, mantendo os mes-
é preferido e selecionado entre os alimentos; deve ser mos sabores, estimularia o hábito e este, criaria a ima-
observado e saboreado com o apoio dos órgãos dos sen- gem da escolha e da preferência alimentar2.
tidos — os olhos, o paladar e o olfato, complementado Logo, entende-se que o processo cultural ali-
com boa companhia e satisfação3. mentar está associado a um minucioso seguimento
de elementos interiorizados, de difícil desmitificação
As preferências visuais e gustativas são
em relação às mudanças comportamentais de ali-
construídas de acordo com o que a sociedade e parti-
mentação.
cularidades culturais estabelecem como aceitáveis4.
A cozinha de um povo é criada em um processo O conhecimento de significados e práticas, decor-
histórico que articula um conjunto de elementos rentes das visões do mundo, de estrutura social, dos va-
referenciados na tradição, no sentido de criar algo lores culturais, do contexto ambiental e dos usos da lin-
único – particular, singular e reconhecível4:27. guagem é imprescindível para orientar a enfermagem e
suas ações, na prestação do cuidado cultural coerente7.
O ser humano, somente observado sob a leitura
fisiológica, provavelmente será remetido a uma leitu- Desse modo, considerar os diferentes usos e cos-
ra insuficiente da real influência da alimentação sobre tumes socioculturais possibilita ao profissional de saú-
a organização das sociedades e da sua cultura. de o modo de pensar e agir das pessoas ante seus pro-
blemas de saúde, favorecendo a comunicação, o cui-
A alimentação, além de uma necessidade biológi- dado coerente e as intervenções de saúde8. A enfer-
ca, é um elemento cultural que se manifesta em hábi- magem apresenta, por essência, a motivação educaci-
tos, ritos e costumes, demarcados por uma relação com onal como instrumento agregador de saberes técnico-
o poder. As normas alimentares se revelam na diferen- científicos ao senso comum, sistematizando-os para o
ciação social através do gosto, na definição “dos papéis cuidar individualizado.
sexuais e das identidades étnicas, nacionais e regionais,
e também nas proscrições e prescrições religiosas”5:176. Considerando que a educação implica a respon-
sabilidade das pessoas sobre seus hábitos e modos de
Valorizar os aspectos antropológicos e sociais apre- vida, ressalta-se a relevância da enfermagem como
senta fundamental importância. Os grupos sociais se ca- profissão comprometida com a sociedade, seus pro-
racterizam por um perfil alimentar, que mantém certos tra- blemas e direitos humanos, e como ciência que pro-
ços característicos. “A cozinha dos povos colonizadores não cura novos métodos para melhorar a qualidade de
erradicou a cozinha dos povos colonizados”2:373. vida e da assistência, valorizando a educação em saú-
A preferência palatável inicia-se pela escolha por de e intervenções apropriadas. É indispensável que o
determinado alimento e sua combinação dosada com enfermeiro realize atividades educativas em saúde ao
outros elementos, culminando no sabor eleito. oferecer cuidados à comunidade, a fim de que os in-
A cozinha, local de preparo de alimentos, como divíduos alcancem melhor bem-estar, participação e
um processo histórico contínuo, aceita raras mudan- empoderamento de suas ações9.

Recebido em: 04.12.2009 – Aprovado em: 30.01.2010 Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 abr/jun; 18(2):198-203. • p.199
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METODOLOGIA O problema fundamental é o trabalho. O coloni-


zador ao chegar ao Novo Mundo depara-se com o re-
Trata-se de uma pesquisa de natureza exploratória e gime de comunidade primitiva somente para a subsis-
de abordagem qualitativa e cultural delineada através tência, não havendo excedentes. A princípio houve a
de pesquisa bibliográfica, no qual “pode-se dizer que hipótese de escravização de elementos locais, os nati-
estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimo- vos indígenas que, pelo fato de não parecerem nume-
ramento de idéias ou a descoberta de intuições”10:41. rosos, tornou-se inviável. O tráfico negreiro represen-
A abordagem cultural alimentar recorre à análise tou a saída para o problema da mão de obra, pois a
historiográfica, antropológica e sociológica das raízes principal finalidade do colonizador era a produção do
étnicas diversificadas do Brasil. As obras analisadas fo- excedente mercantil.
ram produzidas no período de 1986 a 2009. Este estudo
apresenta um eixo temático apoiado nos seguintes es- Alimentação Indígena
pecialistas/instituições: Simmel1, Cascudo2, Fundação Na época em que os colonizadores chegaram,
Nacional do Índio11, Sodré12, Freyre13 e outros3-10,14-19, havia o predomínio dos nativos: guerreiros, pescado-
muitos deles acessados no acervo do Centro de Pesquisa res ou canibais, em diferentes regiões e sociedades in-
e Documentação de História Contemporânea do Brasil dígenas. Os residentes do Novo Mundo viviam basica-
da Fundação Getúlio Vargas. mente da caça, pesca e utilização das reservas natu-
Observou-se, também, a necessidade de associar o rais de alimentos, principalmente raízes. Devido à ex-
conhecimento teórico cultural sobre as preferências ali- ploração local de alimentos, havia o frequente deslo-
mentares às práticas educativas em saúde, acrescentan- camento de suas habitações, que abrigavam comuni-
do saberes às ações promocionais de educação em saúde dades inteiras em uma única casa.
desenvolvidas pelos profissionais de enfermagem. É pre- O primeiro depoimento sobre alimentação indí-
ciso que os indivíduos tenham acesso progressivo a es- gena é a carta de Pero Vaz de Caminha, primeiro estu-
ses cuidados de forma resolutiva e com qualidade. do antropológico das relações entre colonizadores e
indígenas14.
RESULTADOS E DISCUSSÃO Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido,
confeitos, fartéis, mel e figo passados. Não quiseram
A história deve ser valorizada como instrumen- comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa pro-
to elucidário da miscigenação brasileira, em seus vavam, logo a lançavam fora14:97.
primórdios da ocupação humana em território nacio-
nal. Os habitantes das Américas descendem dos asiá- A mandioca era a essência do cardápio indíge-
ticos. “No Brasil, a presença humana está documenta- na, a farinha constituía o produto principal dos ele-
da no período situado entre 11 e 12 mil anos atrás”11:1. mentos comestíveis4.
Os europeus encontraram os indígenas no lito- Mas é na mandioca, principal produto agrícola indí-
gena, incorporado ao sistema alimentar bresileiro
ral brasileiro há cinco séculos. Os nativos viviam em
desde os primórdios da colonização, que a chamada
uma espécie de organização social designada como re- contribuição do índio é mais percebida e citada4:30.
gime de comunidade primitiva, em que a produção era
voltada para a coletividade. A caça era predominante, A herança e base nutricional brasileira procedem
a atividade agrícola supletória, para complementar as da alimentação ameríndia. O brasileiro não consumiu
deficiências e a contribuição vegetal insuficiente. todas as espécies vegetais do cardápio brasiliense. Va-
De outro lado estão os colonizadores. Portugal já gens, bagas, raízes, frutos nasciam em profusão, sendo,
dispunha de um mercado, um governo centralizado e muitos deles, desconhecidos do povo. As frutas não
renomado pioneirismo nas Grandes Navegações. Des- atendiam à demanda; dependiam das estações do ano.
de 1500, quando Cabral viajou às Índias, o povo das O plantio inexistia, à exceção dos elementos básicos
terras lusitanas da América havia exigido de Portugal — mandioca, milho, batatas, macaxeiras, amendoins,
mais atenção. Por trinta anos, foi tratado em segundo carás e, depois, inhames e bananeiras. As frutas, se-
plano12. A atividade era exploratória, não havia esfor- mentes e bagas nasciam naturalmente2.
ço algum de continuidade ou estabilidade, somente Cabia ao consumidor unicamente a colheita e jamais
apossamentos em algumas áreas. Assim, tornou-se a providência para a reprodução multiplicadora e
imperativo povoar e ocupar pela transferência perma- regular. O brasileiro continuou esse critério de pre-
nente de grupos humanos que se sentissem atraídos guiça utilitária. Colhe sem plantar. Plantando dá,
pela produção de excedentes e enriquecimento. mas não se planta2:142.
O colonizador português das terras brasileiras A relação entre a comida e a história do Brasil, a
foi o primeiro entre os conquistadores modernos a partir dos índios e sua analogia com as preferências
mudar os princípios da colonização extrativista – “o atuais, revela que os brasileiros herdaram do indígena
ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim – para a de os elementos básicos da nutrição popular, “os comple-
criação local de riqueza”13:91. xos alimentares da mandioca, do milho, da batata e do

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feijão, decisivos na predileção cotidiana. ‘Acompa- regado a iguarias tipicamente lusas, o açúcar, sabor de
nhantes’ indispensáveis”2:155. creme, primórdios das receitas de bolos brasileiros
Cumpre ainda lembrar que a mandioca passou a com leite de vaca e gema de ovo. Instalando-se para
ser a base alimentar que, ainda hoje, é consumida pelo ficar definitivamente no Brasil, o português arraigou
brasileiro, de diferentes classes sociais e etnias4. também seus hábitos e costumes, absorvendo cultu-
ralmente as práticas locais.
Herdamos do índio a predileção gustativa pela
comida densa à mastigação, que transmite saciedade, Afrodescendência Culinária
caracterizando a base da nutrição popular: a mandio-
ca, o milho, a batata e o feijão, predileção cotidiana Muitas foram as origens africanas que desem-
na culinária habitual brasileira. barcaram no Brasil, capturados de vários pontos da
África sob o manto do tráfico negreiro para satisfazer
Miscibilidade do Luso Colonizador a postura ditatorial do mercantilismo.
Após o descobrimento, não houve interesse ime- Esses negros eram presos em comboios, junta-
diato por parte dos portugueses no território da colô- dos nos calabouços insalubres das feitorias, aperta-
nia, pois as atenções estavam voltadas para o Oriente, dos entre os conveses de navios fétidos, muitas vezes
para o comércio de especiarias. Durante três décadas separados de seus parentes ou de suas tribos, ou até
após a chegada dos lusos ao território colonial portu- daqueles que falavam a mesma língua15.
guês, o interesse predominante era o exploratório, sem [...] entregues à perplexidade acerca de seu presen-
qualquer esforço de continuidade e estabilidade. Por- te e seu futuro, despojados de todas as prerrogativas
tugal, embora uma península devastada pela fome, epi- de status ou classe social (pelo menos no que
demias e guerras, conseguiu desenvolver, a partir da concernia aos senhores) e homogeneizados por um
sistema desumanizante, que os via como seres sem
Idade Média, uma habilidade colonizadora.
rosto e essencialmente intercambiáveis15:65.
Quanto à miscibilidade, os colonizadores por-
tugueses superaram os demais. A mistura de brancos Aprisionado em guerra e conduzido ao cativei-
com mulheres negras gerou filhos mestiços, que pas- ro por seu soberano, o escravo recebia apenas a ração
saram a competir com os conquistadores no domínio oferecida irregularmente, uma prévia da alimentação
da colonização. A miscibilidade extrapolou a mobili- local, porém, o elemento dominante era a fome.
dade social e, desse modo, “os portugueses compensa- Os alimentos africanos tradicionais e sua cozi-
ram-se da deficiência em massa ou volume humano nha foram introduzidos no Brasil, marcando o siste-
para a colonização em larga escala e sobre áreas ma alimentar brasileiro4.
extensíssimas”13:83-4. A presença negra na casa-grande culmina com
Inúmeras foram as contribuições portuguesas, a infiltração da cultura alimentar nos pratos dos se-
destacando-se o predomínio do paladar pelo sal e pelo nhores de engenho e na vida doméstica.
açúcar, a população iniciava a forte atração pelo doce Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adi-
e pelo salgado. Frigir em azeite não fazia parte dos antada foram um elemento ativo, criador, e quase que
costumes nativos e dos negros, não conheciam a se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; de-
fritura, os lusos introduziram o azeite doce, importa- gradados apenas pela sua condição de escravos13:364.
do das oliveiras, como também o peixe salgado, ten- A variedade de sabores novos, dominados pelos
do o sal como elemento substancial de nutrição. Ali- africanos, enriquece a culinária colonial principalmen-
avam-se então os dois extremos de paladar: a comida te pela adição do azeite de dendê e da pimenta-
que deve ser salgada e a sobremesa real, o doce. As malagueta, também do quiabo, do uso da banana tanto
frutas, um tanto mais populares no Brasil, passam a
em pratos doces quanto em salgados, do constante ar-
gostosos passatempos no plano alimentício popular
roz e da miscelânea no preparo da galinha e do peixe.
sem regularidade de consumo.
Várias comidas portuguesas ou indígenas foram no
O português preferia o doce à fruta. A realeza Brasil modificadas pela condimentação ou pela téc-
consumia o doce como sobremesa. A fruta não era nica culinária do negro; alguns dos pratos mais ca-
considerada um alimento, mas uma gulodice, consa- racterísticos brasileiros são de técnica africana: a
grada pelo hábito milenar2. farofa, o quibebe, o vatapá16:193.
Alimento é comida de panela, com temperos. Comi- O negro escravizado por senhores abastados, em ri-
da de sal. [...] Parece-me, pela evidência que o uso
cas propriedades, alimentava-se basicamente de farinha
das frutas não seria comum e regular em Portugal e
Brasil, de tempos velhos. Sobremesa de frutas em de mandioca, feijão-preto, toucinho, carne-seca, laranjas,
Portugal é sobremesa fraca2:258. bananas e canjica. O bolo é muito valorizado na culinária
africana, cuja massa é preparada com inhame, milho, ar-
A mulher portuguesa adaptava seus pratos típi- roz ou farinha de mandioca, servido com molho; acom-
cos à nova realidade do trópico, o carimã, indígena panha alguma carne, constituindo uma refeição2.

Recebido em: 04.12.2009 – Aprovado em: 30.01.2010 Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 abr/jun; 18(2):198-203. • p.201
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Receita à Brasileira às gorduras, pelo alimento socialmente aceito que


A mistura brasileira resulta da contribuição cul- transmite saciedade, repleção e prazer, comida que
sustenta e satisfaz.
tural das principais etnias participativas do processo
de formação culinária nacional: o índio, o português Ainda que, no atual mundo globalizado, preva-
e o negro que contribuíram para formação de uma leçam os câmbios que determinam novas tendências
identidade propriamente brasileira, suas tradições e nas escolhas alimentares, câmbios esses delineados
preferências gustativas desde os primeiros intercâm- com o prejuízo de produtos tradicionais da cultura,
bios. “A cozinha brasileira é um trabalho português como, por exemplo, o arroz com feijão, cabe ressaltar
de aculturação compulsória, utilizando as reservas o poder de internalização que exerce um longo e con-
amerabas e os recursos africanos aclimatados”2:374. tinuo processo de formação de uma cozinha tradicio-
Pode-se ainda afirmar que, no Brasil, se encontra a nal com suas fórmulas usuais e receitas próprias. Co-
existem adaptações, ou seja, os preparos atuais nada
cuisine portuguesa, modificada por fatores locais, re-
mais são que novas combinações em proporções mo-
cursos naturais e influências culturais indígenas e afri-
dificadas de elementos preexistentes, pois as prefe-
canas, além das contribuições dos diferentes grupos
rências pelo sabor original e tradicional dificilmente
étnicos migratórios17.
podem ser modificadas. A degustação de alimentos
O resultado do caldeamento deu início a algu- carregados de tradição ao longo de diversas gerações
mas características alimentares próprias e particula- cultivou hábitos, selecionou sabores e texturas no
res nas receitas brasileiras consagradas até hoje. paladar brasileiro.
O feijão com farinha é indígena e com carne guisada, Elucidar a memória cultural alimentar de um
refogada, é português, cozidos conjuntamente quan- povo, entendendo os costumes e as múltiplas rela-
do da feijoada mais vulgar, carne-e-feijão. O escra- ções entre o biológico e o sociocultural, tem por fina-
vo negro, recebendo os elementos separadamente lidade aprimorar a tarefa de orientar e promover
adotou o modelo ameraba2:446.
mudanças efetivas no processo de reeducação alimen-
Estas preferências palatáveis estão intimamente tar e prevenção de doenças.
ligadas aos costumes transmitidos por décadas e nas A fim de encerrar este artigo, sem a pretensão,
tradições propagadas entre gerações favorecendo as em nenhum momento, de esgotar o assunto, alme-
predileções por um determinado paladar. Assim, o jou-se tão somente lançar indagações acerca das prá-
paladar não é facilmente alterado por políticas públi- ticas alimentares habituais inseridas na culinária bra-
cas, fundamentadas no argumento médico de que cer- sileira para contribuir com as estratégias educativas.
tos alimentos têm maior valor nutritivo18. Espera-se que esta investigação possa suscitar novas
Não existe, para o povo submerso em sua cultu- idéias referentes às ações educativas que buscam aju-
ra tácita, argumento mais persuasivo que o paladar; dar os indivíduos a modificar padrões alimentares sig-
nenhum outro conhecimento técnico supera a me- nificativos no estilo de vida, para padrões mais sau-
mória e as recordações palatáveis. dáveis do ponto de vista preventivo, distinguindo e
respeitando a complexidade do sistema sociocultural
Os elementos culturais das pessoas são desenvol-
e biológico da realidade individual.
vidos através de um processo minucioso e, por isso, não
é fácil desmistificar alguns dos conceitos e atitudes das
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p.202 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 abr/jun; 18(2):198-203. Recebido em: 04.12.2009 – Aprovado em: 30.01.2010
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Recebido em: 04.12.2009 – Aprovado em: 30.01.2010 Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010 abr/jun; 18(2):198-203. • p.203

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