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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

PAMELLA BESERRA DE MELO

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E SAÚDE DOS TRABALHADORES


TERCEIRIZADOS

FORTALEZA
2016
PAMELLA BESERRA DE MELO

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E SAÚDE DOS TRABALHADORES


TERCEIRIZADOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em Psicologia, do
Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Cássio Adriano Braz de


Aquino.

FORTALEZA
2016
PAMELLA BESERRA DE MELO

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E SAÚDE DOS TRABALHADORES


TERCEIRIZADOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em Psicologia, do
Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Aprovado em: _____/_____/_____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof. Dr. Cássio Adriano Braz de Aquino (Orientador)
Universidade Federal do Ceará

________________________________________
Prof. Dr. Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
Universidade Federal do Ceará – Campus Sobral

___________________________________________
Prof.ª Dr.ª Vládia Jamile dos Santos Jucá
Universidade Federal da Bahia
À minha família: meus pais, Francisco e
Francisca; meus irmãos, Marco Antonio e
Jessica; e ao meu marido e companheiro,
Paulo Henrique.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus por ter guiado meus caminhos até a produção deste
texto, permitindo, com saúde e com o apoio dos que seguem, sua realização.
Ao meu orientador, professor Dr. Cássio Adriano Braz de Aquino, que me acolheu no
Núcleo de Psicologia do Trabalho, possibilitando um aprendizado imensurável como
acadêmica e como ser humano, pois, além do rigor teórico e metodológico, ele conduz
brilhantemente sua atividade com afinco e leveza.
Agradeço, ainda, ao professor e amigo Dr. Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro,
que acreditou na realização deste trabalho e acompanhou todos os passos desta caminhada,
desde o processo interventivo, como companheiro na Divisão de Apoio Psicossocial da UFC,
passando por seleção do mestrado e produção da dissertação até a defesa. Obrigada pelo
incentivo, pela paciência e pela parceria.
À professora Dr.ª Vládia Jamile dos Santos Jucá, que sempre se mostrou tão solícita e
receptiva ao diálogo e ao compartilhamento do saber, dedicando-se à leitura atenta e tecendo
ótimas considerações e sugestões para a melhoria do trabalho.
À minha família, principalmente aos meus pais, Francisco Beserra e Francisca de
Melo, que nunca desistiram, insistindo no caminho da educação, no esforço incansável de
formar seus filhos para a vida, sempre respeitando o próximo, ajudando aqueles que
precisassem e não medindo esforços para que fosse possível que os filhos da classe
trabalhadora chegassem ao ensino superior e à pós-graduação em universidades públicas, pois
acreditavam no potencial dos seus rebentos.
Aos meus irmãos, Marco Antonio e Jessica, que sempre foram motivos de inspiração e
superação. Pelo Marquinho, em quem me espelhei e a quem sempre busquei almejar os
mesmos feitos, apesar de nunca alcançar seu brilhantismo, disciplina e dedicação. Pela
Jessica, a quem sempre busquei ser exemplo e com quem aprendi a cuidar.
Ao meu companheiro e marido, Paulo Henrique Martins, que aguentou todas as
variações de humor e estresses diários, apoiando-me nos momentos mais difíceis dessa longa
caminhada.
Às minhas amigas e companheiras da Divisão de Apoio Psicossocial, Ana Paula,
Andreia Serafim, Fanny Abtibol, Cintia Farias, Richelly Barbosa, Isaac Vilanova, Shirley
Dias, Márcia Martins e Fatima Alves por toda compreensão, paciência e motivação diárias.
Aos estagiários e estagiárias do projeto Elaborar ao longo desses três anos, Cintia,
Gabriel, Evelin, Bianca, Ingrid, Valeria, Chico, Thuanny, Natanael, Maxwel, Neiara, Gisele,
Thais, os quais contribuíram grandemente para a realização deste trabalho e para a
possibilidade de desenvolvimento e continuidade do projeto, proporcionando aprendizado
contínuo.
Aos trabalhadores que participaram e contribuíram para realização da pesquisa.
Aos meus amigos e amigas do colégio e da faculdade, que estiveram ao meu lado nos
momentos difíceis e alegres, pois nem só de leituras e livros se faz o mestrado.
A todos os professores e servidores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UFC, por realizarem esse trabalho de formação, acreditando e lutando por uma universidade
pública de qualidade.
Aos colegas da turma 2015 do Mestrado em Psicologia, por todas as trocas, os
aprendizados, as críticas, as sugestões, as indicações de leituras, pela mobilização, pela luta e
pela crença pela/na educação, inclusive nas disciplinas extras pelos bares do Benfica.
Aos professores Cássio e Raquel e aos colegas de Doutorado, Mestrado e Graduação
do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA), por partilharem momentos de intenso
aprendizado e por fazer desse núcleo uma morada em nossos corações.
RESUMO

A investigação aqui apresentada analisou como o trabalho repercute na saúde dos


profissionais com vínculo terceirizado que atuam na Universidade Federal do Ceará (UFC). A
pesquisa fundamenta-se na Clínica da Atividade e situa-se no campo da Saúde do
Trabalhador; baseia-se na epistemologia qualitativa e desenvolveu-se como um estudo de caso
derivado de intervenção efetivada no Almoxarifado Central da UFC. Todo o material
produzido na intervenção foi utilizado para a construção do corpus pertinente ao caso
analisado. Tal delineamento corrobora a perspectiva teórica mencionada para a qual, primeiro,
realiza-se a intervenção para, em seguida, dar-se início à pesquisa. Assume-se que cada um
desses momentos tem temporalidades e objetos diferentes, guardando uma relação de mútua
independência. A intervenção compreendeu três etapas: 1) formação do grupo de análise, no
qual foram realizadas observações, entrevistas, análises documentais e filmagens; 2)
autoconfrontações simples e/ou cruzadas, durante as quais os trabalhadores foram
confrontados com o registro audiovisual de suas atividades; e 3) retorno ao grupo inicial. A
metodologia da pesquisa se deu a partir da videografia. Para análise dos dados, utilizou-se a
análise de conteúdo construtiva-interpretativa de González Rey. Adotou-se como unidade de
análise a atividade triplamente dirigida (para o objeto, pelo sujeito e para o outro). Considera-
se a pertinência do estudo, uma vez que nos encontramos num contexto marcado por
retrocessos no mundo laboral, em que práticas arcaicas de gestão e controle da mão de obra e
da produção coexistem com tendências “inovadoras” que vulnerabilizam a classe
trabalhadora, representando uma ameaça ao trabalho em seu caráter ontológico e aos direitos
dos trabalhadores. Objetiva-se que a pesquisa contribua para formulação de ações voltadas à
saúde do trabalhador e ao desenvolvimento do seu poder de agir, bem como desnude as
vulnerabilidades a que estão submetidos os trabalhadores que possuem vínculos laborais
precários. Desta forma, em relação às condições de trabalho, percebeu-se que os trabalhadores
com vínculo terceirizado estão mais sujeitos a situações de vulnerabilidade, e seu universo de
trabalho é permeado por situações de risco à saúde e à segurança. Constatou-se ainda estarem
eles mais suscetíveis a situações de assédio, ameaça, desrespeito, preconceito, autoritarismo
devido à instabilidade do vínculo; estavam subordinados também a condições inadequadas ao
desenvolvimento de suas atividades, como ambiente empoeirado, mal iluminado e sem
ventilação, com estrutura precária e antiga, além da carência de materiais em boas condições
e/ou da utilização de equipamentos inapropriados para tal. Assim, pôde-se perceber que na
atividade dos sujeitos pesquisados vários empecilhos são impostos a sua ação, porém, através
de um modelo de gestão participativo, eles encontraram as possibilidades de desenvolvimento
do poder de agir e da construção da saúde, fortalecendo o coletivo profissional, que passou a
reconhecer-se enquanto grupo, ao discutir e debater as dificuldades e sugestões possíveis para
realização de um trabalho bem feito. Observou-se, ainda, através da participação ativa dos
trabalhadores nas mudanças empreendidas no setor investigado, melhorias tais como
redefinição das atribuições e tarefas de cada trabalhador, dinamização e maior fluidez dos
processos de trabalho, realização de reuniões sistemáticas com a participação e envolvimento
de todos os profissionais do setor, ouvindo-se as sugestões e questionando-se coletivamente
as problemáticas em pauta.

Palavras-chave: Terceirização; Atividade; Poder de agir; Saúde.


ABSTRACT

The research presented here analyzed how the work affects the health of outsourced
professionals working at the Federal University of Ceará (UFC). The research, based on the
Clinic of Activity and located in the field of Worker’s Health, is based on qualitative
epistemology and developed as a case study derived from intervention carried out in the UFC
Central Warehouse. All the material produced in the intervention was used for the
construction of the corpus pertaining to the case analyzed. Such a design corroborates the
theoretical perspective mentioned for which the intervention is first performed, and then the
research is started. It is acknowledged that each of these moments has different temporalities
and objects, keeping a relation of mutual independence. The intervention comprised three
stages: 1) formation of the analysis group, in which observations, interviews, documentary
analyzes and filming were performed; 2) simple and/or cross self-confrontations, during
which the workers were confronted with the audiovisual record of their activities; and 3)
return to the initial group. The research methodology came from the videography method. To
analyze the data, we used the constructive-interpretative content analysis of González Rey.
The triple-directed activity (for the object, for the subject and for the other) was adopted as
the unit of analysis. The relevance of the study is considered, since we are in a context marked
by setbacks in the world of work, where archaic practices of management and control of labor
and production coexist with “innovative” tendencies that weaken the working class,
representing a threat to work on its ontological character and to workers’ rights. It is intended
that the research contributes to the formulation of actions aimed at workers’ health and
development of their power to act, as well as undressing the vulnerabilities to which workers
with precarious employment ties are subjected. Thus, regarding the working conditions, it was
perceived that workers with outsourced links are more subject to situations of vulnerability,
and their work surrounding is permeated by situations of risk to their health and safety. It was
noted that these professionals were more susceptible to situations of harassment, threat,
disrespect, prejudice, authoritarianism due to the instability of the work bond; moreover they
underwent inadequate conditions for the development of their activities, such as dusty, poorly
lit and unventilated environment, with a precarious and old structure, as well as the lack of
materials in good conditions and/or the use of inappropriate ones. Thus, it was observed that
in the activity of the subjects studied several obstacles are imposed on their action, but
through a model of participatory management they found the possibilities of developing their
power to act and build health, strengthening the professional group that could recognize
themselves as a group when discussing and debating the difficulties and possible suggestions
for doing a job well done. It was also observed through the active participation of workers in
the changes undertaken in the researched sector improvements such as redefining the duties
and tasks of each worker, improvements in work processes to become more fluid and
dynamic, holding systematic meetings with the participation and involvement of all
professionals in the sector, listening to the suggestions and collectively questioning the issues
at hand.

Keywords: Outsourcing; Activity; Power to act; Health.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 13
2. OBJETIVOS ......................................................................................................................................... 21
2.1. OBJETIVO GERAL ............................................................................................................................ 21
2.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS ................................................................................................................. 21
3. VINCULANDO PRECARIZAÇÃO E TERCEIRIZAÇÃO NO CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO ..................... 22
3.1. Neoliberalismo e expansão da terceirização na Administração Pública brasileira ........................ 22
3.2. Terceirização: origem, definição, formas e tipos ........................................................................... 34
3.3. Terceirização e saúde ..................................................................................................................... 39
4. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO DA CLÍNICA DA ATIVIDADE ............................................. 47
4.1. Atividade real: entre a atividade realizada e o real da atividade................................................... 48
4.2. O poder de agir na construção da saúde ....................................................................................... 55
5. METODOLOGIA.................................................................................................................................. 65
5.1. Estudo de caso ............................................................................................................................... 65
5.2. Metodologia da intervenção .......................................................................................................... 67
5.2.1. A relação entre pesquisa e intervenção ................................................................................ 67
5.3. Lócus da investigação ..................................................................................................................... 69
5.4. Métodos de intervenção-análise do trabalho ................................................................................ 72
5.5. Análise dos dados construtivo-interpretativo: construção de sentidos partilhados ..................... 76
5.6. Metodologia da pesquisa ............................................................................................................... 77
6. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .......................................................................................................... 84
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 109
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 115
13

1. INTRODUÇÃO

Com a transição do modelo taylorista-fordista para o modelo toyotista, diversas


mudanças foram implementadas no mundo do trabalho, como uma maior flexibilização,
racionalização e controle da mão de obra, dentre outros, repercutindo de forma diferente nos
diversos segmentos da classe trabalhadora.
A fim de investigar como essas transformações têm impactado na saúde do
trabalhador, traçamos um panorama dessas mudanças tanto no plano laboral, com as normas e
diretrizes impostas aos trabalhadores, como também no plano subjetivo, com as relações entre
pares e chefias, as interações, a saúde e os aspectos cognitivos do trabalho.
Para isso, realizamos um estudo de caso com os trabalhadores terceirizados do setor do
Almoxarifado Central da Universidade Federal do Ceará (UFC) por considerarmos que a
forma de vínculo existente se insere no contexto da precarização do trabalho, trazendo uma
série de repercussões à vida desses profissionais.
A presente investigação surge dos questionamentos e do interesse da pesquisadora
sobre a saúde do trabalhador na UFC, na qual atua como Psicóloga na Pró-Reitoria de Gestão
de Pessoas (PROGEP). O ponto de partida empírico está centrado no projeto Elaborar
(PINHEIRO et al., 2013), desenvolvido no âmbito das ações da Divisão de Apoio
Psicossocial (DIAPS), voltado à promoção da saúde do servidor, segundo os preceitos da
Política de Atenção à Saúde do Servidor Público Federal (PASS) (BRASIL, 2010), de modo a
promover transformações que favoreçam a saúde dos trabalhadores e a melhoria dos serviços
prestados na instituição.
Ao longo da atuação realizada no Almoxarifado Central da universidade, foi possível
observar nuances do processo de precarização na atividade dos trabalhadores terceirizados nos
seguintes aspectos: a) aos impedimentos a sua ação, como o assédio moral sofrido por meio
de ameaças constantes de advertência e demissão, o retrabalho e o uso de apelidos para
dirigir-se a eles ou para falar sobre o trabalho que realizam; b) ausência de autonomia e de
participação nas decisões, em que não eram consultados, não participavam de reuniões, nem
eram ouvidos nas suas reclamações e sugestões; c) riscos ergonômicos e de acidentes, com
relatos, inclusive, de acidente com produto químico; d) diferenças dos contratos de trabalho
via terceirização versus Regime Jurídico Único (regido pela Lei 8.112), com clara perda de
direitos trabalhistas, ausência de Plano de Cargos, Carreiras e Salários, diferenças salariais e
de benefícios (adicional de periculosidade, auxílio saúde), etc.
14

Considera-se a pertinência do estudo, uma vez que, na UFC, dados referentes ao ano
de 2012, fornecidos pelo Departamento de Atividades Gerais, mostram que a instituição
contava com 950 trabalhadores contratados por meio de empresas de terceirização num total
de 3.458 técnico-administrativos, sendo 1.348 com ensino fundamental e médio. A maior
parte daqueles profissionais desempenhava atividades de limpeza, conservação e jardinagem,
seguidas por vigilância e portaria. A investigação aqui apresentada pretende discutir a relação
entre a atividade e a saúde dos profissionais terceirizados que atuam na UFC a partir de um
estudo de caso derivado de intervenção efetivada no setor anteriormente citado.
Ademais, destaca-se que os estudos voltados para esse público são ainda incipientes,
como pode ser constatado pelas lacunas presentes na bibliografia e pela insuficiência de dados
quanto à utilização dessa forma de vínculo na administração pública, particularmente na UFC.
Ressaltamos assim a dificuldade em acessar os dados referentes a esses trabalhadores, bem
como a existência de uma disparidade em relação aos dados fornecidos quanto ao vínculo dos
trabalhadores que ingressaram via concurso público.
Partimos, assim, da ideia de que a terceirização representa uma ameaça aos direitos
dos trabalhadores, bem como ao trabalho como promotor de saúde e por meio do qual o
homem dá sentido à sua existência. Outrossim, apresenta-se como um impedimento ao
trabalho criativo, bem-feito, prazeroso, no qual o trabalhador se reconhece e é reconhecido,
tido como central na vida das pessoas.
Cabe ressaltar que o atual presidente da República, Michel Temer, sancionou no dia
31 de março de 2017 o PL 43330 tornando a terceirização irrestrita uma lei, o que trará efeitos
terríveis para a classe trabalhadora, reafirmando a urgência e a necessidade de debruçarmo-
nos sobre suas consequências para o mundo do trabalho e para os trabalhadores.
A proposta aqui desenvolvida situa-se, ainda, como aprofundamento da temática
analisada no trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia, onde se discutiu a
relação entre precarização no mundo laboral e doenças relacionadas ao trabalho. Foi possível
verificar que os novos modos de produção capitalista têm acarretado prejuízos à saúde dos
trabalhadores, com o aumento da incidência de transtornos mentais/comportamentais
relacionados ao trabalho no Brasil (BRASIL, 2001).
Foi possível observar a partir dos dados referentes aos adoecimentos dos servidores da
instituição que a maioria dos afastamentos se deve a doenças respiratórias, doenças
osteomusculares e transtornos psiquiátricos, sendo este responsável por 32% das licenças por
motivo de saúde. Porém, não se possui o registro dos dados dessa natureza sobre os
trabalhadores terceirizados (TELES; AIRES; ALENCAR, 2013).
15

Desta forma, a fim de compreender como se dá esse processo junto aos trabalhadores
especificados acima, adotamos a perspectiva da Clínica da Atividade por considerarmos que,
além de uma produção do conhecimento, é necessária uma atuação voltada para a
transformação dos contextos laborais, que se encontram cada vez mais marcados por práticas
e modelos de gestão adoecedores. Mediante tais reflexões, é pertinente indagar: como o
trabalho repercute na saúde de sujeitos com vínculo terceirizado?
Para isso precisamos compreender como se dá a relação entre saúde e trabalho, que
tem desenvolvimento recente no Brasil, ganhando destaque em pesquisas e publicações a
partir da segunda metade dos anos 1980. Diversas perspectivas teóricas e metodológicas
abordam essa problemática relacionando-a à subjetividade e/ou aos riscos psicossociais,
dentre outros fatores. Existem vários desafios para o estudo dessa relação, especialmente no
que se refere ao rigor teórico e metodológico e à ausência de um debate entre as diversas
vertentes (LIMA, 2013).
Desta forma, considera-se que a presente investigação se insere no campo da Saúde do
Trabalhador (LACAZ, 2007), área interdisciplinar que, a partir de uma visão crítica, supera a
concepção biologicista sobre os agentes patológicos que provocam adoecimento no trabalho,
bem como reconhece o processo de saúde-doença em sua complexidade e historicidade.
Assim, torna-se necessário ultrapassar a perspectiva que visa somente a conhecer os dados
relativos ao ambiente de trabalho, como riscos químicos, físicos e biológicos.
Na análise do trabalho são considerados os processos laborais, bem como as condições
às quais os trabalhadores encontram-se submetidos (MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA,
1997). Toma-se, desta maneira, o trabalho como principal organizador da vida social,
admitindo-se os trabalhadores como detentores de conhecimento e saber sobre sua prática, de
modo que eles devem ser protagonistas nas transformações dos contextos laborais.
Consideramos relevante o estudo da temática aqui apresentada numa perspectiva
interdisciplinar, histórica e contextualizada com a realidade na qual estamos inseridos. Assim,
a Clínica da Atividade, como uma abordagem com foco na promoção da saúde do
trabalhador, apresenta os fundamentos para uma compreensão da relação entre subjetividade e
trabalho sob uma perspectiva dialética, que não privilegia apenas um dos polos como foco de
atenção ao centrar-se na tarefa ou na subjetividade, sobrepondo uma à outra.
A Clínica da Atividade, cujo principal teórico é Yves Clot, se insere em uma das
abordagens das clínicas do trabalho, dentre várias outras perspectivas que compõem esse
campo. Não se pode afirmar uma homogeneidade entre elas, havendo diversidade de bases
epistemológicas, teóricas e metodológicas. Como exemplo, podemos citar a Psicodinâmica do
16

Trabalho, de base psicanalítica, cujo principal teórico é Christophe Dejours; a


Psicossociologia ou Sociologia Clínica, de Goulejac; e a Ergologia, de Schwartz.
A perspectiva que orienta esta pesquisa concebe a atividade a partir da atividade
realizada e do real da atividade. Deve-se levar em consideração, portanto, a situação laboral, a
fim de compreender como se constituem os setores marginalizados, discriminados,
precarizados de nossa sociedade. Os trabalhadores devem ser tidos não como meros objetos
de pesquisa, mas como atores sociais, que constituem e são constituídos nas relações sociais
que estabelecem. Ressalta-se, de acordo com Coutinho (2015, p. 4), que, diante das
especificidades latino-americanas, é requerida “a superação da visão tradicional de saúde
mental, deslocando-se de um estado individual para uma concepção social, centrada nos
vínculos e relações sociais”.
Para darmos conta dessa proposta, com esse enfoque teórico, metodológico,
epistemológico, assume-se uma concepção da Psicologia Social do Trabalho Crítica, de base
materialista-dialética, cuja proposta parte de um contraponto às perspectivas individualistas
e/ou adaptacionistas, que visam à reprodução de uma ordem social vigente. Busca-se
compreender criticamente as relações sociais no trabalho a partir da vivência dos
trabalhadores e das produções subjetivas presentes no campo laboral. Aqui, adota-se a
denominação crítica ao considerarem-se as desigualdades e assimetrias presentes no quadro
no qual se desenvolve nossa investigação e diante da necessidade de problematizar essa
realidade e oferecer reflexões a fim de superá-las/questioná-las (COUTINHO, 2015).
Pretende-se, assim, dar visibilidade aos trabalhadores que durante longo período de
tempo estiveram à margem dos estudos e pesquisas voltados ao campo do trabalho e das
organizações, bem como tiveram seus processos subjetivos ignorados em favor de estudos
voltados para a manutenção do status quo, o aumento da produtividade, o recrutamento e a
seleção de pessoal, etc.
Não se visa à mera descrição ou apresentação denunciativa das condições de vida e
trabalho desses segmentos precarizados, mas à problematização dessas condições, a fim de
aprofundar tais reflexões e proporcionar mudanças efetivas nesse campo através do
protagonismo dos sujeitos diretamente implicados neles.
Assim, pretendemos debruçar-nos sobre a relação entre subjetividade e trabalho
segundo a perspectiva teórico-metodológica da Clínica da Atividade, que ao fundamentar-se
na proposta dialética-marxista dialoga de forma coerente com as vertentes da Psicologia
Social do Trabalho Crítica. Uma vez que ambas visam ao debate e à controvérsia como fontes
de desenvolvimento para a ação, procuram não limitar-se à produção de conhecimentos sem
17

uma real transformação dos contextos de trabalho, além de não ater-se, exclusivamente, à
identificação de problemas e apresentação de soluções, em que assumiriam uma postura de
expertise ou de mera denúncia das condições às quais os trabalhadores estão submetidos sem
uma efetiva transformação da realidade (LIMA, 2013).
Desse modo, reconhecemos a crítica de Clot (2010) às abordagens neo-higienistas que
visam a um processo adaptacionista de ortopedia social e continuam a ser desenvolvidos nos
ambientes laborais mesmo após avanços e mudanças nas perspectivas de atuação nesse
campo.
A categoria trabalho se reveste de uma série de questionamentos relacionados a sua
centralidade na sociedade contemporânea, particularmente nos estudos da Psicologia do
Trabalho. Bendassolli (2011) analisou como a Psicologia se apropria desse conceito, os
significados que este assume e as consequências da forma de apropriação para a teoria e para
a pesquisa, a partir das perspectivas organizacional, social e clínica. Tais vias de apropriação
do trabalho pela Psicologia indicarão a forma de atuação do psicólogo, o significado que o
trabalho assume e, consequentemente, a visão de sujeito e o papel dele dentro das
organizações e fora delas. No caso desta investigação a opção é pela via clínica de
apropriação do trabalho ao privilegiarmos a Clínica da Atividade como base teórica e
epistemológica.
A Clínica da Atividade (CLOT, 2007; 2010) assume sua filiação aos estudos histórico-
culturais, a partir dos estudos de Vygotski, Leontiev e de Bakhtin, tomando o trabalho como
um conceito central. Clot (2007) propõe compreender a função psicológica do trabalho para o
desenvolvimento do sujeito, considerando-se a relação entre atividade e subjetividade dentro
de uma perspectiva histórica e dialética.
O trabalho, nessa perspectiva, se reveste de uma função psicológica responsável pela
transmissão do patrimônio historicamente acumulado no decurso da humanidade. Através da
conservação e transmissão dos objetos e regras, do uso dos instrumentos e dos signos, o
trabalho conserva seu caráter simbólico e genérico, mediador e mediado. Ao considerar o
trabalho um dos gêneros da atividade humana assim como o fez Vygotski, o autor francês
pondera que “ele condiciona a perenização de todos os outros ao assegurar ou não a
sobrevivência de cada membro da espécie” (CLOT, 2007, p. 90).
Desta forma, a Clínica da Atividade, segundo nosso entendimento, insere-se nessas
discussões ao debruçar-se sobre a relação indivíduo-trabalho para além das organizações,
considerando, portanto, as repercussões de sua atividade dentro e fora do trabalho. Segundo
Bendassolli (2011, p. 80), a via clínica de apropriação do trabalho baseia-se na valorização
18

deste como “um meio de sustentação do sujeito psíquico”. É a partir dessa constituição
teórico-interventiva que estruturamos nosso texto.
No primeiro capítulo, traçamos uma discussão em torno do panorama contemporâneo
do trabalho, como este se encontra hoje e vem se desenvolvendo nos moldes das
transformações que ocorreram a partir da década de 1970, que marca a transição do modelo
taylorista/fordista para o modelo toyotista. Nessa reflexão são trazidas à tona o alinhamento
dessa forma de estruturação produtiva às propostas do neoliberalismo, de intensificação do
trabalho e flexibilização para elevação dos lucros e redução dos custos, que trouxeram
diversas consequências para a saúde física e psíquica dos trabalhadores.
Estes encontram-se cada vez mais destituídos de sua força coletiva e de sua identidade
como classe, bem como com uma representação cada vez mais enfraquecida diante da
fragmentação dos sindicatos. Vislumbra-se, a partir daí, um quadro mais amplo de
precarização do trabalho, que tem sido fortalecido pelas novas práticas do mercado de
trabalho, que incluem: destituição dos coletivos de trabalho, individualização dos processos
laborais, fragilidade dos vínculos, perda de direitos e garantias trabalhistas. É nesse cenário
que têm se tornado cada vez mais comuns as formas atípicas (tomado o modelo da sociedade
salarial), como a terceirização, que vem se apresentando de forma crescente sob as suas mais
diversificadas formas de contratação da mão de obra.
Em seguida, traça-se uma reflexão sobre a implantação do neoliberalismo no Brasil e
como, diante desse contexto, se delineia um quadro de expansão da terceirização na
administração pública federal, lócus de nossa investigação.
Assim, a fim de apresentar nuances do processo de precarização do trabalho vinculado
à terceirização, traremos estudos que analisam essa relação a partir do viés do trabalhador, de
sua percepção, de como eles têm vivenciado esse quadro de incerteza e insegurança que está
para além da ligação com o emprego, mas é entendido aqui como precarização do trabalho,
que abrange a forma como este se organiza e se funda em nossa sociedade da era pós-
industrial, caracterizada pelo trabalho imaterial, instável, e pela ameaça constante do
desemprego.
Em seguida, busca-se definir as diversas formas de terceirização no âmbito da
administração pública e como se caracterizam. Apresentam-se, ainda, as diversas visões sobre
esse fenômeno, que vão desde os aspectos “positivos”, vislumbrados através da redução dos
custos da produção, até os aspectos “negativos”, desvelados pelas consequências aos
trabalhadores submetidos à tal lógica perversa de grande rotatividade, menores salários,
maiores riscos de acidentes de trabalho, perdas de direitos e crescente número de
19

adoecimentos. Questiona-se: a quem essa lógica serve e beneficia? Para a classe trabalhadora
pouca ou nenhuma melhora pode ser percebida com a expansão da terceirização. Assim, a
terceirização é tida como uma das formas de evidenciar-se o processo de precarização pelo
qual vem passando o mundo do trabalho.
Por último, faz-se uma discussão em torno da saúde do trabalhador nos moldes de
como o trabalho tem se desenvolvido atualmente. São enfocados os estudos e pesquisas
voltados para os trabalhadores terceirizados, especialmente aqueles que abordam os aspectos
relacionados à subjetividade dos profissionais implicados nessa forma de vínculo laboral na
esfera pública.
A partir da revisão bibliográfica realizada, percebeu-se que alguns estudos tratam essa
problemática a partir das diferenças entre trabalhadores terceirizados e trabalhadores
concursados nas instituições públicas, no sentido não apenas de fazer uma comparação entre
ambos, mas também de elucidar algumas questões relativas ao processo de precarização pelo
qual vem passando o mundo do trabalho e como esses trabalhadores terceirizados vivenciam
essa realidade.
Diante dessa constatação, esclarecemos que, na intervenção realizada, participaram
tanto os trabalhadores concursados quanto os trabalhadores terceirizados, porém, a partir das
discussões observadas na bibliografia, verificou-se que há uma lacuna nos estudos voltados à
saúde dos trabalhadores terceirizados, uma vez que a maioria aborda essa questão sob o viés
comparativo ou a partir de fatores objetivos como questões salariais, de condições de trabalho,
legais (legislação da Consolidação das Leis do Trabalho em contraponto ao Regime Jurídico
Único - Lei 8.112/90), estabilidade da forma de vínculo, garantias e benefícios. São poucas
pesquisas que abordam a terceirização sob o viés do trabalhador, como o realizado por
Martins (2012). Os estudos que versam sobre as diferenças entre vínculos laborais efetivos e
terceirizados demonstram a vulnerabilidade a que estes trabalhadores estão submetidos, bem
como apresentam os agravos à saúde deles diante de sua forma de vínculo (SILVA; IGUTI;
MONTEIRO, 2014; BERNARDO; VERDE; PINZÓN, 2013; PETEAN; COSTA; RIBEIRO,
2014).
Percebe-se ainda que grande parte das pesquisas focam estudos nas categorias de
limpeza, manutenção e vigilância, porém encontramos trabalhos realizados com profissionais
da teleinformática, eletricistas, dentre outras categorias, demonstrando assim a capilaridade e
extensão desse modelo para outros setores.
Chegamos a esses dados através de pesquisa bibliográfica realizada nas principais
bases de dados do Brasil, como Scielo, BVS-PSi, Banco de teses e dissertações da CAPES, a
20

fim de verificar os trabalhos realizados com profissionais de vínculo terceirizado. Algumas


pesquisas empíricas discutiam a saúde deles, enquanto outras tratavam de trabalhadores
terceirizados da área da saúde. Assim, focamos nossas análises no primeiro grupo de artigos,
especialmente naqueles voltados para trabalhadores de universidades públicas federais ou
estaduais e cujas discussões serviram de base para a reflexão em torno da problemática da
saúde de trabalhadores terceirizados, considerando-se o contexto de empresas públicas.
Após essa discussão inicial, que visa traçar o panorama sob o qual se desenvolve a
problemática em torno da saúde do trabalhador diante da situação adversa na qual esta se
insere hoje, discorremos sobre a perspectiva teórica e interventiva da Clínica da Atividade,
apresentação fundamental para as discussões que se seguirão sobre o trabalho de campo e
sobre a discussão dos resultados, a partir de seus conceitos-chaves, de atividade e de saúde.
A atividade compreende a dinâmica entre o real da atividade e a atividade realizada.
Esta corresponde àquilo que o sujeito faz, à atividade que pôde ser observada; enquanto
aquela corresponde àquilo que o sujeito deixou de realizar, que poderia ter sido feito, mas não
o fez por algum motivo. Visa-se, por conseguinte, àquilo que é visível na ação do sujeito
sobre seu objeto de trabalho, mas também a ação deste sobre si próprio, direcionada ao outro
e ainda aquilo que não foi realizado e que se encontra com potencialidade a ser explorada
(CLOT, 2010). Nesse sentido, “a atividade impedida, contrariada, suspensa, bloqueada deve
fazer parte na análise do trabalho, uma vez que o realizado não tem o monopólio do real”
(CLOT, 2010, p. 105).
O segundo conceito relaciona-se à concepção de saúde proposta por Canguilhem,
concebida, portanto, como potência de ação sobre o mundo, como capacidade de inventiva.
Ser normativo é ter a capacidade de criar normas e possibilidades de vida (LIMA, 2011).
Em seguida, é apresentada a proposta metodológica da investigação, que consiste de
um estudo de caso, elaborado, conforme indicado acima, a partir de uma intervenção realizada
no setor do Almoxarifado Central da UFC. A intervenção compreendeu várias etapas, dentre
as quais reuniões com as chefias e com o grupo de trabalho, observações e autoconfrontações
simples e/ou cruzadas que serão explicitadas mais à frente.
Posteriormente, apresentamos a metodologia da pesquisa com base na videografia, ao
trazer o vídeo como princípio de nossas reflexões. A análise dos dados se deu a partir da
proposta construtivo-interpretativo, segundo a perspectiva epistemológica qualitativa de
González Rey, integrando-a com uma pesquisa de fundamentação histórico-cultural, uma vez
que este teórico coaduna-se com a mesma matriz epistemológica da Clínica da Atividade e da
Psicologia Social do Trabalho Crítica.
21

Através dessas discussões e com esteio na fundamentação teórico-metodológica


desenvolvida, esperamos dar conta dos objetivos que explanaremos a seguir.

2. OBJETIVOS

2.1. OBJETIVO GERAL

Analisar como a atividade repercute na saúde dos profissionais com vínculo terceirizado que
atuam na UFC.

2.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

• Compreender como a atividade desses trabalhadores se insere no contexto da


precarização laboral;
• Entender os entrelaçamentos entre o real da atividade e a atividade realizada;
• Descrever as quatro dimensões do ofício;
• Analisar as possibilidades de desenvolvimento e/ou impedimento do poder de agir,
tendo em vista a construção da saúde.
22

3. VINCULANDO PRECARIZAÇÃO E TERCEIRIZAÇÃO NO CONTEXTO DA


INVESTIGAÇÃO

3.1. Neoliberalismo e expansão da terceirização na Administração Pública brasileira

O trabalho enquanto categoria de análise e intervenção surge como foco de interesse


de pesquisa a partir de reflexão suscitada através da minha atuação como Psicóloga da Pró-
Reitoria de Gestão de Pessoas (PROGEP) da Universidade Federal do Ceará. Em uma das
atividades desenvolvidas, surgiram questionamentos relacionados ao processo de precarização
junto aos trabalhadores terceirizados do setor do Almoxarifado Central da referida instituição,
pelas condições de trabalho às quais se encontram submetidos, pelas rupturas e
descontinuidades entre servidores e terceirizados, pelos impedimentos impostos a sua ação,
dentre outros.
Segundo Marx (2004), o trabalho é a categoria vital e consciente que funda o ser
social, por meio do qual o homem apropria-se e transmite o patrimônio historicamente
acumulado no decurso da humanidade. Através do trabalho o homem age sobre a natureza
criando novas necessidades e novas possibilidades ao gênero humano. Na sociabilidade do
capital essa ação do homem sobre a natureza tem sofrido mediações que têm alterado a
relação homem-natureza.
Aqui compreendemos, a exemplo de Marx (2004), o trabalho como categoria
ontológica central na análise e na interpretação da sociabilidade do capital, uma vez que
possui um caráter histórico e social e deve ser compreendido em sua processualidade, a partir
das características do capitalismo contemporâneo, que vem apresentando consequências
nefastas à saúde dos trabalhadores submetidos aos seus novos modos de produção.
Para tratarmos de tal problemática, inicialmente consideramos necessário situar o
leitor em que ocasião surge e se desenvolve a terceirização, território ao mesmo tempo antigo
e revestido de novas estratégias, particularmente no contexto da administração pública.
Traçaremos um breve panorama sobre a reestruturação produtiva e a expansão do
neoliberalismo, mostrando seu surgimento e o alinhamento desse quadro econômico, político,
ideológico e social às propostas de precarização do mundo laboral.
O mundo do trabalho, na fase pré-capitalista, é marcado por diversas formas de
intercâmbio do homem com a natureza. Sob a vigência do capitalismo, ele é assinalado
predominantemente pela forma de trabalho abstrato, sendo uma de suas principais
características o trabalho estranhado e assalariado (ALVES, 2007).
23

Na agricultura e no artesanato, o homem detinha certa autonomia e domínio de


técnicas e instrumentos de trabalho. Porém, com o advento do modo de produção capitalista
definido pela propriedade privada dos meios de produção, ele passa a ser expropriado dos
instrumentos e ferramentas, como também da própria força de trabalho. O trabalhador passa
ainda a ser expropriado da singularidade e da subjetividade, não se reconhecendo na atividade
que realiza, cada vez mais alienado do processo produtivo e do produto final do trabalho
(ALVES, 2007).
Diante desse cenário de crescente alienação e estranhamento do homem frente a sua
atividade, ressaltamos que o processo se intensifica com a reestruturação produtiva, uma vez
que novas formas de gestão e controle da força de trabalho são empreendidas.
Esse processo inicia-se após um período de acumulação com os chamados ‘anos
gloriosos’ do fordismo e do keynesianismo. Na década de 1970, porém, começa uma
diminuição dos lucros — característico do processo conhecido como crise estrutural do
capital, período de intensa produção e acumulação seguido por um declínio — dado a
impossibilidade de manutenção dos índices. Como as soluções para os períodos de crise
recaem sobre o padrão de acumulação e não sobre o padrão de produção, elas ocorrem de
forma cíclica e estão no cerne do processo produtivo característico do capitalismo de
exploração e exclusão de grande parcela da população, só sendo possível superá-las alterando-
se a forma de produzir os meios de existência (ANTUNES, 2007; ALVES, 2007).
Como característica da crise, além da queda da taxa de lucro, do esgotamento do
padrão de acumulação taylorista-fordista, da hipertrofia da esfera financeira, da concentração
de capital advinda das fusões dos oligopólios e transnacionais monopolistas, temos a crise do
“Estado de bem-estar social”, o que gerou a necessidade de transferência dos gastos públicos
para o setor privado. Isso se deu por meio da retração dos investimentos públicos em saúde,
educação, manutenção do crédito, o que acarretou privatizações, gerando uma série de
desregulamentações e flexibilização tanto no processo produtivo quanto nos mercados e na
própria força de trabalho. Tais eventos marcaram profundamente as formas de vínculo de
trabalho precarizados, intensificando-os e possibilitando que até os dias de hoje se encontrem
em franca expansão pelo mundo todo (ANTUNES, 2001; ALVES, 2005).
As modificações foram sentidas de diferentes formas onde houve sua implementação,
principalmente nos países que possuem uma condição de subordinação aos processos das
grandes potências centralizadoras. No Brasil, a emergência e a ascensão dessa forma de
sociabilidade diante da economia frágil, à época, causaram intensas repercussões relacionadas
ao desemprego e à precarização da força de trabalho.
24

Na tentativa de superar a crise, o capital vai atacar diretamente a classe trabalhadora,


como afirma Antunes (2007, p. 31):

Como resposta à sua própria crise, iniciou-se um processo de reorganização do


capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais
evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a
desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo
estatal, da qual a era Thatcher-Reagan foi a expressão mais forte; a isso se seguiu
também intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho [...].

Desse modo, as novas formas de gerenciamento da força de trabalho, caracterizadas


pela informatização e automatização, pela liberalização do capital financeiro e pela ascensão
do domínio tecnocientífico, marcam um novo período do capitalismo.
Como afirma Antunes (2007, p. 33), a característica marcante desse processo, para
além da destruição das forças produtivas, da natureza e do meio ambiente, constitui-se como
uma “ação destrutiva contra a força humana de trabalho, que tem enormes contingentes
precarizados ou mesmo à margem do processo produtivo, elevando a intensificação dos níveis
de desemprego estrutural”.
Da expropriação dos processos de trabalho ocorrida no fordismo-taylorismo, em que
cabia ao operário executar gestos repetitivos e sem sentido, passa-se a um processo de
correção das deformações e distorções operadas pela gerência científica, num quadro
altamente hierarquizado e no qual a divisão do trabalho determinava que a uns cabia a
execução e a uma parcela mínima e privilegiada o pensamento, planejamento e gerenciamento
da produção. Desta contradição entre execução e gerenciamento, aliada à crise produtiva,
surgem as lutas operárias que questionaram os fundamentos da ordem do capital,
especificamente quanto ao controle social da produção, no qual os trabalhadores
demonstraram ter condições de assumi-la e geri-la (ANTUNES, 2007).
Diante da ameaça à ordem vigente, será formada uma aliança entre os sindicatos, o
capital e o Estado, em que o capital passa a ter este como principal representante e defensor
dos seus interesses — o que Antunes (2007, p. 38) denomina de um compromisso entre essas
três forças através da “ilusão de que o sistema de metabolismo social do capital pudesse ser
efetivo, duradouro e definitivamente controlado, regulado e fundado num compromisso entre
capital e trabalho mediado pelo Estado”.
O Estado passa assim a ser gestor dos interesses da burguesia, atuando no sentido da
autorregulação do mercado, através das desregulamentações e da redução de seu papel de
mediador das necessidades da população.
25

Diante desse quadro surgem as bases para implantação do toyotismo, uma vez que os
capitalistas perceberam que poderiam explorar muito mais que a força de trabalho física dos
trabalhadores, mas também sua imaginação, a capacidade organizativa, de cooperação e sua
inteligência, o que foi possível por meio dos avanços tecnológicos conseguidos com a
eletrônica e a informatização dos sistemas, a favor de seus interesses e camuflados por um
ideário de autonomia. A subjetividade passa assim a ser capturada de tal forma que as
contradições desse modo de produção aliada às reformulações do fordismo-taylorismo
apreendem cada vez mais a vida do trabalhador dentro e fora do trabalho (ALVES, 2005).
Dentre as características do toyotismo podemos citar ainda a produção em massa de
mercadorias, homogeneizada e verticalizada, bem como a racionalização do processo
produtivo que visa à diminuição de desperdícios com redução do tempo de produção e
aumento do ritmo de trabalho, diferindo do taylorismo, uma vez que o controle deste se dava
no corpo e o controle daquele se dá de forma mais intensa sobre a subjetividade. Assim, há
uma intensificação das formas de exploração do capital, visto que, utilizando-se do ideário da
empresa enxuta, cabe ao trabalhador acumular tarefas que antes eram realizadas por um
número bem maior de funcionários, além de exigir uma maior capacitação em nome da tão
anunciada polivalência (ANTUNES, 2001).
Entre as demais características do toyotismo temos transformações do processo
produtivo caracterizadas por diferentes maneiras de acumulação flexível, como downsizing,
terceirização, subcontratação, formas de gestão organizacional marcadas pelo avanço
tecnológico. Aos trabalhadores passou-se a exigir maior participação e envolvimento no
trabalho; mais que a mera execução requerem-se competências e conhecimentos de
planejamento, gestão e uma qualificação cada vez maior. Ele passa a ser tido como
multifuncional, polivalente, participativo, colaborador. Dentre essas e outras falácias do
discurso propagado pelos defensores do toyotismo destacamos ainda a Qualidade Total,
caracterizada, dentre outras, pelo controle da qualidade dos produtos, quando na verdade o
que se observa é a obsolescência destes, com tempo de duração cada vez mais reduzido, a fim
de manter a constante reposição dos produtos (ANTUNES, 2007).
No plano ideológico essas características tiveram papel central no envolvimento do
trabalhador com o novo modo de produção. Para usarmos as palavras de Antunes (2007, p.
48), esse engajamento desenvolveu-se “por meio do culto de um subjetivismo e de um ideário
fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de
solidariedade e de atuação coletiva e social”, como marcas de uma contradição que requer
26

colaboração, mas individualizada, e que valoriza a competitividade a partir da instabilidade


característica da nova fase e da ameaça constante do desemprego.
Alves (2007) destaca as novas estratégias de “captura” da subjetividade,
característicos desse modelo, como as formas de pagamentos da força de trabalho atreladas à
produção, ao salário por antiguidade, ao bônus da produtividade, à participação nos lucros da
empresa. Nessas formas de vincular produção e salário, o trabalhador se vê “motivado” a
produzir cada vez mais para ganhar melhorias salarias, incorporando a lógica produtivista sem
que tenha um supervisor ou alguém externo exigindo maior produtividade. A disseminação de
tais práticas fez com que no Japão, por exemplo, muitos trabalhadores fossem acometidos
com o karochi, morte subida por estafa e excesso de carga laboral. Essas estratégias, guardado
as diferenças de efetivação, já foram apontadas por Marx (1996, p. 183) na crítica ao “salário
por peça”, em que afirma:

Dado o salário por peça, é naturalmente interesse pessoal do trabalhador empregar


sua força de trabalho o mais intensivamente possível, o que facilita ao capitalista
elevar o grau normal de intensidade do trabalho. É também interesse pessoal do
trabalhador prolongar a jornada de trabalho, a fim de aumentar seu salário diário ou
semanal.

Nesta forma de remuneração por peça produzida, o controle e a exploração dos


trabalhadores é mediada por eles entre si, uma vez que, ao atrelar desempenho e remuneração
através das avaliações de desempenho individual, o trabalhador visa sobressair-se perante os
demais para obter melhores avaliações e possibilidades de ascensão, aumentando a
competitividade e o individualismo ao mesmo tempo em que estimula o comprometimento
por meio de equipes de trabalho, em que uns exercem pressão sobre os outros, controlando e
fiscalizando os membros para que consigam atingir as metas. Como afirma Alves (2007, p.
196), incrementa-se “a manipulação através da supervisão e controle operário, exercido pelos
próprios operários”. Assim, não há necessidade de uma vigilância e controle externo na figura
de um supervisor, já que essa função se dá dentro da própria equipe de uns para os outros.
Outro elemento de destaque dentro do processo de captura da subjetividade do
trabalho se dá na precarização do trabalho e no medo do desemprego. Assim, o trabalhador
através da camuflagem das reais intenções e da alienação ante as possibilidades de resistência
acaba cedendo e consentindo num maior nível de exploração da sua força de trabalho, com
horas extras não remuneradas, dentre outros exemplos já citados, e pela própria renúncia aos
seus direitos, em que se vê obrigado a abrir mão para manter-se empregado (ALVES, 2007).
27

Antunes (2007), Druck (2011), entre outros, destacam ainda aspectos de continuidade
e descontinuidade em relação ao taylorismo-fordismo, transição esta que mantém os
fundamentos do padrão capitalista e modifica ou renova apenas as formas de acumulação e
exploração da força de trabalho e da natureza. Temos como exemplo disso o “just in time”,
baseado no melhor aproveitamento do tempo, elemento da intensificação do trabalho dessa
fase, marcada pela racionalização da mão de obra e do tempo, principalmente.
Além de diminuir o desperdício de movimentos desnecessários, o toyotismo reduz o
número de trabalhadores, restringindo o tempo e controlando a quantidade de ausências no
posto de trabalho. A rigidez se observa inclusive na contagem das pausas para ir ao banheiro
ou beber água e também no controle da produção de uns sobre o trabalho dos outros. Não há,
entretanto, entre os colegas, interação, limitada ao mínimo possível, quando não proibida para
evitar distração.
O toyotismo caracteriza-se ainda por produção de acordo com a demanda,
flexibilidade, estoques mínimos, estrutura horizontalizada, círculos de controle de qualidade,
empresa enxuta e plantas produtivas reduzidas através de subcontratações, ao que Castillo
(1999) denominou de liofilização organizativa, processo identificado por eliminação,
transferência, terceirização e enxugamento de unidades produtivas.
Intensifica-se a exploração sobre o trabalhador com a multiplicidade de tarefas, pelo
manejo de diversas máquinas, pelo ritmo intenso de trabalho com a racionalização dos
movimentos e do tempo, pela velocidade da produção. Coriat (1992) e Antunes (2007)
afirmam que este quadro de intensificação associado à apropriação do saber intelectual do
trabalhador com a introdução da informatização e da automatização da produção trouxeram
benefícios para o capital, porém o que perceberemos é que para o trabalhador pouco ou nada
de benéfico adveio com essa nova forma de produção, como discutiremos a partir dos dados
de estudos que serão apresentados no tópico três deste capítulo.
O avanço tecnológico derivado da revolução industrial, tido como uma promessa de
melhores condições de trabalho, de otimização/racionalização da produção, levando a uma
melhor distribuição do tempo necessário para o trabalho, com consequente redução das
jornadas, teve seu projeto e objetivos deturpados pelo capital. Ao invés de trazer melhores
condições e benefícios para a realização das atividades, impôs ao trabalhador um controle
rígido — com as novas formas de gerenciamento via tecnologia informacional — através das
câmeras, sistemas de vídeo, controle do ponto, das frequências e ausências nos postos de
trabalho, intensificação dos ritmos e aumento da carga laboral, home office, trabalhador
28

conectado e disponível todo tempo para o trabalho, aprisionando e invadindo cada vez mais o
tempo de não trabalho.
Coadunamos com Antunes (2014) quando afirma a tese de que tais modificações
dizem respeito a uma reorganização do capital, sem questionar-se as bases, a fim de retomar
patamares de acumulação e de dominação global. Assim a intenção não é fazer
transformações profundas no sistema, mas adaptá-lo à nova realidade.
A descentralização produtiva e as novas formas de gestão do trabalho, identificadas
por trabalho em equipe, células produtivas, times de trabalho, grupos semiautônomos,
envolvimento que quer ouvir e contar com a opinião e conhecimento do trabalhador, fazem
parte de uma participação manipulada e que mantém as características da alienação e do
trabalho estranhado. O trabalhador não se apropria efetivamente do produto de trabalho nem
participa do processo produtivo como um todo, mas apenas dentro daquilo que o capital
permite, pois ele não pode “mexer” ou questionar as bases do processo produtivo, mas
contribuir para o aumento da produção, redução dos gastos ou melhoria dos produtos e
serviços.
Essas consequências são reflexo das mudanças oriundas da própria alteração da
concepção de trabalho; anteriormente entendido por relações estáveis, diferencia-se agora pela
flexibilidade, mutabilidade, remuneração atrelada à produção e não mais ao salário contratado
no momento da admissão. O funcionário não se vincula mais a um posto e a atividades de
trabalho, mas na polivalência percorre todo o processo produtivo, deslocando-se por
diferentes funções, com diferentes graus de intensidade e complexidade, de acordo com a
demanda. Outra modificação empreendida foram os horários flexíveis: se preciso até aos
finais de semana, leva-se trabalho para casa ou para outros espaços que não se restringem
mais ao lócus tradicional da empresa — trata-se do home office —, em que não se separa
mais tempo de trabalho e de não trabalho (DAL ROSSO, 2008).
Estamos diante de um contexto laboral que “se diz/se denomina” avançado, porém
utiliza práticas existentes desde o período pré-capitalista numa conjuntura identificada pelo
capitalismo predatório, que aprofunda as desigualdades e explora ao máximo a força de
trabalho e os recursos naturais. Avançamos no nível de conhecimento dos recursos
tecnológicos do maquinário, porém o desenvolvimento da sociedade não se dirigiu rumo à
emancipação humana. Pelo contrário, o refinamento tecnológico aprisionou, fragilizou,
fragmentou, precarizou a “classe que vive do trabalho”, como afirma Antunes (2007).
Cattani (2007, p. 9), referindo-se ao exemplo da intensificação imposta aos
trabalhadores, destaca: “Hoje, considerado um período de tempo relativamente curto, o
29

trabalho é mais intenso, o ritmo e a velocidade são maiores, a cobrança por resultados é mais
forte, idem a exigência de polivalência, versatilidade e flexibilidade”.
Assim, o custo humano para a produção em detrimento da saúde dos trabalhadores é
percebido por maior desgaste físico, intelectual e emocional; aumento de casos de estresse, de
acidentes de trabalho e das lesões por esforço repetitivo; pelo adoecimento que afeta não só o
trabalhador, mas também o conjunto da sociedade que arcará com o ônus da “perda” precoce
da mão de obra; e das demais consequências que surgem em cascata diante dessa avalanche
de malefícios ao trabalhador (DAL ROSSO, 2008).
Perdem-se os direitos e garantias sociais do emprego estável, a folga remunerada, as
férias, o salário fixo, a jornada semanal regulada em lei, a aposentadoria, o descanso semanal,
o seguro desemprego e toda uma gama de benefícios que passam a ser entendidos como luxo
ou custo. As discussões do custo presente nas formas de proteção foram avaliadas pelo
empresariado brasileiro como “Custo Brasil”, o que para eles se dava como rigidez das
relações de trabalho e proteção social, que precisariam ser reformuladas para possibilitar um
aumento dos empregos. Vemos que a promessa de geração de emprego não se efetivou,
porém, diante do quadro político, a legislação trabalhista vem sofrendo um desmonte com a
aprovação de projetos que atacam diretamente a classe trabalhadora, como o da terceirização
irrestrita, a reforma trabalhista e a da previdência.
Dadas essas contradições e particularidades, é necessário que se leve em consideração
como esse processo se desenvolveu em cada país de forma particular, uma vez que ele está
atrelado às condições econômicas, sociais e políticas. É igualmente importante considerar-se
como cada país se insere na divisão internacional do trabalho, que determina formas
diferentes de vivenciar-se esse momento. Como, por exemplo, no Japão, país de origem do
toyotismo, os trabalhadores tinham garantido o emprego vitalício, que não foi mantido
quando da ocidentalização desse fenômeno. Dentre outras particularidades, pretendemos
estabelecer o quadro de como se deu a introdução e o desenvolvimento do toyotismo em
nosso país, particularmente considerando as mudanças empreendidas na administração
pública federal.
A forma que assumirá no Brasil é bastante diversa daquela com que se apresenta no
Japão ou nos países da Europa, por exemplo. Nossa economia não estava estruturada de forma
semelhante aos países do denominado primeiro mundo (economia avançada x emergente),
com forte tradição industrial. Desse modo, Antunes (2007, p. 57) chama a atenção que, para
estudar-se esse fenômeno, é necessário percebê-lo como “um processo diferenciado,
30

particularizado e mesmo singularizado de adaptação” do receituário do qual vínhamos


falando.
Diante desse cenário de crise e instabilidade mundial, no Brasil vivíamos o período de
redemocratização. Como vinha ocorrendo nos demais países, aqui também se gerou uma onda
de desregulamentação, crise e instabilidade, principalmente com o aumento do desemprego.
Sendo um processo recente e ainda em andamento, demonstraremos como se encontra o
quadro dessas modificações ocorridas no Brasil a partir da década de 1990 até os dias atuais.
No que concerne a essas modificações no nosso país, temos como exemplos das
mudanças que se seguiram à intensificação da crise econômica e da expansão neoliberal, além
do aumento do desemprego, o aprofundamento das privatizações — como a venda da Cia.
Vale do Rio Doce, a das telecomunicações e a do setor elétrico no período de Collor e
Fernando Henrique Cardoso — e a diminuição de investimentos em políticas sociais com
cortes e reajustes nas verbas destinadas a saúde, educação, previdência social, etc. Quanto à
taxa de emprego e ocupação, houve uma estabilização da participação feminina no mercado
de trabalho com taxas variando de 59% em 2005 a 57% em 2015; houve ainda a ampliação da
informalidade, ocupando 45,1% da população, com taxa de desocupação de 7,6% em janeiro
de 2016 (IBGE, 2016; IPEA, 2016).
No que concerne aos aspectos de vulnerabilização do trabalho é possível destacar a
expansão da precarização e o uso crescente da terceirização, que são fenômenos conjugados.
Segundo Bourdieu (1998), a precarização laboral e a fragilidade dos vínculos gera um quadro
de insegurança e incertezas que afeta o trabalhador objetiva e subjetivamente, porque, além
das mudanças nas condições de trabalho, vivencia-se o constante fantasma do desemprego,
que ronda inclusive os trabalhadores estáveis. Este não se restringe mais aos trabalhadores
não qualificados, estendendo-se à gama de trabalhadores com nível superior que se expandiu
com a “superprodução de diplomas” (BOURDIEU, 1998, p. 121).
Assim, o autor afirma: “A precariedade se inscreve num modo de dominação de tipo
novo, fundado na instituição de uma situação generalizada e permanente de insegurança,
visando obrigar trabalhadores à submissão, à aceitação da exploração” (BOURDIEU, 1998, p.
124). Ele ressalta que este modelo se assemelha ao modo de produção do capitalismo
selvagem, cunhando o termo flexploração, como uma prática de gestão da insegurança, que se
dá através da manipulação do espaço produtivo e de discursos eufemizados que estimulam a
concorrência e o individualismo como dados naturais. Assim,
31

A precariedade torna possíveis novas estratégias de dominação e exploração,


fundadas na chantagem da dispensa, que se exerce hoje sobre toda a hierarquia, nas
empresas privadas e mesmo públicas, e que impõe sobre o conjunto do mundo do
trabalho, e especialmente nas empresas de produção cultural, uma censura
esmagadora, impedindo a mobilização e a reivindicação. (BOURDIEU, 1998, p. 78).

A ideologia neoliberal e seu discurso propagado e defendido pela mídia, com seus
ideais de avanço, progresso e liberdade, camuflam as bases sobre as quais se pauta seu
desenvolvimento, quais sejam: flexibilização, desigualdade, exploração, lucro máximo para
poucos, maleabilidade num abandono das questões sociais em favor das econômicas e de
mazelas e sofrimento que atinge grande parcela da população num visível retorno aos modos
mais arcaicos e numa clara regressão de direitos e conquistas sociais.
Pretende-se apresentar a seguir perspectivas que analisam como o neoliberalismo
trouxe mudanças para a esfera do trabalho, contribuindo para a forma como este se delineia
atualmente, a partir da reflexão em torno da terceirização.
Diante desse panorama, discorremos sobre o que entendemos por precarização,
relacionando-a à terceirização, e como estas se expandiram no nosso país. Entendemos
precarização do trabalho, que Druck (2011, p. 41) denomina ainda de Precarização Social do
Trabalho, como sendo:

um processo em que se instala — econômica, social e politicamente — uma


precarização moderna do trabalho, que renova e reconfigura a precarização histórica
e estrutural no Brasil, agora justificada pela necessidade de adaptação aos novos
tempos globais [...]. O conteúdo dessa (nova) precarização está dado pela condição
de instabilidade, de insegurança, de adaptabilidade e de fragmentação dos coletivos
de trabalhadores e da destituição do conteúdo social do trabalho. Essa condição se
torna central e hegemônica, contrapondo-se a outras formas de trabalho e de direitos
sociais duramente conquistados em nosso país, que ainda permanecem e resistem.
[...] Há um fio condutor, há uma articulação e uma indissociabilidade entre: as
formas precárias de trabalho e de emprego, expressas na (des)estruturação do
mercado de trabalho e no papel do Estado e sua (des)proteção social, nas práticas de
gestão e organização do trabalho e nos sindicatos, todos contaminados por uma
altíssima vulnerabilidade social e política.

A terceirização insere-se no âmbito do trabalho precário como uma dentre outras


formas de manifestação da precarização laboral, o que também podemos observar nas demais
formas de inserção e contratação flexibilizadas: na informalidade, na feminização da
produção, na desregulamentação das leis trabalhistas, no desemprego e no uso deste para
controlar a classe trabalhadora, no crescente número de adoecimentos relacionados ao
trabalho, de acidentes laborais, perdas salariais, etc. Dados da pesquisa realizada no setor
petroquímico por Borges e Druck (2002, p. 114-115) ilustram a expansão da terceirização no
Brasil:
32

No início dos anos 90 já se introduziram mudanças qualitativas relevantes, sendo


que a mais importante delas é a terceirização de áreas nucleares das empresas,
processo que se tornou comum no final da década. Era o caso da produção/operação,
que começou a ser terceirizada a partir de 1990, atingindo 9% das empresas;
laboratórios/processos, que também começou a ser terceirizada naquele mesmo ano,
ocorrendo em 7% das empresas [...] a manutenção corretiva – que até 1989 era
terceirizada em 23% das empresas e chegou a 54% em 1994 e a manutenção
preventiva (paradas) que, no período 1990/94, era terceirizada por 21% das
empresas, atingindo 65% do total pesquisado. Em 2000, a manutenção elétrica e a
manutenção de máquinas e equipamentos são terceirizados por 47% e 33% das
empresas, respectivamente, enquanto que caldeiraria e a usinagem são terceirizadas
por 27% e 20% das empresas petroquímicas. Todas essas áreas são consideradas
como essenciais para o processo de produção e, portanto, áreas nucleares.

Tais dados refletem não só a realidade do setor petroquímico, mas explicitam o


aumento significativo da terceirização em setores estratégicos das empresas. Desta forma, no
atual momento de acumulação flexível, a precarização surge como estratégia de dominação
marcado pela ideologia neoliberal e a terceirização ganha destaque dada a sua expansão.
Apresentamos um quadro geral no qual se delineiam as formas que a precarização
assumiu no nosso país, a partir da tipologia proposta por Druck (2011, p. 48), enfocando a
intensificação do trabalho e a terceirização presente tanto nos modelos de gestão como na
organização do trabalho:

o que tem levado a condições extremamente precárias, através da intensificação do


trabalho (imposição de metas inalcançáveis, extensão da jornada de trabalho,
polivalência, etc.) sustentada na gestão pelo medo, na discriminação criada pela
terceirização, que tem se propagado de forma epidêmica, e nas formas de abuso de
poder, através do assédio moral [...]

Alguns desses fatores foram observados na intervenção realizada. A gestão pelo medo
apareceu, por exemplo, nas ameaças constantes de devolver o trabalhador terceirizado para a
empresa ou de advertência, além do assédio moral que sofriam por parte de gestores e pares
que se utilizavam de nomes pejorativos para se referir a eles ou ao trabalho que realizavam,
dentre outros fatores que exporemos e discutiremos adiante.
Ainda de acordo com Druck (2011, p. 49), essa

“epidemia” da terceirização, como uma modalidade de gestão e organização do


trabalho, explica-se pelo ambiente comandado pela lógica da acumulação financeira
que, no âmbito do processo de trabalho, das condições de trabalho e do mercado de
trabalho, exige total flexibilidade em todos os níveis, instituindo um novo tipo de
precarização que passa a dirigir a relação entre capital e trabalho em todas as suas
dimensões.
33

A terceirização está alinhada à lógica financeira da era de mundialização do capital, a


qual se apoia nas demandas de curto prazo, transferindo ao trabalhador a pressão por redução
dos custos, diminuição de tempo e espaços produtivos, elevação da produtividade e
flexibilidade das formas de inserção e contratação, sendo uma das modalidades que melhor se
adequa e se insere nesse cenário.
No Brasil, a terceirização ganhou força na década de 1990, no governo Collor, com a
expansão neoliberal que iniciou o processo de privatizações de empresas públicas e redução
do Estado. A flexibilização na administração pública intensificou-se como parte desse cenário
maior, principalmente diante da crise econômica que se vivenciava, cuja proposta neoliberal
era limitar a atuação do Estado na economia, reduzindo seu papel social, tornando-o cada vez
mais mercantilizado. Buscou-se assim a implementação de mecanismos de mercado na gestão
pública, voltados para o gerencialismo, administração ágil, menos burocrática, com foco na
sociedade como “cliente” (AQUINO et al., 2014).
O processo de privatizações na administração pública decorreu com o Programa
Nacional de Desestatização (PND), que atingiu diversos setores, dentre eles os de energia,
telecomunicações, mineração, portos e bancário. A ação realizou-se como justificativa para
reduzir a intervenção do Estado na economia e estancar o crescimento da máquina pública.
Assim privatizações se estenderam por estados e municípios, e junto com ela as terceirizações
(SILVA, 2009).
Os modelos de terceirização são variados. Há desde a terceirização de atividades de
apoio (manutenção, limpeza, alimentação) até a terceirização de parte do processo produtivo,
que pode ocorrer dentro da própria empresa ou fora dela, abrangendo inclusive terceirização
entre países, trabalhos domiciliares ou de fornecimento de peças para o processo produtivo.
Não há, entretanto, uma forma unívoca de adoção dessas modalidades, podendo haver um
mescla entre elas (SILVA, 2009).
Na Administração Pública, por exemplo, a terceirização assume características
particulares. São elas a contratação de empreiteiras, a locação de serviços ou o fornecimento
de mão de obra, a concessão ou a permissão de serviços públicos — prática que ocorre desde
o surgimento do serviço público, porém ganha novas formas e se expande de forma
exponencial diante do cenário atual. Daí a importância e a atualidade em abordarmos esse
processo.
Existe uma legislação específica para regular essas relações; dentre elas há a Lei
8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), que determina que a contratação
dos serviços seja realizada através de processo licitatório, e o Enunciado 331 do Tribunal
34

Superior do Trabalho, que orienta a geração de vínculo com a administração pública e a


responsabilidade solidária (SENHORAS, 2013).
O item II do Enunciado 331 versa sobre a relação com a Administração Pública,
ressaltando a obrigatoriedade da realização de concurso público, e coíbe que vínculos sejam
estabelecidos sob a forma de apadrinhamentos políticos, enquanto o item IV afirma a
responsabilidade solidária, estipulando “dividir” as responsabilidades entre contratada e
contratante, pois, caso aquela não cumpra com suas obrigações junto aos trabalhadores, esta
deve fazê-lo, a fim de não deixá-los completamente desamparados nas situações em que as
empresas terceiras alegam falência, por exemplo, ou em casos de acidentes e invalidez
(SENHORAS, 2013).
Desta forma, diante dos objetivos desta dissertação e da vasta bibliografia sobre a
temática da reestruturação produtiva e do neoliberalismo, focaremos nossa investigação sobre
a precarização laboral, que atinge as mais diversas esferas da vida social, a partir dos
trabalhadores terceirizados da UFC. Para isso, abordaremos no próximo tópico deste capítulo
aspectos relacionados ao modo como a terceirização se estrutura, suas múltiplas definições,
formas e tipos, bem como as novas estratégias que têm sido utilizadas.

3.2. Terceirização: origem, definição, formas e tipos

O mundo do trabalho passa por um processo de reestruturação produtiva de transição


do modelo taylorista-fordista para o modelo toyotista, mais adequado às novas exigências de
acumulação flexível e enxugamento das fábricas. Tal processo efetiva-se por meio de novas
formas de intensificação e controle do trabalho, realizados através da redução de efetivos e de
custos, do modelo de produção just in time e do enfraquecimento dos sindicatos, dos quais
vínhamos falando até agora (NAVARRO; PADILHA, 2007).
A reestruturação produtiva gera novas formas de vínculo laboral precário, dentre elas a
terceirização, as quais estão relacionadas aos objetivos últimos do capital para geração de
mais-valia e acumulação a qualquer preço (ANTUNES, 2001).
A terceirização surgiu com o objetivo de complementar a força produtiva das
empresas, porém vem-se expandindo para diversas atividades e, como aponta Borsoi (2011),
atinge não apenas a esfera dos serviços ou das atividades-meio (limpeza, vigilância,
manutenção), mas chega a despontar entre as atividades-fim das empresas, como nos setores
de tecnologia da informação, bancário, automobilístico e de telefonia, principalmente.
35

Há distintos campos de saber que estudam a terceirização, resultando em diferentes


visões e definições sobre ela e suas diversas configurações de acordo com a área e a
perspectiva que adotam. O discurso do empresariado define a terceirização a partir do viés
econômico, de redução de custos e garantia dos lucros, visão esta defendida por alguns
estudos ligados à área da Administração (LEÃO et al., 2014), por exemplo. Tal perspectiva
coaduna com o ideário neoliberal de que a terceirização permitirá ganhos de lucratividade e
geração de empregos, porém não reflete sob que condições essas vagas serão criadas, nem as
consequências do aumento da lucratividade, que recai sobre os direitos dos trabalhadores.
Assim, essas afirmativas são utilizadas para legitimar tal prática e expandi-la para as diversas
esferas do mercado de trabalho.
Em oposição a essa opinião, no campo das ciências sociais e humanas esse tipo de
vínculo laboral geralmente é definido segundo uma perspectiva crítica, que leva em
consideração suas consequências para o trabalhador a partir do viés da precarização como
uma forma de flexibilizar os direitos e fragmentar a classe trabalhadora (JORGE, 2011;
ANTUNES, 2014; DRUCK, 2015).
Também pode-se abordar a terceirização sob o viés do Direito (OLIVEIRA, 2013), no
qual a temática é relacionada com a jurisprudência que rege esse vínculo laboral.
Analisaremos mais adiante a legislação no que concerne às responsabilidades atribuídas à
Administração Pública. A utilização desse gênero de contrato trabalhista contraria o que a
Constituição Federal de 1988 estabelece ao determinar que o vínculo com a Administração
Pública deve realizar-se por meio de concurso público. O que vemos, no entanto, é uma
expansão da terceirização junto aos entes federados.
Dentre as várias definições encontradas para terceirização podemos citar ainda aquela
adotada por instituições oficiais (IBGE, SRRT, DIEESE) e de autores (DRUCK, 2011;
DRUCK; FRANCO, s/d; MARCELINO; CAVALCANTE, 2012) que estudam a temática a
partir do viés que será seguido nessa dissertação, como um fenômeno característico da
precarização do trabalho num âmbito mais amplo e diretamente atrelado à flexibilização
laboral. Esta deve, portanto, ser compreendida a partir de uma leitura que leve em
consideração as mudanças empreendidas no neoliberalismo, o qual retomaremos para tratar
do surgimento e da expansão da terceirização, especialmente na esfera pública brasileira. A
adoção dessa “vertente” se dá dentre outras razões porque atinge diretamente a grande maioria
dos trabalhadores, tal como aponta Antunes ao mencionar a subproletarização da classe que
vive do trabalho.
36

Entendemos por terceirização a relação de vínculo trabalhista em que uma


empresa/empregador contrata os serviços de um terceiro para prestar serviços em sua
empresa, marcada por uma relação de trabalho vulnerável e pela perda de direitos trabalhistas.
Segundo definição do IBGE (2007, p. 27), o

termo “terceirização” é usado quando uma unidade de produção (unidade


contratante) contrata outra unidade (unidade contratada) para realizar tarefas
específicas, tais como o fornecimento de mão-de-obra, a execução de funções de
apoio ou de partes do processo de produção, ou ainda o processo completo de sua
atividade produtiva na produção de bens e serviços.

Assim, de acordo com Jorge (2011), dentre as várias definições para o que ele nomeia
“técnica” da terceirização do trabalho, de um lado vê-se uma lógica voltada para eficiência,
especialização, produtividade, redução de custos, competitividade, parceria, foco,
flexibilidade, agilidade, qualidade, como se todos se beneficiassem desse modelo, o que,
segundo o autor, pode ser percebido através da falácia do ganha-ganha, em que se propaga
que ganham mercado, empresário, trabalhador, fornecedor, cliente, empregados, etc.
Por outro lado, o que se constata é que a terceirização tem como foco a redução de
custos através da redução de gastos com a força de trabalho; e assim um empregado
terceirizado terá que realizar as mesmas atividades que antes eram realizadas por mais
funcionários, que tinham mais garantias, direitos e melhores condições de trabalho. Daí
notam-se os antagonismos por trás dessas definições. Na realidade o que ocorre é o ganha-
perde, em que ganha o empresariado e perde o trabalhador. O que veremos mais à frente, a
partir de dados de pesquisas realizadas nos últimos vinte anos, é que essa qualidade de
vínculo tem levado a redução de salários, perda de benefícios e direitos, aumento da carga de
trabalho, elevação de riscos e acidentes de trabalho, piora nas condições de trabalho e
enfraquecimento/desmonte dos sindicatos (JORGE, 2011).
Ressaltamos que a terceirização não é uma novidade no mundo do trabalho. Pereira et
al. (2015) afirmam sua utilização antes mesmo da Revolução Industrial pelos artesãos que
subcontratavam mão de obra. Porém, diante das crises cíclicas do capital e da redução das
taxas de lucro, em meados dos anos 1970 quando se observou um declínio da lucratividade,
foi necessário pensar artifícios para a retomada do crescimento. Ali ocorre a intensificação da
terceirização como mecanismo para aumentar os lucros e exercer um maior controle sobre o
trabalhador através da maior flexibilização e desregulamentação dos direitos trabalhistas e das
condições de trabalho, ao lado de outras ações como o trabalho informal, o trabalho por tempo
determinado, etc.
37

No Brasil a subcontratação passou a ser amplamente utilizada com a chegada das


multinacionais e difundiu-se a partir do neologismo “terceirização”, que significa
intermediário, um terceiro que atravessa essa relação com a empresa contratante (PEREIRA et
al., 2015).
Esta discussão se reveste de grande importância, já que, com as metamorfoses no
mundo do trabalho, a terceirização como parte desse processo também sofreu adaptações. A
precariedade das relações de trabalho tornou-se presença central e marcante nos mais diversos
âmbitos do processo produtivo, deixando de ser algo periférico ou destinado àqueles
trabalhadores de “terceira linha” ou do chão de fábrica e atuando inclusive sobre grandes
executivos e funcionários qualificados e estáveis.
A terceirização amplia-se assim porque ela também passou por processos de adaptação
à nova ordem econômica mundial e ganhou evidência na expansão neoliberal, adquirindo
outros aspectos e ocupando lugar de destaque no debate e na defesa dessa mesma ordem.
Como afirma Araújo (2001, p. 56): “De peça acessória, periférica, complementar na
arquitetura produtiva, ela se transforma em elemento central, em condição de flexibilidade,
portanto, fundamental do ponto de vista da produtividade e da competitividade das empresas”.
Assim, nessa atualização, novas formas e estratégias de implantação e expansão da
terceirização surgem.
De acordo com Jorge (2011), temos como tipos de terceirização: a) as personalidades
jurídicas, empresas criadas a partir do ideário do empreendedorismo, onde o trabalhador
registra uma empresa em seu nome em que muitas vezes é o único funcionário; b) o trabalho
domiciliar, com trabalhadores autônomos remunerados por produção, no qual um dos
modelos mais emblemáticos é o seu uso nas indústrias de facção e no teletrabalho; c) as
empresas fornecedoras de componentes e peças, cuja produção abastece as grandes empresas;
d) as empresas prestadoras de serviços de apoio e periféricos ou em áreas centrais, como
produção, manutenção, operação, administração; e) as cooperativas de trabalhadores; e f) a
quarteirização, em que uma empresa é contratada para gerenciar os contratos da contratante
com as subcontratadas, evidenciando a terceirização em cascata (DRUCK; FRANCO, s/d).
Tanto as cooperativas quanto a quarteirização constituem novos modelos de
terceirização, pois atingem todas as áreas da empresa, não se restringindo mais às atividades-
meios, demonstrando a intenção de expansão dessas modalidades para os diversos setores
produtivos.
Como podemos observar, as cooperativas, por exemplo, estão ganhando cada vez mais
espaço entre os serviços de saúde, principalmente municipais e estaduais, representando uma
38

quantia vultuosa de dinheiro público. Essa modalidade de contrato possui um caráter ainda
mais perverso, pois, além do uso do termo “cooperativa” para designar uma atividade que de
cooperação não tem quase nada, além ainda de ser uma falácia/ilusão de autogestão e de um
trabalho solidário e coletivo, também é uma prática pautada em legislação específica — no
artigo 442 da CLT, alterado pela Lei 8.949/94, que destitui o cooperado de qualquer garantia.
Temos ainda o trabalho temporário e a empreitada ou subempreitada como modos de
terceirização que são regulados respectivamente pela Lei 6.019, de 3 de janeiro de 1974, e
pelo Código Civil, nos artigos 610 a 6261. Elas visam à descentralização e à externalização da
produção, possibilitando que a empresa mantenha o foco nas atividades-fim, transferindo a
terceiros as responsabilidades diante de riscos, incertezas, gestão e controle do trabalho.
Dentre as definições de terceirização encontradas nas diversas referências
bibliográficas, pudemos observar, como pontua Druck e Franco (s/d), que não há um
consenso em torno dela, porém encontram-se alguns elementos comuns, como a noção de
repasse e transferência de responsabilidade, de especialização na atividade-fim e de
flexibilização.
Podemos observar, apoiados em Druck e Franco (s/d), que a terceirização vem
ganhando força no conjunto das relações precárias de trabalho, especialmente devido as suas
características que, além das já apresentadas — redução da mão de obra, demissões em larga
escala, aumento do desemprego e externalização da produção —, ressalta ainda um
aprofundamento dessas características através da:

[...] i) a persistência do processo de redução de empregados «permanentes» das


empresas; ii) a difusão e generalização da terceirização nas diversas áreas de
atividade das empresas contratantes; iii) um acentuado grau de terceirização das
empresas contratantes (crescente proporção de trabalhador terceirizado/trabalhador
do quadro «permanente»); iv) a ampliação do segmento de terceirizados sob
modalidades variadas de contratação; v) a diversificação dos tipos de contratação de
trabalhadores que se distanciam do âmbito de regulação da legislação trabalhista; vi)
indícios de precarização das relações de trabalho (marcante diferença do custo
médio do trabalhador empregado do quadro «permanente» em relação ao custo
médio do trabalhador terceirizado); vii) a persistência das reclamações trabalhistas, a
despeito do declarado controle e cumprimento da legislação por parte das empresas.
(p. 11 e 12).

Corroboramos Alves (2007, p. 6) quando afirma que, além das inovações


organizacionais e tecnológicas, as inovações sócio-metabólicas se caracterizam pela “captura”
da subjetividade do trabalhador, sendo cada vez mais necessário, no capitalismo
manipulatório, adentrarmos as “teias de controle e dominação do capital não apenas no plano
político-ideológico, mas psicossocial”.
39

Nesse cenário no qual se discutem os tensionamentos em torno desse vínculo laboral,


consideramos importante aprofundar o estudo das consequências dessas relações, geralmente
tão instáveis e vulneráveis para os trabalhadores, e de como percebem e vivenciam essa
realidade. Foco de nosso interesse no tópico seguinte.

3.3. Terceirização e saúde

A relação entre trabalho e saúde é estudada sob diferentes perspectivas, dentre as quais
sob o viés da teoria do estresse, da Psicodinâmica do Trabalho, da Epidemiologia/Diagnóstica
e das abordagens que relacionam subjetividade e trabalho numa perspectiva histórico-cultural
de base marxista (JAQUECS, 2003).
Tal campo de pesquisa e atuação vem crescendo e, ao longo da história, sofreu
algumas alterações com a inserção de outras áreas e campos do conhecimento. Dentre as
modificações destacamos a importância dada à história do sujeito no contexto laboral e o nexo
com as atividades desempenhadas, que anteriormente não era abordado ou explorado quando
o trabalhador era acometido com algum adoecimento.
Tinha-se um conhecimento menor ainda quando a questão se tratava de um
adoecimento ou sofrimento psíquico, devido aos fatores envolvidos nos aspectos subjetivos
serem de difícil apreensão através dos métodos convencionalmente utilizados “por estarem
relacionadas às representações e aos sentidos que o trabalhador lhes empresta”, como afirma
Borsoi (2007).
Quando se trata dos estudos voltados à temática em relação ao trabalhador
terceirizado, torna-se ainda mais difícil encontrar bibliografia ou pesquisas que façam essa
relação devido, dentre outros fatores, à pouca ou nenhuma assistência que possuem dentro das
empresas, além da dificuldade em se estabelecer o nexo causal diante da grande rotatividade
que apresentam, bem como pela ausência de registros do uso desse vínculo laboral que é
subnotificada.
Desta forma, pretendemos abordar as consequências da terceirização para a saúde
desses trabalhadores. Destacamos, apoiados em Druck (1999), algumas das repercussões da
terceirização: “como segmentação, fragmentação, desorganização, informalização;
fragilização dos sindicatos, com redução das bases de representação dos trabalhadores devido
sua segmentação” (DRUCK, 1999, p. 128-129). Essas mudanças se sustentam através dos
discursos que afirmam a necessidade de cooperação e de livre iniciativa da organização dos
trabalhadores, cujo objetivo principal é garantir a qualidade final do produto ou dos serviços
40

prestados. Porém, várias são as contradições por trás dos discursos de desenvolvimento e
modernização que desconsideram as consequências desse processo para as condições de vida,
saúde e trabalho dessas pessoas (SILVA, 2009).
Assim, diante desse cenário, uma pesquisa realizada em empresas do ABC Paulista
constatou que os motivos que justificaram a terceirização foram redução de custos (75%),
maior eficiência (50%) e especialização (33%); mas em 92% dos casos a terceirização refletiu
em redução dos salários, em 58% das empresas houve perda de direitos trabalhistas e em 42%
constataram-se prejuízos referentes às condições de segurança e saúde no trabalho (ABREU;
SORJ, 1994).
Estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(DIEESE) (1993), realizado com 40 empresas de diversos ramos instaladas na região Sudeste
do país, revelou que, em 67% das subcontratadas, os níveis salariais eram inferiores aos da
empresa contratante. Em 72,5% dos casos, os benefícios sociais eram menores que os
praticados pelas contratantes. Em 32% das empresas, a terceirização estava associada à
ausência de equipamentos de proteção individual, menor segurança e maior insalubridade.
Estudo recente da Secretaria Nacional de Relações de Trabalho e do Dieese (2014)
demonstra que trabalhadores terceirizados recebem remuneração média inferior à dos
trabalhadores com vínculo efetivo (24,7%), a jornada semana de trabalho em horas é maior
(7,5%), o tempo no emprego em anos é menor (53,5%), aumentando assim a rotatividade e a
dificuldade em se estabelecer o nexo causal em casos de adoecimento decorrentes do trabalho,
além de serem vítimas de um maior número de acidentes laborais (47%).
O estudo indica ainda que os trabalhadores terceirizados estão mais sujeitos a
trabalhos análogos à escravidão até aproximadamente seis vezes mais que os profissionais
contratados. As ações sindicais na Justiça do Trabalho em torno da terceirização totalizam
37%, com disputas referentes à extensão dos benefícios recebidos pelos efetivos aos
terceirizados, à responsabilidade solidária ou subsidiária da contratante pelos compromissos
não honrados pelas empresas terceiras, acesso às informações dos contratos de terceirização,
dentre outras garantias sindicais, as quais os trabalhadores terceirizados, pela fragilidade do
vínculo, muitas vezes não têm capacidade de mobilização coletiva, articulação e luta (SRT;
DIEESE, 2014).
Lima, Barros e Aquino (2012) ressaltam os desdobramentos da intensificação do
trabalho diante da precarização, apontando para um esgotamento físico e psíquico do
trabalhador. Isso pode ser percebido pelo aumento na incidência de estresse, acidentes no
trabalho, doenças ocupacionais expressas em modos de sofrimento como depressão,
41

transtorno psicossomático, transtorno de ansiedade, além do aumento do absenteísmo em


decorrência de Ler/Dort (Lesões por esforços repetitivos/Distúrbios osteomusculares
relacionados ao trabalho). Os autores concluem que o adoecimento repercute sobre a vida
laboral, social e familiar do trabalhador.
Essa temática tem sido bastante discutida nos vários âmbitos da sociedade brasileira.
O deputado e empresário da indústria alimentícia Sandro Mabel (PMDB-GO) lançou o
projeto de Lei 4.330, conhecido como “PL da Terceirização” em 2004, que visa regulamentar
a prestação de serviços via subcontratação. O projeto foi sancionado pelo presidente da
República, Michel Temer, mesmo diante de uma intensa resistência e mobilização tanto
popular quanto das centrais sindicais contra a aprovação.
É curioso pensar o motivo da retomada da votação do “PL da Terceirização” após dez
anos de tramitação pela Câmara. Somente um quadro de crise política, institucional e
econômica o qual vivemos poderia justificar tamanho retrocesso.
O Congresso, liderado pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha
(PMDB-RJ), desferiu intensos ataques às bases do governo Dilma Rousseff com suas pautas
conservadoras, articulando formas de minar a ação governamental, especialmente através de
ataques à classe trabalhadora e às minorias. Frente à crise política, a pauta relacionada à
doação de empresas para campanhas, que foi aprovada na Câmara e no Senado, tendo
retornado ao Congresso com veto presidencial, tem sido utilizada — junto com Ministérios
essenciais para a população — como moeda de troca para aprovação das contas do governo
num claro jogo político que visa desarticular sua atuação. É importante destacar que, durante
a escrita dessa dissertação, se atravessou um processo de impeachment, cujas alegações para o
afastamento da presidente da República se fundamentam por pedaladas fiscais, considerado
como crime de responsabilidade fiscal.
É todo um contexto político-econômico-social de crise que possui um objetivo
específico e um alvo certo. Com o apoio da mídia e dos setores mais conservadores da nossa
sociedade, cria-se um quadro de instabilidade e crise em todos os setores do país,
prejudicando não só o governo, mas principalmente a população e a economia do país, num
momento de recessão mundial.
Estudo realizado por Selligman-Silva (2015) aponta indicações para o panorama atual
de recessão ao pesquisar a relação existente entre desemprego e saúde mental. Em estudo
longitudinal os pesquisadores apontaram que períodos de recessão e o atual quadro de
reestruturação produtiva, que possui como marca característica do capital o desemprego
estrutural para manter-se um “exército industrial de reserva”, traz repercussões nefastas à
42

saúde dos trabalhadores em geral, mas especialmente àqueles que se encontram em situação
de precariedade e instabilidade dos vínculos visto que estão mais suscetíveis ao medo
constante diante da ameaça frequente do desemprego.
Dessa forma, esses trabalhadores tornam-se cada vez mais passivos a situações de
violência e desamparo frente ao emprego digno. Assim, entendemos que eles tomam parte
nesse quadro, corroborando dados da pesquisa e de nossa vivência. Tais empregados são
vítimas frequentes de assédio moral e ameaças relacionadas à perda do emprego, apontando
para um ambiente perverso onde o objetivo não é mais o de um emprego digno, mas de
manter algum, seja lá sob que condições forem, como forma de garantir a subsistência e a
sobrevivência.
Por meio dos dados ressaltamos que esse vínculo apresenta uma ameaça aos empregos
e direitos dos trabalhadores, pois a regulamentação da terceirização acabou com os limites
antes existentes para a terceirização de mão de obra, de modo que avançará nas contratações
de terceirizados e ameaçará os trabalhadores efetivos e os direitos trabalhistas conquistados
pela classe trabalhadora, os quais serão ainda mais vulnerabilizados.
Estudos perspectivados na visão crítica da realidade, especialmente aqueles que
tragam as percepções e vivências dos terceirizados, são necessários a fim de apontar as reais
consequências deste cenário que vem despontando no mercado brasileiro, principalmente
desvelando o véu ideológico por trás das artimanhas do capital.
Neste sentido, em entrevista concedida ao periódico “Esquerda Diário”, Antunes
(2015) afirma que o PL, ao invés de regulamentar 12 milhões de trabalhadores, vai
desregulamentar, vulnerabilizar, precarizar 30 milhões. Segundo o autor, a falácia de que, ao
regulamentar-se o trabalho terceirizado, as empresas poderão concentrar-se em seu negócio
principal melhorando a qualidade dos serviços e produtos é usada para escamotear as reais
intenções do referido projeto, que são reduzir custos, acabar com direitos trabalhistas,
fragmentar e desorganizar a classe trabalhadora.
Druck (2011, p. 49) corrobora essa ideia e ressalta: “Se a terceirização é mais uma
‘fatalidade’ dos tempos modernos, contra a qual não se pode lutar, então a única alternativa é
colocar limites a essa prática, a fim de minorar os seus efeitos sobre os trabalhadores”. Assim,
entendemos que a terceirização deve ser objeto de crítica e restrição, e não de defesa e solução
para as novas demandas do mundo do trabalho.
A partir dos resultados dessas pesquisas podemos constatar que a terceirização está
alinhada às finalidades do capital ao objetivar redução de custos, pessoal, direitos sociais e
trabalhistas, ademais de maior especialização e produtividade. Nesse “avançar” das
43

terceirizações, consideramos a relevância de estudos que lhe relacionam as consequências à


saúde dos trabalhadores e alertamos para a necessidade de novos estudos que problematizem
essa relação. Desta forma, pretendemos apresentar e contribuir para essas discussões em torno
da saúde e segurança desses profissionais.
Tal reflexão se faz necessária uma vez que estudos que abordam a terceirização sob o
viés do trabalhador e suas formas de pensar, sentir e agir trazem contribuições no tocante à
constituição da identidade, da subjetividade e da saúde deles. Merece destaque também
indicar que os trabalhadores têm sido diretamente afetados pelo enfraquecimento da
mobilização coletiva com o consequente enfraquecimento da representação e da força
sindical, pela perda de laços de solidariedade entre trabalhadores com diferentes vínculos
empregatícios, pela fragmentação da classe trabalhadora, demonstrando como essa
dicotomização, esse dualismo e embate de forças é sentido e vivenciado pelos terceirizados.
Linhart (2014) utiliza o conceito de “precarização subjetiva” para abordar como as
transformações das quais vínhamos falando afetam os trabalhadores, inclusive os estáveis,
para além da dimensão apenas objetiva. Ela pode ser percebida ou sentida a partir da
crescente demanda que muitas vezes os trabalhadores não estão aptos a responder ou não
possuem os meios e instrumentos para tal. Para melhor esclarecer esse conceito e sua
contribuição neste trabalho utilizaremos uma longa, porém esclarecedora citação da autora ao
definir o termo “precarização subjetiva”:

É o sentimento de não estar “em casa” no trabalho, de não poder se fiar em suas
rotinas profissionais, em suas redes, nos saberes e habilidades acumulados graças à
experiência ou transmitidos pelos mais antigos; é o sentimento de não dominar seu
trabalho e precisar esforçar-se permanentemente para adaptar-se, cumprir os
objetivos fixados, não se arriscar fisicamente ou moralmente (no caso de interações
com usuários ou clientes). É o sentimento de não ter a quem recorrer em caso de
problemas graves no trabalho, nem aos superiores hierárquicos (cada vez mais raros
e cada vez menos disponíveis) nem aos coletivos de trabalho, que se esgarçaram
com a individualização sistemática da gestão dos assalariados e concorrências entre
eles. É o sentimento de isolamento e abandono. É também a perda da autoestima,
que está ligada ao sentimento de não dominar totalmente o trabalho, de não estar à
altura, de fazer um trabalho ruim, de não estar seguro de assumir seu posto [...]
(LINHART, 2014, p. 46).

Podemos refletir como a administração moderna impôs ao trabalhador uma “nova”


relação com o trabalho e daí a importância em investigar-se como essas dicotomias afetam-
lhes a saúde. São visíveis as contradições entre os modelos de disciplina, abnegação e
autonomia combinados com disponibilidade, flexibilidade, mobilidade, inclusive fora do
trabalho.
44

A tese da autora corresponde à de que o número crescente de quadros relacionando


sofrimento-adoecimento e trabalho está ligado a dois fatores principais, quais sejam: a) a
desagregação coletiva — quando antes, no taylorismo-fordismo, os laços assinalavam-se por
solidariedade, ajuda mútua, identidades comuns e de classe, sentimento de pertença a uma
coletividade, hoje vê-se como um conjunto que não mais responde às agressões e
impedimentos de modo coletivo; e b) uma intensa manipulação da subjetividade do
trabalhador pelas empresas, que a mobilizam, a formatam, a canalizam de acordo com seus
objetivos (LINHART, 2014).
A terceirização se reveste de um caráter ainda mais perverso frente ao desemprego
para a classe trabalhadora, porque esse vínculo possibilita um maior controle por parte do
empregador através da flexibilização dos contratos, marcado por incertezas, perdas de
direitos, precarização das condições de trabalho e transferência de responsabilidade da gestão
e dos custos da força de trabalho para um terceiro, que muitas vezes não se sabe quem é
(JORGE, 2011).
Nesse quadro de opressão e alienação da classe trabalhadora, várias são as
repercussões para sua subjetividade, seus modos de ser e para a própria saúde, tanto física
como mental, como já vínhamos apontando.
Diante das transformações advindas com o modelo toyotista, ou seja, a flexibilização e
o neoliberalismo, uma nova ideologia foi sendo formulada. Fortalece-se o não reconhecer-se
como classe, como igual/semelhante, e sim como oposição, concorrente, na desenfreada
competição individualista em que o trabalhador é o principal responsável pela sua carreira
pessoal e seu sucesso, não havendo espaço para fracassos, perdas e, principalmente, para o
adoecimento.
Outro fator que nos chama a atenção e incide diretamente na subjetividade dos
trabalhadores modernos é a apropriação do que antes era concebido como transgressão, mas
para o trabalhador era o que lhe garantia uma possibilidade de manifestação da sua
subjetividade. Nessa nova ordem, a criatividade, o novo, o inovador são incentivados, porém
dentro de certos limites, numa perceptível captura da subjetividade para dentro das fronteiras
do prescrito pela organização do trabalho. Inovação, criação, autonomia passam a estar no rol
das atividades prescritas e a questão que nos surge é como o trabalhador vai dar vazão à
subjetividade cada vez mais capturada, fragmentada, cindida (AQUINO et al., 2014).
Cabe ressaltar que a terceirização no serviço público e de forma mais específica na
universidade pública adequa-se à conjuntura ampla de reestruturação produtiva. Assim como
a saúde e a educação básica, o ensino superior passou a ser alvo da mercantilização e dos
45

ajustes. De início, a partir das ondas de privatizações de Instituições de Ensino Federais e


Estaduais e, posteriormente, com a adoção de práticas gerencialistas tipicamente privatistas,
como ocorreu nos setores bancário, das telecomunicações, de energia elétrica. As instituições
de ensino superior também adotaram a ideia de que a educação deve ser tomada como serviço
a ser adquirido, comprado segundo a lógica do mercado, gerando a necessidade de um
controle de custos de base fortemente concorrencial.
Mediante tais reflexões, pretendemos discutir a relação entre terceirização e saúde na
Universidade Federal do Ceará a partir de uma intervenção realizada no setor do
Almoxarifado Central como Psicóloga da referida instituição.
Consideramos importante destacar a dificuldade de acesso a informações sobre o uso
desse vínculo laboral nos documentos disponíveis nos canais de comunicação e acesso à
informação da universidade. Foram empreendidas várias tentativas por meio de diferentes
setores para acessar os dados atualizados sobre a situação dos contratos de terceirizados, bem
como um histórico. Nos anuários de gestão de pessoas, por exemplo, o único campo em que
encontramos referência a esse tipo de contrato está presente nos dados disponibilizados pelo
Hospital Universitário (PROGEP, 2016), tornando visível a imprecisão e a ausência dessas
informações na universidade.
Assim, diante do quadro político, econômico e social que vivemos, questionamo-nos
para onde a expansão da terceirização na Universidade Pública Federal aponta. O que isso
sinaliza para o futuro da administração pública, para a universidade, para o trabalho e para o
trabalhador e sua saúde?
Em estudo realizado por Dal Rosso (2008) relacionam-se os aspectos das condições de
trabalho, acometidas pela intensificação laboral no atual modelo de produção, a mudanças no
perfil de adoecimentos ligados ao trabalho. A elevação da carga laboral, por exemplo, sentida
em muitas categorias profissionais, manifesta-se de diferentes formas, principalmente através
dos acidentes, lesões e doenças crônicas.
O viés ideológico por trás desse processo tenta ainda incutir no trabalhador a
naturalização da reorganização do trabalho num quadro contraditório, que une arcaicos
modelos de gestão e controle do trabalho, circunscritos por vigilância e repressão, junto com
modelos contemporâneos destacados por modernização e flexibilidade; propaga-se que a
inadaptação dos trabalhadores aos novos processos faz parte de uma responsabilidade do
próprio indivíduo derivado de sua incompetência e despreparo.
Dada a complexidade dos novos modos de produção e da organização do trabalho,
cada vez mais as doenças relacionadas ao contexto laboral deixam de voltar-se para lesões em
46

membros do corpo, ocasionadas por atividades mais operacionais ou braçais de categorias


profissionais tais como os trabalhadores da construção civil, por exemplo, e se
complexificam, abrangendo aspectos psicossociais, presentes no elevado número de
diagnósticos de depressão, burnout, síndrome do pânico, dentre outros, que vêm aumentando
junto com a elevação de atividades vinculadas ao trabalho imaterial e aos vínculos de trabalho
precários, dentre eles o terceirizado (DAL ROSSO, 2008).
Assim, da pulsante evidência dos adoecimentos associados a práticas cada vez mais
disseminadas de precarização, dentre elas a terceirização, considera-se a necessidade de
realizarem-se pesquisas voltadas para a discussão dessas questões sob uma perspectiva
dialética. Para isso, discorreremos no próximo capítulo sobre os principais conceitos e a
concepção de saúde para a Clínica da atividade, trazendo contribuições para pensar a relação
saúde e trabalho e como os processos envolvidos na atividade laboral de terceirizados
repercutem no seu poder de agir.
47

4. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO DA CLÍNICA DA ATIVIDADE

Por encontrar-se em franca difusão pelo país, consideramos importante explanar sobre
como nasceu e se desenvolveu essa abordagem teórico-metodológica, uma vez que tal
explicação ajudará na compreensão da proposta aqui apresentada.
A Clínica da Atividade nasce de uma tradição dos estudos franceses de Psicopatologia
do Trabalho, a partir de um longo percurso de pesquisas voltadas para a análise dos contextos
de trabalho, traçados por autores como Le Guillant, na Psicopatologia Social, e François
Tosquelles, com a Psicoterapia Institucional. O primeiro “estabeleceu as bases para uma
clínica dos distúrbios mentais produzidos na relação do sujeito com sua atividade” (LIMA,
2011, p. 233); considerando a atividade do sujeito no processo de adoecimento, não se
detendo apenas a fatores e condições externas, estabelece que o conflito se encontra numa
atividade real, sendo a doença produzida entre os conflitos do real e da atividade subjetiva do
sujeito.
Como declara Lima (2011), ao afirmar a ação do sujeito sobre o processo de
adoecimento a partir de sua experiência, ressalta a contribuição de Le Guillant para a
perspectiva da abordagem clínica de Clot sobre os transtornos mentais:

Assim, em consonância com Le Guillant, ele vai tentar alcançar as fontes dos
conflitos, entendendo sempre a doença mental como uma criação mórbida e a clínica
como uma ação com essa criação mórbida, contra essa criação mórbida para dar aos
conflitos suas saídas. (LIMA, 2011, p. 233).

Por outro lado, Tosquelles o influenciou ao sublinhar o papel terapêutico da atividade,


ampliando o olhar para o sentido da ação dos sujeitos: não apenas ser ativo para a produção,
para um fator externo ao sujeito, como uma ocupação, ou para passar o tempo, mas para si
próprio. Ao passo que afirma que tudo o que fazemos é “para os outros e com os outros”
(LIMA, 2011, p. 243). Assim, nesse autor, a atividade ganha estatuto psicológico ao tornar-se
um instrumento clínico de cuidado, transformação e ação dos sujeitos que se responsabilizam
pelo que realizam.
Outra contribuição marcante para a perspectiva de Clot refere-se à postura para com o
sujeito, ao implicá-lo nas análises e transformações dos contextos de trabalho. Com isso
propõe que se deve atentar para a “ atividade própria dos trabalhadores, para além da queixa
que confisca com demasiada frequência sua atividade individual e coletiva” (LIMA, 2011, p.
236). Desta forma não se centra na doença, mas nas possibilidades de ação do sujeito através
48

do papel social institucional ao afirmar que “uma vida social que não oferece uma
conflituosidade externa suficiente dissipa a energia psíquica do sujeito” (Clot, 2009, p. 154).
Além dessas duas influências advindas da tradição francófona a que Clot se alinha, a
Clínica da Atividade se fundamenta na Psicologia Histórico-Cultural de Vygotski e Leontiev,
na linguística de Bakhtin, na concepção de saúde de Canguilhem, nas contribuições de
Oddone1 sobre os coletivos de trabalho, além de estabelecer interlocuções com frequência
com outros teóricos como Wallon, Wisner, cujas contribuições serão abordadas no decorrer
do capítulo.
Antes de determo-nos, porém, na Clínica da Atividade, é importante ressaltar que há,
sob a denominação das clínicas do trabalho, todas herdeiras da ergonomia francesa, algumas
abordagens que compõem o modelo da via de apropriação clínica do trabalho por parte da
Psicologia, como define Bendassolli (2011). São elas a Psicodinâmica do Trabalho, a
Psicossociologia, a Ergologia, além da própria Clínica da Atividade. Apesar de apresentarem
pontos em comum, destacamos que elas possuem perspectivas teóricas, epistemológicas,
metodológicas diversas, não se constituindo assim uma posição homogênea no estudo da
relação subjetividade e atividade. Em alguns momentos, ao adotar-se a Clínica da Atividade,
poderemos lançar recursos explicativos de uma das demais abordagens, mas respeitando seu
território epistemológico, já que, apesar de estarem sob um mesmo campo de estudos e de
produção do conhecimento, apresentam visões de homem, mundo, trabalho, subjetividade,
saúde e doença diversos.

4.1. Atividade real: entre a atividade realizada e o real da atividade

Para introduzir as discussões em torno do percurso metodológico adotado ao longo da


pesquisa, consideramos pertinente incorporar antes algumas formulações fundamentais da
Clínica da Atividade. Para tal, iniciaremos nossa explanação abordando os conceitos de
atividade e saúde, que são centrais no debate que pretendemos desenvolver adiante,
articulando-os com os de ofício e suas quatro dimensões (impessoal, pessoal, transpessoal e
interpessoal), atividade real e real da atividade, poder de agir, dentre outros que fazem parte
do referencial adotado.

1
Ivar Oddone propôs a Comunidade Científica Ampliada como maneira de participação mais profunda dos
trabalhadores na análise do trabalho, especialmente na avaliação dos riscos e na proposição de soluções,
colaborando para pensar coletivamente o tema numa metodologia dialógica, da “instrução ao sósia”, como
técnica de coanálise.
49

A noção de atividade será abordada a partir das contribuições de Vygotski e Leontiev.


Para tanto, conceituaremos a dualidade entre tarefa e atividade, trabalho prescrito versus
trabalho real, a fim de situar sob que bases se fundamentam tal definição. Também trataremos
da ideia de atividade triplamente dirigida, unidade de análise proposta pela Clínica da
Atividade. Yves Clot entende que a subjetividade humana deve ser estudada a partir da
revisão da concepção de atividade que, nos dizeres de Leontiev (1978, s/p),

chamamos de atividade um processo que é eliciado e dirigido por um motivo —


aquele no qual uma ou outra necessidade é objetivada. Em outras palavras: por trás
da relação entre atividades, há uma relação entre motivos. Assim, chegamos à
necessidade de nos voltarmos para a análise dos motivos e para a consideração de
seu desenvolvimento, de sua transformação, o potencial para dividir sua função e
aquele de seus deslocamentos [...]

Desta forma, Clot (2007) critica as concepções que opõem subjetividade e atividade e
proporá uma solução dialética para o estudo dessa relação. A partir das proposições de
Leontiev, Clot (2007, p. 121) afirma que:

[é] por isso também que um objetivo prescrito pode ver-se subvertido e um signo ou
um instrumento, reciclados [...] o sentido da ação de modo algum está contido em
potência nas palavras, nos conceitos, nos instrumentos ou nas regras: “O sentido é
gerado não pela significação, mas pela vida (1984, p. 311-312)”, ou seja, pela série
de relações e conflitos entre objetivos e motivações.

Ao destacar o conceito de atividade empregado por Clot (2010), ressalta-se que se


propõe uma distinção entre tarefa e atividade, como aquilo que deve ser feito e aquilo que
realmente se faz, porém destaca-se a necessidade de, para além do que se faz, considerar-se o
que se deixou de ser feito e o que poderia ter sido feito. Para a Ergonomia da atividade, de
base francesa, a atividade refere-se ao que é feito e a tarefa ao que é prescrito, na medida em
que esta remete a um objetivo a ser atingido a partir da atividade do trabalhador, através de
suas habilidades, competências, capacidade técnica, gestos (SILVA, 2006).
Clot (2010) avança nessa discussão ao situar a atividade real, entre o real da atividade,
aquilo que poderia ter sido feito, mas não o foi por inúmeros motivos, “ao que não se pode
fazer, ao que se deveria fazer, ao que se gostaria de fazer e àquilo que se faz sem se ter
necessidade” (SANTOS, 2006, p. 36) e entre a atividade realizada àquilo que é visível, àquilo
que se faz. “A atividade impedida, contrariada, suspensa, bloqueada deve, portanto, fazer
parte na análise do trabalho”, já que “o realizado não tem o monopólio do real” (CLOT, 2010,
p. 103-105).
50

A atividade aqui é entendida não só como objeto da tarefa, mas também como aquela
que se volta para a atividade dos outros nos quais se baseia para realizá-la e também para as
suas próprias atividades. Assim, Clot (2007) critica as teorias que propõem uma adaptação
dos sujeitos ao prescrito, que se propõem apenas a identificar que não há uma sobreposição
entre prescrito e real de um lado, devido a fatores cognitivos de limites do trabalhador quanto
as suas competências e conhecimentos, e de outro pela questão de uma oposição do
trabalhador à lógica de funcionamento ante a organização e suas prescrições.
O prescrito, enquanto aquilo que está determinado pela organização nos manuais, nos
modos de proceder, nos processos de trabalho, será vivenciado de diferentes formas pelos
trabalhadores, uma vez que eles possuem uma série de pré-ocupações que extrapolam sua
relação direta com o trabalho e adentram outras dimensões da vida, como aquelas de caráter
pessoal (SANTOS, 2006).
Pré-ocupações as quais os trabalhadores também recorrem para fazer o que tem que
ser feito, como explicitado no exemplo utilizado por Clot (2010) dos condutores de trem, que
para manterem-se na velocidade imposta ou automática — sistema de controle de velocidade
criado para períodos de intenso fluxo — acabam se ocupando para não ultrapassar a
velocidade determinada.
A capacidade de atribuir novos usos, sentidos para os seus instrumentos/ferramentas
de trabalho, caracteriza-se na Clínica da Atividade como catacrese, referindo-se, portanto, à
capacidade do sujeito de ser inventivo, criativo nas atividades de trabalho, o que seria como
“puxar a brasa para sua sardinha”, reafirmando a necessidade do sujeito de não ser passivo, de
alimentar a vitalidade do ofício (CLOT, 2010).
Os novos usos, deslocamentos e subversões realizados na atividade ante a função dos
seus instrumentos se dá por meio de uma reconcepção ou re-criação, renovação das técnicas,
do próprio prescrito, daquilo que antes se encontrava cristalizado e automatizado. O sujeito
não permanece passivo diante dos conflitos e impedimentos que enfrenta. Essa polifonia
funcional dos instrumentos possibilita o desenvolvimento psicológico real. Este não decorre
pela via da simples interiorização dos funcionamentos externos, dos signos e significações
dadas pelo outro, mas pela recriação, apropriação, transformação que o sujeito realiza na sua
atividade.
Desta forma é que se transforma a atividade “aparentemente passiva e submissa em
atividade inventiva e criativa. A esse propósito, podemos falar em retóricas da ação: elas
deslocam os objetos da sua função oficial ou, de preferência, desenvolvem essas funções para
realizar, apesar de tudo, a atividade inobservável do sujeito” (CLOT, 2010, p. 107).
51

Essa transformação do instrumento técnico em instrumento psicológico, característico


da catacrese, permite torná-lo “um instrumento de gestão do próprio sujeito da acção”
(SANTOS, 2006, p. 36). Essas mudanças são apropriadas pelo coletivo profissional e,
conforme Santos (2006, p. 36) aponta, “correspondem, enfim, à transformação das suas pré-
ocupações em ocupações, em ações, sendo que este é, para Clot, o processo central de
desenvolvimento dos sujeitos”.
Clot (2007, p. 61) assume assim a concepção de homem como ser ativo, criador, e não
como um mero reprodutor de ordens e prescrições; desse modo, entende que “graças à
atividade de regulação efetuada pelos trabalhadores, a tarefa efetiva nunca é a tarefa
prescrita”. Porém, tal regulação pode não se efetivar, falhar ou mesmo ser capturada,
absorvida pela organização do trabalho, exigindo do profissional uma constante reinvenção.
Quando esta possibilidade de reinventar-se cessa, surgem as psicopatologias, o sofrimento e o
adoecimento.
A fim de compreender os tensionamentos, conflitos e jogos de forças presentes na
atividade, Clot apropria-se da perspectiva vygotskiana e propõe a atividade triplamente
dirigida como menor unidade de análise possível em Clínica da Atividade. Tal proposição
baseia-se no princípio proposto por Vygotski (1997) de superar o atomismo na análise
científica e encontrar unidades mínimas que mantenham as propriedades do funcionamento
psicológico. Na Clínica da Atividade:

o trabalho é portanto ainda uma atividade dirigida: atividade dirigida pelo sujeito,
para o objeto e para a atividade dos outros, com a mediação do gênero. Por esse
motivo, pode-se dizer que a atividade dirigida é a unidade mais ínfima do
intercâmbio social que realiza o trabalho […]. Propomos assim fazer do conceito de
atividade dirigida aquele que designa, em psicologia do trabalho, a unidade
elementar de análise. (CLOT, 2007, p. 97).

Clot (2010, p. 190) pontua ainda que a atividade dirigida, como unidade base da
análise psicológica do trabalho, é uma “atividade voltada, simultaneamente, para seu objeto e
para a atividade dos outros que incide sobre esse objeto, uma atividade que intervém,
igualmente, nas relações entre eles e que pode, aliás, ser capaz de desenvolvê-las”.
Ao estabelecer a unidade de análise, Clot (2007) chama a atenção ainda para o cuidado
necessário com o recorte que é estabelecido, porque tal escolha deve proceder-se de forma
rigorosa metodológica e teoricamente, a fim de não reduzir, fragmentar, decompor o sujeito,
como muitas vezes acontece na Psicologia quando se separam mecanicamente as funções
52

psíquicas e em seguida se lhes justapõem, como se assim fosse possível conservar as suas
propriedades (CLOT, 2007).
Vygotski alerta para a necessidade de abarcá-las em sua totalidade e em seu
movimento, de forma dialética tal como na fórmula da água:

A base da explicação das propriedades singulares da água não é sua formulação


química, mas o estudo das moléculas e do movimento molecular. […] a verdadeira
unidade de base de análise biológica é a célula viva, que conserva todas as
propriedades fundamentais da vida inerentes ao organismo vivo. (VYGOTSKI,
2000, p. 54).

Assim, Clot (2007) enfatiza que ao optar pela atividade triplamente dirigida — a si
mesmo, à atividade e ao outro — como unidade de análise opta-se pelo conflito como ponto
de partida da pesquisa, já que é nesta ou através desta que se acessam os vários
desenvolvimentos possíveis na atividade dos sujeitos para além das possibilidades realizadas.
E mais uma vez recorre a Vygotski (1991, p. 41): “diremos que o desenvolvimento alcançado
pela atividade do sujeito que trabalha é um sistema de ações que venceram”.
A unidade de análise pode ser tomada como uma célula viva, uma vez que “[e]la é o
berço de uma ação vinculada aos conflitos que a fizeram nascer, onde se cruzam mecanismos
de agudização e inibição de atividades. Pode-se dizer em resumo que a ação do sujeito tem
sua fonte nas atividades contrariadas: as dos outros e as suas” (CLOT, 2007, p. 101).
Logo a atividade precisa de um sujeito para existir, cuja mediação se dá através do
gênero profissional (CLOT, 2007). Este é responsável por revitalizar a ação junto com o estilo
profissional. Ambas são duas das quatro dimensões do ofício para a Clínica da Atividade, que
ainda conta com a dimensão impessoal e a interpessoal. A primeira se refere às normas e
procedimentos institucionais, ao prescrito pela organização do trabalho e às condições
impostas à execução da atividade, como horários a cumprir, formas de manuseio dos
instrumentos, atribuições e funções de cada setor e funcionário, etc. Já a última corresponde
aos diálogos e interações que se estabelecem com outros profissionais para que as ações
possam desenvolver-se.
A dimensão transpessoal corresponde ao gênero profissional e representa as regras
implícitas construídas e partilhadas pelo coletivo de trabalho as quais também orientam a ação
dos sujeitos, uma espécie de prescrito informal, pois não o encontramos impresso em manuais
e documentos. Já na dimensão pessoal, o estilo profissional, o trabalhador reinventa e recria o
gênero profissional, imprimindo sua marca a este, contribuindo para renová-lo, e por meio do
qual ele se reconhece naquilo que faz. Desta forma é que se concebe a “[a]tividade real como
53

uma atividade que se realiza entre duas memórias: uma, pessoal; e a outra, transpessoal”
(CLOT, 2010, p. 129). Assim o estilo pode confirmar os desenvolvimentos possíveis e/ou em
curso tanto a nível da consciência quanto da experiência (CLOT, 2010).
Conforme Santos (2006, p. 37) afirma referindo-se ao gênero:

[e]sta espécie de prescrição coletiva, prescrição de origem interna refere-se, então,


às obrigações que um coletivo de trabalhadores partilha num determinado momento,
o que quer dizer que as maneiras de realizar a atividade estão bem situadas no
tempo, assumem um carácter histórico e transitório. Este nível de prescrição foi
apelidado por Clot de gênero profissional. Assim, o gênero profissional refere-se às
maneiras de fazer que estão estabilizadas num determinado meio, num dado
momento. O gênero profissional corresponde ao coletivo de trabalhadores, embora
se reporte sempre ao ponto de vista da história do meio, à sua tradição que confere
um conteúdo simbólico às atividades.

O que, segundo Clot (1999, p. 34), se refere a:

um corpo intermediário entre os sujeitos, um intercalar social situado entre eles por
um lado e entre eles e o objeto do trabalho, por outro lado. De facto, um gênero une
sempre entre eles, aqueles que participam numa mesma situação, como co-autores
que conhecem, compreendem e avaliam uma situação da mesma maneira.

O gênero funciona assim como uma espécie de pertença social, além de um recurso
para a ação, impedindo que o trabalhador permaneça só ou erre sozinho; ele funciona como
uma fonte de suporte, sustentação e apoio mútuo entre os trabalhadores de um coletivo.
Nesta concepção a atividade de um trabalhador reverbera na atividade dos demais e
assim sucessivamente. Mesmo que não haja um outro, presente, o sujeito não está só. Através
da sua ideia de social, Clot nos traz a noção de que os trabalhadores não precisam estar juntos
fisicamente para haver uma interação; nesse intercâmbio do prescrito informal, através do
gênero uns se fazem presentes na atividade dos outros. Nas palavras de Clot (2007, p. 97): “A
atividade de trabalho é assim dirigida aos outros depois de ter sido destinatária da atividade
destes e antes de o ser de novo”.
O trabalho é, portanto, não só constitutivo da forma de organização social, mas
também da vida subjetiva, atrelado às representações materiais e simbólicas, forma de o
homem ser e existir no mundo. Desta decorre sua função psicológica, como meio de
sustentação psíquica do sujeito na sua atividade, funcionando como recurso da ação.
Para Clot (2007), “o trabalho não é uma atividade entre outras”. Ele busca defini-lo a
partir da sua função psicológica, como a “atividade mais humana que existe” (BRUNER,
1996, p. 201), a partir da qual nos reconhecemos, somos reconhecidos e nos realizamos como
54

ser social. Atividade é reconhecida como uma relação entre o real, o realizado e a ação do
sujeito sobre si, sobre o objeto e sobre o outro, que pressupõe desenvolvimentos possíveis e
impossíveis.
A função psicológica do trabalho alinha-se à concepção de trabalho proposta por Marx
(2004) e apropriada por Vygotski de que é através do trabalho que o homem fixa e transmite o
patrimônio historicamente acumulado no decurso da humanidade.
Desta forma é que, ao analisar-se a atividade de um trabalhador, deve-se recorrer aos
demais trabalhadores e suas respectivas atividades, bem como às inter-relações e intercâmbios
mantidos e partilhados ou não por eles através do gênero profissional.
O conflito aparece nesta teoria como uma tensão entre os três polos da atividade do
sujeito, que, para manter-se criativo, precisa sair ou libertar-se dos outros dois a fim de
permanecer sujeito da ação (CLOT, 2007). Para ele, agir é:

Se impedir de fazer aquilo que requerem isoladamente as pré-ocupações pessoais, a


tarefa e o outro. A ação consiste em se desembaraçar desses pressupostos da
atividade separando-se de algumas no momento mesmo em que se recorre a outras
como recursos. Logo, o conflito vem em primeiro lugar. (CLOT, 2007, p. 100).

O conflito existe, portanto, na referência do passado (gênero profissional), no futuro


projetado (no sujeito e sua intencionalidade), na atividade em desenvolvimento (objeto da
ação) e entre estes (CLOT, 2007).
Por isso na análise do trabalho devem-se considerar os empecilhos à ação do sujeito e
compreender-se como agem para escapar-se deles: quais estratégias e recursos são utilizados,
como se apropria do meio, do coletivo, do gênero para ultrapassar esses bloqueios a sua ação.
Como afirma Santos (2006, p. 37):

Não obstante, nas organizações em que o coletivo de trabalho não conseguiu


construir um gênero profissional, assiste-se a uma espécie de enfraquecimento do
trabalho. O sujeito é, de alguma forma, reenviado para si próprio e a função
psicológica que o trabalho da organização assume não pode ser concretizada, o que
ocasiona muito sofrimento psicológico e podendo mesmo ser fonte de acidentes, de
inviabilidade material e de ineficácia no trabalho.

Diante dessas discussões espera-se ter situado o leitor quanto aos aspectos da atividade
triplamente dirigida, unidade de análise na Clínica da Atividade, e das quatro dimensões do
ofício, bem como do papel central do gênero e dos coletivos na manutenção e preservação da
função psicológica do trabalho, a partir das quais traremos, no próximo tópico, outras
55

contribuições para a abordagem em questão — através do conceito do poder de agir e sua


importância para a compreensão da análise do trabalho e do desenvolvimento da saúde.

4.2. O poder de agir na construção da saúde

Neste tópico abordaremos como a perspectiva da Clínica da Atividade concebe saúde


e como esta se relaciona ao poder de agir do trabalhador. A Clínica da Atividade parte dos
pressupostos de Canguilhem para situar sua concepção de saúde como:

a capacidade apresentada pelo sujeito de assumir responsabilidade pelos seus atos ou


de criar relações entre as coisas que não ocorreriam sem a sua ação sobre as
mesmas. Isso significa que, nessa perspectiva, a saúde se relaciona com um certo
domínio sobre o mundo, com o fato de estar na origem de alguns fenômenos e, mais
do que isso, ser instigador ou produtor de normas. Em outras palavras, é quando não
somente se vive em um meio, mas se produz um meio para viver, deixando, de certa
maneira, em torno de si, um mundo transformado (LIMA, 2011, p. 244).

Canguilhem nos traz uma contribuição para o estudo das ciências da vida ao
problematizar a concepção de saúde dentro de um contexto de questionamento das práticas
totalizantes e discriminatórias. Suas ideias colaboraram, assim, para reformulações em torno
desse conceito dentro das ciências humanas e da saúde, culminando com as proposições da
Reforma Psiquiátrica e os questionamentos ao instituído pela prática clínica de outrora.
Propõe, assim, uma reflexão sobre saúde que perpassa questões éticas, sociais e
epistemológicas.
Em sua crítica aos modelos de matriz biológico-fisiológica, Canguilhem estabelecerá
um corte epistemológico entre as concepções dualistas, entre normal-patológico e entre
normatização-normalização.
Diversas são as concepções de saúde e doença existentes ao longo da história,
perpassadas por aspectos políticos, ideológicos e econômicos referentes a cada contexto social
em que se inserem — desde a percepção mágico-religiosa, em que saúde e doença eram
considerados providencias divinas, quando esta última era tida como pecado ou maldição; e
passando pelo pensamento hipocrático da Grécia antiga, em que saúde-doença se relacionam
ao equilíbrio dos fluidos corporais, estando, portanto, associadas a condições internas do
indivíduo, que poderia ser influenciado ou não pelo meio onde se vivia. Na Idade Média,
mantém-se a concepção religiosa de doença como pecado e de que a cura seria obtida através
da fé (SCLIAR, 2007).
56

Com os avanços da medicina, novas possibilidades de cura foram sendo introduzidas


com as descobertas dos agentes causadores, dos micro-organismo e com o advento dos
antibióticos, e, assim, uma nova relação entre saúde-doença se estabelece, em que um saber
científico epidemiológico se debruça sobre essas questões e um conjunto de práticas voltado
para prevenção e cura passa a ser desenvolvido.
Durante a Revolução Industrial diversos estudos se desenvolveram em torno da saúde-
doença, considerando a urbanização e a industrialização, emergindo o ideário sanitarista. O
Estado passa a intervir diretamente sobre a saúde, procurando promover sua garantia e
regulamentar-lhe as práticas com a emergência do Estado de Bem-Estar Social e a criação da
OMS (Organização Mundial de Saúde), que universaliza a concepção de saúde como um
completo estado de bem-estar físico, mental e social e não apenas como ausência de doença
ou alguma enfermidade (BACKERS et al., 2008).
Na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), caracterizou saúde como resultado de
condições de alimentação, moradia, educação, lazer, transporte, emprego e das formas de
organização social de produção, abrangendo assim aspectos superestruturais do capital. Com a
Constituição de 1988, a saúde torna-se direito de todos e dever do Estado (LUNARDI, 1999).
O modelo biomédico ainda é predominante, mas, com a introdução de outras
categorias e conhecimentos no campo das políticas públicas de saúde, surgiu ampla discussão
da temática, especialmente voltada para a problematização do conceito de saúde e para o
questionamento da cura como ideal, propondo a promoção e a prevenção a partir de uma
perspectiva integralizadora e universal.
Canguilhem (1990 apud LIMA, 2013, p. 321) define saúde:

como um conceito vulgar, alheio ao campo do saber objetivo e que estaria ao


alcance de todos. Nesta forma de pensar, a saúde não é propriedade de especialistas
e, embora não possa prescindir desses saberes, deve incorporar como dimensão a
experiência do corpo e suas referências de dor e prazer do ponto de vista de quem as
vive.

O referencial aqui adotado concebe saúde a partir de uma perspectiva que considera
aspectos sociais, afetivos, econômicos, objetivos e subjetivos que interferem na produção de
vida/saúde dos indivíduos.
Adotaremos saúde como potência de ação sobre o mundo, como capacidade de
inventar novas normas, principalmente nas circunstâncias em que trabalhadores se encontram,
em que se destaca a constante negação de suas singularidades, necessidades e potencialidades,
57

na busca de homogeneizar, vulnerabilizar, fragmentar e excluir grande parcela da população


do trabalho enquanto um meio de realização e reconhecimento.
Lima (2011b) aponta para a diversidade de abordagens teórico-metodológicas sobre a
relação saúde e trabalho com estudos que os relacionam à saúde metal, à saúde do
trabalhador, à subjetividade e/ou ao trabalho e suas transformações.
Dentro dessa perspectiva se desenvolve a concepção de saúde afeita a uma
normatividade. Para Canguilhem (2005, p. 44), saúde:

está ligada a um sentido existencial, ligado à história do homem no seu meio, uma
vez que a vida é também instituição do seu próprio meio e não só submissão a ele,
sendo este permanentemente construído a partir das escolhas que fazemos,
individual e coletivamente. Diante da variação do lugar onde vive, o homem recria
normas para nele viver, transformando-o e aí reside a ideia de saúde como não
somente a vida no silêncio dos órgãos, [mas] é também a vida na discrição das
relações sociais.

Ressalta-se que as concepções de saúde e doença estão vinculadas aos saberes


instituídos, que estabelecerão construções conceituais valorativas, visto que estas se inserem
num contexto social e histórico. Essas concepções baseiam-se na norma vigente para
determinar quantitativamente, a partir de parâmetros estatísticos baseados em frequência,
aquilo que é saudável ou não (SILVA, 2008).
Através da oposição entre saúde e doença define-se o que é considerado patológico,
como aquilo que desvia da norma, e mais ainda, como aquilo que estabelece uma norma
diferente, considerada inferior, pois foge da normalização preestabelecida e tida como
“padrão” de normalidade.
Tal noção valorativa presente nessas conceituações não se restringe ao saber médico
especificamente, mas atinge o conjunto de relações e modos de vida construídos e partilhados
pela sociedade, visto que a própria vida possui essa capacidade valorativa. Ou seja, a
existência humana “delimitará” padrões de dor, sofrimento ou bem-estar, aos quais os sujeitos
vão adequar-se mais facilmente ou não. Assim, é que se enquadra como negativo aquilo que
lhe causa algum impedimento ou impossibilidade de manutenção (SILVA, 2008).
Ser normativo é a capacidade de criar novas normas e possibilidades de vida. A
questão que se coloca está no caráter valorativo do estabelecimento de normas impostas
socialmente que reivindicam uma normalização da existência. Tacha-se assim tudo que não a
segue como anormal — aquele que está fora da normalidade — relacionando-se com as
classificações, critérios diagnósticos, médias, padrões estatísticos a serem “seguidos” ou
“buscados”.
58

Essa ideia de normalização se encaixa perfeitamente no ideário de nossa sociedade,


voltada para o consumo, a padronização, a homogeneização dos corpos e da vida. Esse padrão
normativo recai sobre a necessidade premente de manter todos sob controle, porém sob um
controle “camuflado” ou que não se sente, num quadro de assujeitamento e alienação
propícios à manutenção da ordem vigente sem questionamentos ao que está posto nem
proposições de uma nova ordem, mantendo-se os padrões.
Conforme assinala Foucault (2002, p. 302), a “norma é o que pode tanto se aplicar a
um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar”. Ao que
Silva (2008, p. 147) acrescenta: “Normalizar parece ser um lema abertamente assumido por
nossa sociedade. Afinal, é preciso padronizar as coisas para que elas possam melhor se
adequar ao estatuto de mercadoria”.
A oposição entre o normal e o patológico não se diferencia por uma questão
puramente quantitativa. Segundo o pensamento de Canguilhem, ela abrange uma gama de
aspectos qualitativos também. Pode, inclusive, ser uma alteração que requer criação e
mudança no todo do organismo e não em aspectos localizados e relacionados a parâmetros
quantitativos para mais ou para menos.
Havia uma identidade entre fisiologia e patologia com o objetivo de explicar os
fenômenos, “reduzindo-os a uma medida comum e tornando-os homogêneos, tal como na
física” (COELHO E FILHO, 1999), ideia essa postulada a partir de princípios positivistas.
Clot (2010, p. 38) propõe uma inversão nessa lógica de construção do conhecimento, e
suas orientações através da Clínica da Atividade surgem como um novo paradigma, o de
transformar para compreender, sendo os trabalhadores os agentes de mudança, e não os
especialistas com conhecimentos produzidos a priori os responsáveis por diagnosticar e
intervir.
Daí sua concepção de saúde ser afeita a proposições postuladas por Canguilhem:
“sentir-se com saúde [...] é ‘sentir-se acima do normal’, ‘capaz de seguir novas normas de
vida’ (1984, p.133), instigador de normas, sujeito vivo de uma normatividade” (CLOT, 2010,
p. 110). E ainda, ao abordar sua relação com a doença, afirma Clot (2010, p. 113):

A saúde não se opõe à doença, do mesmo modo que não se identifica com ela, mas
procura apropriar-se dela. A saúde, diferentemente da normalidade defensiva, é a
transformação da doença em novo meio de existir, a metamorfose de uma
experiência vivida em um meio de viver outras experiências e, finalmente, a
transfiguração de um paradoxo experimentado em história possível, de uma vivência
em um meio de agir.
59

A doença, desta forma, não significa apenas limitação física, biológica ou fisiológica,
mas, como afirma Brandão (2012, p. 81):

também a dimensão dramática da história do sujeito. Assim, no entender de Clot


(2011), conceber a saúde como o faz Canguilhem (2005: 63), a saber, como a
unidade espontânea das condições de exercício da vida, aproxima-se muito da ideia
da atividade humana como recurso para potencializar o poder de agir do indivíduo
sobre o seu contexto, portanto, como meio de restauração das condições de
reconhecer-se no que faz, usando de si e dos outros, sendo essa a concepção de
saúde que ele mantém na base da Clínica da Atividade.

Saúde e doença relacionam-se às possibilidades de agir ante uma situação/problema


que requer nosso posicionamento. Podemos assumir uma atitude de criação ou de defesa. Esta
cria uma “falsa estabilidade”, uma vez que consiste numa adaptação que impõe obstáculos às
novas possibilidades ou formas de agir.
No campo do trabalho há uma querela que se refere às questões epistemológicas e
interferirão na prática que se desenvolve. Esse dilema diz respeito à relação entre saúde e
doença, que em determinada concepção nada têm em comum, são dois opostos ou extremos
que não se comunicam, por isso, sem relação, assim normal e patológico se excluem
mutuamente; portanto, Psicologia do Trabalho e Psicopatologia nada têm a partilhar e debater.
Na outra, ambos se identificam de tal forma que a saúde consiste apenas numa variação da
doença, como observado nas defesas tidas como, por exemplo, uma “criação atravancada, um
impasse no devir, um passo em falso”; aqui Psicologia do Trabalho e Psicopatologia se
igualam, excluindo qualquer possibilidade de controvérsia (CLOT, 2010, p. 113).
Porém, para Canguilhem (1984), a defesa participa de um processo constante e
permanente que estabilizará um modo de existir, independente do contexto, relações que se
estabelecem ou meio no qual se desenvolve. Consideradas “normais, embora com valor
repulsivo, o que exprime sua carência de normatividade; nesse aspecto, elas são patológicas,
embora normais enquanto o ser vivo consegue viver por seu intermédio” (CANGUILHEM,
1984, p. 137).
Assim, ressaltamos a importância em debruçar-se sobre essa dimensão a partir da
interlocução com a atividade e o poder de agir dos trabalhadores, ao apreendermos como a
Clínica da Atividade se apropria das ideias preconizadas por Canguilhem e aventa outro olhar
sobre saúde e doença.
Destaca-se entre as clínicas do trabalho que tal superação pressupõe uma nova relação
do sujeito com o trabalho e com a atividade que realiza, possibilitando novas formas de
atuação do psicólogo numa visão ampliada e que ultrapassa a noção das defesas sugeridas
60

pela Psicopatologia do Trabalho, que restringe as possibilidades do sujeito, a ampliação de


seus horizontes, desconsidera seus devires. Como afirma Vygotski (2003, p. 76), “o homem
está repleto a cada minuto de possibilidades não realizadas”. Assim, para Clot (2010, p. 113),
a relação entre saúde e doença pode ser compreendida da seguinte forma:

Quem passou pela experiência patológica instaurou em si outra maneira de existir;


ele conserva vestígios da tempestade. Ao superá-la, ele está, ao mesmo tempo,
aguerrido e fragilizado [...] A doença, nesse caso, já não é o que havia sido, mas
aquilo em que se tornou e há de tornar-se para quem a superou. A saúde não é o
esquecimento da doença, mas o acesso dessa outra função na vida do sujeito, ou
seja, um novo uso da doença.

A saúde assim constitui-se como “desenvolvimento da doença na história do sujeito”


(CLOT, 2010, p. 114). A doença pode, ao retirar o sujeito do seu “equilíbrio”, a fim de
restabelecê-lo possibilitar um aprimoramento da experiência e da consciência ou, pelo
contrário, tornar-se um obstáculo permanente. Como afirma Clot (2010, p. 114): “É porque
existe, sem dúvida, desenvolvimento e desenvolvimento: desenvolvimento da doença na
história do sujeito ou, então, desenvolvimento da história do sujeito na doença”. Ainda de
acordo com Vygotski (1994, p. 123), “não basta conhecer a doença que atinge determinado
homem, mas convém saber como se porta o doente”.
Assim, ao propor a noção de poder de agir, Clot (2010, p. 114), com base em
Vygotski, reflete que: “O psicólogo russo propõe observar o organismo do sujeito como sede
de potencial de energia e de força oculta”. Diante das situações de risco, provação,
dificuldades e recursos limitados, o sujeito vai utilizar-se de suas reservas, o que Clot (2010,
p. 114) denominará de defesa ou réplica por supercompensação, como observado a seguir: “É
verdade que, em relação às provações do trabalho, a réplica possível supõe sempre a
elaboração do perigo vivido, no seio de um coletivo que pode, nesse caso, conferir-lhe um
sentido em uma história”.
Desta forma, diante de seus limites, Clot (2010, p. 114) afirma a importância do papel
do coletivo nesse esforço de coanálise e transformação do trabalho:

A fraqueza em que a experiência penosa precipita o sujeito é fonte de força apenas


se ele encontra também à sua volta, com os outros — seus pares — recursos de
compensação na vida sociocoletiva e na pluralidade social dos círculos onde está
inserido. No início, simples meios deslocados para atingir o objetivo, esses recursos
exteriores se transformam, potencialmente, em fontes: esse comportamento coletivo
ativa e suscita funções psíquicas próprias.
61

A defesa, no entanto, não consegue abranger muitas vezes a totalidade das


possibilidades do real da atividade, das mobilizações psíquicas presentes na elaboração da
experiência “penosa”. Assim, o desenvolvimento do poder de agir do sujeito, buscado através
das transformações nos contextos de trabalho, passa a ser considerado a via de promoção da
saúde e não somente o caminho de preservação da normalidade ou de adaptação, de
adequação.
Desta feita, pode-se compreender que o desenvolvimento subjetivo pode ser tido como
ampliação do raio de ação do sujeito em si e fora de si, que pode ser impedido ou
obstaculizado pela atividade intoxicada, imobilizada pela inércia, cristalização, “estabilização
sem criação”, característica das defesas. “Com efeito, pode-se pensar, com Ricoeur, que o
sofrimento não é unicamente definido pela dor física e mental, mas pela ‘diminuição — e, até
mesmo, destruição — da capacidade de agir, do ser-capaz-de-fazer, experimentadas como
ataque a integridade de si’ [RICOEUR, 1990, p. 223]” (CLOT, 2010, p. 116).
Segundo Clot (2010), o sofrimento é um impedimento na medida em que impossibilita
o sujeito de agir, de exprimir-se, de criar, produzir o novo, avaliar-se e avaliar o contexto no
qual está inserido e a própria atividade que desenvolve. O sofrimento enquanto defesa se
constitui numa proteção passiva, porém o aprisiona, o anestesia, o fixa em um lugar e em um
comportamento, o impede de agir e criar, reduzindo assim seu raio de ação sobre si, sobre o
mundo e sobre os outros. Contrariamente, a réplica permite ao sujeito questionar, transformar
e criar. Como afirma Clot (2010, p. 116), ali “onde o sofrimento é um sentimento de vida
contrariado, a saúde é esse sentimento de vida reencontrado”.
De acordo com Clot (2010), o bloqueio das trocas e processos criativos presentes na
dinâmica entre o estilo e o gênero está no cerne dos processos psicopatológicos em situações
de trabalho. Assim o desenvolvido dos sujeitos encontra-se bloqueado também, uma vez que
se encontra “em suspenso” pela amputação ao seu poder de agir. Na análise do trabalho tenta-
se reestabelecer seu movimento através da alimentação dos diálogos profissionais no seio dos
coletivos, que procurarão revitalizar o gênero, ampliando o raio de ação deles.
Na Clínica da Atividade visa-se “fazer falar o ofício” através do debate, das
controvérsias, dos diálogos, das trocas, da mobilização do gênero profissional, a fim de
“transformar a experiência mal vivida em meio de viver outras experiências”, repetição sem
repetição, pois, através da experiência passada, será possível revivê-la sob a forma de uma
nova experiência, revitalizada, transformada, reelaborada, ressignificada. Esta será possível
pelos métodos dialógicos de intervenção, os quais abordaremos mais adiante. Desta forma é
62

que o que “caracteriza a saúde é a possibilidade de superar a norma que define o normal
habitual e de instituir novas normas em situações novas” (CANGUILHEM, 1984, p. 130).
Para a Clínica da Atividade deve-se ir além da dicotomia ou dos dualismos presentes
na análise do trabalho que se centra nas lacunas entre o prescrito e o real. Mais do que
compreender a diferença entre tarefa e atividade, organização do trabalho e atividade do
sujeito, prescrito e real, deve-se compreender que “existe, entre a organização do trabalho e o
próprio sujeito, um trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais, uma
recriação da organização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo” (CLOT, 2010,
p. 119).
Assim é que Clot introduzirá o conceito de gênero profissional como um gênero, uma
cultura profissional partilhada pelo coletivo de trabalho, que se constitui como um terceiro
elemento importante ao debruçar-se sobre as lacunas entre prescrito e real, uma vez que este
gênero dirá respeito ao prescrito informal, social, construído e partilhado pelo coletivo; é
definido como “o gênero profissional, isto é, as “obrigações” compartilhadas pelos que
trabalham para conseguir trabalhar, frequentemente, apesar de todos os obstáculos e, às vezes,
apesar da organização do trabalho” (CLOT, 2010, p. 119).
Sem os recursos disponibilizados pelo gênero, muitas vezes o sujeito encontra-se
“sozinho”, sem um norte para guiar suas ações, especialmente nas situações não abrangidas
pelo prescrito formal. Quando o gênero profissional encontra-se enfraquecido ou ausente, o
sujeito tem o seu poder de ação diminuído, em particular diante das respostas que poderia dar
caso encontrasse suporte no coletivo profissional, inclusive nas situações não previstas.
O gênero guarda uma memória transpessoal. A dimensão transpessoal é uma das que
pretendemos discutir na atividade dos trabalhadores terceirizados do Almoxarifado Central
por considerar que, confrontados com as peculiaridades do seu contrato de trabalho e da alta
rotatividade presente nessa forma de vínculo laboral, nos indagamos como esse gênero é
transmitido de um trabalhador ao outro. Como ele se encontra nesse coletivo? Quais
possibilidades de renovação e fortalecimento desse gênero nessa conjuntura?
Algumas falas e situações que traremos na discussão dos resultados nos fazem crer
que, no estudo de caso empreendido, o gênero desse coletivo se encontrava enfraquecido, uma
vez que em muitas situações os trabalhadores não sabiam a quem recorrer e enunciavam que
aprenderam fazendo, não tendo havido gênero, figura ou pessoa de referência que lhes
transmitisse/partilhasse ou construísse as regras implícitas ou modos de proceder de certas
situações inusitadas, das surpresas do real, para as quais não tinham o conhecimento e
ferramentas/instrumentos necessários para lidar ou responder de forma satisfatória.
63

Clot (2010, p. 121) exprime a importância do gênero ao demonstrar a economia da


própria ação alcançada pelo sujeito ao valer-se dele para realizar suas atividades:

Com efeito, a oposição entre tarefa prescrita e atividade real deve, em nosso
entender, ser igualmente aplicada ao trabalho. Porque as formas prescritivas que os
trabalhadores se impõem para poder agir são, ao mesmo tempo, restrições e
recursos. Se fosse necessário criar, a cada vez na ação, cada uma das nossas
atividades, o trabalho seria impossível. O gênero da atividade assenta, portanto, em
um princípio de economia da ação.

O gênero é tão pertinente ao contexto profissional que muitas vezes não precisa estar
dito, verbalizado, porque os trabalhadores partilham entre si as regras informais sem
necessidade de enunciá-las. Como afirma Clot (2010, p. 122),

o gênero é, de algum modo, a parte subentendida da atividade, o que os


trabalhadores de determinado meio conhecem e observam, esperam e reconhecem,
apreciam ou temem; o que lhes é comum, reunindo-os sob condições reais de vida; o
que sabem que devem fazer, graças a uma comunidade de avaliações pressupostas,
sem que seja necessário reespecificar a tarefa a cada vez que ela se apresenta. É
como uma senha conhecida apenas por aqueles que pertencem ao mesmo horizonte
social e profissional. [...] O gênero, como intermediário social, é um conjunto de
avaliações compartilhadas, que, de maneira tácita, organizam a atividade pessoal.

O gênero permite, portanto, valer-se de “algo preestabelecido disponível para colocá-


lo a sua disposição” (CLOT, 2010, p. 122). Constituindo-se assim de “uma memória
transpessoal e coletiva confere seu conteúdo à atividade pessoal em situação: maneiras de
comportar-se, de dirigir a palavra, de encetar uma atividade e de levá-la a termo, de conduzi-
la eficazmente a seu objeto” (CLOT, 2010, p. 123).
O meio profissional possui uma história que durante anos foi partilhada, recriada e
transformada, de tal modo que se criaram formas de proceder, repertórios profissionais que
possuem uma história coletiva a ser repassada a cada trabalhador. Essa história partilhada e
construída ao longo da história do ofício num determinado meio e contexto profissional “fixa
os previsíveis do gênero”, de modo que possibilita ao trabalhador lidar com os imprevisíveis
da sua atividade, de modo que “[M]obilizar o gênero do ofício é, também, adotar o ‘diapasão
profissional’; é ser capaz de manter-se firme, em todos os sentidos da expressão” (CLOT,
2010, p. 123). Deste modo o gênero permite que o trabalhador dê conta das exigências da sua
atividade e da própria organização do trabalho, criando junto ao coletivo as sugestões e as
mudanças necessárias para o desenvolvimento da atividade.
64

Após as discussões desenvolvidas até aqui sobre a fundamentação, os preceitos e as


conceituações da Clínica da Atividade, com base nas proposições de Oddone, afirmamos que
a proposta teórica metodológica aqui introduzida

trata-se de fazer uma outra psicologia do trabalho consagrando todos os esforços à


busca de um só objetivo: aumentar o poder de ação dos coletivos de trabalhadores
sobre o ambiente de trabalho real e sobre si mesmos. A tarefa consiste, então, em
inventar ou reinventar os instrumentos desta ação, não mais protestando contra os
constrangimentos, mas pela via de sua superação concreta. (CLOT, 2010, p. 84).

Assim, no tópico seguinte discutiremos o percurso metodológico realizado para a


construção e a análise dos dados de nossa investigação, a partir dos métodos próprios da
Clínica da Atividade e da sua forma de pesquisar, para em seguida analisar e debater os
dados.
65

5. METODOLOGIA

5.1. Estudo de caso

A pesquisa terá um cunho qualitativo e será caracterizada como um estudo de caso. O


estudo de caso define-se como metodologia de pesquisa na qual o pesquisador “explora em
profundidade um programa, um fato, uma atividade, um processo ou uma ou mais pessoas”
(CRESWELL, 2007, p. 32).
A metodologia do estudo de caso se apoia sobre a abordagem qualitativa de Gonzaléz
Rey (2002, p. 86) que afirma que “um dos aspectos que caracterizam a produção de
conhecimento na pesquisa qualitativa é a atenção ao caráter singular do estudado, que se
expressa na legitimidade atribuída ao estudo de caso”, considerando-o como essencial na
produção do conhecimento e não como mera via de obtenção de informações, categorizações,
generalizações e/ou abstrações dos dados com base em situações descritivas; a construção do
conhecimento se dá através de um processo construtivo-interpretativo.
O momento empírico configura-se com a interpretação do pesquisador e suas
construções teóricas. Pretende-se não uma descrição da realidade, mas abordá-la em sua
singularidade, entendendo que os fenômenos se desenvolvem de forma plurideterminada e
multidimensional (GONZÁLEZ REY, 2002).
O estudo de caso se justifica ainda por abordar um evento contemporâneo ao
pesquisador (YIN, 2010), que realizou a intervenção em um primeiro momento e em seguida
pretendeu aprofundar diversos questionamentos provocados pela prática e produzir a presente
investigação, portanto com os dados já construídos. Disso decorre a caracterização como
estudo de caso com base em dados secundários.
O estudo de caso surge assim da necessidade de compreensão de uma realidade
complexa da qual não se detém poder ou controle sobre os eventos comportamentais.
Segundo Yin (2010, p. 12), “o estudo de caso permite uma investigação para se preservar as
características holísticas e significativas dos eventos da vida real”.
O autor (2010, p. 17) afirma ainda que,

embora os estudos de casos e as pesquisas históricas possam se sobrepor, o poder


diferenciador do estudo é a sua capacidade de lidar com uma ampla variedade de
evidências — documentos, artefatos, entrevistas e observações — além do que pode
estar disponível no estudo histórico convencional. Além disso, em algumas
situações, como na observação participante, pode ocorrer manipulação informal.
66

O caso a ser explorado nesta pesquisa refere-se, como já mencionado, à atividade dos
trabalhadores terceirizados do Almoxarifado Central da UFC, com base em uma intervenção
realizada nesse setor no ano de 2015, e ao desenvolvimento do poder de agir desses
profissionais tendo em vista a construção da saúde.
Apoiando-nos nas reflexões de Osório (2010, p. 44), ressaltamos:

Se a atividade não pode ser pré-descrita, a utilidade que poderá ter uma análise que
produza como resultado principal uma descrição será sempre limitada. O trabalho,
entendido como enigma, se desvela no seu processo de criação e recriação. Faz-se
necessário, então, transformá-lo para compreendê-lo.

A Clínica da Atividade e sua metodologia surgem com uma proposta de intervenção


que possibilite aos coletivos transformarem seu trabalho — quando isso se desenvolve pela
via da participação e do protagonismo dos trabalhadores, torna-se uma mudança mais
duradoura e efetiva do que se executada por um agente externo. Como Clot (2010, p. 118)
afirma: “A ação transformadora duradoura não poderá, portanto, ser delegada a um
especialista da transformação, a qual não pode tornar-se, sem graves decepções para os
agentes da demanda, um simples objeto de expertise”. Assim, os dispositivos metodológicos
devem tornar-se instrumentos para a ação dos coletivos, a fim de que o trabalho seja objeto de
pensamento e reflexão para aqueles que o realizam.
De acordo com a metodologia histórico-desenvolvimentista gestada pela Clínica da
Atividade, foca-se nas relações que o sujeito estabelece, visando a uma compreensão da
totalidade contrária às perspectivas dualistas, que isolam os elementos a serem estudados em
categorias estanques e fragmentadas. Como afirma Zanella et al. (2007), nessa metodologia,
são estudados os fenômenos na história, ou seja, movimentos de recriação da realidade que se
dão através de mudanças nas relações.
O referencial da Clínica da Atividade nos oferece, assim, subsídios teóricos e
metodológicos para a discussão da análise do trabalho e suas condições laborais, das relações
sócio-profissionais, bem como nos oferece o percurso metodológico para a atuação junto aos
coletivos, por meio de instrumentos dialógicos dos quais falaremos a seguir. Nessa
perspectiva há uma inseparabilidade entre objeto e método da investigação: a construção do
método é ao mesmo tempo premissa e produto, ferramenta e resultado da investigação
(VYGOTSKI, 2000).
67

5.2. Metodologia da intervenção

5.2.1. A relação entre pesquisa e intervenção

O caso abordado na investigação aqui efetuada decorreu de intervenção da


pesquisadora junto aos trabalhadores do Almoxarifado Central da UFC. Tal intervenção está
compreendida no projeto Elaborar, conforme mencionado previamente. Todo o material
produzido na intervenção descrita adiante foi utilizado para a construção do corpus pertinente
ao caso analisado.
O delineamento corrobora a perspectiva de Clot (2010), para quem primeiro realiza-se
a intervenção para, em seguida, dar-se início à pesquisa e, por conseguinte, à discussão sobre
os dados construídos no decorrer do processo interventivo. Os sujeitos e, portanto, a
necessidade de ampliar seu poder de agir encontram-se como foco do processo de intervenção
e não a construção de dados. Não se pode demandar que os trabalhadores atuem para que o
pesquisador empreenda sua investigação, daí a necessidade de primeiro intervir para depois
pesquisar.
Como afirma Brandão (2012, p. 118), ao tematizar a Clínica da Atividade, “pesquisa e
intervenção possuem temporalidades distintas e configuram objetos diferentes também. Elas
guardam uma relação de mútua independência”. Preservam-se assim as especificidades e os
potenciais de cada um desses momentos, não os misturando ou fragmentando em categorias,
esquemas ou elementos estanques ou repetitivos.
Kostulski (2011) supõe “não ser possível separar a posição do pesquisador de uma
posição mínima de expertise ou de alguém que possui um saber”, sendo necessária essa
distinção porque o foco da intervenção deve estar na ação de transformação pelos
trabalhadores e não na compreensão desta ou do seu desenvolvimento por parte do
pesquisador, a fim de não incorrer no risco de paralisar-se a ação. Desta maneira justifica-se a
inversão da lógica científica tradicional, donde se assume “não mais compreender para
transformar, não mais diagnosticar, mas transformar para compreender (pensar/agir para
saber)” (BRANDÃO, 2012, p. 116). Pressupõe-se, por conseguinte, um trabalho posterior do
pesquisador e, portanto, um outro tempo, um outro ofício com suas questões, com os dados
construídos e suas hipóteses e perguntas suscitados pela intervenção.
Lousada (2015) aborda essa discussão a partir da questão do método, ao afirmar que
os métodos propostos pela Clínica da Atividade, que surgem com o cerne na transformação
dos contextos de trabalho, são métodos de intervenção. Segundo a autora (2015, p. 3), eles
68

“permitem a redução de conflitos no trabalho, ou seja, eles visam e têm resultados práticos,
como postulado por Vygotski (1997, 2004). Apenas após a intervenção, os dados obtidos são
transformados em pesquisa”. Ela reforça ainda que não se trata de métodos de coleta de
dados.
Enquanto a intervenção nasce da demanda do trabalhador para solucionar conflitos do
contexto de trabalho, a pesquisa nasce de uma inquietação, um questionamento do
pesquisador, e possui objetivo científico, por isso essas duas etapas guardam momentos e
temporalidades distintas.
Em outras abordagens metodológicas de pesquisa-intervenção, esses momentos
desenvolvem-se simultaneamente, a partir dos quais pesquisador-interventor precisa estar
atento ao lugar que ocupa e em constante questionamento quanto a seu papel ao “conduzir” a
intervenção, com suas questões de pesquisa pré-formuladas, bem como em relação aos seus a
prioris, hipóteses, sendo necessário distanciar-se ou operar um deslocamento deste lugar para
abrir-se ao novo, ao imprevisível, às possibilidades que se colocam no ato de pesquisar.
Clot propõe que a intervenção nos contextos de trabalho ultrapasse a mera prática da
expertise. Como afirma Lima (2011, p. 245),

a proposta da clínica da atividade é a de criar condições que permitam restaurar o


“poder de agir” dos sujeitos nos seus contextos de trabalho, ao invés de
simplesmente fazer um “inventario de queixas” ou propor um diagnóstico dos
problemas, apresentando, em seguida, sugestões de mudanças. Segundo ele, ao
contrário da premissa positivista de “saber para prever e agir” o que a clínica da
atividade propõe é “agir sem poder prever a fim de conhecer”. Dessa forma, a ideia é
a de que se passe de uma posição “higienista positivista” para uma posição voltada
para a ação.

Clot (2010, p. 117) acrescenta: “Mudar uma situação não pode constituir o objeto da
intervenção de uma expertise ‘externa’”. Daí é que a Clínica da Atividade se propõe a
implementar dispositivos metodológicos que sejam utilizados pelos trabalhadores em
momentos posteriores/futuros, após o encerramento da intervenção e a saída da equipe de
analistas do trabalho. Espera-se que o trabalho se torne alvo de pensamento para os
trabalhadores ao longo da sua atividade e isto só poderá ser alcançado com estes assumindo o
protagonismo nas análises do trabalho (CLOT, 2010).
Assim, na Clínica da Atividade o psicólogo deve sair da posição de especialista,
daquele que afirmará sobre o certo e o errado. Questiona-se o “lugar do especialista como
porta-voz da ciência e da vontade de verdade” (MIRANDA, 2014, p. 83), como aquele que
não atuará como um expert que traçará planos de ações, diagnósticos, seguido de soluções
69

externas, mas age mais como um facilitador, um mediador dos processos envolvidos no
debate sobre as demandas do coletivo de trabalho.
O desenvolvimento que se “propõe”, corroborando a proposta vygotskiana, diz
respeito a uma noção de abrir-se às possibilidades, aos outros possíveis e inimagináveis do
real da atividade.
Ao apontar a centralidade do papel do trabalhador como protagonista na análise da
atividade tal perspectiva desloca o papel de expertise e centralidade do clínico do trabalho.
Este sai do lugar de especialista e detentor do conhecimento para um lugar do não saber,
ficando a condução do processo a cargo dos trabalhadores, que são implicados e responsáveis
pelo decorrer das análises. O pesquisador torna-se responsável por mediar tais processos e
facilitar as interlocuções, agindo sobre as controvérsias, que passam desapercebidas nos
diálogos dos profissionais.
O papel do psicólogo consiste, portanto, em:

concentrar-se nos movimentos que os trabalhadores fazem para criar e recriar seu
trabalho. [...] partem do princípio de que a temática saúde e trabalho, como objeto de
investigação científica, tem uma especificidade que não pode ser tomada com
posturas de exterritorialidade (Schwartz, 2004) no que diz respeito à relação do
pesquisador com a análise desse objeto. As questões dos mundos do trabalho não
podem estar baseadas apenas em quadros analíticos construídos externamente.
(BARROS; TEIXEIRA, 2009, p. 82).

Assume-se, por conseguinte, “o diálogo como um caminho necessário para que se


efetive um debate entre os saberes científicos e os saberes advindos da experiência”
(BARROS; TEIXEIRA, 2009, p. 82), possibilitando a troca entre os trabalhadores e o
psicólogo. A análise do trabalho consiste assim num espaço de debate coletivo,
compartilhamento, troca e implicação.
Esta reflexão corrobora a proposta de pesquisa utilizada pela Clínica da Atividade e as
questões éticas que perpassam o ato de pesquisar. Apontaremos ao leitor o contexto geral da
intervenção realizada, apresentando como ela se desenvolveu para em seguida debruçarmo-
nos sobre a metodologia da pesquisa a ser aplicada — a videografia como método de
investigação e posterior análise dos resultados.

5.3. Lócus da investigação

O Almoxarifado Central, local da intervenção que dará subsídios à pesquisa, é


vinculado ao Departamento de Administração da Pró-Reitoria de Administração da UFC e
70

atua em conjunto com a Seção de Previsão e Controle, cujos funcionários também


participaram do desenvolvimento do estudo, pois ambos funcionam no mesmo local e
possuem atribuições e competências que demandam uma atuação conjunta.
À Pró-Reitoria de Administração (PRADM) compete a gestão dos recursos financeiros
da UFC junto com a Pró-Reitoria de Planejamento. A gestão se dá por meio das ações de
diversas divisões e seções, dentre as quais a de Execução Orçamentária que visa atender as
demandas das unidades, realizando também a gestão dos contratos firmados junto à
universidade. Assim, apresenta como missão “prover os meios necessários à manutenção e
crescimento da capacidade de gestão das atividades-fim da UFC”. Como visão: “Desenvolver
ações administrativas voltadas para atender as demandas e expectativas da Instituição para a
plena satisfação das necessidades da comunidade universitária”; e como valores: “Trabalhar
com competência, seriedade e responsabilidade, em obediência irrestrita aos princípios da
legalidade, da ética e da excelência, atuando com foco na valorização das pessoas e
transparência na gestão dos recursos públicos” (PRADM, 2015).
O Departamento de Administração ao qual o Almoxarifado está vinculado possui
como atribuições “programar, organizar, orientar, controlar e executar as atividades inerentes
à administração de patrimônio, material, expedientes e arquivos”. Para isso conta com a
Divisão de Material, da qual o Almoxarifado Central faz parte, junto com a Seção de Previsão
e Controle, de Compras e Cadastros e de Importação. Cabe, portanto, à Divisão de Material
“coordenar, supervisionar, executar e controlar a administração de material da UFC. Além
disso, tem a incumbência de realizar estudos de classificação, especificação, catalogação,
recolhimento, guarda, acondicionamento e distribuição de materiais” (PRADM, 2015).
O Almoxarifado é responsável por:

receber, conferir e examinar o material adquirido; providenciar a realização de testes


para verificar o cumprimento dos requisitos técnicos a serem satisfeitos pelos
materiais adquiridos; aceitar ou rejeitar material entregue pelos fornecedores;
registrar no sistema informatizado a movimentação de entrada e saída de material;
acondicionar e estocar material sob condições tais que não modifiquem sua
qualidade ou seu estado físico; elaborar balancete mensal de material existente; fazer
o inventário anual de material permanente e de consumo, em estoque, do
Almoxarifado Central; providenciar e controlar a entrega de material aos órgãos
requisitantes; conferir e certificar as faturas de material adquirido e recebido; e
informar e disponibilizar, pelo sistema informatizado, as despesas mensais de cada
órgão. (PRADM, 2015).

Enquanto a Seção de Previsão e Controle atua visando:


71

proceder a estudos, a fim de fornecer elementos para cadastramento no sistema


informatizado; fixar os limites de estoque mínimo e máximo, controlando os
respectivos níveis de reposição a serem adotados pelo Almoxarifado Central,
responsável pelo recebimento de materiais; coordenar e fiscalizar o cumprimento da
elaboração de demonstrativos de movimentação de materiais, por parte dos demais
órgãos da UFC; promover, junto ao Almoxarifado Central, as medidas necessárias à
verificação do cumprimento das especificações e condições técnicas fixadas nas
ordens de fornecimento e nos contratos de compra; promover, junto aos
fornecedores, os entendimentos necessários ao cumprimento dos prazos de entrega
fixados; registrar as ocorrências relativas à quantidade, à qualidade, ao prazo de
entrega e a outros detalhes verificados na entrega de materiais, dando ciência ao
Diretor do Departamento de Administração sobre os fatos abonadores ou
desabonadores que devam ser lançados no cadastro de fornecedores; receber e
registrar os pedidos de aquisição de material; apresentar relatórios mensais das
despesas realizadas pelos centros de custo; e promover o controle das requisições de
materiais do Almoxarifado Central. (PRADM, 2015).

Por suas atribuições podemos perceber o quanto ambos estão imbricados e como suas
atividades se inter-relacionam, o que torna difícil e até improdutivo operar-se uma separação
ou segmentação, prejudicando mais ainda a compreensão2.
Os dois setores contam com uma equipe composta por seis servidores técnico-
administrativos e dez trabalhadores terceirizados, dentre os quais estão carregadores,
almoxarifes, assistentes em administração e motoristas.
A demanda para intervenção do projeto Elaborar foi recebida em 2014 e partiu da
diretora do Departamento de Administração e da chefia do Almoxarifado Central. Nas
discussões iniciais com estas chefias, foi apresentada a proposta de trabalho condizente com
aquilo que propõe a Clínica da Atividade, que admite três etapas da análise da atividade
(CLOT, 2010).
Realizou-se a atuação conjunta entre os dois setores, pois, de acordo com a demanda
inicial, havia dificuldades quanto aos processos de trabalho. Além de ambos funcionarem
num mesmo espaço físico — que contava com uma sala onde se desenvolviam as atividades
administrativas e um galpão onde se armazenavam os produtos de consumo imediato da
instituição —, também desenrolavam-se as atividades operacionais do setor.
A partir das primeiras idas a campo, fizemos análise documental e entrevistas com os
gestores com o intuito de identificar elementos do prescrito pela organização do trabalho,
como normas, atribuições, funções e regras oficiais, horários, divisão de tarefas, condições de

2
Para maior clareza das informações vide o organograma, no qual constam os setores vinculados e aspectos
hierárquicos; os fluxos de trabalho vide “Manual de gestão de materiais” e “Manual de aquisição de materiais e
serviços”, disponibilizados no site da PRADM (http://www.pradm.ufc.br/manuais-de-procedimentos) e
manualizados em 2015 por meio de uma consultoria externa.
72

trabalho, instrumentos e materiais disponíveis, bem como compreender o modo como se


organizam e suas formas de proceder, de modo a acessar a dimensão impessoal do ofício.
Foi-nos relatado que não havia uma delimitação clara das atribuições dos gestores de
cada setor (Almoxarifado e Seção de Previsão e Controle) ficando todas elas centralizadas na
figura do gestor do Almoxarifado, o que gerava alguns conflitos entre eles e uma consequente
indefinição das atribuições, competências e funções de cada membro dos setores. A gestão do
Almoxarifado englobava as atribuições da Seção de Previsão e Controle apenas em alguns
aspectos.
Após as reuniões iniciais com gestores, foi realizado o encontro com os trabalhadores
para explicação e aceite voluntário em participar do projeto. Finda esta etapa, iniciaram-se as
observações, filmagens e em seguida a aplicação dos métodos próprios da Clínica da
Atividade — autoconfrontações simples e cruzada, as quais explicaremos de forma mais
detalhada no próximo tópico. Haverá uma separação das etapas para que a descrição se torne
clara e didática, porém algumas delas aconteceram de forma concomitante, o que será
pontuado quando isso ocorrer.

5.4. Métodos de intervenção-análise do trabalho

A primeira etapa da intervenção constou da apresentação do projeto aos gestores e


funcionários para acordo de participação voluntária. Em seguida, tiveram início as discussões
preliminares com o grupo de trabalhadores. Nela também ocorreram observações que visaram
ter acesso à atividade realizada pelos trabalhadores, bem como “selecionar”, com o grupo de
análise, aqueles que seriam filmados e participariam das autoconfrontações. A observação
prevista no método também tem o objetivo de desenvolver no trabalhador a reflexão sobre a
própria atividade, uma vez que, conforme Clot (2010, p. 250), “qualquer observação do
trabalho do outro é uma ação sobre o outro”, de modo que a observação passa de uma função
interpsicológica para uma função intrapsicológica. Ressalte-se que nesta etapa ocorreu
concomitante a análise documental e as reuniões com gestores, conforme mencionado acima.
Nessa primeira etapa, tem-se como objetivo, como prevê o método, “que os sujeitos
observados no seu trabalho possam se tornar os observadores e intérpretes de sua própria
atividade transformando a atividade ordinária não apenas em um fim, mas em um meio para o
pensamento coletivo” (CLOT; LEPLAT, 2005, p. 306). Desta forma a observação realizada
pelo pesquisador se torna um recurso, um meio para que o trabalhador possa desenvolver suas
próprias interpretações e observações; assim o trabalho é modificado por aqueles que o
73

realizam e o analisam, ou seja, os próprios trabalhadores. Operando o princípio metodológico


de desenvolver a ação, “a observação do psicólogo do trabalho, assim concebida, revela-se
como uma incitação para o trabalhador agir sobre sua própria atividade” (CLOT; LEPLAT,
2005, p. 306).
O clínico assim orientará sua ação para desenvolver a ação do coletivo de trabalho e
seu poder de agir. Por meio das confrontações e apontamentos das controvérsias do ofício, o
analista do trabalho possibilitará um diálogo que busca “mobilizar a experiência estabilizada
como meio de viver novas experiências e desenvolver novos recursos para a ação” (SOLTO;
LIMA; OSÓRIO, 2015, p. 20). A Clínica da Atividade possui como pressuposto a auto-
observação do trabalhador a partir da observação do outro (psicólogo) sobre a sua atividade.
Clot e Leplat (2005, p. 302) reconhecem que:

a observação visa aqui a aprendizagem do ofício pelo pesquisador graças à auto-


observação confrontada com a experiência do outro [...] para além dos efeitos dessa
observação sobre o pesquisador, é essencial constatá-los sobre os próprios
trabalhadores, ou seja, toda observação do trabalho do outro é uma ação sobre o
outro.

Após as observações, que foram registradas em relatórios, houve um período de


sistematização dessas atividades por grupo de operador/categoria para serem levadas e
debatidas junto com o grupo. Este momento consistiu de dois encontros também registrados
em relatório. Isso gerou várias trocas e discussões entre o grupo sobre o que cada um realiza,
sugestões e possibilidades de otimização e melhora das atividades, os desafios e dificuldades
para o desenvolvimento delas, impedimentos e empecilhos que encontram no dia a dia,
inclusive nas relações que precisam estabelecer com clientes internos (servidores que
solicitam material) e externos (fornecedores dos materiais), como também entre o próprio
grupo de trabalho e inclusive com gestores. Neste momento, foram selecionados pares de
duplas que teriam suas atividades filmadas e passariam pela etapa a seguir.
Foram realizadas então as autoconfrontações simples e/ou cruzadas, como método
característico da perspectiva adotada, as quais consistem em solicitar aos trabalhadores que
analisem, a partir das filmagens, a própria atividade e a de um colega que desempenhe papel
similar. Todos esses momentos também são registrados em vídeo. Ao tornar a ação dos
sujeitos alvo de seu pensamento, pretende-se que o pensamento sobre a ação revele as
inúmeras possibilidades de desenvolvimento desta. O método acima descrito parte das
premissas dialógica e histórico-desenvolvimentista, fundamentando-se nos estudos de
Vygotski (1995), por meio dos quais se visa “desfazer formas cristalizadas de ação e
74

imprimir-lhes movimento para que se compreendam os modos de funcionar” (PINHEIRO et


al., 2013).
A autoconfrontação permite ao sujeito, ao ver-se e descrever sua atividade a partir da
imagem em vídeo, uma coincidência entre o “eu” do discurso e o “eu” da imagem sem,
contudo, o distinguir do coletivo, do “a gente”, “nós” — gênero profissional — daquilo que
deve ser feito e do como deve ser feito. Ou seja, ao confrontar-se com sua atividade vista de
fora, vendo-se como um outro de sua própria atividade, e ao “falar” sobre ela destinando esse
enunciado a si, a um outro (colega de trabalho na autoconfrontação cruzada e ao psicólogo) e
a sua própria atividade descrita, manifesta-se aí o desenvolvimento e as possibilidades da
ação, de colocar-se interrogações e reelaborá-las a fim de (re)descobrir “as melhores razões
para agir como ele está agindo nesse momento” e daquela forma (CLOT, 2010, p. 142). Nessa
ação podem-se vislumbrar, através dos destinatários da ação, os diversos momentos do
desenvolvimento da atividade e processos subjacentes.
Assim, sobre o papel do diálogo e dos métodos propostos Clot (2010, p. 127) afirma:

Desse modo, o diálogo entre profissionais, ao qual recorremos na autoconfrontação


cruzada, torna o gênero visível e discutível, desvelando-o ao submetê-lo à prova na
confrontação com sua própria atividade e com a do outro. Cada autoconfrontação faz
reviver o gênero de uma maneira pessoal, oferecendo ao coletivo a possibilidade de
um aperfeiçoamento do gênero ou, em todo caso, a possibilidade de um
questionamento capaz de levar à validação coletiva de outras variantes.

E acrescenta: “o diálogo, como instância do desenvolvimento, alimenta-se de outros


diálogos anteriores e paralelos existentes no grupo profissional, do qual ele retoma e reelabora
os temas, em torno dos quais se articulam múltiplos encadeamentos” (CLOT, 2010, p. 137).
Sobre a importância do diálogo e do método que se utiliza baseado na dialogicidade
nas análises do trabalho Bakhtin (1970a, p. 343-344 apud CLOT, 2010, p. 131) escreve que
“[é] somente na interação dos homens que se desvela ‘o homem no homem’, tanto para os
outros como para ele mesmo (...)”. A esse respeito Clot (2010, p. 131) explica que “[a]ssim o
diálogo age como a própria ação e um meio de agir, uma vez que o sujeito revive no diálogo e
nas trocas com os demais as suas situações de trabalho, seus conflitos, impedimentos e
potenciais”. Bakhtin (1970a, p. 343-344 apud CLOT, 2010, p. 131) prossegue afirmando que

[n]ão se trata, também, de um procedimento para descobrir, desnudar um caráter


humano finito; no diálogo, o homem não se manifesta somente ao exterior, mas
torna-se, pela primeira vez, o que é verdadeiramente e não unicamente aos olhos dos
outros e sim, vamos repeti-lo, igualmente aos seu próprios olhos. Ser é comunicar
dialogicamente.
75

Através do diálogo falamos de nós mesmos e dos demais na medida em que os


métodos dialógicos nos possibilitam acessar as falas internas e externas ao vermo-nos como
um outro de nossa própria atividade. “Consideramos, inclusive, a organização de diálogos
como a mola propulsora principal de nossa abordagem metodológica” (CLOT, 2010, p. 130).
Assim, segundo Clot (2010, p. 143), para

superar o obstáculo é que promovemos situações de “autoconfrontação cruzadas”,


no decorrer das quais o olhar do par sobre sua atividade conduz cada sujeito a se
extrair da relação dicotômica do tipo “eu” e/ou contra “os outros”. Nessas novas
circunstâncias, ele é levado a retornar sobre ele mesmo a atividade de redescoberta,
até então, limitada por ele para distinguir o que o aproxima e o diferencia de outro.

Na terceira etapa, as discussões produzidas retornaram ao coletivo de trabalho, de


modo que se tornassem ferramentas de ação e modificação dos contextos de trabalho. Os
debates suscitados pelas autoconfrontações foram sistematizados e rediscutidos com o grupo.
Conforme Clot (2010, p.117), o procedimento indicado acima “propõe a
implementação de um dispositivo metodológico destinado a tornar-se um instrumento para a
ação dos próprios coletivos de trabalho”. Desta maneira, possibilita-se um enquadramento
para que o trabalho se torne objeto de pensamento do trabalhador, com o intuito de ampliar
seu raio de ação e desenvolver seu poder de agir.
Finalizada a intervenção, ficou à disposição da pesquisadora a consolidação das
informações oriundas dos documentos analisados, a transcrição de entrevistas e das
confrontações realizadas, além dos relatos de todas as reuniões empreendidas registrados em
relatórios arquivados na Divisão de Apoio Psicossocial. Em torno desse material foram
produzidas as análises que visam compreender a relação entre saúde e trabalho dos
funcionários terceirizados do Almoxarifado Central.
Os instrumentos propostos pela Clínica da Atividade visam a que os trabalhadores
“possam se avaliar diante do que fazem” através do diálogo e reflexões que estabelecem com
um interlocutor, que pode ser seus pares (coletivo de trabalho) ou o clínico do trabalho
(psicólogo/pesquisador) por meio do qual se visa à coanálise dos meios de trabalho.
Um método concebido, portanto, “não para saber o que são, mas para experimentar,
com eles [os trabalhadores], o que poderiam vir a ser. Em vez de procurar a explicação do que
é eterno, a psicologia de Vygotski tenta encontrar as condições gerais mediante as quais se
produz algo de novo” (CLOT, 2010, p. 63-64).
76

O projeto foi apreciado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do


Ceará e autorizado sob o número 117219/2015 segundo todas as diretrizes e normas
regulamentadoras descritas nas Resoluções 466 de 2012.
No tópico seguinte, discorreremos sobre as etapas do estudo, trazendo discussão sobre
a videografia como método de pesquisa para, posteriormente, analisarem-se os dados.

5.5. Análise dos dados construtivo-interpretativo: construção de sentidos partilhados

Para a análise dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo construtiva-interpretativa.


Gónzalez Rey (2002, p. 162) propõe a produção de “indicadores sobre o material analisado
que transcendam a codificação e o convertam em um processo construtivo-interpretativo”.
Essa forma de análise de conteúdo é aberta, processual e construtiva e não pretende reduzir o
conteúdo a categorias concretas restritivas; não se orienta para a produção de resultados
universais ou invariáveis, estanques, mas compreende suas conclusões como processos
inscritos em uma realidade social e histórica, coadunando-se, portanto, com o marco teórico
da investigação.
A proposta de González Rey (2002) combina com os pressupostos epistemológicos da
Clínica da Atividade, uma vez que ambos têm como fundamento os estudos de Vygotski e sua
Psicologia Histórico-cultural. Daí a possibilidade de diálogo entre eles.
A epistemologia qualitativa de González Rey baseia-se em algumas premissas
essenciais para o processo de construção de conhecimento que adotamos aqui e nortearão a
análise de conteúdo construtiva-interpretativa desenvolvida adiante.
A interpretação dos dados transcorre como uma construção própria do pesquisador, e a
teoria servirá como um instrumento nesse processo. Na nossa pesquisa a Clínica da Atividade
constitui-se como aparato teórico e também metodológico. Configura-se como um “marco de
referência que mediatiza o curso das construções teóricas do investigador sobre o objeto”
(GONZÁLEZ REY, 1999, p. 38). Não se pretende esgotar o problema, conduzindo a todas as
respostas e colocando um ponto final nas discussões, mas busca-se construir novas zonas de
sentido e contribuir para o diálogo e o debate sobre a temática suscitando novas reflexões e
perguntas que alimentem a produção de outras pesquisas.
Com base na epistemologia qualitativa, a pesquisa configura-se como um processo
dialógico, assim como o propõe Bakhtin, Clot e Vygotski. Utilizaremos o método dialógico
da autoconfrontação cruzada, que através de seu caráter interativo, dialógico e indireto
pretende que os sujeitos da pesquisa expressem seus sentidos genuinamente. Não se buscam
77

perguntas fechadas e formuladas a priori, mas a construção se dá ali no momento da interação


com os interlocutores da pesquisa. Segundo Mori e González Rey (2011, p. 101), “a
comunicação é via de construção de conhecimento, pois, por meio dela, a pessoa se expressa,
se compromete no processo da pesquisa, possibilitando o aparecimento de diferentes
processos de sentido subjetivo que caracterizam a expressão desse sujeito”.
A epistemologia qualitativa privilegia assim as singularidades e a produção subjetiva
de cada sujeito diante do problema que quer-se pesquisar, uma vez que cada um possui uma
história particular, vivências próprias, formas de lidar diferentes, que influenciarão na sua
construção de sentidos. Mori e González Rey (2011, p. 102) propõem que saiamos “de
investigação que vê a pessoa como entidade objetivada para outra, que a percebe numa
relação de recursividade entre social e individual produzindo emocionalidade diferenciada, de
acordo com o momento de sua experiência”.
Segundo Mori e González Rey (2011, p. 102), o

pesquisador atua no processo de interpretação definindo certos elementos e formas


de expressão da pessoa como significativos para abrir hipóteses, que no curso da
informação estudada vão se transformando em afirmações teóricas fundamentadas
por novas evidências ou vão dando passo para outras hipóteses. Esses elementos são
definidos por González Rey (1997) como indicadores que se mantêm em fluxo e
processo durante a pesquisa.

Devido a tais características, as categorias que construiremos e traçaremos para tornar


a discussão dos resultados mais didática e compreensiva alicerçam-se na construção
interpretativa da pesquisadora e do referencial adotado para fundamentar as discussões nos
sentidos partilhados na relação pesquisador-sujeito. Essas categorias não são naturalizadas
nem têm um valor em si próprias, mas sim no contexto da presente investigação e dos sujeitos
nela envolvidos, respeitando as singularidades e as particularidades de cada momento e de
cada sujeito.

5.6. Metodologia da pesquisa

Após apresentadas a metodologia da intervenção e a construção do corpus dos dados


que serão analisados, explanaremos sobre a metodologia da pesquisa, que se deu com o
desenvolvimento da investigação através do método da videografia. Ressaltamos, como já
feito anteriormente, que a intervenção e a pesquisa produziram-se em ocasiões distintas,
78

assumindo a proposta metodológica da Clínica da Atividade na qual esses dois momentos


possuem objetos, destinatários, recursos e objetivos distintos.
O uso do vídeo na pesquisa vem popularizando-se com a evolução dos recursos
tecnológicos porque permite captar sons e imagens que no momento da intervenção podem
passar despercebidos ao olhar do pesquisador; captam também de forma fidedigna expressões,
pausas, sinalizações de interrogação, espanto ou dúvida, mudanças de entonação da voz, entre
outras variáveis. Como afirma Pinheiro, Kakehashi e Angelo (2005) apud Belei et al. (2008,
p. 192), a “filmagem passou a captar sons e imagens que reduzem muitos aspectos que podem
interferir na fidedignidade da coleta dos dados observados”. Daí a importância e a
potencialidade em utilizar-se o vídeo como recurso na pesquisa.
A videografia requer atenção da atividade filmada, mas também demanda o cuidado
de “sublinhar a imagem, analisar o cenário, com o ambiente de pesquisa e com o referencial
teórico” (BALEI et al., 2008, p. 193). Na análise, a filmagem da atividade dos sujeitos da
pesquisa nos possibilitou um outro momento com esses dados. Após a intervenção concluída,
com as questões de pesquisa e com base no referencial teórico adotado debruçou-se sobre
aspectos da atividade dos trabalhadores que despertaram maior atenção, como o modo que se
deu o desenvolvimento do poder de agir deles.
É importante ressaltar que o uso do vídeo na pesquisa exige, como qualquer outro tipo
de recurso, alguns cuidados técnicos, como a escolha do ambiente onde serão realizadas as
filmagens, atentando para estrutura física, iluminação, barulho, qualidade da gravação de sons
e até mesmo o acesso e o fluxo de pessoas, por exemplo. Além de como a filmagem será
realizada, deve-se levar em consideração a participação ativa dos sujeitos, permitindo que se
expressem, deem opinião e, no nosso caso, inclusive gravando os próprios colegas, auxiliando
assim na produção de vídeos para a autoconfrontação (BELEI et al., 2008).
Destaca-se, porém, que, mesmo diante das diversas vantagens e possibilidades do uso
do vídeo na pesquisa, como afirma Rosemberg, Barros e Petinelli-Souza (2010, p. 33)

[u]ma câmara sempre impacta, é um elemento estranho que carrega em si um


conjunto de simbolismos que devem ser desmistificados com relação ao uso de
filmagem em pesquisas científicas. Para isso, torna-se importante estabelecer uma
negociação com os trabalhadores, partindo-se da premissa de que não é pretendido
assumir o papel de controle do que eles fazem ou como fazem.

Salientamos a necessidade de criar-se um vínculo de confiança, pois os trabalhadores


podem sentir-se inibidos pela presença da câmera, além do receio sobre o acesso às filmagens.
Afora o cuidado que tínhamos de filmar sempre em ambiente silencioso, protegido de
79

interferência e intromissão externas, sem outras pessoas no local, informávamos-lhes as


questões éticas que perpassam o sigilo da nossa profissão, destacando que apenas quem teria
acesso àqueles vídeos seriam os responsáveis pela intervenção, e nem seus superiores ou
terceiros poderiam vê-los.
Criou-se um vínculo de confiança e empatia com os trabalhadores ainda que
inicialmente, durante a primeira filmagem, houvesse uma certa resistência. Da segunda
gravação em diante todos se mostraram ansiosos para serem filmados e participar das
atividades, tanto que até aqueles que não entrariam nas imagens acabaram se dispondo a
figurar nelas. Tal disponibilidade se deve tanto pela vontade dos trabalhadores em serem
ouvidos — já que nos relatos era recorrente dizerem que era ali a primeira vez que tinham a
oportunidade para falar sobre seu trabalho e serem ouvidos — quanto pela confiança que se
estabeleceu garantindo o sigilo e a restrição de acesso aos vídeos. O esclarecimento de
dúvidas e objetivos de cada ação e etapa empreendidas também ajudou nesse aspecto. Assim,
vale destacar que a pesquisa só foi possível dada a adesão de forma voluntária e a participação
ativa dos trabalhadores em todas as etapas do processo.
Ainda sobre a influência da presença da câmera no local da investigação, na proposta
metodológica da Clínica da Atividade a presença do outro funciona como uma forma de
desenvolver a observação de si, pois ao ser observado o trabalhador opera uma reflexão sobre
sua atividade e se pergunta: “será que estou fazendo do jeito certo?” ou “será que estou
fazendo do jeito que ele (observador) gostaria que eu fizesse?”
Por causa das limitações do uso do vídeo, Meira (1994) ressalta a importância de
combinar-se a filmagem com outras técnicas de construção de dados, como a observação, que
permite ao investigador acesso ao contexto de desenvolvimento de uma atividade que
habitualmente não consegue ser capturado pelo vídeo. Como exemplo há os detalhes da
organização das atividades, as interações entre os pares, etc. Assim, Meira (1994, p. 61)
afirma “que a videografia não produz por si própria um registro completo e final da atividade
investigada, e que a coleta de dados em vídeo não é um problema trivial que pode ser
reduzido à quantidade de filmes produzidos”. Aponta ainda que algumas limitações do vídeo
dizem respeito à qualidade de resolução da imagem, contraste, foco, percepção, iluminação,
qualidade do som produzido.
Meira (1994) chama a atenção ainda sobre a pesquisa em Psicologia, em que “é
importante (1) reconhecer que qualquer tecnologia de coleta de dados produzirá certos efeitos
no ambiente investigado, e (2) trabalhar no sentido de registrar estes efeitos e desenvolver
80

instrumentos analíticos que possam avaliar sua influência”. Disso decorre a importância de
atentar-se para os cuidados e aspectos éticos já mencionados.
Mesmo com essas dificuldades cabe ressaltar as potencialidades do uso de vídeos, que
consiste em auxiliar no processo de análise e coanálise do trabalho, uma vez que, como afirma
Rosemberg et al., (2010, p. 32),

[a] partir deles podemos disparar um diálogo e construir discursos sobre o trabalho,
dando visibilidade à atividade. O vídeo assume, então, um papel determinante,
porque viabiliza pensar sobre os elementos visíveis da atividade de trabalho, os
quais podem servir para compreender outros elementos de que ela se reveste e que
escapam à simples observação, por exemplo, o sentido das atividades impedidas ou
contrariadas na vida dos trabalhadores.

O vídeo possibilita, ao disparar os diálogos sobre os modos de trabalhar nos contextos


laborais, a ampliação do poder de agir, transformando o vivido em recurso para viver novas
experiências. Através das imagens e da confrontação com outros modos de fazer, os
trabalhadores conseguem verbalizar de outra forma aquilo que às vezes não está claro nem
para eles. A imagem permite assim

ler uma das dimensões da atividade: à semelhança de um iceberg (BARATTA,


1996), a filmagem apenas mostra a parte ‘emersa’, visível da atividade. Para
[conhecer] os sentidos e significados das estratégias postas em prática, é preciso
aceder aos trabalhadores, que nos explicitam os motivos e as opções que os guiam.
(ROSEMBERG et al., 2010, p. 32).

A imagem e a linguagem possuem importante papel como dispositivo dentro da


Clínica da Atividade e, portanto, na pesquisa aqui empreendida, pois o vídeo permite ver-se
como um outro da própria atividade. A imagem funciona como uma porta de acesso/entrada
aos conflitos da atividade, muitas vezes negada ou escondida pela organização do trabalho.
Como afirma Amador (2010, p. 33),

o confronto dos trabalhadores com as imagens do próprio exercício da atividade


permite ainda desencadear o debate sobre os acontecimentos ou sequências que
consideram mais significativas e contribui para atribuir um outro valor à palavra. Ao
falar sobre a atividade de trabalho, pode-se levar à compreensão das potencialidades
e das possibilidades de transformação das situações de trabalho, uma vez que a
filmagem faculta evidenciar elementos concretos, tangíveis, demonstrativos da
atividade.

Para a abordagem metodológica da Clínica da Atividade, o vídeo configura-se em


artifício importante também no processo de formação profissional orientado para a
transformação dos modos de trabalhar, além de constituir-se um recurso comunicacional.
81

Deve-se atentar para o fato de que o uso de meios imagéticos como dispositivos
metodológicos não deve ser tomado como estratégia de representação da realidade, mas sim
como parte de um conjunto de ações para investigar a experiência, o vivido, que só pode dar-
se com a participação ativa dos sujeitos da pesquisa.
Rosemberg et al. (2010, p. 38) afirma que a investigação deve dar “primazia à
expressão dos sentidos que a própria atividade cria e recria incessantemente, quando ela não
se submete em demasia a um ponto de vista heterônomo. Consideramos que a investigação é
tão inventada por seu objeto, quanto ela o inventa”.
A imagem como dimensão fluente, movente, transitória, possibilita ao sujeito sair de si
e ver-se como outro de sua própria atividade, acessando os devires, os outros possíveis da
atividade, a parte imersa do iceberg. Segundo Amador (2010, p.59), “[t]oma-se a imagem
enquanto aquilo que, situada no meio do caminho entre a coisa e a representação que temos
dela, é mais do que uma representação e menos do que uma coisa”.
O plano das imagens e a fala sobre elas serão abordados, portanto, nesse movimento,
nesse “entre” a atividade realizada e o real da atividade, sendo a autoconfrontação um meio de
viver nova experiência a partir do vivido. As imagens selecionadas e as gravações realizadas
tentam percorrer esses devires e “captar” esse real da atividade que não é perceptível aos
olhos.
A fim de desenvolver o poder de agir e provocar transformações no contexto de
trabalho, foi preciso aplicação de métodos dialógicos de intervenção os quais explicitamos
acima. Para compreender essas transformações, foi necessário empreender uma pesquisa com
base nas filmagens produzidas nas autoconfrontações. Desta forma selecionamos a
videografia, “estudo da atividade através de filmagens em vídeo”, segundo Meira (1994, p. ?),
para compreender como, ao colocar a ação em movimento, se desenvolveu o poder de agir
desses trabalhadores.
Empreendemos uma pesquisa minuciosa e detalhada a partir das filmagens produzidas,
o que, de acordo com Meira (1994, p. ?), “permite uma interpretação robusta e consistente dos
mecanismos psicológicos subjacentes à atividade humana”. Ao pôr em movimento a
atividade, descritalizando formas preconcebidas de ação, pretende-se compreender as relações
entre a atividade realizada, acessível através do vídeo, e o real da atividade, que só pode ser
acessado através dos métodos indiretos de análise e coanálise do trabalho.
Amador (2010, p. 60), ao discorrer sobre o trabalho com imagens, ressalta que
82

[é] num ir e vir, por entre obscurescências e iluminação que as imagens se


presentificam e se (re)presentificam num processo interminável e não cumulativo. É
por digressão que se opera, por desvio e por diminuição perceptiva que se processa a
imagem; por um ir e vir numa zona de intervalo na qual a matéria se presentifica por
um trabalho da percepção pura molecularizada, e se (re)presentifica, pela percepção
consciente que temos dela por uma totalidade.

A videografia permite, portanto, “resgatar a densidade de ações comunicativas e


gestuais”, imprimindo um salto na pesquisa qualitativa restrita ao uso de observações e
entrevistas ao não deixar escapar elementos cruciais no momento de análise dos dados, por
representar um registro fidedigno da situação de trabalho, não recaindo sobre ele vieses do
olhar do observador ou entrevistador que divide sua atenção entre diversos fatores e
estímulos. Como afirmam Roschelle et al. (1991 apud MEIRA, 1994, p. 2), o uso da
filmagem em vídeo pode

capturar múltiplas pistas visuais e auditivas que vão de expressões faciais a


diagramas no quadro-negro, e do aspecto geral de uma atividade a diálogos entre
professor e alunos. [O vídeo] é menos sujeito aos viés (sic) do observador que
anotações baseadas em observação, simplesmente porque ele registra informações
em maior densidade.

De acordo com Garcez, Duarte e Eisenberg (2011, p. 252), “o som e as imagens em


movimento integradas podem ajudar a desvendar a complexa rede de produção de
significados e sentidos manifestados em palavras, gestos e relações”, permitindo assim
capturar o contexto das interações e fazer repetidas revisões, indo e voltando nas filmagens a
fim de criar códigos para uma análise compreensiva do fenômeno.
As filmagens ocorreram nos postos de trabalho de cada operador: por exemplo, para o
pessoal administrativo, nas respectivas mesas e computadores onde desenvolviam suas
atividades; para o operacional, em sua maioria no galpão e duas vezes em espaço externo,
acompanhando as entregas. Os trabalhadores assistiam às filmagens em televisor de uma sala
fechada, onde também aconteciam os debates.
Outro cuidado necessário e que ajuda a corrigir problemas futuros é a realização de um
teste, a fim de verificar a angulação adequada, ou seja, o local de posicionamento da câmera,
avaliar o tempo de filmagem, verificar a necessidade de um suporte ou tripé. Na nossa prática
tivemos que utilizar de alguns suportes improvisados, porém a realização de um teste anterior
com uma dupla composta pela gestora e por uma servidora que partilhava das mesmas
atividades propiciou que, ao sincronizar a filmagem com a tela do computador através de um
programa, pudéssemos reproduzir a mecânica também com o pessoal do administrativo. Foi
possível filmar, além dos comandos dados no teclado, a imagem correspondente na tela do
83

computador, pois eles usavam muito o sistema que alimentava a atividade dos trabalhadores
terceirizados do operacional.
Para análise dos dados, procedeu-se aos seguintes passos, segundo as indicações de
Meira (1994, 62): inicialmente, assistiu-se a todos os vídeos, anotando os pontos relativos ao
problema de pesquisa que mais chamaram a atenção, viabilizando assim uma reaproximação e
uma “familiarização com os dados e a elaboração de uma caracterização geral da atividade”;
produziu-se, então, uma listagem e uma categorização das problemáticas levantadas pelos
trabalhadores, propiciando assim um acesso mais rápido a segmentos específicos dos vídeos,
sempre relacionando-os ao problema de pesquisa; “esta fase inicia o trabalho interpretativo
mais rigoroso”. Posteriormente, seguiu-se a transcrição literal dos vídeos “com o maior
número possível de detalhes; a transcrição não deve substituir o vídeo, mas servirá como
apoio à análise minuciosa do mesmo”. Acolheram-se as orientações de Meira (1994, p. 62) no
sentido de

(5) assistir persistente e repetidamente estes segmentos (ou episódios), apoiado pela
análise exaustiva das transcrições, a fim de gerar interpretações plausíveis dos
microprocessos envolvidos na atividade; [...] objetivo é construir uma caracterização
densa sobre a atividade investigada, (6) ao divulgar resultados, apresentar
interpretações ilustradas por exemplos prototípicos colhidos diretamente dos vídeos
e transcrições, permitindo que o leitor possa compreender os argumentos e
princípios teóricos sugeridos pelo investigador e/ou construir interpretações
alternativas.

Precedeu-se às diversas possibilidades de visualizar o material videogravado,


acelerando, pulando partes, pausando, congelando a imagem, retrocedendo, avançando,
repetindo a visualização quantas vezes foram necessárias para uma boa apreensão e
interpretação do material, sempre com as transcrições em paralelo.
Foram congeladas (dado printscreen) algumas cenas que serão apresentadas ao longo
do capítulo de resultados para melhor ilustrar o texto e enriquecer a discussão e o
entendimento do leitor. Feito isto, traremos os debates e as contribuições sobre os resultados,
a fim de alcançarem-se os objetivos da pesquisa.
84

6. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A análise dos dados com base na perspectiva epistemológica qualitativa, de González


Rey, e na abordagem teórico-metodológica da Clínica da Atividade, de Yves Clot, se deu de
forma que a relação entre teoria, momento empírico e reflexões do pesquisador
possibilitassem novas reflexões e contribuíssem para a produção de conhecimento para além
do já dado, das evidências observáveis, como também, com base nas experiências, leituras e
construção de sentidos tanto dos trabalhadores e do pesquisador que se debruçou sobre esses
dados e não está inerte a eles. Desta forma, há um coengendramento de forças, linhas de
reflexões e interferências mútuas.
Como mencionado previamente, na nossa prática como psicólogos pudemos efetuar
intervenções que tinham a Clínica da Atividade como marco teórico. Dentre elas, analisou-se
aquela realizada no Almoxarifado Central da Universidade Federal do Ceará no ano de 2014.
Este setor tem como tarefas principais receber, armazenar e distribuir produtos nos vários
setores da instituição, desde canetas e fardos de papel até produtos químicos. Essas tarefas
eram realizadas em um galpão que tinha como anexo uma área de escritório na qual eram
realizadas as atividades administrativas.
O setor contava com oito servidores públicos e dez trabalhadores contratados por meio
de empresa de terceirização de mão de obra. Nesse grupo, sete eram encarregados de funções
administrativas, tais como elaboração de inventários, controle de entrada e saída de produtos,
avaliação de solicitações de materiais, e os demais se ocupavam com ações operacionais,
dentre as quais a organização de materiais no estoque e a separação, o carregamento e o
transporte de produtos para atender as requisições de cada setor da instituição.
A intervenção surgiu a partir da demanda da chefia do Almoxarifado e, inicialmente,
dizia respeito a dificuldades de relacionamento entre os trabalhadores e a falhas na execução
das tarefas relacionadas à separação e à distribuição de materiais. A análise do trabalho
compreendeu uma fase inicial de observações, seguida pela realização de autoconfrontações
simples e cruzadas. Estes momentos eram intercalados por reuniões com o grupo de trabalho e
com as chefias. Na medida em que os sujeitos tiveram a própria atividade como mediadora
para suas reflexões, eles puderam reinventar modos de proceder e, com isso, revitalizar o
gênero profissional.
Inicialmente faremos uma discussão relacionando os aspectos da atividade dos
trabalhadores terceirizados e o contexto de precarização laboral que eles vivenciam a partir do
vínculo firmado entre a empresa de terceirização de mão de obra e a Universidade Federal do
85

Ceará. Esse vínculo possui diversas especificidades em relação ao trabalhador efetivo do


serviço público federal regido pela Lei 8.112, porque está demarcado como um contrato de
trabalho instável, que não possui algumas normatizações garantidoras de direitos trabalhistas
tal como estabelecido pela CLT.
Em seguida traremos elementos da atividade desses profissionais, acessada através das
observações e das filmagens para a autoconfrontação, a partir da qual faremos uma discussão
sobre as quatro dimensões do ofício — impessoal, transpessoal, interpessoal e pessoal —,
ilustrando com algumas imagens e falas dos sujeitos da pesquisa.
No último tópico, discutiremos o poder de agir desses trabalhadores, seus
impedimentos e possibilidades de transformação na busca pela construção da saúde, trazendo
elementos de melhorias advindos com as mudanças propostas a partir de reflexões e debates
suscitados ao longo da intervenção e de como essas transformações favoreceram a saúde deles
na busca pela realização de um “trabalho bem feito”. Cabe relembrar, segundo Clot, que o
trabalho bem feito refere-se à possibilidade de reconhecer-se individual e coletivamente no
trabalho e está relacionado a uma história profissional do ofício, pela qual o trabalhador se
sente responsável.

Contexto de trabalho na terceirização: aspectos da precarização e vulnerabilidade

Iniciaremos explicitando alguns aspectos relacionados à instabilidade e de como essa


forma de vínculo laboral vulnerabiliza os trabalhadores terceirizados com condições
inadequadas para o exercício das suas atividades, perdas de direitos trabalhistas, exposição a
riscos, etc.
No primeiro tópico deste trabalho falamos das características e formas da precarização
laboral e de suas consequências para a classe trabalhadora, porém, tendo em vista as lacunas
de pesquisas com trabalhadores terceirizados, discutiremos como eles percebem e vivenciam
essa realidade a partir das atividades que desenvolvem.
No contexto da precarização diversas são as formas de vínculo laboral. A terceirização
no setor do Almoxarifado Central expõe esses profissionais a situações de riscos variados, ao
preconceito, à perda de direitos trabalhistas, ao assédio moral, a condições de trabalho
inadequadas, dentre outras problemáticas mencionadas por eles ao longo da investigação.
Essa situação corrobora para que a relação de trabalho instável submeta esses trabalhadores a
situações degradantes à saúde.
86

Com os dados levantados, pudemos observar que os profissionais com vínculo


terceirizado não fazem jus ao adicional de periculosidade, enquanto os servidores públicos
regidos pela Lei 8.112 recebiam o benefício, uma vez que no contrato firmado entre a
instituição e a prestadora do serviço não havia previsão de verba orçamentária específica
destinada para esta finalidade. Apesar disto, todos os funcionários do setor estavam expostos a
riscos decorrentes do armazenamento de material inflamável, como botijões de gás butano
abastecidos, e exposição a produtos tóxicos. Podemos observar esse problema no trecho
abaixo que menciona um acidente com um produto químico cuja origem eles não conheciam
nem sabiam a forma correta de manuseio.

R – Estourou um produto químico que no caso afetou, né? Eu fui pegar ele, uma
parte do produto com a mão, aí começou a queimar minha mão. A chinela do A.
fumaçou. Aí eu lavei; rapidamente fui lavar a mão. Eu tive dor de cabeça, e o rapaz
que tava aí na limpeza já tava também com dor de cabeça.
O objetivo era de querer limpar. A gente não sabe lidar com esses problemas. Tem
que ter calma quando for abrir, tem muitas coisas aí que é[são] químico[as]. Um
risco, né, à saúde da gente. (Informação verbal.)

Vemos que, no decorrer do debate, os trabalhadores apresentaram algumas reflexões


em relação aos riscos que correm ao desenvolver suas atividades sem as condições de trabalho
adequadas — como se observa na fala de R., o objetivo era “querer limpar” após ter quebrado
o produto químico, tendo assim sofrido a queimadura. Somente após ponderar sobre as
condições em que se dava o desenvolvimento de sua atividade e sobre a falta de treinamento e
estrutura para lidar com essas situações, ele atenta para como essa situação precária e sem
suporte prejudica-lhe a saúde e a dos demais colegas.
Assim, podemos observar que os trabalhadores, além de não receberem adicional de
periculosidade, não têm nenhum tipo de treinamento ou orientação específica para lidar em
situações de risco de acidentes ou para a prevenção. Eles até têm o conhecimento do direito de
receber o adicional de periculosidade, porém relatam que, como não existe a previsão de
pagamento no contrato, conforme já conversado com os responsáveis na instituição, a solução
seria colocar a empresa na justiça; isso acarretaria, entretanto, o risco de serem demitidos.
Na fala de um dos motoristas do setor, podemos notar como eles estão expostos
constantemente a riscos. Na mesma comunicação, revelou-se que, a fim de garantir melhores
condições de trabalho, o profissional realizou um curso por conta própria, adquirindo
conhecimentos e habilidades incorporadas pela instituição, mas não recompensadas ou
reconhecidas. Ressaltamos ainda a ausência de um transporte adequado para o deslocamento
dos produtos químicos, pois o caminhão utilizado não tem as especificações necessárias para
87

tal, colocando em perigo a vida dele e a das demais pessoas no trânsito. Essa problemática
pode ser percebida no trecho a seguir:

Mo – Eu tenho curso do MOPP [Movimentação e Operação de Produtos Perigosos],


né? Que é pra carga perigosa. A gente tá vendo a hora acontecer uma coisa pior, né?
Mas fora isso, né? Ninguém chega pra ela, porque a culpa não é da G., nem da
universidade, nem nada, não. É preciso uma abordagem melhor sobre esse assunto
aí. Porque a gente carrega, a gente trabalha diretamente com esses produtos aí, nós
todos aqui, eles aqui, principalmente, os almoxarife, os carregadores, e a gente
motorista que tem que ter o cuidado de levar. Porque, se um negócio daquele quebra
dentro do caminhão, se espalha, né? Aí pronto.
[...]
Mo2 – Ou seja, ele tem preparação e trabalho com o produto, mas só que
sinceramente não é recompensado pra isso, né? Ele fez o curso, trabalha com o
produto, mas financeiramente não tem o retorno. (Informação verbal.)

Assim, podemos constatar como a relação de trabalho via terceirização vulnerabiliza


esses profissionais ao não oferecer treinamentos e orientações para o exercício de funções que
acarretam perigo à saúde. Nem reconhecer a necessidade de melhorias salariais quando os
profissionais realizam capacitação por conta própria. Ações como essas poderiam trazer
mudanças positivas para a instituição e para o trabalhador. Transfere-se a responsabilidade de
qualificação para o trabalhador terceirizado, diferentemente do que ocorre com os servidores
concursados, que possuem uma política de incentivo à qualificação não só com cursos sendo
ofertados sistematicamente pela universidade, mas também com as progressões salariais
conseguidas ao realizá-los.
Frisamos que, segundo dados do Dieese (2014), trabalhadores com vínculo
terceirizado sofrem 47% mais acidentes laborais do que aqueles com vínculo efetivo, sendo
dois dos principais motivos a ausência de treinamentos e as condições estruturais
inadequadas, como podemos observar no caso estudado.
Destacamos ainda a diferença salarial entre profissionais com mesmo cargo. Por tratar-
se de um vínculo diferente, os servidores públicos recebiam de três a quatro vezes mais que os
terceirizados, uma vez que, pelo Plano de Cargos, Carreiras e Salários dos servidores, as
qualificações e capacitações se convertiam em benefícios salariais. Enquanto isso, os
terceirizados, caso precisassem ou quisessem realizar alguma capacitação, deveriam procurá-
la por conta própria e custeá-la com o próprio salário, não havendo, portanto, incentivo à
qualificação, como aquele destinado aos servidores efetivos, garantidos por meio do Decreto
5.824, de 29 de junho de 2006.
Esses aspectos destacados estão relacionados às condições de trabalho, que dificultam
ou impedem o exercício das atividades. Estudos corroboram a realidade apresentada no setor
88

ao apontar a associação entre a precarização das condições de trabalho e a terceirização,


marcada por “diferenças salariais e de benefícios, perda de direitos trabalhistas, excesso de
trabalho e falta de treinamento” (MANDARINI; ALVES; STICCA, 2016), aspectos que
estavam presentes no cotidiano dos profissionais da pesquisa.
Há também constantes queixas referentes à ausência de materiais adequados para o
exercício das atividades, de maneira que se viam obrigados a lidar com falta de caixas para
transporte, carrinhos com pneus ou câmara de ar furados, etc.

P – É como se tivesse que ter uma caixa pra cada pedido, é isso?
S – Era. Pra ficar mais isolado.
C – Era pra ter, né? Ter caixa suficiente.
P – A caixa que vocês usam é tipo engradado de feira, né?
S – Até que eles pediram agora pra ser fechada porque tava caindo as coisas que
é[são] pequena[s].
C – Passa pela brecha.
P – Aí já foi feito o pedido? Mas não chegou? E vocês chegaram a acompanhar
como é que tá esse pedido ou não? Chegaram a perguntar pra alguém?
O – Não.
S – A gente coloca no saco que é pra não cair, né?
[...]
M – Os pneus, as câmaras de ar e mais dois carrinhos, né? Que nós falamos pra
vocês também continua do mesmo jeito, veio[vieram] só dois carrinhos, só. Nem os
pneus nem as câmaras de ar chegaram, não, pra nós. (Informação verbal.)

Em outro momento da mesma reunião eles continuam falando sobre as condições


inadequadas do ambiente de trabalho para o exercício das atividades ao relatar problemas
estruturais do galpão, como falta de ventilação, estrutura velha e degradada, poeira, que geram
problemas de saúde para eles. Além da ausência de um local adequado para armazenamento
de material tóxico. Outros problemas ainda foram mencionados como a falta de equipamento
de proteção individual, só adquiridos após diversas solicitações e debate sobre a importância
daqueles objetos para a função que exerciam.
A morosidade na execução de mudanças necessárias na infraestrutura do local, bem
como na aquisição de materiais para a realização das atividades, são destacadas pelos
trabalhadores:

R– Só uma coisa, né, mais ventiladores que o que tinha quebrou e é muito quente.
De vez enquanto a gente vai lá pro ar-condicionado só pra refrescar um pouco. A
gente aproveita pra pegar as canetas dentro do ar-condicionado, lá na outra sala, aí
aproveita pra pegar os materiais e fica bem fresquinho.
P – Achou um jeito aí de aguentar o calor?
R – É.
[...]
P – Sobre os bichos que tem aí galpão, que vocês falaram...
89

R – Foi o A., no dia que a gente foi fazer o balanço, foi até num sábado que a gente
veio aqui, a gente tava separando, aliás contando os materiais, num sábado extra que
teve, essa época até o L. ainda tava aqui. A gente foi contar e tava[estavam] lá as
abelhas. Picou até o S. Ele foi tirar e foi picado. Pegaram ácido muriático e jogaram
em cima delas lá. (Informação verbal.)

As reclamações sobre as condições do trabalho se referem também às estantes onde


são acondicionados os materiais, que, precárias, podem causar um acidente, caindo sobre os
trabalhadores. As queixas sobre a inadequação de armazenamento de materiais estendem-se
inclusive ao acondicionamento de produtos com bactérias na mesma geladeira em que
guardam alimentos para consumo próprio.
Ainda referindo-se às condições do ambiente de trabalho, R. e A. afirmam que a
poeira presente no galpão é motivo de adoecimento recorrente, impactando tanto os que são
responsáveis pela manutenção do material no galpão como os carregadores que acabam
também sendo expostos aos mesmo riscos que aqueles.
Podemos sublinhar que a falta de estrutura acarreta prejuízos para a instituição, porque
acontecem tanto perdas de materiais quanto recorrentes ausências dos trabalhadores para
tratamento de saúde; muitos, entretanto, voltam a adoecer pelos mesmos motivos.
Outro tópico que destacamos e que necessita de um debate aprofundado é o
relacionamento sócio-profissional entre os trabalhadores de diferentes vínculos laborais.
Referimo-nos ao desrespeito e ao preconceito que profissionais terceirizado sofrem, os quais
se expressam, como se nota dos relatos frequentes, em ameaças de advertência, devolução
para a empresa e até desemprego.
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, foi possível constatar exemplos de assédio
moral3 que sofriam por parte do gestor, com ameaças constantes de advertência ou devolução
para a empresa. Os terceirizados relataram que trabalhavam com medo e padeciam
frequentemente constrangimentos. Eram constantes também as situações de retrabalho: o
referido gestor não respeitava os momentos de pausa; quando não tinham atividade para
realizar, estava sempre procurando/“inventando” algo para eles fazerem, mesmo que fosse
desfazer o trabalho que haviam realizado no dia anterior.

3
Segundo a cartilha do Ministério do Trabalho e Emprego sobre Relações de Trabalho (BRASIL, 2009, p. 15), o
assédio moral define-se por “atos cruéis e desumanos que caracterizam uma atitude violenta e sem ética nas
relações de trabalho praticados por um ou mais chefes contra seus subordinados. Trata-se da exposição de
trabalhadoras e trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua
função. É o que chamamos de violência moral. Esses atos visam humilhar, desqualificar e desestabilizar
emocionalmente a relação da vítima com a organização e o ambiente de trabalho, o que põe em risco a saúde, a
própria vida da vítima e seu emprego. A violência moral ocasiona desordens emocionais, atinge a dignidade e a
identidade da pessoa humana, altera valores, causa danos psíquicos (mentais), interfere negativamente na saúde,
na qualidade de vida e pode até levar à morte”.
90

Segundo Barreto (2003), o assédio moral caracteriza-se por humilhação,


constrangimento e situação vexatória no exercício da função. Constitui-se um indicador
importante ao analisarem-se as condições de trabalho e saúde dos trabalhadores, segundo a
autora “revelando uma das formas mais poderosas de violência sutil nas relações
organizacionais e na sociedade”.
No processo de intervenção não raras foram as vezes em que houve a associação de
determinado gestor à representação de feitor, quartel, exército, remetendo assim à noção de
disciplina, autoritarismo e abuso de poder, como podemos perceber nos seguintes relatos:

P – Como era que isso acontecia mesmo?


R – Ah, era tipo o poder, né? Fazia coisas sem necessidade. Qualquer coisa que a
gente fosse reclamar ou demorasse a fazer um serviço, ele ameaçava qualquer um
aqui, no caso botar pra fora, entregar pra empresa.
[...]
E – Ele ameaçava trocar por qualquer coisinha. Tinha que ficar calado, não podia
nem responder, porque se fosse responder ele...
A – Porque aqui existe um certo preconceito com os terceirizados. Não sei se existe
ainda, né? Porque essas pessoas que andavam aqui, que tinham muito preconceito
aqui com os terceirizados, deixaram de andar. Não sei se foi por conta da troca da
chefia aqui, né? Mas ele vivia dizendo na cara de todo mundo aqui que os
terceirizado era[m] tudo[todos] fodido[s] aqui, que não tinha que tá[estar]
reclamando de nada. Dizia assim, na cara mermo assim.
[...]
P – E como é que vocês se sentiam com essas coisas dele?
Mo2 – No mínimo constrangido, né? Intimidado, né?
R – Constrangido, né?
Mo – A gente trabalhava com medo, né? Tinha muita gente que trabalhava com
medo, né? Trabalhava com medo. Que é fato, né? O pessoal ia fazer alguma coisa,
ele: “Rapaz, tem que fazer isso aqui”. Os meninos baixava[m] a cabeça e
balançava[m]: “Meu Deus do céu, lá vai a gente de novo fazer a mesma coisa, sendo
que a gente já tinha feito”. Colocar, tirar esse material que a gente colocou a mando
dele, colocar nesse canto e amanhã ele vai fazer do mesmo jeito. “Não tem nada pra
fazer aqui. Vai tirar metade. Não, coloca metade desse aqui, coloca aqui.”
(Informação verbal.)

Os relatos de desrespeito, humilhação e perseguições foram bastante destacados.


Ressalta-se que havia uma forte vinculação desse tipo de comportamento por parte dessa
chefia à condição do vínculo terceirizado.
A pesquisa de Solli-Saether (2011) aponta que um dos principais fatores estressores
dos trabalhadores terceirizados é a alta expectativa do gestor da empresa contratante. É o caso
dos profissionais do setor do Almoxarifado, que se encontravam sob um alto nível de estresse
diante das cobranças e exigências do gestor, que agia como um feitor em um quartel general.
Esse estresse estava relacionado a fatores organizacionais e não necessariamente às atividades
que desempenhavam.
91

Outros estudos realizados com trabalhadores terceirizados indicam “o esvaziamento


do sentido do trabalho, a anulação da identidade profissional e as relações baseadas em
constrangimento, desrespeito e autoritarismo” (MANDARINI; ALVES; STICCA, 2016)
como situações prejudiciais à saúde desses profissionais e desencadeadoras de intenso
sofrimento psíquico, que muitas vezes é negligenciado tanto pelo empregador quanto pelo
próprio trabalhador.
Tais aspectos foram relatados em nossa investigação e despertavam sentimentos tais
como constrangimento, medo, raiva, pois eles não tinham como “reagir/responder” a essas
situações de assédio, agressões, desrespeito, ameaças, devido à instabilidade do vínculo e à
iminente possibilidade de perda do emprego, que em alguns relatos surge como uma
possibilidade de acordo com a vontade pessoal do gestor.
O assédio moral é tido como um elemento de vulnerabilização dos trabalhadores,
caracterizando-se por rejeição deliberada ou sistemática pelos pares ou níveis hierárquicos,
constituindo-se em importante fator de origem e/ou desencadeamento de sofrimento psíquico,
podendo levar a quadros mais profundos de distúrbios psicológicos ou físicos. Selligman-
Silva (2011) aponta ainda para a desumanização do trabalho e para o desamparo, ambos
presentes nas novas formas de gestão pelo medo, especialmente o medo do desemprego, por
meio do qual o gestor, como observamos neste estudo, imprime uma nova forma de controle
sobre os seus subordinados. O sofrimento mental, segundo a autora, tem sido ampliado ao
dispersarem-se ameaças constantes aos trabalhadores, práticas cada vez mais disseminadas
nos contextos de trabalho contemporâneo como medida coercitiva comum entre gerentes,
encarregados e chefias.
Nesse trecho percebemos ainda a alta rotatividade — um dado marcante presente nas
pesquisas desenvolvidas sobre a precarização laboral de trabalhadores terceirizados —
quando Mo. se refere à troca constante de motoristas:

[É] a realidade que os motoristas aqui, fui eu, o seu E., né? Que saiu já. Só
colocando os motoristas pra fora, eu que fiquei. O seu E. teve uma desavença aí com
o M.; o outro foi o S., que passou por aqui também, aquele gordinho. Agora é ele aí,
mas meu parceiro aí vai ficar, se Deus quiser. (Informação verbal.)

Verifica-se a descartabilidade do trabalhador nesse contexto de terceirização. Segundo


os entrevistados, o gestor afirmava que qualquer um que ocupasse a função a exerceria da
mesma forma, sem levar em consideração o conhecimento acumulado ao longo dos anos de
92

experiência no setor, completando que, independentemente do tempo de serviços prestados à


instituição, o funcionário poderia ser reposto caso ele, sendo chefe, assim bem entendesse:

S – Ele fala: “Eu não quero mais o A., o S., o M... Quero mais não. Quero trocar. Me
arranje mais três pra cá. [...] Pode ter dez anos aqui que eu boto pra fora. O que
entrar faz o serviço do mesmo jeito. Se num prestar devolve também.” (Informação
verbal.)

Tais elementos da rotatividade e descartabilidade são impeditivos ao desenvolvimento


de um gênero profissional e ao fortalecimento desse coletivo por não reconhecer-se enquanto
grupo. Podemos observar que na história de um ofício há um componente da formação
profissional que requer uma experiência que só se aprende ao longo do tempo, através da
construção de um repertório comportamental que possibilita dar a resposta “certa” às
necessidades dos imprevistos do real, a partir da contínua interação com o cotidiano de
trabalho no curso da atividade, o que é indispensável para a apreensão dos elementos que
compõem o gênero profissional. Desta forma, devido à alta rotatividade e à troca constante de
profissionais, esse gênero não se consolida, não se firma e não há transmissão, troca e partilha
entre os que saem da função e os que estão chegando para assumi-la.
Como discutiremos no terceiro tópico, no decorrer da intervenção percebemos
elementos de como esse gênero profissional encontrava-se enfraquecido; em seguida
apresentaremos os elementos que contribuíram para o fortalecimento dele após a realização da
intervenção. Depois disso discutiremos sobre os impedimentos ao poder de agir desses
trabalhadores e de como a instabilidade do vínculo contribuía para esse tipo de prática e
gestão autoritária e para que eles tivessem seu poder de resposta e ação diminuídos frente aos
imprevistos do real.
Ao longo desses trechos podemos observar diversas situações de risco. Algumas delas
retratam a fragilidade do vínculo e a perda de direitos, como o não recebimento do adicional
de periculosidade e a exposição a acidentes e riscos à saúde. Identificou-se também a
morosidade em atender as demandas e melhorias necessárias, como o conserto das estantes
que constituem risco de acidentes de trabalho.
É importante destacar ainda que eles afirmam em certos trechos ter falado com a
gestora sobre o adicional a que fariam jus, porém ela responde que deveriam entrar na justiça,
embora, caso o fizessem, corressem o risco de ficar desempregados. Em mais um relato
vemos como os trabalhadores terceirizados estão limitados/impedidos em seu poder de ação.
93

Esses elementos discutidos na intervenção demonstram a fragilidade do vínculo via


terceirização e a sujeição desses profissionais às situações mais desgastantes, perigosas,
arriscadas, insalubres, adoecedoras. Percebemos assim que esse contexto de trabalho é
permeado por situações de vulnerabilidade em aspectos do ambiente, das condições e das
relações sócio-profissionais.
Desta forma continuaremos a discussão dos dados sobre a saúde e a atividade dos
terceirizados do setor supracitado a partir da discussão sobre as quatro dimensões do ofício
deles.
As quatro dimensões do ofício: a atividade no Almoxarifado em questão

Nossa investigação identificou elementos relacionados à atividade dos trabalhadores


nas diversas dimensões do ofício mencionadas anteriormente e retomadas agora. São elas:
impessoal, pessoal, transpessoal e interpessoal.
A dimensão impessoal do ofício diz respeito à prescrição oficial, às normas e às regras
que estão explicitadas nos manuais e modos de operar, de maneira que, independentemente de
quem esteja desempenhando aquela função, não há mudanças, pois é algo estipulado pela
organização do trabalho, uma forma preestabelecida de proceder, aquilo que se deve fazer
para ser bem sucedido na atividade. A dimensão impessoal orientará o trabalhador no
exercício da função, porém não será a única, como veremos a seguir. É a prescrição oficial
que permite pessoas diferentes efetuarem a mesma tarefa, não necessariamente da mesma
forma — pois existe um estilo profissional concorrendo em toda atividade com as demais
dimensões —, mas da forma que a organização do trabalho “espera e prevê” e que nem
sempre é a forma correta ou mais correta, pois pode inclusive ser contraditória aos objetivos
da tarefa.
Na dimensão pessoal é onde podemos perceber a individualidade do trabalhador
atuando, uma vez que ele imprimirá sua marca no trabalho que desempenha. É como ele se
reconhece no ofício que realiza e o distingue do outro, por meio do qual demonstra e imprime
seu estilo profissional.
A dimensão interpessoal corresponde ao endereçamento da atividade a outrem,
àqueles com quem entramos em contato para realização de nossas atividades, uma vez que a
atividade é triplamente dirigida. Assim ela é sempre dirigida ao outro e à sua própria
atividade, a seu objeto de trabalho, além de ser a si mesmo, ao sujeito que realiza a atividade.
Desta forma, pares, clientes e fornecedores estão inseridos nessa dimensão do ofício.
94

E por último a dimensão transpessoal, que corresponde ao gênero profissional, uma


cultura partilhada pelo coletivo, como uma prescrição não oficial. Da relação entre elas
emerge o ofício, que desta forma não é fixo, fechado, determinado, mas algo vivo, mutante,
em constante movimento. Segundo Rosemberg, Filho e Barros (2014, p. 42),

[e]le é movimento, transformação do objeto em meio para uma estética de si e do


trabalho, territorializando-se e desterritorializando-se pela atividade. O movimento
por essas quatro dimensões ajuda a entender a experiência do trabalho, afirma Clot
(2007). Para ele, o mecanismo de desenvolvimento da experiência se dá pela
transformação da passagem da prescrição oficial de objeto, em meio: um meio de
fazer diferente seu trabalho, um meio de voltar-se aos outros, penetrando no gênero
e ajudando-o a ser construído.

Nesse intercâmbio entre elas e entre o sujeito e sua atividade, cabe ainda destacar o
papel e a importância do social. Nas palavras de Clot (2006, p. 23), o

social está lá, presente, mesmo quando estamos sozinhos; ele não está fora de nós
mesmos, nem somente entre nós, ele está em nós, no espírito e no corpo de cada um
de nós.... Simultaneamente, essa abordagem é não apenas muito social, mas também
muito subjetiva, porque no fundo o que ele diz é que o social está vivo se, de certa
maneira, ele está acordado permanentemente pela atividade singular, subjetiva. Não
é o social entendido como coação, restrição externa, mas um social vivo.

Desta forma, foi possível observar cada uma dessas dimensões e do papel que cada
uma ocupa no desenvolvimento das atividades de trabalho no Almoxarifado.
Na dimensão impessoal do ofício destacamos, inicialmente, a pesquisa documental
que foi realizada no site da Pró-Reitoria de Administração, a fim de entender o funcionamento
do setor e os processos de trabalho, as atribuições, as hierarquias, o organograma, as funções,
as normas, dentre outros aspectos relacionados ao prescrito pela organização do trabalho. Em
seguida nos reunimos com a chefe do setor, G., e discutimos cada uma delas. Nesse momento
debatemos sobre como estavam definidos os papéis, com atribuições e funções de cada cargo,
além de como eram repassados para os funcionários as normas, os ritmos de trabalho, os
modos de proceder, etc.
Nessa reunião pôde-se verificar que havia uma indefinição de papéis, pois não existia
uma separação das atribuições que seriam da Seção de Previsão e Controle e do Almoxarifado
Central, que estava dessa forma acumulando responsabilidades, o que gerava uma série de
conflitos e desentendimentos entre os gestores e entre os funcionários, pois eles não sabiam o
que era atribuição de quem ou a quem deveriam reportar-se em momentos de dúvidas e
tomada de decisões.
95

Isso é explicado na fala da gestora G.:

G – É importante que se diga que essa Seção de Previsão e Controle praticamente


não existia, porque durante muitos anos ela foi completamente submissa ao
Almoxarifado Central. É como se tudo aqui fosse Almoxarifado. Não existe
Previsão e Controle, e o que é que acontece? Por conta disso não havia e ainda não
há uma separação de atividades — o que é da Previsão e Controle e o que é do
Almoxarifado. Então, por mais que a gente tenha um documento que diga o que é
responsabilidade de cada um, o que é que acontece? O M., ele continua fazendo
aquilo que o J. [antigo gestor que se aposentou] fazia e que ele também fazia [na
antiga função], que é atender requisição de material e ponto. E a D. continua fazendo
o que ela fazia a vida inteira, que é cadastrar nota fiscal no sistema. Pronto. Se isso é
da Previsão e Controle ou se é do Almoxarifado Central, é como se não tivesse
importância. (Informação verbal.)

Após essa reunião, obteve-se como encaminhamento que a gestora do Almoxarifado,


G., se reuniria com o gestor da Seção de Previsão e Controle, M., e a gestora imediata deles,
A.,, a diretora do Departamento de Administração, para redefinição desses papéis e das
atribuições de cada funcionário.
A confusão de papéis trouxe prejuízos para o desenvolvimento das atividades como
um todo, pois gerou conflitos entre os funcionários, atrapalhando a execução das atividades.
Quando não há uma prescrição, o trabalhador fica perdido no desempenho de suas funções.
Percebemos, assim, como a prescrição tem um papel importante, uma vez que norteia o
trabalho em uma organização. É através do prescrito que se sabe quais atribuições cabem a
cada um, além dos horários a cumprir, modos de proceder, ritmo de trabalho, etc.
Porém, cabe esclarecer que em toda atividade há uma lacuna entre a prescrição oficial
e o real que precisa ser preenchida e para a qual o trabalhador deve tomar decisões, agir e dar
conta dos imprevistos. Para isso ele entra em contato com os pares, utiliza-se tanto do saber
construído pelo gênero profissional ao longo da história de um oficio quanto de seus
conhecimentos e experiência para criar e buscar novas soluções.
Nesta pesquisa, percebemos relacionada às dimensões impessoal e interpessoal a
existência de alguns problemas sobre a decisão dos procedimentos de armazenamento dos
materiais, por exemplo. No galpão do Almoxarifado, havia estantes de metal com indicações
sobre o tipo de material que deveria ser guardado ali, mas tais indicações não eram
necessariamente seguidas. Não existia, portanto, uma normatização sobre como ordenar o
estoque. Essa lacuna gerava impedimentos aos trabalhadores terceirizados, que, ao tentar
definir onde cada produto deveria ser guardado, tomando por base sua experiência cotidiana,
viam suas decisões rechaçadas pelo gestor, M., que não reconhecia a autonomia e a
participação deles na organização do galpão. Por vezes, a chefia determinava mudanças nos
96

locais de armazenamento sem comunicá-los, pois a decisão superior não era coletivizada e
discutida com o grupo de trabalho, principalmente com os terceirizados, que eram vistos
como externos à instituição. Quando estes iam procurar os produtos para encaminhar aos
setores, não os localizavam e precisavam reportar-se ao gestor com o qual nem sempre
mantinham uma relação amistosa.
Os terceirizados encontravam impedimentos diante das normas estabelecidas,
reduzindo assim sua autonomia para a realização das atividades. Notamos isso com
profissionais de mesmo cargo, como o de almoxarife. Para os servidores públicos que o
ocupavam havia um leque de possibilidades mais amplo para realizar suas ações enquanto aos
terceirizados eram impostas algumas limitações. Por exemplo, aqueles eram os únicos
autorizados a responsabilizar-se por receber os materiais, pois, no documento em que se
atestava o recebimento, deveria constar a matrícula funcional do trabalhador, dado restrito aos
servidores efetivos mesmo sendo pertinente, também, à função dos terceirizados na
instituição. Isto acabava gerando exclusão do processo de trabalho.
Outros elementos, que se referem ao impedimento da ação dos trabalhadores na
dimensão impessoal, relacionam-se à ausência de instrumentos e materiais em condições de
uso, como caixas para transporte dos bens de consumo; aos problemas nos “carrinhos”
utilizados no transporte dos materiais; e até problemas estruturais, como falta de local
apropriado para realização das atividades de separação de cartuchos de impressora ou a
impossibilidade de usar os elevadores dos setores para subir materiais pesados.
Podemos destacar também a situação precária das instalações do galpão onde as
atividades eram realizadas. O local contava com pouca iluminação, não possuía ventilação
adequada e, consequentemente, tornava-se quente. Além disso, estava sempre empoeirado,
com infiltrações, dentre outros problemas. Os trabalhadores relataram que a estrutura das
estantes que serviam de sustentação para um mezanino, no qual também se armazenavam
materiais, estava danificada e partes do chão cediam. Problemáticas essas já abordadas no
primeiro tópico e que fazem parte da dimensão impessoal.
Observamos nas figuras 1 e 2 duas imagens que tratam a dimensão impessoal do ofício
dos almoxarifes (1) e dos carregadores (2). Na primeira, em que um almoxarife separa
materiais, vemos parte do galpão onde se realizam as atividades, localizando-se ao lado
esquerdo as estantes de armazenamento e ao lado direito o espaço de triagem; de acordo com
os pedidos das requisições, os produtos serão levados pelos carregadores (imagem 2) para os
setores correspondentes.
97

Figura 1: Almoxarife realizando separação de materiais.

Figura 2: Carregador colocando material dentro do caminhão para entrega.

Outra característica que interferia nas atividades de trabalho dos terceirizados era o
ritmo de trabalho intenso em alguns momentos, quando acabavam errando ou se esquecendo
de separar algum material das requisições, pois tinham que desenvolver várias atividades ao
mesmo tempo.
Em seguida traremos elementos referentes à dimensão interpessoal, que, como já
falado, trata do endereçamento da atividade, seja aos pares, seja a chefias, seja aos clientes
internos e/ou externos.
98

No Almoxarifado eles tinham, além dos pares e chefias, que realizar o manejo das
relações que estabeleciam com funcionários que solicitavam e recebiam os pedidos de
material feitos pelos diversos setores da universidade, bem como com os fornecedores
externos.
Para a perspectiva da Clínica da Atividade, adotada aqui como referencial teórico e
metodológico,

não há unicamente destinatários no envolvimento subjetivo, sejam eles pares ou


chefes. A mobilização subjetiva no trabalho está direcionada para um
supradestinatário, para alguma coisa distinta e não apenas para algum outro. Esse
supradestinatário que, no plano fundamentalmente clínico, tem muitas vezes a
função de “destinatário de apoio”, para falar como M. Bakhtin (1984), é o que eu
chamo de instância interpessoal do ofício, tomando esta última palavra como um
conceito.” Ele é fiador coletivo da atividade pessoal, a história que prossegue ou se
detém através de mim, a história que eu consigo, ou não, fazer minha ao incluir nela
alguma coisa de mim. Caracterizei esta memória transpessoal pela ação utilizando a
noção de gênero profissional. Poder se reconhecer no que se faz significa,
precisamente, fazer alguma coisa de sua atividade para tornar-se único no seu gênero
ao renová-la. (CLOT, 2010, p. 73).

Figura 3: Processo de fracionamento de sacos de lixo: embalagens com 100 unidades são separadas em grupos
de dez sacos.
99

Figura 4: Separação de materiais; conversam entre si perguntando sobre material solicitado na requisição.

Assim, pontua-se a importância dos intercâmbios e trocas que os trabalhadores


realizam com seus pares, como vemos nas imagens 3 e 4, em que identificamos como eles, no
conjunto de suas atividades, estão em inter-relação uns com os outros. Daí consideramos
pertinente destacar a relevância da comunicação entre eles, como pudemos perceber na fala de
A., que reforça que, anteriormente, se tinha dificuldade para encontrar materiais dentro do
galpão, pois os responsáveis por recebê-los e guardá-los não comunicava onde os estava
estocando, conforme fala a seguir:

P – E aí? Tu pediu[pediste] pro R. te ajudar?


A – Foi.
P – Tu lembra[s] o que era isso aí?
A – Aí a gente tava atrás de mais, né? Tava atrás de mais suporte de 800 aí.
P – Mas não tinha suficiente?
A – Tinha não, pra completar aquele pedido.
P – Aí, quando não tem pra completar, como é que vocês fazem?
A – Aí vem aqui no M. e ele estorna o pedido. Aí ele tira. Ou senão ele deixa a gente
dar o que a gente achou e reduz, né, na folha [requerimento], e tira de novo, imprime
de novo o documento.
[…]
A – É porque, assim, o pessoal que recebe material aqui, essas caixas aí são de
detergente, aí eles botaram aí. Os antigos, que se aposentaram, encheram esse canto
aí de detergente, daí ficou. (Informação verbal.)

Outra problemática referente à dimensão interpessoal é o relacionamento com


funcionários no momento da entrega dos materiais. Como relatado pelos trabalhadores, um
dos motoristas, ao estacionar o caminhão no Campus do Porangabussu, foi tratado com
100

desrespeito por um funcionário que estava com seu carro impedido de sair do estacionamento
pela falta de espaço ocupado pelo caminhão. Em outro relato um carregador fala sobre um
problema que ocorreu com um funcionário, pois ele havia utilizado o elevador para
cadeirantes para subir material.
Na passagem abaixo observamos como os carregadores dividiam entre si as atividades
e contavam com o apoio uns dos outros, exemplo da autoconfrontação simples do C. e
posteriormente na fala de R., ao aludir a uma tarefa que exigia a parceria e o trabalho em
conjunto para realizá-la de forma mais rápida e efetiva.

C – O D. e o S., né, eles ficam conferindo lá. Quem leva é[somos] eu e o E., sabe,
que pega[mos] o material lá, nós traz[emos] pra fora e eles ficam conferindo, o D. e
o... quando tem muito material já lá fora, aí nós dá[damos] uma parada pra ajudar
eles que é muito. Quando tem muito, sabe?
P – Mas geralmente vocês que vão lá buscar, tu e o E.?
C – Quando tem muito material, eu vou lá ajudar eles. Isso, eu e o E., e o D. fica
conferindo... aí, quando tem muito, eu dou uma parada e vou conferir, tá, eu fico
conferindo também.
[...]
P – Então, vocês também trabalham em conjunto?
R – Sim. Nós separamos o serviço dependendo dos pedidos. Quando tem pedido pra
fora, às vezes tem pedido grande, aí a gente separa. Tá pedindo o quê? Aí 36 caixas
[inaudível] ou, como é que se diz, de sabonete líquido; aí, enquanto um separa, o
outro vai pegando outra coisa. (Informação verbal.)

Percebemos nesse trecho como todas as dimensões estão interligadas. Como


observamos na fala de R. ao relatar a ausência de caixas (dimensão impessoal), que se
configura como um empecilho para a atividade dos carregadores, depois de o ser também para
os almoxarifes (interpessoal). Como exemplo podemos citar também os erros que os
carregadores identificavam na separação de materiais, realizada pelos almoxarifes.
Uma outra problemática relacionada à dimensão interpessoal refere-se ao
relacionamento com a chefia M., que apresentava uma série de comportamentos autoritários e
falta de respeito, além de estar constantemente interferindo na atividade dos trabalhadores,
obrigando-os a refazer atividades já anteriormente realizadas.
Quanto à dimensão pessoal do ofício, é por meio dela que identificamos a marca que o
trabalhador imprime na sua atividade, seu modo de fazer, às vezes único e diferente do dos
demais colegas que atuam na mesma função — como podemos observar em uma das
confrontações realizadas, em que A. faz a separação dos materiais por item da requisição,
enquanto R. pega vários de uma vez, porque, de acordo com ele, agiliza/otimiza a separação.
Pelo que ambos afirmam sobre a própria atuação, depreende-se que A. preocupa-se em
não esquecer nenhum material enquanto R. diz confiar na memória. Porém, pudemos
101

constatar que havia erros recorrentes na separação de materiais, como esquecimento de itens
de algumas requisições, só percebidos quando os carregadores faziam a segunda conferência
antes de carregar o caminhão. Essa situação mostra-se nos trechos das autoconfrontações
simples a seguir:

P – O que tu marcou[marcaste] no papel?


A – Eu tô marcando as coisas que eu tô tirando. Eu vou tirando e marcando, pra não
confundir depois. Aí, eu tô tirando aí um suporte de papel de oitocentos. Aí tem de
trezentos e o de oitocentos. No caso, o dia que ela tava gravando, eu tava, eu não
tinha encontrado... aí atrás tinha um cacho de marimbondo.
[...]
P – O que é que tu tá[estás] fazendo aí?
R – Tô só anotando. Porque geralmente eu olho os itens tudinho[todinhos] como se
fosse pegar tudo de uma vez. Gravo tudo na cabeça, pego, pego, pego a quantidade
tudo da cabeça pra no final eu só tchu [faz gesto com a mão como se desse o check
no papel].
P – Tu decora[s]? Pega tudo duma vez e depois?...
R – Decoro a quantidade de cada. Aí, se tiver alguma dúvida, eu vou lá, confiro
novamente e depois [gesto de check].
P – Então faltou esse aí ainda?
R – Esse aí... eu já anotei tudim já. Aí eu vou levar esse aí. Que é[são] os rolos de
300. Aí, no caso, eu já terminei porque a requisição foi pouco[a], o que eles pediram
foi pouco. Aí eu peguei a requisição, e vou levar, levo...
P – E esse aí?
R – É a requisição do pedido, porque, quando os meninos vierem pra conferir, eles
vão olhar se é pra dentro ou se é pra fora. Aí eles pegam a requisição e levam o
material lá pra fora, um dos meninos confere se realmente não tiver faltando alguma
coisa. Porque aí geralmente quando a gente tá separando muito material, muito
pedido por material, às vezes a gente se esquece de alguma coisa, de algum produto,
de alguma coisa. Aí eles, lá fora, eles confere[m], e, se [es]tiver faltando, eles
chama[m] nós[nos] pra ir lá pegar o que tava faltando e ir repor lá, pra, quando sair
daqui e chegar lá no setor, não ter problema de: “Ah, tá faltando isso daqui”. O
problema vai ser pra nós. (Informação verbal.)

O estilo profissional de cada trabalhador renovará o gênero profissional. Ambas as


dimensões (pessoal e transpessoal) encontram-se bastante imbricadas, e podemos observar em
nossa investigação como o estilo age sobre o gênero.
Em uma das reuniões, R. relatou que encontrou um pacote de sacos plásticos que não
eram utilizados nem solicitados por nenhum setor da universidade e estavam lá sem utilidade
há muito tempo. Então, a partir das reclamações dos carregadores e da sua própria percepção
sobre o problema das caixas utilizadas para transportar os materiais que acabavam caindo
pelas frestas e se perdendo, começou a utilizar esses sacos para guardar os itens das
solicitações que eram pequenos e poderiam cair das caixas, como canetas, lápis, borracha,
corretivo, dentre outros, prática que logo foi aprovada e incorporada pelo restante do grupo,
que já havia solicitado em vão a troca das caixas para que fossem de um material apropriado.
102

Pudemos perceber ainda, o estilo profissional de cada almoxarife, R. e A., nos dois
exemplos seguintes de duas autoconfrontações simples em que eles debatem sobre a postura
ao realizar a separação de materiais. Como apresentado nos trechos a seguir, em que A.
demonstra não ter a mesma preocupação com a postura quanto R.:

P – Como é que tu vê[s] essa tua postura aí? Pra apanhar esse negócio?
R – É errado, é errado. Isso, às vezes, assim, não sei porque eu tava com essa
postura, mas, realmente até mesmo sempre que eu vou pegar alguma coisa, eu gosto
de fazer postura abaixada, porque aí dá um problema seríssimo com o tempo. Agora
eu não tô sentindo, mas uma hora eu vou sentir lá na frente. Essa postura é incorreta
no caso. Geralmente quando eu vou pegar essas caixas, eu faço como se tivesse
malhando, fazendo agachamento. Eu faço tudo com postura. Como eu pratico
esporte, isso aí vai complicar pra mim mais na frente. Pra não dar um jeito, não dar
um problema. Eu falo até pros meninos que têm que pegar com postura. Qualquer
coisa que a gente for fazer aqui tem que ter postura. Não vamo sentir agora, mas...
P – Você passou por algum tipo de treinamento? Isso você sabe porque...
R – Não, não. Pela experiência. Qualquer coisa que for fazer: pegar caixa, de levar,
prum lado, levar pro outro (apoiado no ombro); se deixar apoiar algum peso, ter
cuidado pra não prejudicar a coluna, porque, com o tempo, você não vai sentir
agora, não, mas mais pra frente vai sofrer as consequências. (Informação verbal.)

Na autoconfrontação simples de A., manifesta-se outra percepção: ele não se preocupa


tanto com a postura, mesmo já tendo apresentado problema de hérnia de disco quando exercia
a função de carregador em um outro setor (Patrimônio) de materiais permanentes, em que
erguia mesas, armários, cadeiras. Tal como podemos observar na fala abaixo:

P – E essa tua postura aí, botando os “bichos” no chão?


A – Acho... postura, assim, que você fala?...
P – Jeito de se curvar. Durante o dia tu chega a sentir alguma dor?
A – Não, não, porque não é tão pesado.
P – Esses aí. Papel não é tão pesado...
A – Não, não. O mais pesado é[são] essas resmas aí, quando pede de cinquenta,
sessenta resmas. (Informação verbal.)

Percebe-se no discurso de R. como ele sai do campo do “eu”, como objeto de reflexão,
para um discurso genérico do “você”, referindo-se aos demais colegas que também exercem a
atividade. Dessa forma, nota-se a importância e a contradição presente nas dimensões pessoal
e transpessoal do ofício, que vão alimentar um possível desenvolvimento da atividade ao
colocar o sujeito como objeto de sua ação e reflexão sobre a atividade que realiza. Segundo as
teses de Vygotski sobre o papel da consciência no desenvolvimento humano: “[E]u me
conheço somente à medida que sou eu mesmo um outro para mim” (VYGOTSKI, 2003, p.
90), ao que Friedrich (2012 apud ERNICA, 2016, p. 56) acrescenta:
103

pode-se sustentar que a consciência, enquanto apropriação da linguagem do outro,


permite a criação de instrumentos psicológicos pelos quais o humano pode regular o
seu próprio comportamento e, portanto, tornar-se sujeito porque ele se toma como
objeto. Seríamos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto; é porque sou objeto do outro e
de mim mesmo que posso me tornar sujeito.

Ressalta-se mais uma vez o papel dos instrumentos dialógicos de análise do trabalho e
da possibilidade de converter-se um em outro de sua própria atividade para tornar esse sujeito
ativo no processo de transformação do trabalho. Esperamos ter conseguido atingi-lo ao
vislumbrar as modificações que favoreceram o desenvolvimento do poder de agir desses
trabalhadores ao estabelecer as controvérsias presentes na atividade de pares que
desenvolviam as mesmas atividades.
Assim, inferimos dos trechos destacados acima que, ainda cumprindo as mesmas
funções e tarefas, R. e A., ambos almoxarifes, elaboram algumas ações de forma diferente. Na
autoconfrontação cruzada, momento em que puderam ser confrontados, ambos frente à frente
puderam ver-se como um outro de sua atividade, apontou-se a controvérsia presente nas
filmagens, e chegaram à conclusão da melhor forma de desenvolver suas atividades: pegar o
material de cada vez, não confiar apenas na memória (para diminuir os erros na separação) e
cuidar da postura nos movimentos realizados (para não prejudicarem sua saúde física com o
passar dos anos, adquirindo inclusive problemas crônicos, como o que ocorreu com A. ao
desenvolver uma hérnia de disco).
Segundo Clot (2016, p. 93), a “tríade da atividade dirigida é um conflito. Para agir
sobre o objeto da atividade, não há como não se levar em conta, simultaneamente, os outros
que agem sobre o mesmo objeto. Esse conflito é a fonte da energia da atividade. A vida
humana tem sua origem nesse conflito”. A clínica deve, portanto, ter como foco o vivido
como meio de viver outra experiência, ou seja, o que no presente vamos fazer da ação passada
para modificar a ação futura.
A dimensão transpessoal do ofício corresponde ao gênero profissional, que no início
da investigação encontrava-se enfraquecido, uma vez que não havia uma coletivização das
atividades, das necessidades e das demandas, nem das decisões superiores. O grupo achava-se
fragmentado: cada um exercia sua função de forma isolada, nem mesmo entre os
trabalhadores com cargos similares havia diálogo e troca de experiências. Em alguns relatos
afirmam que, quando chegaram ao setor, aprenderam “tudo sozinhos”, deixando entrever a
ausência de uma cultura partilhada, ou seja, o contrário do que propõe a dimensão
transpessoal do ofício. Isso foi observado no relato de um dos carregadores, D., ao afirmar
que preferia fazer tudo sozinho para não ter problema. Ainda que a gestão tenha mudado há
104

pouco tempo, trazendo consigo proposta de maior participação, os terceirizados continuavam


não dando suas contribuições durante as reuniões encabeçadas pela chefia, G.
Desta forma, quando esse gênero revela-se enfraquecido, cada um acaba realizando
sua atividade de um jeito, isolado, não há trocas e intercâmbio das atividades e modos de
operar, não há uma cultura profissional partilhada pelo coletivo e não há apoio; acabam
errando sozinhos. Como aparece em muitos relatos ao afirmar que aprenderam tudo sozinhos
ou na “marra”, como no trecho abaixo:

P – Teve alguém que passou isso pra vocês ou?...


R – Não, foi[fomos] nós mesmos que aprendemos com os meninos mesmo na marra
[dá um soco na mão], porque antes não era a G., era o Le., aí o R., o R. ficava
cobrando muito a gente, cobrava demais, aí a gente tinha que aprender mesmo. Aí
aprendeu mesmo e tá aí desenrolando. Fizemos até curso também de almoxarife pra
ver se... pra entender um pouco mais sobre almoxarifado e do cargo de almoxarife,
sobre material, sobre produto, como não deixar o produto encostado na parede. Tem
a maneira de circular o material pra quando você for contar o material, pra facilitar
de você contar o material. Então a gente tem que arrudiar o local do material,
facilitar pra você caminhar ao redor do produto, [para] você ver e contar os
produtos.
P – Então na hora de organizar o material vocês levam isso em consideração?
R – Isso. Quando tiver o balanço. Tem que guardar no local, porque o almoxarifado
quem cuida somos nós. Pra não ter esse tipo de problema.
[...]
A – É, porque assim, ó, no começo, quando eu comecei como almoxarife, tinha uma
dificuldade pra caramba de material, de saber onde é que tinha nada. Acabava um
material ali e eu achava que não tinha mais. Aí, de repente, ia perguntar a ele [M.], e
pra quê? Tinha oito mil em tal canto. A gente procurava e tava a metade em outro
canto.
P – É separado então?
A – Tava separado, né? Aí, agora não, depois que a gente pegou a manha dali de
dentro, a gente mermo sabe onde é que coloca. É só perguntar que a gente diz onde é
que tá.
P – Vocês que organizam?
A – É, porque de primeiro aqui tinha uns almoxarife que era[m] [inaudível], que
ia[m] se aposentar, né? Aí eles colocavam as coisas num canto. Agora não. O tempo
agora tá passando, e a gente mermo sabe as coisas, onde é que tá[estão] as coisas
que a gente tá colocando. Quando pergunta, a gente já sabe onde é que tá.
(Informação verbal.)

Como se repara, esse coletivo encontrava-se enfraquecido, com seu poder de agir
limitado ou bloqueado, principalmente por questões estruturais e falta de autonomia exercida
pelo autoritarismo de um gestor.
No decorrer da intervenção houve muitas mudanças: o grupo fortaleceu-se,
encontrando o apoio necessário uns nos outros para dar conta dos imprevistos do real.
Trataremos dessas transformações e da revitalização do gênero profissional nas atividades dos
trabalhadores terceirizados no próximo tópico, ressaltando como o desenvolvimento do poder
105

de agir contribuiu para a saúde dos trabalhadores do setor e para a realização de um trabalho
bem feito.

Revitalização do gênero profissional: impedimentos ao poder de agir e construção da


saúde

Diante das situações apresentadas, ressaltamos que as diferenças entre o vínculo de


trabalho via terceirização e via concurso são bastante diversos e trazem uma série de
contradições aos trabalhadores em um mesmo grupo. Na literatura encontramos estudos
(SILVA; IGUTI; MONTEIRO, 2014; BERNARDO; VERDE; PINZÓN, 2013; PETEAN;
COSTA; RIBEIRO, 2014) que versam sobre as diferenças entre vínculos laborais efetivos e
terceirizados, demonstrando a vulnerabilidade a qual estes últimos estão submetidos, bem
como apresentando os agravos a sua saúde.
No início da intervenção, as sugestões dos trabalhadores para resolver os problemas
eram ignoradas pela chefia, M., que não admitia o conhecimento e a autonomia destes
profissionais. Apenas com a chegada da nova gestora, G., que se propôs a realizar um outro
modelo de gestão, eles passaram a ser ouvidos e assumiram algum protagonismo nas
transformações realizadas no setor. Percebemos uma série de impedimentos à ação desse
coletivo de trabalho, que encontra sustentação na forma do vínculo laboral precário, no
modelo de gestão autoritário e centralizador e na fragilidade dos coletivos de trabalho, cada
vez mais destituídos de força para lutar por seus direitos, pela sua autonomia e por melhorias
para o desenvolvimento de suas funções e para sua saúde. Assim, segundo Clot (2002, p. 2), a

saúde se degrada no ambiente de trabalho sempre que um coletivo profissional


torna-se uma coleção de indivíduos expostos ao isolamento. A saúde se degrada, na
verdade, quando deixa de haver a ação de civilização do real, a qual um coletivo
profissional deve proceder a cada vez que o trabalho, por seus imprevistos, põe esse
coletivo a descoberto. Dito de outra forma, a saúde se degrada quando a história do
gênero profissional se encontra suspensa. Cada um individualmente se encontra
então confrontado as más surpresas de uma organização do trabalho que o deixa
‘sem voz’ face ao real.

Ressaltamos a importância do fortalecimento desse coletivo, que ao perceber-se


enquanto grupo passou a partilhar as dúvidas, aprendizados e melhorias que visualizavam um
no trabalho do outro. O gênero profissional desse grupo pôde ser renovado através dos
processos de estilização que desenvolveram o ofício, de modo que essas transformações
tenderão a perdurar na história desse métier ao longo dos anos.
106

Após o encerramento da intervenção, foram realizadas reuniões para avaliação do


trabalho, por meio das quais se pôde obter o retorno do grupo de trabalhadores e dos gestores,
considerando alguns resultados. Um desses foi a mudança de uma das chefias do setor,
apresentada por eles como muito significativa e benéfica para todos, já que, com a nova
gestão, eles tinham maiores possibilidades de diálogo e não “sentiam a pressão” como a que
sofriam com a gestão anterior. Os processos de trabalho também passaram por melhorias que
facilitaram o fluxo de mercadorias e a tomada de decisão por parte dos trabalhadores,
aumentando sua autonomia e a possibilidade de ação frente aos problemas cotidianos.
Outras transformações constatadas ao longo do processo foram as mudanças
estruturais, como a reforma de dois novos cômodos para armazenamento adequado de
materiais, uma vez que antes muito era perdido devido à armazenagem. Chegaram ainda dois
novos funcionários para auxiliar na distribuição e no carregamento, melhorando a partilha das
tarefas e diminuindo a carga de trabalho sobre os demais. Também foi adquirido um novo
caminhão, que otimizou a logística das entregas: enquanto um caminhão “tá rodando fazendo
as entregas”, o outro está sendo carregado para sair no dia seguinte.
O clima organizacional e o trabalho em equipe também sofreram alterações positivas.
Passou-se a ter uma maior participação do coletivo nas decisões e um fortalecimento deste,
percebido através da ampliação do poder de ação dos trabalhadores. Melhorias essas que
podemos ilustrar através das falas abaixo:

R – Porque tem produto que tá lacrado, e a gente tem que abrir. Aí a gente abre. E
agora veio[vieram] uns sacos, sacolazinha, e eles tão colocando os itens pequenos,
que é[são] caneta, lápis, borracha, é... corretivo. Colocando tudo num saco e
amarrando e colocando no caixote pra, quando for transportar, não cair. Aí eu até
repassei essa ideia pro V. e pro A., né?
P – De usar esse saco?
R – Isso, porque esse saco não tava sendo utilizado, então era bom a gente usar pra
nós mesmos. E facilitar mais o trabalho. (Informação verbal.)

Em um outro trecho, C. relata sobre outra modificação na conferência dos materiais:

C – É. Era pra eles conferir[em], mas o certo mesmo é pra nós conferir[mos]. Sabe
por quê? Porque, se nós levar[mos] o material errado, quem vai culpar é a gente, que
nós que tamo entregando, né? Nós tem[os] que saber o que é que tamo levando, né?
Aí isso aí, também eu dou razão a eles também. (Informação verbal.)

A aquisição de equipamentos de proteção individual, tal como relatamos no primeiro


tópico dessa discussão, também é mudança de destaque.
107

Encontrou-se ainda um local adequado para a separação de cartuchos, que antes era
feita no chão, onde o terceirizado T. espalhava todos os produtos de acordo com as
requisições dos setores da universidade. Essa atividade era realizada em posições
desconfortáveis, com o trabalhador agachado no chão tendo que fazer movimentos de esticar
os braços e as pernas para conseguir encontrar uma postura adequada. Passou-se a utilizar
para o serviço uma mesa grande, constante da área externa do galpão.
A gestora e os próprios trabalhadores relataram que a participação deles estava cada
vez mais ativa quando surgia algum problema, pois logo vinham comunicá-la alguma dúvida
ou solicitação. Além disso, reuniões passaram a ocorrer com uma frequência mais sistemática
e de acordo com a necessidade da equipe, pois, caso sentissem que era necessário, eles
mesmos pediam para a chefe do setor agendar uma reunião com o objetivo de debater de
forma coletiva os problemas que estavam ocorrendo, tomando parte das discussões e
ativamente propondo mudanças e sugestões. Segundo a gestora, isso não acontecia antes da
realização do projeto, pois, sempre que eram convocados a falar ou dar sua opinião, ficavam
calados ou poucos se manifestavam.
No trecho a seguir vemos um elemento do gênero profissional partilhado entre os
trabalhadores como uma forma de realizar um trabalho bem feito. Como exemplificado no
trecho da autoconfrontação cruzada de S. e D., há ali a troca, a parceria e o compartilhamento
de uma mesma atividade entre dois carregadores, em que um deles, S., colocava, de acordo
com a requisição, a numeração em todos as partes da caixa para facilitar a visualização no
momento de retirar os pedidos a serem entregues nos setores, reconhecendo que as caixas
podem se misturar dentro do caminhão durante o transporte. O modo de agir foi repassado de
um trabalhador para outro:

S – Aí já vão botando o nome já. Vou botar o código, mas num vou botar dentro aí,
não, porque tá faltando aí. Sabonete líquido, tá faltando.
P – O senhor tá vendo como ele tá fazendo, seu D.? Tá colocando...
D – A numeração?
P – Isso.
D – Cada cantinho da caixa, tá botando.
P – Aí bota em todo canto, né?
S – É.
D – Tem que botar, botava só um, aí a negrada reclamava. Que diabo é isso? Pra que
tanto[a] pichação que tá fazendo?
S – Porque fica assim, né? Aqui é essa abazinha da caixa. Aí, se eu botar aqui
dentro, pode a gente pegar e fechar; quando fechar, ninguém vê o número. Aí bota
por dentro e por fora, porque, se a bichinha da caixa fechar aí...
D – Num bota só um, não, bota vários, sabe?
S – É. Aí, na hora que a gente bater a vista, a gente já vê logo que é aquele número.
P – O senhor concorda, seu D., de colocar assim vários?
108

D – Concordo, porque, se botar só uma vez, se botar a caixa assim, o lado dela assim
pra dentro do caminhão, num dá pra ver; se botar os dois lados, aí dá pra ver, dois
lados.
P – Aí, quando o senhor faz, como é que o senhor coloca?
D – Eu coloco do mesmo jeito. Foi[fui] eu que ensinei a ele. (Informação verbal.)

Tais transformações contribuíram para o desenvolvimento do poder de agir desses


trabalhadores, trazendo maior satisfação com o trabalho mesmo diante das adversidades, além
da busca por realizar um trabalho bem feito.
O desenvolvimento da saúde tal como preconizado por Clot e Canguilhem foi possível
ao desenvolver-se a ação desses sujeitos a partir do momento em que puderam participar de
forma ativa não só na execução, mas também na elaboração e no planejamento das atividades,
engajando-se assim nas transformações necessárias e, inclusive, na própria gestão do trabalho,
tal como relatado pela chefe do setor, G.: “Eles passaram a participar até mais da gestão do
almoxarifado, trazendo ideias, dando sugestões e que são aproveitadas pela gente”.
É importante considerar um modelo ampliado de saúde, não restrito à noção de bem-
estar, mas tendo em vista inclusive sua “conquista e preservação, expressando, assim, um
constante e incessante jogo de forças”, tal como afirmado por Osório (2014, p. 15).
A atividade nessa dimensão de produção de vida e saúde “sintetiza, atravessa e liga
tudo o que as disciplinas têm representado separadamente: o corpo e o espírito; o individual e
o coletivo; o fazer e os valores; o privado e o profissional, o imposto e o desejado, etc”
(OSÓRIO, 2014, p. 22).
Daí a relevância de, numa análise do trabalho, em levar-se em conta não somente
aquilo que foi executado, mas também o que deixou de ser feito, aquilo que poderia ter sido
feito, aquilo que se pensou em fazer, mas não se fez, inclusive aquilo que não se imaginou,
que não se previu, que não se pôde antecipar.
Retomamos aqui a concepção de saúde para o referencial que norteou a investigação,
de modo que compreendemos que saúde não se trata apenas de ausência de doença ou o
completo estado de bem-estar, pois na saúde também há sofrimento, angústia, dor, que serão o
motor para mobilizar o sujeito na tentativa de enfrentá-los e instituir novas normas, uma nova
organização. Para que possa sair dessa situação e construir sua saúde num outro plano de
existência, os erros e fracassos, portanto, também fazem parte dessa história.
109

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo desenvolveu-se no período de 2016 a 2017 na Universidade Federal do


Ceará. Apresentou-se como objetivo geral compreender como a atividade desses profissionais
repercute no poder de agir e, portanto, na saúde.
A Clínica da Atividade possui grande contribuição nos estudos da relação saúde-
trabalho. Ao inserir-se no campo das clínicas do trabalho, seus conceitos e métodos
contribuem para um debate que tem como foco a saúde numa perspectiva ampliada e
contextualizada com as necessidades e realidade dos profissionais estudados. Pensa-se a
relação trabalho, saúde, sofrimento, adoecimento com foco nas situações laborais e no
protagonismo dos trabalhadores.
A atividade laboral é um constante devir, que precisa ser (re)elaborado por aqueles que
a realizam, num movimento permanente de reinvenção do trabalho e de si.
O foco na atividade se faz necessário para não restringir os estudos apenas ao
observável, ao visível, ao que é possível captar e prever; serve também para abarcar os
imprevistos, o que não se pode antecipar, uma vez que só se dá no curso da ação. A atividade
é, assim, criação e recriação de meios de vida.
Deve-se atentar para o desafio ao abordar-se o poder de agir e a construção da saúde
dos trabalhadores, evitando incorrer no risco de afirmar a passividade deles diante das
adversidades, fragilidades do gênero e dificuldades, pois cairíamos no erro de reduzir nossas
análises e paralisar-nos diante dos bloqueios à ação.
Devemos dar visibilidade às ações (re)inventivas, inovadoras, transformadoras, tal
como buscamos fazer ao longo da nossa dissertação, ao não forcar apenas nos impedimentos à
ação dos sujeitos pesquisados, mas no que esses sujeitos têm feito com esses empecilhos,
como têm vencido essas barreiras na busca por construir novas normas de vida e, com isso,
produzir saúde.
Estudos (MANDARINI; ALVES; STICCA, 2016) que abordam a saúde dos
trabalhadores terceirizados apontam impactos da atividade em situações de estresse, doenças
relacionadas ao trabalho e ocupacionais, além de situações de sofrimento psíquico e ausência
de suporte à saúde e à segurança desses trabalhadores, demonstrando que os dados elaborados
corroboram os dados de outras pesquisas nacionais e internacionais.
Ressaltamos, assim a importância em fortalecer-se os coletivos laborais através de
métodos dialógicos que provoquem o debate, a controvérsia, o conflito e problematizem as
situações laborais junto aos trabalhadores, dando voz a eles para que possam propor as
110

transformações necessárias, ser protagonistas nesse processo, e assim as mudanças se deem de


forma contínua e permanente.
O desenvolvimento para a perspectiva aqui adotada não se restringe à noção evolutiva,
mas abrange uma dimensão da contradição — o desenvolvimento, esse campo extenso de
possíveis não realizados, o qual foi possível observar na atividade dos sujeitos do
almoxarifado, através das controvérsias, das contradições entre o prescrito e o realizado. Ao
buscar preencher essa lacuna entre ambos, desenvolveu-se assim o ofício, elevando-se a
atividade dos sujeitos pesquisados a um outro patamar antes não imaginado, e que só foi
possível a partir do estabelecimento da contradição, da controvérsia e do conflito que não são
negados e ocupam lugar central em nossas análises. Isso possibilitou que eles pudessem
visualizar outras formas de realização e desenvolvimento da atividade, ampliando assim seu
poder de ação e sua saúde.
Esse desenvolvimento foi possível através dos métodos dialógicos de intervenção,
como a autoconfrontação. As filmagens de autoconfrontação simples e/ou cruzada utilizadas
demonstraram seu potencial transformador ao funcionar como um mediador das discussões
sobre os contextos de trabalho, atingindo o objetivo a que se propôs ao ensejar ao trabalhador
ver-se como um outro de sua atividade, contrastando-se com seus pares, gerando
controvérsias e, assim, desenvolvendo a ação.
A partir das discussões e dados levantados, percebemos que os discursos de defesa e
apoio à terceirização não levam em consideração suas consequências para a classe
trabalhadora e para a qualidade dos serviços prestados, girando em torno, prioritariamente,
dos benefícios para o empresariado, uma vez que se percebem os malefícios dessa prática para
os trabalhadores no plano objetivo e subjetivo, porque há perda de direitos causando até
maiores riscos de adoecimento e sofrimento decorrentes da fragilidade presente nessa forma
de vínculo. Resta-nos demonstrar as reais condições a que esses profissionais estão sujeitos,
além de lutar pela limitação de novas formas de terceirização, inclusive das atividades-fim das
empresas, na busca por condições dignas de trabalho.
Os discursos a favor da terceirização e de práticas de flexibilização, modernização e
racionalização são afeitos ao ideário neoliberal e visam escamotear os seus reais objetivos e
consequências. Esperamos poder ter demonstrado que em nada ou quase nada favorecem a
saúde daqueles que trabalham.
Para finalizar, discorreremos sobre a participação ativa dos trabalhadores que
acarretou melhorias laborais no setor, beneficiou-lhes a saúde e contribuiu para o
111

desenvolvimento do poder de agir, especialmente para que fosse possível um trabalho bem
feito, envolto de sentido, significado e reconhecimento de si.
Onde se encontrava a atividade impedida, bloqueada pela ausência de autonomia, de
diálogo e de troca entre os pares, (re)ssignificaram-se algumas dificuldades e formas de
realizar a atividade — com a separação do material por tipo, a forma de coleta, etc. —,
minimizando assim os erros.
Na análise do trabalho tentamos reestabelecer seu movimento através da alimentação
dos diálogos profissionais no seio dos coletivos, revitalizando o gênero e ampliando-lhes o
raio de ação. Isso contribuiu para criar uma prática do debate no coletivo sobre os problemas
do cotidiano e para que fossem instituídas reuniões em que todos participavam e debatiam
coletivamente.
Em relação às condições de trabalho, das quais tratamos no primeiro tópico da
discussão dos resultados, conclui-se que a situação laboral dos terceirizados do Almoxarifado
Central da UFC é permeado por situações de vulnerabilidade, riscos à saúde e à segurança:
esses profissionais estão mais sujeitos a assédio, ameaça, desrespeito, preconceito,
autoritarismo, devido à instabilidade do vínculo; além disso atuam em condições inadequadas,
como ambiente empoeirado, mal iluminado e sem ventilação, com estrutura precária e antiga,
que não atende mais as necessidades da própria instituição, dada a expansão e a interiorização
dos últimos dez anos. Constata-se também carência de materiais em boas condições e uso de
equipamentos inapropriados.
Pudemos observar ainda, nas mudanças empreendidas no setor investigado, melhorias
tais como redefinição de atribuições e tarefas de cada trabalhador, otimização e fluidez nos
processos de trabalho, realização de reuniões sistemáticas com a participação e envolvimento
de todos os profissionais do setor, ouvindo-se as sugestões e questionando-se coletivamente
as problemáticas em pauta. Aprofundou-se a autonomia dos trabalhadores para propor
sugestões e tomar decisões sobre as atividades, o que contribuiu para o desenvolvimento do
poder de agir deles. Outra ação que favoreceu a saúde do coletivo foi a ampliação da equipe,
distribuindo-se melhor as atividades e reduzindo a carga de trabalho e a pressão sobre eles.
Houve, na estrutura física, reformas que melhoraram tanto a organização quanto o
armazenamento no galpão. Foram adquiridos novos materiais, como equipamentos de
proteção individual (prevenindo acidentes e doenças relacionadas ao carregamento de peso ou
à postura inadequada), bem como carrinhos para transporte, além de um outro caminhão para
o transporte dos materiais, dentre outros benefícios e melhorias alcançados.
112

Cabe salientar, entretanto, que nem todas as sugestões e solicitações dos trabalhadores
foram atendidas, uma vez que, dentre outros fatores, elas dependiam de orçamento anual, de
questões políticas internas e externas à instituição, além de alguns trâmites institucionais
burocráticos e, portanto, difíceis de serem efetivadas de forma mais imediata.
Dentre os desafios da pesquisa, destacamos os diferentes tempos presentes nessa
investigação, em que primeiro se realizou a intervenção e posteriormente o estudo quando não
mais em contato com aquele meio foi necessário estar sempre retomando aqueles dias através
dos arquivos-registros e das lembranças, rememorando as nuances que nos despertaram para
esse trabalho. Outro desafio constante era não impor aos trabalhadores e aos dados nossos
interesses de pesquisa, sobrepondo-os aos interesses daqueles.
Para além das diversas formas de precarização laboral, flexibilização dos vínculos,
perdas de direitos e impedimentos à ação dos trabalhadores, quando estes são convocados a
pensar sobre sua atividade, eles têm muitas respostas para dar, além de questionamentos e
problematizações que se fazem necessários para movimentar e descristalizar os modos
prefixados, preestabelecidos, prescritos de agir. Destacamos a importância de darmos voz aos
trabalhadores na tentativa de unir e fortalecer esses coletivos de trabalho, pois eles têm muito
a dizer sobre o que realizam, uma vez que são os detentores do conhecimento ali produzido
cotidianamente.
Ao eleger-se a atividade triplamente dirigida como unidade de análise, focamos nossa
reflexão na relação que os trabalhadores estabeleciam consigo (suas pré-ocupações e
motivações) e com o outro, com quem entravam em contato para realizar sua atividade, ou
seja, com seus pares, chefias, clientes externos e internos, além da relação com seu próprio
objeto de trabalho, os materiais que deveriam armazenar, selecionar, separar, carregar e
entregar nos diversos setores da universidade.
Percebemos que no tensionamento entre esses polos da atividade dava-se o
desenvolvimento do ofício cujos impedimentos e desafios tinham que vencer através da
mediação do gênero. Quando o gênero se encontra fortalecido, este e as relações interpessoais
de coleguismo cooperam para a percepção de que o trabalhador pode contar com o apoio do
coletivo diante dos imprevistos do real.
Acrescentamos ainda o trabalho como um meio de prazer, invenção, criatividade,
reconhecimento, potencialidade, não restrito apenas às noções de sofrimento, dor,
adoecimento. É preciso resgatar esse potencial transformador do e pelo trabalho para que
novas mudanças sejam empreendidas, inclusive nas formas de gestão e em sua própria
concepção, muitas vezes associado à noção de “tripalium”, instrumento de tortura.
113

Sabemos que isso se deve muito à forma como o trabalho se configura na


contemporaneidade diante dos constantes ataques que o trabalho e o trabalhador sofrem.
Novas formas de resistência e existência, porém, são necessárias para fazer-se possível uma
verdadeira mudança de valores e crenças nesse contexto marcado por competitividade,
individualismo, contradição, desumanização.
Pôde-se concluir que o mundo do trabalho, principalmente no atual cenário político,
econômico e social do Brasil, vem sofrendo ataques constantes através de (contra)reformas
que visam flexibilizar as normas trabalhistas e precarizar cada vez mais o trabalho, tendo a
terceirização como uma de suas bandeiras, através de discursos falaciosos de adequação ao
capital mundial que visa gerar emprego e lucro. Ressaltamos que o modelo de gestão da
administração pública, voltado para o gerencialismo afeito aos ditames do capital, marca
assim uma aliança estreita entre o Estado brasileiro e o capital global — especialmente na
nossa atual conjuntura política nacional e global, que pretende minar todas as formas de
resistência, que ataca a educação na sua base, bem como os direitos trabalhistas.
Sublinhamos, além do projeto de Lei 4.330, tantos outros que atacam a classe
trabalhadora e seus direitos, como a Reforma da Previdência, a mudança na definição do que
se caracteriza como trabalho escravo, dando margem para interpretações descontextualizadas
e colocando à mercê dessa prática milhares de pessoas, uma vez que limita como ela se
caracteriza, além de ocultar as empresas que a utilizam. Destaca-se ainda o pacote de
reformas trabalhistas, como as propostas de aumento da jornada de trabalho e do tempo dos
contratos temporários de 90 para 180 dias, para citar apenas algumas discussões legislativas
que querem flexibilizar as leis trabalhistas e acabar com a CLT sem o debate necessário junto
à sociedade e às centrais sindicais.
Conclui-se que as formas de vínculo laboral precário vulnerabilizam os trabalhadores.
Fazem-se necessários estudos que levem em consideração o sujeito que trabalha e suas
percepções e vivências, na tentativa de chamar a atenção para a defesa do trabalho e dos
trabalhadores contra os ataques por parte do capital e de seus defensores, cada vez mais
fortalecidos por discursos falaciosos propagadas pela mídia. A partir de análises a-históricas e
descontextualizadas, eles individualizam as problemáticas presentes no mundo do trabalho,
como se a relação entre trabalho-doença fosse da ordem do indivíduo e não tivesse relação
com o coletivo e o social que perpassa esse campo.
Na atividade de almoxarifes, carregadores, motoristas, administrativos cujo vínculo
laboral é terceirizado, vários empecilhos são impostos a sua ação, porém, através de um
modelo de gestão participativo, eles encontraram as possibilidades para colocarem-se e dar
114

voz ao seu trabalho e ao conhecimento cotidiano produzido, fortalecendo o coletivo


profissional que passou a reconhecer-se enquanto grupo (uma vez que antes cada um realizava
seu trabalho sem “prestar atenção no que o outro fazia”), a discutir e debater as dificuldades e
a sugerir mudanças para realização de um trabalho bem feito.
É este trabalho bem feito que possibilita a construção de saúde com a reinvenção de
novas normas. Foi possível observar o desenvolvimento do poder de agir e da saúde desses
trabalhadores ao inscrever no sujeito uma outra forma de agir, de lidar com situações que lhe
pareciam impossíveis de serem superadas ou “vencidas”, especialmente ao apoiar-se no
coletivo e nas discordâncias e aprendizados que são possíveis graças a ele.
115

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