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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
FORTALEZA
2016
PAMELLA BESERRA DE MELO
FORTALEZA
2016
PAMELLA BESERRA DE MELO
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Cássio Adriano Braz de Aquino (Orientador)
Universidade Federal do Ceará
________________________________________
Prof. Dr. Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
Universidade Federal do Ceará – Campus Sobral
___________________________________________
Prof.ª Dr.ª Vládia Jamile dos Santos Jucá
Universidade Federal da Bahia
À minha família: meus pais, Francisco e
Francisca; meus irmãos, Marco Antonio e
Jessica; e ao meu marido e companheiro,
Paulo Henrique.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus por ter guiado meus caminhos até a produção deste
texto, permitindo, com saúde e com o apoio dos que seguem, sua realização.
Ao meu orientador, professor Dr. Cássio Adriano Braz de Aquino, que me acolheu no
Núcleo de Psicologia do Trabalho, possibilitando um aprendizado imensurável como
acadêmica e como ser humano, pois, além do rigor teórico e metodológico, ele conduz
brilhantemente sua atividade com afinco e leveza.
Agradeço, ainda, ao professor e amigo Dr. Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro,
que acreditou na realização deste trabalho e acompanhou todos os passos desta caminhada,
desde o processo interventivo, como companheiro na Divisão de Apoio Psicossocial da UFC,
passando por seleção do mestrado e produção da dissertação até a defesa. Obrigada pelo
incentivo, pela paciência e pela parceria.
À professora Dr.ª Vládia Jamile dos Santos Jucá, que sempre se mostrou tão solícita e
receptiva ao diálogo e ao compartilhamento do saber, dedicando-se à leitura atenta e tecendo
ótimas considerações e sugestões para a melhoria do trabalho.
À minha família, principalmente aos meus pais, Francisco Beserra e Francisca de
Melo, que nunca desistiram, insistindo no caminho da educação, no esforço incansável de
formar seus filhos para a vida, sempre respeitando o próximo, ajudando aqueles que
precisassem e não medindo esforços para que fosse possível que os filhos da classe
trabalhadora chegassem ao ensino superior e à pós-graduação em universidades públicas, pois
acreditavam no potencial dos seus rebentos.
Aos meus irmãos, Marco Antonio e Jessica, que sempre foram motivos de inspiração e
superação. Pelo Marquinho, em quem me espelhei e a quem sempre busquei almejar os
mesmos feitos, apesar de nunca alcançar seu brilhantismo, disciplina e dedicação. Pela
Jessica, a quem sempre busquei ser exemplo e com quem aprendi a cuidar.
Ao meu companheiro e marido, Paulo Henrique Martins, que aguentou todas as
variações de humor e estresses diários, apoiando-me nos momentos mais difíceis dessa longa
caminhada.
Às minhas amigas e companheiras da Divisão de Apoio Psicossocial, Ana Paula,
Andreia Serafim, Fanny Abtibol, Cintia Farias, Richelly Barbosa, Isaac Vilanova, Shirley
Dias, Márcia Martins e Fatima Alves por toda compreensão, paciência e motivação diárias.
Aos estagiários e estagiárias do projeto Elaborar ao longo desses três anos, Cintia,
Gabriel, Evelin, Bianca, Ingrid, Valeria, Chico, Thuanny, Natanael, Maxwel, Neiara, Gisele,
Thais, os quais contribuíram grandemente para a realização deste trabalho e para a
possibilidade de desenvolvimento e continuidade do projeto, proporcionando aprendizado
contínuo.
Aos trabalhadores que participaram e contribuíram para realização da pesquisa.
Aos meus amigos e amigas do colégio e da faculdade, que estiveram ao meu lado nos
momentos difíceis e alegres, pois nem só de leituras e livros se faz o mestrado.
A todos os professores e servidores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UFC, por realizarem esse trabalho de formação, acreditando e lutando por uma universidade
pública de qualidade.
Aos colegas da turma 2015 do Mestrado em Psicologia, por todas as trocas, os
aprendizados, as críticas, as sugestões, as indicações de leituras, pela mobilização, pela luta e
pela crença pela/na educação, inclusive nas disciplinas extras pelos bares do Benfica.
Aos professores Cássio e Raquel e aos colegas de Doutorado, Mestrado e Graduação
do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA), por partilharem momentos de intenso
aprendizado e por fazer desse núcleo uma morada em nossos corações.
RESUMO
The research presented here analyzed how the work affects the health of outsourced
professionals working at the Federal University of Ceará (UFC). The research, based on the
Clinic of Activity and located in the field of Worker’s Health, is based on qualitative
epistemology and developed as a case study derived from intervention carried out in the UFC
Central Warehouse. All the material produced in the intervention was used for the
construction of the corpus pertaining to the case analyzed. Such a design corroborates the
theoretical perspective mentioned for which the intervention is first performed, and then the
research is started. It is acknowledged that each of these moments has different temporalities
and objects, keeping a relation of mutual independence. The intervention comprised three
stages: 1) formation of the analysis group, in which observations, interviews, documentary
analyzes and filming were performed; 2) simple and/or cross self-confrontations, during
which the workers were confronted with the audiovisual record of their activities; and 3)
return to the initial group. The research methodology came from the videography method. To
analyze the data, we used the constructive-interpretative content analysis of González Rey.
The triple-directed activity (for the object, for the subject and for the other) was adopted as
the unit of analysis. The relevance of the study is considered, since we are in a context marked
by setbacks in the world of work, where archaic practices of management and control of labor
and production coexist with “innovative” tendencies that weaken the working class,
representing a threat to work on its ontological character and to workers’ rights. It is intended
that the research contributes to the formulation of actions aimed at workers’ health and
development of their power to act, as well as undressing the vulnerabilities to which workers
with precarious employment ties are subjected. Thus, regarding the working conditions, it was
perceived that workers with outsourced links are more subject to situations of vulnerability,
and their work surrounding is permeated by situations of risk to their health and safety. It was
noted that these professionals were more susceptible to situations of harassment, threat,
disrespect, prejudice, authoritarianism due to the instability of the work bond; moreover they
underwent inadequate conditions for the development of their activities, such as dusty, poorly
lit and unventilated environment, with a precarious and old structure, as well as the lack of
materials in good conditions and/or the use of inappropriate ones. Thus, it was observed that
in the activity of the subjects studied several obstacles are imposed on their action, but
through a model of participatory management they found the possibilities of developing their
power to act and build health, strengthening the professional group that could recognize
themselves as a group when discussing and debating the difficulties and possible suggestions
for doing a job well done. It was also observed through the active participation of workers in
the changes undertaken in the researched sector improvements such as redefining the duties
and tasks of each worker, improvements in work processes to become more fluid and
dynamic, holding systematic meetings with the participation and involvement of all
professionals in the sector, listening to the suggestions and collectively questioning the issues
at hand.
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 13
2. OBJETIVOS ......................................................................................................................................... 21
2.1. OBJETIVO GERAL ............................................................................................................................ 21
2.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS ................................................................................................................. 21
3. VINCULANDO PRECARIZAÇÃO E TERCEIRIZAÇÃO NO CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO ..................... 22
3.1. Neoliberalismo e expansão da terceirização na Administração Pública brasileira ........................ 22
3.2. Terceirização: origem, definição, formas e tipos ........................................................................... 34
3.3. Terceirização e saúde ..................................................................................................................... 39
4. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO DA CLÍNICA DA ATIVIDADE ............................................. 47
4.1. Atividade real: entre a atividade realizada e o real da atividade................................................... 48
4.2. O poder de agir na construção da saúde ....................................................................................... 55
5. METODOLOGIA.................................................................................................................................. 65
5.1. Estudo de caso ............................................................................................................................... 65
5.2. Metodologia da intervenção .......................................................................................................... 67
5.2.1. A relação entre pesquisa e intervenção ................................................................................ 67
5.3. Lócus da investigação ..................................................................................................................... 69
5.4. Métodos de intervenção-análise do trabalho ................................................................................ 72
5.5. Análise dos dados construtivo-interpretativo: construção de sentidos partilhados ..................... 76
5.6. Metodologia da pesquisa ............................................................................................................... 77
6. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .......................................................................................................... 84
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 109
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 115
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1. INTRODUÇÃO
Considera-se a pertinência do estudo, uma vez que, na UFC, dados referentes ao ano
de 2012, fornecidos pelo Departamento de Atividades Gerais, mostram que a instituição
contava com 950 trabalhadores contratados por meio de empresas de terceirização num total
de 3.458 técnico-administrativos, sendo 1.348 com ensino fundamental e médio. A maior
parte daqueles profissionais desempenhava atividades de limpeza, conservação e jardinagem,
seguidas por vigilância e portaria. A investigação aqui apresentada pretende discutir a relação
entre a atividade e a saúde dos profissionais terceirizados que atuam na UFC a partir de um
estudo de caso derivado de intervenção efetivada no setor anteriormente citado.
Ademais, destaca-se que os estudos voltados para esse público são ainda incipientes,
como pode ser constatado pelas lacunas presentes na bibliografia e pela insuficiência de dados
quanto à utilização dessa forma de vínculo na administração pública, particularmente na UFC.
Ressaltamos assim a dificuldade em acessar os dados referentes a esses trabalhadores, bem
como a existência de uma disparidade em relação aos dados fornecidos quanto ao vínculo dos
trabalhadores que ingressaram via concurso público.
Partimos, assim, da ideia de que a terceirização representa uma ameaça aos direitos
dos trabalhadores, bem como ao trabalho como promotor de saúde e por meio do qual o
homem dá sentido à sua existência. Outrossim, apresenta-se como um impedimento ao
trabalho criativo, bem-feito, prazeroso, no qual o trabalhador se reconhece e é reconhecido,
tido como central na vida das pessoas.
Cabe ressaltar que o atual presidente da República, Michel Temer, sancionou no dia
31 de março de 2017 o PL 43330 tornando a terceirização irrestrita uma lei, o que trará efeitos
terríveis para a classe trabalhadora, reafirmando a urgência e a necessidade de debruçarmo-
nos sobre suas consequências para o mundo do trabalho e para os trabalhadores.
A proposta aqui desenvolvida situa-se, ainda, como aprofundamento da temática
analisada no trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia, onde se discutiu a
relação entre precarização no mundo laboral e doenças relacionadas ao trabalho. Foi possível
verificar que os novos modos de produção capitalista têm acarretado prejuízos à saúde dos
trabalhadores, com o aumento da incidência de transtornos mentais/comportamentais
relacionados ao trabalho no Brasil (BRASIL, 2001).
Foi possível observar a partir dos dados referentes aos adoecimentos dos servidores da
instituição que a maioria dos afastamentos se deve a doenças respiratórias, doenças
osteomusculares e transtornos psiquiátricos, sendo este responsável por 32% das licenças por
motivo de saúde. Porém, não se possui o registro dos dados dessa natureza sobre os
trabalhadores terceirizados (TELES; AIRES; ALENCAR, 2013).
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Desta forma, a fim de compreender como se dá esse processo junto aos trabalhadores
especificados acima, adotamos a perspectiva da Clínica da Atividade por considerarmos que,
além de uma produção do conhecimento, é necessária uma atuação voltada para a
transformação dos contextos laborais, que se encontram cada vez mais marcados por práticas
e modelos de gestão adoecedores. Mediante tais reflexões, é pertinente indagar: como o
trabalho repercute na saúde de sujeitos com vínculo terceirizado?
Para isso precisamos compreender como se dá a relação entre saúde e trabalho, que
tem desenvolvimento recente no Brasil, ganhando destaque em pesquisas e publicações a
partir da segunda metade dos anos 1980. Diversas perspectivas teóricas e metodológicas
abordam essa problemática relacionando-a à subjetividade e/ou aos riscos psicossociais,
dentre outros fatores. Existem vários desafios para o estudo dessa relação, especialmente no
que se refere ao rigor teórico e metodológico e à ausência de um debate entre as diversas
vertentes (LIMA, 2013).
Desta forma, considera-se que a presente investigação se insere no campo da Saúde do
Trabalhador (LACAZ, 2007), área interdisciplinar que, a partir de uma visão crítica, supera a
concepção biologicista sobre os agentes patológicos que provocam adoecimento no trabalho,
bem como reconhece o processo de saúde-doença em sua complexidade e historicidade.
Assim, torna-se necessário ultrapassar a perspectiva que visa somente a conhecer os dados
relativos ao ambiente de trabalho, como riscos químicos, físicos e biológicos.
Na análise do trabalho são considerados os processos laborais, bem como as condições
às quais os trabalhadores encontram-se submetidos (MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA,
1997). Toma-se, desta maneira, o trabalho como principal organizador da vida social,
admitindo-se os trabalhadores como detentores de conhecimento e saber sobre sua prática, de
modo que eles devem ser protagonistas nas transformações dos contextos laborais.
Consideramos relevante o estudo da temática aqui apresentada numa perspectiva
interdisciplinar, histórica e contextualizada com a realidade na qual estamos inseridos. Assim,
a Clínica da Atividade, como uma abordagem com foco na promoção da saúde do
trabalhador, apresenta os fundamentos para uma compreensão da relação entre subjetividade e
trabalho sob uma perspectiva dialética, que não privilegia apenas um dos polos como foco de
atenção ao centrar-se na tarefa ou na subjetividade, sobrepondo uma à outra.
A Clínica da Atividade, cujo principal teórico é Yves Clot, se insere em uma das
abordagens das clínicas do trabalho, dentre várias outras perspectivas que compõem esse
campo. Não se pode afirmar uma homogeneidade entre elas, havendo diversidade de bases
epistemológicas, teóricas e metodológicas. Como exemplo, podemos citar a Psicodinâmica do
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uma real transformação dos contextos de trabalho, além de não ater-se, exclusivamente, à
identificação de problemas e apresentação de soluções, em que assumiriam uma postura de
expertise ou de mera denúncia das condições às quais os trabalhadores estão submetidos sem
uma efetiva transformação da realidade (LIMA, 2013).
Desse modo, reconhecemos a crítica de Clot (2010) às abordagens neo-higienistas que
visam a um processo adaptacionista de ortopedia social e continuam a ser desenvolvidos nos
ambientes laborais mesmo após avanços e mudanças nas perspectivas de atuação nesse
campo.
A categoria trabalho se reveste de uma série de questionamentos relacionados a sua
centralidade na sociedade contemporânea, particularmente nos estudos da Psicologia do
Trabalho. Bendassolli (2011) analisou como a Psicologia se apropria desse conceito, os
significados que este assume e as consequências da forma de apropriação para a teoria e para
a pesquisa, a partir das perspectivas organizacional, social e clínica. Tais vias de apropriação
do trabalho pela Psicologia indicarão a forma de atuação do psicólogo, o significado que o
trabalho assume e, consequentemente, a visão de sujeito e o papel dele dentro das
organizações e fora delas. No caso desta investigação a opção é pela via clínica de
apropriação do trabalho ao privilegiarmos a Clínica da Atividade como base teórica e
epistemológica.
A Clínica da Atividade (CLOT, 2007; 2010) assume sua filiação aos estudos histórico-
culturais, a partir dos estudos de Vygotski, Leontiev e de Bakhtin, tomando o trabalho como
um conceito central. Clot (2007) propõe compreender a função psicológica do trabalho para o
desenvolvimento do sujeito, considerando-se a relação entre atividade e subjetividade dentro
de uma perspectiva histórica e dialética.
O trabalho, nessa perspectiva, se reveste de uma função psicológica responsável pela
transmissão do patrimônio historicamente acumulado no decurso da humanidade. Através da
conservação e transmissão dos objetos e regras, do uso dos instrumentos e dos signos, o
trabalho conserva seu caráter simbólico e genérico, mediador e mediado. Ao considerar o
trabalho um dos gêneros da atividade humana assim como o fez Vygotski, o autor francês
pondera que “ele condiciona a perenização de todos os outros ao assegurar ou não a
sobrevivência de cada membro da espécie” (CLOT, 2007, p. 90).
Desta forma, a Clínica da Atividade, segundo nosso entendimento, insere-se nessas
discussões ao debruçar-se sobre a relação indivíduo-trabalho para além das organizações,
considerando, portanto, as repercussões de sua atividade dentro e fora do trabalho. Segundo
Bendassolli (2011, p. 80), a via clínica de apropriação do trabalho baseia-se na valorização
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deste como “um meio de sustentação do sujeito psíquico”. É a partir dessa constituição
teórico-interventiva que estruturamos nosso texto.
No primeiro capítulo, traçamos uma discussão em torno do panorama contemporâneo
do trabalho, como este se encontra hoje e vem se desenvolvendo nos moldes das
transformações que ocorreram a partir da década de 1970, que marca a transição do modelo
taylorista/fordista para o modelo toyotista. Nessa reflexão são trazidas à tona o alinhamento
dessa forma de estruturação produtiva às propostas do neoliberalismo, de intensificação do
trabalho e flexibilização para elevação dos lucros e redução dos custos, que trouxeram
diversas consequências para a saúde física e psíquica dos trabalhadores.
Estes encontram-se cada vez mais destituídos de sua força coletiva e de sua identidade
como classe, bem como com uma representação cada vez mais enfraquecida diante da
fragmentação dos sindicatos. Vislumbra-se, a partir daí, um quadro mais amplo de
precarização do trabalho, que tem sido fortalecido pelas novas práticas do mercado de
trabalho, que incluem: destituição dos coletivos de trabalho, individualização dos processos
laborais, fragilidade dos vínculos, perda de direitos e garantias trabalhistas. É nesse cenário
que têm se tornado cada vez mais comuns as formas atípicas (tomado o modelo da sociedade
salarial), como a terceirização, que vem se apresentando de forma crescente sob as suas mais
diversificadas formas de contratação da mão de obra.
Em seguida, traça-se uma reflexão sobre a implantação do neoliberalismo no Brasil e
como, diante desse contexto, se delineia um quadro de expansão da terceirização na
administração pública federal, lócus de nossa investigação.
Assim, a fim de apresentar nuances do processo de precarização do trabalho vinculado
à terceirização, traremos estudos que analisam essa relação a partir do viés do trabalhador, de
sua percepção, de como eles têm vivenciado esse quadro de incerteza e insegurança que está
para além da ligação com o emprego, mas é entendido aqui como precarização do trabalho,
que abrange a forma como este se organiza e se funda em nossa sociedade da era pós-
industrial, caracterizada pelo trabalho imaterial, instável, e pela ameaça constante do
desemprego.
Em seguida, busca-se definir as diversas formas de terceirização no âmbito da
administração pública e como se caracterizam. Apresentam-se, ainda, as diversas visões sobre
esse fenômeno, que vão desde os aspectos “positivos”, vislumbrados através da redução dos
custos da produção, até os aspectos “negativos”, desvelados pelas consequências aos
trabalhadores submetidos à tal lógica perversa de grande rotatividade, menores salários,
maiores riscos de acidentes de trabalho, perdas de direitos e crescente número de
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adoecimentos. Questiona-se: a quem essa lógica serve e beneficia? Para a classe trabalhadora
pouca ou nenhuma melhora pode ser percebida com a expansão da terceirização. Assim, a
terceirização é tida como uma das formas de evidenciar-se o processo de precarização pelo
qual vem passando o mundo do trabalho.
Por último, faz-se uma discussão em torno da saúde do trabalhador nos moldes de
como o trabalho tem se desenvolvido atualmente. São enfocados os estudos e pesquisas
voltados para os trabalhadores terceirizados, especialmente aqueles que abordam os aspectos
relacionados à subjetividade dos profissionais implicados nessa forma de vínculo laboral na
esfera pública.
A partir da revisão bibliográfica realizada, percebeu-se que alguns estudos tratam essa
problemática a partir das diferenças entre trabalhadores terceirizados e trabalhadores
concursados nas instituições públicas, no sentido não apenas de fazer uma comparação entre
ambos, mas também de elucidar algumas questões relativas ao processo de precarização pelo
qual vem passando o mundo do trabalho e como esses trabalhadores terceirizados vivenciam
essa realidade.
Diante dessa constatação, esclarecemos que, na intervenção realizada, participaram
tanto os trabalhadores concursados quanto os trabalhadores terceirizados, porém, a partir das
discussões observadas na bibliografia, verificou-se que há uma lacuna nos estudos voltados à
saúde dos trabalhadores terceirizados, uma vez que a maioria aborda essa questão sob o viés
comparativo ou a partir de fatores objetivos como questões salariais, de condições de trabalho,
legais (legislação da Consolidação das Leis do Trabalho em contraponto ao Regime Jurídico
Único - Lei 8.112/90), estabilidade da forma de vínculo, garantias e benefícios. São poucas
pesquisas que abordam a terceirização sob o viés do trabalhador, como o realizado por
Martins (2012). Os estudos que versam sobre as diferenças entre vínculos laborais efetivos e
terceirizados demonstram a vulnerabilidade a que estes trabalhadores estão submetidos, bem
como apresentam os agravos à saúde deles diante de sua forma de vínculo (SILVA; IGUTI;
MONTEIRO, 2014; BERNARDO; VERDE; PINZÓN, 2013; PETEAN; COSTA; RIBEIRO,
2014).
Percebe-se ainda que grande parte das pesquisas focam estudos nas categorias de
limpeza, manutenção e vigilância, porém encontramos trabalhos realizados com profissionais
da teleinformática, eletricistas, dentre outras categorias, demonstrando assim a capilaridade e
extensão desse modelo para outros setores.
Chegamos a esses dados através de pesquisa bibliográfica realizada nas principais
bases de dados do Brasil, como Scielo, BVS-PSi, Banco de teses e dissertações da CAPES, a
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2. OBJETIVOS
Analisar como a atividade repercute na saúde dos profissionais com vínculo terceirizado que
atuam na UFC.
Diante desse quadro surgem as bases para implantação do toyotismo, uma vez que os
capitalistas perceberam que poderiam explorar muito mais que a força de trabalho física dos
trabalhadores, mas também sua imaginação, a capacidade organizativa, de cooperação e sua
inteligência, o que foi possível por meio dos avanços tecnológicos conseguidos com a
eletrônica e a informatização dos sistemas, a favor de seus interesses e camuflados por um
ideário de autonomia. A subjetividade passa assim a ser capturada de tal forma que as
contradições desse modo de produção aliada às reformulações do fordismo-taylorismo
apreendem cada vez mais a vida do trabalhador dentro e fora do trabalho (ALVES, 2005).
Dentre as características do toyotismo podemos citar ainda a produção em massa de
mercadorias, homogeneizada e verticalizada, bem como a racionalização do processo
produtivo que visa à diminuição de desperdícios com redução do tempo de produção e
aumento do ritmo de trabalho, diferindo do taylorismo, uma vez que o controle deste se dava
no corpo e o controle daquele se dá de forma mais intensa sobre a subjetividade. Assim, há
uma intensificação das formas de exploração do capital, visto que, utilizando-se do ideário da
empresa enxuta, cabe ao trabalhador acumular tarefas que antes eram realizadas por um
número bem maior de funcionários, além de exigir uma maior capacitação em nome da tão
anunciada polivalência (ANTUNES, 2001).
Entre as demais características do toyotismo temos transformações do processo
produtivo caracterizadas por diferentes maneiras de acumulação flexível, como downsizing,
terceirização, subcontratação, formas de gestão organizacional marcadas pelo avanço
tecnológico. Aos trabalhadores passou-se a exigir maior participação e envolvimento no
trabalho; mais que a mera execução requerem-se competências e conhecimentos de
planejamento, gestão e uma qualificação cada vez maior. Ele passa a ser tido como
multifuncional, polivalente, participativo, colaborador. Dentre essas e outras falácias do
discurso propagado pelos defensores do toyotismo destacamos ainda a Qualidade Total,
caracterizada, dentre outras, pelo controle da qualidade dos produtos, quando na verdade o
que se observa é a obsolescência destes, com tempo de duração cada vez mais reduzido, a fim
de manter a constante reposição dos produtos (ANTUNES, 2007).
No plano ideológico essas características tiveram papel central no envolvimento do
trabalhador com o novo modo de produção. Para usarmos as palavras de Antunes (2007, p.
48), esse engajamento desenvolveu-se “por meio do culto de um subjetivismo e de um ideário
fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de
solidariedade e de atuação coletiva e social”, como marcas de uma contradição que requer
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Antunes (2007), Druck (2011), entre outros, destacam ainda aspectos de continuidade
e descontinuidade em relação ao taylorismo-fordismo, transição esta que mantém os
fundamentos do padrão capitalista e modifica ou renova apenas as formas de acumulação e
exploração da força de trabalho e da natureza. Temos como exemplo disso o “just in time”,
baseado no melhor aproveitamento do tempo, elemento da intensificação do trabalho dessa
fase, marcada pela racionalização da mão de obra e do tempo, principalmente.
Além de diminuir o desperdício de movimentos desnecessários, o toyotismo reduz o
número de trabalhadores, restringindo o tempo e controlando a quantidade de ausências no
posto de trabalho. A rigidez se observa inclusive na contagem das pausas para ir ao banheiro
ou beber água e também no controle da produção de uns sobre o trabalho dos outros. Não há,
entretanto, entre os colegas, interação, limitada ao mínimo possível, quando não proibida para
evitar distração.
O toyotismo caracteriza-se ainda por produção de acordo com a demanda,
flexibilidade, estoques mínimos, estrutura horizontalizada, círculos de controle de qualidade,
empresa enxuta e plantas produtivas reduzidas através de subcontratações, ao que Castillo
(1999) denominou de liofilização organizativa, processo identificado por eliminação,
transferência, terceirização e enxugamento de unidades produtivas.
Intensifica-se a exploração sobre o trabalhador com a multiplicidade de tarefas, pelo
manejo de diversas máquinas, pelo ritmo intenso de trabalho com a racionalização dos
movimentos e do tempo, pela velocidade da produção. Coriat (1992) e Antunes (2007)
afirmam que este quadro de intensificação associado à apropriação do saber intelectual do
trabalhador com a introdução da informatização e da automatização da produção trouxeram
benefícios para o capital, porém o que perceberemos é que para o trabalhador pouco ou nada
de benéfico adveio com essa nova forma de produção, como discutiremos a partir dos dados
de estudos que serão apresentados no tópico três deste capítulo.
O avanço tecnológico derivado da revolução industrial, tido como uma promessa de
melhores condições de trabalho, de otimização/racionalização da produção, levando a uma
melhor distribuição do tempo necessário para o trabalho, com consequente redução das
jornadas, teve seu projeto e objetivos deturpados pelo capital. Ao invés de trazer melhores
condições e benefícios para a realização das atividades, impôs ao trabalhador um controle
rígido — com as novas formas de gerenciamento via tecnologia informacional — através das
câmeras, sistemas de vídeo, controle do ponto, das frequências e ausências nos postos de
trabalho, intensificação dos ritmos e aumento da carga laboral, home office, trabalhador
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conectado e disponível todo tempo para o trabalho, aprisionando e invadindo cada vez mais o
tempo de não trabalho.
Coadunamos com Antunes (2014) quando afirma a tese de que tais modificações
dizem respeito a uma reorganização do capital, sem questionar-se as bases, a fim de retomar
patamares de acumulação e de dominação global. Assim a intenção não é fazer
transformações profundas no sistema, mas adaptá-lo à nova realidade.
A descentralização produtiva e as novas formas de gestão do trabalho, identificadas
por trabalho em equipe, células produtivas, times de trabalho, grupos semiautônomos,
envolvimento que quer ouvir e contar com a opinião e conhecimento do trabalhador, fazem
parte de uma participação manipulada e que mantém as características da alienação e do
trabalho estranhado. O trabalhador não se apropria efetivamente do produto de trabalho nem
participa do processo produtivo como um todo, mas apenas dentro daquilo que o capital
permite, pois ele não pode “mexer” ou questionar as bases do processo produtivo, mas
contribuir para o aumento da produção, redução dos gastos ou melhoria dos produtos e
serviços.
Essas consequências são reflexo das mudanças oriundas da própria alteração da
concepção de trabalho; anteriormente entendido por relações estáveis, diferencia-se agora pela
flexibilidade, mutabilidade, remuneração atrelada à produção e não mais ao salário contratado
no momento da admissão. O funcionário não se vincula mais a um posto e a atividades de
trabalho, mas na polivalência percorre todo o processo produtivo, deslocando-se por
diferentes funções, com diferentes graus de intensidade e complexidade, de acordo com a
demanda. Outra modificação empreendida foram os horários flexíveis: se preciso até aos
finais de semana, leva-se trabalho para casa ou para outros espaços que não se restringem
mais ao lócus tradicional da empresa — trata-se do home office —, em que não se separa
mais tempo de trabalho e de não trabalho (DAL ROSSO, 2008).
Estamos diante de um contexto laboral que “se diz/se denomina” avançado, porém
utiliza práticas existentes desde o período pré-capitalista numa conjuntura identificada pelo
capitalismo predatório, que aprofunda as desigualdades e explora ao máximo a força de
trabalho e os recursos naturais. Avançamos no nível de conhecimento dos recursos
tecnológicos do maquinário, porém o desenvolvimento da sociedade não se dirigiu rumo à
emancipação humana. Pelo contrário, o refinamento tecnológico aprisionou, fragilizou,
fragmentou, precarizou a “classe que vive do trabalho”, como afirma Antunes (2007).
Cattani (2007, p. 9), referindo-se ao exemplo da intensificação imposta aos
trabalhadores, destaca: “Hoje, considerado um período de tempo relativamente curto, o
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trabalho é mais intenso, o ritmo e a velocidade são maiores, a cobrança por resultados é mais
forte, idem a exigência de polivalência, versatilidade e flexibilidade”.
Assim, o custo humano para a produção em detrimento da saúde dos trabalhadores é
percebido por maior desgaste físico, intelectual e emocional; aumento de casos de estresse, de
acidentes de trabalho e das lesões por esforço repetitivo; pelo adoecimento que afeta não só o
trabalhador, mas também o conjunto da sociedade que arcará com o ônus da “perda” precoce
da mão de obra; e das demais consequências que surgem em cascata diante dessa avalanche
de malefícios ao trabalhador (DAL ROSSO, 2008).
Perdem-se os direitos e garantias sociais do emprego estável, a folga remunerada, as
férias, o salário fixo, a jornada semanal regulada em lei, a aposentadoria, o descanso semanal,
o seguro desemprego e toda uma gama de benefícios que passam a ser entendidos como luxo
ou custo. As discussões do custo presente nas formas de proteção foram avaliadas pelo
empresariado brasileiro como “Custo Brasil”, o que para eles se dava como rigidez das
relações de trabalho e proteção social, que precisariam ser reformuladas para possibilitar um
aumento dos empregos. Vemos que a promessa de geração de emprego não se efetivou,
porém, diante do quadro político, a legislação trabalhista vem sofrendo um desmonte com a
aprovação de projetos que atacam diretamente a classe trabalhadora, como o da terceirização
irrestrita, a reforma trabalhista e a da previdência.
Dadas essas contradições e particularidades, é necessário que se leve em consideração
como esse processo se desenvolveu em cada país de forma particular, uma vez que ele está
atrelado às condições econômicas, sociais e políticas. É igualmente importante considerar-se
como cada país se insere na divisão internacional do trabalho, que determina formas
diferentes de vivenciar-se esse momento. Como, por exemplo, no Japão, país de origem do
toyotismo, os trabalhadores tinham garantido o emprego vitalício, que não foi mantido
quando da ocidentalização desse fenômeno. Dentre outras particularidades, pretendemos
estabelecer o quadro de como se deu a introdução e o desenvolvimento do toyotismo em
nosso país, particularmente considerando as mudanças empreendidas na administração
pública federal.
A forma que assumirá no Brasil é bastante diversa daquela com que se apresenta no
Japão ou nos países da Europa, por exemplo. Nossa economia não estava estruturada de forma
semelhante aos países do denominado primeiro mundo (economia avançada x emergente),
com forte tradição industrial. Desse modo, Antunes (2007, p. 57) chama a atenção que, para
estudar-se esse fenômeno, é necessário percebê-lo como “um processo diferenciado,
30
A ideologia neoliberal e seu discurso propagado e defendido pela mídia, com seus
ideais de avanço, progresso e liberdade, camuflam as bases sobre as quais se pauta seu
desenvolvimento, quais sejam: flexibilização, desigualdade, exploração, lucro máximo para
poucos, maleabilidade num abandono das questões sociais em favor das econômicas e de
mazelas e sofrimento que atinge grande parcela da população num visível retorno aos modos
mais arcaicos e numa clara regressão de direitos e conquistas sociais.
Pretende-se apresentar a seguir perspectivas que analisam como o neoliberalismo
trouxe mudanças para a esfera do trabalho, contribuindo para a forma como este se delineia
atualmente, a partir da reflexão em torno da terceirização.
Diante desse panorama, discorremos sobre o que entendemos por precarização,
relacionando-a à terceirização, e como estas se expandiram no nosso país. Entendemos
precarização do trabalho, que Druck (2011, p. 41) denomina ainda de Precarização Social do
Trabalho, como sendo:
Alguns desses fatores foram observados na intervenção realizada. A gestão pelo medo
apareceu, por exemplo, nas ameaças constantes de devolver o trabalhador terceirizado para a
empresa ou de advertência, além do assédio moral que sofriam por parte de gestores e pares
que se utilizavam de nomes pejorativos para se referir a eles ou ao trabalho que realizavam,
dentre outros fatores que exporemos e discutiremos adiante.
Ainda de acordo com Druck (2011, p. 49), essa
Assim, de acordo com Jorge (2011), dentre as várias definições para o que ele nomeia
“técnica” da terceirização do trabalho, de um lado vê-se uma lógica voltada para eficiência,
especialização, produtividade, redução de custos, competitividade, parceria, foco,
flexibilidade, agilidade, qualidade, como se todos se beneficiassem desse modelo, o que,
segundo o autor, pode ser percebido através da falácia do ganha-ganha, em que se propaga
que ganham mercado, empresário, trabalhador, fornecedor, cliente, empregados, etc.
Por outro lado, o que se constata é que a terceirização tem como foco a redução de
custos através da redução de gastos com a força de trabalho; e assim um empregado
terceirizado terá que realizar as mesmas atividades que antes eram realizadas por mais
funcionários, que tinham mais garantias, direitos e melhores condições de trabalho. Daí
notam-se os antagonismos por trás dessas definições. Na realidade o que ocorre é o ganha-
perde, em que ganha o empresariado e perde o trabalhador. O que veremos mais à frente, a
partir de dados de pesquisas realizadas nos últimos vinte anos, é que essa qualidade de
vínculo tem levado a redução de salários, perda de benefícios e direitos, aumento da carga de
trabalho, elevação de riscos e acidentes de trabalho, piora nas condições de trabalho e
enfraquecimento/desmonte dos sindicatos (JORGE, 2011).
Ressaltamos que a terceirização não é uma novidade no mundo do trabalho. Pereira et
al. (2015) afirmam sua utilização antes mesmo da Revolução Industrial pelos artesãos que
subcontratavam mão de obra. Porém, diante das crises cíclicas do capital e da redução das
taxas de lucro, em meados dos anos 1970 quando se observou um declínio da lucratividade,
foi necessário pensar artifícios para a retomada do crescimento. Ali ocorre a intensificação da
terceirização como mecanismo para aumentar os lucros e exercer um maior controle sobre o
trabalhador através da maior flexibilização e desregulamentação dos direitos trabalhistas e das
condições de trabalho, ao lado de outras ações como o trabalho informal, o trabalho por tempo
determinado, etc.
37
quantia vultuosa de dinheiro público. Essa modalidade de contrato possui um caráter ainda
mais perverso, pois, além do uso do termo “cooperativa” para designar uma atividade que de
cooperação não tem quase nada, além ainda de ser uma falácia/ilusão de autogestão e de um
trabalho solidário e coletivo, também é uma prática pautada em legislação específica — no
artigo 442 da CLT, alterado pela Lei 8.949/94, que destitui o cooperado de qualquer garantia.
Temos ainda o trabalho temporário e a empreitada ou subempreitada como modos de
terceirização que são regulados respectivamente pela Lei 6.019, de 3 de janeiro de 1974, e
pelo Código Civil, nos artigos 610 a 6261. Elas visam à descentralização e à externalização da
produção, possibilitando que a empresa mantenha o foco nas atividades-fim, transferindo a
terceiros as responsabilidades diante de riscos, incertezas, gestão e controle do trabalho.
Dentre as definições de terceirização encontradas nas diversas referências
bibliográficas, pudemos observar, como pontua Druck e Franco (s/d), que não há um
consenso em torno dela, porém encontram-se alguns elementos comuns, como a noção de
repasse e transferência de responsabilidade, de especialização na atividade-fim e de
flexibilização.
Podemos observar, apoiados em Druck e Franco (s/d), que a terceirização vem
ganhando força no conjunto das relações precárias de trabalho, especialmente devido as suas
características que, além das já apresentadas — redução da mão de obra, demissões em larga
escala, aumento do desemprego e externalização da produção —, ressalta ainda um
aprofundamento dessas características através da:
A relação entre trabalho e saúde é estudada sob diferentes perspectivas, dentre as quais
sob o viés da teoria do estresse, da Psicodinâmica do Trabalho, da Epidemiologia/Diagnóstica
e das abordagens que relacionam subjetividade e trabalho numa perspectiva histórico-cultural
de base marxista (JAQUECS, 2003).
Tal campo de pesquisa e atuação vem crescendo e, ao longo da história, sofreu
algumas alterações com a inserção de outras áreas e campos do conhecimento. Dentre as
modificações destacamos a importância dada à história do sujeito no contexto laboral e o nexo
com as atividades desempenhadas, que anteriormente não era abordado ou explorado quando
o trabalhador era acometido com algum adoecimento.
Tinha-se um conhecimento menor ainda quando a questão se tratava de um
adoecimento ou sofrimento psíquico, devido aos fatores envolvidos nos aspectos subjetivos
serem de difícil apreensão através dos métodos convencionalmente utilizados “por estarem
relacionadas às representações e aos sentidos que o trabalhador lhes empresta”, como afirma
Borsoi (2007).
Quando se trata dos estudos voltados à temática em relação ao trabalhador
terceirizado, torna-se ainda mais difícil encontrar bibliografia ou pesquisas que façam essa
relação devido, dentre outros fatores, à pouca ou nenhuma assistência que possuem dentro das
empresas, além da dificuldade em se estabelecer o nexo causal diante da grande rotatividade
que apresentam, bem como pela ausência de registros do uso desse vínculo laboral que é
subnotificada.
Desta forma, pretendemos abordar as consequências da terceirização para a saúde
desses trabalhadores. Destacamos, apoiados em Druck (1999), algumas das repercussões da
terceirização: “como segmentação, fragmentação, desorganização, informalização;
fragilização dos sindicatos, com redução das bases de representação dos trabalhadores devido
sua segmentação” (DRUCK, 1999, p. 128-129). Essas mudanças se sustentam através dos
discursos que afirmam a necessidade de cooperação e de livre iniciativa da organização dos
trabalhadores, cujo objetivo principal é garantir a qualidade final do produto ou dos serviços
40
prestados. Porém, várias são as contradições por trás dos discursos de desenvolvimento e
modernização que desconsideram as consequências desse processo para as condições de vida,
saúde e trabalho dessas pessoas (SILVA, 2009).
Assim, diante desse cenário, uma pesquisa realizada em empresas do ABC Paulista
constatou que os motivos que justificaram a terceirização foram redução de custos (75%),
maior eficiência (50%) e especialização (33%); mas em 92% dos casos a terceirização refletiu
em redução dos salários, em 58% das empresas houve perda de direitos trabalhistas e em 42%
constataram-se prejuízos referentes às condições de segurança e saúde no trabalho (ABREU;
SORJ, 1994).
Estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(DIEESE) (1993), realizado com 40 empresas de diversos ramos instaladas na região Sudeste
do país, revelou que, em 67% das subcontratadas, os níveis salariais eram inferiores aos da
empresa contratante. Em 72,5% dos casos, os benefícios sociais eram menores que os
praticados pelas contratantes. Em 32% das empresas, a terceirização estava associada à
ausência de equipamentos de proteção individual, menor segurança e maior insalubridade.
Estudo recente da Secretaria Nacional de Relações de Trabalho e do Dieese (2014)
demonstra que trabalhadores terceirizados recebem remuneração média inferior à dos
trabalhadores com vínculo efetivo (24,7%), a jornada semana de trabalho em horas é maior
(7,5%), o tempo no emprego em anos é menor (53,5%), aumentando assim a rotatividade e a
dificuldade em se estabelecer o nexo causal em casos de adoecimento decorrentes do trabalho,
além de serem vítimas de um maior número de acidentes laborais (47%).
O estudo indica ainda que os trabalhadores terceirizados estão mais sujeitos a
trabalhos análogos à escravidão até aproximadamente seis vezes mais que os profissionais
contratados. As ações sindicais na Justiça do Trabalho em torno da terceirização totalizam
37%, com disputas referentes à extensão dos benefícios recebidos pelos efetivos aos
terceirizados, à responsabilidade solidária ou subsidiária da contratante pelos compromissos
não honrados pelas empresas terceiras, acesso às informações dos contratos de terceirização,
dentre outras garantias sindicais, as quais os trabalhadores terceirizados, pela fragilidade do
vínculo, muitas vezes não têm capacidade de mobilização coletiva, articulação e luta (SRT;
DIEESE, 2014).
Lima, Barros e Aquino (2012) ressaltam os desdobramentos da intensificação do
trabalho diante da precarização, apontando para um esgotamento físico e psíquico do
trabalhador. Isso pode ser percebido pelo aumento na incidência de estresse, acidentes no
trabalho, doenças ocupacionais expressas em modos de sofrimento como depressão,
41
saúde dos trabalhadores em geral, mas especialmente àqueles que se encontram em situação
de precariedade e instabilidade dos vínculos visto que estão mais suscetíveis ao medo
constante diante da ameaça frequente do desemprego.
Dessa forma, esses trabalhadores tornam-se cada vez mais passivos a situações de
violência e desamparo frente ao emprego digno. Assim, entendemos que eles tomam parte
nesse quadro, corroborando dados da pesquisa e de nossa vivência. Tais empregados são
vítimas frequentes de assédio moral e ameaças relacionadas à perda do emprego, apontando
para um ambiente perverso onde o objetivo não é mais o de um emprego digno, mas de
manter algum, seja lá sob que condições forem, como forma de garantir a subsistência e a
sobrevivência.
Por meio dos dados ressaltamos que esse vínculo apresenta uma ameaça aos empregos
e direitos dos trabalhadores, pois a regulamentação da terceirização acabou com os limites
antes existentes para a terceirização de mão de obra, de modo que avançará nas contratações
de terceirizados e ameaçará os trabalhadores efetivos e os direitos trabalhistas conquistados
pela classe trabalhadora, os quais serão ainda mais vulnerabilizados.
Estudos perspectivados na visão crítica da realidade, especialmente aqueles que
tragam as percepções e vivências dos terceirizados, são necessários a fim de apontar as reais
consequências deste cenário que vem despontando no mercado brasileiro, principalmente
desvelando o véu ideológico por trás das artimanhas do capital.
Neste sentido, em entrevista concedida ao periódico “Esquerda Diário”, Antunes
(2015) afirma que o PL, ao invés de regulamentar 12 milhões de trabalhadores, vai
desregulamentar, vulnerabilizar, precarizar 30 milhões. Segundo o autor, a falácia de que, ao
regulamentar-se o trabalho terceirizado, as empresas poderão concentrar-se em seu negócio
principal melhorando a qualidade dos serviços e produtos é usada para escamotear as reais
intenções do referido projeto, que são reduzir custos, acabar com direitos trabalhistas,
fragmentar e desorganizar a classe trabalhadora.
Druck (2011, p. 49) corrobora essa ideia e ressalta: “Se a terceirização é mais uma
‘fatalidade’ dos tempos modernos, contra a qual não se pode lutar, então a única alternativa é
colocar limites a essa prática, a fim de minorar os seus efeitos sobre os trabalhadores”. Assim,
entendemos que a terceirização deve ser objeto de crítica e restrição, e não de defesa e solução
para as novas demandas do mundo do trabalho.
A partir dos resultados dessas pesquisas podemos constatar que a terceirização está
alinhada às finalidades do capital ao objetivar redução de custos, pessoal, direitos sociais e
trabalhistas, ademais de maior especialização e produtividade. Nesse “avançar” das
43
É o sentimento de não estar “em casa” no trabalho, de não poder se fiar em suas
rotinas profissionais, em suas redes, nos saberes e habilidades acumulados graças à
experiência ou transmitidos pelos mais antigos; é o sentimento de não dominar seu
trabalho e precisar esforçar-se permanentemente para adaptar-se, cumprir os
objetivos fixados, não se arriscar fisicamente ou moralmente (no caso de interações
com usuários ou clientes). É o sentimento de não ter a quem recorrer em caso de
problemas graves no trabalho, nem aos superiores hierárquicos (cada vez mais raros
e cada vez menos disponíveis) nem aos coletivos de trabalho, que se esgarçaram
com a individualização sistemática da gestão dos assalariados e concorrências entre
eles. É o sentimento de isolamento e abandono. É também a perda da autoestima,
que está ligada ao sentimento de não dominar totalmente o trabalho, de não estar à
altura, de fazer um trabalho ruim, de não estar seguro de assumir seu posto [...]
(LINHART, 2014, p. 46).
Por encontrar-se em franca difusão pelo país, consideramos importante explanar sobre
como nasceu e se desenvolveu essa abordagem teórico-metodológica, uma vez que tal
explicação ajudará na compreensão da proposta aqui apresentada.
A Clínica da Atividade nasce de uma tradição dos estudos franceses de Psicopatologia
do Trabalho, a partir de um longo percurso de pesquisas voltadas para a análise dos contextos
de trabalho, traçados por autores como Le Guillant, na Psicopatologia Social, e François
Tosquelles, com a Psicoterapia Institucional. O primeiro “estabeleceu as bases para uma
clínica dos distúrbios mentais produzidos na relação do sujeito com sua atividade” (LIMA,
2011, p. 233); considerando a atividade do sujeito no processo de adoecimento, não se
detendo apenas a fatores e condições externas, estabelece que o conflito se encontra numa
atividade real, sendo a doença produzida entre os conflitos do real e da atividade subjetiva do
sujeito.
Como declara Lima (2011), ao afirmar a ação do sujeito sobre o processo de
adoecimento a partir de sua experiência, ressalta a contribuição de Le Guillant para a
perspectiva da abordagem clínica de Clot sobre os transtornos mentais:
Assim, em consonância com Le Guillant, ele vai tentar alcançar as fontes dos
conflitos, entendendo sempre a doença mental como uma criação mórbida e a clínica
como uma ação com essa criação mórbida, contra essa criação mórbida para dar aos
conflitos suas saídas. (LIMA, 2011, p. 233).
do papel social institucional ao afirmar que “uma vida social que não oferece uma
conflituosidade externa suficiente dissipa a energia psíquica do sujeito” (Clot, 2009, p. 154).
Além dessas duas influências advindas da tradição francófona a que Clot se alinha, a
Clínica da Atividade se fundamenta na Psicologia Histórico-Cultural de Vygotski e Leontiev,
na linguística de Bakhtin, na concepção de saúde de Canguilhem, nas contribuições de
Oddone1 sobre os coletivos de trabalho, além de estabelecer interlocuções com frequência
com outros teóricos como Wallon, Wisner, cujas contribuições serão abordadas no decorrer
do capítulo.
Antes de determo-nos, porém, na Clínica da Atividade, é importante ressaltar que há,
sob a denominação das clínicas do trabalho, todas herdeiras da ergonomia francesa, algumas
abordagens que compõem o modelo da via de apropriação clínica do trabalho por parte da
Psicologia, como define Bendassolli (2011). São elas a Psicodinâmica do Trabalho, a
Psicossociologia, a Ergologia, além da própria Clínica da Atividade. Apesar de apresentarem
pontos em comum, destacamos que elas possuem perspectivas teóricas, epistemológicas,
metodológicas diversas, não se constituindo assim uma posição homogênea no estudo da
relação subjetividade e atividade. Em alguns momentos, ao adotar-se a Clínica da Atividade,
poderemos lançar recursos explicativos de uma das demais abordagens, mas respeitando seu
território epistemológico, já que, apesar de estarem sob um mesmo campo de estudos e de
produção do conhecimento, apresentam visões de homem, mundo, trabalho, subjetividade,
saúde e doença diversos.
1
Ivar Oddone propôs a Comunidade Científica Ampliada como maneira de participação mais profunda dos
trabalhadores na análise do trabalho, especialmente na avaliação dos riscos e na proposição de soluções,
colaborando para pensar coletivamente o tema numa metodologia dialógica, da “instrução ao sósia”, como
técnica de coanálise.
49
Desta forma, Clot (2007) critica as concepções que opõem subjetividade e atividade e
proporá uma solução dialética para o estudo dessa relação. A partir das proposições de
Leontiev, Clot (2007, p. 121) afirma que:
[é] por isso também que um objetivo prescrito pode ver-se subvertido e um signo ou
um instrumento, reciclados [...] o sentido da ação de modo algum está contido em
potência nas palavras, nos conceitos, nos instrumentos ou nas regras: “O sentido é
gerado não pela significação, mas pela vida (1984, p. 311-312)”, ou seja, pela série
de relações e conflitos entre objetivos e motivações.
A atividade aqui é entendida não só como objeto da tarefa, mas também como aquela
que se volta para a atividade dos outros nos quais se baseia para realizá-la e também para as
suas próprias atividades. Assim, Clot (2007) critica as teorias que propõem uma adaptação
dos sujeitos ao prescrito, que se propõem apenas a identificar que não há uma sobreposição
entre prescrito e real de um lado, devido a fatores cognitivos de limites do trabalhador quanto
as suas competências e conhecimentos, e de outro pela questão de uma oposição do
trabalhador à lógica de funcionamento ante a organização e suas prescrições.
O prescrito, enquanto aquilo que está determinado pela organização nos manuais, nos
modos de proceder, nos processos de trabalho, será vivenciado de diferentes formas pelos
trabalhadores, uma vez que eles possuem uma série de pré-ocupações que extrapolam sua
relação direta com o trabalho e adentram outras dimensões da vida, como aquelas de caráter
pessoal (SANTOS, 2006).
Pré-ocupações as quais os trabalhadores também recorrem para fazer o que tem que
ser feito, como explicitado no exemplo utilizado por Clot (2010) dos condutores de trem, que
para manterem-se na velocidade imposta ou automática — sistema de controle de velocidade
criado para períodos de intenso fluxo — acabam se ocupando para não ultrapassar a
velocidade determinada.
A capacidade de atribuir novos usos, sentidos para os seus instrumentos/ferramentas
de trabalho, caracteriza-se na Clínica da Atividade como catacrese, referindo-se, portanto, à
capacidade do sujeito de ser inventivo, criativo nas atividades de trabalho, o que seria como
“puxar a brasa para sua sardinha”, reafirmando a necessidade do sujeito de não ser passivo, de
alimentar a vitalidade do ofício (CLOT, 2010).
Os novos usos, deslocamentos e subversões realizados na atividade ante a função dos
seus instrumentos se dá por meio de uma reconcepção ou re-criação, renovação das técnicas,
do próprio prescrito, daquilo que antes se encontrava cristalizado e automatizado. O sujeito
não permanece passivo diante dos conflitos e impedimentos que enfrenta. Essa polifonia
funcional dos instrumentos possibilita o desenvolvimento psicológico real. Este não decorre
pela via da simples interiorização dos funcionamentos externos, dos signos e significações
dadas pelo outro, mas pela recriação, apropriação, transformação que o sujeito realiza na sua
atividade.
Desta forma é que se transforma a atividade “aparentemente passiva e submissa em
atividade inventiva e criativa. A esse propósito, podemos falar em retóricas da ação: elas
deslocam os objetos da sua função oficial ou, de preferência, desenvolvem essas funções para
realizar, apesar de tudo, a atividade inobservável do sujeito” (CLOT, 2010, p. 107).
51
o trabalho é portanto ainda uma atividade dirigida: atividade dirigida pelo sujeito,
para o objeto e para a atividade dos outros, com a mediação do gênero. Por esse
motivo, pode-se dizer que a atividade dirigida é a unidade mais ínfima do
intercâmbio social que realiza o trabalho […]. Propomos assim fazer do conceito de
atividade dirigida aquele que designa, em psicologia do trabalho, a unidade
elementar de análise. (CLOT, 2007, p. 97).
Clot (2010, p. 190) pontua ainda que a atividade dirigida, como unidade base da
análise psicológica do trabalho, é uma “atividade voltada, simultaneamente, para seu objeto e
para a atividade dos outros que incide sobre esse objeto, uma atividade que intervém,
igualmente, nas relações entre eles e que pode, aliás, ser capaz de desenvolvê-las”.
Ao estabelecer a unidade de análise, Clot (2007) chama a atenção ainda para o cuidado
necessário com o recorte que é estabelecido, porque tal escolha deve proceder-se de forma
rigorosa metodológica e teoricamente, a fim de não reduzir, fragmentar, decompor o sujeito,
como muitas vezes acontece na Psicologia quando se separam mecanicamente as funções
52
psíquicas e em seguida se lhes justapõem, como se assim fosse possível conservar as suas
propriedades (CLOT, 2007).
Vygotski alerta para a necessidade de abarcá-las em sua totalidade e em seu
movimento, de forma dialética tal como na fórmula da água:
Assim, Clot (2007) enfatiza que ao optar pela atividade triplamente dirigida — a si
mesmo, à atividade e ao outro — como unidade de análise opta-se pelo conflito como ponto
de partida da pesquisa, já que é nesta ou através desta que se acessam os vários
desenvolvimentos possíveis na atividade dos sujeitos para além das possibilidades realizadas.
E mais uma vez recorre a Vygotski (1991, p. 41): “diremos que o desenvolvimento alcançado
pela atividade do sujeito que trabalha é um sistema de ações que venceram”.
A unidade de análise pode ser tomada como uma célula viva, uma vez que “[e]la é o
berço de uma ação vinculada aos conflitos que a fizeram nascer, onde se cruzam mecanismos
de agudização e inibição de atividades. Pode-se dizer em resumo que a ação do sujeito tem
sua fonte nas atividades contrariadas: as dos outros e as suas” (CLOT, 2007, p. 101).
Logo a atividade precisa de um sujeito para existir, cuja mediação se dá através do
gênero profissional (CLOT, 2007). Este é responsável por revitalizar a ação junto com o estilo
profissional. Ambas são duas das quatro dimensões do ofício para a Clínica da Atividade, que
ainda conta com a dimensão impessoal e a interpessoal. A primeira se refere às normas e
procedimentos institucionais, ao prescrito pela organização do trabalho e às condições
impostas à execução da atividade, como horários a cumprir, formas de manuseio dos
instrumentos, atribuições e funções de cada setor e funcionário, etc. Já a última corresponde
aos diálogos e interações que se estabelecem com outros profissionais para que as ações
possam desenvolver-se.
A dimensão transpessoal corresponde ao gênero profissional e representa as regras
implícitas construídas e partilhadas pelo coletivo de trabalho as quais também orientam a ação
dos sujeitos, uma espécie de prescrito informal, pois não o encontramos impresso em manuais
e documentos. Já na dimensão pessoal, o estilo profissional, o trabalhador reinventa e recria o
gênero profissional, imprimindo sua marca a este, contribuindo para renová-lo, e por meio do
qual ele se reconhece naquilo que faz. Desta forma é que se concebe a “[a]tividade real como
53
uma atividade que se realiza entre duas memórias: uma, pessoal; e a outra, transpessoal”
(CLOT, 2010, p. 129). Assim o estilo pode confirmar os desenvolvimentos possíveis e/ou em
curso tanto a nível da consciência quanto da experiência (CLOT, 2010).
Conforme Santos (2006, p. 37) afirma referindo-se ao gênero:
um corpo intermediário entre os sujeitos, um intercalar social situado entre eles por
um lado e entre eles e o objeto do trabalho, por outro lado. De facto, um gênero une
sempre entre eles, aqueles que participam numa mesma situação, como co-autores
que conhecem, compreendem e avaliam uma situação da mesma maneira.
O gênero funciona assim como uma espécie de pertença social, além de um recurso
para a ação, impedindo que o trabalhador permaneça só ou erre sozinho; ele funciona como
uma fonte de suporte, sustentação e apoio mútuo entre os trabalhadores de um coletivo.
Nesta concepção a atividade de um trabalhador reverbera na atividade dos demais e
assim sucessivamente. Mesmo que não haja um outro, presente, o sujeito não está só. Através
da sua ideia de social, Clot nos traz a noção de que os trabalhadores não precisam estar juntos
fisicamente para haver uma interação; nesse intercâmbio do prescrito informal, através do
gênero uns se fazem presentes na atividade dos outros. Nas palavras de Clot (2007, p. 97): “A
atividade de trabalho é assim dirigida aos outros depois de ter sido destinatária da atividade
destes e antes de o ser de novo”.
O trabalho é, portanto, não só constitutivo da forma de organização social, mas
também da vida subjetiva, atrelado às representações materiais e simbólicas, forma de o
homem ser e existir no mundo. Desta decorre sua função psicológica, como meio de
sustentação psíquica do sujeito na sua atividade, funcionando como recurso da ação.
Para Clot (2007), “o trabalho não é uma atividade entre outras”. Ele busca defini-lo a
partir da sua função psicológica, como a “atividade mais humana que existe” (BRUNER,
1996, p. 201), a partir da qual nos reconhecemos, somos reconhecidos e nos realizamos como
54
ser social. Atividade é reconhecida como uma relação entre o real, o realizado e a ação do
sujeito sobre si, sobre o objeto e sobre o outro, que pressupõe desenvolvimentos possíveis e
impossíveis.
A função psicológica do trabalho alinha-se à concepção de trabalho proposta por Marx
(2004) e apropriada por Vygotski de que é através do trabalho que o homem fixa e transmite o
patrimônio historicamente acumulado no decurso da humanidade.
Desta forma é que, ao analisar-se a atividade de um trabalhador, deve-se recorrer aos
demais trabalhadores e suas respectivas atividades, bem como às inter-relações e intercâmbios
mantidos e partilhados ou não por eles através do gênero profissional.
O conflito aparece nesta teoria como uma tensão entre os três polos da atividade do
sujeito, que, para manter-se criativo, precisa sair ou libertar-se dos outros dois a fim de
permanecer sujeito da ação (CLOT, 2007). Para ele, agir é:
Diante dessas discussões espera-se ter situado o leitor quanto aos aspectos da atividade
triplamente dirigida, unidade de análise na Clínica da Atividade, e das quatro dimensões do
ofício, bem como do papel central do gênero e dos coletivos na manutenção e preservação da
função psicológica do trabalho, a partir das quais traremos, no próximo tópico, outras
55
Canguilhem nos traz uma contribuição para o estudo das ciências da vida ao
problematizar a concepção de saúde dentro de um contexto de questionamento das práticas
totalizantes e discriminatórias. Suas ideias colaboraram, assim, para reformulações em torno
desse conceito dentro das ciências humanas e da saúde, culminando com as proposições da
Reforma Psiquiátrica e os questionamentos ao instituído pela prática clínica de outrora.
Propõe, assim, uma reflexão sobre saúde que perpassa questões éticas, sociais e
epistemológicas.
Em sua crítica aos modelos de matriz biológico-fisiológica, Canguilhem estabelecerá
um corte epistemológico entre as concepções dualistas, entre normal-patológico e entre
normatização-normalização.
Diversas são as concepções de saúde e doença existentes ao longo da história,
perpassadas por aspectos políticos, ideológicos e econômicos referentes a cada contexto social
em que se inserem — desde a percepção mágico-religiosa, em que saúde e doença eram
considerados providencias divinas, quando esta última era tida como pecado ou maldição; e
passando pelo pensamento hipocrático da Grécia antiga, em que saúde-doença se relacionam
ao equilíbrio dos fluidos corporais, estando, portanto, associadas a condições internas do
indivíduo, que poderia ser influenciado ou não pelo meio onde se vivia. Na Idade Média,
mantém-se a concepção religiosa de doença como pecado e de que a cura seria obtida através
da fé (SCLIAR, 2007).
56
O referencial aqui adotado concebe saúde a partir de uma perspectiva que considera
aspectos sociais, afetivos, econômicos, objetivos e subjetivos que interferem na produção de
vida/saúde dos indivíduos.
Adotaremos saúde como potência de ação sobre o mundo, como capacidade de
inventar novas normas, principalmente nas circunstâncias em que trabalhadores se encontram,
em que se destaca a constante negação de suas singularidades, necessidades e potencialidades,
57
está ligada a um sentido existencial, ligado à história do homem no seu meio, uma
vez que a vida é também instituição do seu próprio meio e não só submissão a ele,
sendo este permanentemente construído a partir das escolhas que fazemos,
individual e coletivamente. Diante da variação do lugar onde vive, o homem recria
normas para nele viver, transformando-o e aí reside a ideia de saúde como não
somente a vida no silêncio dos órgãos, [mas] é também a vida na discrição das
relações sociais.
A saúde não se opõe à doença, do mesmo modo que não se identifica com ela, mas
procura apropriar-se dela. A saúde, diferentemente da normalidade defensiva, é a
transformação da doença em novo meio de existir, a metamorfose de uma
experiência vivida em um meio de viver outras experiências e, finalmente, a
transfiguração de um paradoxo experimentado em história possível, de uma vivência
em um meio de agir.
59
A doença, desta forma, não significa apenas limitação física, biológica ou fisiológica,
mas, como afirma Brandão (2012, p. 81):
que o que “caracteriza a saúde é a possibilidade de superar a norma que define o normal
habitual e de instituir novas normas em situações novas” (CANGUILHEM, 1984, p. 130).
Para a Clínica da Atividade deve-se ir além da dicotomia ou dos dualismos presentes
na análise do trabalho que se centra nas lacunas entre o prescrito e o real. Mais do que
compreender a diferença entre tarefa e atividade, organização do trabalho e atividade do
sujeito, prescrito e real, deve-se compreender que “existe, entre a organização do trabalho e o
próprio sujeito, um trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais, uma
recriação da organização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo” (CLOT, 2010,
p. 119).
Assim é que Clot introduzirá o conceito de gênero profissional como um gênero, uma
cultura profissional partilhada pelo coletivo de trabalho, que se constitui como um terceiro
elemento importante ao debruçar-se sobre as lacunas entre prescrito e real, uma vez que este
gênero dirá respeito ao prescrito informal, social, construído e partilhado pelo coletivo; é
definido como “o gênero profissional, isto é, as “obrigações” compartilhadas pelos que
trabalham para conseguir trabalhar, frequentemente, apesar de todos os obstáculos e, às vezes,
apesar da organização do trabalho” (CLOT, 2010, p. 119).
Sem os recursos disponibilizados pelo gênero, muitas vezes o sujeito encontra-se
“sozinho”, sem um norte para guiar suas ações, especialmente nas situações não abrangidas
pelo prescrito formal. Quando o gênero profissional encontra-se enfraquecido ou ausente, o
sujeito tem o seu poder de ação diminuído, em particular diante das respostas que poderia dar
caso encontrasse suporte no coletivo profissional, inclusive nas situações não previstas.
O gênero guarda uma memória transpessoal. A dimensão transpessoal é uma das que
pretendemos discutir na atividade dos trabalhadores terceirizados do Almoxarifado Central
por considerar que, confrontados com as peculiaridades do seu contrato de trabalho e da alta
rotatividade presente nessa forma de vínculo laboral, nos indagamos como esse gênero é
transmitido de um trabalhador ao outro. Como ele se encontra nesse coletivo? Quais
possibilidades de renovação e fortalecimento desse gênero nessa conjuntura?
Algumas falas e situações que traremos na discussão dos resultados nos fazem crer
que, no estudo de caso empreendido, o gênero desse coletivo se encontrava enfraquecido, uma
vez que em muitas situações os trabalhadores não sabiam a quem recorrer e enunciavam que
aprenderam fazendo, não tendo havido gênero, figura ou pessoa de referência que lhes
transmitisse/partilhasse ou construísse as regras implícitas ou modos de proceder de certas
situações inusitadas, das surpresas do real, para as quais não tinham o conhecimento e
ferramentas/instrumentos necessários para lidar ou responder de forma satisfatória.
63
Com efeito, a oposição entre tarefa prescrita e atividade real deve, em nosso
entender, ser igualmente aplicada ao trabalho. Porque as formas prescritivas que os
trabalhadores se impõem para poder agir são, ao mesmo tempo, restrições e
recursos. Se fosse necessário criar, a cada vez na ação, cada uma das nossas
atividades, o trabalho seria impossível. O gênero da atividade assenta, portanto, em
um princípio de economia da ação.
O gênero é tão pertinente ao contexto profissional que muitas vezes não precisa estar
dito, verbalizado, porque os trabalhadores partilham entre si as regras informais sem
necessidade de enunciá-las. Como afirma Clot (2010, p. 122),
5. METODOLOGIA
O caso a ser explorado nesta pesquisa refere-se, como já mencionado, à atividade dos
trabalhadores terceirizados do Almoxarifado Central da UFC, com base em uma intervenção
realizada nesse setor no ano de 2015, e ao desenvolvimento do poder de agir desses
profissionais tendo em vista a construção da saúde.
Apoiando-nos nas reflexões de Osório (2010, p. 44), ressaltamos:
Se a atividade não pode ser pré-descrita, a utilidade que poderá ter uma análise que
produza como resultado principal uma descrição será sempre limitada. O trabalho,
entendido como enigma, se desvela no seu processo de criação e recriação. Faz-se
necessário, então, transformá-lo para compreendê-lo.
“permitem a redução de conflitos no trabalho, ou seja, eles visam e têm resultados práticos,
como postulado por Vygotski (1997, 2004). Apenas após a intervenção, os dados obtidos são
transformados em pesquisa”. Ela reforça ainda que não se trata de métodos de coleta de
dados.
Enquanto a intervenção nasce da demanda do trabalhador para solucionar conflitos do
contexto de trabalho, a pesquisa nasce de uma inquietação, um questionamento do
pesquisador, e possui objetivo científico, por isso essas duas etapas guardam momentos e
temporalidades distintas.
Em outras abordagens metodológicas de pesquisa-intervenção, esses momentos
desenvolvem-se simultaneamente, a partir dos quais pesquisador-interventor precisa estar
atento ao lugar que ocupa e em constante questionamento quanto a seu papel ao “conduzir” a
intervenção, com suas questões de pesquisa pré-formuladas, bem como em relação aos seus a
prioris, hipóteses, sendo necessário distanciar-se ou operar um deslocamento deste lugar para
abrir-se ao novo, ao imprevisível, às possibilidades que se colocam no ato de pesquisar.
Clot propõe que a intervenção nos contextos de trabalho ultrapasse a mera prática da
expertise. Como afirma Lima (2011, p. 245),
Clot (2010, p. 117) acrescenta: “Mudar uma situação não pode constituir o objeto da
intervenção de uma expertise ‘externa’”. Daí é que a Clínica da Atividade se propõe a
implementar dispositivos metodológicos que sejam utilizados pelos trabalhadores em
momentos posteriores/futuros, após o encerramento da intervenção e a saída da equipe de
analistas do trabalho. Espera-se que o trabalho se torne alvo de pensamento para os
trabalhadores ao longo da sua atividade e isto só poderá ser alcançado com estes assumindo o
protagonismo nas análises do trabalho (CLOT, 2010).
Assim, na Clínica da Atividade o psicólogo deve sair da posição de especialista,
daquele que afirmará sobre o certo e o errado. Questiona-se o “lugar do especialista como
porta-voz da ciência e da vontade de verdade” (MIRANDA, 2014, p. 83), como aquele que
não atuará como um expert que traçará planos de ações, diagnósticos, seguido de soluções
69
externas, mas age mais como um facilitador, um mediador dos processos envolvidos no
debate sobre as demandas do coletivo de trabalho.
O desenvolvimento que se “propõe”, corroborando a proposta vygotskiana, diz
respeito a uma noção de abrir-se às possibilidades, aos outros possíveis e inimagináveis do
real da atividade.
Ao apontar a centralidade do papel do trabalhador como protagonista na análise da
atividade tal perspectiva desloca o papel de expertise e centralidade do clínico do trabalho.
Este sai do lugar de especialista e detentor do conhecimento para um lugar do não saber,
ficando a condução do processo a cargo dos trabalhadores, que são implicados e responsáveis
pelo decorrer das análises. O pesquisador torna-se responsável por mediar tais processos e
facilitar as interlocuções, agindo sobre as controvérsias, que passam desapercebidas nos
diálogos dos profissionais.
O papel do psicólogo consiste, portanto, em:
concentrar-se nos movimentos que os trabalhadores fazem para criar e recriar seu
trabalho. [...] partem do princípio de que a temática saúde e trabalho, como objeto de
investigação científica, tem uma especificidade que não pode ser tomada com
posturas de exterritorialidade (Schwartz, 2004) no que diz respeito à relação do
pesquisador com a análise desse objeto. As questões dos mundos do trabalho não
podem estar baseadas apenas em quadros analíticos construídos externamente.
(BARROS; TEIXEIRA, 2009, p. 82).
Por suas atribuições podemos perceber o quanto ambos estão imbricados e como suas
atividades se inter-relacionam, o que torna difícil e até improdutivo operar-se uma separação
ou segmentação, prejudicando mais ainda a compreensão2.
Os dois setores contam com uma equipe composta por seis servidores técnico-
administrativos e dez trabalhadores terceirizados, dentre os quais estão carregadores,
almoxarifes, assistentes em administração e motoristas.
A demanda para intervenção do projeto Elaborar foi recebida em 2014 e partiu da
diretora do Departamento de Administração e da chefia do Almoxarifado Central. Nas
discussões iniciais com estas chefias, foi apresentada a proposta de trabalho condizente com
aquilo que propõe a Clínica da Atividade, que admite três etapas da análise da atividade
(CLOT, 2010).
Realizou-se a atuação conjunta entre os dois setores, pois, de acordo com a demanda
inicial, havia dificuldades quanto aos processos de trabalho. Além de ambos funcionarem
num mesmo espaço físico — que contava com uma sala onde se desenvolviam as atividades
administrativas e um galpão onde se armazenavam os produtos de consumo imediato da
instituição —, também desenrolavam-se as atividades operacionais do setor.
A partir das primeiras idas a campo, fizemos análise documental e entrevistas com os
gestores com o intuito de identificar elementos do prescrito pela organização do trabalho,
como normas, atribuições, funções e regras oficiais, horários, divisão de tarefas, condições de
2
Para maior clareza das informações vide o organograma, no qual constam os setores vinculados e aspectos
hierárquicos; os fluxos de trabalho vide “Manual de gestão de materiais” e “Manual de aquisição de materiais e
serviços”, disponibilizados no site da PRADM (http://www.pradm.ufc.br/manuais-de-procedimentos) e
manualizados em 2015 por meio de uma consultoria externa.
72
instrumentos analíticos que possam avaliar sua influência”. Disso decorre a importância de
atentar-se para os cuidados e aspectos éticos já mencionados.
Mesmo com essas dificuldades cabe ressaltar as potencialidades do uso de vídeos, que
consiste em auxiliar no processo de análise e coanálise do trabalho, uma vez que, como afirma
Rosemberg et al., (2010, p. 32),
[a] partir deles podemos disparar um diálogo e construir discursos sobre o trabalho,
dando visibilidade à atividade. O vídeo assume, então, um papel determinante,
porque viabiliza pensar sobre os elementos visíveis da atividade de trabalho, os
quais podem servir para compreender outros elementos de que ela se reveste e que
escapam à simples observação, por exemplo, o sentido das atividades impedidas ou
contrariadas na vida dos trabalhadores.
Deve-se atentar para o fato de que o uso de meios imagéticos como dispositivos
metodológicos não deve ser tomado como estratégia de representação da realidade, mas sim
como parte de um conjunto de ações para investigar a experiência, o vivido, que só pode dar-
se com a participação ativa dos sujeitos da pesquisa.
Rosemberg et al. (2010, p. 38) afirma que a investigação deve dar “primazia à
expressão dos sentidos que a própria atividade cria e recria incessantemente, quando ela não
se submete em demasia a um ponto de vista heterônomo. Consideramos que a investigação é
tão inventada por seu objeto, quanto ela o inventa”.
A imagem como dimensão fluente, movente, transitória, possibilita ao sujeito sair de si
e ver-se como outro de sua própria atividade, acessando os devires, os outros possíveis da
atividade, a parte imersa do iceberg. Segundo Amador (2010, p.59), “[t]oma-se a imagem
enquanto aquilo que, situada no meio do caminho entre a coisa e a representação que temos
dela, é mais do que uma representação e menos do que uma coisa”.
O plano das imagens e a fala sobre elas serão abordados, portanto, nesse movimento,
nesse “entre” a atividade realizada e o real da atividade, sendo a autoconfrontação um meio de
viver nova experiência a partir do vivido. As imagens selecionadas e as gravações realizadas
tentam percorrer esses devires e “captar” esse real da atividade que não é perceptível aos
olhos.
A fim de desenvolver o poder de agir e provocar transformações no contexto de
trabalho, foi preciso aplicação de métodos dialógicos de intervenção os quais explicitamos
acima. Para compreender essas transformações, foi necessário empreender uma pesquisa com
base nas filmagens produzidas nas autoconfrontações. Desta forma selecionamos a
videografia, “estudo da atividade através de filmagens em vídeo”, segundo Meira (1994, p. ?),
para compreender como, ao colocar a ação em movimento, se desenvolveu o poder de agir
desses trabalhadores.
Empreendemos uma pesquisa minuciosa e detalhada a partir das filmagens produzidas,
o que, de acordo com Meira (1994, p. ?), “permite uma interpretação robusta e consistente dos
mecanismos psicológicos subjacentes à atividade humana”. Ao pôr em movimento a
atividade, descritalizando formas preconcebidas de ação, pretende-se compreender as relações
entre a atividade realizada, acessível através do vídeo, e o real da atividade, que só pode ser
acessado através dos métodos indiretos de análise e coanálise do trabalho.
Amador (2010, p. 60), ao discorrer sobre o trabalho com imagens, ressalta que
82
computador, pois eles usavam muito o sistema que alimentava a atividade dos trabalhadores
terceirizados do operacional.
Para análise dos dados, procedeu-se aos seguintes passos, segundo as indicações de
Meira (1994, 62): inicialmente, assistiu-se a todos os vídeos, anotando os pontos relativos ao
problema de pesquisa que mais chamaram a atenção, viabilizando assim uma reaproximação e
uma “familiarização com os dados e a elaboração de uma caracterização geral da atividade”;
produziu-se, então, uma listagem e uma categorização das problemáticas levantadas pelos
trabalhadores, propiciando assim um acesso mais rápido a segmentos específicos dos vídeos,
sempre relacionando-os ao problema de pesquisa; “esta fase inicia o trabalho interpretativo
mais rigoroso”. Posteriormente, seguiu-se a transcrição literal dos vídeos “com o maior
número possível de detalhes; a transcrição não deve substituir o vídeo, mas servirá como
apoio à análise minuciosa do mesmo”. Acolheram-se as orientações de Meira (1994, p. 62) no
sentido de
(5) assistir persistente e repetidamente estes segmentos (ou episódios), apoiado pela
análise exaustiva das transcrições, a fim de gerar interpretações plausíveis dos
microprocessos envolvidos na atividade; [...] objetivo é construir uma caracterização
densa sobre a atividade investigada, (6) ao divulgar resultados, apresentar
interpretações ilustradas por exemplos prototípicos colhidos diretamente dos vídeos
e transcrições, permitindo que o leitor possa compreender os argumentos e
princípios teóricos sugeridos pelo investigador e/ou construir interpretações
alternativas.
R – Estourou um produto químico que no caso afetou, né? Eu fui pegar ele, uma
parte do produto com a mão, aí começou a queimar minha mão. A chinela do A.
fumaçou. Aí eu lavei; rapidamente fui lavar a mão. Eu tive dor de cabeça, e o rapaz
que tava aí na limpeza já tava também com dor de cabeça.
O objetivo era de querer limpar. A gente não sabe lidar com esses problemas. Tem
que ter calma quando for abrir, tem muitas coisas aí que é[são] químico[as]. Um
risco, né, à saúde da gente. (Informação verbal.)
tal, colocando em perigo a vida dele e a das demais pessoas no trânsito. Essa problemática
pode ser percebida no trecho a seguir:
P – É como se tivesse que ter uma caixa pra cada pedido, é isso?
S – Era. Pra ficar mais isolado.
C – Era pra ter, né? Ter caixa suficiente.
P – A caixa que vocês usam é tipo engradado de feira, né?
S – Até que eles pediram agora pra ser fechada porque tava caindo as coisas que
é[são] pequena[s].
C – Passa pela brecha.
P – Aí já foi feito o pedido? Mas não chegou? E vocês chegaram a acompanhar
como é que tá esse pedido ou não? Chegaram a perguntar pra alguém?
O – Não.
S – A gente coloca no saco que é pra não cair, né?
[...]
M – Os pneus, as câmaras de ar e mais dois carrinhos, né? Que nós falamos pra
vocês também continua do mesmo jeito, veio[vieram] só dois carrinhos, só. Nem os
pneus nem as câmaras de ar chegaram, não, pra nós. (Informação verbal.)
R– Só uma coisa, né, mais ventiladores que o que tinha quebrou e é muito quente.
De vez enquanto a gente vai lá pro ar-condicionado só pra refrescar um pouco. A
gente aproveita pra pegar as canetas dentro do ar-condicionado, lá na outra sala, aí
aproveita pra pegar os materiais e fica bem fresquinho.
P – Achou um jeito aí de aguentar o calor?
R – É.
[...]
P – Sobre os bichos que tem aí galpão, que vocês falaram...
89
R – Foi o A., no dia que a gente foi fazer o balanço, foi até num sábado que a gente
veio aqui, a gente tava separando, aliás contando os materiais, num sábado extra que
teve, essa época até o L. ainda tava aqui. A gente foi contar e tava[estavam] lá as
abelhas. Picou até o S. Ele foi tirar e foi picado. Pegaram ácido muriático e jogaram
em cima delas lá. (Informação verbal.)
3
Segundo a cartilha do Ministério do Trabalho e Emprego sobre Relações de Trabalho (BRASIL, 2009, p. 15), o
assédio moral define-se por “atos cruéis e desumanos que caracterizam uma atitude violenta e sem ética nas
relações de trabalho praticados por um ou mais chefes contra seus subordinados. Trata-se da exposição de
trabalhadoras e trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua
função. É o que chamamos de violência moral. Esses atos visam humilhar, desqualificar e desestabilizar
emocionalmente a relação da vítima com a organização e o ambiente de trabalho, o que põe em risco a saúde, a
própria vida da vítima e seu emprego. A violência moral ocasiona desordens emocionais, atinge a dignidade e a
identidade da pessoa humana, altera valores, causa danos psíquicos (mentais), interfere negativamente na saúde,
na qualidade de vida e pode até levar à morte”.
90
[É] a realidade que os motoristas aqui, fui eu, o seu E., né? Que saiu já. Só
colocando os motoristas pra fora, eu que fiquei. O seu E. teve uma desavença aí com
o M.; o outro foi o S., que passou por aqui também, aquele gordinho. Agora é ele aí,
mas meu parceiro aí vai ficar, se Deus quiser. (Informação verbal.)
S – Ele fala: “Eu não quero mais o A., o S., o M... Quero mais não. Quero trocar. Me
arranje mais três pra cá. [...] Pode ter dez anos aqui que eu boto pra fora. O que
entrar faz o serviço do mesmo jeito. Se num prestar devolve também.” (Informação
verbal.)
Nesse intercâmbio entre elas e entre o sujeito e sua atividade, cabe ainda destacar o
papel e a importância do social. Nas palavras de Clot (2006, p. 23), o
social está lá, presente, mesmo quando estamos sozinhos; ele não está fora de nós
mesmos, nem somente entre nós, ele está em nós, no espírito e no corpo de cada um
de nós.... Simultaneamente, essa abordagem é não apenas muito social, mas também
muito subjetiva, porque no fundo o que ele diz é que o social está vivo se, de certa
maneira, ele está acordado permanentemente pela atividade singular, subjetiva. Não
é o social entendido como coação, restrição externa, mas um social vivo.
Desta forma, foi possível observar cada uma dessas dimensões e do papel que cada
uma ocupa no desenvolvimento das atividades de trabalho no Almoxarifado.
Na dimensão impessoal do ofício destacamos, inicialmente, a pesquisa documental
que foi realizada no site da Pró-Reitoria de Administração, a fim de entender o funcionamento
do setor e os processos de trabalho, as atribuições, as hierarquias, o organograma, as funções,
as normas, dentre outros aspectos relacionados ao prescrito pela organização do trabalho. Em
seguida nos reunimos com a chefe do setor, G., e discutimos cada uma delas. Nesse momento
debatemos sobre como estavam definidos os papéis, com atribuições e funções de cada cargo,
além de como eram repassados para os funcionários as normas, os ritmos de trabalho, os
modos de proceder, etc.
Nessa reunião pôde-se verificar que havia uma indefinição de papéis, pois não existia
uma separação das atribuições que seriam da Seção de Previsão e Controle e do Almoxarifado
Central, que estava dessa forma acumulando responsabilidades, o que gerava uma série de
conflitos e desentendimentos entre os gestores e entre os funcionários, pois eles não sabiam o
que era atribuição de quem ou a quem deveriam reportar-se em momentos de dúvidas e
tomada de decisões.
95
locais de armazenamento sem comunicá-los, pois a decisão superior não era coletivizada e
discutida com o grupo de trabalho, principalmente com os terceirizados, que eram vistos
como externos à instituição. Quando estes iam procurar os produtos para encaminhar aos
setores, não os localizavam e precisavam reportar-se ao gestor com o qual nem sempre
mantinham uma relação amistosa.
Os terceirizados encontravam impedimentos diante das normas estabelecidas,
reduzindo assim sua autonomia para a realização das atividades. Notamos isso com
profissionais de mesmo cargo, como o de almoxarife. Para os servidores públicos que o
ocupavam havia um leque de possibilidades mais amplo para realizar suas ações enquanto aos
terceirizados eram impostas algumas limitações. Por exemplo, aqueles eram os únicos
autorizados a responsabilizar-se por receber os materiais, pois, no documento em que se
atestava o recebimento, deveria constar a matrícula funcional do trabalhador, dado restrito aos
servidores efetivos mesmo sendo pertinente, também, à função dos terceirizados na
instituição. Isto acabava gerando exclusão do processo de trabalho.
Outros elementos, que se referem ao impedimento da ação dos trabalhadores na
dimensão impessoal, relacionam-se à ausência de instrumentos e materiais em condições de
uso, como caixas para transporte dos bens de consumo; aos problemas nos “carrinhos”
utilizados no transporte dos materiais; e até problemas estruturais, como falta de local
apropriado para realização das atividades de separação de cartuchos de impressora ou a
impossibilidade de usar os elevadores dos setores para subir materiais pesados.
Podemos destacar também a situação precária das instalações do galpão onde as
atividades eram realizadas. O local contava com pouca iluminação, não possuía ventilação
adequada e, consequentemente, tornava-se quente. Além disso, estava sempre empoeirado,
com infiltrações, dentre outros problemas. Os trabalhadores relataram que a estrutura das
estantes que serviam de sustentação para um mezanino, no qual também se armazenavam
materiais, estava danificada e partes do chão cediam. Problemáticas essas já abordadas no
primeiro tópico e que fazem parte da dimensão impessoal.
Observamos nas figuras 1 e 2 duas imagens que tratam a dimensão impessoal do ofício
dos almoxarifes (1) e dos carregadores (2). Na primeira, em que um almoxarife separa
materiais, vemos parte do galpão onde se realizam as atividades, localizando-se ao lado
esquerdo as estantes de armazenamento e ao lado direito o espaço de triagem; de acordo com
os pedidos das requisições, os produtos serão levados pelos carregadores (imagem 2) para os
setores correspondentes.
97
Outra característica que interferia nas atividades de trabalho dos terceirizados era o
ritmo de trabalho intenso em alguns momentos, quando acabavam errando ou se esquecendo
de separar algum material das requisições, pois tinham que desenvolver várias atividades ao
mesmo tempo.
Em seguida traremos elementos referentes à dimensão interpessoal, que, como já
falado, trata do endereçamento da atividade, seja aos pares, seja a chefias, seja aos clientes
internos e/ou externos.
98
No Almoxarifado eles tinham, além dos pares e chefias, que realizar o manejo das
relações que estabeleciam com funcionários que solicitavam e recebiam os pedidos de
material feitos pelos diversos setores da universidade, bem como com os fornecedores
externos.
Para a perspectiva da Clínica da Atividade, adotada aqui como referencial teórico e
metodológico,
Figura 3: Processo de fracionamento de sacos de lixo: embalagens com 100 unidades são separadas em grupos
de dez sacos.
99
Figura 4: Separação de materiais; conversam entre si perguntando sobre material solicitado na requisição.
desrespeito por um funcionário que estava com seu carro impedido de sair do estacionamento
pela falta de espaço ocupado pelo caminhão. Em outro relato um carregador fala sobre um
problema que ocorreu com um funcionário, pois ele havia utilizado o elevador para
cadeirantes para subir material.
Na passagem abaixo observamos como os carregadores dividiam entre si as atividades
e contavam com o apoio uns dos outros, exemplo da autoconfrontação simples do C. e
posteriormente na fala de R., ao aludir a uma tarefa que exigia a parceria e o trabalho em
conjunto para realizá-la de forma mais rápida e efetiva.
C – O D. e o S., né, eles ficam conferindo lá. Quem leva é[somos] eu e o E., sabe,
que pega[mos] o material lá, nós traz[emos] pra fora e eles ficam conferindo, o D. e
o... quando tem muito material já lá fora, aí nós dá[damos] uma parada pra ajudar
eles que é muito. Quando tem muito, sabe?
P – Mas geralmente vocês que vão lá buscar, tu e o E.?
C – Quando tem muito material, eu vou lá ajudar eles. Isso, eu e o E., e o D. fica
conferindo... aí, quando tem muito, eu dou uma parada e vou conferir, tá, eu fico
conferindo também.
[...]
P – Então, vocês também trabalham em conjunto?
R – Sim. Nós separamos o serviço dependendo dos pedidos. Quando tem pedido pra
fora, às vezes tem pedido grande, aí a gente separa. Tá pedindo o quê? Aí 36 caixas
[inaudível] ou, como é que se diz, de sabonete líquido; aí, enquanto um separa, o
outro vai pegando outra coisa. (Informação verbal.)
constatar que havia erros recorrentes na separação de materiais, como esquecimento de itens
de algumas requisições, só percebidos quando os carregadores faziam a segunda conferência
antes de carregar o caminhão. Essa situação mostra-se nos trechos das autoconfrontações
simples a seguir:
Pudemos perceber ainda, o estilo profissional de cada almoxarife, R. e A., nos dois
exemplos seguintes de duas autoconfrontações simples em que eles debatem sobre a postura
ao realizar a separação de materiais. Como apresentado nos trechos a seguir, em que A.
demonstra não ter a mesma preocupação com a postura quanto R.:
P – Como é que tu vê[s] essa tua postura aí? Pra apanhar esse negócio?
R – É errado, é errado. Isso, às vezes, assim, não sei porque eu tava com essa
postura, mas, realmente até mesmo sempre que eu vou pegar alguma coisa, eu gosto
de fazer postura abaixada, porque aí dá um problema seríssimo com o tempo. Agora
eu não tô sentindo, mas uma hora eu vou sentir lá na frente. Essa postura é incorreta
no caso. Geralmente quando eu vou pegar essas caixas, eu faço como se tivesse
malhando, fazendo agachamento. Eu faço tudo com postura. Como eu pratico
esporte, isso aí vai complicar pra mim mais na frente. Pra não dar um jeito, não dar
um problema. Eu falo até pros meninos que têm que pegar com postura. Qualquer
coisa que a gente for fazer aqui tem que ter postura. Não vamo sentir agora, mas...
P – Você passou por algum tipo de treinamento? Isso você sabe porque...
R – Não, não. Pela experiência. Qualquer coisa que for fazer: pegar caixa, de levar,
prum lado, levar pro outro (apoiado no ombro); se deixar apoiar algum peso, ter
cuidado pra não prejudicar a coluna, porque, com o tempo, você não vai sentir
agora, não, mas mais pra frente vai sofrer as consequências. (Informação verbal.)
Percebe-se no discurso de R. como ele sai do campo do “eu”, como objeto de reflexão,
para um discurso genérico do “você”, referindo-se aos demais colegas que também exercem a
atividade. Dessa forma, nota-se a importância e a contradição presente nas dimensões pessoal
e transpessoal do ofício, que vão alimentar um possível desenvolvimento da atividade ao
colocar o sujeito como objeto de sua ação e reflexão sobre a atividade que realiza. Segundo as
teses de Vygotski sobre o papel da consciência no desenvolvimento humano: “[E]u me
conheço somente à medida que sou eu mesmo um outro para mim” (VYGOTSKI, 2003, p.
90), ao que Friedrich (2012 apud ERNICA, 2016, p. 56) acrescenta:
103
Ressalta-se mais uma vez o papel dos instrumentos dialógicos de análise do trabalho e
da possibilidade de converter-se um em outro de sua própria atividade para tornar esse sujeito
ativo no processo de transformação do trabalho. Esperamos ter conseguido atingi-lo ao
vislumbrar as modificações que favoreceram o desenvolvimento do poder de agir desses
trabalhadores ao estabelecer as controvérsias presentes na atividade de pares que
desenvolviam as mesmas atividades.
Assim, inferimos dos trechos destacados acima que, ainda cumprindo as mesmas
funções e tarefas, R. e A., ambos almoxarifes, elaboram algumas ações de forma diferente. Na
autoconfrontação cruzada, momento em que puderam ser confrontados, ambos frente à frente
puderam ver-se como um outro de sua atividade, apontou-se a controvérsia presente nas
filmagens, e chegaram à conclusão da melhor forma de desenvolver suas atividades: pegar o
material de cada vez, não confiar apenas na memória (para diminuir os erros na separação) e
cuidar da postura nos movimentos realizados (para não prejudicarem sua saúde física com o
passar dos anos, adquirindo inclusive problemas crônicos, como o que ocorreu com A. ao
desenvolver uma hérnia de disco).
Segundo Clot (2016, p. 93), a “tríade da atividade dirigida é um conflito. Para agir
sobre o objeto da atividade, não há como não se levar em conta, simultaneamente, os outros
que agem sobre o mesmo objeto. Esse conflito é a fonte da energia da atividade. A vida
humana tem sua origem nesse conflito”. A clínica deve, portanto, ter como foco o vivido
como meio de viver outra experiência, ou seja, o que no presente vamos fazer da ação passada
para modificar a ação futura.
A dimensão transpessoal do ofício corresponde ao gênero profissional, que no início
da investigação encontrava-se enfraquecido, uma vez que não havia uma coletivização das
atividades, das necessidades e das demandas, nem das decisões superiores. O grupo achava-se
fragmentado: cada um exercia sua função de forma isolada, nem mesmo entre os
trabalhadores com cargos similares havia diálogo e troca de experiências. Em alguns relatos
afirmam que, quando chegaram ao setor, aprenderam “tudo sozinhos”, deixando entrever a
ausência de uma cultura partilhada, ou seja, o contrário do que propõe a dimensão
transpessoal do ofício. Isso foi observado no relato de um dos carregadores, D., ao afirmar
que preferia fazer tudo sozinho para não ter problema. Ainda que a gestão tenha mudado há
104
Como se repara, esse coletivo encontrava-se enfraquecido, com seu poder de agir
limitado ou bloqueado, principalmente por questões estruturais e falta de autonomia exercida
pelo autoritarismo de um gestor.
No decorrer da intervenção houve muitas mudanças: o grupo fortaleceu-se,
encontrando o apoio necessário uns nos outros para dar conta dos imprevistos do real.
Trataremos dessas transformações e da revitalização do gênero profissional nas atividades dos
trabalhadores terceirizados no próximo tópico, ressaltando como o desenvolvimento do poder
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de agir contribuiu para a saúde dos trabalhadores do setor e para a realização de um trabalho
bem feito.
R – Porque tem produto que tá lacrado, e a gente tem que abrir. Aí a gente abre. E
agora veio[vieram] uns sacos, sacolazinha, e eles tão colocando os itens pequenos,
que é[são] caneta, lápis, borracha, é... corretivo. Colocando tudo num saco e
amarrando e colocando no caixote pra, quando for transportar, não cair. Aí eu até
repassei essa ideia pro V. e pro A., né?
P – De usar esse saco?
R – Isso, porque esse saco não tava sendo utilizado, então era bom a gente usar pra
nós mesmos. E facilitar mais o trabalho. (Informação verbal.)
C – É. Era pra eles conferir[em], mas o certo mesmo é pra nós conferir[mos]. Sabe
por quê? Porque, se nós levar[mos] o material errado, quem vai culpar é a gente, que
nós que tamo entregando, né? Nós tem[os] que saber o que é que tamo levando, né?
Aí isso aí, também eu dou razão a eles também. (Informação verbal.)
Encontrou-se ainda um local adequado para a separação de cartuchos, que antes era
feita no chão, onde o terceirizado T. espalhava todos os produtos de acordo com as
requisições dos setores da universidade. Essa atividade era realizada em posições
desconfortáveis, com o trabalhador agachado no chão tendo que fazer movimentos de esticar
os braços e as pernas para conseguir encontrar uma postura adequada. Passou-se a utilizar
para o serviço uma mesa grande, constante da área externa do galpão.
A gestora e os próprios trabalhadores relataram que a participação deles estava cada
vez mais ativa quando surgia algum problema, pois logo vinham comunicá-la alguma dúvida
ou solicitação. Além disso, reuniões passaram a ocorrer com uma frequência mais sistemática
e de acordo com a necessidade da equipe, pois, caso sentissem que era necessário, eles
mesmos pediam para a chefe do setor agendar uma reunião com o objetivo de debater de
forma coletiva os problemas que estavam ocorrendo, tomando parte das discussões e
ativamente propondo mudanças e sugestões. Segundo a gestora, isso não acontecia antes da
realização do projeto, pois, sempre que eram convocados a falar ou dar sua opinião, ficavam
calados ou poucos se manifestavam.
No trecho a seguir vemos um elemento do gênero profissional partilhado entre os
trabalhadores como uma forma de realizar um trabalho bem feito. Como exemplificado no
trecho da autoconfrontação cruzada de S. e D., há ali a troca, a parceria e o compartilhamento
de uma mesma atividade entre dois carregadores, em que um deles, S., colocava, de acordo
com a requisição, a numeração em todos as partes da caixa para facilitar a visualização no
momento de retirar os pedidos a serem entregues nos setores, reconhecendo que as caixas
podem se misturar dentro do caminhão durante o transporte. O modo de agir foi repassado de
um trabalhador para outro:
S – Aí já vão botando o nome já. Vou botar o código, mas num vou botar dentro aí,
não, porque tá faltando aí. Sabonete líquido, tá faltando.
P – O senhor tá vendo como ele tá fazendo, seu D.? Tá colocando...
D – A numeração?
P – Isso.
D – Cada cantinho da caixa, tá botando.
P – Aí bota em todo canto, né?
S – É.
D – Tem que botar, botava só um, aí a negrada reclamava. Que diabo é isso? Pra que
tanto[a] pichação que tá fazendo?
S – Porque fica assim, né? Aqui é essa abazinha da caixa. Aí, se eu botar aqui
dentro, pode a gente pegar e fechar; quando fechar, ninguém vê o número. Aí bota
por dentro e por fora, porque, se a bichinha da caixa fechar aí...
D – Num bota só um, não, bota vários, sabe?
S – É. Aí, na hora que a gente bater a vista, a gente já vê logo que é aquele número.
P – O senhor concorda, seu D., de colocar assim vários?
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D – Concordo, porque, se botar só uma vez, se botar a caixa assim, o lado dela assim
pra dentro do caminhão, num dá pra ver; se botar os dois lados, aí dá pra ver, dois
lados.
P – Aí, quando o senhor faz, como é que o senhor coloca?
D – Eu coloco do mesmo jeito. Foi[fui] eu que ensinei a ele. (Informação verbal.)
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
desenvolvimento do poder de agir, especialmente para que fosse possível um trabalho bem
feito, envolto de sentido, significado e reconhecimento de si.
Onde se encontrava a atividade impedida, bloqueada pela ausência de autonomia, de
diálogo e de troca entre os pares, (re)ssignificaram-se algumas dificuldades e formas de
realizar a atividade — com a separação do material por tipo, a forma de coleta, etc. —,
minimizando assim os erros.
Na análise do trabalho tentamos reestabelecer seu movimento através da alimentação
dos diálogos profissionais no seio dos coletivos, revitalizando o gênero e ampliando-lhes o
raio de ação. Isso contribuiu para criar uma prática do debate no coletivo sobre os problemas
do cotidiano e para que fossem instituídas reuniões em que todos participavam e debatiam
coletivamente.
Em relação às condições de trabalho, das quais tratamos no primeiro tópico da
discussão dos resultados, conclui-se que a situação laboral dos terceirizados do Almoxarifado
Central da UFC é permeado por situações de vulnerabilidade, riscos à saúde e à segurança:
esses profissionais estão mais sujeitos a assédio, ameaça, desrespeito, preconceito,
autoritarismo, devido à instabilidade do vínculo; além disso atuam em condições inadequadas,
como ambiente empoeirado, mal iluminado e sem ventilação, com estrutura precária e antiga,
que não atende mais as necessidades da própria instituição, dada a expansão e a interiorização
dos últimos dez anos. Constata-se também carência de materiais em boas condições e uso de
equipamentos inapropriados.
Pudemos observar ainda, nas mudanças empreendidas no setor investigado, melhorias
tais como redefinição de atribuições e tarefas de cada trabalhador, otimização e fluidez nos
processos de trabalho, realização de reuniões sistemáticas com a participação e envolvimento
de todos os profissionais do setor, ouvindo-se as sugestões e questionando-se coletivamente
as problemáticas em pauta. Aprofundou-se a autonomia dos trabalhadores para propor
sugestões e tomar decisões sobre as atividades, o que contribuiu para o desenvolvimento do
poder de agir deles. Outra ação que favoreceu a saúde do coletivo foi a ampliação da equipe,
distribuindo-se melhor as atividades e reduzindo a carga de trabalho e a pressão sobre eles.
Houve, na estrutura física, reformas que melhoraram tanto a organização quanto o
armazenamento no galpão. Foram adquiridos novos materiais, como equipamentos de
proteção individual (prevenindo acidentes e doenças relacionadas ao carregamento de peso ou
à postura inadequada), bem como carrinhos para transporte, além de um outro caminhão para
o transporte dos materiais, dentre outros benefícios e melhorias alcançados.
112
Cabe salientar, entretanto, que nem todas as sugestões e solicitações dos trabalhadores
foram atendidas, uma vez que, dentre outros fatores, elas dependiam de orçamento anual, de
questões políticas internas e externas à instituição, além de alguns trâmites institucionais
burocráticos e, portanto, difíceis de serem efetivadas de forma mais imediata.
Dentre os desafios da pesquisa, destacamos os diferentes tempos presentes nessa
investigação, em que primeiro se realizou a intervenção e posteriormente o estudo quando não
mais em contato com aquele meio foi necessário estar sempre retomando aqueles dias através
dos arquivos-registros e das lembranças, rememorando as nuances que nos despertaram para
esse trabalho. Outro desafio constante era não impor aos trabalhadores e aos dados nossos
interesses de pesquisa, sobrepondo-os aos interesses daqueles.
Para além das diversas formas de precarização laboral, flexibilização dos vínculos,
perdas de direitos e impedimentos à ação dos trabalhadores, quando estes são convocados a
pensar sobre sua atividade, eles têm muitas respostas para dar, além de questionamentos e
problematizações que se fazem necessários para movimentar e descristalizar os modos
prefixados, preestabelecidos, prescritos de agir. Destacamos a importância de darmos voz aos
trabalhadores na tentativa de unir e fortalecer esses coletivos de trabalho, pois eles têm muito
a dizer sobre o que realizam, uma vez que são os detentores do conhecimento ali produzido
cotidianamente.
Ao eleger-se a atividade triplamente dirigida como unidade de análise, focamos nossa
reflexão na relação que os trabalhadores estabeleciam consigo (suas pré-ocupações e
motivações) e com o outro, com quem entravam em contato para realizar sua atividade, ou
seja, com seus pares, chefias, clientes externos e internos, além da relação com seu próprio
objeto de trabalho, os materiais que deveriam armazenar, selecionar, separar, carregar e
entregar nos diversos setores da universidade.
Percebemos que no tensionamento entre esses polos da atividade dava-se o
desenvolvimento do ofício cujos impedimentos e desafios tinham que vencer através da
mediação do gênero. Quando o gênero se encontra fortalecido, este e as relações interpessoais
de coleguismo cooperam para a percepção de que o trabalhador pode contar com o apoio do
coletivo diante dos imprevistos do real.
Acrescentamos ainda o trabalho como um meio de prazer, invenção, criatividade,
reconhecimento, potencialidade, não restrito apenas às noções de sofrimento, dor,
adoecimento. É preciso resgatar esse potencial transformador do e pelo trabalho para que
novas mudanças sejam empreendidas, inclusive nas formas de gestão e em sua própria
concepção, muitas vezes associado à noção de “tripalium”, instrumento de tortura.
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