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Aluno: Matheus Morais Alves Dias

Nº USP: 9334260

Literatura Medieval - Prova 2

QUESTÃO 01

Com relação à primeira questão, o presente texto visa analisar e comparar duas
traduções do soneto de Petrarca, ​Pace non trovo, e non ho da far guerra​, ao original, sendo as
traduções feitas por Vasco Graça Moura e Jamil Almansur Haddad.
Primeiramente, é preciso lembrar que o estilo de Petrarca está muito ligado às imagens
de oposição, de dualismo e binarismo, sendo elas muito centradas no psicológico prévio das
pessoas que já têm essas relações de oposições em mente, mas colocadas ao lado ou próximas
como faz o poeta italiano em seus versos.
Desse modo, a primeira comparação parte dessa escolha de léxicos que representem
essas dualidades. Vamos aos poucos. Na primeira estrofe do original temos:

Pace non trovo, e non ho da far guerra,


e temo, e spero, ed ardo, e son un ghiaccio:
e volo sopra 'l cielo, e giaccio in terra;
e nulla stringo, e tutto 'l mondo abbraccio.

Lexicalmente, são óbvias as escolhas para dar esse efeito de oposição. Temos guerra
se opondo a paz, o ardor com a imagem do gelo, o céu com a terra, os verbos ​volo (voo) e
giaccio (deito), e as ideias opostas de não agarrar nada e, ao mesmo tempo, abraçar a todo
mundo. A intenção de Petrarca é revelar o que o Amor faz com ele, mostrar que esse
sentimento não o deixa em paz no momento em que o sente, mas que também não o faz
querer criar nenhum tipo de conflito por causa dele, então eu-lírico fica nesse limbo de
inatividade e inquietude que o desespera. Isso acontece com as outras imagens também
quando ele arde por dentro mesmo sendo frio por fora, ou seja, em um mesmo indivíduo
temos o rebuliço interno e a frieza externa ao se colocar como um gelo; com essa vontade de
voar aos céus ao mesmo tempo que se deita na terra.
Na tradução de Graça Moura, temos as mesmas oposições, cada dualidade em cada
verso dessa ​terzina​, sendo tão harmônico quanto o original. As rimas se mantêm nos mesmos
lugares, sendo A-B-A-B, e quase são as traduções exatas do original, sem perder muita coisa.
Essa tradução ganha elementos sonoros que Petrarca não tem, com uma rima interna de “jazo”
e “agarro” com “faço” e “abraço”, o que deixa essa versão com um ritmo pleno, sem ficar
truncado. Nessa estrofe, Graça Moura peca na tradução de “​e temo, e spero, ed ardo, e son un
ghiaccio”​ quando coloca uma relação progressiva e resultante em “a arder gelo me faço”. Não
há essa consequência em Petrarca, pois o eu-lírico arde e é um gelo, não se tornando gelo
porque arde. Não tendo essa causalidade, Petrarca consegue manter as duas imagens
acontecendo ao mesmo tempo em vez de demonstrar uma passagem do ardor ao
congelamento.
Já em Haddad, essa causalidade acaba ficando maior. Ele consegue manter as
dualidades, as oposições, mas cria uma segunda relação consequencial não só da do ardor
para o gelo, como do céu para a terra. A tradução diz “e voo para o céu, e desço à terra”,
dando esse movimento ascendente e descendente, o que não é o caso de Petrarca, já que ele
voa ao mesmo tempo que se deita - até a mesmo a escolha de léxico por parte de Haddad não
permite essas duas ações concomitantes. No entanto, mantém as rimas no mesmo formato,
também tomando liberdade de rimar “abraço” com outra palavra que não seja “gelo”, que não
rima em português.
Passando para a segunda ​quartina,​ temos no original:

Tal m'ha in priggion, che non m'apre, nè serra,


nè per suo mi ritien, nè scioglie il laccio
e non m'ancide Amor, e non mi sferra;
nè mi vuol vivo, nè mi trahe d'impaccio.

Aqui Petrarca fala do Amor como uma entidade que age sobre o eu-lírico, o prendendo
mas sem abrir ou fechar a grade, nem o retém nem o solta, nem o mata nem o golpeia, nem o
quer vivo nem o libera. Nessa estrofe toda, temos essa imagem geral de aprisionamento e
enlaçamento, mas nesse jogo em que o eu-lírico não sabe o que o Amor irá fazer com ele,
estando dentro dessa prisão. Há uma quantidade grande de “né” nesses versos, aparecendo no
primeiro e no segundo verso somente uma vez, e duas vezes no último verso, deixando o
terceiro livre da palavra, o que dá uma organização lexical equilibrada.
Em Graça Moura, as rimas se mantêm equivalentes, praticamente uma tradução literal
das palavras, também sem tirar os “nem” dos versos, mesmo que reorganize onde eles irão
aparecer, tendo o primeiro verso livre da palavra, o segundo com duas aparições, e o terceiro e
o quarto com um cada. Ele também deixa o Amor como agente das ações em cima do
eu-lírico, dando essa impressão de aprisionamento do original, onde esse sentimento
personificado não faz nem uma coisa nem outra, revelando um impasse angustiante.
Essa ação do Amor não acontece, por sua vez, em Haddad, que resolve, livremente,
cancelar a palavra Amor e colocar a alma como sinônimo, mas não funciona, porque ela passa
de agente para paciente. A alma aparece quase que como o próprio eu-lírico que está entre
uma coisa e outra, mas não é bem isso que o original coloca, porque essa estrofe representa
um grande impasse, mas a partir da ação do Amor que aprisiona. As rimas se mantêm nessa
tradução, mas há um acréscimo da palavra “duro” para falar do laço, parecendo uma escolha
aleatória para dar a métrica em português. Enfim, se perdeu muita força nessa versão.
Passando para a primeira ​terzina​, temos no original:

Veggio senz'occhi; e non ho lingua e grido;


e bramo di perir, e cheggio aita;
ed ho in odio me stesso, ed amo altrui.

A mesma dualidade, marca de Petrarca, aparece na imagem do olhar sem olhos e do


gritar em língua, do pedido de socorro junto ao desejo de perecer e no amor que ele sente por
alguém mesmo que tenha ódio por si próprio. Todas essas relações se mantêm com o aditivo
“​e​” e sua variante em italiano para manter a sonoridade típica da língua (​ed​), passando a ideia
de concomitância.
Na versão de Graça Moura, esse “e” acaba desaparecendo um pouco. No primeiro
verso, não se perde essa relação, mas na segunda parece que ele deseja morrer e, por causa
disso, pede socorro, o que não passa a relação das duas coisas acontecendo. E, por mais que
tenha trocado a ordem, o sentido se mantém no último verso, mesmo com a adição da palavra
“atroz”, para rimar com a próxima ​terzina.​ Essa escolha de palavra não interfere e pareceu
uma escolha consciente.
O problema surge de novo com Haddad. Primeiro, porque escolhe colocar “voz” em
vez de “língua”, o que acaba com a materialidade que Petrarca colocou quando escolheu
colocar “​occhi​” e “​lingua”​ , que dá uma ideia muito maior de impossibilidade, agravando essa
oposição de ver sem olhos e gritar sem língua. O segundo verso se mantém em uma boa
tradução, colocando as duas coisas concomitantes, diferente de Graça Moura, mas se perde
quando resolve colocar “após” ao final do último verso. Parece que ele se odiava primeiro
para depois amar outrem, o que não é o caso, já que acontecem simultaneamente o ódio e o
amor.
Chegando à última ​terzina,​ temos:

Pascomi di dolor, piangendo rido,


egualmente mi spiace morte e vita,
in questo stato son, Donna, per Voi.

Vemos que a simultaneidade é presente, com o chorar rindo e o desprezo que tem pela
morte e pela vida. No último verso, temos uma conclusão, uma ideia que fecha todo o soneto,
de que é desse modo todo, cheio de oposição, que Petrarca se sente em relação à Laura, a tão
amada mulher por quem o poeta tinha enorme amor.
Ambas as traduções fazem essa conclusão no último verso, mas a escolha de Graça
Moura por “Senhora” parece mais adequado que “Dama”, sendo essa última muito parecida
sonoramente com o original “​Donna​”, mas que soa estranho. No entanto, a tradução de
Haddad de “​piangendo rido​” é literal ao original, o que traz realmente essas duas ações
simultâneas sem precisar colocar mais palavras para dar a rima.
Nessas últimas estrofes, há algo estranho nas rimas. Em Graça Moura, as rimas se
mantêm como no original, com a sequência C-D-E para ambas estrofes, enquanto Haddad
tomou a liberdade de colocar as rimas em qualquer lugar, desaparecendo com uma terceira
rima.
Bom, finalmente, quanto à métrica, temos o sublime decassílabo de Petrarca
acontecendo por todo o poema e o equivalente no português em Graça Moura, que seria o
eneassílabo. Em Haddad, o ritmo parece estranho, parecendo que alguns versos têm mais ou
menos que dez sílabas poéticas.
Sendo assim, no geral, percebemos que Graça Moura teve escolhas mais felizes
quanto a sua tradução, mais relacionada ao original, sem perder muito das imagens e das
oposições.

QUESTÃO 02

No caso do poema ​Pace non trovo, e non ho da far guerra​, acredito que a pluralidade
esteja bastante presente, por trazer diversas oposições em âmbitos diferentes, por mais que
não traga a sua outra marca de colocar palavras que têm a mesma escrita mas funções
gramaticais ou sintáticas diferentes. Nesse poema, ele traz uma diversidade de imagens
opostas que se relacionam ao tema do Amor como algo que faz sofrer e faz sorrir, indo para
um caminho mais natural, como o céu, a terra, o gelo, depois mais relacionado à vida, como a
prisão e a morte, e, por último, relacionado ao corpo, com os olhos e a língua, dando um ar
bem mais físico para retratar uma impossibilidade emocional.
Concordo em parte quando Alonso descreve o estilo de Petrarca como mais ou menos
regular em seus versos, pois, apesar da pluralidade e das oposições, existe nesse poema uma
rima um pouco estranha, no caso de “​altrui”​ e “​voi​”, que não parecem fazer uma boa rima. No
entanto, sua distribuição parece alcançar uma perfeição bem maior, já que em cada estrofe ele
consegue abordar um tema, ou seja, paz e guerra envolvendo o mundo e a recusa dele, depois
o tema do Amor como prisão e impasse, o verso com as partes do corpo e terminando com
sentimentos, a vida e a morte. Tudo isso junto cria uma série de impossibilidades que
atormenta o eu-lírico.
Percebe-se que seu talento em usar palavras homônimas perfeitas ou homófonas não
aparece neste poema, muito menos trabalhou muito com a repetição de alguma palavra para
dar sentidos diferentes, talvez por isso Damaso tenha se referido ao modo petrarquista ser
mais ou menos perfeito, porque ele pode até ser plural em temas, mas nem sempre traz essas
outras marcas que ressoam na declamação.
Um exemplo do uso de homônimas perfeitas e homófonas é o poema ​Benedetto dia ‘l
giorno, e ‘l mese, e l’anno​, onde ele manter uma sonoridade interna rimando palavras ditas
igualmente, como ​“anno” e “​hanno” e até mais perfeitamente com ​“punto” e​ ​“punto”,​
sendo o primeiro um ponto no espaço e o segundo do verbo ​pungere.​ Esse poema segue uma
regra tão bem fechada em si mesmo que há a repetição da mesma palavra ao início do de cada
estrofe, há essa relação das rimas com palavras idênticas, um movimento de crescimento e
diminuição de foco nos versos (dia, mês e ano para estação, tempo, hora e ponto/momento) e
essa escolha de aproximação dele ao final do poema, fechando uma ​terzina temática
completa. Essa é uma característica que Damaso também aponta em Petrarca, essa capacidade
de criar um tema para uma estrofe inteira, para revelar uma ideia que se fecha ali mesmo.

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