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Filme: Como estrelas na terra, toda criança é especial

CLAUDIA PERROTTA

Antes mesmo de seu início propriamente dito, nas cenas que


precedem a ficha técnica, o filme indiano “Como estrelas na
terra, toda criança é especial” apresenta sua temática. Em um
ritmo cada vez mais frenético, combinado com a sirene de fundo
musical, uma lousa de sala de aula vai sendo preenchida por
números e letras misturados aleatoriamente, enquanto, diante
dela, professoras típicas evocam os nomes de seus alunos e
“cantam” suas notas. A grande maioria, pelo bom desempenho,
ganha como reforço positivo um sorriso de satisfação das
professorinhas; apenas um garoto, Ishaan, recebe de volta a
mesma expressão de desesperança e decepção. É sempre o pior
da classe. Então, quando a lousa se torna apenas um bloco
branco repleto de rabiscos e símbolos ininteligíveis, faz-se
silêncio, e nosso olhar pode finalmente ter algum descanso na
imagem de um pequeno lago. À beira dele, o protagonista Ishaan
contempla os peixinhos, e, concentrado, se prepara para caçá-los
com uma técnica precisa, que, certamente, foi desenvolvida ao
longo do tempo dedicado à atividade. Mas esse descanso dura
pouco; logo é interrompido por um adulto que o chacoalha
irritado, reclamando do fato de Ishaan sempre atrasar a todos na
ida à escola de ônibus.
O filme tem início, e vamos sendo apresentados ao cotidiano
escolar e doméstico desse garotinho feliz, de 8 anos de idade. A
temática do contraste de tempos vai então sendo enfocada de
diversas formas, em vários momentos e situações. Em uma das
muitas cenas de sala de aula, em vez de se ater ao conteúdo das
matérias e à fala enérgica e ininterrupta da professora, cobrando
e avaliando desempenhos da forma mais tradicional e retrógrada
possível, o saudável Ishaan busca alguma salvação na janela,
contemplando a forma como os pneus das bicicletas passam em
uma poça d’água barrenta. Logo, obviamente, recebe a bronca
esperada, que, invariavelmente é acompanhada de humilhações,
ou pelos outros alunos, que se divertem à custa do coleguinha,
ou pelos próprios professores, que ignoram as “dificuldades” de
aprendizagem de Ishaan, qualificando-o de engraçadinho, sem-
vergonha, preguiçoso e que tais...

Em casa, temos mais do mesmo: em contraste com a


organização de tempo do filho problemático, pai, mãe e irmão
seguem o script de uma vida produtiva. A cena que sintetiza esta
ideia chega a ser hilária – vemos os três cumprindo rituais e
tarefas cotidianas prosaicas em uma “rotação” acelerada, uma
crítica clara ao ritmo frenético que temos de imprimir em nossas
ações para conseguirmos um lugar ao sol na sociedade
contemporânea. O valor está nessa pressa, na hiperatividade,
como se isso fosse sinônimo de determinação, empenho. Como
bem destacou Rosely Sayão em texto recente, “A pressa tomou
conta de nossas vidas. Corremos desde que acordamos...
Incentivamos a corrida sem fim dos mais novos: queremos que
aprendam tudo rapidamente e cedo...” (Apressando a vida, in:
http://blogdaroselysayao.blog.uol.com.br/). Mais uma vez, o
alívio para essa tortura e ansiedade cotidianas nos chega pelos
olhos sonhadores de Ishaan – ele demora a acordar, encomprida
o sonho na cama, nesse estado fértil entre o sono e a vigília, um
sorriso no rosto que pede para ser compartilhado. Mas não há
tempo para isso. A mãe-produtiva, que lhe dedica cuidados
mecânicos, tem como tarefa tirá-lo desse estado, apressá-lo e
adaptá-lo para a vida real, do trabalho, do horário a cumprir.

Como se não bastasse, ela também acompanha o filho na lição


de casa, apenas e tão somente para destacar seus erros,
demonstrando irritação e desesperança com a repetição deles,
com a falta de capricho e empenho do filho: “Pare de brincar e
conserte seus erros!”. As mensagens se repetem: preguiçoso,
disperso, incompetente para aprender; enfim, não há projeto de
futuro possível para esse menino que insiste em contemplar a
vida, enquanto o tempo não para...

“Aqui nesta pedra alguém sentou olhando mar. O mar não parou
para ser olhado. Foi mar pra tudo quanto é lado”, diz o poema de
Paulo Leminski. No filme, quem “atropela” Ishaan é o pai, que,
depois de uma reunião com os “educadores” da escola, em que o
fracasso do filho é reafirmado em frases como: “ele não evolui,
repete os mesmos erros de propósito...”, decide mandá-lo para
um colégio interno, afastá-lo da família como castigo por não ter
se esforçado. Tem início então um segundo momento da vida
desse menino: toda a sua vivacidade, o sorriso malandro, a
alegria de criança, a curiosidade e fascinação pelas cores e
movimentos das ruas, que depois reproduzia em desenhos e
pinturas belíssimos, são substituídos pela tristeza do abandono,
pela decepção, em especial com a atitude da mãe, que, embora
não concorde com a ideia da separação, submete-se ao marido.
Impossível ao espectador não se sensibilizar com o sofrimento
que parece não ter fim do menino. O lema da “nova” escola,
entoado com orgulho pelo corpo técnico, é: “Disciplina. Já
domamos cavalos selvagens, vamos domar este também”. Ou
seja, Ishaan é de imediato identificado como o garoto
desregrado e incapaz de se desenvolver intelectualmente. Pior:
agora, ele aceita esses rótulos e começa a se anestesiar para não
sofrer, submetendo-se às novas humilhações dos professores
sem qualquer reação. Deixa de falar, de desenhar e vai se
tornando indiferente a tudo e a todos. Ishaan foi impedido de ser
ele mesmo.

Mas este filme indiano não foge à regra e, para alívio de todos,
repete a fórmula do clássico pioneiro “Ao mestre com carinho”,
seguido de “Sociedade dos poetas mortos”, e mais recentemente
“Escritores da liberdade”, já comentado nesta seção. Também
aqui há um professor herói, um salvador, e a redenção
finalmente chega pelo personagem Ram Shankar, que assume as
aulas de artes.

Ram tem um percurso profissional interessante: vem de uma


escola especial da região, na qual desenvolve um trabalho
belíssimo com crianças deficientes. Esse percurso e sua própria
história nos bancos escolares o equipam para aproximar-se de
Ishaan e empatizar-se com ele. O professor de artes logo
percebe que o garoto está profundamente deprimido, pois não
responde a sua forma inusitada de ministrar aulas: ele se
apresenta aos alunos fantasiado, tocando uma flauta e
convidando-os a dançar, cantar e, depois, desenhar livremente,
deixando a imaginação correr solta no papel: “Divirtam-se, estão
livres para desenhar o que quiserem!”. Ou seja, tudo que Ishaan
fazia antes da opressão e violência que sofreu no ambiente
escolar e familiar. Encapsulado, o garoto não reage mais; está
tão anestesiado que nem consegue identificar em Ran Shankar o
seu próprio modo de ser e ver o mundo.

Mas o professor está determinado a salvar o garoto, cujos “olhos


berram por socorro”: analisa os cadernos, conversa com o único
coleguinha com quem Ishaan mantinha um vínculo de amizade e
finalmente procura pelos familiares dele. E é neste momento
que reside, de nosso ponto de vista, o equívoco do filme.

Diante de um pai e uma mãe surpresos com a visita inusitada,


Ran Shankar vai elencando sintomas de um distúrbio
denominado dislexia, para afirmar que Ishaan não era
preguiçoso ou indisciplinado e sim apresentava uma limitação
real e de natureza orgânica que gerava seus problemas de
aprendizagem escolar. Aqui, parece mesmo que o roteirista do
filme tomou como base os manuais que caracterizam essa
suposta doença e, didaticamente, vai expondo-a aos
espectadores, muitos dos quais, certamente, chegaram em suas
casas e correram para pesquisar na internet, como alíás, no
filme, faz a mãe do menino, encontrando a confirmação de suas
suspeitas quanto a uma pessoa da família ou a si próprios...

Só que, como temos apontado aqui no Ifono, trata-se de uma


polêmica longe de ser resolvida, pois a existência da dislexia é
bastante questionada, em especial quando temos uma história
de vida como a de Ishaan. Fica evidente no filme a inadequação
não só do sistema de ensino como do ambiente familar: ambos
falhavam repetidamente com o garoto, exigindo que se
adequasse a padrões de funcionamento e comportamento, que,
na verdade, o impediam de aprender a partir de sua forma de
olhar e compreender o mundo. Essa forma, porém, de maneira
alguma é incompatível com o desenvolvimento intelectual; ao
contrário, Ishaan tinha recursos e talentos para isso: curiosidade,
capacidade de concentrção, observação apurada e busca de
meios para expressar e compartilhar suas apercepções.
Incompatível com um aprendizado genuíno é a forma de ensinar
que vemos no filme: fragmentação dos saberes, sistematização
descontextualizada de conteúdos, aversão à reflexão e criação,
hipercorreção de erros ortográficos, etc..

Diante disso, como dizer que as supostas dificuldades do garoto


advinham de um problema individual orgânico? O que vemos é
uma organização defensiva contra essas graves falhas
ambientais, e uma tentativa de se manter saudável em
ambientes claramente doentes, contaminados por uma pressa e
submissão impeditivas do contemplar e criar livremente. É bom
que se diga que os erros ou trocas grafêmicas, espelhamentos de
letras que nos vão sendo apresentados na tela, com o professor
folheando os cadernos de Ishaan, nada mais são do que naturais
em um processo de apropriação da escrita, e de forma alguma
indicam uma dificuldade específica ou uma patologia de origem
neurológica. Mostram sim que o garoto foi se afastando desse
conhecimento, que lhe foi apresentado de uma forma muito
pouco atrativa, além de segmentada e destacada de contextos
reais de uso. Bastaria uma mediação mais consistente, aberta a
experimentações, e professores menos ávidos para rotular e
supercorrigir seus alunos, como vemos nos cadernos, repletos de
correções em vermelho, para que essas questões fossem
acertadas. Com o tempo, e exposto a situações discursivas
significativas, o processo de letramento de Ishaan continuaria
seu curso, como de fato vemos mais adiante (não deixe de ler
texto publicado nesta seção: Considerações sobre a visitação a
gêneros discursivos).

O próximo passo de Ran Shankar foi marcar uma reunião com o


diretor da escola, e aí há um diálogo comum no ambiente
escolar, que muitas vezes ocorre entre especialistas e
coordenadores pedagógicos. O professor informa o problema do
garoto, e o diretor então afirma categórico que ele deve ser
transferido para uma escola especial. Mas Ran invoca o ideal da
inclusão e o dever, assegurado por lei, de todas as escolas
aceitarem crianças, independente de suas dificuldades, inclusive
as deficientes. O diretor retruca, afirmando que, em classes
numerosas, os professores não têm condições e nem TEMPO
para se dedicar às especiais. Ran está decidido a ajudar e se
oferece para acompanhar Ishaan individualmente, duas ou três
vezes por semana.

E é neste momento que reside, de nosso ponto de vista, o acerto


do filme. Não é o diagnóstico de dislexia que abre portas para
Ishaan, como certamente os adeptos da existência da doença
utilizarão como argumento. A grande virada e sacada está na
parceria estabelecida entre o professor/mediador e o aluno. A
partir dela, fica fácil aprender, abrir canais para ler, escrever e
lidar com os números. O professor de artes se aproximou
afetivamente do garoto, colocou-se no lugar dele e foi
mostrando novas formas de apropriação e construção dos
conhecimentos a partir desse lugar, de suas potenciliadades e
recursos. Mas, se por acaso Ishaan tivesse sido atendido por um
professor com outro perfil, ou encaminhado para especialistas
que reproduzissem a mesma metodologia de ensino das escolas
que frequentou, ou ainda para profissionais da área médica que
optam por ministrar remédios (conhecidos como “drogas da
obediência”) para o que apressada e inconsistentemente
diagnosticam como deficit de atenção, poderia ter simplesmente
se adaptado, sido domesticado e aprendido a fazer o jogo da
instituição, como muitos, mas não necessariamente estaria
vislumbrando nos conhecimentos a possibilidade de neles
imprimir pessoalidade. Além do afeto, Ran reapresentou o
objeto cultural escrita para Ishaan, resgatando, em especial, o
aspecto lúdico e respeitando o tempo e ritmo de
experimentação do garoto.

No final, assistimos a movimentos de confraternização bem raros


no ambiente escolar de fora da tela, com todos reconhecendo
suas limitações e se humanizando. Há também as reparações de
praxe por parte dos familiares, dos professores e dos colegas, e
Ishaan volta a sorrir e a ter esperança em suas capacidades de
desenvolvimento.

É de fato um final feliz. Mas só na ficção. Junto com os créditos,


vão surgindo imagens que não nos deixam esquecer que toda
essa transformação na forma de cuidar de crianças reais, com
exceção da mesmice e avidez equivocada por taxá-las como
doentes, está bem longe de ocorrer. Sujas, maltratadas,
carregando materiais pesados, inseridas precocemente no
mundo do trabalho, exploradas por adultos, todas ainda sorriem
para as câmeras... Até quando?

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