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Acesso ao ensino público fundamental.

Descabimento da imposição de idade mínima


ao aluno

APELAÇÃO CÍVEL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MANDADO


DE SEGURANÇA. ACESSO AO ENSINO PÚBLICO FUNDAMENTAL. IMPOSIÇÃO
DE IDADE MÍNIMA AO ALUNO. DESCABIMENTO. VIOLAÇÃO A NORMAS
CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS.

Compete ao Estado garantir o direito público subjetivo de acesso à 1ª série do ensino


fundamental a todos que, considerados aptos a progredirem, concluíram a pré-escola.
Descabido se mostra impor ao menor a repetição de ano letivo em face de regramento
administrativo que fixa idade mínima para ingresso no ensino fundamental, porquanto se
estaria violando normas constitucionais e infraconstitucionais, além como impondo
discriminação proibida por lei.

Recurso provido.

APELAÇÃO CÍVEL - OITAVA CÂMARA CÍVEL - Nº 70011560190


COMARCA DE VACARIA
G.V.F., representado por sua mãe G.J.V.F. - . APELANTE
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL - APELADO
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO –.2.ª.C.R.E. - INTERESSADA

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça


do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao recurso, nos termos dos votos a seguir
transcritos.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. ANTONIO


CARLOS STANGLER PEREIRA (PRESIDENTE E REVISOR) E DES. RUI
PORTANOVA.

Porto Alegre, 09 de junho de 2005.

DES. JOSÉ S. TRINDADE,


Relator.

RELATÓRIO

DES. JOSÉ S. TRINDADE (RELATOR)

Ação. Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar para efetivação de


matrícula na 1º série do Ensino Fundamental em Escola Estadual.

Partes. Apelante: Guilherme, menor representado por sua genitora Joara.

Apelado: Estado do Rio Grande do Sul.

Sentença recorrida. A decisão de fls. 66/68 julgou improcedente o pedido, para o efeito de
denegar a segurança pleiteada, e revogar a liminar anteriormente deferida.

Objeto. Apelação com pedido de reforma da sentença recorrida, para que seja mantida a
matrícula do menor na 1ª série do Ensino Fundamental.

Razões recursais. Alega o recorrente que no ano de 2004 freqüentou a pré-escola na rede
pública de ensino na Escola Estadual Padre Éfren, tendo sido aprovado, estando apto para o
ingresso na 1ª série do Ensino Fundamental da mesma escola. Ocorre que, a sua matrícula
foi negada, mesmo havendo vaga em aberto, com base na expedição do Memorando
Circular nº 71/04, o qual autoriza a matrícula, somente, das crianças que completassem 6
(seis) anos e 9 (nove) meses até o dia 31 de março de 2005. Menciona a Lei 9.394/96, na
qual há indicativo que o Ensino Infantil atinge as crianças de até (6) seis anos, sendo
razoável supor que o Ensino Fundamental destina-se àquelas que estejam acima da
mencionada idade, ou que, com idade inferior tenham condições de freqüentar
regularmente a 1º série. Sustenta que preenche todos os requisitos previstos na Lei nº
9.394/96, no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como na Constituição Federal para
freqüentar a 1ª série. Salienta que houve afronta ao disposto no art. 208 da CF.

Afirma que nenhuma das normas citadas prevê a limitação de idade mencionada no referido
memorando, o qual restringe o acesso à educação pública. Assinala que há limitação no
acesso à pré-escola e não para as demais séries decorrentes, sendo que inexiste óbice legal
para a sua matrícula. Ressalva que o seu direito assenta-se em matéria de ordem
constitucional, a qual se sobrepõe a toda e qualquer legislação estadual. Prequestiona a
matéria. Requer o provimento do recurso para que seja reformada a sentença recorrida, a
fim de mantê-lo matriculado na 1ª série do Ensino Fundamental (fls. 69/79).

Ministério Público de 1º grau. Na origem, o agente ministerial opinou pelo desprovimento


do recurso (fls. 93/101).

Contra-razões. Ao contra-arrazoar, o apelado pugna pela manutenção da sentença


hostilizada (fls. 106/111).

Os autos foram remetidos para esta Corte.

Ministério Público de 2º grau. Em parecer de fls. 115/124, o Procurador de Justiça opinou


pelo provimento do recurso.

É o relatório.

VOTOS
DES. JOSÉ S. TRINDADE (RELATOR)

Recurso em condições de ser conhecido.

A presente impetração deriva da inconformidade do menor Guilherme, representado por


sua mãe Joara, decorrente do não-reconhecimento de direito – que entende líquido e certo –
de se matricular e freqüentar a 1ª série do Ensino Fundamental da Escola Estadual de
Ensino Médio Padre Éfren, em Vacaria, já que aprovado na Pré-Escola, em face do
entendimento da 23ª Coordenadora Regional de Educação de limitar o acesso e a matrícula
somente às crianças que completassem 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de idade até 31 de
março de 2005, conforme Memorando-Circular oriundo da autoridade administrativa
competente e que regulamentou a matéria (Mem. Circ. Gab/Deplan/SE nº 071/04, fl. 50).

Nas informações prestadas, a Coordenadora Regional de Educação de Vacaria afirmou que


o ato dito ilegal encontra-se amparado em princípios constitucionais, na Lei nº 9.394/96 (lei
de diretrizes e bases da educação nacional) e na Resolução nº 246/99 do Conselho Estadual
de Educação, comprometendo-se com o grau de maturidade de cada criança e não com a
idade em si.

Tenho que deve ser concedida a ordem, merecendo reparo a sentença atacada.

O art. 208, inciso I, da Constituição Federal estabelece, no que interessa à espécie, que “O
dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de ensino fundamental,
obrigatório e gratuito, (...)”, elevando “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito” à
categoria de direito público subjetivo (§ 1º do art. 208 da CF).

O art. 54, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, repetindo o texto
constitucional, dispõe que “É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: ensino
fundamental, obrigatório e gratuito(...)”, igualmente reconhecendo como direito público
subjetivo “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito (...)” (art. 54, § 1º do ECA).

De outro lado, este mesmo artigo de lei, em seu inciso IV, estatui que “É dever do Estado
assegurar à criança e ao adolescente atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero
a seis anos de idade”, regra essa já consagrada pelo art. 208, IV, da CF: “O dever do Estado
com a educação será efetivado mediante a garantia de atendimento em creche e pré-escola
às crianças de zero a seis anos de idade”.

A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional, salienta que a educação escolar constitui-se da educação básica
(educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e da educação superior (art. 21 da
Lei nº 9.394/96).

A educação básica, por sua vez, “tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-
lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios
para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (art. 22 da Lei nº 9.394/96)
(sublinhei).
A primeira etapa da educação básica é a infantil que tem por escopo o crescimento global
da criança até 6 (seis) anos de idade, “em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e
social, complementando a ação da família e da comunidade” (art. 29), devendo ser ofertada
em “creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade, e pré-
escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade” (art. 30).

Ora, por certo que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação não determina limite mínimo de
idade para o ingresso na 1ª série do ensino fundamental. Ao contrário, uma vez finda a pré-
escola, entende-se que, ainda que a criança conte com 6 (seis) anos de idade, deve transpor
o degrau seguinte, qual seja, a 1ª série do ensino fundamental.

Em que pesem outras interpretações, a lógica aponta para o ingresso no ensino fundamental
imediatamente após a conclusão da pré-escola. Absurdo seria obrigar o menor a repetir a
pré-escola depois de considerado apto a ingressar na 1ª série unicamente por não ter 6 anos
e 9 meses quando da matrícula.

O fato de aluno não ter alcançado a idade mínima, não dá ensejo a obstáculo legal capaz de
impossibilitá-lo de prosseguir no sistema de ensino, principalmente se obteve
aproveitamento, estando capaz para dar entrada em série imediatamente superior.

Ademais, sobre a matéria, e principalmente sobre o alegado grau de maturidade da criança,


explicitado nas informações da Coordenadoria Regional de Educação de Vacaria,
imprescindível colacionar trecho do bem lançado parecer do digno Procurador de Justiça
Dr. Ricardo Moreira Lins Pastl, no que pertine:

“A regulação invocou como justificativa, como acima se mencionou, o suposto e severo


pálio da maturidade pedagógica, psicológica e emocional das crianças de tal faixa etária,
recomendando que apenas os aniversariantes do primeiro semestre cursem a 1ª série.
Tal compreensão, com o devido respeito, não encontra eco em incontáveis estudos a
respeito da época oportuna de ingresso das crianças no Ensino Fundamental.

Nesse sentido, para exemplificar, é a análise realizada pelos Psicólogos Eliane Scherb e
Fernando Falabella Tavares de Lima, em exercício no Centro de Apoio Operacional da
Procuradoria de Justiça da Infância e Juventude de São Paulo, em parecer intitulado
“Considerações sobre a Prontidão, do Ponto de Vista Psico-Pedagógico, de Crianças com 7
Anos Incompletos, para o Ingresso à 1ª Série do Ensino Fundamental na Rede Pública”,
disponível junto ao Centro de Apoio da Infância e da Juventude do Ministério Público do
RGS, que, com base em teorias de desenvolvimento da aprendizagem (especialmente nas
de Piaget), conclui que, ao menos potencialmente, as crianças com 6 anos completos,
encontram condições para ingressar no ensino fundamental, anotando a inadequação da
observância de um parâmetro rígido de idade para apurar a maturidade de uma criança para
ingressar na escola, mormente quando ocorrente capacitação prévia (trabalho dos aspectos
cognitivos, afetivos, sociais e psicológicos) por intermédio de formação pré-escolar
(justamente, acresça-se, como no caso do impetrante).

(...)
Nessa linha, cumpre aludir o magistério de Maurício Antonio Ribeiro Lopes:

“Outra das mais inquestionáveis formas de omissão na oferta regular de ensino obrigatório
consiste no cerceamento de ingresso ou limitações à continuidade da educação pelo Poder
Público (...). É precisamente o que ocorre em hipóteses em que se estipula arbitrariamente
uma data de aniversário da criança como requisito para matriculá-la no ensino fundamental,
quando tais limitações não são feitas pela lei, nem praticadas pelo setor privado e, na
verdade, apenas mascaram a mais vergonhosa forma de se economizarem recursos em
educação” (“Comentários à Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, RT, 1999, p. 168)”
(fls. 120-122).

A propósito do tema, transcrevemos as seguintes ementas:

“ECA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA.


ACESSO AO ENSINO FUNDAMENTAL. EXIGÊNCIA DE IDADE MÍNIMA.
IRRAZOABILIDADE E DESPROPROCIONALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO.
SUJEIÇÃO AO CONTROLE JUDICIAL. Não encontra arrimo na Constituição Federal e
na legislação infraconstitucional pertinente a determinação que condiciona a matrícula na 1ª
série do ensino fundamental ao implemento da idade mínima de 6 anos e nove meses até
março de 2000. Quando o administrador, pretendendo agir discricionariamente, desborda
da razoabilidade e da proporcionalidade, possível é o controle judicial do ato emanado no
que tange a sua validade. A imposição de idade mínima no caso presente é irrazoável e
desproporcional, especialmente quando a idade atual da criança é de poucos dias inferior à
mínima exigida pela administração e a criança foi aprovada na pré-escola do mesmo
estabelecimento público de ensino. Não se pode obrigar a criança à perda ou repetição do
ano letivo. Desatendimento do interesse público. Agravo provido.” (AGRAVO DE
INSTRUMENTO Nº 70011074796, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO RS, RELATOR: MARIA BERENICE DIAS, JULGADO EM 27/04/2005)

“ENSINO PÚBLICO. MATRÍCULA DE MENOR COM SEIS ANOS INCOMPLETOS


NA 1ª SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. A
impetrante postulou o ingresso no ensino fundamental, cujo requisito imposto pela LDB e
pelo Regimento Municipal Padrão era de seis anos completos no início das atividades
letivas, quando contava com cinco anos e dez meses, faltando-lhe, portanto, apenas dois
meses para preencher o limite etário. Além disso, obteve aprovação na pré-escola, uma vez
que atingiu os objetivos propostos pela educação infantil. Por fim, a liminar, confirmada
pela sentença, garantiu-lhe cursar a série inicial que está prestes a ser concluída, o que
permite a aplicação da teoria do fato consumado. SENTENÇA CONFIRMADA EM
REEXAME.” (REEXAME NECESSÁRIO Nº 70009965211, TERCEIRA CÂMARA
CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: NELSON ANTÔNIO
MONTEIRO PACHECO, JULGADO EM 16/12/2004)

“ENSINO PÚBLICO. IDADE MÍNIMA CONSTITUCIONAL. PRÉ-ESCOLA. O


CURSAR ESTA, ASSEGURA A REMATRÍCULA NA 1ª SÉRIE DO ENSINO
FUNDAMENTAL, SENDO DISCRICIONÁRIA A DECISÃO ADMINISTRATIVA QUE
ESTABELECE A IDADE DE 6 ANOS E 9 MESES PARA O INGRESSO NOS
ESTABELECIMENTOS EDUCANDÁRIOS SEM QUE O ALUNO TIVESSE
CURSADO A PRÉ-ESCOLA, EM DETRIMENTO DAQUELES QUE JÁ CURSAVAM
A PRÉ-ESCOLA. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME.” (AGRAVO
DE INSTRUMENTO Nº 70000678573, PRIMEIRA CÂMARA ESPECIAL CÍVEL,
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA,
JULGADO EM 25/10/2000)

Por fim e ao cabo, não se faz necessária mais discussão a respeito, porquanto a Lei nº
11.114, de 16 de maio de 2005, alterando algumas regras da Lei nº 9.394/96, modificou,
substancialmente, a redação dos arts. 6º e 30, colocando por terra qualquer controvérsia que
ainda pudesse existir sobre a limitação de idade para ingresso no ensino fundamental.

Vejamos:

“Art. 1º - Os arts. 6º, 30, 32 e 87 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passam a


vigorar com a seguinte redação:

"Art. 6º. É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis
anos de idade, no ensino fundamental." (NR)

"Art. 30.........................................................

II – (VETADO)"

"Art. 32. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na
escola pública a partir dos seis anos, terá por objetivo a formação básica do cidadão
mediante:

...................................................................".

Portanto, não há razão para negar o acesso do impetrante ao ensino fundamental. Diante do
exposto, o voto é pelo provimento da apelação.

DES. ANTONIO CARLOS STANGLER PEREIRA (PRESIDENTE E REVISOR) - De


acordo.

DES. RUI PORTANOVA - De acordo.

Julgador de 1º Grau: ANDRE VORRABER COSTA

Extraído do saite www.espacovital.com.br


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