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Cardiopatia reumática Febre reumática (FR) e cardiopatia reumática (CR) são

complicações da reação imune à infecção faríngea por estreptococos do β-hemolíticos


do grupo A (EGA). O aspecto mais grave da FR é o desenvolvimento de problemas
valvares crônicos, que acarretam disfunção cardíaca irreversível e, em alguns casos,
causam insuficiência cardíaca fatal depois de alguns anos. Embora a FR e a CR sejam
raras nos países desenvolvidos, ainda são problemas significativos de saúde nos países
em desenvolvimento, nos quais ainda prevalecem serviços de saúde precários,
desnutrição e condições de moradia em aglomerações.

PATOGÊNESE

A febre reumática é uma doença auto-imune, decorrente de infecção por estreptococos


na garganta, que tem reflexos no coração. A infecção promove a produção de anticorpos
que atacam a bactéria e também atingem tecidos saudáveis do corpo. As proteínas do
estreptococo são muito semelhantes às proteínas do coração, das articulações e do
sistema nervoso central, daí o comprometimento da atividade cardíaca provocado pela
doença. A bactéria não causa diretamente a doença, mas desencadeia um processo que
faz o organismo voltar-se contra si mesmo - característica das doenças auto-imunes.

Anticorpos antiestreptocóccicos são produzidos pelos linfócitos B que reagem de forma


cruzada com epítopos do tecido do hospedeiro, causando inflamação em vários órgãos e
sistemas. Ao mesmo tempo, fragmentos peptídeos bacterianos, similares às proteínas do
hospedeiro, são apresentados a linfócitos T via Complexo Maior de
Histocompatibilidade (MHC), induzindo a resposta imune. Os linfócitos T CD4+ têm
participação importante na lesão valvar reumática. Epítopos compartilhados são
encontrados em tecidos cardíacos (miosina), sinoviais e nervosos humanos, como na
proteína M da parede celular bacteriana.

Os estreptococos β-hemolíticos são subdivididos em vários grupos sorológicos com


base em seus antígenos polissacarídicos da parede celular. O grupo A também é
subdividido em mais de 130 tipos M diferentes, que são responsáveis pela grande
maioria das infecções. A proteína M define mais claramente a virulência da bactéria e
tem sido estudada mais detalhadamente com respeito à sua reatividade cruzada com os
tecidos cardíacos. Embora os EGA causem faringite e infecções de pele (impetigo),
apenas a primeira foi associada à FR e à CR. A patogênese da FR ainda não está
esclarecida. O tempo decorrido entre o desenvolvimento dos sintomas e da infecção
faríngea e a existência dos anticorpos contra EGA sugere claramente uma causa imune.
Aparentemente, os anticorpos dirigidos contra a proteína M de algumas cepas dos
estreptococos têm reatividade cruzada com os antígenos glicoproteicos do coração, das
articulações e de outros tecidos, produzindo uma reação autoimune por um fenômeno
conhecido como mimetismo molecular. O início dos sintomas 2 a 3 semanas depois da
infecção e a inexistência dos estreptococos na lesão favorecem essa hipótese. Embora
apenas uma porcentagem pequena dos pacientes com faringite não tratada e causada por
EGA desenvolva FR, a incidência de recidivas com as infecções subsequentes não
tratadas é expressivamente maior. Essas observações e estudos mais recentes sugerem
uma predisposição genética à doença. Além disso, fatores ambientais podem afetar o
desenvolvimento da FR. Alguns estudos demonstraram que pacientes que vivem em
áreas aglomeradas, inclusive barracas militares, têm incidência mais alta de FR em
razão da virulência acentuada e da transmissão rápida.

REAÇÃO AUTO IMUNE

Sabe-se que as infecções virais podem servir como gatilhos em muitos processos
autoimunes, mas o mecanismo pelo qual isto ocorre não é totalmente compreendido.
Mimetismo molecular é uma teoria que tem sido postulada para descrever os
mecanismos pelos quais os agentes infecciosos ou outras substâncias estranhas
desencadeiam resposta imune contra os autoantígenos. Se um hospedeiro suscetível é
exposto a um antígeno estranho imunologicamente semelhante aos seus próprios
autoantígenos (compartilham epítopos), mas que difere suficientemente para provocar
resposta imune, pode ocorrer reatividade cruzada entre os dois antígenos e danos aos
tecidos do hospedeiro. O mimetismo molecular tem sido utilizado para explicar o dano
cardíaco associado a febre reumática aguda após infecção por estreptococos do grupo A
βhemolítico e a lesão desmielinizante em casos de esclerose múltipla. Pessoas com
febre reumática apresentam altos níveis de anticorpos circulantes contra a proteína M
estreptocócica do tipo 5, um antígeno encontrado na membrana da célula microbiana
que demonstra reatividade cruzada com a miosina cardíaca. Diversos vírus destruídos
pelas células T citotóxicas (CD8 + ) partilham epítopos comuns com as proteínas
básicas da mielina, que são o alvo em pessoas com esclerose múltipla. No entanto, nem
todos os indivíduos expostos a esses microrganismos passam a desenvolver
autoimunidade. Isto pode ser devido a diferenças na expressão de HLA. O tipo de HLA
expresso pela célula determina exatamente quais fragmentos de um agente patogênico
são exibidos na superfície das CAA para apresentação às células T. Alguns fragmentos
podem apresentar reação cruzada e outros não. Em casos de espondiloartropatias, ocorre
reatividade cruzada entre os linfócitos B e os peptídios de membranas bacterianas gram-
negativas; antígenos HLAB hospedeiros específicos foram implicados no
desenvolvimento do distúrbio.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

A FR pode evidenciar-se por uma doença aguda, recidivante ou crônica. A fase aguda
da FR inclui história de uma infecção estreptocócica desencadeante e acometimento
subsequente dos componentes do tecido conjuntivo do coração, dos vasos sanguíneos,
das articulações e das estruturas subcutâneas. Uma anormalidade comum a todas as
estruturas afetadas é uma lesão conhecida como corpo de Aschof , 53 que consiste em
uma área localizada de necrose tissular circundada por células imunes. Em geral, o
estágio recidivante consiste na progressão dos efeitos cardíacos da doença. A fase
crônica da FR caracterizase por deformidade irreversível das valvas cardíacas e é uma
causa comum de estenose da valva mitral. A CR crônica geralmente não se desenvolve
antes de no mínimo 10 anos depois do primeiro episódio, algumas vezes décadas
depois. A maioria dos pacientes com FR refere história de infecção da faringe, cefaleia,
febre (38,5 a 40°C), dor abdominal, náuseas, vômitos, inflamação dos linfonodos (em
geral, no ângulo da mandíbula), assim como outros sinais e sintomas de infecção
estreptocócica. Outras manifestações clínicas associadas a um episódio agudo de FR
estão relacionadas com o processo inflamatório agudo e as estruturas afetadas pela
doença. A evolução da doença caracterizase por um conjunto de anormalidades,
inclusive poliartrite migratória das grandes articulações, cardite, eritema marginado,
nódulos subcutâneos e coreia de Sydenham. 52,53 Os marcadores laboratoriais de
inflamação aguda incluem leucocitose e elevações da VHS e da PCR.

Esses níveis altos dos reagentes da fase agudam não são específicos de FR, mas
fornecem sinais de uma reação inflamatória aguda.
 Poliartrite. Em 75% dos casos, é a manifestação clínica mais comum da FR e,
muitas vezes, também a primeira queixa. Nos adolescentes e nos adultos,
poliartrite pode ser o único critério maior. A artrite pode variar de artralgia à
artrite incapacitante e, na maioria dos casos, acomete as articulações maiores,
especialmente joelhos e tornozelos, embora menos frequentemente possa afetar
punhos, cotovelos, ombros e quadris. A artrite quase sempre é migratória, ou
seja, afeta uma articulação e depois outra. Quando não é tratada, a artrite persiste
por cerca de 4 semanas. Um aspecto marcante da artrite reumática é a melhora
dramática (em geral, dentro de 48 h) com o uso de salicilatos. Em geral, a artrite
regride por completo e não causa sequelas funcionais.
 Cardite. A cardite reumática aguda, que complica a fase aguda da FR, pode
afetar o endocárdio, o miocárdio ou o pericárdio. O acometimento do endocárdio
e das estruturas valvares causa os efeitos incapacitantes irreversíveis dessa
doença. Na maioria dos casos, a cardite evidenciase por regurgitação mitral e,
menos comumente, regurgitação aórtica, embora todas as quatro valvas possam
ser afetadas. Durante o estágio inflamatório agudo da doença, as estruturas
valvares tornamse eritematosas e inflamadas e formamse pequenas lesões
vegetativas nas válvulas. Aos poucos, as alterações inflamatórias agudas levam à
formação de tecidos cicatriciais fibróticos, que tendem a contrair e causar
deformidades das válvulas e encurtamento da cordoalha tendínea. Em alguns
casos, as bordas ou as comissuras das válvulas fundemse à medida que as lesões
cicatrizam. As manifestações clínicas da endocardite/valvite sem história de CR
incluem o desenvolvimento de sopro holossistólico apical de regurgitação mitral
ou sopro protodiastólico basal de regurgitação aórtica. Em alguns pacientes com
história de CR, a alteração das características desses sopros ou o aparecimento
de um sopro novo pode indicar cardite reumática aguda.
 Nódulos subcutâneos, eritema marginado e coreia de Sydenham.

Os nódulos subcutâneos são duros, indolores e livremente móveis e, em geral, aparecem


nas superfícies extensoras das articulações do punho, cotovelo, tornozelo e joelho, com
dimensões variando entre 0,5 a 2 cm de diâmetro. Os nódulos subcutâneos raramente
ocorrem sem outras manifestações da FR e, na maioria dos casos, estão associados a
cardite moderada a grave.
As lesões do eritema marginado são áreas maculosas com formato geográfico,
localizadas mais comumente no tronco ou nas superfícies internas do braço e da coxa,
mas nunca na face. Essas lesões aparecem nos estágios iniciais de um episódio de FR e
tendem a ocorrer com os nódulos subcutâneos e também com cardite. O eritema
marginado é transitório e desaparece ao longo da evolução da doença.

Coreia de Sydenham é a manifestação neurológica central da FR e ocorre mais


comumente nas meninas, raramente depois da idade de 20 anos. Nos casos típicos, há
início insidioso de irritabilidade e outros distúrbios comportamentais. Em geral, a
criança é irritável, chora facilmente, começa a caminhar desajeitadamente e deixa os
objetos caírem. Os movimentos coreiformes são movimentos espasmódicos
espontâneos, rápidos e involuntários, que interferem com as atividades voluntárias.
Caretas faciais são comuns e até mesmo a fala pode ser afetada. A coreia é autolimitada,
geralmente com evolução ao longo de semanas ou meses, mas as recidivas são
frequentes. A história pregressa de infecção estafilocócica pode ser referida em apenas
dois terços dos casos e isto torna o diagnóstico diferencial mais difícil.

DIAGNÓSTICO

Nenhum exame laboratorial é específico para estabelecer o diagnóstico de FR. Em razão


da ocorrência de diversos sinais e sintomas, os critérios diagnósticos de Jones – que
foram propostos em 1944 e revisados diversas vezes pela AHA e pela OMS
(Organização Mundial da Saúde) – prestamse a facilitar a padronização do diagnóstico
da FR. Os critérios de Jones subdividem as manifestações clínicas dessa doença em
critérios maiores e menores com base em sua prevalência e especificidade. Dois
critérios maiores (i. e., cardite, poliartrite, coreia, eritema marginado e nódulos
subcutâneos) ou um maior e dois menores (i. e., artralgia, febre e nível alto de VHS,
PCR ou leucometria), acompanhados de indícios de infecção pregressa por EGA,
indicam probabilidade alta de FR. A última revisão realizada pela OMS em 2004 propôs
as seguintes subdivisões: primeiro episódio de FR, episódios recidivantes de FR com ou
sem CR, coreia reumática, cardite reumática de início insidioso e CR crônica. O
contexto epidemiológico no qual se estabelece o diagnóstico da FR também é
considerado importante. O ecocardiograma ampliou o entendimento das formas aguda e
crônica de cardiopatia reumática. Esse exame é útil para avaliar a gravidade da estenose
e da regurgitação valvares, o diâmetro das câmaras cardíacas e a função ventricular,
além da existência e do volume dos derrames pleurais. O ecodoppler pode ser usado
para revelar lesões cardíacas nos pacientes que não apresentam sinais típicos de
acometimento do coração durante um episódio de FR, mas seu resultado não é
considerado um critério de Jones (maior ou menor) hoje em dia.

TRATAMENTO E PREVENÇÃO

É importante que as infecções estreptocócicas sejam prontamente diagnosticadas e


tratadas para evitar FR. O padrão de referência usado para diagnosticar infecção
estreptocócica é cultura de secreção faríngea. Entretanto, esse exame demora 24 a 48 h
para disponibilizar resultados, o que retarda o início do tratamento. O desenvolvimento
de testes rápidos para detecção direta dos antígenos dos EGA ofereceu uma solução ao
menos parcial para esse problema. A cultura de faringe e os testes antigênicos rápidos
são altamente específicos para infecção por EGA, mas têm sensibilidade limitada (p.
ex., o paciente pode ter resultado negativo, embora apresente uma infecção
estreptocócica). O resultado negativo de um teste rápido deve ser confirmado por
cultura de faringe quando há suspeita de infecção estreptocócica. EGA nas vias
respiratórias superiores pode indicar estado de portador ou infecção, esta última definida
por níveis crescentes de anticorpos. Os testes sorológicos para anticorpos
antiestreptocócicos (antiestreptolisina O e antidesoxirribonuclease B) são usados para
confirmação retrospectiva de infecções estreptocócicas recentes em pacientes que
aparentemente têm FR aguda. Entretanto, não há um exame laboratorial específico, que
seja patognomônico de FR aguda ou recidivante. O tratamento da FR aguda tem como
objetivos controlar a reação inflamatória aguda e evitar complicações cardíacas e
recidivas da doença. Durante a fase aguda, a prescrição inclui antibióticos, anti-
inflamatórios e restrição seletiva das atividades. Nenhuma cepa de EGA isolada
clinicamente é resistente à penicilina; por esta razão, penicilina ou outro antibiótico para
pacientes sensíveis às penicilinas é o tratamento preferido para infecção por esta
bactéria. Cefalosporinas de espectro limitado também têm sido usadas com sucesso,
mas devem ser evitadas nos pacientes com história de anafilaxia à penicilina. Salicilatos
e corticoides podem ser usados para suprimir a reação inflamatória, mas não devem ser
administrados até que o diagnóstico da FR tenha sido confirmado. O tratamento
cirúrgico está indicado para valvopatia reumática crônica e depende da gravidade dos
sintomas ou da evidência de disfunção cardíaca significativa. As cirurgias realizadas são
comissurotomia mitral fechada, reparo valvar e substituição da valva. Os pacientes que
tiveram um episódio de FR têm risco alto de recidiva depois das infecções faríngeas
subsequentes causadas por EGA. Penicilina é o tratamento preferido como profilaxia
secundária, mas sulfadiazina ou eritromicina pode ser usada pelos pacientes alérgicos ao
medicamento. A duração da profilaxia depende da existência de doença valvar residual.
Alguns especialistas recomendaram que os pacientes com doença valvar persistente
façam profilaxia por no mínimo 5 anos depois do último episódio de FR, ou até
completar a idade de 21 anos nos casos em que não há cardite. Nos casos de cardite
moderada, a profilaxia também é recomendada por 10 anos, ou até que o paciente
complete a idade de 21 anos, ou por 10 anos ou até a idade de 40 anos se tiver CR. A
adesão a um plano de profilaxia prolongada com penicilina requer que o paciente e seus
familiares entendam as razões dessa medida. Também devem ser instruídos a relatar aos
seus médicos possíveis infecções estreptocócicas e a informar seus dentistas de que têm
FR, de modo que possam ser protegidos adequadamente durante procedimentos
dentários que possam traumatizar a mucosa oral.

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