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A Afinacao Pitagorica
A Afinacao Pitagorica
Seguindo a linha do texto anterior2, exploraremos o mundo das afinações por outros
vieses. Neste texto nos aproximamos das afinações que utilizam frações para determinar os
intervalos entre frequências (notas). A essas afinações podemos chamar por dois nomes, um
deles estabelecido historicamente, o outro recente e apropriado, porém longe de se estabelecer.
Para compreender do que se fala abordemos a questão historicamente.
#01 – Pitágoras e algumas descobertas
Pitágoras, o sábio da antiguidade grega, considerava a música tão importante quanto as
outras disciplinas de sua escola: aritmética, geometria e astronomia, pensava ser a música,
então, a ciência dos sons e da harmonia3 entre os sons. Avancemos com ele em suas
descobertas e nos maravilhemos com a sabedoria já presente na antiguidade clássica.
Descobriram os gregos, à época, que uma corda, presa em suas duas pontas, vibrando,
gera uma um certo som4, ao qual chamariam nota5. Descobriram também que notas produzidas
por múltiplos inteiros6 da frequência da corda inteira eram eufônicas, isto é, soavam bem – em
nomenclatura musical chamaremos, não eufonia, mas consonância. Pitágoras, então, em sua
sabedoria, começou a explorar esses múltiplos inteiros, medidos como tamanhos de corda7, ou
seja, pressionando a corda a certa distância produzia novas notas, relacionadas de maneira
consonante à frequência fundamental, isto é, à frequência da corda vibrando sem interferência,
apenas presa em suas duas pontas.
Pitágoras então tomou nota que metade da corda (1:2) produzia uma nota extremamente
similar à corda sem interferência, porém mais aguda – é claro que estamos falando da famosa
oitava8. Em seguida, um dos intervalos mais consonantes percebido por Pitágoras ficava a um
terço (1:3) da corda – atualmente esse intervalo recebe o nome de quinta justa, base de acordes
junto à fundamental, tão importante que recebe o nome de dominante (pela sonoridade bastante
proeminente sobre a fundamental). A terceira sonoridade mais consonante percebida por
Pitágoras foi 1:4 de corda – modernamente chamada quarta justa ou subdominante.
A partir dessas relações uma dedução foi feita, dedução que será de fundamental
importância neste texto:
daquele atribuído hoje à palavra, mas as relações que se construirão ao longo do texto devem esclarecer
suficientemente quaisquer dúvidas.
4 De maneira resumida, podemos dizer que um som é uma onda (ou um conjunto de ondas) que se propaga no ar
com uma certa frequência; a audição humana alcança apenas as ondas com frequências entre aprox. 20 e 20.000
Hz, captando a informação e produzindo sensações neurais, às quais chamamos som.
5 Chamaremos por nota uma frequência específica associada a um nome (musical), portanto o famoso A (leia-se:
lá) oscilando a 440 Hz, utilizado como base para a afinação de instrumentos, constitui a nota A 440.
6 Mais recentemente chamada série harmônica (cf. nota 2).
7 Doravante os tamanhos de corda serão expressos em frações.
8 Uma formalização matemática das oitavas foi provida no texto anterior do presente autor (cf. nota 3).
A frequência do som produzido por uma corda vibrando é inversamente
proporcional ao comprimento da corda.
Podemos escrever isso matematicamente da seguinte forma:
𝑓2 𝐿1
=
𝑓1 𝐿2
Onde fa é a frequência da corda e La é o comprimento (lenght, em inglês) da corda.
Exemplifiquemos com as notas obtidas pelos intervalos que já temos, para que fique mais
claro, antes, porém, diremos que a frequência da fundamental (f1), isto é, da corda vibrando sem
interferências, é 1. Agora, aos exemplos:
a) No primeiro caso temos a oitava da fundamental. Para obtê-la Pitágoras precisava
pressionar a corda a 1:2, o que nos diz que só metade da corda vibra quando tocada. Temos,
então, f1 = 1, L1 = 1 e L2 = 1/2, só nos resta saber f2, que podemos descobrir calculando:
𝑓2 1 2 2 𝑓2
= = 1 ∗ = = , 𝑑𝑎í 𝑓2 = 2.
1 1 1 1 1
2
De fato, uma oitava é sempre duas vezes a frequência de sua respectiva fundamental9.
b) Temos a quinta justa em relação à fundamental, onde Pitágoras pressionava a corda de
seu instrumento a uma distância de 1:3, fazendo com que 2:3 (dois terços) da corda vibrassem.
Temos, então, f1 = 1, L1 = 1 e L2 = 2/3, só nos resta saber f2, que obteremos calculando:
3
𝑓2 1 3 3 𝑓2 3
= = 1 ∗ = = , 𝑑𝑎í 𝑓2 = 2 = .
1 2 2 2 1 1 2
3
Sabemos, então, que uma quinta justa vibra 3:2 mais rápido que sua respectiva
fundamental, em decimais: 1,5, ou seja, vibra uma vez e meia mais rápido.
c) Por fim, temos a quarta justa, que soava quando Pitágoras pressionava sua corda a 1:4,
o que nos diz que 3:4 da corda soavam, portanto L2 = 3/4, então:
4
𝑓2 1 4 4 𝑓2 4
= = 1 ∗ = = , 𝑑𝑎í 𝑓2 = 3 = .
1 3 3 3 1 1 3
4
Sabemos, portanto, que uma quarta justa vibra 4:3 mais rápido que sua respectiva
fundamental, o que nos dá 1,333... (infinitos 3s) em decimais. Parece óbvio que o problema se
trata sempre de descobrir f2 a partir de L2, porém, como ambos são inversamente proporcionais
e f1 = L1 = 1, então f2 = 1/L2, ou, que é o mesmo, L2 = 1/f2, que é o mesmo que dizer que são
inversos, ou, já que estamos falando de frações e queremos manter algum rigor, chamemo-las
frações recíprocas.
9 Cf. nota 8.
#02 – Afinação pitagórica
A partir daqui construiremos a afinação pitagórica, para tanto nos referiremos aos
intervalos que formam as notas em relação à fundamental sempre pela fração f 2, ou seja, o
recíproco do tamanho da corda em vibração, portanto deve estar claro que para obter a nota
definida pelo intervalo é preciso pressionar a corda no complemento10 de L2.
– F, C, G, D, A, E, B = C, D, E, F, G, A, B.
10 Ex.: para uma quinta justa temos f2 = 3/2, seu recíproco é (3/2)-1 = 2/3, e o complemento de 2/3 é dado por 2/3 +
x/y = 1, o que é o mesmo que dizer 2/3 + 1/3 = 3/3 = 1, portanto é preciso pressionar a corda a 1:3 para que 2:3
vibrem, criando uma frequência 3/2 da corda solta, atingindo assim uma quinta justa como esperado.
11 Excetuando-se a oitava pela razão já óbvia de ser percebida como repetição da fundamental, portanto não
Tabela 02
Nota F G A B C D E F’
Frequência 177,00 199,12 224,01 252,02 265,50 298,69 336,02 354,00
Notemos que, agora, ao impormos a limitação das notas à gama, elas não ascendem mais
por quintas, mas se ordenam de maneira reconhecível, seguindo o chamado modo lídio, ou
simplesmente ir de F a F numa escala de dó maior (modo jônio), que é o mesmo.
O total de notas, como se vê, é sete, daí se derivam os nomes das classes de intervalos
– também chamados intervalos genéricos ou intervalos diatônicos – conforme sua posição na
escala, portanto, podemos expor os intervalos e nomeá-los, conforme aparecem na escala13:
12 Chamaremos por gama a coleção de intervalos entre f1 e 2×f1, no caso, entre 177 Hz e 354 Hz, ou simplesmente
entre a corda soando sem interferências e a nota atingida ao pressionar-se 1:2 da corda, entre a fundamental e sua
respectiva oitava.
13 Assumimos aqui f como a fundamental – não f , que seria de maior rigor matemático – para manter a
1 0
nomenclatura utilizada na primeira sessão.
Tabela 04
729 4
− ≈ 0,0905.
512 3
Contudo, é uma diferença bastante perceptível. Se você não está convencido, pegue seu
instrumento musical (seja um teclado, sintetizador, piano ou violão, etc.) e toque o dicorde15 F+B,
14 Nada mais que 2/3, recíproco da quinta 3/2, multiplicando por 2 – daí 4/3 – para que fique na gama, isto é, entre
f1 e 2×f1, tal qual fizemos da tabela 01 para a tabela 02.
15 Acorde composto por apenas duas notas. Não o chamamos acorde propriamente porque, na tradição ocidental,
esse nome ficou associado fortemente a tricordes, isto é, acordes de três notas com dois intervalos, um de terça,
seja maior ou menor, e um de quinta justa (ambos sobre a fundamental).
esse é aproximadamente o intervalo 729/512. Agora toque o dicorde F +A, esse é
aproximadamente o intervalo 4/3. Sim, a diferença entre uma quarta justa e um trítono, em nosso
caso, um trítono pitagórico, especificamente.
3 6
(2) 729 4
= ∗ 177 = 252,02 𝐻𝑧 ≠ ∗ 177 = 236,00 𝐻𝑧.
22 512 3
De fato, a diferença é consideravelmente próxima à distância entre E e F’, duas notas
separadas por uma segunda menor18:
O que parecia ser uma distância mínima entre frações é, na verdade, uma distância
bastante audível quando tocadas na prática. Assim, a afinação pitagórica real seria:
Tabela 05
Finalmente obtivemos a legítima afinação pitagórica, utilizada pelo sábio grego em seu
instrumento19 e podemos, enfim, resumir o modo lídio a:
Tabela 06
Nota F G A B C D E F’
Frequência 177,00 199,12 224,01 236,00 265,50 298,69 336,02 354,00
Como trabalho de casa para o leitor, fica a proposta para desenvolver tabelas com todos
os outros modos.
20 Em texto futuro do presente autor construir-se-á a escala cromática de 12 tons a partir de relações pitagóricas,
por ora, contudo, foca-se nas escalas diatônicas, também chamadas modernamente por modos gregos (mas mais
precisamente modos da Igreja).
21 A matriz intervalar mede todos os intervalos em relação a cada tom da escala, fornecendo os intervalos específicos
(linha) subtendidos por cada classe intervalar (coluna), desse modo caracterizando e descrevendo a escala com
precisão. Também cf. nota 22.
Tabela 09
Pela matriz apresentada percebemos que a escala diatônica pitagórica possui algumas
propriedades características de escalas diatônicas22, a saber: a) é uma coleção gerada bem-
formada23; b) é uniformemente distribuída24; c) é uma estrutura constante25. Em verdade, é dela
que se derivam as escalas diatônicas contemporâneas, afinadas minimamente diferente 26.
Talvez o mais interessante seja que, apesar da complexidade de algumas frações (27/16,
81/64, 243/128), essa afinação é facilmente atingida de ouvido, sem medições. É claro que se
faz necessário um instrumento sem trastes ou outras maneiras de fixar a afinação – isto é,
maneiras de fixar os intervalos entre notas, as distâncias entre elas – à parte isso, provavelmente
uma das primeiras afinações a que se chegaria seria a pitagórica. É mesmo sabido que quartetos
de cordas tocam bastante próximos da afinação pitagórica, numa afinação chamada entonação
justa, mas isso é assunto para outro dia27.
22 Cf. Propriedades das escalas diatônicas, também do presente autor, disponível em:
<http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/5526541.pdf>, acesso em 28 de janeiro de 2016.
23 Pela iteração repetida da quinta justa (3/2).
24 Trata-se do modo jônio, já considerado e dissecado (cf. nota 23), obviamente o padrão LLsLLLs separa ao máximo
os intervalos pequenos.
25 Nenhuma classe intervalar (coluna da matriz) possui intervalos específicos (frações presentes nas linhas)
presentes em outra classe, não havendo repetições significa que não há ambiguidade, de fato a condição necessária
para que uma escala seja particionada, ou, o que é o mesmo, para que tenha estrutura constante.
26 Cf. nota 2.
27 Cf. nota 20.