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Título original: As Areias do Imperador - Livro Três. O Bebedor de Horizontes
Autor: Mia Couto
Capa: Rui Garrido
Agradecimentos: Afonso Dambile, Feliciano Chimbutane e Filipe Branquinho
ISBN: 9789722128964
Editorial Caminho, SA
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© Editorial Caminho, 2017
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AS AREIAS DO IMPERADOR
uma trilogia moçambicana
LIVRO TRÊS
O Bebedor de Horizontes
RESUMO DOS ANTERIORES VOLUMES
prantos. Os militares portugueses eram tão poucos que se tornava ainda maior o
desconcerto de quem assistia ao inusitado desfile.
Não era apenas um imperador vencido que os portugueses exibiam. Era
África inteira que ali desfilava, descalça, rendida e humilhada. Portugal
precisava daquela encenação para desencorajar novas revoltas entre os
africanos. Mas necessitava ainda mais de impressionar as potências europeias
que competiam na repartição do continente.
Não era apenas entre nós, africanos, que emergiam querelas. Não há dia em
que os chefes militares portugueses não troquem acusações. E todos, europeus
e africanos, procuram-me para se lamentar. Não sei por que confiam em mim.
Mais do que tradutora sou uma ponte. Talvez eu seja a aranha que vivia no
pátio de Dabondi. Nas minhas patas carrego palavras e com elas faço uma teia
que une diferentes raças.
Durante a caminhada, Mouzinho de Albuquerque já me havia abordado de
forma casual. Desta vez senta-se a meu lado e permanece imóvel, sem tirar os
olhos de Álvaro Andrea.
— Aquele tipo odeia-me — afirma Mouzinho. — Posso dizer-te, nenhum
preto me despreza assim tanto.
O modo lento como o capitão pousa o chapéu sobre os joelhos denuncia o
seu propósito de conversar.
— Sei quem és — começa por dizer. — E tu sabes o que queremos de ti.
Traduzir será apenas a parte visível do teu trabalho.
Faz uma pausa cofiando o bigode. O reinado de Gaza durou demasiado,
disse. E sabes porquê?, pergunta. E ele mesmo responde: Este Gungunhana
sabia tudo sobre nós e nós nada sabíamos dele.
Aqueles negros ali sentados, com os pulsos atados, não são apenas simples
prisioneiros. É o que diz Mouzinho. São donos de valiosos segredos, e são
essas confidências que entregarei ao exército português. Esse é o verdadeiro
motivo da minha presença naquela jornada. Pigarreio, receosa:
— Entendi, meu capitão.
Mouzinho enrola um cigarro. Não o acende. Deixa-o pendendo preso nos
lábios. Olho-o de esguelha. É um homem bonito. Razões tinha Bianca para
sonhar.
— Agora, se me dá licença — peço num murmúrio —,volto para junto da
minha gente...
— Prefiro — diz Mouzinho — que te deixes ficar entre os brancos. É entre
eles que moram as mais graves traições.
Um mal-amanhado bilhete
Não vejas nisto uma carta. É um simples bilhete rabiscado à pressa. Não
tarda que me conduzam para Inhambane. Quero, mais que tudo, dar-te uma boa
nova: estou livre! Sobre mim já não pesam suspeitas da autoria da morte de
Santiago Mata. Para te ilibar declarei-me culpado. Era mais credível que fosse
eu o autor do disparo.
O meu sacrifício não teve custos maiores pois logo surgiu uma outra versão
dos acontecimentos que falava em suicídio. Ainda pensei que fossem os meus
companheiros republicanos que me tentavam salvar. Mas não. Quem defendeu
a tese do suicídio foi o próprio Mouzinho de Albuquerque. E quem iria duvidar
da palavra do grande herói? Fico a dever esse favor ao meu fiel inimigo.
Mouzinho, Mouzinho, Mouzinho! Quando deixará esse Mouzinho de me
ocupar tanto? Às vezes arrependo-me deste meu despeito: é tão fácil odiar o
sucesso dos outros! Mais vezes, porém, desconfio desta recente euforia de
Mouzinho. Como é que alguém tão fascinado pela morte se pode ocupar tanto
com a imortalidade?
O que importa, querida Imani, é que daqui a umas horas estarei no Hospital
Militar de Inhambane. Vou usar as enjeitadas mãos para ficar isento dos
serviços militares. Tenho esperança, melhor, a certeza, de que me fazem voltar
a Portugal. O meu anseio não é regressar. O que realmente desejo é
reencontrar-te. Se tudo correr bem ainda nos veremos em Lourenço Marques.
Entrego este bilhete a Álvaro Andrea, o comandante da lancha militar em
que irás embarcar em Zimakaze. É um velho amigo que comunga dos ideais
republicanos. Pela mesma via te farei chegar, mais tarde, uma verdadeira carta,
uma carta decente no tamanho e indecente nas entrelinhas.
Teu
Germano
Capítulo 3
A lama e a neve
[…]
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares!
[…]
(Fernando Pessoa, excerto da Ode Marítima)
Não se amaldiçoa o lugar onde se acaba de chegar. Assim me educaram.
Mouzinho não segue este princípio. Desde que chegámos não fez outra coisa
senão maldizer o posto de Languene.
— Vou mandar incendiar esta miséria! — resmunga. — Isto não é um
aquartelamento, é um esconderijo. Esta gente tem tanto medo de morrer que
faz tudo menos combater.
Vocifera contra o que chama de «cáfila de politiqueiros». E alerta para uma
conspiração de «intriguistas». Usa esses termos com a mesma raiva com que
Ngungunyane chama de «mulheres» aos seus inimigos.
— Imani... É assim que te chamas, não é? A minha dúvida pode parecer-te
estranha mas preciso de perguntar: sentes que pertences a um país, a uma
nação?
Fala sozinho. E responde por mim. Está certo de que me falta esse
sentimento de pertença. Apesar da minha aparência, continuo a ser uma
indígena, leal à família, fiel à raça. E lembra a maldição que recai sobre os
irmãos gémeos. Estando perante um desses irmãos, pensa-se reconhecer o
outro e, assim, acabamos por não conhecer nenhum deles. Era assim que ele
me via a mim e aos demais africanos: todos gémeos. Da próxima vez que
falássemos eu teria de recordar-lhe o meu nome.
Tudo isso se passara dias antes, naquele mesmo lugar. No fim do relato,
Mouzinho volta a cobrir a cabeça e a sombra do chapéu obscurece-lhe as
palavras.
— Percebes agora por que desconfio desse Andrea? — pergunta-me
Mouzinho. E movimenta o assento como se, ao fazer-se mais próximo, nos
tornássemos mais coniventes. Álvaro Andrea, começa por dizer Mouzinho,
apostara que ele seria morto em Chaimite. E ali estava ele, vivo e vitorioso.
Mouzinho era um espinho cravado no seu orgulho. Como entregar nas mãos
desse traidor o mais precioso troféu de todas as guerras coloniais portuguesas?
Passam por nós soldados que se dirigem ao rio para lavar os pratos.
Mouzinho sacode a cabeça e lamenta-se:
— Há poucos dias estes homens saudavam a prudência do seu comandante.
Hoje todos eles o maldizem.
O que antes tinha sido ponderação é agora cobardia. Por culpa de Andrea,
aqueles jovens foram excluídos do panteão dos heróis.
Aproxima-se de nós um soldado branco, com ar apatetado. O capitão anuncia
o visitante:
— Ora aqui está o único soldado português que está em África sem nunca
ter saído da sua aldeia ribatejana. Eis alguém que viu neve no meio do inferno.
O jovem soldado ergue-se na ponta dos pés, o corpo todo espigado numa
caricata continência:
— Apresenta-se o 222, da terceira companhia do regimento de infantaria.
De repente deixo de o ver. O jovem português estava à minha frente mas, em
seu lugar, surgia o meu irmão Mwanatu. A mesma caricatura de soldado, a
mesma desajeitada farda. E a mesma distância da realidade: Mwanatu Nsambe
acreditando ser branco de nascença e este português tomando por neve a tórrida
areia dos trópicos. Apetece-me abraçar o soldado. Contenho-me quando me
enfrenta, a um tempo distante e curioso:
— És tu a preta que fala português? É verdade que falas melhor do que a
maior parte dos brancos?
A minha resposta é um sorriso. Espero que ele corresponda. O moço, porém,
bate continência e retira-se movido por uma estranha urgência. Mouzinho
contempla o soldado 222 que se afasta e comenta:
— Este é um anjo estúpido, tombou de cabeça na terra. Mas não deixa de ser
um desses anjos cuja única função é lembrar que vivemos num inferno.
Os soldados são como os caçadores: as suas histórias têm pouco a ver com a
realidade. Ninguém com isso se importa. Na verdade, só os mortos sabem
exatamente o que é a realidade.
João da Purificação, o mais novo dos soldados portugueses, já se esquecera
da primeira das realidades: o seu próprio nome. Desde há um ano que ele não
era senão um número: o 222. Queixava-se? Muito pelo contrário. Não havia
para ele nome mais sublime. Distintamente dos outros soldados, o ex-João da
Purificação não tinha glórias para contar, com exceção de umas viagens que só
existiam na sua cabeça. Poder-se-ia dizer que é assim que as viagens sucedem
sempre: dentro da nossa cabeça. A verdade, porém, era outra: o 222
enlouquecera. Na mais bravia paisagem de África, o soldado via um lugarejo
de Portugal. Em cada um dos negros reconhecia um compadre da sua pequena
aldeia. E não havia rio de Moçambique que não se chamasse Tejo e que não
atravessasse a sua infância.
Os soldados provocam João da Purificação na esperança de que ele volte a
descrever as suas delirantes viagens. O 222 acaba cedendo aos convites e, feliz
por ser notado, proclama:
— Escutai-me bem, meus irmãos: o mundo inteiro é um arrabalde da nossa
terra natal.
— Viajaste assim tanto? — incitam os outros.
— Naveguei tanto que não há céu que estes meus olhos não tenham tocado.
— E como é o firmamento lá mais à frente? — perguntam-lhe.
— Lá mais adiante deixa de haver céu. É tudo terra, é tudo Portugal.
Capítulo 4
Minha querida
Andorinhas e crocodilos
A jornada até Xai-Xai deveria durar dois dias. Mas a súbita tempestade
impede o progresso da lancha e isso deixa transtornado Mouzinho de
Albuquerque. Para o capitão não há tempo a perder: a glória espera por ele em
Lourenço Marques. Não seria um estuário revolteado que faria protelar a
celebração dos seus feitos. Habituado a mandar, é-lhe difícil assumir um tom
solícito: Prossiga a viagem, comandante Andrea, este barco foi feito para
galgar tempestades.
Álvaro Andrea enfrenta o olhar altivo de Mouzinho e depois replica com
azedume:
— No seu cavalo manda o senhor; aqui quem comanda sou eu.
Mouzinho podia resolver a discussão numa penada, fazendo uso dos galões.
Para além de capitão, ele é agora o governador do distrito militar de Gaza. Mas
prefere regressar a um tom mais apropriado. Estão ali os presos que se
entreolham, estranhando a desavença entre os chefes brancos. Encolhido entre
a bagagem, Ngungunyane acredita ser ele o motivo daquela altercação. Os
portugueses, desconfio, discutem a sua sumária execução.
— Sabe por que prendi tão facilmente o chefe dos Vátuas? — pergunta
Mouzinho ao comandante do navio.
No momento da prisão, explica o capitão, os guerreiros de Ngungunyane
imaginaram que o destacamento que tinham diante de si era uma reduzida
amostra de um enorme exército que os cercava para além do horizonte.
— É por isso que lhe digo, caro Andrea — conclui Mouzinho —, nunca se fie
na linha do horizonte.
Minha querida
Germano de Melo
Capítulo 7
As mãos e as mães
*
Alvoroçam-me os pressentimentos da rainha. E sou tomada por uma espécie
de delírio: aquele é o fim de tudo, os meus quinze anos vão-se afundar,
inglórios, nas águas turvas do Limpopo. Vou em busca do comandante Andrea,
que deambula pelo convés com uma lanterna nas mãos. Faz lembrar um
xipoco, um desses fantasmas insones que assombram as crianças. O português
demora a reagir ao meu pedido:
— Comandante, empreste-me essa lanterna, por favor.
— Para quê?
— Não sei. Apetece-me ver Germano.
— Germano? Por amor de Deus, Imani!
— Posso estar louca, mas deixe-me espreitar...
— Não se demore, não posso ficar sem a lanterna. Há aqui quem me queira
fazer mal.
O gesto trémulo, as mãos quase imateriais, o comandante entrega-me aquele
frágil luzeiro. O vento sacode o facho, que ilumina mais o meu corpo que o
caminho. A cada pincelada de luz torno-me mais e mais distinta, uma espécie
de vagalume deambulando no escuro. Talvez seja por isso que os olhos dos
marinheiros se concentram, vorazes e carnívoros, sobre o meu vulto. Procuro
Mouzinho para lhe implorar proteção. Pedir-lhe-ei que me proteja de duas
ganâncias: a dos meus irmãos negros que me querem morta e a dos brancos que
desejam violar-me.
É então que Álvaro emerge das sombras e me arranca a lanterna das mãos:
Pronto, acabou, declara. Tenho eu mais razões para temer o escuro.
Mudungazi Ngungunyane
Um lenço branco
iluminando o passado
A rainha Muzamussi receia que o navio possa avançar terra adentro. Implora
aos gritos que não desamarrem o monstro. Ngungunyane ordena que a mulher
se cale. Dali em diante nenhuma das esposas volta a falar sem que seja
autorizada. Dabondi sorri com desdém: o imperador reconhece, enfim, a
fragilidade do seu império e a precariedade do seu harém. Com sangue tomou
posse da terra. Com sémen se apropriou das mulheres. Todo esse comando
agora lhe escapa. É por isso que grita com as esposas. A única autoridade que
lhe resta é ser um homem entre as mulheres.
Querida Bianca
Germano de Melo
PS. Pode suceder que, por um feliz acaso, a minha amiga encontre Imani
durante os festejos de Lourenço Marques. Se isso acontecer imploro que fale de
mim e das cartas que lhe enviei. Se não as recebeu, ela que insista com o
comandante para reaver o que lhe pertence. De qualquer modo — e para
prevenir qualquer dissabor — fiz cópias desses textos. Em anexo a esta missiva
seguem essas reproduções. Entregue-as a Imani, por amor de Deus.
Capítulo 12
Pegadas no orvalho
Para a rainha não existem dúvidas: aquele navio, todo de ferro, foi fabricado
a partir de sobras de canhões e espingardas. Por fora cheira a maresia, por
dentro cheira a pólvora. Todas as outras mulheres da corte perderam a conta
aos filhos que pariram. Apenas ela teve um único menino. Tão franzino tão
diminuto, que aconchego encontraria num lugar feito de restos de canhões?
Olho para Dabondi e penso: a jovem rainha está perdida. Se a vida fosse
justa bastaria ser mulher para se ser rainha. Esta rainha, porém, é a mais triste e
carente das criaturas. Para se sentir viva ela necessita de que o marido a deseje.
Por esta razão as mulheres da corte, todas elas, precisam de ser belas. Dabondi
é formosa mas sabe que a beleza, no desamparo em que vive, dura pouco. Por
isso imita as sombras: todos os dias desaparece. Uma miragem não envelhece.
E é assim que gostaria que o marido, o imperador, a surpreendesse: uma
miragem viajando sobre o mar.
O rei quer ver-te, diz Dabondi. A mim?, pergunto. Não há dia em que ele não
te veja nos sonhos, responde a rainha.
Dabondi conduz-me ao quarto do comandante. É lá que se encontra
Ngungunyane. Tinha acabado de ser interrogado. O interrogatório correra bem.
Só isso explica que Álvaro Andrea tenha deixado que o rei de Gaza tome conta
do seu compartimento. Pede Ngungunyane que Dabondi se retire. Está
preocupado, o soberano dos vanguni: o seu irmão, o rei D. Carlos não
respondeu aos seus pedidos: Zixaxa continua a partilhar o mesmo espaço,
dormindo e conspirando contra ele no escuro. Não entregaram a minha carta a
D. Carlos. Está convencido de que alguém o traiu, desviando a mensagem para
um outro destinatário. Não houve tempo para que a carta chegasse a Lisboa,
digo. Falo em vão. Ngungunyane apenas a si mesmo se escuta.
— Quer que escreva uma nova carta? — pergunto.
Sorrindo, o rei de Gaza acena com um papel e declara: Já vais tarde, minha
filha. Andrea acabou de me ajudar. Contei-lhe segredos e, em troca, ele redigiu
esta carta. Quem serviu de tradutor foi Godido. Sabe menos português, diz o
rei, mas conhece melhor o que é a lealdade.
Se escolheu outro escrevente por que está aqui comigo? — indago com
inesperada fúria.
Surpreende-me o meu despeito por terem escolhido um outro escriba. A
escrita, percebo então, inverte as hierarquias: quem dita uma carta tem menos
poderes do que quem a escreve.
O rei encosta-se a mim. Esfrega-se voluptuoso. Mantenho-me imóvel à
espera que desista. Pede-me que lhe acaricie os joelhos. Estranha que não lhe
obedeça de imediato.
— Os joelhos — repete o rei. — Vou explicar-te por que um homem precisa
de bons joelhos.
Antes de partir para a guerra um pai de família ajoelha-se frente à sua mulher
e pede que ela pronuncie o nome dos seus amantes. O guerreiro deve
permanecer de joelhos até obter uma confissão de deslealdade. Se, por acaso,
um soldado morrer em combate fica provado que a esposa mentiu.
— Há algo de errado nessa história, meu rei. Nenhum homem se ajoelha
perante uma mulher.
Ngungunyane ri-se, divertido com a minha impertinência. Não entendeste
nada, diz. Não é às esposas que os chefes de família dirigem o pedido. Seria
tempo perdido, as mulheres mentem sempre. Os homens, diz Ngungunyane,
ajoelham-se para que as mulheres pensem que se apresentam submissos.
Vou-me afastando lentamente enquanto o monarca continua divagando.
Quando dá conta estou no canto oposto do quarto.
— Não vou perder mais tempo — diz Ngungunyane. Quero apenas que me
leias uma carta que ditei a Andrea. — Quero ficar sem dúvidas sobre o que ele
escreveu.
Demoro a recolher a folha que me quer entregar. Dou-me importâncias,
como diria a minha mãe. E percebo, logo nas primeiras linhas, que Álvaro
Andrea foi longe no embelezamento do texto. Ambos aportuguesamos
demasiado as palavras do rei dos vanguni. Vou traduzindo lentamente para que
Ngungunyane me acompanhe:
«Meu irmão,
Rei de Portugal
Venho falar-lhe de traição. Não é este o assunto que mais ocupa os reis, em
todo o mundo? Foi sempre assim: o sangue da família real é o mesmo que corre
nas veias dos seus assassinos.
Desde o início desta viagem que trago um traidor amarrado aos pés. Quem
deu esse nó não foi uma mão branca. Por esta razão lhe agradeço ter autorizado
o meu leal ajudante de campo, o jovem Ngó, a viajar comigo. Ambos sabemos
que, sob a capa de cozinheiro, se esconde uma outra função: a de provador do
rei. E ambos temos que reconhecer: abusamos do uso desta silenciosa arma.
Envenenámos tantos poços que acabámos matando a nossa própria gente.
Guardemos esse segredo. Essa é outra vantagem do veneno: a morte acontece
longe, num tempo que não pertence a ninguém.
Uma vez mais lhe peço, agora que vai começar a grande viagem: separe
Zixaxa de mim. Esse maldito mfumo que fique longe, onde não veja o meu
sono nem escute os meus sonhos. Os meus companheiros de cela já me viram
dormir, comer, urinar, defecar. Que autoridade posso ter diante deles? Por
favor, meu irmão D. Carlos, afaste de mim esse traidor. Elimine este homem,
ninguém notará, ninguém reclamará. Fica, como o veneno que usamos em
excesso, um segredo entre nós.
O rei de Gaza
Lourenço Marques, 4 de janeiro de 1896»
Cara Imani
«Em qualquer país civilizado atos de guerra como estes praticados pela
nossa esquadrilha do Limpopo, além de serem condenados pelos princípios
humanitários e parecerem repugnantes a briosos cavaleiros, provocariam
reações violentas, reações de ódio e vingança dos povos castigados pelas
culpas do soberano; em África, porém, não se manifestam tais reações, porque
só podem produzi-las noções elevadas de moral e sentimentos de justiça e de
dignidade que falecem aos negros.»
Devia poupar-te a estas ofensas à tua raça. Mas quero que saibas como
pensam aqueles que me comandam. Depois da resposta de António Enes
abandonei a minha lamentação epistolar. Concentrei-me na redação de um
relatório sobre as imoralidades cometidas por Mouzinho de Albuquerque. Sou
ingénuo mas não sou estúpido: ninguém quer saber dessas denúncias. A
aventura em Chaimite, a «Chaimitada» — é assim que lhe chamo — é uma
boia de salvação da monarquia. Será preciso que os festejos esfriem para que se
aceite uma outra versão dessa inventada epopeia.
Talvez Mouzinho te tenha relatado como me encontrou no posto de
Languene. Era Natal e o heroico capitão fez questão de ridicularizar a festa que
eu, com tanto zelo, preparara para os nossos soldados. Pediu-me emprestada
uma espada e, num acometimento absurdo, espetou-a no meio do pântano.
Quem a apanhou foi o tenente Miranda e, por lapso, levou-a consigo para
Chaimite. E o impensável sucedeu, minha cara Imani: foi exatamente essa
minha espada que usaram para trespassar o coração dos dois fuzilados. Fecho
os olhos e vejo sangue. Essa espada golpeia-me o sono, todas as noites.
Não me verás amanhã no desfile. Estarei longe, de volta ao rio Limpopo.
Não seria capaz de suportar essas exibições circenses. Na verdade, não diferem
muito das encenações dos outros pavões europeus. Grande ilusão!
Reivindicamo-nos donos de um continente que desconhecemos. É mentira que
a Europa tenha conquistado África. Tomam o desejo por realidade. Apenas
comandamos pequenas e dispersas feitorias junto à costa. Essas feitorias
conheço-as eu e elas contam-se pelos dedos. Todo o resto do continente
continua a ser governado por reis e imperadores africanos. Duas Áfricas se
revezam como misteriosas mulheres: uma noturna, outra diurna. Não
conhecemos nenhuma das duas. Para manter a aparência do nosso poderio,
precisamos de exibir o rei de Gaza pelas ruas de Lisboa. Não se trata de uma
deportação. É uma feira.
Saudades.
Álvaro Andrea
Capítulo 14
Desfiles e delírios
Nunca pensei que houvesse tantos brancos no mundo. Nem pretos, para dizer
a verdade. Mas agora vejo-os, uns e outros, a aplaudir freneticamente as tropas
portuguesas que desfilam na única avenida da cidade. Soldados de todas as
raças fazem continência perante uma tribuna repleta de individualidades
coloniais. No centro do palanque encontra-se o governador interino, Correia
Lança, rodeado por diplomatas de várias nações. Os lugares de honra foram
reservados para os comandantes dos cruzadores alemão e inglês estacionados
no porto. Em redor do estrado aglomeram-se jornalistas portugueses e ingleses.
Naquela tribuna estão, enfim, todos menos quem mais direito tem de ali estar: o
capitão Mouzinho de Albuquerque. Aquela ausência enerva o governador que,
entredentes, vai repetindo a ordem:
— Chamem Mouzinho! Chamem-no, rápido. Todos o querem aclamar.
Um diligente emissário sai à procura do herói. Sei onde o irão encontrar:
sentado junto ao leito de morte do major Caldas Xavier. Mouzinho confessou-
me no dia anterior: aquele era o pior momento para se festejar. Vítima de
doença tropical, agonizava o grande obreiro da ofensiva militar portuguesa em
Moçambique. E passou pela cabeça de Mouzinho que a vida era feita de
desencontros. Durante meses Caldas Xavier tinha sido administrador da
Companhia de Ópio da Zambézia. Um campo de papoilas a perder de vista
embalou, durante meses, o sono do major português. Esse mar de flores
vermelhas desvanece agora sob as suas pálpebras.
Para os brancos, Caldas Xavier era vencido por uma doença. Para nós, os
negros, o homem era vítima de um serviço encomendado. Na nossa terra não se
morre de um «quê». Morre-se de um «quem». A morte não tem causa. Apenas
culpado.
*
A um certo ponto, cruzamo-nos com um velho curandeiro. Andrea saúda-o
com «senhor doutor». E não há ironia. Até há pouco tempo não havia médico
em toda aquela povoação. Os brancos eram tratados por este nyamussoro da
etnia dos mfumos. O velho curandeiro ri-se quando Andrea evoca esses
tempos. Por cada soldado que curava, recorda num improvisado português, ele
recebia uma capulana. E como os brancos não parassem de adoecer, o homem
acumulou panos até não ter casa para os guardar. Perdeu a conta aos
casamentos que contraiu para dar destino a tanto tecido.
— Cuidado com as mulheres — avisa o velho curandeiro apontando para
mim. — Não há melhor doença.
É então que surge, afobado, o tradutor Zeca Primoroso. Está irreconhecível,
olhos arregalados, cabelos desgrenhados. Pede ao curandeiro que se afaste. O
que nos quer dizer é confidencial.
— Fui mobilizado, capitão. Vão enviar-me para a frente de guerra.
Primoroso vem de uma reunião de emergência no Comando Militar do Sul,
onde atuou como tradutor. Chegaram à cidade informações preocupantes sobre
a situação que se vive em Gaza desde a prisão do rei. Há sinais de que o
exército dos vanguni se reorganiza.
— Ouviste o Ngungunyane comentar sobre este assunto? — pergunta-me o
português.
Encolho os ombros. Faço por esquecer o que, nos últimos dias, o rei deposto
não parava de repetir: Esta guerra não está a voltar. Ela nunca chegou a sair.
No início do tempo,
havia apenas uma aldeia e um poço.
E o homem sentiu
que era chamado pelas águas sem fundo.
Bartolomeu
e o caminho marítimo para o céu
«... Tem razão Dabondi quando diz que o navio é uma prisão. O
oceano é tão infinito que cria um sentimento de clausura. O ruído
da quilha rasgando as ondas, o subterrâneo vibrar das hélices, o
lúgubre lamento das chaminés, o metálico correr da âncora: tudo
isso me traz uma fadiga milenar.
O Gungunhana está certo quando se lamenta que não existe
neste navio uma pedra onde se possa sentar. Já quase não há
madeira nos barcos de hoje. Agora as embarcações pedem pouco
ao vento. Tal como essas mulheres, que pararam de sonhar e se
deixam engordar, estes navios deram-se ao luxo de ser pesados.
Não posso dizer quanto me cansam estas ambulantes prisões.
Apesar de tudo, sempre que me demoro em terra volto a ser
tentado pelo chamamento de um mar longínquo. E, de novo, me
faço ao cais, de novo sigo viagem.
Essa é a indecifrável sedução do mar: nenhuma voz é tão
humana, nenhum silêncio é tão cheio de histórias.»
(Excerto do diário do comandante
António Sérgio de Sousa)
À saída de Lourenço Marques a rainha Dabondi vaticinou que ia chover.
Uma água lê-se noutra água, disse ela fixando-me demoradamente os olhos.
Tinha razão a rainha: desde ontem que chove tão intensamente que se deixou
de ver o mar.
Atravesso lentamente o convés como se marchasse por dentro de uma
nuvem. Fui chamada pelo capitão António Sérgio de Sousa.
Sacudo as vestes e a medo entro no camarote do capitão. O aposento é
espaçoso e iluminado. A primeira coisa que vejo é um pássaro pousado no
ombro do português. O bicho espreita-me, curioso, numa postura híbrida entre
príncipe e palhaço. Depois assusta-se e bate as asas para se refugiar numa
gaiola pendurada no teto. O comandante chama-o: «Bartolomeu!» E o pássaro,
um papagaio do Congo, responde: «Pronto, meu capitão!» Salta para a mesa e
caminha com o andar oscilante dos anões.
— De vez em quando suja-me os mapas — lastima-se o comandante.
O papagaio ensaia um desajeitado voo que faz sobressair a cauda vermelha
por entre a plumagem cinzenta. Pergunto se devo fechar a porta. Deixe-a
aberta, recomenda Sousa. Bartolomeu criou as suas rotinas: esvoaça pelo
convés, em pleno mar alto; em terra não sai do camarote, com medo das
gaivotas.
— Quanto ao pássaro estou tranquilo. Não estou certo é se não devemos
separar esse Zixaxa do rei de Gaza.
— Zixaxa não vai molestar Ngungunyane.
— Como podes estar tão certa?
— Zixaxa acredita que se Ngungunyane morrer vocês, os portugueses, o
atiram ao mar. Sem o rei, nenhum dos prisioneiros tem mais valor.
A intenção de António de Sousa é oferecer o papagaio ao filho, que vai
completar oito anos. O menino nasceu na Índia mas cresceu em África. Agora
está em Lisboa e sofre de asma. Acredita o capitão que o filho sente falta dos
céus africanos. Não é no chão, é nos céus que ele mais encontra África.
Sonho que viajo num navio comandado por um capitão negro. O navio
chama-se Europa e tem o casco pintado de cores garridas como os panos
africanos. Os mastros são árvores e dão sombra ao convés. O vento espalha
folhas sobre o mar.
Um roçar de dedos na porta interrompe-me o sonho. Deve ser Dabondi,
penso estremunhada. Dou um jeito ao cabelo e, com inesperada dificuldade,
amarro uma capulana à cintura. Estou de cinco meses, não tarda que seja
devorada pela minha própria barriga.
Voltam a bater. Entreabro a porta. É o missionário Roberto Machava. Mãos
apressadas antecipam-se ao rosto do visitante:
— Vê este desenho — pede-me.
Estremeço. É um desenho a cores que, em criança, fiz para o meu pai. Nele
se via uma aldeia queimada e corpos jazendo no chão. Sob as figuras está
escrita uma legenda, uma jura de vingança contra as tropas de Ngungunyane.
— Como conseguiu este papel? — pergunto, alarmada.
Deixa-me entrar. Não posso falar aqui no corredor.
Venha noutra altura.
Este é o melhor momento. Estão todos distraídos com a chegada à próxima
cidade.
O pastor entra e fica encostado à porta como se a quisesse duplicar. Deixa de
falar português e explica-se na sua língua materna. Machava tinha passado pelo
Save e visitara o meu pai, Katini Nsambe, e a sua atual esposa, a profetisa
Bibliana. O meu pai estava certo de que o missionário me encontraria em
Lourenço Marques. Quando lhe entregou o desenho, o meu velhote foi
categórico: «Entregue a Imani para que ela não se esqueça do que prometeu.»
— Fiz a mesma promessa — afirma Machava. — Também busco a mesma
vingança e preciso da tua ajuda.
— Peça ajuda a Zixaxa.
— A todos menos esse. Estou preso, junto com os meus companheiros,
graças a esse traidor.
Reabre a porta e espreita o corredor, a confirmar que ninguém nos escutava.
Depois volta a trancar a porta. O seu rosto está perto do meu quando confessa:
Estou a preparar uma revolta. Sacudo a cabeça e ele repete: É o que estou a
preparar, uma sangrenta rebelião. O plano é simples, mas de uma lógica
arrepiante: vai matar o rei de Gaza. Sem Ngungunyane, os portugueses
chegariam a Lisboa de mãos vazias, sem prova da arrebatadora vitória que
tanto proclamavam. Se o matássemos agora, argumenta Machava, seria
impossível preservar o cadáver até chegarmos a Lisboa. As nações europeias
pensariam que Portugal tinha forjado uma desajeitada encenação. O plano do
missionário fechava com chave de ouro: no interior de Moçambique os
religiosos protestantes clamariam que Ngungunyane continuava vivo, errando
pelas montanhas do Transvaal. E quem, neste mundo, poderia provar o
contrário?
— Vou dizer-te o que deves fazer — declara o missionário.
— Não! Não me diga nada. Não estou preparada.
Uma terrível dúvida me assalta: se Ngungunyane morrer na viagem, por que
motivo continuariam a levar-nos até Lisboa? Seríamos certamente
abandonados em Luanda ou em Cabo Verde. Nunca mais veria Germano,
nunca mais o meu filho conheceria o pai. Fiz uma promessa de vingança, é
verdade. Mas não tenho que a cumprir agora.
— Escuta, minha filha.
— Vá-se embora, pastor Machava. Vá-se embora ou eu grito!
— Pensa no que te pedi — murmura o pastor à saída.
Passa pelo sentinela, que dorme. Vejo-o desaparecer no porão. Tranco a porta
e suspiro. Várias angústias me roubam o peito: a minha recusa em ser cúmplice
de um assassinato não basta. É imperioso fazer abortar aquele plano. Há que
denunciar, sem demora, as intenções do missionário. Não é difícil, porém,
adivinhar as consequências dessa denúncia: lançarão ao mar o Machava e os
seus correligionários. Resta-me a impossível escolha entre dois crimes.
O África aproxima-se agora de uma terra que não é igual a nenhuma outra.
No horizonte se adivinha a Cidade do Cabo. Um maciço de montanhas
cinzentas emoldura a cidade. Contemplo aquelas montanhas como, na prisão, o
condenado espreita uma nesga de céu.
Vigiados por militares, os presos são autorizados a disfrutar da paisagem.
Dabondi junta-se a mim e ao capitão. Aperta-me as mãos, fascinada pela visão
de um continente que parece acabado de nascer. E profetiza:
— Virá o dia em que um negro conduzirá um navio como este. Depois dirige-
se a mim para ordenar: Traduza, Imani. Esse português deve saber desse
futuro.
— Só se o mar se tornar um rio — contesta António de Sousa, assim que lhe
traduzo o presságio.
— O mar sempre foi um rio — afirma Dabondi.
Rimo-nos eu e o comandante. No rosto da rainha se esboça um vago sorriso.
O português olha em redor com receio de que alguém nos surpreenda naquela
animação. Inclinado sobre a rainha pergunta: É bom ver terra, não é?
Não espera resposta. Quer apenas ser escutado. A noite passada não tinha
pregado olho pensando nas palavras de Dabondi. A rainha tinha razão: aquele
barco era uma prisão. Durante a insónia pensou nos colegas que abandonaram a
Marinha e se puseram a deambular por terras africanas. Não escolheram tornar-
se pioneiros. Estavam apenas cansados da clausura do mar. As feras, a selva e
as tribos primitivas, tudo isso era preferível à eterna solidão do oceano.
É bom ver terra, repete para si mesmo. Antes de se retirar, o comandante
transmite ordens ao sargento Araújo:
— Vá lá abaixo com estas duas mulheres e prepare o régulo para receber as
visitas. Dê-lhe vinho e uma roupa apresentável. Quero o homem num brinco.
*
Um involuntário suicídio
Foi há instantes que Dabondi recebeu a mais grave das notícias mas parece
ter passado um século desde que ela desapareceu. Sozinha no meu cubículo
temo que, desesperada, se tenha lançado ao mar. E eis que, de rompante, se
abre a porta da minha cela e surge Dabondi escoltada por dois militares. Vem
desgrenhada e coberta de cinza. Empurram-na para cima do leito enquanto lhe
ordenam, aos gritos:
— Vais ficar aqui quietinha!
E mandam que traduza: a partir daquele momento, a rainha ficará
enclausurada no quarto com um guarda à porta.
— O que aconteceu? — pergunto.
— A tua amiga tentou suicidar-se. Desceu à casa das máquinas e tentou
atirar-se para o forno. Se não fôssemos nós seria agora um pedaço de carvão.
— Pedaço de carvão é o que ela sempre foi — ironiza o outro militar.
Suspendem as gargalhadas para me advertirem de que, a partir de agora, me
compete cuidar de Dabondi. A rainha não tem qualquer importância para os
portugueses. Convém, todavia, que o número das prisioneiras negras se
mantenha intacto. Quanto mais mulheres forem exibidas em Lisboa mais o rei
se apresenta como autenticamente africano. É o que dizem os soldados. Toma
conta dela, repetem ao se retirarem. Do lado de fora escuto a chave a rodar. E
percebo então que, doravante, faço parte dos prisioneiros.
Fico um tempo a contemplar a rainha. Falta-lhe corpo, falta-lhe vida. Mais
do que nunca estou desvalida. Perante o tamanho daquela dor qualquer
tentativa de conforto se torna ridícula. De repente, Dabondi ergue-se como se a
alma tivesse deixado de lhe pesar:
— Abram a porta. Quero falar com Ngungunyane.
Negoceio com os guardas. São irredutíveis, a rainha não pode sair. Em
contrapartida, autorizam que o rei se desloque até ao nosso quarto. Minutos
depois, apresenta-se Ngungunyane. Dabondi não espera que ele cruze o vão da
porta para declarar:
— Todos pensam que Mangueze era o teu filho preferido. Todos acham que
foi por amor que o enviaste para Lisboa. Foi o contrário: querias afastá-lo.
Esperavas que ele fosse devorado pelo mar.
— Dabondi, minha esposa — apela o rei. — Queres acusar-me porque estás
a sofrer.
— Não sou tua esposa — responde Dabondi. — Nunca fui mulher de
ninguém. Saberás o que é o peso da culpa. E não haverá bebida que te alivie.
Seguem-se as ameaças. O imperador sofria de maus sonhos? A partir de
agora teria pesadelos mesmo quando não sonhasse. E de pouco lhe valeria o
suicídio. Mesmo depois de morrer esses fantasmas não deixariam de o
consumir. E Dabondi termina, rainha em exercício, dando ordem aos
portugueses: Levem-no, não o quero ver mais.
Ngungunyane retira-se, em silêncio. A porta fecha-se. Só então Dabondi
desaba em pranto.
Os amnésicos defuntos
E faço como sempre fiz: perante um festejo guardo-me na margem, longe das
luzes e do ruído. António Sérgio de Sousa junta-se a mim, as mãos afundadas
nos bolsos do casaco. Passam por nós dois soldados arrastando o velho
Mulungo, tio de Ngungunyane. E levam-no até ao sargento Araújo. Este
cabrão fugiu do porão, dizem, batendo continência. Mulungo é magro, digno e
distante. Não quer aprender uma palavra de português e envergonha-se dos
ataques de pavor do rei de Gaza. O comandante Sousa reconhece-o. E ordena
que o soltem: Esse velho é o tio do Gungunhana. Está autorizado a assistir aos
festejos. Os outros é que não.
Os «outros» são os correligionários de Roberto Machava. Ficaram no porão,
com reforçada vigilância. O meu alerta funcionou, penso, não sem alguma dose
de culpa.
— Toda esta viagem é uma farsa — suspira Sousa. — Andamos a inventar
um rei que nunca existiu.
Véspera da terra
12 de março de 1896
António Sérgio de Sousa
Excelentíssimo capitão
António Sérgio de Sousa
O sargento
Júlio Araújo
Capítulo 22
A luz de Lisboa
Dei-me ao mar
num perpétuo sonho de navio
e tive das ilhas
a redonda ilusão de um infinito.
Depois,
quebraram-se os remos
e rasgou-se o fundo de todos os navios.
O meu naufrágio
aconteceu sem nenhuma grandeza,
foi um simples vazar de maré.
E na areia da praia
para sempre se apagou a lembrança
de alguma vez ter havido mar.
(Versos do diário de bordo de
António Sérgio de Sousa)
Eis Lisboa, o último porto, o fim da viagem. No navio, os soldados, em
lágrimas, acenam com os bivaques aos que esperam no cais. Algo de
inesperado nos une na guerra, africanos e europeus: do outro lado do mar, na
terra distante em que nascemos, todos nos julgam mortos.
Passos vigorosos e rosto tenso, a rainha Dabondi atravessa o convés abrindo
alas entre os tripulantes. Da casa das máquinas trouxe uma pá que arrasta
ruidosamente atrás de si. Sente a areia a crescer dentro da boca, cospe para
poder respirar. Procura o capitão do barco, quer saber onde está enterrado o
filho, João Mangueze. A primeira coisa que fará depois do desembarque é
visitar essa sepultura. Se assim não proceder, a terra que sobrou da cova
crescerá dentro dela. Todas as mães que perderam os filhos são sepultadas por
dentro, diz Dabondi. E volta a cuspir areia.
O capitão explica que será difícil alguém saber daquela sepultura. A cidade é
muito grande, argumenta. Dabondi estranha: que grandeza tem uma terra que
não sabe onde foram semeados os seus mortos?
— Pior que ver um filho morrer — diz ela — é aprender a esquecê-lo ainda
vivo.
O capitão Sousa sacode a cabeça confuso. E pergunta-me, em surdina: Mas o
filho dela não morreu? E eu respondo: Depois de mortos, os filhos tornam-se
ainda mais vivos. A rainha tosse e o chão fica coberto de areia. O português dá
um passo atrás, receoso. Quando recupera a respiração, Dabondi afirma: A
mulher e a terra têm a mesma boca. E entrega a pá ao português. Desenterre-
me, capitão, pede a rainha. Desenterre-me, antes que eu sufoque.
Um soldado segreda ao ouvido de António de Sousa: Prenda-lhe as mãos, há
em África mulheres que se suicidam comendo terra. O capitão está sentado
com a pá sobre os pés. Não sabe o que fazer. Ocorre-lhe apenas escutar uma
mãe lamentando-se.
— Todos os dias parimos o mesmo filho — diz Dabondi. Todos os dias o
cordão umbilical renasce para voltar a ser decepado. Durante a vida inteira a
mãe recomeça o parto, escuta o primeiro choro, sente o primeiro riso. Todo o
parto infinitamente se reparte.
Dabondi faz o que desde o princípio do tempo todas as mães fizeram:
recolhem as pegadas dos filhos que partiram. Assim o chão se torna mais vivo.
E a terra ganha a curvatura de um ventre.
Deve haver um sol dentro deste rio. Só assim se explica a luz de Lisboa. É o
que digo ao capitão enquanto contemplamos as colinas da cidade. António de
Sousa admite, sorrindo: a cidade deveria chamar-se «Luzboa».
É manhã do dia treze de março de mil oitocentos e noventa e seis. O navio
progride, lento e vaidoso, pelo estuário do Tejo. À nossa volta há mais barcos
que gaivotas. E são de todos os tamanhos e feitios: lanchas, canoas, fragatas,
botes a motor, à vela e a remos, todos carregados de gente que acena num
infinito alarido. Para os portugueses é uma festa. Para os prisioneiros é um
prenúncio de fim do mundo.
Mais perto do cais percebemos como a multidão se estende e ondula ao jeito
de um outro mar. Escutam-se os gritos:
— Já chegou! Já chegou o Gungunhana!
Os motores são desligados, ao longe a terra balança, informe e ébria. Desço
ao quarto para escapar das náuseas. Espreito os degraus para além do ventre.
Estou no sexto mês de gravidez.
Ainda não atracámos e começa a invasão dos jornalistas, que chegam
transportados em barcaças. Sobem a bordo com tal entusiasmo que ninguém os
impede de visitar o cubículo que, durante dois meses, serviu de prisão aos meus
conterrâneos. O sargento apressa-me a que siga os jornalistas. Naquele
momento, adverte-me Araújo, convém que eu apareça como sendo uma das
esposas. Na tradução terei que adotar um sotaque mais africano. A gente da
imprensa, diz o sargento, é perita em forjar histórias e fabricar escândalos. E
logo, dirigindo-se aos visitantes, deixa-se tomar pela vaidade. Com modos
circenses, anuncia à porta do quarto: Eis os pretos, caros senhores!
Usando lenços sobre o rosto, os jornalistas espreitam o exíguo espaço.
Escuta-se a voz de Zixaxa comentando na sua língua: Ainda bem que
cheiramos mal. Assim não se aproximam de nós.
— É aquele o Gungunhana? — interrogam-se os jornalistas apontando
Zixaxa. Não entendem uma palavra do que foi dito, mas o simples facto de
aquele homem ter ousado falar sugere que seja distinto dos demais.
O sargento Araújo levanta o pano com que Ngungunyane se tinha coberto.
Não precisava de se esconder. O imperador deixara de ter rosto. Restam-lhe
uns olhos redondos de recém-nascido. Não entende a voracidade dos
repórteres. Só podem querer a sua alma. E a alma do rei ficou do outro lado do
oceano.
Ngungunyane chora e os repórteres estranham. Estavam à espera de uma
postura mais digna. E adiam os fotógrafos o tão ansiado retrato. O espaço
torna-se exíguo, há uma mulher negra que tosse nuvens de poeira e há um rei
debulhado em lágrimas. Urge sair dali. Araújo lidera eufórico o pelotão dos
escribas: Venham comigo, vamos levar esta gandulagem para a tolda.
Ngungunyane segue cambaleando à frente dos presos. Tinha obedecido ao
conselho do capitão: bebera tão rapidamente que o álcool lhe fez do cérebro
uma deslaçada nuvem. Os bêbados não se contentam com tristezas. Querem
tragédias. E ele está certo do seu desfecho: vai ser fuzilado como aconteceu
com os seus conselheiros em Chaimite. Chora, implora, esconde o rosto com as
mãos, oferece tudo o que já não tem para obter a sua redenção: libras, gado,
ouro, marfim, escravos, terras. E suplica para ser recebido por D. Carlos. Quer
provar que lhe estão a mentir, quer jurar fidelidade ao seu homólogo lusitano.
Espera que eu lhe traduza as súplicas. Peço a Godido que me substitua nessa
incumbência. O filho do imperador não se faz rogado: o seu porte emproado e
o domínio da língua portuguesa tornam-no o centro das atenções. Os filhos dos
chefes são quase sempre insuportáveis: o que lhes falta em maturidade sobra-
lhes em arrogância. Mais tarde, quando constar que este Godido sabe assinar o
nome, distintas damas irão assediá-lo para obter um autógrafo.
Xailes às riscas vermelhas e brancas são distribuídos pelas rainhas. São as
cores que elas usam para convocar as chuvas. Não fui prevista, não recebo
agasalho. Até àquele dia o inverno era, para mim, uma palavra dos livros.
Agora é uma flecha branca que me atravessa o corpo. Tenho medo que
trespasse o meu filho. O capitão Sousa coloca-me sobre os ombros um manto
preto. E diz: Fica-te bem, é teu, leva-o contigo.
*
Inesperadamente, junta-se aos jornalistas uma distinta personagem: António
Enes, o comissário régio. Veio numa lancha especial e, no convés, todos lhe
abrem alas e lhe prestam vénias. Pede para ver os presos. Sacode a cabeça ao
encarar o choroso imperador.
— Não é boa ideia exibi-lo em público — lamenta António Enes. — Vai
inspirar simpatia e compaixão. Certa imprensa vai adorar assumir a defesa de
um pobre negro.
— Não podemos apresentar Zixaxa em vez dele? — pergunta António Sérgio
de Sousa.
Um sorriso triste é a resignada resposta de Enes. É tentador, admite Enes,
mas é um risco a evitar. O pior que poderia acontecer a Portugal seria que esta
operação de propaganda fracassasse.
— O Gungunhana está murcho — diz o comissário régio. — Há que animá-
lo. Digam-lhe que vai ser recebido pelo rei de Portugal.
— E é verdade, comissário? — indaga o sargento Araújo.
— Deixemo-lo pensar que sim. Mentimos. Foi o que ele fez connosco
durante anos.
O sargento Araújo dá uma volta em redor da cadeira do comissário. Está
tenso, usa os pés para agredir o chão. Quando ganha coragem, a voz sai-lhe
aflautada:
— Com todo o respeito, Excelência, mas não falta aqui alguém?
— Não percebo.
— Não falta aqui o nosso capitão Mouzinho de Albuquerque?
António Enes ajeita os óculos. Não escutou. É sexta-feira, dia treze. Num dia
assim há coisas que não se deve escutar. E retira-se. Pede licença dizendo que
em Lisboa esperam por ele graves urgências.
Resta no convés um incómodo silêncio. O sargento Araújo insiste, dirigindo-
se a António de Sousa: Responda o meu comandante: Mouzinho não devia
estar aqui?
Sousa não tira os olhos do mar enquanto responde. O sargento, diz ele, já
devia saber a diferença entre um político e um militar. O político sabe — ou
julga saber — quando deve falar. O militar aprendeu a ficar calado. E, assim
calado, tem sempre razão.
Não é tanto o sol que me falta. Do que tenho mais saudade é da lua. Já não a
vejo brilhar. Talvez seja por isso que penso tanto em Germano. A sua
lembrança chega-me como o luar que deixei de contemplar. Dabondi pede-me
que me afaste das recordações. Diz-me que cante. E que o faça na minha
língua. Que língua?, pergunto-lhe. Em silêncio, ela se afasta.
Nos dias seguintes somos visitadas por damas da corte. Falam por gestos e
logo se percebe que têm um propósito: civilizar, dizem elas, as suas congéneres
africanas.
E a primeira lição centra-se no adequado uso dos talheres. Podem as negras
dirigir-lhes insultos numa língua impercetível. Mas não se aceita que elas
comam com as mãos. Usar os dedos para comer é, como a poligamia, uma
inaceitável obscenidade.
Depois das visitas as portuguesas passam pela igreja para se confessarem.
Estiveram num antro pecaminoso. Deus não aceita que um homem tenha
várias mulheres, explica-nos uma delas. Os homens aqui só têm uma esposa?,
pergunta Dabondi. A portuguesa sorri, e não responde.
Acabaram proibindo a visita das damas da corte. A partir de então é no jogo
de cartas que as rainhas passam a maior parte do tempo. Enquanto jogam vão-
se penteando umas às outras. Não estranham aquele infinito ócio: nunca na
vida estiveram grandemente ocupadas. Havia na corte de Gaza quem fizesse o
trabalho por elas. Ngó, Godido e Mulungo fazem cestas e colares de missangas.
Zixaxa estuda português num caderninho que lhe deram no barco.
Ngungunyane bebe, tosse e dorme. O velho Mulungo vai passeando de um lado
para o outro. Faz como todos os prisioneiros: conta os passos para que a cela
deixe de ter dimensão. Está feliz por não entender uma palavra de português.
Tal como os guerreiros zulus — que se untam com a seiva do impundu —
também ele se tornou invisível. Essa sua desistência torna as paredes
inexistentes. O velho conselheiro é o único que não chegou nunca a estar preso.
No meu canto na cela vou mantendo uma única ocupação: a gravidez. A
barriga é o meu relógio de areia: vai enchendo com o vazar do tempo. Estou
agora de sete meses. E faço como Dabondi me aconselhou: vou cantando. Mas
canto sem palavras. Não escolhemos o idioma em que nascemos. O que se
canta a um filho é um ventre que perdura para além do parto.
Todas as noites durmo abraçada a Dabondi. O frio pede um corpo acrescido.
Nesse duplicado ventre se anicha agora o meu filho. Antes de nascer já ele
tinha várias mães. De noite, quando todos já dormem, retiro o pano que tapa a
janela. Incapaz de dormir, vou espreitando a noite como um afogado que
emerge à superfície da água. Não existe insónia, diz Dabondi. Existe apenas
um outro modo de dormir. Nesse distinto sono, escuto o rei gemendo e tossindo
convulsivamente. Não é uma doença, garante Dabondi. Alguém quer sair do
corpo dele. O imperador está mais grávido do que eu. Um maléfico espírito
abrigou-se nele e consome-lhe o peito e tritura-lhe os joelhos.
Desde ontem que não se escuta o ruído infernal das cercanias. Proibiram o
arraial. Os comerciantes levantaram as barracas e foram vender caricaturas do
Leão de Gaza num outro lugar. Estão com medo de mim, ironiza Ngungunyane.
Já estava a fazer concorrência ao rei deles.
Cada um dos presos pode ter o seu passatempo. Há, porém, uma ocupação
que nos é comum: o sono. A velhice e a prisão ensinam a mesma lição: dormir
anula o tempo. Ao meu lado ressona ininterruptamente aquele que os
portugueses chamam de «Leão de Gaza». O título concede-lhe a nobreza de um
rei. Aos leões os europeus reservam um de três destinos: serem caçados,
enjaulados num zoo ou domesticados num circo. O rei de Gaza reúne estes
destinos numa só pessoa.
Os dias passam sem história até que, numa tarde cinzenta, recebemos a visita
do médico do forte. Alertaram-no para as dores no tórax e para o estado febril
de Ngungunyane. Enquanto o paciente é auscultado, a rainha Dabondi anuncia
o seu diagnóstico: há um pássaro dentro do peito do imperador. Escuta-se a ave
piar durante a noite. É uma xikhova, uma coruja, diz Dabondi. É preciso
espantá-la, defende a rainha. O médico do forte abana a cabeça. É uma doença,
uma pleurisia, declara com superioridade.
No dia seguinte levam Ngungunyane estendido numa maca. Godido vai com
o pai, para as traduções. O choro lancinante das mulheres confunde-se com as
sirenes da viatura que transporta o rei para o hospital. As rainhas entram de
luto. Não sabem despedir-se do esposo em terra alheia. Pedem uma lâmina e
rapam o cabelo. Deixarão crescer o cabelo apenas quando o marido regressar.
Dabondi já não me abraça durante a noite. Não me pode tocar enquanto o rei
estiver ausente. Estou impura, justifica ela. Trago um mulato dentro de mim.
Um corpo rasgado
Querida Imani
Esta não é uma carta fácil. Começo, assim, sem rodeios: não vou para
Lisboa. Não haverá barco, não haverá viagem. Fico em Lourenço Marques.
Haveremos de nos reencontrar mais tarde, aqui em Moçambique ou quem sabe
por aí, em Portugal.
Não te quero magoar, não te quero perder. Todo o amor que senti — e ainda
sinto por ti — é absolutamente verdadeiro. Não é da minha lealdade que podes
duvidar. As razões desta separação são outras. Posso ser teu marido. Mas não
poderei ser pai dessa criança. Estive preso numa cela, em Portugal. Estive
preso em Moçambique sem parede, sem porta, sem grades. Não quero ficar
preso a uma rotina doméstica. Foi isso que aprendi com os meus colegas
casados. A vida em casal é a mais perpétua das prisões. Talvez eu esteja doente,
talvez me tivesse faltado uma família. O meu velho professava uma espécie
particular de ateísmo: era descrente da felicidade. E dizia das pessoas da aldeia:
«Quanto mais estúpidos, mais felizes se tornam. Quanto mais burros, mais
facilmente adormecem.»
Há um outro motivo para esta decisão: não posso voltar para Portugal
enquanto não for derrubada a monarquia. Seria imediatamente encafuado num
calabouço. Ficarias na mesma sem marido. E ficaria o nosso filho sem
conhecer o pai.
Não sintas pena de mim. Estou bem por aqui, Imani. Melhor do que alguma
vez estive na terra onde nasci. Chorou a minha mãe quando parti para a guerra.
Chorou como se eu saísse de um lugar de paz. Era um engano. Encontrei mais
sossego nas batalhas de África que alguma vez encontrei na minha terra.
Desculpa a brevidade destas linhas. Mas esta é a mais crua das verdades: a
guerra despe os homens. A proximidade da morte expõe a alma humana sem
vestes, sem retoque, sem disfarce. E acredita, Imani, a alma dos homens não é
coisa que se queira ver. É por isso que o melhor, por agora, é que me mantenha
distante. O amor que tivemos, e tivemo-lo inteiro, sobreviverá. Não há palavra
para dizer o que o amor foi. E não há silêncio para esquecer o que o amor nos
deixou.
Não sabes quanto me custam estas derradeiras palavras.
PS. Talvez não voltemos a falar. Tenho que ter coragem para dizer-te tudo.
Estamos perante governos e exércitos poderosos que matam, prendem e
dividem as pessoas. Todavia, há algo mais poderoso que qualquer governo ou
exército e é a viciada mentalidade que nos cerca. Contra a violência deste
insidioso cerco pouco podemos fazer. Não há ilha nem exílio que nos salve
desse reino da estupidez.
Fui sincero em tudo o que antes escrevi. É verdade que não me agrada a ideia
de sermos um casal com a sua vidinha rotineira. É verdade que pouco me
entusiasma ter filhos. A nossa relação não foi, contudo, destruída por nenhuma
das razões que antes invoquei. Foi destruída muito antes de nos conhecermos,
muito antes de termos nascido. O mesmo enredo que propiciou o nosso
encontro, tornou impossível o nosso amor. Estaremos mais próximos assim
separados, do que estaríamos vivendo juntos. Tu serias culpada por seres negra.
E eu seria odiado por ser o marido da negra. Resistiríamos, no início. No final,
porém, acabaríamos por ceder ante o invisível exército do preconceito. O único
modo de vencermos é recusar a batalha. O nosso amor viverá como estas
cartas: só os teus olhos despertarão as palavras que deitámos a dormir.
Capítulo 25
Horas depois Dabondi visita-me. Estou grávida, diz ela, posso pegar no teu
filho, não receies. Uma mulher com os sangues — essas que dizemos que
saltam a lua — está interdita de tocar no recém-nascido. Não é o seu caso.
A rainha dança com o bebé ao colo. Que nome lhe vais dar?, pergunta.
Chama-se Sanga, respondo. Quem escolheu o nome foi o avô Sangatela. A
rainha encolhe os ombros. A decisão devia pertencer ao pai. Germano que se
queixe mais tarde.
Peço contas a Dabondi: ela tinha ameaçado que, depois do parto, eu ficaria
vazia. Foi esse o termo que usou: vazia. Disse que os deuses me iam apagar por
dentro.
— Que vazio é esse que nunca me senti tão cheia? — pergunto.
— Falamos disso noutra altura.
— Diga-me agora, Dabondi. Que maldição era essa?
— Agora que o teu filho nasceu — responde ela — deixarás de saber falar a
língua dos brancos.
Sorrio, descrente. Não é possível. Aquele língua fazia parte do meu corpo.
— Duvidas? — indaga a rainha. — Pois experimenta falar em português.
Sorrio, sacudindo a cabeça. E ensaio pronunciar umas palavras. E o que
escuto é diverso do que digo. Repito a fala e mantem-se a dissonância: penso
em português mas as palavras são proferidas em txitxope. Afinal, a maldição é
verdadeira: a partir de hoje deixei de saber português. A rainha estava certa. As
minhas raízes estão-me devorando. Peço, imploro. Ela que me devolva a voz da
minha alma. Esse sempre fora o teu engano, alega a rainha.
— A tua alma tem outras vozes — declara a rainha. — A partir de agora, não
mais servirás os portugueses.
Não me castigava, dizia ela, pousando a criança no meu colo. Pelo contrário,
estava apenas a devolver uma parte do meu ser.
Uma semana depois Dona Laura regressa ao forte. Vem buscar o menino.
Não deixo que se aproxime. Com a criança nos braços, vou escapando pelo
terreiro. Os guardas perseguem-me. Lembro de todas as mães que, durante
séculos, correram para salvar os filhos. A força e o desespero dessas mulheres
habitam agora o meu corpo. E vou voando sobre o pátio até ficar encurralada
entre os tanques de lavar a roupa. Dona Laura grita para que tenha cuidado, o
chão está molhado, não vá eu tombar e magoar o neto.
De repente, das traseiras da lavandaria surgem as dez rainhas. Todas elas
empunham facas. Fazem um cordão à minha volta. E ameaçam os soldados.
Esse menino é filho de todas nós, anuncia Mazimussi. As mesmas facas que
lhes foram entregues para se civilizarem, brilham agora no seu gesto rebelde.
Eram talheres, agora são armas. De cada vez que lavaram a louça, uma peça
desaparecia. Tivessem-nas deixado comer com as mãos e não teriam agora que
as enfrentar.
Pela janela do quarto o embriagado rei de Gaza espreita e sorri. Em tempos
foi assaltado pela ideia de um exército africano composto só por mulheres. Não
era um sonho. Era um pesadelo. Agora ali estavam as mulheres enfrentando os
militares brancos. Não são as pequenas facas que os soldados mais temem. O
que os atemoriza é o simples facto de serem confrontados. Aprenderam a
enfrentar um exército. Mas não sabem como vencer uma dezena de mulheres.
A batalha, contudo, estava decidida mesmo antes de começar. As mulheres
são dominadas e a minha criança é-me arrancada dos braços. Dona Laura
embrulha-a numa manta e afasta-se a passo acelerado. Desvanece na distância
o choro do meu bebé. Até que escuto apenas a água tombando sobre o tanque.
Daqui para a frente será sempre assim: um rumor de água será a única voz do
meu pequeno filho.
Capítulo 26
O grande rei não é o que conduz o seu povo na guerra mas o que
afasta a guerra para longe do seu povo.
(Zixaxa)
Ao fim da tarde de vinte e dois de junho os militares entram de rompante
pela cela dos presos. Gritam por Ngungunyane, Zixaxa, Mulungo e Godido.
Mandam que façam as malas. As malas?, pergunta Godido, que é o único que
percebe o que dizem. Apressadamente embrulham numa trouxa os magros
pertences. E nem para isso lhes dão tempo.
Ngungunyane senta-se no chão, em prantos. Agora sim, pela pressa e
rispidez com que o empurram, ele está certo de que, desta vez, o irão fuzilar.
As esposas lamentam-se aos berros, os soldados usam da força para afastar os
quatro prisioneiros. Olho para tudo aquilo com indiferença. Levaram o meu
filho, tudo o resto deixou de importar.
Mandam-me que acompanhe os presos, não confiam na tradução de Godido.
Vamos em duas carruagens, a cidade está vazia. A operação é feita em segredo.
No cais aguarda o navio Zambeze. Só então me revelam: irão conduzir os
exilados para os Açores. No cais há um compasso de espera. Ngungunyane está
mais tranquilo, percebe que não o vão molestar. O seu aspeto, contudo, é
completamente decadente: descalço, a fralda da camisa de fora, as calças
rasgadas, os cabelos desgrenhados.
— São todos falsos, os brancos — declara o rei de Gaza. — Alguma vez
faríamos com eles o que eles fizeram connosco: prenderem-nos, trazerem-nos
para outra terra e exibirem-nos como bichos?
— Alguma vez fizemos prisioneiros? — contesta Zixaxa.
— Por que e que você toma o partido dos brancos?
— Não somos melhores do que eles. É só isso que estou a dizer.
— Você, Zixaxa, fala muito porque não é a si que querem morto.
— O problema, meu Nkosi, não é esse. O problema é que eles não sabem o
que fazer consigo.
Ngungunyane vira costas, diz que não entende a língua dos tsongas. Essa
língua é a que sempre falámos os dois, afirma Zixaxa. E prossegue, seguindo
em desafio os passos do rei: Você, meu rei, não me entende não por causa do
que eu digo. Não me entende por causa do que eu sou. Agradeça aos
portugueses por o terem poupado, grita Zixaxa antes de o empurrarem para
dentro do navio. Agradeça-lhes, Ngungunyane, não foi isso que sempre fez?
Vejo o barco com os presos afastando-se nas brumas. De volta ao forte,
penso: não basta o exílio para afastar aqueles rebeldes de Moçambique. É
preciso que não haja terra lá onde forem desterrados.
António Sérgio de Sousa conduz-me para o terraço onde se pode ver o mar
de um lado e a cidade do outro. As mãos sobre os meus ombros trazem-me
antigos sossegos.
— Existe uma razão que me trouxe aqui — começa por dizer António de
Sousa.
Ergo o sobrolho, curiosa. O comandante esfrega os cotovelos como se
sofresse de um acesso de frio. Acordou esta manhã sem se conseguir levantar.
Por um momento, suspeitou que, durante a noite, lhe tivessem bloqueado as
juntas e os ossos se tivessem convertido em ferro. Acordou dizendo para si
mesmo: é hoje que me vendem na sucata juntamente com o meu velho navio.
Sentou-se na cama e pensou que havia assuntos que não queria levar para a
cova.
— Trouxe-te flores, Imani — diz ele. — Mas nenhuma flor vale nada se não
tiver uma história.
Fico à espera dessa história. Mas o capitão permanece calado, em luta com
os seus fantasmas. Deixo passsar um tempo e pergunto pelo Álvaro Andrea.
Acha que ele me pode ajudar?, pergunto, usando dos rabiscos. Tomara o
capitão que o ajudassem a ele, responde Sousa. Um jornal publicou parte do
seu relatório de denúncia de Mouzinho. E agora o homem não sai do quartel. A
pretexto de consecutivas audições conservam-no incontactável. A maior parte
dos que se revoltaram contra o relatório de Andrea não foi porque ele
denunciasse o herói nacional. O que mais os irritava era o modo como Andrea
tratava os negros como seres humanos, merecedores de todo o respeito. O
comandante volta a pousar os longos braços sobre os meus ombros e fala:
— Agora, sim, agora vou ao assunto que aqui me trouxe. É esta a dúvida que
me rouba o sono: durante a viagem, o sargento Araújo chegou a fazer-te mal?
Não respondo. Mesmo que quisesse não seria capaz. O comandante exala um
longo suspiro e diz: Sempre suspeitei. E acrescenta: A culpa é minha, que
nunca fui capaz de me impor. Se ele fosse pássaro, declara envergonhado, seria
um papagaio. Nunca uma águia. Falta-lhe o gosto das alturas, falta-lhe o prazer
de mandar. Por essa razão sempre necessitou de uma alma complementar. Essa
alma foi o sargento Araújo.
Aquele é o seu modo de me pedir desculpas. Um papagaio, é isso que sou,
repete enquanto se retira. Está agora em paz consigo mesmo, o velho
comandante do África. Não foi ele que me visitou. Fui eu que sosseguei os seus
fantasmas. A sua generosidade consistiu em que eu lhe fizesse bem.
Capítulo 27
O bebedor de horizontes
Esta carta é uma surpresa. Sou eu, o Nwamatibjane Zixaxa, que te escreve
dos Açores. Como vês, foi muito bom ter aprendido português. Na viagem
aprendi a falar. Agora, na ilha, ensinam-me a escrever. Nesta primeira carta
ainda sou ajudado por um soldado que se tornou meu companheiro. Chamo-lhe
Munganu. E ele risse, desconhecendo que o chamo exatamente de «amigo», na
minha língua. Passo mais tempo na companhia dele do que com qualquer um
dos que vieram de Moçambique. Os brancos estranham essa minha escolha.
Devia ficar entre a «minha gente». Para eles somos todos pretos, sem distinção.
Não sabem que sou um mfumo. E os outros três presos são vanguni, são da
realeza dos zulus. Não entendem por que confio mais neste soldado branco do
que em qualquer dos meus companheiros de cela. A próxima carta,
combinámos eu e Munganu, serei eu sozinho a escrevê-la.
Viajámos para os Açores num navio chamado Zambeze. Já o grande barco
que nos trouxe de Moçambique se chamava África. Ngungunyane acha que
estes nomes foram atribuídos em sua homenagem. Está doente o Leão de Gaza.
Não lhe chegava a velha embriaguez. Busca agora na loucura o derradeiro
refúgio. Durante toda a viagem dormiu abraçado a uma garrafa de vinho. De
manhã cedo lançava as garrafas vazias contra as grandes aves que voavam
sobre navio.
Na ilha Terceira fomos recebidos de maneira especial: não houve insultos
nem ameaças como aconteceu em Lisboa. Disseram-nos que éramos hóspedes,
não prisioneiros. Deram-nos uma casa dentro do forte. Somos autorizados a
circular no grande recinto da fortaleza. Num dos edifícios caiados a branco
gravaram a ferro uma frase que, para nós, os exilados, só nos pode fazer rir.
Está escrito assim: «Antes morrer livres que em paz sujeitos.» Aquelas
palavras recordam-me o pastor Machava ao desembarcar em Cabo Verde.
António Sérgio de Sousa despediu-se dele, com visível culpa. E justificou-se:
Há coisas, disse ele, que não faríamos se não fosse a guerra. E o missionário
respondeu: Ninguém mais quer a paz do que os meus religiosos, que aqui ficam
presos. O que se passa, disse o pastor, é que, para nós, viver é já uma guerra.
E o comandante Sousa defendeu-se, argumentando que tudo o que fazia era
com o propósito de acabar com a guerra. As últimas palavras de Roberto
Machava foram pronunciadas na sua própria língua: Quer a paz, meu patrão?
Pois nós queremos isso e muito mais. Queremos uma outra vida.
Ouvi dizer que o Machava foi reenviado para Moçambique. Os ingleses
pressionaram tanto as autoridades portuguesas que estas cederam e deixaram-
no regressar. Mas os outros crentes, seus seguidores, ficaram em Cabo Verde.
Ainda esperaram que Machava viesse buscá-los. Ou que Deus fizesse justiça.
Mandaram-nos trabalhar nas salinas. A maior parte deles morreu, segundo me
disseram. Assim que era ensacado, o sal convertia-se numa pedra dura. Era um
problema da qualidade do sal. Mas os patrões culparam os escravos de
Moçambique. E castigaram-nos, obrigando-os a dormir amarrados aos sacos.
Os homens foram mirrando, perdendo carne e substância. No dia em que
choraram eles se dissolveram. Pode ser mentira. Mas é isto que contam. Os
ausentes servem para isso mesmo: para serem convertidos em histórias. Essas
histórias regressam a Moçambique. E assim os ausentes reencontram o seu
caminho de volta.
Imagino que queiras saber como passo o tempo cercado por tanto mar. Pois
eu te digo: se esta ilha é uma prisão então eu partilho com milhares de
açorianos esse castigo. Sou aqui tudo menos um prisioneiro. Por detrás da
fortaleza há uma mata extensa onde caçamos coelhos. As árvores aqui são
diferentes. Não sabemos que almas ali moram. Ngungunyane não se descalça
para entrar na floresta. Caminha sem pedir licença por entre as árvores que
desconhece. Os loucos estão dispensados de temer os deuses. Para matar
coelhos, o Ngungunyane usa um pau que trouxe de Moçambique. Lança essa
estaca e nunca falha. Ngungunyane diz que essa madeira foi tratada por
Dabondi. Um dia, diz ele, lançará esse pau de encontro ao oceano. Em vez de
coelhos matará baleias. Beneficiará, então, do respeito devido aos caçadores do
mar.
De noite o rei circula pelo pátio e nós escutamo-lo a gritar pelo nome da
única mulher que amou: Vuiaze! Godido sai a resgatar o pai. Abraça-o e
entrega-lhe uma garrafa de vinho doce. O rei guarda as rolhas de cortiça. Tem
centenas dessas rolhas, que foi juntando para construir um barco. Nesse barco,
diz ele, regressará um dia a Moçambique.
Confesso, Imani, que sinto pena de Ngungunyane. O desgraçado já foi
punido. Foi castigado da única maneira possível: ele é o seu próprio carrasco.
Agora nem precisa beber: o horizonte enche-lhe os olhos, a solidão inunda-lhe
a alma.
Já a mim não me dói estar cercado pelo mar. Na verdade, não é a primeira
vez que estou numa ilha. Quando tinha vinte anos os portugueses enviaram-me
de castigo para a Ilha de Moçambique. Perdoaram-me, depois. E deixaram-me
voltar para Lourenço Marques. Foi um erro. Se alguém devem odiar é a mim.
Fui eu — e eu sozinho — que ataquei Lourenço Marques. Por pouco não venci,
por pouco não lancei os portugueses às águas da baía.
São curiosos os encontros e os desencontros deste mundo. O militar que
redige esta carta trouxe ontem um grupo de outros soldados brancos. Sentaram-
se à minha volta, muito atentos, e perguntaram como era a minha terra. Querem
fugir da ilha, não aguentam a pobreza em que vivem. Muitos da idade deles
foram para o Brasil. Mas estes pensam que África possa ser melhor destino,
agora que deixou de haver guerra. Queriam saber como era a vida lá na nossa
terra. Respondi-lhes o seguinte: Se me derem autorização conduzo-vos para
Moçambique e, se não mudarem de raça no caminho, acabarão todos ricos. E
riram-se, rimo-nos todos. Rir junto é um abraço.
E é assim, minha filha. O Ngungunyane vai tecendo cestos. Eu vou tecendo
pequenas alegrias. Ser feliz é o melhor modo de me vingar de Ngungunyane. O
rei de Gaza entregou-me aos portugueses? Pois agora é o que eu sou: um
português, um português de pele escura. Um português feliz que olha para
quem o traiu e o vê infeliz e bêbado. Aos fins de semana levam-me às casas das
mulheres. Durmo com elas, esqueço-me das minhas esposas que ficaram longe.
Eu e Godido divertimo-nos nestes programas noturnos. Mulungo está velho,
nunca vai. Ngungunyane vai às vezes, quando está sóbrio. Mas fica apenas o
tempo para um primeiro copo. Depois é vencido pelo medo que sente das
mulheres. E volta para casa sabendo que, mais que destronado, ele foi
despromovido da sua virilidade. O nosso Ngungunyane odeia o mar, as
mulheres e as andorinhas por essa mesma razão. Ele receia o que não pode
governar.
Não quero terminar esta carta sem te falar daquilo que sei que te atormenta.
Os três prisioneiros que foram fuzilados na viagem. Pois agora te quero dizer:
não te tortures, Imani. Não és culpada. Fui eu quem, no barco, denunciou os
planos de Machava. Fui eu que impedi que o meu grande rival fosse
assassinado. Fiz isso com medo da reação que a morte do Leão de Gaza iria
provocar. Os portugueses iriam vingar-se em mim. Seria também eu executado
e deitado ao mar.
Despeço-me de ti, pedindo a este amigo que me empreste a caneta que usou
para redigir esta carta. Porque quero escrever, agora por meu próprio punho: ita
vunana musuko, nkata Imane! Vemo-nos amanhã, querida Imani.
O derradeiro idioma
Não sabia que havia tantas Áfricas. Foi preciso uma ilha pequena para
aprender o tamanho das terras africanas. Em São Tomé cruzam-se gentes,
línguas e crenças de todo o continente. E é de tal modo que nos guardamos
quietos e tímidos sempre que cruzamos com outro negro. Somos da mesma cor
de pele mas não somos da mesma raça. É por isso que hesitamos antes de nos
lançar em calorosas saudações. E, no entanto, há sempre um gesto esboçado,
um riso contido, um silêncio escondido que partilhamos em cada encontro. Na
suspensa intenção de um abraço nos vamos adiando irmãos.
Na primeira semana somos albergadas nas dependências de uma plantação
que aqui chamam de «roça». Dormimos num armazém de café. Ali nos
ocupamos com o que já antes fazíamos: absolutamente nada. Desta vez, porém,
não há grades nem soldados. Um único guarda — à civil e desarmado — vigia
à porta do armazém. Quando chove — e chove constantemente — convidamos
esse vigilante para se abrigar no nosso teto.
Não sei o que seria de mim sem a companhia das rainhas. A presença destas
mulheres é mais uma prova da profecia de Dabondi: as raízes da minha alma
devolvem-me agora todo o meu ser. Não se trata apenas de regressar ao idioma
da minha aldeia. Estas mulheres trazem de volta a minha terra e a minha gente.
E trazem-me de volta a mim.
Este convívio tão familiar tinha, porém, os dias contados. Na segunda
semana somos separadas. Muzamussi, a matriarca, é conduzida para um
estaleiro no sul da Ilha. É a mais corpulenta, obrigam-na a carregar pedras para
as obras. Oito das restantes rainhas são levadas a trabalhar no hospital. Ali
prestarão serviços de limpeza. Ficarão alojadas nos anexos da unidade
hospitalar. Dabondi e eu somos as únicas que permanecemos no armazém de
café. A razão não é exatamente a melhor: acham-nos as mais atraentes, somos
postas a servir num bordel para o exército. Não se apercebem de que Dabondi
está grávida. E ela prefere nada dizer. Tem medo que, ao ser tida como
imprestável, seja deitada aos bichos. Cumpre-se, enfim, o augúrio de Bianca
Vanzini: sou finalmente uma mulher da vida, vendendo-me de noite como uma
coisa de carne.
Todas as noites eu e a rainha percorremos um caminho de areia ladeado por
coqueiros. Esse atalho leva-nos ao bar onde os soldados nos esperam. De
madrugada regressamos exaustas e embriagadas ao armazém da roça.
Adormecemos ao som das carroças e dos carregadores empilhando os sacos.
São negros, jovens, cirandam de tronco nu. Transportam a carga como fazemos
nós as mulheres: à cabeça. Os corpos libertam um aroma doce, o mesmo que
emana dos grãos de café. Esse aroma entorpece os sentidos. Estranho sofrer
aquele que vicia como uma bebida: a própria carga impede que sintam o
cansaço.
Certa manhã, a rainha acorda-me. Escorre-lhe sangue pelo rosto, foi
espancada por um cliente a quem recusou servir. Vem comigo, diz ela. Vamos à
casa do administrador. Dabondi sabe coisas que eu não sei: o administrador
português chama-se Almada Negreiros, a mulher dele é mulata, natural da
terra, e está gravemente doente. Levanto-me com custosa obediência: E o que
vamos lá fazer? Não espera resposta, apressando-me porta fora. No caminho,
passo estugado, respiração ofegante, Dabondi explica-se: vai pedir emprego na
casa dos Negreiros. Fico a tomar conta dos filhos do casal, diz ela.
Vamos subindo encostas, cruzamos riachos e cascatas e atravessamos
extensas plantações. Os cafezeiros estão em flor, rendas brancas tocam os
nossos braços. Não gosto desta paisagem, resmunga ela. Nunca vi o mato tão
penteado. Todo o caminho a rainha vai tateando o ventre. Um fio de sangue
escorre-lhe pelas pernas. E pragueja: Se esse homem magoou o meu filho, eu
mato-o!
A casa do administrador Negreiros fica assente em pilares e em redor há
grutas por onde escorrem fios de água que nascem dos céus. Vais conhecer
Dona Elvira, a mulher desse branco, estou certa de que nunca viste olhos tão
grandes, adverte Dabondi.
— Ela está muito grávida — acrescenta a rainha —, deve estar quase a parir,
se demorar mais uns dias saltam os olhos das órbitas. Pede-me que lhe sirva
de tradutora. A princípio resisto: A senhora roubou-me o português, agora,
mesmo que queira, já esqueci. Lacónica, Dabondi afirma: Vais falar!
Após longa espera, surpreendemos o administrador e a esposa saindo para o
hospital. Dabondi apresenta-se. Fala da sua origem, da corte de Gaza. O
funcionário observa-nos, desconfiado. Rainhas?, pergunta com sarcasmo. E
apressa a esposa que traz um menino pela mão: Vamos, Elvira? Não temos
tempo para isto.
Com firmeza, Dabondi interpõe-se entre o casal. Enfrenta, em desafio, o
português: Eu conheço-o, senhor administrador. Quer que diga como nos
encontramos? Sem que eu traduza, António Almada Negreiros parece perceber.
Em silêncio, encosta-se a uma parede. A rainha aproxima-se de Dona Elvira,
leva as mãos à barriga e proclama:
— Por favor, minha senhora. Olhe para mim, também estou grávida. Como
me podem obrigar a deitar com os soldados?
Dona Elvira fixa os olhos na negra que ousa barrar-lhe o caminho. Não
parece contrariada. Pelo contrário, tem um ar fascinado. Toca nas pulseiras que
cobrem o braço da rainha.
— És de Angola? — pergunta. — Reconheço os teus traços, vens de
Benguela...
A rainha não entende mas responde afirmativamente. O administrador reage,
nervoso. Tem pressa e mais apressado se sente por estar a ser incomodado por
aquelas duas estranhas.
— Por favor, minha senhora, fale com o seu marido! — insiste Dabondi.
De repente, a rainha deixa de pedir. Está descalça, mas fala do trono da sua
dignidade. A senhora tem sangue negro, vai ter que me ajudar, declara. A
família do administrador está parada, suspensa das palavras que
empolgadamente vou traduzindo. A esta minha amiga — e Dabondi aponta
para mim — tiraram-lhe o filho. E a mim... — detém-se, engole em seco e só
depois retoma o discurso — ... a mim acabaram de maltratar o meu filho.
— E onde está esse menino? — pergunta a esposa do administrador.
— Está aqui, dentro de mim.
O administrador puxa pelo braço da relutante esposa. Deixe-me!, reage ela
com firmeza. O marido, mais delicadamente, insiste: Vamos, Elvira. Elas que
venham depois.
Não houve depois. No dia seguinte Dabondi perdeu o filho no hospital. Num
outro quarto, da mesma casa de saúde, morreu no parto a esposa do
administrador Negreiros. Assim que soube da notícia, Dabondi saiu do seu
quarto e, com passo decidido, atravessou as linhas que, naquele hospital,
separavam as raças. Uma enfermeira perseguiu-a todo o caminho, advertindo-a
das consequências daquela insubordinação. No quarto da falecida Elvira, a
rainha irrompeu por entre os consternados visitantes, foi ao berço e pegou ao
colo o recém-nascido. Embalou-o e conduziu-o até ao pequeno irmão. O
menino fixou nela os desorbitados olhos que herdara da Elvira. Dabondi falou
em xizulu: O teu irmão nasceu enquanto o meu filho morria. Duas sombras se
tocaram, nos meus braços encontrarás a tua mãe...
Não tinha sentido traduzir. Nem teria tempo para o fazer: as outras rainhas,
entretanto, já se haviam reunido no hospital. E conduzem Dabondi de regresso
a casa.
— Vais escrever a informar Ngungunyane — ordena Muzamussi no
caminho. Quando uma criança morre no ventre diz-se que «decidiu voltar». E
há culpas que pesam sobre a mãe. Devemos dizer a Ngungunyane que não foi
este o caso. Este menino foi morto. É imperioso informar o pai, mesmo
sabendo que a notícia levará tempo a chegar aos Açores.
— É Godido quem tem que ser avisado, reage Dabondi. E acrescenta: É só
ele quem tem que saber.
Começo esta carta pelo fim. E já vou assinando com o meu mais recente
nome: Roberto Frederico Zixaxa. Como vês, fui batizado. Com a minha idade e
a minha raça, isso quer dizer o seguinte: lavaram-me a alma. E fui, posso dizer,
lavado com águas nobres. Conforme me explicaram, Frederico é nome de gente
distinta. Quiseram assim os brancos mostrar que nos respeitam como reis das
terras de onde viemos. O batismo decorreu na maior igreja da cidade.
Trouxeram pessoas importantes, os indunas da ilha Terceira e das outras ilhas.
Saíram satisfeitos acreditando terem mudado a nossa natureza. Mas eu imagino
que, no fundo, eles sabem: os nomes são tatuagens na alma. Não há morte que
os apague.
A ti posso confessar: uso este novo nome como se fosse um par de sapatos.
Servem-me nos pés, mas não são parte do meu corpo. À nascença, os nossos
ancestrais escolhem o nome que teremos. Os patrões do mundo decidem o
nome que deixamos de ter. Tudo isto pode ser verdade no caso de
Ngungunyane. No meu caso, preservo o meu passado no nome que me restou.
Os filhos e netos que terei nesta ilha não negarão este nome africano: Zixaxa.
Sou feliz com esta minha pequena eternidade.
Não foi apenas a mim que mudaram o nome. Todos nós os quatro fomos
batizados na mesma cerimónia. Ngungunyane chama-se agora Reinaldo
Frederico Gungunhana. Na folha do registo, inventaram-lhe uma idade. Ficou
escrito que tem sessenta anos. O desgraçado não chegou aos cinquenta. Um dia
destes, ante os veementes protestos do próprio, decretarão que está morto.
Na semana passada, o Nkosi de Portugal, o rei D. Carlos, visitou os Açores.
Para evitar que o ilustre visitante tivesse que encontrar o Ngungunyane
mandaram que fôssemos passear pelo campo. Dizem que D. Carlos ainda fez
questão de nos vir cumprimentar. Dissuadiram-no. Ngungunyane não valia
sequer como lembrança do que antes fora.
Por isso nos levaram para longe, a passear pela chamada Lagoa do Preto. O
lugar foi criado pelas lágrimas de um escravo. Esse africano apaixonou-se por
uma grande senhora. O marido descobriu o caso e mandou que o matassem. O
infeliz escapou de casa mas foi perseguido por cães e soldados. Refugiou-se
num pântano. E ali chorou. Chorou tanto que, quando deu conta, em seu redor
tinha nascido um lago. Foram essas águas que fizeram parar os cães. Cercado
pelos soldados, o escravo afogou-se na lagoa.
Sentado na margem desse mesmo charco, o rei de Gaza comoveu-se ao ouvir
esta lenda. Mas logo adiantou que não podia ser da sua etnia esse homem que
tanto chorou por uma mulher. Na nossa raça, declarou em voz alta, as
mulheres é que choram de amor. E Vuaize, perguntei?
Fui malvado, reconheço. Não devia ter reavivado tão triste lembrança.
Porque o rei, depois de escutar o nome da sua amada, deambulou trôpego e
descalço como um fantasma. O pântano está cercado de grandes pedras a que
deram o nome de «mistérios negros». Os soldados, vigilantes, seguiram o preso
até que ele tropeçou numas ossadas. Não eram restos de bicho. Era um
esqueleto humano, parcialmente enterrado. Ngungunyane esgravatou e
apanhou um osso comprido. E viu que nele estava escrito um nome. E logo
maldisse o dia em que aprendera a ler. Porque viu que ali estava gravado o seu
próprio nome: Reinaldo Francisco Gungunhana. Raspou com as unhas, queria
apagar aquelas letras. Raspou com raiva até sentir sangue escorrendo nos
pulsos. Cortei-me, pensou. Os dedos, porém, estavam intactos. E, no entanto,
ele via o sangue tombar generosamente. Percebeu, então, que era o osso que
sangrava. Assustado, soltou a ossada na areia e ali a deixou sangrando. Cada
vez mais enfraquecido, ficou a olhar o chão avermelhando-se. E tombou sobre
os ossos o esqueleto que trazia escrito o seu próprio nome.
Esse episódio deixou Ngungunyane transtornado. Regressou calado para a
fortaleza. Num certo momento segurou-me pelo braço e disse: Virão buscar-
me, Zixaxa. Os meus netos virão buscar-me.
Pode ser verdade, admito, pode ser que o venham buscar. Mas a mim já me
vieram buscar. E não vieram de longe. Quem chegou veio daqui mesmo. Tenho
uma namorada. É verdade, uma noiva branca, completamente branca. Chama-
se Maria Augusta, é filha de João de Sousa, um açoriano natural da Ribeirinha.
A mãe dela, a minha futura sogra, chama-se Francisca Vila d’Amigo e nasceu
em Espanha. O mundo é pequeno e grande, Imani. Eis-me aqui, um africano
numa ilha portuguesa, pronto para casar com uma açoriana de origem
espanhola.
Não poderei lobolar a minha noiva. Nesta ilha é como na terra dos zulus: um
boi vale mais do que uma pessoa estranha como eu. Que dote tenho para lhe
oferecer? Para meu consolo, consegui convites para um espetáculo de circo em
homenagem aos presos de África. Noutras palavras, em nossa homenagem. A
família da noiva — a sograria, como lhe chamamos — ficou impressionada
com a minha importância. Mais impressionada ficou quando soube que fui
promovido a guarda florestal. Tenho emprego, faço o meu dinheiro, ganho o
meu respeito. Sabes o que me puseram a guardar? Guardo um monte inteiro,
guardo um monte chamado Brasil. De vigiado passei a vigilante. Tudo isto
acontece e a tudo isto Ngungunyane assiste com a idade a que acabou de ser
promovido. Confesso, minha filha: já começo a ter saudades do ódio que já
senti ao Ngungunyane.
Numa destas madrugadas o rei de Gaza acordou aos berros: Não o levem,
não o levem! Como sempre foi o seu filho Godido que o socorreu. Só ele está
autorizado a acudir aos delírios do imperador. Cada vez mais, Ngungunyane
desconhece se está no meio de um sonho ou em plena embriaguez. Desta vez
confessou que tinha acabado de ver o grande touro sagrado dos zulus, o
isibaya. O bicho atravessou dois oceanos para vir ter com ele. Emergiu das
águas, atravessou a praia, subiu a duna pedregosa, galgou as «bocas do lobo»
que protegem as muralhas da fortaleza. Quando se apresentou à frente da nossa
cela o touro dobrou os grandes joelhos e pôs-se a jeito de ser amarrado. Mas
não chegou a deitar-se porque, inesperadamente, surgiu um grupo de brancos
gritando e agitando panos e cordas. Queriam levar o touro sagrado para a festa
da largada dos bois. Um dia lhe explico o que são estas festas. Nunca vi um
povo tão triste e tão festivo.
Mais uma vez foi preciso ajudar o Ngungunyane a sair do sonho, mais uma
vez Godido conduziu o pai pelas ruelas que circundam o forte. As autoridades
deixaram que o rei se distraísse nessa passeata. Eu e Mulungo seguimos atrás,
deambulando entre os trilhos marginados por montes de pedras. Para felicidade
de Ngungunyane a ilha está cheia de bois. Por onde passa o rei toca nos bichos,
aprecia-lhes o porte e a grossura dos chifres. Todos aqueles bois, garante ele,
são propriedade sua. Naquela madrugada o rei decidiu que devia ensinar os
brancos a falar zulu. Apenas a sua língua tem riqueza para traduzir o mundo
dos bovinos. O gado é o ouro dos vanguni. Não têm castelos como os que
vimos em Lisboa. Mas têm uma nação de bois, currais e pastores. E os deuses
são chamados pelo sangue dos animais.
No regresso ao forte, era já manhã, sentimos a terra tremer. Os açorianos são
feitos metade de lava, metade de mar. Por isso não temem os sismos. Talvez
desconheçam a verdadeira causa dos terramotos. A terra treme quando o
wamulambo, o dragão que vive nas montanhas, sai da sua gruta para desovar
no mar. Daquela vez o dragão caminhava zangado: o terramoto foi forte e
duradouro. As pedras rolaram pela estrada, pareciam bichos enlouquecidos. Os
bois saltaram dos quintais e tresmalharam-se pelos campos. Os militares
vieram-nos buscar — cada um de nós tinha fugido para o seu lado — e
levaram-nos de volta para o forte.
À porta cruzámo-nos com o general Almeida Pinheiro, o comandante da
fortaleza. Chamamos-lhe de xipôngo xa mahetche, por causa das barbas que lhe
descem até ao peito como um bode velho. O português acredita que estamos
em pânico e convida-nos para o seu gabinete. Serve-nos um chá e abre um
jornal para mostrar uma fotografia da visita de D. Carlos e Dona Amélia.
Ngungunyane observa a imagem com excessiva atenção. Depois comenta: É
bonita a rainha mas embeleza-se como um homem. As penas que ela usa na
cabeça são coisas de macho. A rainha portuguesa, diz ele, está a imitar-nos a
nós, os guerreiros vanguni. E comenta, a fechar: O senhor é que devia usar
essas penas, meu general!
O general reage primeiro com distância. Afinal, é da rainha de Portugal que
se fala. Mas logo solta uma risada, divertido. Afaga as longas barbas e desafia
os colegas a imaginarem-no coberto de plumas de avestruz.
Uma vez mais o rei de Gaza se debruça sobre a fotografia. O dedo sapudo vai
engordurando a imagem enquanto esclarece: Deixe-me dizer, senhor general,
que a vossa rainha está magrita. As minhas esposas estão anafadas. Não são,
diz ele, como as demais mulheres que só comem carne nos dias de festa. Diga
ao rei que não fica bem exibir uma esposa tão magrita e tão emplumada.
E de novo todos se riem. De súbito, Ngungunyane torna-se sério, quase
solene, quando implora: Por favor, meu general: não me mande de volta!
Almeida Pinheiro contempla, surpreso, o rei e não sabe o que dizer. De volta
para onde, para Moçambique?, indaga, confuso. Não me mataram vocês,
matar-me-iam os meus irmãos, afirma Ngungunyane. E retira-se. São tristes os
olhos do general ao ver o rei negro a dissolver-se no escuro.
E estou a chegar ao fim. Confesso, minha filha: quem escreve esta carta é o
meu sogro, João de Sousa. Apenas as duas primeiras linhas são da minha
autoria. Tudo o resto é letra e arranjo dele. Este meu sogro quer saber quem és,
ou melhor, quer saber como és. Descrevi-te como a mais bela das mulheres.
Depois de Maria Augusta, é claro. A minha namorada açoriana não tem quem
se lhe compare. Expliquei ao meu sogro que, como nós, vives numa ilha. E ele,
com o ar misterioso que é tão seu, declarou: Todas as pessoas vivem numa ilha.
Quando lhe pedi para lhe ditar esta carta, o meu sogro disse que o faria de
bom gosto mas teria que ser num lugar que ele escolhesse. A moça é africana,
não é?, perguntou. E lá me levou para a Praia da Vitória e ali andou farejando
entre os penedos até que escolheu uma enorme pedra e disse: É aqui. Sentámo-
nos os dois, lado a lado. E escrevemos esta longa carta apoiados nessa pedra
branca que contrasta com o paredão de rocha escura que margina a praia.
Esta pedra tem uma história, disse ele. Quem a trouxe para a Terceira tinha
sido o seu avô, um velho marinheiro de longo curso. Numa viagem junto à
costa de África decidiu o capitão acostar numa praia. A intenção era visitar um
padrão que os descobridores portugueses ali haviam implantado há séculos.
Perguntaram aos indígenas pelo Cabo da Cruz. Ninguém nunca ouvira tal
nome. Perguntaram pela coluna de pedra com a cruz e as cinco quinas
gravadas. Ninguém vira tal pedra. Os marinheiros deram as devidas
explicações aos nativos. E os negros mostraram-lhes um enorme buraco. O
padrão tinha-se afundado, como se a praia tivesse fome de pedra.
Desenterraram-no os marinheiros e voltaram a colocá-lo de pé sobre a areia.
No dia seguinte o padrão de novo submergira no chão africano. Os negros
disseram aos portugueses: Levem essa pedra. É vossa, levem-na convosco. Este
nosso chão não aguenta o peso dessa pedra.
E é isto, minha filha. A pedra escutou a nossa história, escutamos nós a
história dela. Juntaram-se o avô do meu sogro, tu, eu, o tempo. Por favor,
Imani, não leias esta carta às minhas esposas. Não quero que saibam que casei.
Na correspondência que troco com elas contam-me novidades. A maior parte
delas é mentira. Não me importo. Não é para isso que servem as cartas?
Capítulo 30
Num dia de calor um jovem caçador viu uma nuvem pairar sobre a
sua casa.
O jovem tomava conta do velho avô.
Aquela inesperada sombra era tão maravilhosa que o avô
rejuvenesceu.
Com receio de que o vento levasse aquela felicidade, o jovem
resolveu lançar uma corda e prender a nuvem pelo pescoço.
Assim pensou, melhor o fez. Como um bicho doméstico, ficou a
nuvem presa a uma estaca.
Na manhã seguinte, ao sair de casa, o jovem tropeçou no céu e
desabou no firmamento.
A mesma corda com que antes laçara a nuvem prendia-o agora ao
infinito.
E o avô descansava agora numa sombra sem fim.
(Relatos de Nkokolani)
Batem à porta. Abro uma fresta e vejo uma mão branca.
— Germano?, pergunto, em sobressalto.
Escancaro a portada com inesperado entusiasmo. Tenho noventa e cinco
anos, não me restam forças nem para lembrar quem sou. Há muito que o meu
corpo é um arado abrindo sulcos com os pés. De súbito, porém, nasce em mim
um estranho vigor. Protejo os olhos para decifrar a silhueta que se desenha a
contraluz. E já não me parece o meu homem que espera sob o umbral da porta.
— Sanga? Meu filho!?
Abraço-o. É o meu filho. Estou quase cega, abraço o escuro e deixo que as
mãos, tateando o rosto do visitante, me devolvam os olhos. O vulto encolhe-se,
surpreso, nos meus braços.
— Meu filho!
Esvai-se-me o peito num suspiro. Esqueci-me de como se chora. O meu filho
também deve ter tido os seus esquecimentos. Porque não me devolve o abraço.
— Dona Imani?, interpela-me.
É o que pareço escutar. Estou em Nkokolani, na minha aldeia natal.
Regressei de São Tomé há sessenta e três anos. Aos poucos foi acontecendo
com as vozes aquilo que sucede com as horas: parecem-se todas umas com as
outras.
Já ninguém me bate à porta. Os poucos que o fazem não é a mim que
querem. Procuram as minhas sobrinhas-netas que fingem tomar conta de mim.
Este visitante é diferente: cheira a mar, tem uma voz e um sotaque distintos. E
pergunta por mim. Não pode ser o meu filho. Seria mais velho, mais arqueado
pelo tempo.
— Já sei, és o meu neto! Trata-me por avó. Percebes txitxope?
— Não, Dona...
— É que eu há muito que deixei de falar português. Agora, só falo em
txitxope.
— Mas... a senhora está a falar português.
— Ouço-te mal. Tens que falar mais alto.
— Digo que a senhora está a falar em português. E em muito bom português.
Estendo a mão para lhe tocar os cabelos. O meu neto desvia-se. A pele, os
olhos, os lábios, tudo pode falsear a raça das pessoas. Só os cabelos não
mentem. E eu tenho pressa em sentir a verdade daquele corpo.
— Entendes tudo o que eu digo?
O moço acena e diz: Perfeitamente! Peço-lhe que entre. Ele hesita, sacode os
pés cheio de cortesia. Que saudades tinha desse educado balancear do corpo! O
moço traz uma mochila às costas e caminha vergado, não por causa do peso
mas por gentileza: quer falar mais junto do meu rosto.
À distância escutam-se explosões. São tiros?, pergunto. São foguetes,
responde o rapaz. Preparam as festas para a proclamação da Independência.
Empolgado, remata: Vamos ter uma bandeira, Dona Imani! Um bandeira
nossa!
— És parecido com Germano. Tens o mesmo riso. Como te chamas?
Usa as mãos em concha para ampliar a fala. Desiste desse estratagema e
retira da pasta uma caneta e um caderno. Foi assim, recordo-me. Foi assim que,
da última vez, comuniquei com o comandante António Sérgio de Sousa.
Rabisca frases curtas, os seus dedos fazem estremecer o tempo: a caligrafia é
igual à minha! Mas o inevitável volta a acontecer: as letras são visíveis até ao
momento em que alguém as escreve. Depois ficam enevoadas. Faço de conta
que decifro o nome, não quero que o moço desista. Sorrio e convido-o a entrar.
Avanço devagar pelo corredor. Não me lembro se estou doente. Todo o meu
corpo, com a idade, se tornou uma doença.
— Sou um escritor — declara o visitante.
Talvez o rapaz esteja aos berros, mas escuto-o como se ele se expressasse no
mais suave tom. Os brancos da cidade falam assim, não são como nós que
comunicamos sempre aos gritos. Para os portugueses mais educados, o falar
alto é uma grosseria. Para nós, o falar baixo de alguns portugueses é uma prova
de que escondem qualquer coisa.
Eis o que me sucedeu, meu neto: aos quinze anos tive um filho. Dias depois
roubaram-me esse menino e levaram-me para a ilha de São Tomé, no meio do
oceano Atlântico. Fiquei nessa ilha durante quinze anos. A seguir à
proclamação da República Portuguesa, em 1911, mandaram-me buscar a mim e
às rainhas que me acompanhavam. Disseram que nos iam recambiar para
Moçambique. Dez mulheres tinham chegado àquela ilha, voltavam agora sete.
A rainha Dabondi, a minha querida Dabondi, foi uma das que ficou sepultada
na ilha. Quem perde a vida numa ilha não sabe regressar da morte. O seu
espírito vagueia na neblina, sem saber se pertence à terra ou ao mar.
O barco que nos foi buscar fez escala em Lisboa. Durante quinze anos sonhei
com aquele destino. Ou melhor: aquele foi o único destino dos meus sonhos.
Fiz as contas: cinco mil e quatrocentas noites, cinco mil e quatrocentos sonhos.
Todos iguais: eu resgatando o meu filho, ele anichando-se nos meus braços
como se regressasse, inteiro, ao meu corpo.
Nas poucas horas de escala, autorizaram que visitasse a casa da minha sogra,
Laura de Melo. Fui escoltada por um sargento da Marinha. A minha intenção
era resgatar o meu filho, o meu Sanga, e levá-lo comigo para Moçambique. O
coração pulsava-me quando um rapaz me abriu a porta da família Melo.
Contive-me, as mãos tão tensas que me magoava com os meus próprios dedos.
A mãe de Germano, Dona Laura, estava de cama e foi o meu filho que me
conduziu até ao seu quarto. Segui calada, olhando em contraluz aquele que
habitou a minha carne. Estendida num leito e de olhos cerrados, a mãe de
Germano declarou em desafio.
— Mostra a essa mulher quem é a tua única e verdadeira mãe.
O meu filho, calado, aproximou-se do leito da avó. Baixei o rosto, os olhos
marejados. Morri, pensei. Não me resta senão retirar-me. Como podia
caminhar, porém, se me faltava estar viva? Pigarreando, Dona Laura fez-me
sinal para que me aproximasse. Sempre deitada, estendeu a mão e afagou-me o
ombro. E depois murmurou: Ficaste fora quinze anos. Pensa neste menino,
minha querida. Pensa e responde: para além de mim, existe uma outra mãe
neste quarto?
Abriu os olhos e contemplou-me demoradamente. Sabia que nunca mais nos
veríamos. Não há culpa nesta história, disse ela. Foi a vida que escolheu,
acrescentou. Sacudi a cabeça a sugerir que não a queria escutar. Permiti,
contudo, que ela mantivesse a mão sobre o meu ombro.
— E que nome lhe deu, Dona Laura?
— O nome que já lhe tinhas dado — respondeu Laura. — É o nosso Sanga.
— E Germano? — quis perguntar. Mas não tinha voz para tanto. E foi como
se Laura adivinhasse as minhas secretas interrogações. Porque murmurou: O
meu Germano vai chegar para a semana, vem muito doente. Nem força tem
para escrever, diz Laura. Nem por isso deixou de mandar religiosamente a
mesada para o filho dele... E corrige: ... para o vosso filho.
No regresso ao barco não era apenas eu quem chorava. Recatadadamente o
sargento ia trocando um lenço comigo. Seguimos pela Estrada das Laranjeiras
e, a certo ponto, o marinheiro suspendeu a marcha para dizer: Foi aqui, foi aqui
que ele se matou! E antes que o questionasse, clarificou: Mouzinho de
Albuquerque, foi aqui que ele morreu.
Passou os dedos pelas pedras da calçada como se sentisse o sangue. Fizeram-
lhe a cama, comentou o sargento. Puseram a correr que Mouzinho foi muito
desumano nas campanhas em África. Quem o tramou foi o meu chefe, o
capitão Andrea, que andou por lá também...
No cais o sargento despediu-se com um inesperado aperto de mão. Aquele
marinheiro experimentava, quem sabe, algo novo: o respeito pela tristeza de
uma mulher negra. Não sendo capaz de um consolo tentou uma distração.
— E do Gungunhanha, sabes o que lhe aconteceu? — perguntou. — O
Gungunhanha, o rei dos pretos...
Após todos aqueles anos já havia desistido de corrigir o nome de
Ngungunyane. Desta vez, por respeito a quem perguntava, endireitei a
pronúncia do militar. Morreram todos, disse eu com secura. Morreu o rei de
Gaza, morreu o filho, morreu o tio. Sobreviveu o único que foi feliz: o Zixaxa.
A última notícia que recebi é que esse Zixaxa ia ter um filho. Um filho mulato,
como o meu Sanga.