Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ricardo da Costa
Os torneios medievais
Ricardo da COSTA (mailto:ricardo@ricardocosta.com)e Adriana ZIERER
(mailto:medievalzierer@terra.com.br)
Imagem 1
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 1/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Henrique I, conde de Alsácia e príncipe de Anhalt (c. 1170-1252), participa de um Buhurt: “...jogo de
guerra praticado durante o intervalo das campanhas militares. Nele, grupos de cavaleiros lutam entre
si, para manter a forma e também exercitar os reflexos. O quadro mostra a luta decisiva, travada às
portas do castelo, e que levará à vitória neste simulacro de batalha”. In: COSTA, Ricardo da, 2003
(https://www.ricardocosta.com/pub/manesse3.htm). Codex Manesse, imagem 8.
I. Medo
Ao venerável padre e senhor Suger, pela graça de Deus abade de São Dionísio,
do irmão Bernardo, conhecido como abade de Claraval; saúde e orações...
Assim começa a carta que São Bernardo (1090-1154) escreveu ao abade Suger, de
Saint-Denis (c. 1085-1151), em 1149. Muito preocupado, o monge de Cister pediu a
Suger que brandisse ogládio espiritual, “que é o verbo de Deus”, contra um
“diabólico costume” que tentava novamente retornar ao reino da França. Isso
porque alguns homens que regressaram da cruzada – especialmente Henrique,
filho do conde de Champagne, e Roberto, irmão do rei da França – convocaram,
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 2/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
para depois da Páscoa, “um desses malditos torneios”, para lançarem-se uns contra
os outros em duelo mortal. Bernardo questionou a Suger a sinceridade dos
propósitos dos cavaleiros que partiram para a cruzada, e exclamou na carta: “Com
que espírito agressivo eles foram para a peregrinação hierosolimitana, e com qual
vontade retornaram!”
Suplicante, o monge de Cister rogou e admoestou a Suger, “o maior príncipe do
reino”, que usasse a persuasão, e, se preciso fosse, a oposição viril, para impedir
que um mal tão espantoso terminasse com a paz do reino: “Assim o convém à
vossa honra, à de vossa terra e à utilidade da Igreja de Deus” (Ao abade Suger,
carta 376) (SAN BERNARDO. 1990: 1078-1079).
De fato, devido ao grande número de mortos e feridos, dezenove anos antes a
Igreja inutilmente tentara proibir essas “detestáveis assembléias” chamadas
torneios: em 1130 (concílios conjuntos de Reims e Clermont), em 1139 (Latrão II) e
1179 (Latrão III). Em Clermont, por exemplo, a Igreja privara de sepultura cristã
aqueles que se ostentavam e pereciam nessas feiras (Atas do Concílio de Clermont,
IX
(http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/hist/45702844322336107754
679/p0000001.htm#I_0_)). [2]
Portanto, o século XII assistiu ao surgimento dos torneios, uma novidade no
mundo cavaleiresco, profana e escandalosa aos olhos dos clérigos, pois
impregnada de morte e de lucro. O que foram? Quais suas principais
características? A proposta desse pequeno trabalho é responder essas perguntas,
sempre tendo como base o que os próprios coetâneos disseram a respeito.
II. Raízes
Imagem 2
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 3/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Parece agradável e meritório oferecer alguns dados sobre a unanimidade na qual viviam os
dois reis (...)
a santa e venerável concórdia existente entre os dois irmãos ultrapassa suas nobres
qualidades (...)
o mesmo comportamento existia nos jogos entre os soldados saxões, gascões, austrasianos,
bretões (...)
era um espetáculo digno de ser contemplado (...) ninguém nesta multidão de raças
diversas ousava
fazer mal ou injuriar o outro.
(Anales del Imperio Carolingio, 1997: 58).
O texto de Nithardo ainda nos conta que os soldados, em igual número, foram
escolhidos nos exércitos dos reis Carlos e Luís. Eles se lançaram uns contra os
outros, brandindo suas lanças, como se quisessem lutar, e depois simularam uma
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 4/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
...pela honra do país e pelo exercício de sua cavalaria, combateu contra alguns condes
e príncipes da Normandia e de Flandres; à frente de duzentos cavaleiros, realizou torneios
que tanto lhe exaltaram a celebridade como aumentaram o poder e a glória de seu
condado.
(citado em DUBY, 1993: 121)
III. Espaços e pessoas
A maior parte dos torneios ocorreu nas antigas “marcas” ao norte, junto às “velhas
florestas fronteiriças”: Vermandois (Gournay e Resson), Champagne (Lagny e
Joigny), Normandia (Eu). A biografia de Guilherme, o Marechal (c. 1145-1219),
descreve dezesseis torneios, ocorridos em quinze campos, a maioria nessas
regiões. (DUBY, 1987: 124-125)
O espaço era quase sempre um campo, com bosques e pastagens (mas também
poderia ser em uma cidade, ou seus arredores). O torneio era uma atividade
coletiva: durante vários dias, dois grandes grupos – formados por cavaleiros,
escudeiros, arqueiros e infantes – disputavam um determinado espaço, com sítios,
ataques (frontais ou não), emboscadas e simulações de fugas. (LADERO
QUESADA, 2004: 129)
Imagem 3
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 5/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Cavaleiros em torneio (também chamado de Melée. Museu de Tours, miniatura florentina, final do
séc. XIV). Trata-se de uma representação tardia dos confrontos coletivos que foram os torneios
medievais. Na cena, dentro dos muros de uma cidade, dois grandes grupos de cavaleiros, armados
principalmente com lanças, combatem furiosamente, ao som de vários instrumentos de sopro – e
com a presença de muitas damas (seja no palanque principal, à esquerda, seja nas janelas). Repare
ainda que uma dama adentra o recinto urbano com seu séquito (à direita, no fundo), detalhe
bastante semelhante a um afresco de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290 - c. 1348) intitulado “A Vida no
Campo. Os Efeitos do Bom Governo (c. 1337-1340)” (em Siena, no Palazzo Pubblico, Sala dei Nove).
Ver COSTA (2003) (https://www.ricardocosta.com/pub/lorenzetti.htm).
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 6/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 7/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Soissons em 1747 (N. A. Poincellier), ainda com seu perímetro de contornos nitidamente medievais,
com vastos campos cultivados circundando a cidade amuralhada, espaços onde provavelmente o
torneio ocorreu o Torneio.
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 9/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 10/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Entre duas damas, Winli, o jovem alamano que disputará o torneio, porta uma bela cota de malha de
tom prateado por baixo de uma túnica brasonada cor turquesa. Ele recebe um anel dourado da dama
casada (à esquerda, de vestido roxo, cor da dubiedade), que segura com sua mão direita o escudo do
jovem senhor. A indicação da condição marital da dama de roxo está em seus cabelos, ocultos em um
lenço vermelho preso por um cordão amarelo. Ela está acompanhada por uma mulher mais jovem
(sua aia?) de vestido vermelho, cor símbolo da impetuosidade. Essa jovem dama é solteira (pois
mostra sua vasta cabeleira loura, adornada com uma bela tiara dourada) e, delicadamente, traz o
elmo do cavaleiro (com um chapéu brasonado, um lenço vermelho por trás, e encimado por uma
estrela de oito pontas). A dama casada que presenteia Winli é quem o iniciará na arte do amor,
segundo a tradição cortês-cavaleiresca. Por sua vez, ele, extasiado, coloca sua mão esquerda no peito,
indicando que está muito comovido com o inesperado presente que a partir de agora o coloca como
fiel vassalo da dama, mas que deve partir para disputar o torneio – e ser merecedor daquela
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 11/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Com muita propriedade, Jacques Le Goff mostra uma pista para se estudar os
torneios: os textos literários, fontes privilegiadas para o estudo do imaginário
medieval (LE GOFF, 1994: 13). E vai além: para ele, são os textos literários que
fornecem os documentos de maior exatidão para a apreciação da realidade
histórica (LE GOFF, 1994: 274). Hervé Martin concorda sobre a importância das
fontes literárias, especialmente para a compreensão da “mentalidade cavaleiresca”,
pois expressam os sistemas de valores e códigos ideológicos da nobreza francesa
no século XIII. Para Martin, a literatura manifesta as aspirações e normas da
sociedade medieval, e respondem aos historiadores tanto às questões relativas às
faltas cometidas pelas pessoas quanto às mudanças sociais.
Como os romances de cavalaria ressaltavam a força da nobreza, escondiam assim
o fortalecimento das monarquias capetíngia e plantageneta nos séculos XII e XIII,
bem como a crescente importância dos mercadores e banqueiros no mesmo
período (MARTIN, 1996: 299). Os romances, poemas e canções de gesta expressam
a visão do mundo feudal e o código da cavalaria, e também – com o declínio das
cruzadas no século XIII – a inquietude, as dúvidas e desilusões da nobreza.
O Livro da Ordem de Cavalaria
(https://www.ricardocosta.com/textos/livrocav.htm) (c. 1275) de Ramon Llull (1232-
1316) é um exemplo desta tendência, pois nele o autor propõe a recuperação das
funções éticas da cavalaria, sua ligação ao cristianismo através do uso da razão e
de um código de virtudes, personificando o ideal do cavaleiro cristão (COSTA,
2001: 231-252; ZIERER, 2006: 1-13).
Nas canções de gesta, relatos sobre os feitos guerreiros de certos personagens
(como A Canção de Rolando (http://www. -
augsburg.de/%7Eharsch/gallica/Chronologie/11siecle/Roland/rol_intr.html), séc.
XII), o cavaleiro deve ter atributos. Não apenas ser corajoso, mas sábio, e,
principalmente, dotado de fortaleza, e orientado para feitos nobres. Além disso,
o cavaleiro perfeito deveria ser coroado por sua pietas, símbolo de devotamento e
caridade (MARTIN, 1994: 304). Na Canção de Rolando (http://www. -
augsburg.de/%7Eharsch/gallica/Chronologie/11siecle/Roland/rol_intr.html), por
exemplo, ocorre o sacrifício do herói: antes de morrer ele entoa uma canção de
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 12/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
amor à sua espada Durandal, e oferece sua luva a Deus, erguendo-a ao Céu, que se
abre para que uma multidão de anjos desça e leve o herói ao Paraíso (CARDINI,
1989: 61).
Nos romances corteses compostos nas cortes senhoriais a partir do século XII, é a
dama quem incita o cavaleiro a realizar ações para que ele ultrapasse seus limites.
O fervor religioso a Deus é laicizado e redirecionado à dama. Ela estimula o jovem
a um contínuo sobrepujar-se. Ele age somente para e por ela. O amor
cortês torna-se sinônimo de riqueza interior e progresso moral, fonte de toda a
inspiração poética (MARTIN, 1996: 329). O cavaleiro é uma “marionete” nas mãos
da dama, e se presta à alegria erótica e perversa, muitas vezes em um adultério
platônico(MARTIN, 1996: 330-331), ou mesmo real (COSTA, 2003
(https://www.ricardocosta.com/pub/amor.htm)). Esse é o caso de O Cavaleiro da
Charrete (http://www.mshs.univ-poitiers.fr/cescm/lancelot/texte.html) (c. 1164),
poema de 7.134 versos composto por Chrètien de Troyes (c. 1135-1190) a pedido de
Maria de Champagne (1145-1198), em que o amor carnal e adúltero é realizado.
Nessa obra, fica claro o modelo do cavaleiro cortês, exemplificado no personagem
Lancelot do Lago. Ele é leal, valente, cortês e generoso, pois a cavalaria, como
instituição ligada à nobreza, desprezava a atividade produtiva e valorizava a
largueza demonstrada em festas e torneios (ZIERER, 2004: 189). Inclusive,
segundo esse ideal cavaleiresco cortês, era impossível que elementos de outra
categoria social que não fossem da nobreza ingressassem na cavalaria, o que,
como sabemos, não correspondia exatamente à realidade (IOGNA-PRAT, 2002).
O cavaleiro cortês é um jovem totalmente dedicado à sua dama, capaz de fazer
qualquer sacrifício por ela. Na narrativa de Chrètien, a história se inicia com o
rapto da rainha Guinevere (esposa do rei Artur) por Meleagant, que a conduz ao
reino de seu pai. Três cavaleiros da corte de Artur tentam resgatá-la: Kai (senescal
de Artur e seu irmão adotivo), Gawaine (seu sobrinho), e Lancelot do Lago (o
cavaleiro). Só este obtém sucesso na empreitada.
Inicialmente, Lancelot é convidado a viajar numa carroça (algo ultrajante para um
cavaleiro), para saber o paradeiro da rainha. Ele consente em ser transportado
dessa forma, e mostra assim que faz tudo o que está ao seu alcance por amor à sua
dama. Depois de passar por diversas aventuras, o cavaleiro prova seu valor como
guerreiro e vence seus oponentes.
Algumas passagens de O Cavaleiro da Charrete (http://www.mshs.univ-
poitiers.fr/cescm/lancelot/texte.html) sintetizam essas qualidades cavaleirescas.
Por traição de Meleagant, Lancelot é aprisionado. Mas antes disso, ele conseguiu
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 13/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
libertar Guinevere e consumar sua paixão por ela. Na prisão, sua carcereira o
informou que a rainha estaria presente em um torneio.
Ao saber disso, Lancelot jurou à carcereira que, se ela o deixasse partir, ele
retornaria à prisão após o fim do torneio. Ela permite que fosse, mas depois de seu
juramento, feito com as mãos em relíquias sagradas, como na cerimônia vassálica
(o que mostra a influência da Igreja neste ritual, bem como a fidelidade). Lancelot
então disse a ela:
– Na verdade, assim eu faria se não receasse perder a minha vida por isso.
Tenho grande pavor de Meleagant, meu senhor. (...)
Segundo o desejo da dama, Lancelot jura pela Santa Igreja que retornará sem falta.
Ela então lhe empresta as armas do próprio marido, seu escudo de vermeil e o cavalo belo
e aguerrido à maravilha. Ele monta e parte de pronto, portando armadura nova e
reluzente.
(CHRÉTIEN DE TROYES, 1991: 186-187).
Lancelot lutou no torneio sem revelar sua identidade. Contudo, para testar seu
amor e fidelidade, Guinevere lhe enviou uma mensagem: ele deveria perder os
combates! Resignado e submetendo-se à sua dama, o cavaleiro fez o que ela
ordenou. Contudo, mais tarde a rainha lhe enviou um recado contrário: agora ele
deveria lutar o melhor que pudesse. Mais uma vez, ele obedeceu:
“Lancelot recoloca o cavalo na liça e investe contra um dos cavaleiros mais renomados.
Com tanta força o golpeia que o envia a mais de cem passos do seu corcel. Usa tão bem da
lança e da espada que todos o olham maravilhados. Regalam-se de ver como esse cavaleiro
derruba todos juntos, homens e cavalos. Bem poucos do que ataca conseguem permanecer
na sela. Dá a quem quiser os cavalos que ganha assim. Todos os que tinham zombado dele
confessam: ‘– Cometemos grande erro em o desprezar e difamar. Ele venceu e sobrepujou
todos os cavaleiros do mundo! A ele ninguém pode se comparar.’” (CHRÈTIEN DE TROYES,
1991: 194) (os grifos são nossos).
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 14/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Lancelot. Mais tarde, o cavaleiro cortês foi libertado pela Donzela da Mula. A
narrativa termina com um combate final entre Lancelot e Meleagant, quando este
é derrotado e morto pelo herói na corte do rei Artur (ZIERER, 2004: 190)..
Nessa cena de torneio, o conde Albert II von Hohenberg e Heigerloch (c. 1235-1298), no centro,
combate furiosamente, assistido por três damas no cume de uma torre murada. A julgar por suas
posturas corporais, elas parecem bastante preocupadas. Claro, pois há muito sangue no combate –
repare na espada do conde, bem como nos rostos dos cavaleiros, ensangüentados. O condepertencia
a uma das ramificações dos condes de Zollern, cujo castelo, em Spaichingen (Würtemberg), tem o
nome de Hohenberg graças a ele. Albert era partidário de seu cunhado, o rei Rudolf I von Habsburg
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 15/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
e, após a morte deste (1291), ele se viu envolvido no meio da briga entre Adolfo de Nassau e Albretch
I de Habsburg, mas ficou do lado de seu sobrinho. Em 1298, ele caiu em combate contra Oto III da
Baixa-Bavária, em frente ao seu castelo de Leinstetten. Assim, é também possível que a cena (no
lugar de representar um torneio) seja a desse combate de 1298. Por fim, repare no imenso elmo do
conde: ele é bastante semelhante aos elmos dos xóguns japoneses dos séculos XV-XVI. Ver CODEX
MANESSE. Die Miniaturen der Großen Heidelberger. Liederhandschrift Insel. Herausgegeben und
erläutert von INGO F. WALTHER unter Mitarbeit von GISELA SIEBERT. Frankfurt am Main, Insel
Verlag, 1988: 36-37 (imagem 18).
Nessa passagem – que, de resto, não se encontra nos outros evangelhos sinóticos –
há uma clara conclamação à caridade e à resignação: para receberem Cristo,
os milites não deveriam desejar mais do que tinham, não poderiam causar
sofrimento aos outros, muito menos cometer perjúrio.
Jacques de Vitry aproveita a passagem de Lucas para contar uma estória que se
recorda ter ocorrido consigo. Um dia, ele conversava com um “devoto cavaleiro”,
mas que gostava de freqüentar os torneios, além de convidar outros cavaleiros
através de arautos e histriões (esses últimos, os farsantes e palhaços do mundo!).
Imagem 7
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 16/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Nessa iluminura da obra Os Milagres de Notre Dame (Gautier de Coinsi, Paris, c. 1320-1340, fol.
123r.), o cavaleiro piedosamente assiste a missa e, logo a seguir, participa virilmente de um torneio e
derrama sangue (observe sua espada, com as gotas de sangue destacadas pelo iluminista) -
exatamente como na estória narrada por Jacques de Vitry!
O cavaleiro pensava que “essa espécie de jogo ou exercício” não fosse pecado.
Então o bispo tentou convencer o cavaleiro a não participar mais desses eventos,
pois ali os sete pecados capitaistinham espaço para o mal e, por isso, a Igreja
recusava sepultura cristã aos que morriam nele. (COSTA, 2005
(https://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm))
Vitry enumerou-os:
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 17/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
2) Inveja – Cada cavaleiro inveja o outro que é considerado mais forte e, por isso, é mais
elogiado;
4) Acídia – São tão obcecados pela vaidade que pensam que os bens espirituais de nada
valem;
5) Avareza – Quando prendem o adversário, tomam suas armas e pedem resgate, além de
extorquir os camponeses com exações (para organizarem os torneios);
6) Gula – Fazem festas e comem as superfluidades, sacrificando seus bens e dos pobres;
Há melhor documento para abordar a vida real medieval que os sermões dos
moralistas? Se o historiador der um passo a mais em sua interpretação textual e
destacar cada adjetivação do escritor, perscrutando o significado lato de cada
palavra, encontrará uma descrição muito dura, mas certamente bastante fidedigna
e próxima do que realmente se passava naquelas festas profanas – além da
natureza e o caráter de seus participantes. Ademais, perceberá que, na Idade
Média, o discurso clerical era muitas vezes ouvido por ouvidos moucos, e que a
cristianização da sociedade foi, em muitos aspectos, superficial, de verniz,
incorporada somente nas aparências, muito pouco nas consciências.
Portanto, a cavalaria secular e profana que se exibia nos torneios, segundo Jacques
de Vitry, era composta de homens incrédulos, hereges, impiedosos, presunçosos,
jactanciosos, falastrões, assassinos, invejosos, ladrões e adúlteros! Esses glutões
insaciáveis são a melhor prova que “a derrota (moral) da humanidade chega
quando o poder se corrompe” – e aqui o bispo de Acre cita Horácio (Epístolas, I, 2,
14), poeta romano (65–8 a.C.), e mostra sua paixão pela poesia clássica, aliada aos
ensinamentos éticos cristãos. Citando Mateus, Vitry maldiz os cavaleiros que
fazem o sangue jorrar, já que eles serão “afogados nas profundezas do mar” (Mt 18,
6).
Após sentenciar os milites mortos nos torneios à verdade do julgamento final,
Jacques de Vitry nos informa que seu ouvinte, o piedoso, porém ativo, cavaleiro
participante dos torneios – certamente assustado e temeroso com o futuro de sua
alma – “ouviu as palavras e reconheceu abertamente a verdade”, e passou a odiar
aqueles detestáveis encontros profanos. O bispo então conclui:
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 18/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
VII. Conclusão
Imagem 8
Os perigos do amor: com longas trompas, os tenebrosos diabos incitam os homens ao pecado.
Nessa belíssima e rica iluminura (fol. 205) do Breviário do Amor (Le Bréviari d'amor), texto escrito
entre 1288 e 1292 por Matfré Ermengaud de Béziers (†1322), os tolos cavaleiros (aymadors, amantes,
no texto) sucumbem aos vícios e se exibem, vaidosos, por amor, às suas damas (per amor de lur
donas, como está escrito na linha abaixo da imagem). Elas entregam os louros da vitória (coroas de
flores), do alto da torre de um castelo (à esquerda). Exibidos, eles portam suas ricas cotas de malha e
seus escudos brasonados em imponentes cavalos, e lutam furiosamente em um torneio (com lanças,
espadas ou maças). Os torneios foram, definitivamente, uma propícia (e fútil) ocasião social para os
jovens das camadas sociais superiores demonstrarem sua submissão às damas.
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 19/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Fontes
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 20/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
Actas del Concilio de Clermont (18 noviembre 1130). Revisión crítica. Internet
(http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/hist/457028443223361077546
79/p0000001.htm#I_0_).
Anales del Imperio Carolingio. Años 800-843 (ed. Javier del Hoyo y Bienvenido
Gazapo). Madrid: Akal, 1997.
Bibliogra a
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 21/24
30/12/2020 Os torneios medievais | Idade Média - Prof. Dr. Ricardo da Costa
COSTA, Ricardo da. “Codex Manesse: três iluminuras do Grande Livro de Canções
manuscritas de Heidelberg (século XIII) - análise iconográfica. Terceira
parte”. In: Brathair 3 (1), 2003
(http://www.brathair.com/Revista/N5/codex_manesse_3.pdf), p. 31-36.
COSTA, Ricardo da. “A noção de pecado e os sete pecados capitais no Livro das
Maravilhas (1288-1289) de Ramon Llull
(https://www.ricardocosta.com/pub/nocaopecado.htm)”. In: FILHO, Ruy de
Oliveira Andrade (org.). Relações de poder, educação e cultura na Antigüidade e
Idade Média. Estudos em Homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro - I CIEAM -
VII CEAM. Santana de Parnaíba, SP: Editora Solis, 2005, p. 425-432.
DUBY, Georges. O domingo de Bouvines. 27 de julho de 1214. São Paulo: Paz e Terra,
1993.
FLORI, Jean. A Cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São
Paulo: Madras, 2005.
Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, SP; EDUSC,
São Paulo, 2002, p. 305-319.
POLIANO, Luiz Marques. Heráldica. SP: GRD, RJ: Instituto Municipal de Arte e
Cultura Rio-Arte, 1986.
Aprenda mais
Artigos relacionados
https://www.ricardocosta.com/artigo/os-torneios-medievais 24/24