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Educação Unisinos

15(2):142-148, maio/agosto 2011


© 2011 by Unisinos - doi: 10.4013/edu.2011.152.06

O papel do professor da Educação Infantil e as


contribuições da psicologia histórico-cultural

The role of early Childhood Education teachers and the


contributions of historical-cultural psychology

Jaqueline Cristina Massucato


jaquemassucato@ig.com.br

Heloisa Helena Oliveira de Azevedo


hazevedo@puc-campinas.edu.br

Resumo: O presente artigo tem por objetivo evidenciar a importância do papel do professor
de Educação Infantil, ressaltando a necessidade de lutar por sua valorização profissional e
social. Sendo de natureza bibliográfica, tem como referencial teórico a Psicologia Histórico-
Cultural, por se mostrar fecunda para repensarmos esse papel de mediador do conhecimento
e das condições sociais objetivas nas quais ele se torna possível. Além disso, evidencia-se
a necessidade de formação específica para atuar na Educação Infantil, pois ser professor é
antes de tudo uma profissão que visa à formação humana, abrangendo a necessidade de
formação técnica e alicerçada em conhecimentos científicos, éticos, políticos e filosóficos.
Assim, a imagem que o professor tem sobre a profissão poderá influenciar a reconstrução de
sua identidade como alguém muito importante, cuja atividade profissional é de relevância na
vida da sociedade. Na parte final do artigo, discute-se o papel das escolas de Educação Infantil
como instituições educativas fundamentais para a mediação da cultura, dos conhecimentos
científicos, das artes e da possibilidade de humanização dos sujeitos.

Palavras-chave: psicologia histórico-cultural, Educação Infantil, identidade docente, formação


de professores.

Abstract: This article aims to emphasize the importance of the role of early childhood education
teachers, highlighting the need to struggle for their professional and social recognition. Based
on literature, the text uses historical-cultural psychology as its theoretical frame of reference,
since the latter makes it possible to discuss the role of teachers as mediators of knowledge
and the objective social conditions in which this mediation becomes possible. Furthermore, it
intends to show the need for a specific training for professionals who work in this area. Being a
teacher requires a human education, which comprehends technical, scientific, ethical, political
and philosophical knowledge. Thus, the image teachers have of their profession may influence
the construction of their identity as persons whose professional activity is relevant for life in
society. Towards the end, the article discusses the role of early childhood education schools
as institutions that are essential for the mediation of culture, scientific knowledge, art and the
possibility of humanizing individuals.

Key words: historical-cultural psychology, early Childhood Education, teachers’ identity,


teacher education.
O papel do professor da educação infantil e as contribuições da psicologia histórico-cultural

Introdução Kuhlmann Jr. (1998) discorre nesse profissionais dessa área, aliada à
sentido afirmando que precariedade de formação, entre ou-
Iniciamos o século XXI com mui- tras questões, recebem destaque na
tas questões problemáticas na área [a] situação das pessoas que traba- literatura da área e estimulam o de-
educacional, em especial na edu- lham nas creches brasileiras não é senvolvimento de estudos como este,
cação infantil. Apesar dos avanços algo que se possa pensar em reverter
que visa contribuir com a busca por
a partir de uma proposta de forma-
conquistados pela Lei de Diretrizes uma educação de qualidade desde
ção em serviço. Esta poderá resultar
e Bases da Educação Nacional nº em algum benefício consistente e a infância e enfatizar a necessidade
9394/96 (Brasil, 1996), ao inserir a duradouro caso esteja sendo propor- de uma formação inicial consistente,
educação infantil enquanto primeira cionada concomitantemente a outras em termos teórico-práticos.
etapa da educação básica, ainda medidas, tais como a regularização É evidente que a concretização
encontramos muitas lacunas nessa das condições de trabalho, a valori- de uma proposta pedagógica para a
área, entre elas, a desvalorização zação salarial e a formação prévia ou
educação infantil que sirva aos inte-
inicial, bem como o favorecimento
social dos profissionais, a permanên- resses dos educandos e proporcione
da escolarização básica e específica
cia do binômio cuidado-educação, daqueles que estão atuando, iniciati- os instrumentos necessários para
a formação profissional precária vas que envolvem toda uma política sua efetiva inserção social precisa
oferecida aos professores etc. para a educação infantil (Kuhlmann vir acompanhada de uma revisão
Diante de tal contexto, autores Jr., 1998, p. 186). crítica dos próprios professores so-
como Kuhlmann Jr. (1998), Arce bre suas práticas pedagógicas, o que
(2001; Arce e Baldan, 2009; Arce e Visando conhecer melhor os pode ocorrer por meio da formação
Dandolini, 2009), Azevedo (2005, estudos que têm sido desenvolvi- inicial. Isso porque o conhecimento
2007), têm realizado estudos sobre dos na área da educação infantil e e as experiências formativas nela
tais aspectos, que convergem para formação de professores, realizamos proporcionados podem influenciar
um ponto central: a importância da levantamento bibliográfico no site na reconstrução da visão de mundo,
formação inicial na atuação pro- da Anped, nos grupos de trabalho de educação, de criança e sociedade
fissional do professor de educação de Educação de Crianças de 0 a 06 dos futuros professores.
infantil. Compartilhamos da ideia anos (GT 7) e no de Formação de
de que precisamos formar Professores (GT 8), no período de [...] a formação de professores não
2005 a 2010. Após selecionar os pode se eximir de uma bagagem
[...] professores capazes de construir trabalhos relativos a presente temá- filosófica, histórica, social e política,
proposta pedagógica com clara tica e proceder à leitura analítica além de uma sólida formação didáti-
intencionalidade educativa, compre- dos mesmos, foi possível perceber co-metodológica, visando formar um
endendo a importância de seu papel que há várias questões que ainda profissional capaz de teorizar sobre as
social no exercício da docência, inde- relações entre educação e sociedade
merecem discussão, como: o perfil
pendentemente da idade da criança, e, aí sim, como parte dessa análise
do professor que se deseja formar;
necessitam de uma formação teórica teórica, refletir sobre a sua prática,
e prática solidamente fundamenta-
quais as representações que se têm propor mudanças significativas na
da, que lhes permita esclarecer, em sobre educação infantil, infância e educação e contribuir para que os
primeiro lugar, suas próprias con- criança; a desvalorização social e alunos tenham acesso à cultura re-
cepções e valores, tendo autonomia profissional do professor de educa- sultante do processo de acumulação
para fazer suas opções [...] (Azevedo, ção infantil; a pouca qualificação do sócio-histórica pelo qual a humanida-
2007, p. 174). professor para atuar nessa etapa da de tem passado (Arce, 2001, p. 267).
educação, enfim, questões voltadas
Estudos e pesquisas científicas para a identidade desse professor, Devido a essa importância, é
realizadas nos últimos 20 anos têm que sinalizam para a importância de preciso analisar as contribuições
revelado que a área da educação in- uma formação inicial que efetiva- teóricas voltadas para a área da for-
fantil ainda é carente na elaboração mente contribua para a valorização mação de professores da educação
de políticas públicas e valorização desse profissional. infantil, buscando fundamentos
de seus profissionais. Tais aspectos Assim, questões voltadas para para refletir sobre a necessidade
pressupõem o reconhecimento desse o direito à educação na infância, o de reconstrução de sua identidade.
profissional como professor, cujos reconhecimento das especificidades Noutras palavras, precisamos forta- 143
direitos perpassam a construção dessa etapa essencial da vida, a falta lecer o debate sobre a importância
de sua profissionalidade docente. de motivação e reconhecimento dos do trabalho desenvolvido pelos

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professores de educação infantil, muitas reflexões que contribuirão Não é nosso objetivo neste artigo
reconhecendo sua relevância social para repensarmos o papel do profes- adentrarmos nessa reflexão, apenas
e reafirmando seu direito de valori- sor de educação infantil na formação sinalizamos que ela não é consensual
zação profissional. Assim, estaremos do sujeito e, consequentemente, a na área para a compreensão do nosso
contribuindo para a reconstrução de necessidade de busca por valoriza- momento histórico, mas reiteramos
sua identidade, perante si próprio e ção profissional. que compartilhamos da ideia de
perante a sociedade. que existe, sim, uma agenda, alguns
Concordamos com Fontana O papel do professor discursos que imperam na sociedade,
(2000) quando argumenta que nosso no contexto atual na educação e nas pesquisas acadê-
cotidiano – pensamos aqui no espaço micas, advogando o recuo da teoria
da formação inicial – também nos Percebemos, no âmbito político (Moraes, 2001), a formação voltada
forma, nos produz como professoras, e econômico, que as influências apenas ao cotidiano imediato, enfim,
seja reproduzindo algumas subjeti- do neoliberalismo e de tendências discursos que convergem para a de-
vidades dominantes, seja resistindo pós-modernas vigoram em nossa sintelectualização do professor e sua
a elas, estando conscientes ou não sociedade. É fundamental que inicie- desvalorização profissional e social.
desse processo, mediados e consti- mos pela exposição do nosso enten- Retomando nossa discussão, o
tuídos por nossos múltiplos outros. dimento acerca destas perspectivas liberalismo é uma filosofia política
Assim, a identidade do professor sociais e, no caso do neoliberalismo, que compartilha de princípios pró-
de educação infantil precisa ser faz-se necessário retomar o conceito prios do capitalismo, postulando
reconstruída no sentido de buscar o de liberalismo, da mesma forma que os ideais de liberdade individual,
reconhecimento de seu papel social e só podemos refletir sobre a pós- liberdade econômica da propriedade
profissional, e a formação inicial é um modernidade se antes tratarmos dos privada com relação ao trabalho e ao
dos espaços que pode proporcionar a limites da modernidade, se é que Estado (Dalarosa, 2001). O neolibe-
reflexão sobre quem é esse professor, de fato podemos falar efetivamente ralismo é o liberalismo clássico nos
além de ser “uma das possibilidades de limites, pois autores como Ha- tempos atuais, ou seja, é “a filosofia
de mudanças das representações so- bermas, por exemplo, afirmam que da não intervenção do Estado na
ciais e, por conseguinte, da promoção a modernidade não se esgotou e, economia, hoje veiculada pelo ide-
de uma identidade docente adequada certamente, não concordam com os ário do Estado mínimo” (Dalarosa,
às demandas educacionais da atuali- autores que assumem a possibilidade 2001, p. 199).
dade” (Dotta, 2006, p. 84). de um outro momento histórico, a A lógica do liberalismo é a de
Isso porque construímos e recons- pós-modernidade. mercado, onde esse é o detentor
truímos nossa identidade constante- das bases econômicas e políticas
mente, a partir da imagem percebida O termo pós-modernidade tem se em detrimento da intervenção do
pelo outro, por meio de nossas rela- mostrado polissêmico, sendo uti- Estado. Por isso, os defensores do
ções sociais, por vezes conflituosas lizado no mais das vezes de modo neoliberalismo atribuem ao Estado a
genérico. De qualquer forma, denota culpa pela ineficiência das políticas
e contraditórias. Conforme Fontana
o que vem depois da modernidade, públicas e por todos os males sociais,
(2000, p. 222): sendo problemático seu sentido,
ficando a cargo da livre iniciativa de
justamente por tentar traduzir um
Ao nascer, cada um de nós mer- mercado a opção redentora para a
movimento da cultura em socieda-
gulha na vida social, na história, e des em rápida mutação, movimento “cura social”.
vive, ao longo de sua existência, que ainda está se produzindo, não Nesse contexto neoliberal mar-
distintos papéis e lugares sociais, se distinguindo consolidações que cadamente contraditório em que a
carregados de significados – está- ajudem a qualificá-lo melhor (Gatti, educação está inserida, algumas
veis e emergentes – que nos chegam 2005, p. 141). questões são enfatizadas, como:
através dos outros. Mediados por
produtividade, eficiência, agili-
nossos parceiros sociais, próximos
e distantes, conhecidos e ignorados,
Assim, para Gatti (2005), esse dade, curta duração e preparação
integramo-nos progressivamente nas movimento caracteriza-se pelo única e exclusivamente para a
relações sociais, nelas aprendendo a momento de transição do modelo atuação no mercado de trabalho.
nos reconhecermos como “pessoas”. moderno para o pós-moderno, pois Esses conceitos vão sendo assi-
144 não nos desvencilhamos totalmente milados no contexto da educação
Neste sentido, a psicologia da modernidade e também não esta- formal, e, com isso, o ensino vai
histórico-cultural pode fundamentar mos em uma fase totalmente nova. sendo secundarizado, utilizando-

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O papel do professor da educação infantil e as contribuições da psicologia histórico-cultural

se de estratégias como o ensino a formação humana, que abrange a A psicologia histórico-


distância e a formação em serviço, necessidade de formação técnica, cultural – Alguns
tecnologias empenhadas em reali- mas devidamente alicerçada em pressupostos para pensar
zar o ensino e a formação profis- conhecimentos científicos, éticos a educação
sional de modo ágil, eficiente e e políticos. Assim, a imagem que
com menores custos. Esse contexto eu tenho sobre a minha profissão A psicologia histórico-cultural
acaba por gerar consequências influenciará na construção de mi- formulada por Vigotski e seus
danosas principalmente para as nha identidade como alguém muito colaboradores elucida aspectos im-
classes populares, pois tem como importante, ou não, repercutindo na portantes sobre o desenvolvimento
resultados a fragmentação do qualidade do trabalho que desenvol- do ser humano, e a partir de seus
ensino, a exaltação da eficiência vo, ou seja, do ensino que ofereço pressupostos podemos pensar na
e produtividade na educação, a aos alunos. Em consonância com própria prática pedagógica, assim
baixa qualidade na formação dos Saviani (2002, p. 202): como em várias questões relacio-
professores e no exercício de sua nadas a como esse ser humano
profissão, a descontinuidade das [...] por qualidade de ensino, não constrói seus conhecimentos. Por
políticas públicas ao privilegiarem entendo algo neutro, mas algo que isso, faremos uma breve análise dos
determinados interesses etc. se vincula aos interesses de deter-
principais pressupostos dessa teoria
Podemos situar ainda como agra- minadas camadas da sociedade. Por
isso é que me parece fundamental, e suas contribuições para pensarmos
vantes o aligeiramento do ensino na educação e, posteriormente, na
quando trabalho na educação, o po-
na formação, a valorização do sicionamento: é preciso saber de que valorização do papel do professor
“aprender a aprender” e do profes- lado eu estou, porque os critérios de de educação infantil.
sor enquanto mero facilitador em qualidade vão ser definidos a partir Essa teoria compreende o proces-
detrimento do professor enquanto daí. O ensino qualitativamente bom so da ação do homem sobre a natu-
responsável pela mediação dos vai ser qual? É claro que do ponto de reza, fazendo com que ela sirva aos
conhecimentos historicamente pro- vista de uma participação maior do
seus propósitos, suas necessidades
duzidos e da cultura. povo no poder vai ser, justamente,
aquele ensino que dê instrumentos reais e materiais do mundo em que
que efetivem essa participação [...]. está inserido. Por isso, considera o
A epistemologia explícita no ideário
homem enquanto um ser social, his-
neoliberal estrutura-se a partir de um
modelo pragmático de conhecimento Acreditamos, ainda, que a for- tórico, que se constitui homem – no
que, em sua expressão mais extrema, mação inicial deva ser voltada sentido de humano – nas relações
se funda num novo tipo de pragma- para a práxis, onde o movimento que estabelece com o outro e com o
tismo. Compreensão que, em última dialético entre ação e reflexão ins- meio cultural, e assim se desenvolve
análise, considera que a verdade trumentaliza o futuro profissional, (processos interpessoais) por meio
somente pode advir da prática e que da transformação que opera nesse
abrangendo a sua profissionalidade
a atitude de representar a realidade meio, também se modificando por
deve ser substituída pela indagação docente e a formação política e
ética, que são condições para que meio da internalização (processos
quanto à melhor forma de utilizá-la
(Scalcon, 2008, p. 39). os futuros professores se libertem intrapessoais).
de práticas ingênuas. Assim, terão
a possibilidade de reconstruir suas O processo de internalização é emi-
Esse contexto, segundo Arce
nentemente dialógico, porque aquilo
(2001, p. 262), corrobora a ilusão representações acerca de quem são
que eu internalizo, o intrapsicológico,
de que o professor não necessita ter as crianças e, consequentemente, só acontece a partir de uma interação,
“uma base teórica e prática forte- de quem são enquanto professores do interpsicológico, portanto, sendo
mente fundamentada em princípios da educação infantil, podendo atuar indispensável o papel de um outro
filosóficos, históricos, metodológi- conscientes de suas possibilidades (Freitas, 1994, p. 93).
cos; os seus atributos pessoais pas- de criar as condições objetivas para
sam a ser valorizados em detrimento a humanização e emancipação, Os seres humanos são constituídos
da formação profissional”. direito de todos. Para isso, refleti- com uma base biológica, mas, por
Acreditamos que ser professor – remos acerca dos fundamentos da meio das relações produzidas pelo
independentemente da faixa etária psicologia histórico-cultural, que trabalho humano, construído históri- 145
com a qual trabalhamos – é antes nos auxiliam a repensar o papel ca e socialmente, o social passa a se
de tudo uma profissão que visa à desse professor. constituir em uma reação dialética

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Jaqueline Cristina Massucato e Heloisa Helena Oliveira de Azevedo

entre homem, mundo e objeto. Nessa pectiva” (Oliveira, 2002, p. 58-59). e do meio social e cultural para a
perspectiva, portanto, o conhecimen- Nesse pressuposto está subjacente a aprendizagem e desenvolvimento,
to é construído pela interação entre ideia de transformação dos processos a fim de possibilitar a transforma-
sujeito e objeto, por meio de ações psicológicos, do surgimento do novo, ção dos indivíduos no processo de
mediadas no contexto social. de conflitos, contradições. Aqui, em humanização. E, nesse sentido, o
As bases naturais, biológicas, consonância com a autora, destacamos papel do professor é imprescindível
compreendem as funções elemen- o conceito de zona de desenvolvimento na etapa da educação infantil, onde
tares, que são funções psicológi- proximal, que tem relação direta com as determinações biológicas preci-
cas que não nos diferenciam dos a ideia de que o desenvolvimento sam ser mediadas para alcançarem
animais, são espontâneas. Vigotski tem que ser visto prospectivamente. novos patamares de desenvolvimen-
(2008) explica a transformação dos E, nesse sentido, é de extrema im- to, visando à mediação da cultura
processos psicológicos elementares portância o papel do professor para e socialização das crianças no seu
em processos complexos por meio mediar, provocar nos alunos avanços meio, processo em que a apropriação
de mudanças qualitativas e quantita- e aprendizagens que não ocorreriam dos conhecimentos historicamente
tivas na história do desenvolvimen- espontaneamente, pelo menos não com acumulados se faz imprescindível.
to. Assim, as funções psicológicas a qualidade com que podem acontecer Da mesma forma, temos o lugar
elementares podem se transformar tendo a mediação do professor. de destaque que ocupa o profissio-
em superiores, que são funções Desse pressuposto decorre outro nal professor nessa inter-relação, a
psíquicas que dependem da relação de que “os processos de aprendi- fim de que, intencionalmente, crie
interpessoal, de mediações para zado movimentam os processos de as situações necessárias para que
transformar-se qualitativamente. desenvolvimento” (Oliveira, 2002, as crianças alcancem níveis mais
O funcionamento psicológico não é p. 60). A trajetória do desenvolvi- elevados de desenvolvimento, por
inato, mas é construído social, históri- mento humano, como dito acima, meio de aprendizagens que tenham
ca e culturalmente. Por isso, as funções ocorre de fora para dentro, ou seja, significado. Isso porque “o aprendi-
psicológicas superiores permitem ao do inter para o intrapsicológico. zado humano pressupõe uma natu-
ser humano se humanizar, ou seja, Nesse sentido, se o aprendizado faz o reza social específica e um processo
tornar-se verdadeiramente humano e desenvolvimento avançar, o papel da através do qual as crianças penetram
atingir níveis mais elevados de desen- escola é indispensável “na promoção na vida intelectual daqueles que as
volvimento, por meio da contradição, do desenvolvimento psicológico dos cercam” (Vigotski, 2008, p. 100).
da dialética entre processos naturais e indivíduos que vivem nas sociedades Consideramos que é por meio
processos sociais de desenvolvimento. letradas” (Oliveira, 2002, p. 61). da educação, em sua forma escolar
Finalmente, um terceiro pressu- – desde que tenha objetivos, inten-
O uso de meios artificiais – a transi- posto para pensarmos a educação é cionalidades e planejamento – que os
ção para a atividade mediada – muda, “a importância da atuação dos outros indivíduos se apropriam dos conhe-
fundamentalmente, todas as opera- membros do grupo social na media- cimentos produzidos historicamente
ções psicológicas, assim como o uso ção entre a cultura e o indivíduo e na pela sociedade em que vivem, assim
de instrumentos amplia de forma ili- promoção dos processos interpsico- como concebemos que o professor
mitada a gama de atividades em cujo lógicos [...]” (Oliveira, 2002, p. 61). – profissional formado por meio de
interior as novas funções psicológicas
A criança não possui instrumentos concretas bases de conhecimento – é
podem operar. Nesse contexto, pode-
mos usar o termo função psicológica para percorrer sozinha o caminho o responsável pela mediação desses
superior, ou comportamento superior para seu desenvolvimento pleno, conhecimentos produzidos, para pos-
com referência à combinação entre sistemático; e é por este motivo que sibilitar sua aquisição pelas crianças,
o instrumento e o signo na atividade discutiremos a importância do papel independentemente da fase em que
psicológica (Vigotski, 2008, p. 56). do professor nesse processo. estas se encontram. Isso porque o
ensino, que entendemos como a siste-
Em consonância com Oliveira A psicologia histórico- matização dos conhecimentos para se
(2002), três ideias básicas têm extrema cultural e a valorização tornarem assimiláveis na instituição
relevância para pensarmos o ensino do professor de educação escolar, pressupõe o planejamento de
escolar por meio da teoria de Vigotski: infantil acordo com as especificidades e mo-
146 em primeiro lugar, o pressuposto de mentos de desenvolvimento de cada
que “o desenvolvimento psicológico Nessa teoria fica evidente a criança, assim como para suprir suas
deve ser olhado de maneira pros- importância da mediação do outro necessidades educativas em cada etapa.

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O papel do professor da educação infantil e as contribuições da psicologia histórico-cultural

mento da criança. Contudo, é condi- professor na educação infantil tenha


A educação, no processo de de- ção sine qua non que este professor uma base teórica solidamente funda-
senvolvimento da criança, assume tenha desenvolvido a capacidade mentada para saber como promover
importância devido à sua tarefa de de abstrair as teorias e alimentar um aprendizado que gere avanços no
interferir na zona de desenvolvi-
sua prática pedagógica, sendo estes desenvolvimento das crianças.
mento proximal, trazendo para a
vida concreta as funções ainda não conhecimentos “[...] a base para
amadurecidas e, finalmente, provo- a compreensão do processo e dos Durante os anos da pré-escola e da
cando avanços que de outra forma desdobramentos da aprendizagem e escola as habilidades conceituais da
não ocorreriam espontaneamente. desenvolvimento da criança” (Arce e criança são expandidas através do
[...] Nessa perspectiva, a escola, por Dandolini, 2009, p. 85). Além disso, brinquedo e do uso da imaginação
sua vez, torna-se um espaço onde o [...]. Na medida em que a criança imi-
saber socialmente construído pode ta os mais velhos em suas atividades
[o] trabalho que realizamos com
de fato ser socialmente distribuído padronizadas culturalmente, ela gera
as crianças pequenas é o início do
(Scalcon, 2002, p. 62). oportunidades para o desenvolvimen-
desenvolvimento da imaginação, do
processo criador. Assim, o trabalho to intelectual (Vigotski, 2008, p. 162).
Acreditamos também ser de ex- intencional de apresentação do mundo
trema importância indagarmos de para esta criança, por meio dos seus Finalmente, ensinar é promover
qual criança estamos falando, para sentidos, com a ajuda dos objetos contradição, conflito. Por isso, para
pensarmos em crianças concretas, produzidos pela humanidade, deve ser Vigotski (2008), o bom aprendizado
planejado e proposto pelo professor é aquele que se adianta ao desenvol-
sínteses do meio em que vivem, in-
(Arce e Baldan, 2009, p. 202-203).
fluenciando e sendo por ele influen- vimento. Assim, educação escolar,
ciadas, as quais possuem necessida- ações sistematizadas na educação
Enfatizamos que quanto menor a
des e desejos reais, que nem sempre infantil e as práticas intencionais
criança, maior é a necessidade de for-
podem ser satisfeitos de maneira do professor podem alterar quali-
mação do professor que com elas irá
espontânea, imediata, assim como tativamente e transformar as bases
atuar, uma vez que a teoria de Vigotski
a construção de conhecimentos reais naturais, biológicas das crianças em
é clara ao enfatizar a importância do
e significativos também não o pode. culturais, em processos que visem à
outro e do meio social, assim como a
Por isso, necessitam de mediação sua humanização.
intervenção deliberada do professor e
dos adultos e de espaços e tempos Em consonância com Martins
mediação da cultura, enfim, dos pro-
cuidadosamente planejados pelo (2009, p. 100), é exatamente nisso
cessos pelos quais a escola é responsá-
professor a fim de possibilitar a elas que reside a centralidade social do
vel. Assim sendo, a importância desta
o encontro com esses conhecimen- desenvolvimento, na psicologia
mediação se justifica primordialmente
tos, com a cultura e com o mundo histórico-cultural:
na relação entre crianças e professor,
concreto e real do qual fazem parte.
além de seus pares.
Inexiste formação humana que pos-
[...] como indivíduo empírico, a sa prescindir de apropriações dos
[...] a importância da atuação de
criança se interessa por satisfações produtos da cultura e esta relação
outras pessoas no desenvolvimento
imediatas ligadas à diversão, à au- de dependência do ser às condições
individual é particularmente evidente
sência de esforço, às atividades pra- de sua existência é representativa da
em situações em que o aprendizado é
zerosas. Como indivíduo concreto, explicação conferida por Vigotski
um resultado claramente desejável das
por sintetizar as relações sociais que (1984) à formação de todas as parti-
interações sociais [...] A intervenção do
caracterizam a sociedade em que cularidades dos indivíduos.
professor tem, pois, um papel central na
vive, seu interesse coincide com a
trajetória dos indivíduos que passam
apropriação das objetivações huma- É nesse sentido que a teoria de
pela escola (Oliveira, 2002, p. 62).
nas, isto é, o conjunto dos instrumen-
Vigotski pode nos oferecer subsídios
tos materiais e culturais produzidos
pela humanidade e incorporados à Nesse sentido, Vigotski acen- para pensarmos sobre a importância
forma social de que a criança parti- tua o papel do professor que, pela do professor de educação infantil,
cipa (Saviani, 2004, p. 46). mediação na atividade de ensino, assim como no processo de recons-
possibilita à criança transformar trução de uma identidade que o
O papel do professor nas escolas uma experiência social, cultural em coloque em igual patamar de reco-
de educação infantil pode significar uma experiência sintética, interna, nhecimento profissional e social em 147
um avanço qualitativo nas aprendi- reconstruída e ressignificada por ela. relação aos professores dos outros
zagens e no processo de desenvolvi- Por isso, a importância de que um níveis de ensino.

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Jaqueline Cristina Massucato e Heloisa Helena Oliveira de Azevedo

Considerações finais enquanto tal pela sociedade. E, para Central do Brasil. Educação e Socie-
dade, 21(71):221-234. http://dx.doi.
isso, ele deve transformar as marcas
org/10.1590/S0101-73302000000200010
Ao longo desse artigo, buscamos históricas de seu papel de guardião, FREITAS, M.T.A. 1994. O pensamento de
evidenciar a importância do professor de babá, na imagem de um profis- Vygotsky e Bakhtin no Brasil. 2ª ed.,
de educação infantil que, devido ao sional cuja tarefa precípua deva ser Campinas, Papirus, 192 p. (Coleção Mag-
próprio processo histórico de consti- istério, formação e trabalho pedagógico).
a de emancipar os sujeitos pela dis-
GATTI, B.A. 2005. Pós-modernidade, educa-
tuição da sua profissão, naturalizou-se ponibilização de instrumentos que ção e pesquisa: confrontos e dilemas no
como tarefa a ser realizada por pessoas possibilitem a conscientização de início de um novo século. Psicologia da
sem qualificação, das quais, por muito suas necessidades e possibilidades, Educação, 20:139-151.
tempo, exigiu-se apenas o “gosto” pela KUHLMANN Jr., M. 1998. Infância e edu-
construídas objetivamente pelas cação infantil: uma abordagem histórica.
criança como única condição para com condições reais que os cercam. Porto Alegre, Mediação, 210 p.
elas atuar. Hoje, podemos afirmar MARTINS, L.M. 2009. O ensino e o desen-
com bases científicas que só o gosto Referências volvimento da criança de zero a três Anos.
In: A. ARCE; L.M. MARTINS (orgs.),
por crianças não basta para interferir
ARCE, A. 2001. Compre o kit neoliberal para Ensinando aos pequenos de zero a três
positivamente em seu processo de anos. Campinas, Editora Alínea, p. 93-121.
a educação infantil e ganhe grátis os dez
aprendizagem e desenvolvimento. passos para se tornar um professor refle- MORAES, M.C.M. 2001. Recuo da teoria:
Mais do que isso, é preciso garantir a dilemas na pesquisa em educação. Revista
xivo. Educação & Sociedade, 22(74):251-
Portuguesa de Educação, 14(1):7-25.
profissionalização desses professores, 283. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
OLIVEIRA, M.K. de. 2002. Pensar a educação:
se almejamos lutar por sua valorização 73302001000100014
contribuições de Vygotsky. In: CASTORI-
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social e profissional, uma vez que seu NA, J.A. et al., Piaget-Vygotsky: novas con-
menor de três anos produz cultura? Cria-
papel é imprescindível para a socieda- tribuições para o debate. 6ª ed., São Paulo,
ção e reprodução em debate na apropria-
Editora Ática, p. 51-84. (Série Fundamentos).
de e humanização dos sujeitos. ção da cultura por crianças pequenas. In:
SAVIANI, D. 2002. Educação: Do senso
Ser professor é assumir-se enquan- A. ARCE; L.M. MARTINS (orgs.), En-
comum à consciência filosófica. 14ª ed.,
sinando aos pequenos de zero a três anos.
to categoria profissional, posicio- Campinas, Autores Associados, 247 p.
Campinas, SP, Editora Alínea, p. 187-204.
nando-se politicamente e buscando (Coleção Educação contemporânea).
ARCE, A.; DANDOLINI, M.R. 2009. A forma-
SAVIANI, D. 2004. Perspectiva marxiana
construir sua profissionalidade, por ção de professores de educação infantil: al-
do problema subjetividade-intersubjetivi-
meio do engajamento na luta por gumas questões para se pensar a profissional
dade. In: N. DUARTE (org.), Crítica ao
reconhecimento profissional. E, para que atuará com crianças de 0 a 3 anos. In: A. fetichismo da individualidade. Campinas,
ARCE; L.M. MARTINS (orgs.), Ensinando Autores Associados, p. 21-52.
isso, ele precisa estar consciente aos pequenos de zero a três anos. Campinas, SCALCON, S. 2002. À procura da unidade
de seu papel na formação humana, Editora Alínea, p. 51-91. psicopedagógica: articulando a psicologia
na qual o conhecimento filosófico, AZEVEDO, H.H.O. de. 2005. Formação ini- histórico-cultural com a pedagogia históri-
científico, das artes, da cultura e dos cial de profissionais de educação infantil: co-crítica. Campinas, Autores Associados,
desmistificando a separação cuidar-educar. 151 p. (Coleção Educação contemporânea).
saberes socialmente elaborados e Piracicaba, SP. Tese de Doutorado. Uni- SCALCON, S. 2008. O pragmatismo epis-
transmitidos, é a razão de sua existên- versidade Metodista de Piracicaba, 249 p. temológico e a formação do professor.
cia. É nesse sentido que consideramos AZEVEDO, H.H.O. de. 2007. Implicações Percursos Revista, 9(2):35-49.
que a psicologia histórico-cultural teórico-práticas do binômio cuidar-educar VIGOTSKI, L.S. 2008. A formação social
na educação infantil. Revista Olhar de da mente. 7ª ed., São Paulo, Martins
se mostra fecunda ao evidenciar a
Professor, 10(2):159-179. Fontes. 182 p.
importância do papel do professor BRASIL, MEC. 1996. Lei de Diretrizes e
em disponibilizar o conhecimento Bases da Educação Nacional, nº 9394/96. Submetido em: 14/02/2011
e as condições sociais objetivas nas Brasília, MEC/SEMTEC. Disponível em: Aceito em: 09/07/2011
http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.
quais ele se torna possível.
pdf. Acesso em: 14/02/2011.
Por derradeiro, consideramos a DALAROSA, A.Â. 2001. Globalização,
necessidade de uma formação inicial Jaqueline Cristina Massucato
neoliberalismo e a questão da transversali-
Pontifícia Universidade Católica de
que possibilite a revisão de conceitos dade. In: J.C. LOMBARDI (org.), Glo- Campinas
e práticas, pois assumimos a cen- balização, pós-modernidade e educação: Rodovia Dom Pedro I, Km 136, Parque
história, filosofia e temas transversais. das Universidades
tralidade desse locus para pensar Campinas/Caçador, Autores Associados- 13020-904, Campinas, SP, Brasil
nessa reconstrução identitária, que HISTEDBR/UnC, p. 197-217. (Coleção
acreditamos estar dialeticamente Educação contemporânea). Heloisa Helena Oliveira de Azevedo
DOTTA, L.T.T. 2006. Representações so- Pontifícia Universidade Católica de
relacionada à busca por valorização
148 do professor de educação infantil,
ciais do ser professor. Campinas, Editora
Campinas
Rodovia Dom Pedro I, Km 136, Parque
Alínea, 92 p. das Universidades
enquanto um profissional que pre- FONTANA, R.A.C. 2000. A constituição 13020-904, Campinas, SP, Brasil
cisa ter seus direitos reconhecidos social da subjetividade: notas sobre

Educação Unisinos

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