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Uma narrativa gráfica que conta a história de um artista sem-abrigo que Youme Landowne
encontrou no metro de Nova Iorque. Anthony Horton leva-a a visitar os túneis a que chama “casa”,
mostra-lhe a sua arte e fala da sua longa busca de um sentido de pertença.
Os meus pais não me queriam e deram-me. Mas as pessoas a quem me deram também não me
queriam. Aliás, ninguém me queria. Acabei nas ruas, sozinho e sem ter ido à escola. Não sabia ler nem
escrever. Não sabia nada e toda a gente o percebia. Adolescente, pus-me à procura de casa, o que não
foi nada fácil. Encontrei, finalmente, o Departamento de Serviços Sociais, que me mandou para o
Inferno.
O Inferno era um lugar a que chamavam “O Centro”, mas que me descentrou por completo.
Embora lá morresse gente todos os dias, a cada dia havia pessoas a regressar, porque não tinham mais
nenhum sítio para onde ir. Os dias eram todos iguais. Até a quinta-feira era sempre dia de frango…
Vi coisas que nenhum miúdo deve ver.
As pessoas vendiam o corpo por uma miséria e a miséria da droga cobrava-lhes a dobrar.
Vi nascer muitas crianças já viciadas em crack.
Se as ruas tinham sido más, o abrigo eram muito pior.
Pensei que deveria haver algum lugar melhor do que aquele e fui dormindo de banco em banco.
A polícia obrigava-me a mudar de lugar constantemente. Batiam-me nas plantas dos pés e mandavam-
me sair dali. Tentei dormir em carruagens de metro até que, um dia, ao saltar o torniquete, a polícia
saiu de um lugar escondido.
Chamaram por mim, mas nem olhei para trás. Furiosos, foram no meu encalço.
Quando cheguei ao fim da plataforma, já só havia o túnel diante de mim.
Saltei e continuei a correr.
Virei-me para tentar ver onde estavam. Continuavam na plataforma e não pareciam querer sair
de lá…. Fui-me embrenhando no túnel até mergulhar na escuridão total.
Estava a seis pisos abaixo do solo.
Aqui, as pessoas não me veem. Aliás, para elas, eu nem sequer existo.
Quando vim para aqui, mal via os meus próprios pés. Após algumas centenas de metros, senti
um cheiro horrível e pareceu-me ver luz. Ainda tive de atravessar alguns carris até lá chegar. Fui dar
com um quarto cheio de roupa empilhada até ao teto. Parecia uma caverna pré-histórica.
— Quem está aí? — perguntou alguém.
Chocado, vi uma silhueta aninhada contra a parede do fundo. Usava um saco de papel como
latrina e pendia-lhe do braço uma seringa. Nem acreditava no que via. Uma pilha de roupa mexeu-se
e começou a murmurar.
Perdi a noção de onde estava e recuei um passo. Ouviu-se um barulho enorme, mas o homem
nem sequer parou o que estava a fazer. De repente, vi junto de mim um par de olhos, brilhante e belo.
— Tens dinheiro? Queres que te faça alguma coisa em troca dele? — perguntou uma rapariga.
Comecei a recuar e embrenhei-me cada vez mais na escuridão. Não tinha ideia de onde estava
nem de quando viria o metro seguinte. Foi então que uma composição quase me roçou e a deslocação
do ar me fez vergar os joelhos. Uma das minhas mãos aterrou em algo viscoso e frio. Tinha de sair dali
e depressa!
Como era hora de ponta, as pessoas estavam demasiado ocupadas para reparar num homem
negro e sujo a sair dos túneis. Perguntei-me onde iria arranjar um local para ficar e quando me custaria.
Alguns dias mais tarde, decidi voltar para baixo. Enquanto refletia no próximo passo a dar,
alguém acendeu um cigarro diante de mim e pensei, “Que mal tem perguntar?”
O homem revelou ser impecável. Mostrou-me um quarto uns metros adiante dos carris e disse
que ninguém o usava. Foi um começo.
• Procurar um quarto num dia de chuva. Não vale a pena instalarmo-nos e descobrir depois que
chove lá dentro.
• Ter sempre mais do que uma alternativa.
• Trazer sempre uma lanterna.
• Limpar sempre um lugar antes de o cobrir com uma carpete.
• Ter sempre uma saída diferente do ponto de entrada.
• Lembrar-se de que se encontra no lixo tudo aquilo de que se necessita. Basta dar um pontapé
num saco para saber o que contém.
• Há sempre muitos cabos e, por isso, a eletricidade chega para todos.
• Há sempre alguém que quer comprar algo que queremos vender. Algumas pessoas têm
negócios paralelos e mandam o que encontramos para outros países.
• Atribuir aos compradores o nome dos artigos que nos compram mais: Homem-Rádio, Homem-
Relógio, Homem-Sapatilha.
• Ter cuidado com vidros partidos.
• Nunca deixar comida espalhada. Atrai ratazanas. Muitas ratazanas.
• Conhecer-se bem a si mesmo.
Cruzei-me com pessoas resilientes ao longo do meu percurso. Pessoas que me ajudaram a chegar
onde estou. Sinto-me em dívida para com todas, porque sou um pouco de cada uma delas.
KIM — Roubava tudo o que não estivesse pregado ao chão. Mestre do negócio rápido. Foi uma
irmã e uma amiga.
MEATBALL — A primeira pessoa que me mostrou o que era o amor incondicional e o que significa
poder contar com alguém. Era único e tenho uma saudade tremenda dele.
CHRIS — Ajudou-me a saber falar e comunicar com pessoas de níveis muito diferentes.
MIKE — Ajudou-me a ver as coisas como elas são, a usar o poder energético da minha mente.
JORDAN — O irmão que nunca tive. Tinha sempre um livro para cada um, e ensinou-me o poder
que a literatura tem quando é bem usada. Um livro pode mudar o mundo de uma pessoa.
Quando Anthony acabou de me contar tudo isto, subimos uma escada de aço e alcançámos a
plataforma.
— Caminhe como se soubesse perfeitamente onde está e ninguém lhe fará perguntas —
aconselhou-me.
— Assim de repente, esta claridade é tão estranha...
— Nem imagina o quanto.
O meu comboio aproximava-se.
— Onde posso encontrá-lo? —perguntei.
— Ando sempre por aí. Não se esqueça de mim — pediu.
As nossas memórias e sonhos caminham ao nosso lado, enformando tudo o que pensamos ver.
Procuramos mensagens de esperança escondidas e encontramo-las.
No fundo, somos caçadores de histórias, que vão recolhendo provas de resistência à opressão e
ao desespero.