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Não tenhas medo do escuro

Uma narrativa gráfica que conta a história de um artista sem-abrigo que Youme Landowne
encontrou no metro de Nova Iorque. Anthony Horton leva-a a visitar os túneis a que chama “casa”,
mostra-lhe a sua arte e fala da sua longa busca de um sentido de pertença.

Encontrámo-nos na plataforma agitada de uma estação de metro nova-iorquina. Enquanto


contemplava um grafito, ouvi uma voz atrás de mim.
— Gosta desse quadro?
— Gosto da forma como as pessoas transformam as coisas e expõem as suas mensagens —
respondi, apontando para uma frase que saía de uns lábios e dizia Não Estás Sozinho.
— É artista? — perguntou-me.
— Não o somos todos? — retorqui.
O metro parou diante de nós e perguntei-lhe:
— Vai para a cidade?
— Sim, para Brooklyn.
Sentámo-nos juntos.
— Está a trabalhar nalguma coisa neste momento? — perguntou-me.
Mostrei-lhe alguns dos meus esboços.
— Este mostra um negro… — admirou-se.
— Pois mostra — admiti.
Devolveu-me os esboços.
Enquanto o metro percorria a cidade, conversámos sobre a arte e a vida.
Anthony contou-me a sua.

Os meus pais não me queriam e deram-me. Mas as pessoas a quem me deram também não me
queriam. Aliás, ninguém me queria. Acabei nas ruas, sozinho e sem ter ido à escola. Não sabia ler nem
escrever. Não sabia nada e toda a gente o percebia. Adolescente, pus-me à procura de casa, o que não
foi nada fácil. Encontrei, finalmente, o Departamento de Serviços Sociais, que me mandou para o
Inferno.
O Inferno era um lugar a que chamavam “O Centro”, mas que me descentrou por completo.
Embora lá morresse gente todos os dias, a cada dia havia pessoas a regressar, porque não tinham mais
nenhum sítio para onde ir. Os dias eram todos iguais. Até a quinta-feira era sempre dia de frango…
Vi coisas que nenhum miúdo deve ver.
As pessoas vendiam o corpo por uma miséria e a miséria da droga cobrava-lhes a dobrar.
Vi nascer muitas crianças já viciadas em crack.
Se as ruas tinham sido más, o abrigo eram muito pior.

Pensei que deveria haver algum lugar melhor do que aquele e fui dormindo de banco em banco.
A polícia obrigava-me a mudar de lugar constantemente. Batiam-me nas plantas dos pés e mandavam-
me sair dali. Tentei dormir em carruagens de metro até que, um dia, ao saltar o torniquete, a polícia
saiu de um lugar escondido.
Chamaram por mim, mas nem olhei para trás. Furiosos, foram no meu encalço.
Quando cheguei ao fim da plataforma, já só havia o túnel diante de mim.
Saltei e continuei a correr.
Virei-me para tentar ver onde estavam. Continuavam na plataforma e não pareciam querer sair
de lá…. Fui-me embrenhando no túnel até mergulhar na escuridão total.
Estava a seis pisos abaixo do solo.

Anthony parou de falar. Tínhamos chegado de novo à estação.


Após breves instantes, perguntei:
— Que tipo de arte é a sua?
— Preferia mostrar-lha a falar dela. Isto é, se não tiver medo de a ver. É que eu trabalho nos
túneis…
Nem pensei duas vezes. Caminhámos até ao fim da plataforma e continuámos a andar.
— Siga os meus passos e mantenha-se afastada dos carris — disse Anthony.
Em seguida, continuou a narração que tinha interrompido:

Aqui, as pessoas não me veem. Aliás, para elas, eu nem sequer existo.
Quando vim para aqui, mal via os meus próprios pés. Após algumas centenas de metros, senti
um cheiro horrível e pareceu-me ver luz. Ainda tive de atravessar alguns carris até lá chegar. Fui dar
com um quarto cheio de roupa empilhada até ao teto. Parecia uma caverna pré-histórica.
— Quem está aí? — perguntou alguém.
Chocado, vi uma silhueta aninhada contra a parede do fundo. Usava um saco de papel como
latrina e pendia-lhe do braço uma seringa. Nem acreditava no que via. Uma pilha de roupa mexeu-se
e começou a murmurar.
Perdi a noção de onde estava e recuei um passo. Ouviu-se um barulho enorme, mas o homem
nem sequer parou o que estava a fazer. De repente, vi junto de mim um par de olhos, brilhante e belo.
— Tens dinheiro? Queres que te faça alguma coisa em troca dele? — perguntou uma rapariga.
Comecei a recuar e embrenhei-me cada vez mais na escuridão. Não tinha ideia de onde estava
nem de quando viria o metro seguinte. Foi então que uma composição quase me roçou e a deslocação
do ar me fez vergar os joelhos. Uma das minhas mãos aterrou em algo viscoso e frio. Tinha de sair dali
e depressa!
Como era hora de ponta, as pessoas estavam demasiado ocupadas para reparar num homem
negro e sujo a sair dos túneis. Perguntei-me onde iria arranjar um local para ficar e quando me custaria.
Alguns dias mais tarde, decidi voltar para baixo. Enquanto refletia no próximo passo a dar,
alguém acendeu um cigarro diante de mim e pensei, “Que mal tem perguntar?”
O homem revelou ser impecável. Mostrou-me um quarto uns metros adiante dos carris e disse
que ninguém o usava. Foi um começo.

A partir desse dia, aprendi muitas coisas.


Coisas a fazer e coisas a evitar quando se vive em subterrâneos.

• Procurar um quarto num dia de chuva. Não vale a pena instalarmo-nos e descobrir depois que
chove lá dentro.
• Ter sempre mais do que uma alternativa.
• Trazer sempre uma lanterna.
• Limpar sempre um lugar antes de o cobrir com uma carpete.
• Ter sempre uma saída diferente do ponto de entrada.
• Lembrar-se de que se encontra no lixo tudo aquilo de que se necessita. Basta dar um pontapé
num saco para saber o que contém.
• Há sempre muitos cabos e, por isso, a eletricidade chega para todos.
• Há sempre alguém que quer comprar algo que queremos vender. Algumas pessoas têm
negócios paralelos e mandam o que encontramos para outros países.
• Atribuir aos compradores o nome dos artigos que nos compram mais: Homem-Rádio, Homem-
Relógio, Homem-Sapatilha.
• Ter cuidado com vidros partidos.
• Nunca deixar comida espalhada. Atrai ratazanas. Muitas ratazanas.
• Conhecer-se bem a si mesmo.

Cruzei-me com pessoas resilientes ao longo do meu percurso. Pessoas que me ajudaram a chegar
onde estou. Sinto-me em dívida para com todas, porque sou um pouco de cada uma delas.

KIM — Roubava tudo o que não estivesse pregado ao chão. Mestre do negócio rápido. Foi uma
irmã e uma amiga.
MEATBALL — A primeira pessoa que me mostrou o que era o amor incondicional e o que significa
poder contar com alguém. Era único e tenho uma saudade tremenda dele.
CHRIS — Ajudou-me a saber falar e comunicar com pessoas de níveis muito diferentes.
MIKE — Ajudou-me a ver as coisas como elas são, a usar o poder energético da minha mente.
JORDAN — O irmão que nunca tive. Tinha sempre um livro para cada um, e ensinou-me o poder
que a literatura tem quando é bem usada. Um livro pode mudar o mundo de uma pessoa.

Quando Anthony acabou de me contar tudo isto, subimos uma escada de aço e alcançámos a
plataforma.
— Caminhe como se soubesse perfeitamente onde está e ninguém lhe fará perguntas —
aconselhou-me.
— Assim de repente, esta claridade é tão estranha...
— Nem imagina o quanto.
O meu comboio aproximava-se.
— Onde posso encontrá-lo? —perguntei.
— Ando sempre por aí. Não se esqueça de mim — pediu.

As nossas memórias e sonhos caminham ao nosso lado, enformando tudo o que pensamos ver.
Procuramos mensagens de esperança escondidas e encontramo-las.
No fundo, somos caçadores de histórias, que vão recolhendo provas de resistência à opressão e
ao desespero.

Youme Landowne; Anthony Horton


Pitch black
El Passo, Cinco Puntos Press, 2008
(Tradução e adaptação)

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