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INTELIGêNCIA

ANO XViII • Nº 70 • julho/agosto/setembro de 2015

ANO XViII • Nº 70 • julho/agosto/setembro de 2015 issn 1517-6940

O VAZA-
MENTO
ESTA PARA A
DEMOCRACIA
ASSIM COMO A
T O RTUR A
INTELIGÊNCIA

ESTA PARA A
DITADURA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Conselho EDITORIAL Décio Clemente


ISSN 1517-6940
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2 EXPEDIENTE
recado
Pior do que vácuo de poder é vazio de governo. Nem golpe de estado ou
qualquer outra medida institucionalmente traumática, embora por vezes eficazes
em preencher o vácuo, são bem-sucedidas em ocupar vazios. Troca de guarda,
metafórica ou literalmente falando, é uma coisa, troca de estratégia, plano,
rumo consciente, é abissalmente distinto. Faltam ao país, no momento, objetivos
claros acompanhados de instrumentos adequados e, em especial, voz e ação de
comando. O poder existente é o poder democrático, sem fratura, ocos ou remendos.
Mas de exercício limitado à sua força negativa, castradora, defensiva. O cenário
adquire dramaticidade suplementar pela ausência de alternativas políticas que
ultrapassem o prólogo dos panelaços e rosnados parlamentares. Um cínico diria que
o governo tem a oposição que merece. Mas a população, vivamente empenhada
na democracia, não merece nem um nem a outra. Tristes trópicos.
ANTINOMIA na
hidráulica da
democracia:
a hermenêutica
dos vazamentos
Anna Cecilia Faro Bonan
Canos silenciosos? Confissões de
um blogueiro
16 sujo
Miguel do Rosário
Geografia da guerrilha
midiática

42

O mercado
interno na
formação
econômica do
Brasil
Celso Furtado
Desafios no limiar da
(Des)governança globalização
da Internet
Louise Marie Hurel 62
Silva Dias
Enxugando gelo

52

Bolsa Família e Bolsa-Banco:


a financeirização do social
Lena Lavinas
Crítica da política econômica

68

sumário
4 SUMÁRIO
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 70 julho/agosto/setembro 2015

Confiança e
memória: antídotos
A greve de Caronte contra a violência
Márcio Scalercio Alba Zaluar
A crise europeia chega ao Olimpo O altruísmo bem
compreendido

74 84

Distribuição de renda no Brasil:


meio século de desigualdade (1960-2012)
Fernando Augusto Mansor de Mattos
Morrendo na praia
Cidades perdidas,
submersas, 94
transplantadas
Gustavo Maia Gomes
Relatos do urbanismo fantástico

110 Imaginação
política e um
pouco de Rock
and Roll na
década de todas
as revoltas
Luis Carlos Fridman
Uma revolução cultural

128

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 5


Insight Inteligência foi buscar reforços para debelar a mãe de
todas as crises, a tempestade perfeita, o supremo desajuste fiscal.
O cenário de desequilíbrio exige medidas de excepcional
sabedoria. Nas próximas páginas, publicamos uma galeria de
fotos da aristocracia da ciência econômica. O timaço comparece
para inspirar os medianeiros oficiais. Os parceiros comerciais
desta edição se destacam em meio à torcida, entusiasticamente.

Karl Marx John Maynard Keynes Joseph Schumpeter


Beatrice Webb Mario Henrique Simonsen John Galbraith
Joan Robinson Milton Friedman
Léon Walras Friedrich Hayek Paul Samuelson
Ludwig von Mises Irving FIsher
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ANNA CECILIA FARO BONAN


ADVOGADA

16 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ANTINOMIA
NA HIDRAU-
LICA
DA DEMO-
CRACIA
A HERMENEUTICA
DOS VAZAMENTOS

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

I
nstituições privadas ou públicas podem manter o sigilo de suas informa-
ções por considerá-las demasiado sensíveis ao público ou mesmo para
proteger a continuidade de suas políticas internas e externas. O vaza-
mento consiste justamente em um escoamento indesejado dessas in-
formações, isto é, a entrega e a exposição de informações caracteriza-
das como sigilosas. Nesse contexto, as intenções por trás da revelação de se-
gredos podem ser variadas, desde intuitos altruístas em prol da sociedade até
motivações individuais perversas.
Todo cuidado é pouco para dissecar o fenômeno do vazamento. Diríamos
que o mesmo é uma espécie de icosaedro, em virtude da multiplicidade das
suas faces. Sua complexidade risca um caminho tortuoso entre as fronteiras
do bem e do mal. Compreendendo que bem e mal somente podem ser traba-
lhados como categorias valorativas, e dentro de sua carga subjetiva precisam
de um referencial, consideraremos o bem sempre em favor da democracia1 e o
mal como um desserviço às estruturas democráticas. É dessa maneira bifronte
que o instrumento dos vazamentos se apresenta à sociedade.
De acordo com o sociólogo alemão Georg Simmel, a ocultação de parcelas
da realidade, por meio de ações ou omissões, é um dos fundamentos-chaves
da vida social, uma vez que a publicidade total impediria que a vida se manifes-
tasse em sua plenitude, o que só é possível com a delimitação de esferas mais
íntimas. Simmel explica alguns elementos que dão forma ao que poderia se
chamar “vida psíquica” do segredo: se, de um lado, existe uma atração formal
e uma vantagem prática e funcional para a manutenção do oculto, em contra-
partida há uma pressão interna estrondosa e crescente para se ceder à tensão
infligida pelo compromisso do sigilo, somada com uma sensação de poder e de
superioridade contidas no ato de revelar o que poucos conhecem.2 Essa com-
binação cria um dilema para aquele que detém o segredo: manter ou revelar?
Ademais, há também aqueles que desejam descobrir, motivados por um “ins-
tinto de idealização”,3 quase que um fetiche natural pelo secreto, e pelo medo
daquilo que desconhecem. Se o sigilo ergue uma barreira entre os indivíduos
e começa a moderar suas relações, a tentação de irromper tal barreira por in-
discrição, confissão ou mesmo intrusão é constante,4 ainda quando ignoradas
as intenções individuais dos personagens de um caso concreto.

18 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em uma reflexão mais próxima da No entanto, segurança nacional é um conceito bastante impreciso e de
ciência política, o segredo pode ser grande elasticidade, o que permite, a partir de uma avaliação subjetiva, enqua-
compreendido como um instrumen- drar múltiplas informações em uma categoria de segredo de Estado. O concei-
to político essencial para as práticas to que é mais frequentemente ligado a adversários ou inimigos, internos e ex-
de manutenção do governo e da domi- ternos, em supostas interações conflitivas, pode acabar sendo ampliado para
nação, ou seja, está alocado no “mais tudo aquilo que cause um intenso impacto danoso, físico ou moral, na ordem
recôndito cerne do poder”.5 Conforme pública e nas instituições de poder. É preciso estabelecer limites. Em uma de-
narra Ruan Sales de Paiva Pinheiro em mocracia a transparência deveria ser sempre a regra, enquanto o segredo, a
sua dissertação de mestrado apresen- exceção. Se é premissa da democracia que “todo poder emana do povo”, par-
tada ao Conselho do Programa de Pós- cas são as defesas para deixá-lo na completa ignorância. Toda informação res-
-Graduação em Ciências Sociais da tringida aos cidadãos deve possuir um arcabouço robusto de justificativas no
Faculdade de Filosofia e Ciências da seio das constituições democráticas.
Universidade Estadual Paulista, a for- Se o segredo é um instituto político tão poderoso, o vazamento só poderia
mação dos Estados modernos garan- ser compreendido como seu correspondente opositor. Assim, o vazamento é
tiu a prerrogativa de controle das in- o ponto clave para compreender a própria dialética do segredo. Ambos os ins-
formações estatais,6 e, com o devir trumentos mantêm um caráter dicotômico perante a democracia. Para eluci-
da história, os processos de abertu- dar a complexidade da questão, podemos avistar dois casos norte-americanos
ra democrática, apesar de vincular o emblemáticos que se contrapõem nessa relação positiva e negativa para com
poder público ao interesse dos cida- a democracia: os vazamentos de Watergate e os da Nacional Security Agency
dãos, demandar a existência de uma (NSA) quanto às interceptações telefônicas de Osama Bin Laden.
cidadania ativa e ter como um de seus
maiores fundamentos a transparência,
mantiveram a garantia de proteção ao
segredo em alguma instância, geral-
mente associado à ideia de seguran-
ça nacional, ou seja, o segredo como
forma de garantia para a preservação um dilema
dos próprios cidadãos.7
para
aquele que
detém o
segredo:
manter ou
revelar?
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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em 1969, Richard Nixon chegava à Casa Branca assumindo a presidência Os vazamentos seguiam como
de um país que se encontrava em uma situação militar complicada. A guerra uma torneira aberta. Em julho de 1971,
do Vietnã causava um déficit pessoal de 300 a 450 soldados mortos por sema- o New York Times revelou posições
na, e o contingente humano norte-americano já somava 549 mil homens em americanas nas negociações Salt de
ação.8 Era urgente adotar novas estratégias contra os vietcongues para rever- Helsinque. Em dezembro, o jornalista
ter o quadro. O recém-eleito presidente, então, ordenou os bombardeios siste- Jack Anderson, ganhador do prêmio
máticos ao Camboja, país que, apesar de declarar-se oficialmente neutro, ser- Pulitzer daquele ano, revelou, ainda no
via de base de apoio ao exército norte-vietnamita. A estratégia, contudo, cons- New York Times, o conteúdo de me-
tituía uma violação das leis internacionais, e, portanto, os bombardeios deve- morandos secretos do Conselho Na-
riam ser mantidos em segredo. Porém, a ardilosa tática de Nixon foi revelada. cional de Segurança que demonstra-
Em maio daquele mesmo ano, o jornal The New York Times publicou informa- vam um suposto apoio militar ao Pa-
ções bombásticas expondo tal segredo de Estado. quistão na guerra indo-paquistanesa
Os vazamentos não cessaram na ocasião. Em junho de 1971, o New York em Bangladesh. Diante da situação,
Times tornou público trechos dos famosos “Pentagon Papers”, um longo es- o estadista norte-americano foi obri-
tudo de sete mil páginas acerca do envolvimento norte-americano no Vietnã. gado a iniciar uma caça aos ratos a
As informações cedidas por Daniel Ellsberg, antigo colaborador do programa fim de evitar que os mesmos seguis-
de pacificação da CIA no Vietnã poderiam complicar negociações ultrassigilo- sem roendo os canos e, consequen-
sas entre a Casa Branca e Pequim. Nixon trabalhava nesse período um de seus temente, vazando informações secre-
maiores objetivos na política externa, a ruptura da unidade comunista chinesa tas da Casa Branca. Para tanto criou
pelo reconhecimento oficial da República Popular da China, e toda aquela pu- uma espécie de “departamento” que
blicidade se apresentava devastadora para seus planos. uniam profissionais “expertos” na área
de espionagem, estes ficariam conhe-
cidos na história como “encanadores”
da Operação Watergate,9 que preten-
dia também descortinar um possível fi-
nanciamento das campanhas eleitorais
do partido democrata pelos cubanos.

20 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

As espionagens internas, realizadas dentro do edifício de Watergate, não


trouxeram os resultados desejados por Nixon. A criação se voltou contra seu
criador. Em dezembro de 1972, o jornal Washington Post expôs as relações en-
tre os “encanadores” e a Casa Branca. O escândalo arruinou a popularidade de
Nixon e fez com que ele, frente à ameaça de um processo de impeachment,
renunciasse à presidência em meados de 1974.
Somente em maio de 2005, três décadas após o acontecimento, a identi-
dade daquele que ficou conhecido pelo codinome de «Garganta Profunda», a
misteriosa fonte do FBI que proveu as informações sigilosas de Watergate aos
jornalistas do Washington Post, foi revelada por John D. O. Connor em um es-
trondoso artigo na revista Vanity Fair.10 Mark Felt surgiu, então, como um jus-
ticeiro, um herói nacional. No entanto, de acordo com o artigo revelador, Felt

O
passou décadas atordoado por um sentimento de culpa quanto à quebra de bservemos o caso do va-
sua ética de conduta nos serviços prestados ao FBI. zamento quanto às inter-
Esse conflito moral interno é inerente à condição de vazador, ainda que esse ceptações telefônicas de
tenha outros interesses ocultos por detrás dos interesses públicos, afinal, para Osama Bin Laden. Em 21
se vazar uma informação, por maior que seja sua utilidade pública, é sempre ne- de agosto de 1998, um dia
cessário romper a barreira do sigilo, por meio do abandono de um compromis- após disparos de mísseis contra as ba-
so funcional ou de uma intrusão ilegal ou imoral de “sistemas” de informação ses da Al Quaeda no Afeganistão, o
restritos por questões relacionadas à intimidade e à privacidade ou por ques- jornal Washington Time expôs ao pú-
tões correlatas a segredos de Estado e segurança nacional. blico que a National Security Agency
O caso Watergate é um bom exemplo de como os vazamentos podem ser (NSA) estaria interceptando a comu-
uma intervenção positiva para o controle das atividades de governo, assim como nicação telefônica de Bin Laden. O
para descortinar os casos de “desmandos” do poder público e principalmen- grupo classificado como terrorista te-
te afrontas severas aos direitos humanos. Porém, não são todos os casos os ria causado 258 mortes, entre esses
que geram um efeito positivo à sociedade. Algumas informações privilegiadas 12 americanos, em bombardeios de
pelo manto do sigilo, quando desnudas, podem gerar efeitos desestabilizado- embaixadas americanas no Quênia e
res para políticas definidas pelo Estado como o bem comum, e assim compre- na Tanzânia, um pouco antes do fato.
endidas pela comunidade como uma construção de um valor ou uma deman- Em decorrência do vazamento, Bin La-
da coletiva, portanto, democráticas. den supostamente deixou de utilizar
os telefones por satélite, condenan-
do uma fonte preciosa da inteligência
norte-americana para as tentativas de
rastrear seu declarado inimigo. Por tal
motivo, o vazamento foi criticado vee-
mentemente pelo relatório final da Co-
missão Parlamentar de Inquéritos so-
bre os ataques de 11 de Setembro,11
assim como pelo então presidente Ge-
orge W. Bush.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

N
ão se pretende aqui tecer comentários acerca da subjetividade des-
sas interceptações, julgando-as boas ou más sob o ponto de vista
particular. Mas, sim, compreender o ponto de vista da legitimidade
das ações quanto política aceita por uma determinada comunida-
de, ou por uma expressiva maioria desta. Ainda que muitos norte-
-americanos e membros da comunidade internacional criticassem a guerra no
Afeganistão, bem como as posturas e estratégias de guerra norte-americanas, Isso ocorre porque é impossível
tais críticas só ganharam uma força maior em decorrência da visibilidade de ou- reparar todo o “encanamento” das
tro vazamento muito mais recente, pela plataforma WikiLeaks, que identificou instituições e vedar os efeitos colate-
a ocorrência de crimes de guerra por parte das forças armadas norte-america- rais decorrentes dos vazamentos e da
nas e expôs o fracasso que constituía as ações das mesmas,12 de modo que, quebra dos compromissos que envol-
na ocasião, havia uma aceitação popular da medida afeta à segurança nacio- vem as informações em um Estado de-
nal – e talvez ainda haja. Portanto, o vazamento, apesar de trazer a transparên- mocrático ou naqueles em que ainda
cia, acabou em conflito com políticas protegidas pela representação legítima é possível trilhar os caminhos das lu-
do poder, fundada sobre o reconhecimento do Poder Público enquanto intér- tas democráticas. A razão está no fato
prete e atuante da vontade popular. de que a prática do vazamento nasce
Os vazamentos acabam se firmando na relação Estado x Sociedade e, por- no âmago de fundamentos democrá-
tanto, na democracia como uma imposição quase atávica, tornando-se uma ticos, como a transparência dos atos
representação da “transparência em movimento”, com as ações muitas vezes públicos, o acesso à informação e a
compreendidas como de interesse público, ainda que não o sejam. Porém para liberdade de imprensa. É natural que,
compreender esse fenômeno é necessário separar o vazamento do vazador. em uma democracia, os cidadãos bus-
O vazamento torna-se legítimo ou não em função da forma com que a socie- quem romper o monopólio de determi-
dade se relaciona com a informação vazada, não dependendo dos interesses nados fluxos de informação pelo Esta-
individuais do vazador. Nesse contexto os vazadores de segredos do Estado do, desafiando os procedimentos de
compreendidos como legítimos pela sociedade são vistos como traidores, da classificação, controles de acesso e
mesma forma que o vazamento de segredos ilegítimos ou prescindíveis pe- punições para quebra dos sigilos,16 e
rante aos olhos dos cidadãos é muitas vezes aplaudido como ato de cidadania que essa ruptura seja compreendida
e até mesmo heroísmo.13 como um instrumento democrático e
É claro que, a despeito de sua faceta “legítima”, os vazamentos constituem não como traição. Enquanto que em
uma preocupação para os governos em todo o mundo, pois quando esses to- uma sociedade organizada na forma
mam sua forma inaceitável, condenada pela sociedade, podem gerar efeitos de um Estado autoritário, e não como
corrosivos às instituições de poder e suas políticas públicas. Uma amostra evi- uma sociedade civil autônoma, não há
dente dessa preocupação são os “Official Secrets Acts”14 e outras legislações um lugar sequer simbólico para os va-
estrangeiras que versam acerca da proteção dos segredos de Estado e de suas zamentos, pois eles contradizem a pró-
informações confidenciais, como salvaguarda da segurança nacional. Porém, pria fundamentação daquele Estado,
apesar das tentativas de coibir a prática dos vazamentos, inclusive com sus- na qual o controle de todo e qualquer
peitas de estratégias não tão ortodoxas,15 os governos não vêm obtendo êxito fluxo de informações é regra e a rela-
no resguardo de suas informações sigilosas. ção Estado x sociedade é mediada he-
gemonicamente pela força. Qualquer
informação revelada nesse contexto é
compreendida como traição.

22 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

vazamentos
O fato é que vazamentos não são exceções na demo-
cracia. Eles surgem quando a sociedade autônoma pode,

surgem quando
ela mesma, decidir o que deve ser de seu conhecimento,
e a própria divergência entre o que os cidadãos acreditam
que deve ter publicidade possibilita uma sociedade ainda
mais democrática, na qual mais informações estarão à dis-
posição dos cidadãos. Ou seja, é a regra em uma socieda-
a sociedade
de democrática o vazamento recursivo de informações, e
esses vazamentos ajustam as prerrogativas da sociedade
autônoma
e as atribuições do Estado, contribuindo para uma relação
de democracia plena.17 pode, ela
Porém, esse instrumento que surge de um pleito de-
mocrático carrega às contradições do deus romano Janus mesma, decidir
– a divindade de duas faces –, gerando problemas para a
própria democracia, pois de um lado sustenta-se o prato o que deve
da liberdade e de outro o prato da segurança. Em geral,
um deles sempre acaba se espatifando no piso. Portan- ser de seu
to, um vazamento saudável à democracia deve passar por
um processo cognitivo de reflexão elevada: a informação
classificada como propriedade, protegida ou sigilosa deve
conhecimento
ou não vazar?
De acordo com Kirk Hanson e Jerry Ceppos, um bom
vazamento pode ser entendido como a divulgação de infor-
mações que expande a compreensão do público de uma
questão de interesse público, sem prejuízo personificado
ou quando o prejuízo é significativamente menos impor-
tante ao interesse público em questão. Enquanto um mau
vazamento é aquele que prejudica e não ajuda a compre-
ensão do público de um ato público importante, ou aque-
le que, ainda buscando esclarecer uma questão relevan-
te ao interesse público, cria um prejuízo desastroso, não
proporcional aos benefícios que atribui à sociedade.18 In-
formações que versam tão somente a esfera privada, isto
é, sobre a intimidade de um indivíduo, como a orientação
sexual, suas finanças privadas, ou acerca de telefonemas
pessoais, mesmo que não impliquem em alto nível de in-
fluência na esfera pública, são daninhas ao processo de-
mocrático, pois inoculam o vírus do desrespeito aos direi-
tos individuais.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Tudo se resume à avaliação do be-


nefício público. Não se nega uma dose,
desde que medida, de dano material ou
imaterial, mas é necessária uma justifi-
cação concreta dentro de limites “éti-

T
cos”. O vazamento que serve apenas odo esse balanceamento seria facilitado se o “interesse público” fos-
a um interesse estritamente político se uma categoria objetiva, mas não, a expressão abre divergências
de setores da sociedade não pode ser tanto no plano abstrato quanto diante de casos concretos. Os vaza-
considerado de interesse geral para a dores definem tal interesse quando uma informação traz responsa-
democracia. O interesse próprio mui- bilidade e transparência para o governo e expõem má administração
tas vezes pode ser confundido com o ou corrupção. Os governos dos Estados Democráticos, por sua vez, se colo-
interesse público, assim como o “va- cam como intérpretes do interesse público, imbuídos da legitimidade demo-
zamento justiçador” é uma forma de crática do sufrágio universal, defendendo sua faculdade de determinar quan-
instrumentalizar as informações bus- do certas informações são demasiado sensíveis para conhecimento público e
cando encurralar decisões democrati- de punir aqueles que, em quebra de compromisso de sigilo, realizam uma “sa-
camente perfeitas. Cabe em todas es- botagem” ao seu governo.19 Nessa disputa pela definição do interesse público
sas circunstâncias, a mãe de todas as parece que só se pode conferir quem está correto depois que o cano estoura.
perguntas: quem ganha e quem per- No geral, quatro são os personagens principais atuantes no fenômeno do
de com o vazamento? Vencedores e vazamento: (i) os donos da informação, aqueles que já avaliaram a sensibili-
perdedores, não obstante o já declara- dade da informação e a cobriram pelo manto do sigilo; (ii) o vazador detentor
do alto nível de subjetividade da ques- da informação, seja pela sua condição funcional ou pela utilização de meca-
tão, ainda são o melhor fio do novelo nismos de espionagem e intrusão, quem muitas vezes permanece oculto para
para a compreensão dos vazamentos. a sociedade; (iii) a mídia, em sua forma ampla, incluindo a mídia tradicional e
as ditas mídias alternativas, que dissemina a informação; (iv) o público, isto é,
a sociedade civil como um todo, de onde surge a opinião pública, que poderá
fortalecer ou esmaecer os impactos causados pela revelação da informação,
tanto através do uso do ciberespaço, quanto por meio de grupos ativistas e
movimentos sociais.
É de se esperar que tanto os vazadores como a mídia trilhem o caminho
reflexivo quanto ao interesse público a ser promovido pela informação vazada,
porém, afastando-nos de uma posição ingênua, há de se compreender que
as informações na maior parte das vezes carregam também interesses parti-
culares e, inclusive, perversos. Não raras vezes platitudes são recomendáveis
como expressão de reforço quanto a determinado comportamento, no caso é
aconselhável que o jornalista, ao receber a informação, mantenha certo grau
de suspeição perante o vazador, e verifique a informação com o máximo de
fontes possíveis a fim de medir a sua fiabilidade e compreender os interesses
que o levaram até ela.20 Em contrapartida os delatores devem ter cuidado com
a mídia que escolhem confiar seu vazamento, a fim de garantir que a informa-
ção não seja utilizada para outros interesses promíscuos.

24 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Os vazamentos seletivos talvez se-


jam os alvos mais frequentes de críti-
cas acirradas contra o fenômeno dos
vazamentos. A prática consiste na pré-
-seleção das informações a serem va-
zadas, com fins de direcionamento da
Há ainda outros fatores a ser levados em consideração, como o respeito “opinião pública” – poderemos apro-
ao tempo correto de se realizar um vazamento, a maior confiabilidade de in- fundar-nos na questão da opinião pú-
formações advindas de documentos físicos, a blindagem de um grupo de va- blica e compreender o uso das aspas
zadores que trabalhem juntos, o interesse sobre a continuidade dos vazamen- mais a frente – a serviço de interes-
tos e a sua possível banalização, a aceitação de pagar o preço após o risco ser ses políticos particulares. A seletivi-
assumido e a possibilidade de sanções para com terceiros não responsáveis dade desses vazamentos reflete um
pelo vazamento como forma de pressionar os verdadeiros delatores e de dar projeto de desestabilização/manuten-
uma resposta de não impunidade. O processo do vazamento possui demasia- ção das instituições de poder, assim
das variáveis e, portanto, deve ser analisado com cautela, pois a alteração de é prática comum tanto das forças da
qualquer algarismo modifica o resultado da equação. O vazamento transita de oposição, que usam dos vazamentos
posição em instantes na qualificação do bem e do mal. de informações para debilitar o poder
estabelecido, quanto do próprio go-
Exegese dos vazamentos verno, que pode se utilizar de infor-
Conforme já exposto, o segredo e o vazamento são instrumentos ligados mações para enfraquecer a oposição
diretamente ao poder, e, portanto, fazem parte da esfera política da socieda- e afirmar a adoção de suas políticas.
de. No entanto, algumas formas de vazamentos ganham contornos de estra-
tégias que fogem do fair play da política. Podemos vislumbrar quatro exem-
plos de confronto ao sigilo – e estes não são exaustivos – que assumem um
importante caráter político em virtude dos seus interesses e impactos na so-
ciedade: os vazamentos seletivos, os “vazamentos chantagens”, o Trial balloon
e os “vazamentos apoio”.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 25


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Os vazamentos seletivos passam a ser uma arma insidiosa, pois perdem


seu conteúdo de justiça quando ocultam outras corrupções, que ensejam sua
própria triagem, a fim de prejudicar algo ou alguém. Tais vazamentos abafam
completamente o lado meritório do instrumento, a busca de transparência e de
fiscalização popular das ações dos governantes, que se contrapõe à traição e
ao descompromisso com o sigilo, a honra e a norma. Resta apenas o lado mais No entanto, Assange é fortemente
ordinário deste instrumento, sua forma de manchar figuras públicas e de deses- criticado justamente por essa falta de
tabilizar a ordem política e econômica, a fim de satisfazer interesses próprios. seleção, acusado de expor cidadãos a
Apesar das críticas acerca do processo seletivo de informações a serem perigos, quando não valorados os pos-
vazadas, nos resta a dúvida se todos os vazamentos não são, de certa forma, síveis danos ocasionados por uma re-
seletivos, pois toda informação traz consigo uma valoração subjetiva e demonstra velação impactante. Em um artigo pu-
algum interesse, nobre ou maquiavélico. O ícone número um dos vazamentos, blicado originalmente no jornal The
Julian Assange diria que não. O australiano defende que as informações se- Guardian e reproduzido pelo El País,
jam de domínio público independentemente do nível de sensibilidade da infor- James Ball, ex-empregado da organi-
mação. Para ele, os danos provocados pela informação são sempre inferiores zação WikiLeaks, revela que uma das
à conquista da transparência, pois uma sociedade deve ter a possibilidade de causas de seu afastamento foi justa-
conhecer todas as informações de interesse público e também a capacidade mente a falta de seleção e edição dos
de lidar com elas.21 documentos conhecidos como Cable-
gates, que revelaram detalhes secretos
das ações diplomáticas dos Estados
Unidos da América.22 De acordo com
Ball, os documentos continham deta-
lhes sobre ativistas, políticos de opo-
sição, blogueiros em países autocrá-
ticos com seus nomes reais, vítimas
de crimes perpetrados por Estados e
outros indivíduos militantes de direitos
humanos que tiveram algum contato
com a diplomacia norte-americana.
A exposição desses nomes e outros
dados referentes a essas pessoas foi
condenada por Ball, como de extre-
ma irresponsabilidade. Se a ausência
de seletividade é louvável como prin-
cípio, ela pode ser condenável como
método. Mais uma vez o vazamento
se apresenta de forma dialética, se a
seletividade pode servir a interesses
obscuros, ela também serve para pro-
teger a exposição desumana de perso-
nagens citados em uma informação.

26 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

U
ma vez identificado como
os vazamentos e o contro-
le de sua seleção podem
ser um instrumento de des-
construção da estabilidade
da ordem política e econômica torna-se A drenagem da inundação midiática causada por esses vazamentos, que
mais simples evidenciar que seu uso pressionam as instituições por nutrirem-se de alguma informação, geralmen-
ou sua ameaça podem granjear van- te negativa e que se deseja manter oculta, só pode ser, por muitas vezes, rea-
tagens no jogo político. Surge assim lizada através de concessões. Tapar as fendas, cerrar as torneiras e apertar o
outra faceta ardilosa dos vazamentos: encanamento podem ser soluções viáveis, mas que geram custos ao devir de-
o “vazamento chantagem”. Nessa mo- mocrático. Não parece correto que qualquer decisão governamental seja to-
dalidade de vazamentos “as fendas na mada por meio de um constrangimento a base de “chantagem”. Não há defe-
tubulação e as torneiras frouxas” das sas que possam acudir aqueles que vazam para garantir benefícios políticos e
instituições, são utilizadas como ma- para cercear o poder daqueles que foram eleitos democraticamente. Os “vaza-
neira de pressionar as mesmas a to- mentos chantagem” são moralmente condenáveis, mas dificilmente puníveis.
mar certas atitudes e atender certos Uma das fuligens inerentes à democracia.
pleitos. Normalmente esses vazamen- Já o chamado Trial baloon, isto é, o balão de ensaio, é comumente defini-
tos são realizados entre diferentes ins- do como aquela informação enviada para a mídia a fim observar a reação do
tituições do próprio Poder Público, que público. Ele pode ser usado por empresas que enviam comunicados à impren-
possuem o acesso às informações, e sa para julgar a reação de seus clientes ou por instituições políticas que vazam
de forma recorrente começam a disse- deliberadamente certas informações acerca de uma proposta de mudança po-
miná-las, a fim de exigir o atendimento lítica a ser considerada. Thomas Meyer e Lew Hinchman exploraram como a
de alguma demanda, como aumento política é feita através de balões de ensaio e como planejamentos políticos es-
de verbas orçamentárias, ampliação tão, muitas vezes, sujeitos à “colonização da mídia” no livro “Democracia Mi-
de autonomia, reconhecimento de diática”. Para os autores, mais do que a opinião do público, que muitas vezes
poderes e funções, entre outras. Não pouco entende sobre determinados temas da política, os balões de ensaio têm
há aqui uma chantagem propriamente como alvo principal a própria mídia, a fim de identificar se determinada medi-
dita, escancarada, mas, sim, um jogo da terá ou não o apoio desta. O balão de ensaio funcionaria então como uma
de pressões usando a assimetria do espécie de barganha entre as intenções programáticas do governo e a reação
controle de informações. da mídia; ou seja, os programas do governo acabariam sendo ajustados pau-
latinamente de acordo com a repercussão midiática.23
Essa intenção de buscar apoio na mídia para legitimar determinadas medi-
das políticas é encontrada também no que aqui chamamos de “vazamentos-
-apoio”. A prática consiste em vazar informações a fim de criar uma adesão po-
pular a ações de governo e atos administrativos que não encontram apoio den-
tro do próprio governo e são considerados descolados da legalidade, porém
ganham força para sua continuidade a partir de uma legitimidade construída
com os cidadãos. O apoio recorre à velha proposição maquiavelista de que o
vulgar sempre é tomado por aquilo que uma coisa parece ser e pelo que vem
dela, o que tornam os meios justificados pelos seus fins.24

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 27


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É por essas e outras estratégias, vez


que os interesses políticos podem ir
recriando as formas dos vazamentos,
que levaram o reconhecido Yves Ma-
mou, ex-editor do Le monde, a cunhar

A
a frase cortante como navalha: “O va- liberdade de imprensa é compreendida como um dos baluartes da
zamento de informações está para a democracia e se faz sempre presente no bojo das Cartas Magnas
democracia assim como a tortura para dos Estados fundados sob essa forma de governo, sejam liberais
a ditadura.” ou de alguma vertente socialista. A figura de uma sociedade sem
imprensa ou com uma imprensa completamente jugulada pelo po-
A responsabilidade e manipulação da der público nos arrasta a tempos dolorosos, em que o autoritarismo selava não
imprensa só bocas como também corpos. Foram as numerosas experiências de perío-
O papel da imprensa na configura- dos ditatoriais na história da sociedade moderna que solidificaram a compre-
ção do “sistema hidráulico” da demo- ensão de que a censura ou outra forma de cerceamento da liberdade de im-
cracia é essencial. É ela a destinatária prensa caracteriza verdadeira afronta aos direitos fundamentais, matéria ver-
oficial dos vazamentos, embora às ve- sada inclusive em tratados internacionais, entre eles a Declaração Universal de
zes estes também sejam divulgados Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica e a Declaração Interna-
a ativistas, que podem agir como um cional de Chapultepec.26 Ademais, muitas são as organizações internacionais
estímulo adicional para a cobertura da não governamentais que atuam positivamente a fim de manter e ampliar esse
história,25 amplificando sua ressonân- direito, a exemplo do Reports Without Borders, do Committee to Protect Jour-
cia junto à sociedade. Mesmo as pla- nalists e da Freedom House.
taformas de vazamentos criadas do A liberdade de imprensa é própria da atividade jornalística e dos veículos
ciberespaço contam com o apoio das de comunicação, sendo um desdobramento da liberdade de expressão e do
grandes mídias, como o WikiLeaks, acesso à informação. São direitos individuais de todo e qualquer cidadão e es-
que mantém relações com os jornais senciais para o controle do abuso de poder. Congloba, dessa forma, tanto a cir-
The Guardian, The New York Times, culação de valores subjetivos na expressão da opinião como de informações
Der Spiegel, Le Monde, entre outros. de categoria objetiva. A liberdade de imprensa não só protege aquilo que se
pretende ser e é publicado, como também a negativa, por parte dos meios de
comunicação, de realizar alguma publicação.
Compreender que a imprensa é “livre” é importante para entender o fenô-
meno do vazamento. Isso porque o vazamento só pode existir quando as in-
formações não são regidas pelo governo. Somente em países autocráticos,
onde a imprensa é um diário oficial é que existe uma blindagem eficiente para
o vazamento. Portanto, uma imprensa responsável deve fornecer aos indivídu-
os informações que possibilitem o exercício da cidadania e a participação nas
decisões políticas a serem tomadas com a sociedade. Assim, a razão de ser
da imprensa deve primar pela responsabilidade, que tem como premissa a ga-
rantia de veracidade da informação e preocupação permanente com o impac-
to que ela possa causar na sociedade. É função precípua do jornalismo a vigi-
lância constante e próxima das ações governamentais a fim de manter uma
transparência plausível para controlar os desvios de conduta dos governantes.

28 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A mídia vestida com sua armadura de defensora da demo-


cracia e do direito de expressão é magnífica; porém, despida,
mostra a sua intimidade de detentora do capital. A imprensa,
que aparece costumeiramente como um ente figurado, se ma-
terializa por meio de grupos econômicos, que possuem inte-
resses próprios. Na origem, o primeiro controle da informação
vem do proprietário da empresa jornalística, que acaba deter-
minando a abordagem, intensidade e espaço concedido à no-
tícia. É ele quem muitas vezes “cria a realidade” e determina a
“opinião pública”. É impossível separar desse processo fabril
da notícia, que vai da apuração até sua divulgação, o interesse
ideológico do “patrão” e da prioridade tácita do lucro empresarial.
Em seu artigo A fábrica de opinião pública, o sociólogo fran-
cês, Pierre Bourdieu traduz uma citação de Alexandre Mackinnon:

Quando se fala em opinião pública, há um duplo sentido en-


tre a definição legítima (a opinião de todos) e a opinião autori-
zada e eficiente que é obtida da opinião pública democratica-
mente definida: “[A opinião pública] é esse sentimento sobre
qualquer tema forjado pelas pessoas mais bem informadas,
mais inteligentes e mais autorizadas moralmente na comuni- Compreender
que a
dade. Essa opinião é gradualmente difundida e adotada por
todas as pessoas de alguma educação e adequadas a um Es-

imprensa
tado civilizado”.27

Essa difusão da “opinião esclarecida” é feita através dos


meios de comunicação. Os donos das mídias acabam por con-
centrar um “quarto poder”, que, com a formação da opinião pú-
é “livre” é
blica, possui alta permeabilidade na sociedade e passa a ditar
regras sociais. Via de regra a imprensa já atua com uma enor-
importante
me margem de subjetividade para definir o que é de interes-
se público através da edição de uma agenda setting, o que a para
torna controladora dos debates públicos e das informações a
serem reveladas. A complexidade desse empoderamento da entender o
mídia na democracia cria proporções ainda maiores quando
a mesma mantém relações promíscuas com vazadores, essa fenômeno do
combinação é nefária, pois amplia o poder de manipulação das
vozes ocultas sobre a sociedade. vazamento

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 29


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Essa situação é agravada quando os veículos de comunicação se concen-


tram nas mãos de oligopólios, um fenômeno que parece ser de escala mun-
dial. Segundo o escritor francês Paul Virilio, os veículos de comunicação estão
se concentrando, no mundo inteiro, nas mãos de grandes grupos econômi-
cos, que se ocultam em um cínico discurso pela liberdade de imprensa para
manter a prerrogativa de editar suas próprias leis e de, concomitantemente,
não se submeter a qualquer outra.28 Apesar do importante debate sobre a re- A imprensa vende notícia, e é cla-
gulamentação e a redemocratização das mídias, no que tange à matéria do va- ro que sua intenção é fazer da comu-
zamento, o mais grave nessa cartelização da mídia não é necessariamente a nicação um negócio lucrativo. O furo
concentração de empresas, mas o fato delas estarem ideologicamente alinha- jornalístico dos vazamentos passa a
das, de não haver discordância entre os patrões que determinam, em última ser uma atração fantástica para esse
instância, a linha editorial. mercado. O noticiário, por vezes, aca-
O fato tem essencial valor no que tange à seletividade das informações a ba condicionando o leitor a demandar
serem vazadas e expostas ao público, pois é a mídia quem detém o arbítrio da o vazamento, que se torna sinônimo de
publicação. Se os próprios vazadores realizam a seletividade das informações informação cobiçada, quentíssima, é
de acordo com seus interesses individuais, como não esperar que a imprensa o furo de primeira mão. Torna-se uma
o faça? E se os vazamentos são instrumentos políticos é natural que uma im- dependência perversa e doentia, como
prensa ideologicamente aglutinada utilize-os em prol de uma ideologia comum. uma espécie de síndrome de Estocol-
O perigo é ainda maior nos casos em que os editoriais não assumem sua po- mo, na qual a imprensa, que depende
sição ideológica e mantém um falso ar de imparcialidade, como ocorre com da fidelização do leitor, o vicia, para o
a imprensa brasileira, diferente das premissas do jornalismo norte-americano. seu prazer, com cada vez mais doses
de vazamentos. A mídia pode, inclu-
sive, ao receber vastas informações,
administrá-las como conta-gotas a fim
de prolongar o máximo possível a pre-
sença do vazamento em suas páginas.

30 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O vazamento, quando assume característi-


cas de campanha, condicionamento ou méto-
do viciado, acaba por perverter a mídia. Torna
leniente a apuração da veracidade da notícia, na
medida em que se pressupõe que a fonte do va-
zamento ou sua origem são confiáveis; premis-
sa, aliás, para a divulgação honesta da informa-
ção vazada. Uma boa parte dos vazamentos já
são autochecáveis, pois surgem de documen-
tos timbrados, datados e com textos perfeita-

H
á que se exigir da mídia certa responsabilidade pelas notí-
mente conectados à realidade dos fatos. Mas
cias veiculadas. Primeiro uma responsabilidade referente
há também uma quantidade expressiva de in-
à autenticidade das informações divulgadas, pois não é
formações vazadas que não são passíveis de
saudável à democracia que sujeitos e mesmo instituições
serem apuradas. Normalmente elas são publi-
sejam reféns de uma “imprensa marrom”. Reverter o dano
cadas no condicional, que é uma forma do jor-
de informações que são “jogadas ao vento” pela mídia é uma tare-
nal se proteger da publicação de inverdades.
fa demasiado complicada, vez que nem todos aqueles que tiveram
Os dois tipos de vazamentos, o da informa-
acesso a falsas, distorcidas e descontextualizadas informações terão
ção verídica e o daquela benne trovato, inocu-
acesso ou atribuirão a mesma importância às retratações da mídia, a
lam o jornalista com o vírus da preguiça. É bem
observação ao direito de resposta e a possíveis sentenças indeniza-
verdade que existem as suítes das matérias, que
tórias condenando os veículos de comunicação por espalhar inver-
impulsionam o profissional à repercussão das
dades. Há também de se tomar certo cuidado com o Dossiê, aquele
notícias. Mas digamos que, numa perspectiva
que tradicionalmente surgia em um envelope pardo e que ninguém
utilitarista do vazamento, o repórter ceda lugar
sabia de onde vinha. O risco do Dossiê está no fato de que o mes-
ao editor, que faria o recorte das edições e o co-
mo pode conter informações verdadeiras, porém carrega consigo o
mentário que acompanha as “informações sem
ovo da serpente, uma vez que algumas informações não podem ser
dono”. Aliás, quanto mais notícias “caírem do
apuradas e, portanto, podem ser apócrifas. Se em uma democracia a
céu”, menos profissionais serão necessários na
premissa é de que a imprensa deve ser livre, devemos lembrar que a
imprensa convencional. Na internet, o vazamen-
ideia de liberdade enseja o zelo e o cuidado nas escolhas, e, portan-
to já faz parte da lógica do conteúdo da mídia
to, é necessária a imputação de responsabilidade – o que esclareço,
eletrônica. Ele não altera o contingente de ca-
desde logo, não significa penalização – e a criação de instrumentos
pital humano e nem desestimula a apuração, já
de controle da malversação da mídia.
que as redes sociais primam pela velocidade da
divulgação e não pelo rigor na confirmação da
veracidade. É nesse ambiente cibernético que
ele realiza todo o seu potencial, mergulhando
no efeito de viralização, que hoje cria uma se-
gunda camada no conceito de realidade pura: a
“realidade viral”, que é aquela que todos sabem.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 31


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A responsabilidade da mídia é uma


questão central, tanto no que diz res-
peito com sua relação com a demo-
cracia quanto à delicada atenção que
deve ser atribuída à divulgação de no-
tícias com grande impacto junto à so-
ciedade. É compreensível que a mídia
A proteção do vazador
tenha certos acordos tácitos de não
Vazamentos podem chegar aos jornalistas através de quatro formas: (i) por
publicação em relação a determinados
uma denúncia aberta, na qual a identidade do informador é publicamente co-
assuntos que mobilizam sentimentos
nhecida; (ii) por meio de uma divulgação não autorizada da identidade de fon-
confusos e alterem o psicossocial, a
tes, isto é, acobertada pelo sigilo de fontes; (iii) por uso do off the record, um
exemplo de casos de suicídios em lo-
acordo entre cavalheiros no qual o jornalista e o informante selam um pacto
cais recorrentes (metrô, vão da ponte
de que a informação não será divulgada, servindo esta para situar o jornalista
Rio-Niterói), de forma a não divulgar in-
no contexto de determinados acontecimentos; (iv) por meio de, já citado, le-
formação que estimule a atitude. Os
gendário dossiê ou da denúncia anônima, na qual o disseminador não sabe a
mesmos acordos tácitos envolveriam
origem do objeto da divulgação. Entre essas formas, o sigilo de fonte ascende
assuntos religiosos (exorcismos) ou fe-
ao posto principal na proteção do vazador.
nômenos inexplicáveis (objetos voado-
O sigilo de fontes das atividades relacionadas à circulação de informações
res não identificados). Você não pode
é garantido na ordem constitucional brasileira como um direito fundamental.29
dizer que eles não aconteçam. Mas
acompanhando grande parte das constituições europeias, como a de Portu-
você não vai vê-los publicados nos jor-
gal,30 Espanha31 e Alemanha,32 assim como tratados internacionais já citados
nais. Algum cuidado, mesmo que não
aqui. As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal endossam a tese de
similar, deveria ocorrer nos casos de
que nenhum jornalista poderá ser impelido a revelar suas fontes, bem como
vazamentos, sendo igualmente impor-
não poderá, exercendo sua prerrogativa profissional, sofrer qualquer sanção,
tante se ater ao nível de sensibilidade
direta ou indireta, fundamentada em seu silêncio ou por sua legítima recusa
da informação.
em responder às inquirições que lhe sejam eventualmente dirigidas com o ob-
jetivo de romper o sigilo da fonte. O mecanismo democrático, de importância
vital ao jornalismo investigativo, é frequentemente testado nos tribunais, e o
tema é usualmente abordado por artigos de juristas e de profissionais na área
de comunicação, inclusive objeto de inúmeras citações históricas em defesa
da liberdade de imprensa, de modo que não nos cabe discorrer sobre aquilo
que já foi pensado e repensado por tantos intelectuais, portanto nos atenta-
remos a algumas das enfermidades mais reconhecidas da proteção a fonte.

32 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A questão central da forma como


o vazamento é recepcionado pelo jor-
nalista aparece quando o vazamento
e o off (sigilo da fonte e off the record)
tornam-se uma coisa só. A informação
é entregue por um emissário ao dis-
seminador, que sabe as razões do va-
zamento e as protege com o sigilo da
fonte. Ao conhecer as razões incon-
fessáveis do vazador, o disseminador
o protege com o escudo jurídico do
sigilo. Portanto, mesmo quando o va-
zamento é criminoso do ponto de vis-
ta moral, político e até normativo, ele
acaba não sendo responsabilizado, fi-
cando protegido de represálias. É um
mundo de sombras que contrasta com
a exigência da transparência, concei-

A
problemática do sigilo de fontes amplia a ausência de verificabili-
to basilar da democracia e, paradoxal-
dade e refutabilidade das notícias veiculadas. O jornalismo norte-
mente, fundamentação dos próprios
-americano tem se preocupado com a possível perda de credibili-
vazamentos.
dade dos repórteres que não conseguem dar informações concre-
Nesse sentido, os vazamentos,
tas acerca de suas fontes, reconhecendo a importância de manter
quando se utilizam do direito de sigi-
a veracidade de suas publicações e de situar o leitor das motivações da fonte,
lo da fonte, se apresentam como uma
isto é, do contexto em que surgem as informações. Norman E. Isaacs, editor
prática covarde, que não suporta a luz
aposentado e presidente do National News Council até 1982, demonstrou sua
do dia e, quando não é apócrifo, cria
preocupação com a banalização do uso do sigilo, evidenciando que repórte-
uma real cumplicidade entre o vaza-
res chamam as pessoas e dizem logo de início que, se não quiserem ser cita-
dor e o receptador/disseminador das
das, tudo bem. William J. Small, antigo presidente da UPI e da NBC News, afir-
informações. É este último, que co-
mou que recorrentemente jornalistas o telefonam com uma proposta direta de
nhecendo o vazador, pode identificar
entrevista off the Record, enquanto ele só se pronuncia publicamente. Nancy
suas intenções verdadeiras. O motivo
Woodhull, ex-editora administrativa do Democrat and Chronicle aponta que os
do vazamento pode ser outro comple-
jornalistas presumem que as fontes não querem ser citadas. Robert W. Gree-
tamente diferente do que transparece
ne, do Newsday, chama atenção para um problema de maior gravidade: “Já vi
na informação vazada. Como já explica-
repórteres que passam adiante suas próprias ideias dizendo que são de fontes
mos no que tange à legitimidade dos
anônimas”. Nas palavras de Donald Graham, diretor responsável do Washington
vazamentos, o interesse público não se
Post, “os leitores devem saber tudo o que se puder dizer a eles a respeito de
confunde com o interesse do vazador.
onde surgem as informações, para que possam entender a informação [...] Se
não puder dizer ao leitor exatamente quem disse o que, o repórter deve contar
o máximo a respeito da pessoa que disse, de maneira que os leitores possam
entender, se possível, quais eram os motivos da fonte”.33

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 33


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

S
e o objetivo do vazamento é trazer a verdade à tona, há uma verdade
antecedente, cujas motivações podem ser torpes, protegida pelo si-
gilo da fonte. A premissa é que o bem público ocasionado pelo vaza-
mento deva ter um retorno social que compense o encobrimento de
interesses escusos. Nessa hora, o receptor é o grande juiz. Ele sabe,
ao menos em parte, aquilo que o leitor não saberá jamais: o enredo oculto, as
motivações inconfessáveis e as trocas que a publicação por si só não descortina. Nos Estados Unidos, o emblemá-
A gravidade do caso é aprofundada quando levamos em consideração que tico caso judicial envolvendo a jorna-
informações que constituem vazamentos são obtidas por meio da quebra de lista Judith Miller fomentou essa dis-
sigilo funcional daqueles que trabalham na própria Administração Pública ou cussão. Em seu julgamento, a Corte
por ações de espionagem ou de hackers que invadem sistemas de informação Constitucional norte-americana reco-
secretos, configurando uma conduta criminosa. É importante frisar que não es- nheceu que o sigilo de fontes não era
tamos buscando aqui satanizar o vazamento, muito menos tomar algum partido matéria constitucional, e Judith foi con-
na discussão criminalizadora dele, mas, sim, expor os conflitos e a relação dia- denada pelos tribunais comuns por ne-
lética dos vazamentos para com a norma, a moral e a democracia. Superando gar romper o sigilo de fontes e revelar
o dilema moral do próprio vazador, o que já foi aventado, a questão da crimina- a identidade do autor de crime federal
lidade gera um dilema demasiado pesado para os jornalistas acerca do sigilo de divulgação da identidade secreta de
da fonte: nesses casos é dever ou não manter o sigilo da fonte? funcionários da inteligência, de agen-
tes e de informantes em geral, crime
previsto na lei Intelligence Identities
Protection Act. O caso provocou uma
reação negativa por parte da imprensa
em todo o mundo. No Brasil, além da
manifestação dos principais veículos
impressos, a condenação da jornalis-
ta recebeu duras críticas de entidades
como a Associação Brasileira de Im-
prensa (ABI), a Associação Brasileira
de Jornalismo Investigativo (ABRAJI)
e o Sindicato dos Jornalistas Profissio-
nais no Estado de São Paulo.

34 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Há, no entanto, quem discorde do


frenesi causado pela imprensa em de-
fesa de Miller. No Brasil, o jornalista
Argemiro Ferreira acompanhou a de-
cisão da Suprema Corte norte-ameri-
cana, afirmando que, diante da exis- Entretanto os operadores do Direito, majoritariamente, endossam a tese de
tência de várias categorias de fontes uma proteção quase irrestrita da liberdade de imprensa e das fontes off, em
anônimas, aquelas constituídas por defesa da democracia, arrazoando o sigilo da fonte de informação jornalística
pessoas que praticam ou praticaram como limite à prova no processo penal. Seguiremos essa linha, no sentido de
crimes não devem receber a proteção que o sigilo de fontes é, ainda que conflituoso, um instituto de grande valor à
do princípio do sigilo da fonte, isso por- democracia, pois é uma alternativa de denúncia que protege o vazador de even-
que o bom jornalismo deveria repelir o tuais punições que o coíbem de expor informações importantes à sociedade,
privilégio do sigilo quando este é usa- que revelam condutas muito mais deletérias à democracia do que a quebra de
do para servir ao Poder. Para Ferreira, um sigilo funcional. Sem a proteção do sigilo de fontes, estaríamos criando uma
revelar a verdade não deve correspon- verdadeira barreira ao jornalismo investigativo. Dessa forma, os jornalistas não
der a proteger criminosos, sob pena podem ser responsabilizados pela quebra do sigilo funcional e tampouco po-
de engendrar uma categoria de cúm- dem ser obrigados a revelar sua fonte; porém, é claro que o Ministério Público
plices profissionais.34 e a polícia judiciária tanto podem como têm o dever funcional de investigar os
Em exposição recente, no II Semi- responsáveis pelos vazamentos. Não obstante, o que ocorre quando as fontes
nário de Direito Penal, Criminologia são as mesmas instituições que deveriam perseguir sua responsabilização? É
e Processo Penal em Homenagem a de se compreender que os emissores, guardiões e responsáveis pelas infor-
Winfried Hassemer, o Ministro do Su- mações sejam o primeiro alvo de desconfiança, vez que tais informações sigi-
premo Tribunal de Justiça, Sebastião losas tramitam sob rígidas regras de acesso e fluxo de dados, a fim de que se
Alves dos Reis Júnior, comparou, com tornem conhecidas apenas quando declarado for seu domínio público.
todas as vênias, ou melhor, como uma
metáfora, as publicações de conteú- Escapamentos através do ciberespaço

dos protegidos pelo segredo de justi- Em um mundo globalizado, o qual sofreu uma mudança brusca na comuni-
ça ou outras formas de sigilo funcio- cação com o advento da internet e a democratização, os vazamentos extrapo-
nal ao crime de receptação qualificada, lam as fronteiras nacionais. O fenômeno passa a expor as táticas ardilosas de
na medida em que a imprensa vende, espionagem e de guerra dos Estados e geram embaraços diplomáticos profun-
em proveito próprio, ainda que alegue dos. O público deixa de ser somente aquela sociedade civil autônoma circuns-
o interesse público, no exercício de crita à esfera nacional e torna-se toda a comunidade internacional. Exemplos
sua atividade, produto que sabe ser claros são aqueles vazamentos proporcionados pela plataforma WikiLeaks, que
decorrente de crime. funcionam como um portal de vazamento global alimentado por whistleblower
de todo o mundo e bem relacionado com importantes mídias nos mais diver-
sos países. Ou o caso relativamente recente do vazamento de Edward Snow-
den, que revelou aos jornais The Guardian e The Washington Post os detalhes
da Vigilância Global de comunicações e tráfego de informações mantidas por
diversos programas dos Estados Unidos.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 35


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O conteúdo dessas informações


teve um enorme impacto nas relações
norte-americanas com outros países e
reafirmaram uma ideia negativa quan-
to aos EUA, na medida em que não só
Nesse contexto, é natural estarmos mais vulneráveis. Os dados de cidadãos
espionavam atividades dos países alia-
comuns são facilmente acessados por aqueles com um bom conhecimento
dos, como também criaram uma fon-
de informática e teoria da informação, não necessariamente agentes de inteli-
te de acesso, por meio de bases de
gência ou hackers de excelência. Os governos, a fim de criar uma blindagem
dados na internet, para informações
maior, fazem investimentos pesados na área de Segurança da Informação; no
privadas de qualquer civil que navega
entanto, o processo é irreversível, o volume dos vazamentos é hoje exponen-
na rede sem maiores cuidados. Reve-
cializado, justamente pela quantidade de informação produzida e armazenada,
lações como essas parecem não ter
assim como pela facilidade de sua transmissão. E, apesar desses investimen-
um intuito somente de oxigenar a de-
tos, ainda podemos dizer que o ser humano é o elo mais fraco e a camada de
mocracia de uma nação, mas, sim, de
segurança mais vulnerável; portanto, é inevitável a dissidência de certos fun-
criar mobilizações em escala global,
cionários que trabalham com segredos de alta relevância. O uso das tecnolo-
seja por alguma ideologia ou por de-
gias certamente facilita que esses movimentem essas informações.
terminado interesse duvidoso.
Toda essa modernização alterou algo na relação que temos com as informa-
O avanço na tecnologia ocorre de
ções e na forma de comunicarmos. O sociólogo chileno Manuel Castells tem
forma avassaladora: se antes as pes-
estudado os comportamentos sociais a partir do que ele chama de “comunica-
soas tinham acesso a computadores
ção em rede”, afirmando que a mudança na forma de comunicação reformou
dentro da sua casa, hoje eles são por-
toda a estrutura da sociedade, e que hoje vivemos em uma sociedade global
táteis, e parecem ser até mesmo uma
em rede. Essa nova forma de compreender a trama social aponta para uma re-
extensão do corpo humano. Pesquisas
lação dual: de um lado a sociedade civil passa a se mobilizar de forma orgâni-
apontam que em cinco anos mais de
ca e a ampliar a circulação de ideias autorais e de informações variadas; em
65% da população do planeta conta-
contrapartida, a vigilância eletrônica e o controle social mediante a tecnologia
rão com smartphones.35 Aplicativos
estão aumentando as capacidades do Estado de utilizar a fundo a tecnologia
são criados e depositamos neles nos-
para contrariar as mobilizações democráticas e a demanda de transparência.
sos dados, inclusive bancários, repas-
samos imagens e filmes através de re-
des sociais, deixamos nossas pegadas
registradas em navegadores, conta-
mos nossos interesses por meio dos
sites que acessamos, somos rastre-
ados por GPS, vinculamos nossos e-
-mails em softwares, guardamos nos-
sa vida na “nuvem”. A transmissão de
dados e informações acontece ininter-
ruptamente através de uma rede que
é como um “organismo sem pele”.36

36 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

N A Lava Jato
o que tange aos vazamentos, as redes sociais atu-
am como um catalizador e viralizam as informações
disseminadas, o que pode ser extremamente pe-
rigoso, principalmente no que tange à divulgação
de informações não autênticas. É difícil contro-
é o pretexto
lar o que se cai na rede social, compartilhamentos são feitos
em progressões geométricas e atingem um público cada vez
da maior
mais variado, entre diferentes círculos de indivíduos. O fenô-
meno já foi, inclusive, percebido pelas mídias convencionais, mobilização
que possuem diferentes formas de penetração nessas redes
para repassar informações. A rede social aparenta ser gerida de vazamentos
por um domínio público e espontâneo, no entanto também é
passível de manipulações. na história do
À guisa de posfácio: o “Vazalão”
A famosa, centro de todas as atenções midiáticas, Opera-
país
ção Lava Jato faz coçar as urticárias da maior parte dos ana-
listas independentes que observam a política nacional. A Lava
Jato é, possivelmente, o pretexto da maior mobilização de va-
zamentos na história do país, talvez por inaugurar o vasto uso
subsequente das delações premiadas após sua regulamenta-
ção normativa. Iniciou-se a “delação das delações”. Muito há
que se discutir sobre o instituto da “colaboração” premiada,
porém esse não é o foco desse artigo. O interessante para
as questões em pauta está nas articulações dos vazamentos
por meio da relação entre o Ministério Público, as autorida-
des policiais e a mídia. Essas relações parecem ter evidencia-
do o uso recorrente de três formas do que aqui chamamos
de vazamentos estratégicos, isto é, com interesses políticos
bem definidos, de modo que o case brasileiro é um interes-
sante caso de estudo para a observação dos efeitos nocivos
dos vazamentos.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 37


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Os vazamentos seletivos têm ga-


nhado um lugar especial nesse con-
texto. Não é nenhuma novidade que a
mídia tradicional brasileira é um forte
oligopólio de ideologia coesa, e que,

O
s vazamentos-chantagens também tiveram seu lugar. O Ministério
atualmente, se situa como oposição a
Público e as autoridades policiais têm pressionado o governo a fim
políticas do governo petista. Nesse ce-
de garantir o atendimento de certas demandas, como foi o caso da
nário conflituoso, em meio a uma gran-
pressão dos delegados para que a presidente Dilma Rousseff pu-
de crise política e econômica agrava-
blicasse a MP 657/2014, reconhecendo a Polícia Federal como inte-
da pela investigação que envolve no-
grante da estrutura básica do Ministério da Justiça – a medida foi apelidada de
mes de figuras políticas notórias e de
“MP do Vazamento”.37 A terceira forma estratégica de apresentação do vaza-
empresas públicas e privadas, a mí-
mento alastrada pela Operação Lava Jato foi a do “vazamento-apoio”. O Minis-
dia tem se aproveitado dos vazamen-
tério Público passou a vazar as próprias informações a fim de ganhar respaldo
tos para articular seus interesses po-
na opinião popular para o prosseguimento das investigações. Somente assim
líticos e desestabilizar o poder, agindo
um inquérito tão complexo, com tantos personagens poderosos, poderia não
muitas vezes como um “partido da mí-
ter seu curso obstaculizado. É de fato louvável que a investigação esteja desa-
dia”. Entre esses vazamentos existe,
fiando uma cultura em que há uma crença difundida de que a lei não se aplica
aparentemente, uma seleção, no sen-
aos poderosos, bem como fazendo um combate claro contra a corrupção em
tido de que o vazador disponibiliza em
nosso país, mas cabe pelo menos um questionamento sobre se isso deve ser
maior escala delações danosas à ima-
feito com a ruptura de outras leis justamente por um órgão que deveria exer-
gem do governo e minimiza aquelas
cer uma função neutral de controle e fiscalização.
informações conectadas a nomes da
Além de defender a delação premiada e seus vazamentos, a mídia parece
oposição, um tanto mais alinhada aos
ainda confirmar uma ideia de que as provas inquiridas pelas autoridades poli-
seus interesses. É bem verdade, con-
ciais são suficientes para uma condenação popular – antevendo o próprio jul-
tudo, que, se a mídia pode determinar
gamento e o devido processo legal – e, dessa forma, atua diretamente com a
o que e em qual velocidade exercerá
espetacularização dos processos criminais. O espetáculo é uma clara demons-
a publicação, ela também é refém do
tração do populismo penal e traz consequências severas aos direitos e garan-
vazador, que determina o que e qual
tias constitucionais previstos na ordem normativa pátria. Tal espetacularização
o ritmo do vazamento. Quem pode-
nos recorda as origens mais remotas do direito penal, no qual a pena e o re-
rá afirmar qual dos dois é responsá-
baixamento social, associados ao desejo de vingança, eram executados em
vel pelo quê? É um jogo de espelhos.
espetáculos teatrais nas praças públicas, perante aos olhos de todos. O fato é
ainda mais grave quando o espetáculo é dirigido não somente à execução cri-
minal, mas também à investigação e à ação penal, isso porque fomenta a for-
mação de uma opinião popular, por meio de uma linguagem sensacionalista e
de apelo emocional, já condenatória, que neutraliza o princípio da inocência e
influencia todos os procedimentos a serem tomados e, pior, a própria senten-
ça judicial. É a expressão factual do clássico verbete “trial by media”38 ou da
“sentença midiática transitada em julgado”.39

38 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A execração midiática gera consequências consideravelmente drásticas ain-


da que haja uma decisão absolutória, pois tem o condão de manchar as ima-
gens de forma permanente. Nas palavras de Aury Lopes Jr., “É muito mais fá-
cil abrir uma ferida do que fechá-la, sem deixar marcas ou cicatrizes”.40 Nesse
contexto, os vazamentos ganham especial destaque, pois dão ao cidadão a
sensação de estar vigiando aquilo que lhe é indevidamente escondido, espe-
lhando a frase de Armando Nogueira “O jornalista é o único ser capaz de olhar
com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a so-
ciedade inteira”.41
Porém, o espetáculo serve contra a sociedade, pois desperta seu arro-
bo vingativo e implode todas aquelas garantias que defendem o cidadão da
“vara” do Estado. O jornalista leva o conteúdo das delações ao público, antes
dos próprios advogados dos investigados terem acesso ao mesmo, inibindo
qualquer estratégia de defesa a ser apresentada, transformando a exposição
em um verdadeiro linchamento midiático. A prisão, término do processo pe-
nal que culmina na condenação, torna-se o início deste, com o uso abusivo da
prisão preventiva. Esse é o caso, por exemplo, da prisão preventiva de Carlos
Habib Chater, dono do Posto da Torre, que durou mais de 500 dias, ensejando
fortes críticas a respeito da razoabilidade da medida.42 As delações passam a
estampar manchetes, e as chamadas dos jornais, a despeito de que o artigo 5°
da Lei 12.850/2013 garante ao “colaborador” ter nome, qualificação, imagem e
demais informações pessoais preservados, bem como faz menção expressa à
proteção contra o abuso dos meios de comunicação.43

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 39


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É claro que a busca de equilíbrio


do jogo só pode ocorrer se os suspei-
tos estiverem separados e não possu-
Em um pacto velado entre os vazadores e a mídia, trocam-se os direitos e írem qualquer comunicação; uma vez
as garantias fundamentais por prestígios políticos, visibilidade institucional e fragilizada essa premissa, o jogo des-
pessoal, venda de notícias e poder de influência. O processo penal acaba por morona. O mesmo ocorre na delação.
se confundir com política, como em regimes totalitários. É evidente que aque- Delatar é sempre a escolha menos ar-
les preocupados com o compromisso das garantias constitucionais no proces- riscada para aqueles que desconfiam
so criminal não apoiam as condutas criminosas, muito menos desejam ocultar de sua condenação, no entanto as in-
os casos de corrupção no país, na medida em que o desvio de dinheiro públi- formações reveladas passam a ser
co é corrosivo para à sociedade. Porém, é necessário reprimir o crédito daque- pautadas por aquilo que já se tomou
las ações extremistas, ainda que por fins justificáveis, caso contrário os meios ciência, dessa forma o instituto está
serão considerados honestos. viciado. Os vazamentos não facilitam
Por outro prisma, o vazamento das delações prejudica a aplicação e a vali- em nada a busca pela reconstrução da
dez do próprio instrumento, isso porque as delações devem trazer fatos novos verdade no processo penal.
à investigação, porém sob a condição da incomunicabilidade. Pensemos aqui, Restam as perguntas: tantos vaza-
como forma ilustrativa, no Dilema do Prisioneiro, clássico problema da Teoria mentos auxiliam na sedimentação de
dos Jogos abordado pela ciência jurídica:44 Dois suspeitos, A e B, são detidos uma democracia? Uma democracia
pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para condená-los, mas, separan- que vive em situação torrente de va-
do os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros, zamentos não deveria pensar em re-
confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silên- formar suas estruturas? Numa visão
cio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos positiva registra-se a crença de que
de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a poderemos drenar a inundação cau-
seis meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva sada por um alto nível de intensidade
cinco anos de cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que deci- dos nossos desarranjos hidráulicos e,
são o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro. O silêncio de certa forma, aproveitar essa limpe-
só será a melhor solução para aqueles que possuem algum certo nível de con- za; afinal, nossa democracia é jovem e
fiança e cooperação com o parceiro, porém é a traição a solução dominante tem forças para se reinventar.
para reduzir os danos sem depender da escolha do outro.
A autora é Mestranda em Direito Cons-
titucional na Universidade Federal Flu-
minense, integrante do Laboratório de
Estudos Interdisciplinares em Direito
Constitucional Latino-Americano e ava-
liadora da Revista de Direito dos Monito-
res da Universidade Federal Fluminense
acbonan@gmail.com

40 desrazão de Estado
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

notas de rodapé

1. Utilizaremos o delineamento de Noberto Bobbio para denado a uma longa pena pelo tribunal militar norte-ame- Londres, Heinemann, 1971. William Alexander Mackin-
compreender tal conceito: “Acredita-se que o conceito ricano. O vazamento contou com o apoio de 3 poderosas non (1789-1870) teve uma longa carreira como membro
de democracia seja um conceito elástico, que se pode mídias: The New York Times, The Guardian e Der Spiegel. do Parlamento Britânico. In BOURDIEU, Pierre. A fábrica de
puxar de um lado e do outro à vontade. Desde que mun- O acesso aos documentos e outras informações sobre o opinião pública. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível
do é mundo, democracia significa governo de todos ou tema podem ser feitos pelo URL https://wikileaks.org/afg/ em http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1074
de muitos ou da maioria, contra o governo de um só ou
de poucos ou de uma minoria. [...] Não, o conceito de de- 13. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. 28. In Weissheimer, Marco Aurélio. Estamos construindo
mocracia não é um conceito elástico. Na sua contraposi- São Paulo: Editora Perspectiva, 1968 um admirável mundo novo? Anais do 3º Seminário de Es-
ção à autocracia é um conceito de contornos precisos. E tudos em Análise do Discurso.
eu o defino da seguinte forma: “democrático” é um siste- 14. Assim são designadas leis que protegem as informa-
ma de poder no qual as decisões coletivas, isto é, as de- ções confidenciais no Reino Unido, em Hong Kong, na 29. BRASÍLIA, Constituição da República Federativa do
cisões que interessam toda coletividade (grande ou pe- Índia, na Irlanda, na Malásia e, antigamente, no Canadá Brasil, art. 5º, XIV, CRFB/88.
quena que seja) são tomadas por todos os membros que e na Nova Zelândia.
a compõem” In BOBBIO, Norberto. Qual socialismo?: De- 30. Constituição da República Portuguesa, arts. 37.1 e 38.2 b.
bate sobre uma alternativa. Rio de Janeiro: Editora Paz e 15. Um exemplo dessas práticas foi denunciada por
Terra, 1983. pp. 79-80. Edward Snowden, que afirmou que o governo britânico 31. Constituição Espanhola, art. 20, 1, d.
estaria vazando informações danosas contra si mesmo
2. SIMMEL, G. The Sociology of Secret and of Secret So- a fim de criar uma imagem negativa contra os “leakers”, 32. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha,
cieties. The American Journal of Sociology, v. 9, n. 4, pp. acusados de terrorismo. A matéria foi publicada no The art. 5, 1, 1ª fase, 2ª parte.
441-498, 1906. Guardian, em agosto de 2013. Disponível em: http://www.
theguardian.com/commentisfree/2013/aug/23/uk-govern- 33. GOODWIN, H. Eugene. Procura-se: ética no jornalis-
3. Idem. ment-independent-military-base mo. Rio de Janeiro, Nórdica, 1993.

4. PINHEIRO, Ruan Sales de Paula. SEGREDO, TRANSPA- 16. CEPIK, Marco. Espionagem e Democracia. Rio de Ja- 34. FERREIRA, Argemiro. “Porque dona Judith Miller não
RÊNCIA E AS PERSPECTIVAS PARA A POLÍTICA EXTER- neiro: Editora FGV, 2003. é vítima nem heroína”. Disponível em: www.tribuna.inf.
NA DEMOCRÁTICA NO BRASIL. Dissertação de mestra- br/anteriores/2005/junho/29/coluna.asp?coluna=argemiro
do apresentada ao Conselho do Programa de Pós Gradu- 17. PAIT, Heloísa; PINHEIRO, Ruan Sales de Paiva. Vaza-
ação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ci- mento de informações: um ritual democrático na era da 35. Disponível em http://www.telesintese.com.br/em-2020-
ências da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Dis- comunicação em rede. Disponível em http://www.kas.de/ -60-da-populacao-mundial-tera-um-celular/
ponível em http://repositorio.unesp.br/bitstream/hand- wf/doc/16470-1442-5-30.pdf
le/11449/123178/000822224.pdf?sequence=1 36. ASSANGE, Julian; APPELBAUM, Jacob; MÜLLER-MA-
18. CEPPOS, Jerry, e HANSON, Kirk. The Ethics of Leaks. GUHN, Andy; ZIMMERMANN, Jérémie. Cypherpunks: li-
5. CANETTI, Elias. Massa e Poder. 2. ed. São Paulo: Com- Disponível em http://www.scu.edu/ethics/publications/ berdade e o futuro da internet. Trad. YAMAGAMI, Cristi-
panhia das Letras, 2005. p. 290-296. ethicalperspectives/leaks.html na. São Paulo. Boitempo, 2013.

6. Nesse período vigorava os arcana imperii, os quais po- 19. Flynn, K. 2011. The practice and politics of leaking. In 37. MELLO, Carlos Alberto de. O Vazamento Chantagem.
deriam ser justificado pelo entendimento que “o poder Social Alternatives, Volume 30, Number 1, 2011, pp. 24-28. Observatório da Imprensa, Jornal debates > Eleições 2014,
do príncipe é tão mais eficaz, e, portanto mais condizen- Disponível em http://www.bmartin.cc/pubs/11sa/Flynn.html ed. nº 867. Disponível em http://observatoriodaimpren-
te com seu objetivo, quanto mais oculto está dos olhares sa.com.br/jornal-de-debates/o_vazamento_chantagem/
indiscretos do vulgo, quanto mais é, à semelhança do de 20. Flynn, K. 2006. ‘Covert Disclosures: Unauthorized Le-
Deus, invisível” In BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, aking, Public Officials and the Public Sphere.’ Journalism 38. Conforme definição do Black’s Law Dictionary: “É o
Sociedade: para uma Teoria Geral da Política. 14. ed. São Studies 7:256-273. processo pelo qual o noticiário da imprensa sobre as in-
Paulo: Paz e Terra S/A, 2007. vestigações em torno de uma pessoa que vai ser subme-
21. ASSANGE, Julian; APPELBAUM, Jacob; MÜLLER-MA- tida a julgamento acaba determinando a culpabilidade ou
7. O segredo atua como “paradoxo fundamental da políti- GUHN, Andy, ZIMMERMANN, Jérémie. Cypherpunks: li- a inocência da pessoa antes de ela ser julgada formalmen-
ca democrática” impossível de ser dissolvido. In FRIEDRI- berdade e o futuro da internet. Trad. YAMAGAMI, Cristi- te”. Disponível em http://thelawdictionary.org/
CH, Carl J. The Pathology of Politics: Violence, Betrayal, na. São Paulo: Boitempo, 2013.
Corruption, Secrecy and Propaganda. New York: Harper 39. VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia.
& Row, 1972. pp. 175-233. 22. Disponível em http://elpais.com/diario/2011/09/04/in- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 168
ternacional/1315087207_850215.html
8. Dados disponibilizados pela Reportagem Watergate 40. LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Proces-
– a queda do estadista, por Raphaella de Campos Mello. 23. HINCHMAN, Lew, MEYER, Thomas. Democracia Mi- so Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Constitu-
URL: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/ diática – Como a mídia coloniza a política. Edições Loyo- cional. 4ª ed. rev, atual. e amp. Rio de Janeiro: Lumen
watergate-__a_queda_do_estadista.html la, São Paulo, Brasil, 2008. Juris, 2006, p. 7.

9. Os fatos aqui narrados são minuciosamente tratados 24. MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. Edição eletrônica: 41. “Playboy entrevista Armando Nogueira” In: Playboy,
no livro: WOODWARD, Bob, e BERNSTEIN, Carl. Todos Ed. Ridendo Castigat Mores. Disponível em http://www. fevereiro, 1988.
os homens do presidente. Tradução de Denise Bottmann. ebooksbrasil.org/adobeebook/principe.pdf
Ed. Três Estrelas, 2014. 42. A exemplo das críticas tecidas pelo Jurista Lênio Stre-
25. MARTIN, B. 2009. ‘Corruption, Outrage and Whistle- ck ao juiz Sérgio Moro em debate no 21º Seminário Inter-
10. Disponível em: http://www.vanityfair.com/news/poli- blowing.’ In Research Companion to Corruption in Orga- nacional do IBCCRIM.
tics/2005/07/deepthroat200507 nizations, eds. R. J. Burke and C. L. Cooper. Cheltenham,
UK: Edward Elgar, 206-216. 43. Art. 5º, Lei 12.850/2013: São direitos do colaborador:
11. Disponível em: http://www.9-11commission.gov/ II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações
report/911Report.pdf 26. Essa última fora redigida por 100 especialistas a pe- pessoais preservados; V - não ter sua identidade revelada
dido da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), ver- pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou fil-
12. Em 25 de julho de 2010, a plataforma Wikileaks expôs sando exclusivamente sobre a liberdade de expressão e mado, sem sua prévia autorização por escrito.
os chamados “war logs” da guerra do Afeganistão, um con- de imprensa e atacando a censura prévia e a violência
junto de milhares de documentos secretos relatando o dia contra jornalistas. 44. CARVALHO, José Augusto Moreira de. Introdução à
a dia dos soldados norte-americanos e detalhes sórdidos teoria dos jogos no Direito. In: Revista de Direito Consti-
da guerra, vazados pelo ex-analista de inteligência do Exér- 27. John David Yeadon Peel; Herbert Spencer, The evo- tucional e Internacional, São Paulo, v. 15, n. 132, pp. 213-
cito dos Estados Unidos, Chelsea Elizabeth Manning, con- lution of a sociologist [A evolução de um sociologista], 234, abril/junho, 2007.

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Miguel do Rosário
jornalista

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E
u sou um blogueiro. É minha profissão há vá- jornalistas convencionais. Conservadores, progressistas,
rios anos. Vivo disso. Sustento minha casa, reformistas ou revolucionários, o que nos separa hoje, no
minhas cervejas, meus restaurantes, minhas atual estágio de nossas democracias, como diria o sábio
viagens, com o dinheiro honesto e suado do Woody Allen, são opiniões divergentes sobre o uso dos
meu trabalho como escritor político, usando impostos.
a internet como plataforma. Em 2014, foi a vez de Aécio Neves, também candidato
É a partir desse ponto de vista, de um blo- à presidência da república, num dos últimos debates do
gueiro sujo, ou progressista, ou de esquer- segundo turno, citar os blogs sujos.
da, que escrevo esse artigo. Em alguns momentos, o tex- O tucano foi ainda mais agressivo: com expressão for-
to pode parecer demasiadamente pessoal, mas é que se temente indignada, vociferou algo como: “isso é coisa des-
trata de um trabalho tremendamente solitário e pioneiro. ses blogs financiados com dinheiro público”.
Mas também tentarei, na medida do possível, descrever o É assim que nos chamam agora: blogs chapa-branca,
universo blogueiro para além da minha experiência singular. financiados com dinheiro público. Um dos jornalões mais
As perguntas que fundamentam este ensaio são: como conhecidos tem nos atacado frequentemente em seus edi-
surgiram os blogueiros políticos independentes? De onde toriais usando esses carinhosos epítetos.
vieram? Há algum tipo de organização ou combinação en- Vou rebater esses adjetivos ao longo do artigo.
tre eles? Quais são suas afinidades e divergências? Qual Por enquanto, sigamos a ordem das perguntas.
a sua audiência e como financiam seus blogs? Por que se Como surgiram os blogueiros progressistas? De onde
tornaram uma espécie de falange contra-hegemônica? Por vieram?
que brigam tanto com a grande mídia? Qual a função polí- Os blogs são filhos, é verdade, do lulismo. Mas por uma
tica dos blogs no atual estágio da nossa democracia? Qual coincidência. A vitória de Lula em 2002 coincidiu com a ex-
a sua influência concreta no debate público? Quais foram plosão da internet no Brasil.
as baixas nessa luta? Quais foram suas maiores vitórias? O primeiro blog político com mais projeção foi o blog
Antes de responder a estas perguntas, gostaria de ofe- do Noblat, inicialmente hospedado no site do Estado de S.
recer ao leitor alguns esclarecimentos gerais. Paulo, que começou a fazer sucesso em meados de 2005,
Em 2010, o então candidato à presidência da república, durante o escândalo do mensalão.
José Serra, foi o primeiro a nos xingar de blogs sujos. Ser-
ra se viu obrigado, talvez pela primeira vez na vida, a res-
ponder perguntas incômodas, que vinham à tona em fun-
ção de denúncias publicadas em blogs. Essa foi o motivo
de sua irritação. Incorporamos alegremente o apelido, em
virtude de nossas origens boêmias: o bar onde nasceu o
instituto Barão de Itararé, que faz o papel de sindicato in-
formal dos blogs, chama-se Sujinho. E desde sempre o
chamado pé-sujo, frequentado por estudantes e intelec-
tuais, se contrapõe à decoração bourgeoise, limpa e bem
iluminada, dos bares preferidos por executivos, altos ser-
vidores e demais homens de bem.
É um estereótipo bobo, claro. Eu gosto, todos nós gos-
tamos, de frequentar lugares limpos e iluminados.
No fundo, somos todos burgueses: blogueiros sujos e

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O blog do Noblat, que em seguida migrou para O Glo- Em outros países, os governos criaram jornais, TVs, pro-
bo, tornou-se uma espécie de ponta de lança dos ataques gramas de rádio, fizeram leis de mídia. Tiveram uma pos-
da oposição ao governo Lula. tura assertiva, até mesmo agressiva, em matéria de políti-
O massacre midiático contra o governo Lula era avas- ca de comunicação.
salador e completamente assimétrico. Não havia nenhum Aqui no Brasil, não. Os governos do PT, talvez cons-
tipo de contraponto. trangidos por suas próprias contradições internas, adota-
Até que apareceram os blogs progressistas. Não sur- ram a estratégia da mudez completa, gerando um vácuo
giram por iniciativa do governo ou do PT. Brotaram natu- de comunicação, ainda mais notável diante do posiciona-
ralmente do caos político nacional. mento editorial cada vez mais crítico adotado pelas princi-
Organizações políticas tinham sites desde os primórdios pais empresas de mídia. Esse vácuo teria de ser, necessa-
da internet, nos anos 90, mas não usavam a rede como riamente, ocupado por algo. E esse algo foram os blogs.
instrumento de participação política. Pode-se afirmar, portanto, que os blogs progressistas
Os blogs sim, desde que surgiram, eles se jogam bem surgiram do vácuo criado pela recusa (ou covardia) dos
no meio das batalhas políticas, procurando oferecer uma atores políticos oficiais de assumirem o protagonismo
narrativa diferente daquela veiculada pelos grandes meios nas grandes batalhas pela conquista da opinião pública.
de comunicação. Os governos do PT venceram quatro eleições presiden-
É interessante notar que, no âmbito da América Latina, ciais consecutivas. Conclui-se daí que há uma importante
os blogs políticos são um fenômeno tipicamente brasileiro. parcela da sociedade que apoia suas gestões e tinha ne-
A partir do início do novo milênio, a América do Sul dá cessidade de ler notícias e opiniões que constituíam um
uma virada política à esquerda, com ascensão de gover- contraponto ao que viam na mídia tradicional.
nos progressistas. O Brasil não ficou de fora dessa onda, Não significa que essas pessoas não sejam críticas,
com a eleição de Lula. que não enxerguem os erros do governo e do PT, que se-
Mas aqui no Brasil notou-se, desde o início, uma dife- jam lenientes com a corrupção etc. Apoiam, defendem e
rença fundamental na maneira como a esquerda governa- votam no PT, após pesarem prós e contras, e não há nada,
mental lidou com o problema de comunicação. por enquanto, que as proíbam de fazê-lo. A menos que a
A esquerda brasileira, ao contrário de suas congê- criminalização da política se aprofunde a tal ponto que o
neres latino-americanas, nunca construiu uma estraté- Judiciário passe a prender também eleitores.
gia original de comunicação, e não foi diferente quando Passemos à segunda pergunta.
chegou ao poder. Há algum tipo de organização ou combinação entre eles?
Todos os empregos da área de comunicação, asses- Não.
soria de imprensa e relações públicas do novo gover- E sim.
no foram ocupados por jornalistas oriundos da impren- Embora seja completamente anárquica, ou talvez jus-
sa tradicional. tamente por causa disso, a principal característica da blo-
Os governos do PT não assumiram, jamais, o protago- gosfera progressista é a sua organicidade. É uma espécie
nismo de sua própria comunicação. O PT sempre enten- de ecossistema próprio. Surge espontaneamente, num
deu a política de comunicação como uma espécie de re- processo singular de darwinismo político.
lações públicas com os meios tradicionais. Não há organização ou combinação entre blogs e o pú-
Com Dilma, esse quadro se agravou. Uma das primei- blico dos blogs. No entanto, em função da afinidade ide-
ras aparições públicas da presidenta, após sua primeira ológica, pela esquerda e pela centro-esquerda, essa orga-
vitória eleitoral, foi num programa da Ana Maria Braga, na nização acaba por se materializar.
TV Globo, fazendo omeletes. Com o tempo, contudo, surgiu um embrião de organiza-

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experiência. Vou listar os blogs progressistas mais conheci-


dos (pelo menos para mim) e aplicar-lhes alguns adjetivos.
Conversa Afiada: Paulo Henrique Amorim é um dos
nossos blogueiros mais resolvidos do ponto de vista co-
mercial e político. Sua maior qualidade é o humor sarcás-
tico. Seu governismo duro, que irrita alguns, lhe garante,
por outro lado, um público extremamente fiel, incluindo aí,
é claro, o próprio governo.
Jornal GGN: Nassif faz o tipo sério. O analista político
severo e implacável. Suas críticas, porém, são quase sem-
pre procedentes. Talvez peque apenas por pretender ser sé-
rio demais, sentencioso demais. Em se tratando de política
brasileira, excesso de seriedade soa um pouco pretensioso.
Diário do Centro do Mundo: Paulo Nogueira e seu ir-
mão, Kiko Nogueira, são os membros mais recentes da
blogosfera progressista, e se tornaram, na minha opinião,
o modelo mais equilibrado e mais profissional do nosso
campo, que possivelmente copiou de exemplos de blogs
bem-sucedidos dos Estados Unidos. Seu estilo editorial é
leve, sincero e bem-humorado.
Tijolaço: Fernando Brito é o blogueiro mais bem resol-
vido consigo mesmo na internet de esquerda. Como só-
cio do Tijolaço, posso dizer o seguinte: Brito é a pessoa
ção, por intermédio do Barão de Itararé, instituição sediada mais íntegra e mais honesta que já conheci. Sua qualida-
em São Paulo, com filiais no Brasil inteiro, responsável por de é uma capacidade de trabalho fora do normal. Escreve
organizar encontros nacionais e estaduais de blogueiros. vários posts por dia, curtos e objetivos, abordando sempre
Não há, porém, nada parecido com “diretriz” ou “orien- os assuntos mais quentes do dia. Tem obtido, com alguma
tação” política. regularidade, furos importantes para a blogosfera. É um dos
Nada é combinado. blogueiros mais replicados e respeitados do nosso campo.
Por outro lado, se o que é publicado num blog tem re- Cafezinho: É bastante ridículo falar de mim mesmo,
percussão, o assunto rapidamente ganha o conjunto dos mas vamos lá. Defeitos: textos prolixos, excessivos, às ve-
blogs, de uma maneira também bastante natural. Os blo- zes um pouco melodramáticos, frequentemente paranoi-
gs estão mergulhados numa espécie de magma comum, cos. Atualização irregular. Qualidades: tem procurado ex-
o seu público, que não é apenas consumidor, mas comen- ternar críticas ao governo e ao PT sem cair na esparrela mi-
tarista e multiplicador de conteúdos. Se o público passa a diática. Tem bastante penetração nos meios acadêmicos.
multiplicar um conteúdo, o blogueiro é praticamente inun- Blog da Cidadania: Eduardo Guimarães é um cara in-
dado por esse conteúdo e daí, querendo ou não, tem de crível e meu amigo pessoal. Tem sido um dos blogueiros
reagir a ele, seja replicando-o, seja contestando-o. mais resistentes do nosso campo, mas perdeu um pou-
Quais são suas afinidades e divergências? co do entusiasmo que lhe caracterizava após as chama-
Suas afinidades já foram comentadas. Entendo ser in- das jornadas de junho, contra as quais até hoje lança in-
teressante falar nas divergências entre os blogs. Farei uma vectivas furiosas. É, de longe, o mais governista de todos.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 47


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Socialista Morena: Cynara Menezes tem a qualidade brasileiro interessado em política, pode-se dizer que eles
de entender e falar a linguagem do mundinho nerd. Após atingem quase a totalidade desse público.
se desligar da Carta Capital e decidir se tornar blogueira Se considerarmos que o site do New York Times, um
full time, vem construindo sua reputação e cavando seu dos jornais mais importantes do mundo, recebe mensal-
espaço. Não parece ter muita paciência para acompanhar mente, do mundo inteiro, cerca de 20 milhões de visitas,
o frenesi de escândalos e polêmicas diários que assolam a perfomance da blogosfera brasileira demonstra um vi-
a política brasileira. gor impressionante.
As divergências entre os blogs se tornam mais eviden- Outro fator importante a se considerar, é que os blogs
tes em momentos de tranquilidade política, os quais, infe- progressistas se tornaram referência no campo do jorna-
lizmente, têm sido raros. lismo, sobretudo num momento da transição tecnológica
Qual a sua audiência e como financiam seus blogs? em que o modelo da imprensa tradicional entrou em crise,
Cada um dos blogs progressistas têm registrado au- enxugando redações ou fechando as portas.
diências de 1 a 7 milhões de pageviews por mês. Consi- Neste cenário sombrio, eles têm ganhado prestígio jun-
derando que são blogs políticos, voltados para o público to à universidade. As faculdades de jornalismo têm convi-
dado blogueiros progressistas para participarem de pales-
tras, e não jornalistas da chamada mídia velha.
O financiamento dos blogs vêm basicamente de duas
fontes: publicidade e assinatura. Há uma terceira, o cha-
mado crowdfunding, onde os internautas financiam uma
reportagem a ser publicada no blog, mas esse é um finan-
ciamento de um determinado conteúdo, não do blog em si.
O meu blog, Cafezinho, foi um dos pioneiros no uso da
assinatura como forma de financiamento. O blog tem áre-
as exclusivas para assinaturas, que só podem ser acessa-
das após o internauta logar-se, usando login e senha dis-
ponibilizados no momento de assinatura.
A tecnologia facilitou muito. Eu instalei um plugin no
Cafezinho, por exemplo, que integra o blog a um sistema
automático de pagamento e geração de senhas. O inter-
nauta clica num link, faz o pagamento e recebe automati-
camente o seu login e senha. E o seu acesso dura exata-
mente o tempo correspondente ao valor pago no momen-
to de sua assinatura.
Não preciso de um departamento de assinatura para
controlar isso.
A outra fonte de financiamento é a publicidade. É nes-
se ponto que os adversários dos blogs nos acusam de ser-
mos financiados com verba pública.
É um problema histórico para os veículos de comunica-
ção contra-hegemônicos, agravado no Brasil pela concen-
tração absurda dos meios de comunicação e pela existên-

48 page found
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cia dos chamados bônus de volume, uma espécie de prê- Por que os blogs se tornaram uma espécie de falan-
mio que as grandes empresas de mídia dão às agências ge contra-hegemônica? Por que brigam tanto com a gran-
de publicidade por sua fidelidade. No Brasil, os bônus de de mídia?
volume às vezes são pagos bem antes das agências vei- Não é preciso ser um grande teórico de sociologia para
cularem anúncios nas plataformas. intuir que uma população de 205 milhões de habitantes,
O setor público, por outro lado, precisa obedecer a cri- numa economia complexa de livre mercado, num regime
térios mais democráticos e mais transparentes de inser- democrático, não suportaria ser controlada mentalmente
ção da publicidade institucional, e essa é a razão pela qual por meia dúzia de grupos midiáticos.
ele anuncia nos blogs. O clima de confronto entre mídia e blogs, por sua vez,
Além disso, é evidente que, se os blogs se caracteri- reflete as dores de uma transformação profunda. Mídias e
zaram como veículos de oposição política à grande mídia, blogs representam dois mundos diferentes, opostos, com vi-
assim como a grande mídia se caracteriza como oposição sões do jornalismo e do mundo completamente antagônicas.
ao governo, as empresas têm o justificado medo de se O jornalismo tradicional da grande mídia acredita na im-
tornarem alvo da grande mídia caso anunciem nos blogs. parcialidade, enquanto a blogosfera acredita na transparên-
O dinheiro de publicidade é um recurso finito e disputa- cia. São dois conceitos opostos. A imparcialidade da mídia
do palmo a palmo pelas empresas de mídia. Com a explo- é vista como hipócrita pela blogosfera e, portanto, opaca,
são da informação gratuita na internet, nenhuma empre- obscura. A transparência da blogosfera é vista como par-
sa de mídia, que trabalha com notícias gerais, pode contar cialidade pela mídia.
em ganhar muito vendendo notícias. O público quer notí- A blogosfera intui que, para construir o seu público,
cia gratuita. Os gigantes da internet, como Google e Face- precisa, por assim dizer, roubá-lo da grande mídia. Para
book, absorvem cada vez pedaços maiores da verba pu- isso, precisa apontar as contradições e falhas do jornalis-
blicitária nacional e global. mo da grande mídia. É preciso incutir a desconfiança no
É natural, portanto, que as empresas de mídia tradicio- leitor, para que este procure outras fontes de informação.
nais lutem encarniçadamente para não perder recursos A mídia responde aos blogs com agressividade por-
publicitários para blogs de jornalismo e opinião, sobretu- que, como já foi dito, vê que eles representam uma ame-
do recursos vindos da esfera pública, os quais correspon- aça a seu modelo de negócios. Num primeiro momento,
dem, historicamente, por boa parte das receitas gerais a própria mídia tentou abraçar a ideia de blogs. A Globo,
dessas empresas. por exemplo, criou centenas de blogs. Estimulou todos os
Quando se pensa no financiamento dos blogs, deve- seus jornalistas a publicarem blogs. Mas não adiantou mui-
-se lembrar, por outro lado, que eles permitem um custo to. As pessoas procuram os blogs justamente por aquilo
de produção jornalística infinitamente menor, embora não que eles possuem de diferente em relação à grande mídia.
necessariamente com menor qualidade. Como acontece Qual a função política dos blogs no atual estágio da
com todas as empresas da chamada nova economia, as nossa democracia? Qual a sua influência concreta no de-
suas taxas de retorno, o seu lucro, são muito altas. Isso é bate público?
o que fez um blog como o Huffington Post, por exemplo, A função política dos blogs, como já foi dito, é quebrar
ser comprado, em 2011, por 311 milhões de dólares, ape- o monopólio da opinião exercido pela grande mídia. Após
nas um quarto do valor pago, hoje, pelo jornal financeiro décadas de controle da opinião pública, criou-se no Bra-
mais famoso do planeta, o Financial Times, vendido por sil uma espécie de teoria tácita segundo a qual só existiria
1,3 bilhão de dólares. Para efeito de comparação: o apli- uma narrativa política, aquela contada pelo grupo de em-
cativo Whatsapp foi comprado pelo Facebook pelo valor presas que controlam a comunicação social no país. Essas
de 22 bilhões de dólares. empresas têm um acordo entre si, e nenhuma discorda ja-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Facebook oferece ao cidadão tudo aquilo que antes o blog


oferecia, com várias vantagens: maior controle sobre quem
irá comentar, muito mais segurança (o Facebook não sai
do ar, ninguém consegue derrubá-lo), menor custo (grátis),
e um sistema já automático de distribuição do seu texto.
Entretanto, as redes sociais, incluindo o Facebook, tam-
bém se tornaram os maiores aliados da blogosfera, na me-
dida em que a maior parte da audiência dos blogs vem de
compartilhamentos e comentários feitos nas redes.
As maiores conquistas da blogosfera, naturalmente,
têm sido as vitórias eleitorais, em especial as da presiden-
te Dilma Rousseff.
A vitória de 2014 foi particularmente importante para a
blogosfera, porque desta vez a mídia corporativa se uniu
mais que nunca em torno da oposição, e teve um claro apoio
do mercado internacional, conforme se podia notar pela
oscilação nas cotações da Petrobrás. Além disso, a mídia
tinha uma arma importante nas mãos: um escândalo real
de corrupção, ocorrido nas barbas do governo, com acusa-
ções gravíssimas contra os principais partidos governistas.
Não foi à toa que o candidato da oposição, Aécio Ne-
ves, vociferou contra os blogs durante um dos últimos de-
mais de outra. Acertam e erram unidas, como um cartel. bates presidenciais.
Compartilham os mesmos colunistas, as mesmas ideias, Era nos blogs e nas redes sociais que as denúncias con-
as mesmas análises. tra ele furavam o bloqueio midiático e ganhavam corpo.
Naturalmente que, se tem audiência elevada e se po- Pouco antes de concluir este artigo, eu publiquei, antes
sicionam politicamente com bastaste transparência, os de qualquer outra mídia, um post comentando o editorial
blogs adquirem alta importância na formação da opinião do New York Times contra o impeachment da presidenta
e no processo eleitoral. A sua influência pode ser medida, Dilma. Em pouco mais de dois dias, o post já tinha mais
portanto, pelos resultados eleitorais, sobretudo a partir de de 40 mil compartilhamentos e quase 700 comentários.
2010. O episódio da bolinha de papel, factoide tucano des- No dia seguinte, as principais entidades do setor produ-
mascarado nas redes sociais e nos blogs, já foi fartamente tivo do país, mais a OAB, divulgaram manifesto em favor
discutido em toda parte. da governabilidade e da estabilidade política, claramente
Quais foram as baixas nessa luta? Quais foram suas se posicionando também contra qualquer movimento gol-
maiores conquistas? pista para encurtar o mandato da presidenta Dilma.
A blogosfera passou por um processo de seleção na- Gosto de pensar que a blogosfera ajudou a construir
tural. Muitos blogs foram ficando pelo caminho, surgiram uma saída para uma das mais duras crises políticas da nos-
outros, alguns poucos se consolidaram. Processos judi- sa história recente.
ciais, frustrações políticas e falta de recursos são os prin-
cipais motivos pessoais. A chegada do Facebook foi a ra- O autor é responsável pelo blog O Cafezinho
zão conjuntural mais importante. Uma página pessoal no migueldorosario@gmail.com

50 page found
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O RIOgaleão
está na rota certa.
A Odebrecht TransPort, junto com a Changi Airports International, administradora do melhor aeroporto
do mundo, está concluindo uma série de mudanças na infraestrutura e no atendimento no Aeroporto
Internacional Tom Jobim. Até 2016, vamos ter um aeroporto à altura do Rio. Saiba mais em riogaleao.com.

Veja o que já mudou: Veja o que está por vir:


55 novos estabelecimentos comerciais. Novo píer com 100.000 m2 de extensão.
60 novos voos com 7 novos destinos. Expansão de duty free - 3 vezes maior.
Wifi grátis de 60 minutos. Expansão da área comercial - 5 vezes maior.
1º aeroporto do Brasil certificado a receber 28 novos elevadores.
os maiores aviões do mundo.
2.700 novas vagas de estacionamento.
68 novas pontes de embarque.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

(DES)GOVERNANÇA DA

interNET
LOUISE MARIE HUREL SILVA DIAS
Especialista em relações internacionais

A questão de “como”, “quem”


e o “quando” dentro do debate
sobre governança da internet são
chaves que nos permitem discutir
um elemento cada vez mais
pulverizado: o futuro da internet.

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JULHO •a
Abril • m•
GOSTo SETEMBRo
aio • junho 2015 53
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

F
alar sobre governança da mações que antes eram transferidas contextos socialmente construídos)
internet faz parte do exercí- por meio de tecnologias “separadas”/ que contribuam para a formulação e
cio de tentar entender um especificas e mais fragmentadas, tam- reformulação de práticas e expectati-
pouco desse desafio mul- bém organizadas por regimes e “fra- vas, o que, por sua vez, ressignifica a
tifacetado e complexo. Por meworks” legais específicos, conver- internet. “Quando a internet foi usa-
isso, esse artigo visa a questionar a giram, sendo agora englobadas pela da?” indica o contexto, “quem?” indi-
governança enquanto um conceito plataforma “unificadora que a internet ca o agente/ator, e “como?” indica as
estanque, fechado e normalmente representa”. práticas envolvidas.
atrelado à noção de Estados e institui- A internet é, portanto, um canal de Resumidamente, quando, quem e
ções. Para assim fazê-lo, estabelecer- apropriações. Constantemente proble- como são três palavras importantes,
-se-á um diálogo com alguns autores, matizada pelo seu uso e operabilidade, pois elas questionam mudança e cons-
e ao perpassar as diferentes (porém a internet enfrenta um constante pro- tância na utilização da internet. Assim
em alguns pontos interligadas) com- cesso de alargamento. O projeto pri- sendo, a observação desses dois fa-
preensões sobre governança chega- mordialmente encabeçado pela Mari- tores permitirá a análise do processo
remos a uma argumentação especi- nha estadunidense – mais conhecido de virtualização de práticas e expec-
fica, e amplamente aberta a questio- como ARPANET – tomou proporções tativas – e como esse processo nos
namentos, sobre como esse proces- inesperadas. Com a transposição da permite compreender a formulação
so de governança, normatização e re- internet para o âmbito publico – ade- de políticas voltadas para a governan-
gulação se dá. Em suma, esse traba- são de sociedades e governos – o ins- ça da internet.
lho é uma tentativa de fugir de uma trumento se desenvolveu e se alargou A dinâmica entre o on-line e o off-
lógica causal, um “porquê”, uma de- territorialmente, espacialmente e fun- -line é uma zona cinzenta. Apesar de o
finição, e partir para a compreensão cionalmente. on-line não ser um espelho virtual dos
que leve em consideração o dinamis- Esse movimento de alargamento e acontecimentos sociopolíticoeconô-
mo e a fluidez que a complexidade aprofundamento da internet gradual- micos, ele é composto por práticas e
conclama. Para isso, iremos obser- mente a tornou um elemento impor- expectativas que, por sua vez, influen-
var as divergências e convergências tante em termos de gestão, operação, ciam o entendimento de como esse
entre os múltiplos entendimentos da comunicação e troca. Sendo assim, espaço cibernético deve ou não fun-
governança. em meio à utilização e à significação cionar. Tendo isso em mente, podemos
Por outro lado, para compreender- desse instrumento pelos agentes en- ressaltar alguns questionamentos que
mos a governança da internet, preci- volvidos, pode-se observar a transpo- emergem ao pensarmos sobre gover-
samos delinear o que a internet vem sição de algumas práticas sociais, po- nança da internet: até que ponto po-
a ser e como seus atributos se desen- líticas e econômicas do mundo (se é demos aplicar noções estatais em um
volveram, tornando-a esse canal e ins- que assim podemos afirmar) off-line aparelho tão plural, pulverizado, multi-
trumento tão significativo em meio a para o mundo on-line. dimensional e líquido como a internet?
diferentes esferas de atuação. Tendo O segundo ponto, e talvez um dos Seria a noção de multistakeholderism
isso em mente, Milton Mueller (2013) mais importantes para o desenvolvimen- uma possível saída?
certa vez destacou que, para os adep- to do artigo, é a investigação da virtua- Essa última questão também abre
tos da convergência digital, o desenvol- lização dessas práticas e expectativas. uma outra porta de questionamentos.
vimento tecnológico tornou a internet O processo de utilização e significação Quem está por trás da governança da
uma plataforma para todos os tipos de da internet implica em atores/agentes internet? Um, dois, três, ou mais ato-
informação e mídia. Todas essas infor- ativos (em meio aos seus respectivos res? Existe uma disputa acirrada so-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A GOVERNANÇ@
surgiu como uma forma de compreender um mundo
que vai além da multipolaridade estatal

bre o “quem” em xeque. Esse ponto Um ano após a queda do muro de Por mais que seja sedutor fechar-se
expõe dois fatores clássicos para as Berlim, Rosenau (1992) escrevia so- em uma concepção, dentre as diversas
relações internacionais: poder e legi- bre um mundo que caminhava rumo combinações possíveis entre governança
timidade. Haveria alguma forma de or- a um futuro nebuloso, se pergunta- e global, ao assumirmos a complexidade
questrar um elemento supraterritorial, va quais seriam os próximos passos e abraçarmos as diversas dimensões,
fronteiriçamente fluido e em constan- de um “globo sem governo”. “O que poderemos entender como a governança
te mudança como a internet? quer dizer governança em escala glo- global pode ser interpretada em meio
Repleto de questionamentos, esse bal?” “Como pode o globo operar em ao advento da internet.
artigo é uma tentativa de promover o meio a ‘governança’?” “Se não é mais A governança global possui múltiplas
debate acerca desses dois elemen- o governo que tem o papel principal facetas, pode ser vista em termos de
tos (tecnologia e política), que, cada na governança, quem poderá formu- institucionalização, poder, interação.
vez mais, se imbricam em discursos, lar e aplicar essas regras?” eram seus Essa multiplicidade torna a conceitu-
debates e práticas. principais questionamentos. alização da combinação entre global e
A governança surgiu como uma governança um trabalho desafiador. O
GOVERNANÇA GLOBAL(?) forma de compreender um mundo desdobramento das relações globaliza-
que vai além da multipolaridade esta- das tanto em termos estatais quanto
“Global governance” appears to be vir- tal, um mundo que abarca processos em termos sociais e individuais trou-
tually anything (FINKELSTEIN, 1995). dinâmicos de pulverização de autori- xe consigo a necessidade de uma go-
dades, instituições, atores, interes- vernança denominada global, capaz de
Evidente se faz o fato de que a am- ses, e – o mais importante para esse orquestrar e ordenar em meio a poro-
biguidade que permeia o conceito de trabalho – formas de interação. Sen- sidades. De acordo com essa visão,
governança global traz e ressalta mais do assim, a grande pergunta era e é: a governança global seria uma forma
dúvidas do que certezas. Em diversos “Como lidar com esse mundo com- (se não a única) de regular questões
trabalhos (FINKELSTEIN, 1995. ROSE- plexo?” Seria o mundo, até então, comerciais, ambientais, de segurança,
NAU, 1993, BARNETT, DUVALL, 2004) simples e ordeiro que, a partir desse disputas, resoluções de conflitos e en-
observa-se um esforço constante em momento, precisasse de uma nova tre outros cenários – mas nem sem-
compreender e verificar a aplicabilida- ordem e novas formas de governo/ pre essa concepção é vista como a
de desse conceito. ordenamento? “melhor saída”. A ligação “automáti-

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 55


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ca” dos conceitos de liberalismo, paz, will do so faster and more thoroughly million computers and caused billions
bondade e esperança como sustentá- than others. These will be the global of dollars in damage”. This combina-
culos da governança global, acabam brains; the remainder will be the glo- tion of a new openness and new in-
silenciando o grande jogo de poder e bal bodies (CHOUCRI, 2000. n.g.). securities, Clinton warned, signaled
legitimidade que existe por trás (BAR- a “fateful struggle” between the “for-
NETT, DUVALL, 2004). Tendo isso em Governança, e global, para quem? ces of integration and harmony” and
mente, Barnett e Duvall (2004) visam Com qual noção de global estamos li- the “forces of disintegration and cha-
a ressaltar que, apesar do papel difu- dando? Respaldados em aparatos nor- os” (MUPPIDI, 2004).
so que o poder exerce em processos mativos informados por relações de
de definição e articulação, a governan- poder, práticas e princípios, os enten- O questionamento levantado por
ça global não deve ser entendida en- dimentos do “Eu” e do “Outro”, “ca- Muppidi ressalta uma preocupação:
quanto um mecanismo de manuten- beças” e “corpos” (global “brains” and como lidar com os “Outros” frente a
ção e criação de arranjos institucionais, “bodies”) podem ser bem díspares ao um mundo globalizado? A governança
mas sim como o questionamento de se olhar pela perspectiva colonial/pós- global deveria ser um elemento capaz
como a vida global é estruturada, or- -colonial (MUPPIDI, 2004). de abarcar a diferença, contudo, aca-
ganizada e regulada. ba sendo um promotor de políticas de
Esse conceito também pode ser “Globalization is tearing down barriers diferenciação. “In a world marked by
compreendido através da tensão colonial and building new networks among diversity, any governance of the global
e pós-colonial. Richard Rosencrance em nations and people”. But, he cautio- must implicitly negotiate different imag-
The Rise of The Virtual State (1999) ar- ned, there was also a downside to this inations or understandings of the glob-
gumenta que o Estado virtual é aquele process. These “new networks” also al [...] A politics of global governance
capaz de se projetar e influenciar atra- gave rise to new insecurities. He no- thus necessarily involves a politics of
vés do seu poder sobre ideias e finan- ted: “The same technology that gave difference” (MUPPIDI, 2004).
ças. Seu argumento pode ser enten- us GPS [Global Positioning System] A governança está diretamente
dido da seguinte forma: and the... Internet also apparently em- conectada à formação de sociedades,
powered a student sitting in the Phi- pessoas e ao entendimento construído
[W]hile all nations are gradually mo- lippines to launch a computer virus através dessas relações. Sociedades e
ving toward the “virtual state” some that... spread through more than 10 pessoas moldam e são moldadas por

A históri@ da internet
já revela por si só parte do problema com que hoje se
tenta lidar: a influência norte-americana no processo
de formulação, organização e estruturação da rede

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

práticas e expectativas constantemen- um processo de regulamentação par- ressados em participar na formulação


te construídas (e reconstruídas) por ticipativa (regulamentação da lei atra- de políticas para a regulação do cibe-
normas/regras (ONUF, 2012). vés do debate e contribuição pública) respaço (MUELLER, 2014).
Sendo assim, quais seriam, portan- é um momento crucial para a defini- Para além da relação entre Esta-
to, as regras estabelecidas no espaço ção e estruturação do Marco Civil, o dos, instituições governamentais, in-
cibernético? Como podemos entender contexto, a tecnologia e o jogo políti- ternacionais e/ou não governamentais,
a relação entre sociedade, pessoas, co estão em constante mudança – tan- a governança da internet se revela de
governança global e internet? Quem to para o “bem” quanto para o “mal”. forma muito mais capilar – afinal, os
governa? Qual global? O processo de ordenamento da principais usuários são pessoas. Sen-
internet não se restringe às leis de do assim, como veremos no próximo
INTERNET E GOVERNANÇA um certo país. Como foi dito previa- tópico, lidar com regras e restrições
mente, pensar em como criar me- na internet também significa abordar
Who will control the new spaces? canismos regulatórios para internet práticas sociais.
At this writing, legal ambiguities sur- significa lidar com um objeto de es-
rounding “rights” on the Internet are tudo que afeta a todos os que a ele VIRTUALIZAÇÃO
compounded by the absence of re- estão conectados. O caráter simulta-
gulatory frameworks predicated on neamente enraizado e desenraizado Cyberspace is a new “terrain” in the
some notion of “sovereignty” and conclama por medidas harmoniosa- social sciences broadly defined, as
guaranteed by a “sovereign” entity mente globais e locais, domésticas e well as for political scientists in all parts
(CHOUCRI, 2000). internacionais, particulares e univer- of the discipline (CHOUCRI, 2000).
sais. Levando isso em consideração,
Voltando ao questionamento de pode-se compreender um pouco da Enquanto Rosenau (1992) ques-
“quem”, “como” e “quando” a internet é complexidade da governança que flui tionava o porvir da governança global
usada e regulada, procuramos abordar pelas redes globalizadas. logo após o fim da Guerra Fria, Chou-
a complexidade da junção entre internet Entretanto, a questão da soberania, cri (2000), pouco tempo depois, procu-
e governança. Um dos “calcanhares de poder e preponderância ainda assolam rava entender a conexão entre globali-
Aquiles” que assombram as discussões e desafiam estratégias que visam a zação, política, governança e internet.
sobre governança da internet é a lacuna maior inclusão. A história da internet Ligando, conectando e transformando.
entre o desenvolvimento de mecanis- já revela por si só parte do problema A internet, enquanto um fenômeno e
mos regulatórios e os avanços tecno- com que hoje se tenta lidar: a influên- um instrumento a ser observado, re-
lógicos (CHOUCRI, 2000). O rápido de- cia norte-americana no processo de presenta um novo canal de atuações,
senvolvimento da plataforma tecnoló- formulação, organização e estrutura- transferências e reações, e, portanto,
gica desafia a burocracia e a lentidão ção da rede. um vetor importante para compreen-
de instituições estatais. Um exemplo Respondendo a essa assimetria der práticas e expectativas. Por mais
plausível seria o Marco Civil da Inter- no controle da internet, surge a pro- difícil que possa ser calcular tanto prá-
net (lei 21626/11). Sua proposta transi- posta de um modelo multistakeholder ticas quanto expectativas dentro des-
tou pela Câmara por aproximadamente que visa a quebrar com a centralidade se espaço, procuramos entender a in-
quatro anos e ainda não foram estabe- reguladora do Estado. A governança ternet como um elemento socialmen-
lecidos instrumentos legais que pos- multistakeholder propõe a de inclusão te construído e significado.
sam garantir que a lei vigore (PORTAL de empresas, ONGs, grupos de advo- Atrelada às suas múltiplas funções,
EBC, 2014). Mesmo sabendo-se que cacy, acadêmicos e outros atores inte- a internet pode ser retratada como um

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 57


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

elemento crucial para a transformação informações, mas também um local desse instrumento intrigou e conti-
de, no mínimo, três aspectos: comu- onde pessoas são capazes de se re- nua intrigando acadêmicos, políticos,
nicação, economia e o dilema entre lacionar (HUREL, 2014). cientistas e outros atores que se de-
privacidade e vigilância. Vale ressaltar param com as suas diversas implica-
que esses três tópicos não são com- Expectativas, práticas e regras ções para as dinâmicas sociais, polí-
pletamente fechados e isolados, pelo que regem a forma de organização ticas e econômicas.
contrário, são fluidos e extremamente do espaço off-line também se adap- A ponte entre o virtual e o antropo-
interconectados. taram ao on-line. A comercialização mórfico traçada pela criação do com-
As normas presentes na regulação da de produtos, as transações financei- putador e da internet também nos
internet retratam uma constante tensão ras, as compras e outras funções fo- ajuda a compreender a difusão entre
entre a transposição das noções de uma ram transpostas ao on-line e hoje são uma governança global para o mundo
governança global institucionalizada conhecidas em forma de “e-commer- off-line e/ou para o on-line. Elementos
vis-à-vis as peculiaridades advindas ce”/comércio virtual. do on-line escorrem para o off-line e
do encontro entre o virtual e o social. vice-versa. Contudo, deve-se ter em
Utilizamos aparatos institucionais for- “The new economy is all about com- mente que mesmo o on-line sendo
mulados para o ordenamento de ações peting for the future, the capacity to um produto que constitui e é consti-
e reações no mundo off-line (ex: for- create new products or services, and tuído pelo off-line, ele também apre-
mulação de leis e acordos, criação de the ability to transform businesses into senta suas peculiaridades. Um exem-
instituições) para lidarmos com o on- new entities that yesterday couldn’t plo plausível seria a questão do ano-
-line. Sendo assim, como podemos be imagined and that the day after nimato na Deep Web.
pensar a regulamentação/governan- tomorrow may be obsolete” (TAPS- A Deep Web é basicamente um
ça no mundo on-line? COTT, 2014; CHOUCRI, 2000). espaço virtual que contém todos os
A formulação e o desenvolvimen- dados que não estão indexados a ne-
to do computador surgiram como um Com o desenvolvimento de tecno- nhum mecanismo de busca (ex: Goo-
cérebro alternativo capaz de realizar logias da informação, um outro ele- gle, Yahoo, Ask). Para acessar esse co-
funções parecidas às do ser humano. mento importante que sofreu mudan- loquialmente chamado “submundo”
ças devido aos processos de virtua- da internet, é preciso utilizar o Tor (The
Os ouvidos captam sons, ruídos, me- lização foi a comunicação. De pom- Onion Router) – programa que fornece
lodias, a boca transmite mensagens bos-correio, pessoas e telegramas a anonimização ao usuário. O anonimato
entre pessoas através de códigos e-mails, telefones e chat, as formas e a privacidade, já “obsoletos” – tan-
(mais conhecidos como linguagem) transmissão, análise, processamen- to no off-line quanto na era de trans-
e os olhos tiram retratos e filmam o to e comunicação se diversificaram. bordamento de dados pessoais –, tor-
dia a dia. Todas essas ações são ar- Cada vez mais conectada e menos nam-se palpáveis (em alguma medi-
mazenadas no cérebro. Não tão di- desafiada por questões geográficas da) no on-line através da utilização do
ferente, o computador é capaz de como o relevo, a internet abriu espa- Tor. A Deep Web pode ser vista como
realizar funções parecidíssimas às ço para o desenvolvimento de rela- um ponto peculiar nesses processos
descritas. Esta ferramenta [o com- ções sociais no virtual. Também ser- de transposição do off-line para o on-
putador] e a internet proporcionaram viu como um propulsor para a digita- -line, não necessariamente pela ques-
a criação de um espaço largamente lização de bases de dados, tais como tão do anonimato em si, mas sim pelo
supraterritorial que incorpora não só bibliotecas, livros, arquivos, acervos questionamento de quais seriam os
o armazenamento e transmissão de e coleções. A multidimensionalidade mecanismos estatais para lidar com

58 off-line
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A Deep Web é basicamente um espaço virtual que contém


todos os dados que não estão indexados a nenhum

mecanismo de busc@

uma “bolha cibernética” anônima. A guns dos mecanismos utilizados para sos de formulação de políticas volta-
Deep Web como “terra de ninguém”. proteger o privado. O computador e das para a internet. Mesmo em meio
O último e não menos importan- o desenvolvimento das suas capa- a propostas mais inclusivas dentro do
te ponto a ser ressaltado é o dilema cidades funcionais permitiram um guarda-chuva do multistakeholderism,
entre privacidade e vigilância. O fun- aprimoramento dos modos de con- esse breve compartilhamento de dú-
cionamento do computador, e subse- trole sobre o acesso e o não acesso vidas visou a questionar os saberes
quentemente a internet, refletem no- daquilo considerado privado. Sendo vigentes que ainda estão atrelados
ções normativamente construídas da o espaço cibernético um ambiente à concepção do Estado e de institui-
divisão entre o público e o privado. A grandemente informacional, as cha- ções robustas.
ambiguidade e a dificuldade em deli- ves, lacres, cofres, códigos também
mitar “o que é público” e “o que é pri- se encontram lá. Senhas para e-mails, While we know that the problems
vado” foram traduzidas e introduzidas camadas de proteção, antivírus, crip- of internet governance challenge
para o on-line. O computador, enquan- tografia computacional são algumas the institutional capacity of nation-
to um produto usado e elaborado por das ferramentas que foram elabora- -states, a core assumption of this
indivíduos, foi construído e programa- das em meio aos desafios da segu- book is that there is no determinis-
do para servir o ser humano em meio rança da informação/espaço privado tic progression to any new form of
aos seus objetivos e atividades. (HUREL, 2014). governance. Those who projected
Chaves, portas, senhas, códigos that the state will automatically wi-
e a criptografia são elementos que já CONCLUSÃO ther away in this sphere were clear-
existiam, e foram gradualmente sen- O objetivo desse estudo foi de bre- ly wrong. Those who rationalize as
do virtualizados e adaptados ao fun- vemente trazer à tona uma discussão inevitable a reversion to a bordered
cionamento do computador – portas sobre governança que não só mostrasse and controlled Internet dominated
(“doors”), chaves (“keys”), entre outros a complexidade implícita nos processos by states are also wrong. Nothing
termos, adaptaram seu significado ao de definição e na formulação de políticas, is inevitable. Whatever happens, we
ambiente cibernético. mas também propor uma visão. will make happen (MUELLER, 2013).
A virtualização como processo so-
Não é preciso voltar muito, chaves, cial, político e econômico nos ajuda Mesmo contestando a governan-
lacres, cofres e códigos são/eram al- a olhar criticamente para os proces- ça como sendo algo atrelado ao Esta-

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 59


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

do – reconhecendo que ela faz parte bates sobre governança da internet – 2) Como ponderar interesses esta-
de uma rede de agentes que é extre- e também, mais adiante, a problema- tais vis-à-vis o poder de atuação que a
mamente diversa e difusa –, compre- tização das formas pelas quais políti- internet confere?
endemos que não existe uma forma cas são/podem ser formuladas atra- 3) Aonde está a “governança” na
claramente predeterminada ou forma- vés do entendimento de processos DeepWeb?
da sobre como esse tipo de ordena- de virtualização normativa do off-line
mento da internet deve/deveria/deve- para o on-line. A autora é pesquisadora da Escola de
rá funcionar. Tendo isso em mente, o Guerra Naval - Geocorrente/Seguran-
artigo buscou, primeiramente, ressal- Food for Thought ça Cibernética e do Projeto Brasil Glo-
tar a complexidade de opiniões e vi- 1) Será que as formas de lidar com bal, do Instituto de Relações Interna-
sões sobre governança global – que, o off-line são suficientes quando ques- cionais da PUC-Rio
por sua vez, transbordam para os de- tionamos a governança da internet? louise.marie.hsd@gmail.com

bibliografia

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60 off-line
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

62 ou vai ou racha
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

LUSIVO
EXC

É D I TO
IN
in t e l i g ê n c i a

Em 1992, Celso Furtado escrevia sobre o processo


de transformação do Brasil, que se arrastava feito
um caramujo, notadamente sob a ótica da poten-
cialização do mercado doméstico.

Passados 23 anos, a realidade, essa inconstante,


deu um rodopio sobre si mesma, e mergulhou no
passado, reencontrando os mesmos problemas do
enquadramento analítico original.

Perguntas para o leitor: o ano 1992 ressuscitou?


Ou não morreu?

A despeito de o país viver no túnel do tempo e fler-


tar com a entropia, o pensamento de Furtado atuali-
za e conjuga realidades cronologicamente distintas.

Há quem diga que o “furtadismo” é uma forma avan-


çada de ceticismo, dada a crueza da sua reflexão.

O fato é que Furtado fez do mercado interno brasi-


leiro uma mandala. É ela quem está no centro do
desenvolvimento econômico do país.

Em artigo inédito, cedido à Inteligência por Rosa


Freire d’Aguiar, Celso Furtado lança luz sobre es-
sas e outras questões.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 63


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

LUSIVO
EXC

ITO
INÉD
in t e l i g ê n c i a

O que veio a chamar-se desenvolvimento econômico,

o mercado no Brasil, reflete a expansão de um mercado interno que


se revelou de enorme potencialidade. Longe de ser sim-

interno na ples continuação da economia primário-exportadora que


herdamos da era colonial — constelação de núcleos regio-

formação nais autônomos —, a industrialização assumiu a forma de


construção de um sistema econômico com considerável

econômica autonomia no que respeita à formação de poupança e à


geração de demanda efetiva. Graças aos efeitos de siner-

do brasil gia, esse sistema representava mais do que a soma dos


elementos que o formavam.
Assim, mesmo sem haver gozado de uma situação
privilegiada como os Estados Unidos um século antes —
grande influxo de capitais e de quadros técnicos originá-
celso furtado rios das regiões mais desenvolvidas da Europa —, o Bra-
sil seria no terceiro quartel do século XX a fronteira em ex-
pansão mais rápida do mundo capitalista.
Durante três séculos a economia brasileira baseou-se
na exploração extensiva de recursos em grande parte não
renováveis: da exploração florestal dos seus primórdios
até a grande mineração de ferro, passando pelo uso des-
trutivo dos solos nos vários “ciclos” agrícolas, por muito
tempo fomos um caso exemplar do que hoje se conhece
como “desenvolvimento não sustentável”. Civilização pre-
datória, estávamos condenados a enfrentar uma imensa
crise quando completássemos a destruição da base de
recursos não renováveis (ou renováveis a custos crescen-
tes), ou quando a demanda internacional de tais recursos
fosse reduzida pela incidência de fatores tecnológicos ou
econômicos.
É somente no século XX que a economia brasileira dei-
xa de fundar seu dinamismo na depredação de recursos
naturais e passa a apoiá-lo de forma principal na assimila-
ção de avanços tecnológicos e na acumulação de capital
reprodutível. Isso, graças ao processo de industrialização

64 ou vai ou racha
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

que passa a ser o motor do desenvolvimento do país a par- nos pareça insuperável, sendo notória a incapacidade do
tir da grande depressão dos anos 1930. Estado para enfrentá-la. Mas não tenhamos dúvida de que
Lançamos as bases de um sistema industrial em época é possível superá-la, se o país manifesta a vontade política
de grandes dificuldades internacionais, cabendo ao Esta- necessária para aumentar a taxa de poupança e para en-
do papel decisivo na hábil estratégia então adotada. O sa- frentar os credores a fim de reduzir as transferências de
crifício imposto à população foi compartilhado por todas recursos para o exterior.
as classes sociais, inclusive aqueles grupos antes habitua- Aumentar o esforço para aprofundar a inserção exter-
dos a ter acesso a bens de consumo importados. Durante na da economia — o que atualmente se apresenta como
alguns decênios, o país teve de se reestruturar, reduzindo requisito da modernização — somente se justifica se esse
consideravelmente suas importações de bens de consu- esforço for realizado no quadro de uma autêntica política
mo enquanto a população crescia, parti- de desenvolvimento socioeconômico, o
cularmente nas áreas urbanas. Uma nova que não é o caso se o aumento das ex-
Não devemos
realidade social começava a emergir: os portações tem como contrapartida con-
perder de
ricos, consumindo produtos nacionais, já tração do mercado interno. Se os baixos
vista que a
não eram vistos como habitantes de outro lógica das preços de exportação, que nos dão a ilu-
planeta, e a classe média em formação transações são de sermos competitivos, refletem a
ocupava espaços crescentes e assumia internacionais existência de capacidade produtiva ociosa,
posições de liderança no plano cultural. sempre foi estaremos pagando preços reais exorbi-
A mudança do quadro internacional adversa para tantes pelas divisas que adquirimos para
manifestou-se desde inícios dos anos os países de servir a dívida externa.
1970: a crise do dólar, seguida do pri- economia Não devemos perder de vista que a
meiro choque petroleiro, deu origem a dependente lógica das transações internacionais sem-
grande massa de liquidez internacional pre foi adversa para os países de econo-
com a baixa nas taxas de juros, conduzindo ao processo mia dependente. As extraordinárias taxas de crescimento
de sobre-endividamento de grande número de países do que conheceu a economia brasileira nos quatro decênios
Terceiro Mundo. O que vem em seguida é a dolorosa his- compreendidos entre os anos 1930 e 1970 refletiram espe-
tória dos ajustamentos impostos aos países devedores: cificamente um dinamismo fundado na expansão do mer-
de absorvedores passam estes a supridores de capitais cado interno. Durante todo esse período manteve-se esta-
internacionais, devendo concomitantemente aumentar o cionária ou em declínio a participação da produção orien-
esforço de poupança e reduzir o investimento interno. Es- tada para os mercados externos.
ses ajustamentos exigem um consenso e uma disciplina Nunca é demais recordar que os preços reais dos pro-
social difíceis de serem alcançados em qualquer país, e dutos primários exportados pelos países do Terceiro Mun-
mais ainda em sociedades marcadas por profundas desi- do apresentam historicamente tendência declinante. A
gualdades e atraso político, como é a brasileira. Daí que média desses preços no quinquênio 1986-90 correspon-
a crise atual, que já se prolonga por mais de um decênio, deu aproximadamente à metade do que foram quarenta

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 65


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

LUSIVO
EXC

ITO
INÉD
in t e l i g ê n c i a

anos antes, ou seja, em 1948-55. Um grupo de analistas de um sistema econômico com certo grau de autonomia
do Banco Mundial concluiu em estudo recente que esse na geração da demanda efetiva e no financiamento dos in-
declínio já se prolonga por mais de um século (The World vestimentos reprodutivos.
Bank Economic Review, janeiro de 1988), declínio que se As barreiras que enfrentam esses países para ter aces-
vem acentuando. Entre 1989 e 1991, os preços dos pro- so aos mercados internacionais não se manifestam ape-
dutos primários exportados pelos países pobres declina- nas na degradação dos preços reais dos produtos primá-
ram em média 20%, queda que se aproxima da ocorrida rios que exportam. Essa tendência, assinalada por Raúl
na depressão de 1980-82 que deflagrou a crise da dívida Prebisch há quase meio século, tem explicação simples
externa desses países. Prisioneiros de uma lógica perver- na natureza mesma desses produtos, cuja importância re-
sa, muitos países pobres procuram com- lativa declina com o crescimento da ren-
pensar a baixa de preços aumentando CABE INDAGAR da de uma população. Ocorre, entretan-
as exportações e obtendo financiamen- SE NÃO TERÁ to, que as dificuldades que enfrentam os
to externo, inclusive de agências multila- SIDO ERRO países pobres em seu esforço para pe-
terais, para aumentar a produção. A con- ABANDONAR A netrar nos mercados internacionais são
corrência desabrida resultante levou nos ESTRATÉGIA DE ainda mais amplas do que supunham os
anos recentes à ruína os produtores de CONSTRUÇÃO primeiros teóricos do subdesenvolvimen-
café e de cacau. A renda auferida pelos DO MERCADO to, que se limitavam a observar a natureza
produtores de café foi reduzida à meta- INTERNO COMO dos produtos sem dar atenção à estrutu-
de, e ainda maiores foram as perdas dos “MOTOR DE ra dos mercados internacionais. Ora, tudo
de cacau e açúcar, em consequência do CRESCIMENTO” leva a crer que nestes as manifestações
desmantelamento dos tênues mecanis- do que se entende por poder de merca-
mos de defesa dos preços, existentes em época anterior do assumem considerável importância. É necessário não
à onda de desregulamentação. perder de vista que, no que concerne aos produtos manu-
A pressão conjugada da oferta de mão de obra gera- faturados, as transações internacionais são, via de regra,
da pelo crescimento demográfico e da rigidez da procura constituídas por operações internas às grandes firmas no
de produtos primários nos mercados internacionais leva- regime de preços administrados.
ria necessariamente os países pobres a buscar o caminho Estudo recente da Comissão Sul pôs em evidência que
da industrialização. Contudo, poucos dentre esses países os preços dos produtos manufaturados exportados pelos
reúnem as condições de dimensão demográfica, base de países do Terceiro Mundo cresceram 12% em termos no-
recursos naturais e liderança empresarial para apoiar essa minais (em dólares), nos anos 1980. Ora, durante esse mes-
industrialização na construção do mercado interno. A gran- mo decênio, os preços das manufaturas exportadas pelos
de maioria dos países pobres que buscam industrializar- países industrializados cresceram 35%. Se ajustamos o po-
-se fica na dependência de acesso marginal ao mercado der de compra gerado pelas manufaturas exportadas pe-
internacional como subcontratistas de empresas transna- los países do Terceiro Mundo pelos preços das máquinas
cionais. Foram poucos os que avançaram na construção e equipamentos que eles importaram vemos que a perda

66 ou vai ou racha
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

alcançou 32% no referido decênio. Dessa forma, o ganho sistemas heterogêneos — social ou culturalmente — ainda
de espaço nos mercados internacionais de manufaturas está por ser escrita. O fracasso da União Soviética veio de-
vem exigindo dos países pobres esforço crescente. Cer- monstrar cabalmente que tais sistemas já não sobrevivem
to, não existe desenvolvimento sem acesso à tecnologia apoiando-se tão somente em estruturas de dominação bu-
moderna, e esse acesso se dá de preferência pela via do rocrática e militar. O considerável crescimento econômico
comércio internacional. O que aconteceu no passado, em apoiado na industrialização e com base no mercado inter-
um país com as potencialidades do Brasil, foi que o aces- no, durante o meio século que se inicia nos anos 1930, deu
so ao mercado internacional desempenhou papel apenas origem no Brasil a fortes vínculos de interdependência en-
coadjuvante na promoção do desenvolvimento. tre regiões que no longo período primário-exportador pou-
Se temos em conta que nossa economia dificilmente cas relações econômicas mantinham umas com as outras.
pode recuperar seu dinamismo apoiando-se basicamente É certo que o dinamismo do mercado interno em boa
nas relações externas, cabe indagar se não terá sido erro medida fundou-se na cooperação de empresas estrangei-
abandonar a estratégia de construção do mercado interno ras, numa época em que a disputa de capitais na área in-
como “motor de crescimento”. Não digo que esse abando- ternacional era bem menos intensa do que atualmente e
no haja sido deliberado ou mesmo consciente. Ele refletiu nosso endividamento externo, muito menor. Portanto, o
mudanças conjunturais e mesmo estruturais da economia primeiro desafio que deve enfrentar o Brasil é o de aumen-
internacional que não soubemos enfrentar com decisão e tar sua capacidade de autofinanciamento, o que requer
imaginação. Perdemos um decênio, durante o qual a ca- um maior esforço de poupança pública e privada e maior
pacidade de autogoverno de que dispunha o país se dete- disciplina e transparência no uso das divisas geradas pe-
riorou consideravelmente, reduzindo-se a eficácia dos ins- las exportações.
trumentos de política macroeconômica. Os compromissos Esforço maior de poupança e mais disciplina social so-
que estamos formalizando com os credores internacionais mente serão alcançados se se sai da recessão, vale dizer,
— sindicato de bancos e FMI — limitam ainda mais nossa se se utiliza melhor a capacidade produtiva já existente.
margem de manobra. Para isso é necessário recuperar a eficácia dos instrumen-
Os sistemas econômicos de grandes dimensões ter- tos de comando macroeconômico, saneando as finanças
ritoriais e acentuadas disparidades regionais e estruturais públicas e disciplinando os fluxos externos monetários e
— Brasil, Índia e China aparecem em primeiro plano — difi- financeiros. No Brasil a eficácia da ação do governo come-
cilmente sobreviverão se perderem a força coesiva gerada ça por sua capacidade de disciplinar as relações externas.
pela expansão do mercado interno. Nesses casos, por mais Resta saber se o terreno já perdido nessa área essencial
importante que seja a inserção internacional, esta não é su- ainda poderá ser recuperado. Ou se já é algo esdrúxulo fa-
ficiente para dinamizar o sistema econômico. Num mundo lar de sistema econômico nacional.
dominado por empresas transnacionais, esses sistemas he-
terogêneos somente sobrevivem e crescem por uma von- Este texto de Celso Furtado não pode ser reproduzido,
tade política apoiada em um projeto com raízes históricas. em todo ou em parte, em qualquer suporte, sem autoriza-
A teoria do desenvolvimento econômico dos grandes ção de Rosa Freire d’Aguiar. Todos os direitos reservados.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 67


BOLSA-FAMÍLIA
& bolsa-banco

A financeirização
do social
Lena Lavinas
Economista

68 outra rota
O modelo de crescimento ado-
tado a partir de 2004 pode-
ria ser denominado de “con-
venção pelo crescimento com consu-
mo de massa”. O ideal teria sido uma
De um lado, elementos estruturan-
tes da política social são acionados
para lastrear o aumento da demanda
agregada. O mais importante deles
foi o significativo aumento real do sa-
demanda para aquecer as vendas no
mercado doméstico veio pelo lado da
extensão dos programas de combate à
pobreza, incorporando novos segmen-
tos para além dos idosos e portadores
nova convenção sintetizada na fórmula lário-mínimo, inquestionavelmente o de deficiência (público-alvo do BPC),
“crescimento com redistribuição”, o que mais eficiente mecanismo de regula- mediante acesso a uma transferência
não ocorreu. Entre 2004 e 2010, o PIB ção social. Ele ganha estrondoso im- de renda monetária. Surge o Bolsa Fa-
voltou a crescer após duas décadas de pacto distributivo e redistributivo – o mília. Pela primeira vez na história, al-
quase estagnação, apoiado desta feita primeiro, à medida que o crescimen- gumas dezenas de milhões de pesso-
numa estratégia inédita que passa a se to leva à criação de milhões de postos as com altíssima propensão a consu-
servir da política social, através de no- de trabalho e 85% do saldo de novos mir obtêm uma renda mínima de so-
vas complementariedades, para alavan- empregos na RAIS (Relação Anual de brevivência que lhes permite integrar
car o dinamismo do mercado interno, Informações Sociais) o foram até dois o mercado.
galvanizando a demanda para fomentar salários-mínimos; o segundo, por estar Mas o valor médio mensal do Bol-
um ciclo de crescimento. O ineditismo igualmente vinculado ao piso das apo- sa Família hoje é de R$ 160 por famí-
dessa estratégia surge de uma coorde- sentadorias e pensões no Brasil e ao lia. Claro está, portanto, que apenas
nação antes desconsiderada entre ma- BPC (assistencial), por preceito cons- piso salarial revalorizado – mas ainda
croeconomia e política social. titucional. De outro lado, o estímulo à assim baixo – e benefícios sociais as-

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 69


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

sistenciais não seriam suficientes para ção). Dessa forma, o consumo passou sistência de alta heterogeneidade no
alimentar um ciclo de crescimento de a ser alavancado não com salários, mercado de trabalho.
longo prazo que colocasse a economia que incorporam ganhos de produti- Ora, dois terços do gasto social
para funcionar permanentemente em vidade, que, por sua vez, se refletem se dão com transferências monetá-
seu nível potencial máximo. Logo, era na transição ao tal ciclo virtuoso (con- rias, para resolver falhas de mercado,
necessário alavancar o consumo que sumo empurra a demanda agregada, e não com provisão de bens públicos.
carecia de lastro. A engenharia social que estimula o investimento, eleva a O investimento em infraestrutura so-
consistiu em abrir o acesso ao mer- produtividade e, na sequência, os sa- cial foi desprezado, como se não im-
cado financeiro aos grupos desprovi- lários, realimentado a demanda agre- pactasse positivamente no aumento
dos de colateral. A novidade do mo- gada novamente). do investimento privado. Isso levou a
delo dito social-desenvolvimentista foi O consumo passou a ser alavanca- uma megadistorção: o mercado uni-
ter instituído uma conexão incomum do notadamente com crédito, inclusi- versaliza via crédito – caro – o aces-
entre crédito, de um lado, e salários e ve para quem não tem colateral. En- so a celulares, geladeiras, TV em co-
benefícios, de outro, tendo como ava- quanto o salário mínimo – salário po- res etc. A posse de tais bens não di-
lista o Estado, notadamente no caso lítico – cresce quase 80% em termos ferencia mais quem é pobre de quem
dos benefícios. reais entre 2003 e 2013, o salário mé- não é. Mas ter água encanada, sane-
Antes mesmo do Programa Bol- dio cresce 35%, e o crédito individual amento adequado, acesso a saúde e
sa-Família e da adoção da regra de ao consumo aumenta em termos re- educação de qualidade e na quanti-
reajuste do mínimo, surgiram novos ais 150% apenas entre 2007 e 2014. dade ideal, moradia e segurança, isso
mecanismos de acesso ao mercado Em paralelo, os problemas estruturais sim evidencia padrões altamente de-
financeiro, e não apenas ao mercado da economia brasileira são negligen- siguais, definidos pelo nível da renda
de crédito, para os setores de baixa ciados. O maior deles ainda é a hete- familiar. Ou seja, pelo mercado. Esse é
renda. Isso se dá com a criação do rogeneidade estrutural tanto produti- o padrão norte-americano, só que eles
crédito consignado aos detentores de va como social. Dados da RAIS indi- não têm um sistema público de saúde
um emprego formal ou de um bene- cam que 84% dos empregos criados como nós, nem uma institucionalida-
fício previdenciário. À mesma época, entre 2003 e 2013 são de até dois sa- de forte da Seguridade. Têm, por ou-
regulamentou-se também o microcré- lários-mínimos, o que reflete o proble- tro lado, juros baixos e não exorbitan-
dito que, até 2010, segundo pesqui- ma estrutural da economia brasileira: tes, como aqui. Ou seja: houve uma
sa do BACEN, essencialmente finan- embora formais, ocupações remune- ligeira redução da desigualdade eco-
ciou o consumo (67% da sua aplica- radas em nível tão baixo indicam a per- nômica, medida exclusivamente pelos

os problemas estruturais
da economia brasileira são
negligenciados
70 outra rota
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o que faz o governo federal:


financia o ensino superior privado
de má qualidade
rendimentos do trabalho e benefícios, O investimento público em amplia- que 75% dos estudantes universitá-
mas a desigualdade social permane- ção e modernização da infraestrutura rios estão matriculados em institui-
ceu intocável. social e urbana, ainda que em eleva- ções privadas, a ampla maioria delas
Esse modelo subsumiu a política ção, manteve-se particularmente bai- com desempenho apenas sofrível, se-
social novamente ao tripé macroeco- xo nos anos 2000, sobretudo nas áre- gundo os rankings do INEP. Para isso,
nômico, expresso na manutenção de as de saúde e educação. Tal tipo de tomam crédito educativo, cujos juros
superávits primários expressivos, juros investimento era aquele com maior acabaram de aumentar, embora se-
elevados e câmbio apreciado, com re- probabilidade de gerar efeitos positi- jam ainda negativos. Mas o jovem de
flexos sobre o endividamento, restrição vos sobre os investimentos privados, classe média alta, que vai de univer-
de gastos e investimentos e aprofunda- em função do encadeamento para ou- sidade pública, sai da faculdade mais
mento da crise estrutural da indústria, tros setores produtivos. Por esta via, a bem formado e sem dívida. Por aca-
reproduzindo a heterogeneidade estru- estratégia de privilegiar as transferên- so, isso é estratégia de equiparação
tural social e produtiva. O superávit se cias monetárias em detrimento do in- de oportunidades?
fazia às expensas de cortes (DRU) no vestimento social na forma de serviços
orçamento da Seguridade, por exem-
plo, e em outras frentes. Perdeu-se a
oportunidade de estabelecer uma com-
plementariedade positiva entre políti-
ca econômica e política social volta-
desmercantilizados deixou de gerar mu-
danças na estrutura produtiva, assim
como efeitos sobre a formação e qua-
lificação da mão de obra e, em conse-
quência, melhoras nos indicadores de
E sse modelo ainda agravou ace-
leradamente o nível de endivida-
mento médio das famílias bra-
sileiras, que têm hoje 47% de sua ren-
da comprometida com despesas com
da para superar nossa heterogeneida- produtividade do trabalho. É aceitável o setor financeiro. Percentual esse que
de e promover a consolidação de um que se tenha uma política de inclusão certamente vai aumentar, consideran-
processo de desenvolvimento de lon- no ensino superior, sem a obrigatorie- do a elevação constante da Selic pres-
go prazo, que mirasse nos ganhos de dade de conclusão do ensino médio? sionada pela alta da inflação, e pela
produtividade e na promoção de uma Somente metade da população de 19 necessidade de manter algum spread
sociedade verdadeiramente mais iguali- anos obtém um diploma de segundo que previna a fuga de capitais. Quan-
tária. Sem contar que, com um câmbio grau. O resto vai de Pronatec? do viermos a adentrar a nova fase de
sobrevalorizado, passamos a importar E o que faz o governo federal: fi- crescimento, sem dúvida a capacida-
massivamente eletrodomésticos, sapa- nancia massivamente o ensino supe- de das famílias de puxar por ele estará
tos, vestuário, além de bens de maior rior privado de má qualidade, por meio comprometida. Não virá mais dali. Até
composição tecnológica, gerando em- de desonerações a empresas priva- porque, com o aumento do desempre-
prego lá fora, sem capacidade de rees- das, muitas delas em Bolsa, e de cré- go, a redução dos salários para man-
truturar nossa base produtiva. dito educativo. Não vamos esquecer ter o emprego ameaçado e corte de

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 71


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

os pobres arcam
com os próprios benefícios
assistenciais que recebem

benefícios sociais, como no caso do entre política econômica e política so- mo, inclusive “financeirizado”, arcam
Seguro-Desemprego, a vulnerabilida- cial. Em primeiro lugar, o governo de- com os próprios benefícios assisten-
de financeira dessas famílias só vai veria retomar o investimento público e ciais que recebem.
crescer. Não satisfeito, em meio a um elevar o gasto social na provisão de ser- Ajuste não se faz com corte de gas-
ajuste fiscal em que reduz benefícios e viços e bens públicos, o que, além de to apenas, mas também com amplia-
o salário-mínimo vai na melhor das hi- ter por efeito estimular o investimento ção das receitas, como aprendemos
póteses manter seu poder de compra, privado em várias frentes, contribuiria das estratégias adotadas nos países
o governo resolve aumentar o teto do para fomentar a coesão social, com- desenvolvidos, no pós-crise de 2008-
percentual da renda que pode ser com- partilhando valores e um certo padrão 2009. Essas nações começaram com
prometida com o crédito consignado, mais igualitário de qualidade de vida. cortes e, em seguida, passaram a bus-
desta vez incluindo cartões de crédi- Como não conseguirmos estabelecer car novas receitas, reformatando tribu-
to. Isso significa que esses 5% a mais o investimento como vetor do cresci- tos que passaram a exigir maior esfor-
(de 30% para 35%) vão permitir rolar mento a partir de 2012, a expansão ço fiscal dos mais afluentes. É também
a dívida e tomar mais crédito empres- passou a estar com seus dias conta- urgente rever a equivocada política de
tado para financiar o consumo. Mais dos e progressivamente fomos cami- isenções fiscais que compromete cer-
dívida para financiar dívidas e lastrear nhando para uma situação de aprisio- ca de 25% da receita governamental
o consumo. E a juros bem maiores, namento da política pública à política e atinge 4,5% do PIB. Essas são duas
com a introdução do cartão de crédi- econômica de curto prazo. Nesse pro- condições para recuperar a capacida-
to. Isso já vem acontecendo com os cesso, a política social é desfigurada. de financeira do Estado, pré-requisito
bancos oferecendo dinheiro em con- Em segundo lugar, o governo de- para a retomada do investimento pú-
ta para quem tem empréstimos con- veria promover uma verdadeira re- blico e aumento do gasto social na
signados. Assim, renegociam o con- forma tributária, elevando a progres- provisão de serviços e bens públicos.
trato com juros mais altos, mas pra- sividade do sistema de modo a que Finalmente, há que preservar a políti-
zos alongados, o que diminui o valor se possam resolver injustiças como ca social como mecanismo de redis-
da parcela do reembolso. É uma das o fato de aqueles mais pobres, com tribuição e promoção da justiça social.
faces da financeirização da política so- maior propensão a consumir, contri- Os direitos assegurados pela Consti-
cial. A política social está contribuindo buírem proporcionalmente mais para tuição, se respeitados, garantem tal
indiretamente para remunerar a renda a carga tributária em lugar de serem princípio.
financeira. É a lógica financeira desvir- isentos. Dados da Receita Federal nos
tuando a esfera da desmercantilização! recordam que mais de metade da car- A autora é professora do Instituto de
Neste momento, é necessário se ga tributária brasileira hoje é indireta. Economia da UFRJ
encaminhar outra complementaridade Com isso, os pobres, pelo seu consu- lenalavinas@gmail.com

72 outra rota
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 73


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

74 fora bárbaros
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

MÁrcio Scalercio
Historiador

A greve de Caronte

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 75


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A IMPRENSA, ENFIM, CHEGA AO INFERNO

76
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 77


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O ambiente sobrenatural de todas as culturas funciona A crise era inusitada e chamou a atenção de todas as
dentro de uma lógica quase euclidiana. Um dos aspectos mídias. Detalhes acerca da vida de Caronte foram averi-
fortes do sobrenatural helênico é a organização do mundo guados, vasculhados, levantados. Como o barqueiro nun-
dos mortos. Por toda a eternidade, Caronte, o barqueiro, ca escrevera sequer uma linha e não possuía perfil em re-
trabalha incansavelmente transportando as almas na tra- des sociais, nenhuma pista de sua conduta foi encontra-
vessia do rio Estígia até os portões do Inferno. Pelo que se da. O pente fino redundou em nada. As redes de noticias
sabe, o barqueiro jamais tirou férias, não tem ajudantes, internacionais entraram no circuito. Equipes de todas elas
nunca parou por causa de feriados e nem desfrutou folgas foram enviadas para a margem do rio Estígia. Muitos pedi-
nos fins de semana. Como morre gente todos os dias, a dos de entrevista foram solicitados. As redes americanas
barca de Caronte sempre faz a travessia com lotação to- ofereceram fortunas ao barqueiro. Caronte, contudo, man-
tal. Nada de burocracia, apresentação de passaporte, ne- tinha-se mudo, impassível. Vez por outra enfiava a mão nas
nhum carimbo é necessário. A única formalidade exigida profundezas de seu manto escuro e de lá sacava uma gar-
é que as almas tenham uma moeda para remunerar o ser- rafinha que parecia ser feita de cerâmica. Arrancava a rolha
viço. Inexiste qualquer informação a respeito do destino com os dentes e sorvia um traguinho. Muito se especulou
que Caronte dá a essas moedas. Não se sabe se tem con- sobre o conteúdo da garrafinha. Cientistas, especialistas
ta em banco, se aplica num fundo de pensão ou se exis- em religiões, folclore e em história helênica foram convo-
te algum cofre próximo ao embarcadouro. Ignora-se ainda cados para os estúdios dos telejornais. Já que as TVs nada

Qual a
se o barqueiro transfere algum percentual para arrancavam do barqueiro,
Hades, o deus dos Infernos. Só podemos ima- o jeito era encher linguiça
ginar que seu pé de meia é formidável.
Qual a surpresa de proporções épicas quan-
surpresa de com intelectuais e palpi-
teiros de plantão. Alguns
do recentemente, em meio a toda essa eterni- proporções diziam que a garrafinha de-
dade, Caronte, sem qualquer aviso prévio ou
explicação, suspendeu abruptamente o servi- épicas quando via estar abastecida com
o néctar dos deuses. Ou-
ço. A barca foi amarrada no cais, na margem
recentemente, tros imaginavam que se

em meio a
dos portões dos Infernos, o remo foi recolhido tratava de alguma bebe-
e Caronte quedou-se, mudo e taciturno, senta- ragem infernal.
do num banquinho. Dia após dia as almas che-
toda essa Mas sobre as razões

eternidade,
gavam à margem oposta na expectativa da tra- da atitude do barqueiro,
vessia e nada. Caronte jazia imóvel e indiferen- os doutos palpiteiros se-
te a tudo e a todos. Logo, multidões de almas
se acotovelavam na beirada do Estígia em es- Caronte, sem quer conseguiram arranhar
os motivos. Houve ainda
tado de vívida – na medida do possível em se qualquer grande disputa e aren-
tratando de mortos – preocupação. Lançavam
brados na direção do barqueiro, assobios, ten- aviso prévio ga religiosa. Os credos
monoteístas passavam
taram acertar-lhe bolinhas de papel, torpedos
ou explicação, por indizível desconfor-

suspendeu
de celular e nada. Tirando proveito da quanti- to. O episódio de Caronte
dade de almas que se acumulava, oportunistas reintroduzia o politeísmo
apareceram para estabelecer um comércio. Alu-
gavam cadeiras de praia, vendiam biscoito Glo-
abruptamente na cena religiosa. Aquilo
que havia sido rebaixado
bo, latinhas de cerveja, picolé e mate gelado. o serviço à condição de mitologia

78 fora, bárbaros
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

parecia prestes a recuperar seu caráter de reli-


gião. Um conclave monoteísta foi sugerido para
Mas sobre que, devido à urgência do caso e
com o andar acelerado da carrua-
reunir príncipes da igreja romana, rabinos, muftis as razões gem, a posição da Igreja sobre o
islâmicos, líderes protestantes e chefes de cul-
tos evangélicos. Um autêntico esforço ecumê-
da atitude tema estaria tomada num espaço
de tempo recorde de aproximada-
nico. Mas a reunião acabou não acontecendo. do barqueiro, mente 200 anos. Já várias das de-
A igreja católica fazia questão que tudo ocorres-
se nas dependências do Vaticano. Alegava que
os doutos nominações evangélicas definiram
que tudo aquilo era obra do demô-
o espaço era condizente, a culinária italiana era palpiteiros nio, do tinhoso, do pai da mentira,
superior e que o papa Francisco estava em alta sequer enfim, do velho Lúcifer. No Brasil,
nas pesquisas no mundo inteiro. Os argumen-
tos não colaram. Os patriarcas ortodoxos grego conseguiram parte da bancada parlamentar evan-
gélica decidiu sugerir ao Congresso
e russo se opuseram afirmando que não estavam arranhar os Nacional um projeto de lei impon-
nem aí para as pesquisas de popularidade, veja
bem, do “bispo de Roma”, segundo eles, nada
motivos do uma férrea censura sobre todo
o assunto. Nenhuma rede de TV,
mais do que isso, papa coisa nenhuma. Os rabinos ataca- rádio, jornal, nenhuma mídia, redes sociais ou blogueiros
ram afirmando que o encontro não podia ser em outro lu- poderiam veicular nada sobre a greve de Caronte. Tudo em
gar a não ser Jerusalém, a cidade Santa para todos e capi- nome da liberdade de expressão. Afinal os evangélicos têm
tal de Israel. Aí foi a vez dos muçulmanos protestarem. Ca- o direito e a liberdade de querer impedir aos outros qual-
pital de Israel uma pinoia, disseram eles recitando os ver- quer comportamento que entendem como impróprio. Ne-
sículos do Alcorão que se referem ao conceito de pinoia. gar isso, de acordo com eles, é negar o sagrado direito de
Preferiam que a reunião se instalasse em Meca, que fora liberdade aos evangélicos. E tudo, naturalmente isento de
da estação da peregrinação tinha espaço de sobra. Todos impostos. Os monoteístas conseguiram apenas uma una-
os cristãos fizeram cara de nojo, e os rabinos sequer se nimidade: a de considerar que todo aquele episódio era
deram ao trabalho de responder o e-mail. Entre os evan- uma ofensa a Deus. Os ateus, por seu lado, indagaram de
gélicos, o bispo Edir Macedo – também conhecido como pronto: qual Deles?
“Macedinho” – se empolgou. Ofereceu sua réplica do tem- Na primeiríssima hora, os ateus andaram divertindo-se
plo de Salomão, bem ao estilo de filme épico do Cecil B. muito com todo o episódio. Seu milenar embate contra os
De Mille, para sediar o conclave. Incluiu na oferta um car- monoteístas fazia com que sentissem uma maldosa ale-
dápio com comidinhas, bebidas e apresentações de ban- gria em face às angústias de seus velhos adversários. Po-
das e cantores Gospell de sua gravadora. Diante da última rém, alguns ateus mais lúcidos foram assaltados pela se-
possibilidade, vários líderes religiosos sentiram ânsias de guinte reflexão: caso o evento de Caronte descortinasse
vômito e engulhos estomacais. o politeísmo como um fato universal, o erro de avaliação
Correu o boato que alguns tentaram implantar o “pa- dos ateus assumiria proporções olímpicas. Melhor mes-
drão FIFA” na escolha do lugar do encontro, isto é, na sur- mo era colocar as barbas de molho e esperar o desenro-
dina, à socapa, foram oferecidas generosas doações às lar dos acontecimentos.
obras das igrejas, que os ateus, sempre atentos e abun- Mas, nas trincheiras da imprensa internacional, quem
dantes na imprensa, não tardaram a denunciar como pro- conseguiu marcar um ponto decisivo no caminho para o
pinas. Como não foi possível um acordo quanto ao lugar desvendar daquele novelo sobrenatural foi a jornalista Con-
da reunião, cada grupo religioso agiu como achou melhor. suelo Ferreira Papacostas. Invasiva, investigativa e perseve-
Os católicos resolveram organizar um Concílio. Afirmaram rante ao exaspero, a periodista espanhola de descendên-

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 79


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cia greco-portuguesa conseguiu, não se sabe


como, descobrir que Hades tinha um endereço
Zeus jamais caos que estava toman-
do conta do universo e
de e-mail. Reunindo alguma coragem, já que cogitara invadir que seu irmão não se
não era todo dia que alguém escrevia para o
deus dos infernos, Consuelo enviou para Ha-
as autonomias empenhava em solu-
cionar o caso. Zeus ja-
des uma mensagem solicitando esclarecimen- das áreas mais cogitara invadir as
tos sobre a crise provocada pela greve de Ca-
ronte. Para imensa surpresa de Consuelo, uma
administradas autonomias das áreas
administradas pelos
resposta chegou a sua caixa de mensagens pelos seus seus parentes, nota-
pouquíssimos instantes após o envio. Ao abrir,
o texto dizia o seguinte. parentes, damente, os mares e
as águas de um modo
notadamente, os geral, a cargo de Posei-
De: Hades@infernos.com
Para: ConsueloFerpapa@ain.com mares e as águas don, e os infernos, da
responsabilidade de Ha-
Após muita amolação por parte de meu mano de um modo des. Mas diante da cri-

geral, a cargo
mais velho Zeus, que gerencia o universo se, passou a desconfiar
como um todo, que me intimou a apresen- que Hades ou tratava-
tar uma manifestação pública sobre o assun-
de Poseidon, e -se de um molenga ou
sofria de miolo mole.
os infernos, da
to “Greve de Caronte” – caso contrário, raios
iriam partir-me –, declaro o seguinte: Pressionado pela
a) Caronte, o barqueiro, jamais fez parte dos
quadros funcionais dos infernos, nem de ne-
responsabilidade impaciência crescente
de Zeus e preocupado
nhuma das associações, empresas e autar- de Hade com sua reputação pe-
quias vinculadas às atividades por mim controladas e ad- rante a família, Hades, após dar alguns tratos à bola, enviou
ministradas por toda a eternidade. um e-mail para Consuelo em que revelou que se lembrava
b) Sendo assim, as atividades do barqueiro supracitado de alguém que poderia saber o que passava com Caronte.
são de sua exclusiva responsabilidade. Logo, Consuelo avistou em seu computador um pedido de
Nada tendo mais a declarar e mantendo-me aberto a ou- videochat. Ao aceitar, divisou a figura de uma sombra infer-
tros esclarecimentos necessários: nal na tela, que distraidamente colocava a mão num saco
Hades, deus dos infernos. de papel e arremessava para trás três pedaços de alguma
PS: a jornalista Papacostas está autorizada a tornar públi- coisa de cada vez, que, à primeira vista, parecia ser... bem,
co o conteúdo desta mensagem. biscoito para cachorro.
– Olá, Consuelo – disse a sombra – Enquanto conver-
A partir daí iniciou-se uma rotina de troca de e-mails samos, aproveito para dar uns snacks para o Cérbero –
entre Consuelo e Hades. Com o prolongamento da crise, e, dizendo isso, arremessou mais biscoitos, que o terrí-
Consuelo derivou de sua posição de jornalista exclusiva- vel Mastim de três cabeças, cujas respectivas bocarras
mente comprometida com a divulgação de notícias, para exibindo dentes pontiagudos os abocanharam no ar sem
um papel de responsabilidade no processo de resolução do perder nenhum.
problema. Hades, por seu lado, viu-se tomado do mesmo – Bem – continuou a sombra – Vamos direto ao ponto.
desejo, até porque era pressionado por um Zeus, a cada Creio que existe uma pessoa que seja capaz de saber as
dia mais furibundo, que resmungava sem cessar sobre o razões do comportamento de Caronte.

80 fora, bárbaros
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

– Hum – gaguejou Consuelo – Me perdoe, mas presu- me lembro melhor foi estrelada pelo Kirk Douglas. Aliás, a
mo que estou falando com o deus Hades? semelhança física é impressionante. Houve quem obser-
– Ora – respondeu o deus que achava não ter tempo vasse que Douglas era um Ulisses melhor do que o real.
para tolices – Por um acaso você conhece mais alguém que Algo parecido ao que se comentou quando Morgan Free-
tem um Mastim de três cabeças como mascote? man interpretou Nelson Mandela, que o Freeman dava um
– É que só consigo ver uma sombra, desculpe... Mandela melhor do que o Nelson, sei lá... A Silvana Man-
– Sem problemas. Os deuses nunca revelam sua ver- gano interpretou os papéis de Penélope e Circe no mes-
dadeira face para os mortais. Caso você visse como real- mo filme. A Mangano, aliás, era um pitéu.
mente sou, seria acometida de tal deslumbramento que – Oh, bem, não sei de nada disso, senhor deus dos in-
teria um colapso fatal. Sempre aparecemos assumindo fernos... acho que não sou desse tempo – comentou Con-
uma forma alegórica, mas tenho pressa e não tive tempo suelo com a delicadeza de um rinoceronte. Mas Hades
de pensar em nada, me arrumar, sabe como é... apenas respondeu:
– Ah, então alguém já sofreu o tal colapso ao vislum- – Ah, como sou eterno, lembro-me de tudo como se
brar um deus antes? fosse ontem. O caso é que o Eumeu é a única alma pena-
– Não sei dizer. da aqui nos infernos com quem Caronte mantém relações
– Então como sabe? – indagou Consuelo. amistosas. Você deve falar com ele. Eumeu celebrizou-se
– Os deuses tudo sabem. por sua fidelidade a Ulisses. Ao longo dos vinte anos que
Diante de tal resposta, Consuelo calou-se momenta- o rei de Ítaca esteve ausente participando do sítio contra
neamente, fazendo um esforço sobre-humano para não Troia e demais estrepolias e assanhamentos com Circe e
apontar a clamorosa contradição entre “não sei dizer” e, Calipso, mar Mediterrâneo afora, Eumeu manteve-se leal
logo depois, “os deuses tudo sabem.” à casa de seu amo. Tornou-se um personagem símbolo da
Hades, após um triplo rosnado de Cérbero exigindo honestidade e da retidão. Foi um dos poucos serviçais que
mais biscoitos, continuou – O porqueiro Eumeu certamen- não se degradou tornando-se puxa-saco dos pretendentes
te tem ciência das razões do comportamento de Caronte. à mão de Penélope, os quais, acreditando na morte do rei,
– Quem? mudaram-se para sua grande casa e fartaram-se abusada-
Em face ao “quem?” de Consuelo, Hades soltou um ru- mente em consumir seus bens. Ulisses como se sabe, deu
gido contrafeito que causou um
tsunami nas cercanias de Tuvalu.
segundo o deus cabo de todos eles. Deves falar com o Eumeu.
O problema foi combinar como se daria a
Ainda assim, dignou-se a dizer: dos abismos conversa. Quando Consuelo indagou se poderia
infernais, a coisa
– Vejo que a ignorância abis- ir ao inferno, ou mesmo se Eumeu teria como
funcionava como
sal da classe dos jornalistas con- se deslocar para os estúdios de TV, Hades res-
tinua em voga. O porqueiro Eu-
meu é natural da ilha de Ítaca.
no samba da pondeu que tais possibilidades estavam fora de
questão por duas razões. Em primeiro lugar por-
Por toda a vida serviu à casa de
briga na gafieira, que Caronte não estava transportando ninguém.
Odisseu, também conhecido interpretado Em segundo, por causa das normas dos infernos.
como Ulisses, o filho de Laertes,pelo Moreira da Nenhuma alma penada jamais podia sair de lá e
Silva: quem está
rei de Ítaca. É um sujeito gabola, nenhum vivo podia entrar. Nesse caso, segundo
cheio de manha e contador de
casos. Ganhou até um poema
fora não entra o deus dos abismos infernais, a coisa funciona-
va como no samba da briga na gafieira, interpre-
épico e versões cinematográfi- e quem está tado pelo Moreira da Silva: quem está fora não
cas sobre suas histórias. A que dentro não sai entra e quem está dentro não sai. O impasse foi

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 81


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Caronte
resolvido ao combinarem um chat Se esforçando para elaborar
entre Consuelo e Eumeu por meio uma frase comprida, Eumeu res-
do Skype.
levantou-se pondeu:

do banco,
No dia acordado, o Skype foi – Caronte não está gostan-
acionado, e Consuelo viu-se diante do do modo pelo qual os povos
de Eumeu. Com a tez cinzenta, típi-
ca das almas penadas, o porqueiro pegou o remo do Norte estão se referindo aos
povos do Mediterrâneo e do Sul
passava um ar simultâneo de digni- e começou em geral. Encara como se fosse

a fazer a
dade e modéstia resoluta. Mas cul- a distinção preconceituosa entre
tivava o hábito de só se expressar bárbaros e civilizados de antiga-
por meio de frases curtas, um laco-
travessia. mente. Isso sempre o deixou fu-

Nada disse,
nismo verdadeiramente espartano, rioso. Acredita ser o retorno de
não fosse ele natural de Ítaca. Con- uma velha e odiosa história, ali-
suelo teve de se desdobrar para fa-
zer a entrevista render. nada explicou. ás, introduzida pelos helenos anti-
gos. Tempos atrás ele até deixou
– Senhor Eumeu, por favor, sa-
Apenas decidiu a alma de Aristóteles esperando

retomar seu
beria dizer a razão da atitude do bar- na beira do rio por três séculos in-
queiro Caronte? teiros, irritado com o fato do filó-
– Sim – respondeu o porqueiro.
– Poderia nos explicar?
trabalho sofo ter usado seu prestígio para
propalar tal estultice.
– Sim. – Então estamos diante de uma crise que pode durar
– Hum, então? muito tempo – argumentou Consuelo preocupada.
– Caronte está aborrecido. – Não creio – respondeu Eumeu com o sossego de um
– Com o quê? porqueiro – Decerto ele vai inventar uma solução interme-
– A crise grega. diária. Mas agora chega. Fui – Imediatamente a imagem
– Podia explicar melhor? do porqueiro sumiu.
Eumeu soltou um suspiro e disse: No dia seguinte, sem sequer dignar-se a um pestane-
– Caronte não quer mais aceitar Euros como pagamen- jo, Caronte levantou-se do banco, pegou o remo e come-
to pela travessia. Está pensando em receber apenas Óbu- çou a fazer a travessia. Nada disse, nada explicou. Ape-
los de novo. nas decidiu retomar seu trabalho. Aceitou todas as moe-
– Espere um pouco – disse Consuelo sobressaltada – das como pagamento, incluindo Euros. A única diferença
Óbulos não estão em circulação faz tempo. era um aviso postado num cartaz a bordo da barca que di-
– Isso não é problema dele – atalhou Eumeu. zia em letras garrafais:
– Caronte se opõe à moeda única ou é contra a políti- NÃO ACEITO ALEMÃES A BORDO. SE QUISEREM
ca de austeridade? – indagou Consuelo, intrigada com o ATRAVESSAR, QUE NADEM OU, SEI LÁ, QUE PROCU-
fato do barqueiro estar tão antenado em economia e po- REM AS VALQUÍRIAS.
lítica internacional.
– O Caronte sempre cultivou o politicamente correto. O autor é professor do Instituto de Relações Internacio-
Preserva princípios e despreza detalhes. nais da PUC-Rio
– Como assim? Pode ser mais claro? scalercio@link.com.br

82 fora, bárbaros
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 83


84 memento
ALBA ZALUAR
Cientista social

CONFIANCA
E MEMORIA
ANTÍDOTOS CONTRA
A VIOLÊNCIA

N
a literatura internacional e na- ro-me também nas teorias da moder- jetividade, processo/estrutura são ul-
cional sobrea violência, têm nidade radical de Anthony Giddens, na trapassados, não por engenhosidade
sido ressaltados os aspectos sociedade de risco de Howard Beck e teórica, mas por mudanças substanti-
que dizem respeito à violação no filme americano recente intitulado vas na maneira de propor as intrínse-
dos direitos, ao abandono da compai- “Memento”, que traça uma busca de- cas articulações entre cada polo das
xão ou da tolerância e, sobretudo, o sesperada da memória pelo seu per- oposições. No entanto, não há acor-
emparedar da palavra que não permi- sonagem principal amnésico. do sobre de qual subjetividade se fala,
tiria a expressão e negociação linguís- As questões teóricas são múlti- como se dá o encontro entre elas, im-
tica dos conflitos entre pessoas e gru- plas e permanecem como desafio. Já plicada nas idéias da interação ou as-
pos. Neste trabalho vou explorar uma se tornou uma platitude na Sociologia sociação e sobre a função que a me-
outra vertente gerada a partir da teoria Contemporânea afirmar que a subjeti- mória e a confiança, sempre tratadas
da reciprocidade de Marcel Mauss: a vidade não pode ser omitida na inter- como partes intrínsecas das culturas
confiança, que precisa da memória que pretação sociológica. Na abordagem tradicionais, teriam na alta modernida-
só é partilhada socialmente por muitas proposta, os impasses das oposições de. As ditas sociedades tradicionais,
técnicas e rituais mnemônicos. Inspi- indivíduo/sociedade, subjetividade/ob- pré-modernas e até mesmo as moder-

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 85


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nas são caracterizadas pelas identida- permanecem como fio condutor invi- ria a “autoaplicação” e não o conheci-
des coletivas fixas e pela transmissão sível, quase nunca citado ou desloca- mento no qual todos são especialistas
oral, na qual a memória e a confiança do no tempo e no espaço. ou ninguém é especialista (pg. 20). A
interpessoal desempenhariam função Não que o desenvolvimento não mudança das coordenadas políticas
primordial. A sociedade da alta moder- controlado, não intencional e objeti- na direção do conflito seguro/insegu-
nidade ou pós-moderna são marcadas vamente inegável tenha desapareci- ro acarretaria talvez, mas ele não é in-
pelos fluxos constantes, pela plurali- do do cenário teórico da Sociologia. cisivo na assertiva, a substituição da
dade e pela reversibilidade, nos quais Howard Beck, entre outros, o recupe- racionalidade mercantil pela ambiva-
a escolha individual ocupa todo o pal- ra para construir suas ideias a respeito lência dos novos modos de agir num
co do drama social. O social torna-se da sociedade de risco, resultante do mundo em que não há mais as certe-
um enigma ou um vazio, onde a me- desenvolvimento tecnológico e cien- zas da sociedade industrial moderna
mória e a confiança mútua, elos na ca- tífico da modernidade. Mas não res- que usufruía um cerne legitimador ou
deia que une pessoas em redes, tra- ta dúvida que, na alta modernidade, de consenso socialmente reconheci-
mas ou jogos sociais de cooperação, é a subjetividade, ou melhor, a indivi- do como tal pela naturalização de seus
duação que passaria a ocupar a cena pressupostos e regras. Termina reafir-
pela ação reativa e consciente, portan- mando, como Giddens, a tese da in-
to carregada de ambiguidade, daque- dividuação que resulta da desintegra-

a noção les que sofrem as consequências des-


se desenvolvimento. Os seus efeitos
ção das certezas, da responsabilidade
maior pela biografia individual, portanto
de risco se
são primeiramente sistematicamente pelas escolhas numa pletora de pos-
diferencia da noção
produzidos sem serem questões pú- sibilidades. É o indivíduo que se tor-
de destino ou sina
porque decorre blicas ou centro de conflitos políticos. na um compulsivo rastreador de no-
dos resultados Só posteriormente é que, num movi- vas certezas para si e para os outros
inesperados da mento da autoconfrontação com tais no vazio provocado pelas necessárias
própria atividade efeitos, os riscos advindos da tecnolo- dúvidas que marcam o novo agir “pes-
humana gia escapam do controle institucional soal, experimental, vivo, aberto”. Sem
e passam para o societal, dominando perceber as armadilhas teóricas pos-
o debate público. Ainda assim, pou- tas para quem continua a colocar o in-
co é dito em seu livro sobre a neces- divíduo no centro da ação, Beck defi-
sária cooperação, confiança e rituais ne a violência, assim como as novas
mnemônicos para passar do debate à formas de nacionalismo, como con-
ação coletiva. tramodernização. Como não há cone-
Como Beck entende esse deba- xão permanente entre o subjetivo e o
te? Diferenciando reflexividade de re- objetivo, entre o individual e o social,
flexão e, portanto, da filosofia do su- a ideia do movimento processual que
jeito, Beck não consegue livrar-se de pode produzir o retrocesso da civili-
ambiguidades e inconsistências teó- zação, tal como a concebe Elias, não
ricas a respeito de que racionalidade cabe na sua interpretação de violên-
substituiria a instrumental, aquela do- cia, que vem a ocupar apenas o lugar
minante no mercado e na manipula- do vazio produzido pela indetermina-
ção individualista. A reflexividade se- ção e imprevisibilidade.

86 memento
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Giddens é muito mais um adepto (confiança com rosto, própria das so- tora de escolhas, pela liberdade indi-
das teorias da economia globalizada e ciedades tradicionais e modernas de vidual e por uma racionalidade ainda
da sociedade informacional, e não es- tecnologia média) da fé impessoal e marcada pela lógica do mercado que
conde seu comprometimento teórico abstrata colocada num sistema perito transforma tudo em possíveis merca-
com a teoria do sujeito, agente da ra- (confiança sem rosto das sociedades dorias, inclusive as armas leves de alta
cionalidade. Reflexividade para ele é de alta tecnologia). Contudo, termi- tecnologia que podem ser carregadas
conhecimento crítico fruto da herme- na seu ensaio sobre a confiança (Gid- por qualquer criança. Na alta moder-
nêutica dupla em que a Sociologia se dens, 1991: 85-114) afirmando que o nidade, em grande medida pela polí-
vale de termos e conhecimentos do re-encaixe entre tempo e espaço, en- tica exterior do governo dos Estados
senso comum ao mesmo tempo em tre confiança com rosto e confiança Unidos, o monopólio legítimo da vio-
que é apropriada ou vulgarizada pelos sem rosto é que vai permitir o que cha- lência pela Estado está fraturado pela
leigos. A noção de risco, também para ma “segurança ontológica”, ou seja, a presença dos grupos terroristas, das
ele, se diferencia da noção de desti- crença na continuidade da autoidenti- milícias clandestinas, dos grupos de
no ou sina porque decorre dos resul- dade. Sempre a identidade, marca do extermínio, dos grupos armados do
tados inesperados da própria ativida- social entre os autores anglo-saxões, crime-negócio e das empresas de se-
de humana. e de indivíduos, naturalmente. Não gurança privada. Trata-se de um retro-
Por isso, a crença (indiscutível, analisa como a confiança interpesso- cesso no processo civilizatório em que
cega) em deidades, característica das al, com rosto, se refaz nos jogos coo- as constrições externas e os autocon-
sociedades pré-modernas, seria subs- perativos e nas redes sociais que se troles internos sofrem abalos profun-
tituída na alta modernidade pela con- montam para enfrentar os efeitos per- dos, como diria Norbert Elias.
fiança impessoal ou pessoal que con- versos do conhecimento técnico não No filme “Memento”, o desmemo-
sidera as alternativas da ação huma- partilhado inteiramente. Consumido- riado protagonista, que vive no mais
na. Nesta última, porém, haveria lacu- res, viajantes e até trabalhadores reú- poderoso e moderno país do mundo,
nas no conhecimento, seja por causa nem-se cada vez mais em novos tipos inscreve no seu próprio corpo os frag-
do desencaixe tempo e espaço, seja de associações para enfrentar esses mentos de informação que julga im-
porque os sistemas peritos não são efeitos danosos da confiança sem ros- prescindíveis na sua luta pela manu-
nunca inteiramente apropriados pelos to nos sistemas peritos que implicam tenção da identidade e da própria so-
leigos. Como resultado desse desco- a abdicação da reflexividade. Só mais brevivência. Todos os outros persona-
nhecimento, ninguém, portanto, po- recentemente Beck celebra esta vol- gens que interagem com o protagonis-
deria viver sem a confiança, até certo ta a um novo associativismo. ta, mas que não têm nenhum vínculo
ponto cega, nos sistemas peritos. Tal social, portanto moral, com ele, são
situação cotidiana incontornável o au- alvo de suas suspeitas acerca do pro-

G
tor exemplifica com a entrega à equi- iddens também não consi- vável assassino de sua mulher. Frag-
pe técnica que passageiros fazem ao dera a violência na socieda- mentos de lembranças sobre o episó-
entrar na aeronave. A reflexão ou a re- de de alta modernidade, pois dio o fazem crer que um homem a vio-
flexividade nunca é completa nem ex- ela seria típica das socieda- lentou e matou, mas não há tanta cer-
clui a crença cega num conhecimen- des pré-modernas em que o mono- teza. Mesmo assim, movido pela vin-
to técnico inalcançável por leigos na pólio legítimo da violência pelo esta- gança, ele pode matar sem culpa no
atualidade. do ainda não se completou. Ou seja, circuito interminável da represália que
Por isso, Giddens separa a fé pes- não discute os riscos advindos de um dispensa a segurança e a justiça admi-
soal na probidade moral de alguém contexto social caracterizado pela ple- nistradas pelo Estado. Ele mesmo um

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

perito no setor de seguros, não confia sus e Alain Caillé o individualista ego- ses de uma modernidade inteiramen-
no perito policial que assassina violen- ísta. O que não cria laços, não confia te assumida, mas conflitiva e plena de
tamente no início da história. Não que e, pour cause, é naturalmente violento riscos para os que não conseguem sair
lhe falte a capacidade de entrar num e não tem memória. A falta de identi- do vazio das múltiplas escolhas indi-
avião, andar numa movimentada ro- dade social estável, da confiança bási- vidualizadas, para os que, precisando
dovia, obedecer a sinais de trânsito, ca e da memória que as acompanham da lealdade para não morrer traídos,
falar no telefone e fazer buscas na In- revelaram-se, para mim, facetas cons- vivem envolvidos em circuitos inter-
ternet, tudo isso sintomas do que Gi- titutivas da violência na sociedade de mináveis da vingança. Não adquirem
ddens denominou alta modernidade. alta modernidade. nem conquistam confiança de modo
Mas o filme narra exaustivamente re- A ausência de vínculos sociais e estável no processo contínuo da sua
petições de trechos de encontros, to- de identidades estáveis é também ex- renovação, que só algo exterior à sua
dos marcados simultaneamente pela pressa pelos que se envolveram em lógica pode interromper. Seu maior
desconfiança e pelo desafio à hombri- crimes violentos de diversas maneiras medo é a traição, que no código de-
dade do protagonista, esta típica de so- no Brasil, país do capitalismo tardio, les vale a pena de morte sem vacila-
ciedades tradicionais. O personagem em que se combinam desigualmente ção. Não é, portanto, apenas a dispu-
mata sem nenhum remorso mais três as modernidades, altas ou não, e as ta pelos pontos de venda que expli-
pessoas no circuito da reciprocidade tradições. Os bandidos jovens e po- ca a dinâmica desta guerra, em que
negativa. Mas, ao contrário do que bres por mim entrevistados são adep- a militarização das partes em conflito
ocorre nas sociedades pré-modernas, tos de uma ideologia moderna e indi- é consequência previsível. Imperam
ele o faz sem o testemunho, o apoio e vidualista que não se baseia, porém, decisões arbitrárias, fruto da vontade
a memória coletiva do grupo do qual nos direitos positivos da participação de uns poucos comandantes que de-
faz parte. Ele mata sozinho. democrática, mas numa confusa de- cidem quem deve morrer. O cabeça é
finição de liberdade: a ilusão quanto sempre aquele que enxerga além dos
à independência absoluta do sujeito limites postos comumente ao exercício

É
uma fábula moderna sobre o va- e de sua liberdade de agir sem restri- da imaginação e do arbítrio, em qual-
zio, a individuação e a suspeita ções está atrelada a uma concepção quer grupo social, até mesmo o com-
eterna num contexto ideacional extremamente autoritária do poder. Se posto de desviantes. A analogia com
e sentimental de racionalidade o chefe ou cabeça é concebido como um poder militar não estatal, que não
instrumental utilitária (ou econômica ou homem inteiramente autônomo e livre, é controlado por nenhum outro exte-
de mercado) aliada à vingança, ou re- esta capacidade de exercer sem res- rior a ele, é óbvia.
ciprocidade negativa, como pretexto trições a sua vontade faz-se às custas Ora, esses dados etnográficos co-
para matar. O filme, como tantos ou- da submissão dos seus seguidores locam perplexidades no uso das teo-
tros do imaginário guerreiro, constrói denominados teleguiados, uma rela- rias a respeito da alta modernidade e
o discurso ou o mito pós-moderno da ção sempre mediada pelas armas de seu processo de individualização. Igual-
licença para matar, embora se valen- fogo modernas (e pela disposição em mente na interpretação que se vale das
do do milenar circuito de trocas nega- usá-las sobre outro ser humano), bem teorias a respeito da associação base-
tivas. Atormentado pelo desespero de como pelo poder do dinheiro que o ada numa racionalidade instrumental
encontrar marcas de memória e pela chefe acumula. em que meios servem a fins, quais-
compulsão a agir antes que o outro o “Eu preciso de alguma coisa que quer que eles sejam. É preciso abor-
faça, ele encarna a fábula do que Nor- me segure”, “fiz tudo da minha cabe- dar a crise da confiança e da memória
bert Elias denominou de homo clau- ça, ninguém me influenciou” são fra- dos laços morais por outra perspecti-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

va que escape das armadilhas da ra- tariam nem a completa liberdade, pois e pós-modernas que supera ou apon-
cionalidade instrumental. na realidade seriam devidos à obriga- ta as alternativas para o pensamento
Na teoria da reciprocidade de Mar- ção de retribuir, nem desinteresse ou utilitarista que institui a prevalência do
cel Mauss, que aponta outra dimensão generosidade puros. Mas tais obriga- útil para o conjunto de práticas funcio-
do social, não redutível nem ao Merca- ções são paradoxalmente livres, como nais. O essencial no paradigma da dá-
do nem ao Estado, os três momentos afirmam os estudiosos de Mauss, já diva, segundo este e outros autores,
da reciprocidade — dar, receber e retri- que nada afirma imperativamente que é superar a dicotomia entre indivíduo
buir — formam uma unidade possibili- os bens doados (presentes materiais e sociedade pelo simples fato que ne-
tada pelo caráter total do Dom em que ou simbólicos, palavras ou ideias, cui- nhum desses dois termos se sobrepõe
liberdade e obrigação, generosidade e dados ou hospitalidades, compaixões ao outro e que eles se engendram in-
interesse estão presentes simultanea- ou solidariedades) devam ser neces- cessantemente através do conjunto
mente. As obrigações mútuas de dar, sariamente devolvidos ao doador em de inter-relações e interdependências
receber e devolver, embora se façam algum momento. A primeira pergunta que os ligam.
na forma de presentes, não represen- seria, então, o que faz as pessoas apos- Assim este terceiro paradigma fun-
tarem na dádiva, superando o cálculo dado por Mauss propõe-se a superar
econômico da escola racional instru- as armadilhas do “todo” e da “parte”
mental ou a lógica utilitarista? a partir da relevância dada à circula-

é preciso Os bens, serviços e símbolos que


circulam como dádivas são “fatos so-
ção dos bens simbólicos e materiais
entre os indivíduos e grupos sociais
abordar a crise
ciais totais”, multidimensionais e, em pois “é se fazendo uma dádiva que
da confiança e da
função do seu permanente fluxo, algo alguém pode se declarar pronto a jo-
memória dos laços
morais por outra que reúne e religa as pessoas em cír- gar o jogo da associação e da aliança
perspectiva que escape culos que envolvem às vezes o con- e que se pode solicitar a participação
das armadilhas junto da sociedade, às vezes circuitos dos outros neste jogo” (Caillé, 2000:
da racionalidade mais restritos, quase paroquiais, que 18-19). Por outro lado, como lembra
instrumental interferem e constituem diferentes ins- Maurice Godelier, no sistema da dá-
tituições, em particular quando essas diva nem tudo é dado e o bem doa-
trocas concernem às ações individu- do nem sempre é partilhado. Existem
ais (Mauss, 1999: 274). Os circuitos e bens mais preciosos que o possível do-
fluxos, em qualquer caso, ligam pes- ador prefere guardar para si, e quando
soas: “Em sociedades, mais do que decide fazer a dádiva com frequência
ideias ou regras, estamos tratando de retém a propriedade da coisa, apenas
homens, grupos e seus comportamen- repassando sua posse provisória para
tos (idem, 276).” o recebedor da ação, como acontece
Para Alain Caillé, um dos difusores com os bens mais preciosos do Kula,
do paradigma da dádiva, é justamen- elos de reciprocidade que unem os tro-
te pelo vínculo social da dádiva que a briandeses (Godelier, 1996). Bens ina-
sociedade se edifica, antes mesmo lienáveis como a honra, a reputação e
de produzir bens ou crenças (Caillé, o respeito são conquistados por pes-
2000: 9). É a continuidade do laço so- soas ou grupos, mas não entram no
cial mesmo nas sociedades modernas circuito das trocas.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No entanto, a reciprocidade não se tes envenenados da competição sim- seja uma palavra de apoio do doador
manifesta apenas na dádiva, seja ela bólica pelo poder; e finalmente se li- ao receptor, e receber o presente um
partilhada em pequenos grupos ou, gam no círculo interminável da vingan- gesto de tolerância ou aceitação, é a
como na modernidade, difundida pe- ça privada. O elo pode ter o sinal po- fidúcia entre parceiros que mantém a
los estranhos. A reciprocidade também sitivo ou negativo, na medida em que aposta na dádiva, ou seja, a expecta-
está presente nos desafios mútuos ou a vingança também faz parte do fluxo tiva num tempo que se dilata indefini-
nas vinganças que se seguem a danos interminável das trocas. Na reciproci- damente à espera de uma ocasião em
provocados por outrem contra a pes- dade negativa, um dolo ou um dano que o receptor esteja pronto a retribuir.
soa ou alguém do seu grupo. As pes- deve ser respondido com outro, infli- É a confiança ou o crédito prolonga-
soas se ligam positivamente em dádi- gido em quem o causou. Nela a me- dos, portanto, que eliminam a possi-
vas partilhadas, mas também se ligam mória do ato destruidor é importan- bilidade de que se instaure a inimiza-
na tensão das trocas agonísticas ou do te e atinge não só o indivíduo, mas o de e a guerra.
desafio que tem resposta nos presen- seu grupo também, que pode tomar
a si a obrigação de retribui-lo na mes-

P
ma moeda. “Olho por olho, dente por ara Caillé, a confiança é justa-
dente” é uma das expressões cultu- mente o termo mediador para
rais disso. Fica explícito que este in- explicar por que homens per-
divíduo e seu grupo passaram à cate- manecem juntos, seja o mó-
É no processo goria de inimigo no código da guerra.
Portanto, a pergunta cabível, no caso
vel do seu desejo o medo, o interes-
se, a sociabilidade ou a lei. Ela só apa-
de sua conquista
no outro que a das vinganças e desafios violentos, é rece como parâmetro importante na
confiança torna-se o que interrompe o seu circuito que construção da interação quando essa
antídoto à traição, tende a se eternizar com base na me- interação deixa de ser determinada
à mentira e à mória do dano aliada à desconfiança do seu exterior, como no holismo te-
violência que delas posta no outro que se torna o inimigo órico, abrindo lugar para a indetermi-
podem advir
a abater. O que garante que o circuito nação e a imprevisibilidade. É no pro-
será de dádivas e não de danos infli- cesso de sua conquista no outro que
gidos em represália a danos anterio- a confiança torna-se antídoto à traição,
res? Responder a essa pergunta é ter à mentira e à violência que delas po-
o mapa de suas divisões e conflitos, dem advir. No utilitarismo, que ignora
mas também do modo pelo qual as os laços morais entre as pessoas, to-
pessoas lidam com eles. ma-se apenas a escolha racional do in-
Nas redes da reciprocidade parti- divíduo isolado sem considerar as es-
lhada, valem a memória e a confian- colhas dos outros, com os quais este
ça articulados entre si. É a confiança indivíduo deveria e poderia estar em
que, em última análise, garante o cir- comunicação, mas com os quais tem
cuito da reciprocidade positiva e afas- apenas posturas de indiferença ou ex-
ta o fantasma da guerra ou do conflito terioridade. No dilema do prisioneiro,
destruidor e letal, mesmo que espo- os dois que traem para diminuir cada
rádico. Como não há garantia de que um sua pena, num jogo de soma zero,
as dádivas serão retribuídas, ainda que acabam por aumentá-las em muito no

90 memento
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

final. Todos perdem. A solução moral mútua, a capacidade de dialogar com Mas isso não nega a possibilidade de
do altruísta, que se comunica com o o outro e colocar-se no seu lugar para que suas artimanhas venham a ser
outro para compreender suas razões compreendê-lo na sua diferença. descobertas mais cedo ou mais tarde.
e interesses, anula a infidelidade e res- No dilema do prisioneiro, em que “A mentira tem perna curta”, isto é, a
taura ou instaura a confiança num jogo o cálculo econômico induz à traição, mentira não dura muito tempo, ditado
em que todos ganham. os indivíduos estão isolados, numa popular brasileiro, é uma manifestação
Dela resultam, no entanto, associa- independência tão completa e defini- da sabedoria popular que articula con-
ções múltiplas, que não podem ser re- tiva que os atomiza e os desliga uns fiança e memória com o grupo como
duzidas à sociabilidade, ou seja, aquela dos outros, tal como acontece com testemunha.
forma de sociação efêmera dos encon- os jovens que entrevistei em Cidade Jean Michel Servet finalmente faz a
tros que não têm nenhuma finalidade de Deus, tomados pela desconfiança articulação entre confiança e memória.
prática que não seja a do próprio en- de seus inimigos e até mesmo dos No seu constructo teórico, a confian-
contro. Na “conversa jogada fora” ou parceiros. Também os prisioneiros ça tem três elementos. Primeiro, a fé,
“conversa de botequim”, expressão não se comunicam, nem têm memó- porque está associada ao crédito e à
cultural desses encontros nos bares ria a não ser a do dolo causado. Por credibilidade, termos que remetem à
e botecos do Rio de Janeiro, o único isso, traem e matam. Fora deste jogo crença. Segundo, a palavra dada, que
interesse é a própria interação, na qual de soma zero em que se um ganha o demonstra a vinculação entre confi-
a comunicação, que nem sempre evi- outro perde, não há como negar que dência e confiança, sempre garantida
ta assuntos polêmicos, não pretende exista interesse simbólico e prático em pelo grupo ou pelos terceiros que tes-
resolver nenhuma das grandes ques- não trair: não ser traído em retorno e temunham a promessa a ser cumpri-
tões internacionais, nacionais, locais adquirir a imagem estável de pessoa da. Por fim, a memória, porque ela é
ou pessoais pendentes. Nas formas moralmente confiável porque genero- reativada a cada experiência ou inte-
mais duradouras de associação, Ber- sa e cumpridora da palavra dada. Este ração nova em que as marcas são re-
nard Eme, um defensor da economia é um jogo em que os parceiros se co- gistradas para não caírem no olvido .
solidária e da democracia radical, dis- municam, memorizam o que cada um O esquecimento é, de fato, um
tingue a instrumental, a finalista e a diz e faz, e em que ambos podem vir rompimento com esse pacto nunca ex-
econômica da associação sócio-po- a usufruir ganhos práticos e simbóli- plicitado do circuito de trocas. Como
lítica em que laços sociais se firmam cos se agirem sem pensar neles ime- não está baseada num conhecimento
entre indivíduos (2001 e 2004). Ainda diatamente, mas sobretudo na credi- total, que a tornaria inútil, a confiança
assim, nesta última, o autor distingue bilidade que irão construir a partir de precisa dos mecanismos da memó-
entre aquela baseada na lógica do dom, suas ações recíprocas. ria individual e coletiva para se esta-
em que vínculos estáveis de confiança É claro que a confiança, que se dis- belecer. Há processos institucionais
e respeito mútuos estão presentes, e tingue da reputação meramente técni- ou não de formação dessa memória
a advinda da imposição de restrições ca ou da aceitação automática de um individual e coletiva na qual ganha-se
normativas referentes à integração so- especialista e seus instrumentos, pode ou perde-se o bem simbólico da con-
cial, ou seja, partida do Estado. Mais ser usada no quadro do interesse ma- fiança. Pois ela não é nem bem eco-
uma vez, é na lógica do dom que o nipulativo ou estratégico. Também o nômico no mercado nem bem garan-
caráter pessoal e moral dos elos pes- manipulador egoísta tem interesse em tido pelo Estado: não se compra, não
soais e de confiança se faz presente. inspirar ou ganhar a confiança de seus se vende, não se aliena, não se herda.
E um novo elemento surge como par- adeptos, como acontece nos campos É vinculado à pessoa ou a um grupo
te desse quebra-cabeça: a tolerância político e religioso do Brasil de hoje. específico, que a conquistam paulati-

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namente, renovando-a a cada passo. entre a sociedade e o Estado na alta * Escrevi este texto em 2011, quatro
Nela podem se articular a confiança sem modernidade, o atual jogo político no anos atrás. Não poderia prever que se
rosto dos peritos e a confiança com Brasil revela toda a sua pequenez, re- tornaria tão oportuno para se entender
rosto dos que interagem entre si. As- ducionismo e ineficácia. Tanto a fazer o que se passa na crise política do Bra-
sim, a pessoa ou o grupo de pessoas para conquistar a confiança dos elei- sil de hoje, agosto de 2015.
passam a ser vistos como quem tem tores e dos contribuintes no Executi-
iniciativa, autonomia e generosidade vo e no Legislativo que pressupõem A autora é professora de sociologia
em padrões suficientes para afastar a de alguma forma a sua participação, (antropologia) do Instituto de Estudos
possibilidade da traição, da mentira e infelizmente ainda muito adscrita às Sociais e Políticos (IESP-UERJ)
da manipulação. É precisamente isso eleições! azaluar@iesp.uerj.br
que garante o sinal positivo do circui-
to da dádiva e afasta dela a violência.
E é precisamente isso que permite a
bibliografia
associação para agir coletivamente,
saída para os impasses da socieda- BECK, Ulrich. “A reinvenção da política: rumo a EME, Bernard. 2001 “Les associations ou les
de pós-industrial ou de alta moderni- uma teoria da modernização reflexiva”, em Gi- touments de l’ambivalence”, em Laville, Caillé,
ddens, Beck & Lash (ed.) Modernização Refle- Chanial, Dacheux, Eme & Latouche (ed.) Asso-
dade, inclusive e principalmente o da xiva, UNESP, São Paulo, 1995. ciation, Démocratie et Societé Civile, Paris: La
segurança pública que afasta ou con- Découverte.
CAILLÉ, Alain. Anthropologie du don: le tiers
tém os predadores causadores de da- paradigme, Desclée de Brouwer, Paris, 2000. ____________. 2004 Entrevista acessível
nos às pessoas comuns. em: http://www.cerclegramsci.org/archives/
GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Mo- eme.htm
Diante desse quadro complexo dernidade, UNESP, 1991.
de objetividades e subjetividades, do SERVET, Jean Michel. “Paroles donnés: le lien
GODELIER, Maurice. L’Enigme du don, Ed. de confiance”, em Rechercher, La Revue du
material e do simbólico, das relações Fayard, Paris, 1996. M.A.U.S.S., no. 4, 1994.

92 memento
Foto: Jairo Goldflus

U M V E ST I DO NÃO PODE C USTA R U M A I N FÂ NC I A .

Saiba quais empresas são livres de trabalho infantil em fundabrinq.org.br


DISTRIBUIÇÃO DE

RENDA
no Brasil:
meio século de
desigualdade
(1960-2012)

94 em círculos
Fernando
Augusto Mansor
de MattoS
Economista

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 95


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A
trajetória do perfil distributivo brasileiro, colo- O gráfico mostra nitidamente três diferentes padrões
cada em perspectiva histórica, pode ser ilus- de comportamento da combinação entre desigualdade de
trada pelo gráfico 1, que apresenta, na mes- renda e desenvolvimento econômico na trajetória da eco-
ma planilha, a evolução do índice de Gini e nomia brasileira desde meados do século XX até o início
a da renda per capita desde 1960, a partir de quando há dos anos 2000.
informações disponíveis para o Gini, medida da desigual- Um primeiro padrão (parte (1) assinalada no gráfico)
dade brasileira adotada neste gráfico1. A renda per capita é delimitado pelo primeiro ano da série (1960) e o ano de
representa uma medida do grau de desenvolvimento eco- 1980, o último de crescimento expressivo do PIB real2 na
nômico do país. história brasileira (9,2%). Na parte (1) do gráfico, percebe-
Através da análise conjunta dos dois indicadores, po- -se, nitidamente, um significativo crescimento do PIB per
de-se ter uma retrospectiva de como se comportou a de- capita (notadamente a partir de 1967, ano em que se inicia
sigualdade brasileira à medida que se processava o desen- o chamado “milagre” brasileiro), ao lado de uma importan-
volvimento econômico nacional. te ampliação da desigualdade de renda medida pelo Índi-
ce de Gini (somente em parte revertida nos últimos anos
desse período). Nesse intervalo de 20 anos, ocorreram im-
portante modificações tanto na estrutura produtiva como
também na estrutura ocupacional, pois o processo de in-
dustrialização então em curso, que permitiu que a renda
real per capita no período crescesse a cerca de 4,6% ao
ano3, em média, foi acompanhado de formalização do mer-
cado de trabalho, medida pela ampliação do peso relati-
vo do assalariamento com carteira assinada no conjunto
dos ocupados (Pochmann, 1999). Foi nesse período tam-
bém que o Brasil tornou-se predominantemente urbano,
passando de um índice de 45% da população vivendo nas
cidades, em 1960, para 56%, em 1970, e 68%, em 1980.
O ritmo de criação de postos de trabalho na Indústria de
Transformação cresceu a uma taxa média anual de cerca
de 5,3%, o que favoreceu o acima mencionado processo
de formalização do mercado de trabalho, pois nas ativida-
des industriais a contratação com carteira assinada tem
um peso maior do que em qualquer outra das atividades
produtivas. A despeito da ampliação da desigualdade, o
período 1960-1980 mostrou significativa mobilidade inter-
geracional, na esteira do processo de industrialização, que
permitiu melhoria das condições sociais médias das famí-
lias brasileiras. Sem embargo, os dados inequivocamente
revelam que a repartição dos frutos do desenvolvimento
foi extremamente desigual, e para este resultado teve pa-
pel decisivo o contexto político e econômico do governo
civil-militar instalado no golpe de primeiro de abril de 1964.

96 em círculos
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A melhoria ocorrida no perfil distributivo no fim dos anos herança marcada por crescimento econômico pífio, acom-
1970 foi não apenas modesta (a desigualdade no fim dos panhada de desestruturação do mercado de trabalho (au-
anos 1970 ainda era bem maior do que no início dos anos mento da informalidade e queda real dos rendimentos do
1960), como também inconsistente e efêmera4, conforme trabalho em vários momentos do período). Interrompia-se,
se percebe ao analisar os dados dos anos 19805. também, o processo de mobilidade social que havia mar-
Um segundo padrão é delimitado pelos anos 1980 e cado a sociedade brasileira nos anos da industrialização e
2003, quando o PIB per capita real cresce muito modesta- do chamado nacional-desenvolvimentismo.
mente, a cerca de apenas 0,25% ao ano, em média, ten- Nos anos 1990, o crescimento médio anual do PIB se-
do apontado uma trajetória descendente tanto no início ria ainda menor do que na década imediatamente anterior,
dos anos 1980 quanto no início dos anos 1990, ambos com o agravante de que o emprego industrial caiu verti-
marcados por recessões econômicas. No período assina- ginosamente, tanto durante a recessão do início da déca-
lado como parte (2) do gráfico 1, a desigualdade oscilou da quanto ao longo da mesma, com a aplicação da polí-
em torno de um patamar bastante elevado, mostrando si- tica econômica pós-implementação do Plano Real (1994)
nais de modesto declínio somente no fim do período (ou (Baltar, 2003).
seja, já no início do século XXI). Este período foi permeado A tão almejada estabilização de preços foi viabilizada
pela democratização do país, que infelizmente coincidiu, pela mudança dos fluxos financeiros internacionais, permi-
no tempo, com a crise da dívida externa deflagrada no iní- tindo ao Brasil e a diversos outros países ancorar sua moe-
cio dos anos 1980, a qual legou, para toda a década, uma da no dólar, estabilizando os preços internos. Não obstan-

gráfico 1

trajetória do perfil distributivo brasileiro

350 135
(1) (2) (3)
325 130
300
125
275
120
250
PIB PER CAPITA

ÍNDICE DE GINI

225 115

200 110

175
105
150
100
125
95
100

75 90
1964
1965

1988
1989

2004
2005
1960
1961
1962
1963

1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987

1990
1991
1992

1994
1995
1993

1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003

2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013

PIB PER CAPITA % (1960=100) ÍNDICE DE GINI % (1960=100)

Fonte: Microdados da PNAD (IBGE); Censos e Langoni (1973). Elaboração própria, com base em Pochmann (2012).

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 97


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

te, no caso brasileiro, esse período de trégua da escalada de serviços pessoais e outras atividades que não sofriam
dos preços não foi acompanhado de medidas que viabili- a concorrência de produto/serviços importados consegui-
zassem a criação de um novo padrão de acumulação ten- ram obter (pelo menos enquanto durou o período de reto-
do a atividade industrial como o centro do processo de mada do crescimento da economia brasileira pós-estabili-
desenvolvimento. Ademais, o Plano Real não continha, na zação de 1994, ou seja, até meados de 1997) um aumen-
sua formulação, mecanismos explícitos de distribuição de to de remuneração um pouco maior do que ocorreu com
renda, e o arco de alianças políticas que o sustentou não os salários dos setores mais organizados da economia,
revelou compromisso com melhoria do perfil distributivo. como o setor industrial, por exemplo, que passou a sofrer
Conforme se verifica no gráfico 1, o período pós-esta- os efeitos da concorrência de produtos importados a câm-
bilização ocorrida em 1994 mostrou apenas uma modes- bio baixo, o que acabou debilitando o poder de barganha
ta redução da desigualdade, embora este não tenha sido dos seus empregados, ainda mais porque também tive-
sequer um dos objetivos do Plano Real. Mattos e Cardo- ram que passar a discutir reajustes salariais sob o impac-
so (1999) apontaram que esta efêmera e modesta melho- to da livre negociação implementada após a estabilização.
ria do perfil distributivo pós-Plano Real deveu-se à valoriza- Sendo assim, já que a base do mercado de trabalho pos-
ção cambial que ocorreu logo após o lançamento da nova sui elevada participação de trabalhadores nos setores de
moeda e também aos efeitos – não previstos – dessa mu- serviços, um aumento de sua renda acima da média dos
dança de preços relativos na economia sobre o mercado reajustes salariais acabaria por reduzir a desigualdade de
de trabalho, o qual tem uma peculiaridade: uma elevada rendimentos do trabalho, pelo menos enquanto a econo-
presença, em sua base ocupacional, de trabalhadores de mia se manteve aquecida. Essa redução da desigualdade
setores de serviços e de comércio de setores não organi- somente não foi mais expressiva porque não houve uma re-
zados (informais) da economia. A valorização cambial e a cuperação significativa do salário-mínimo – e também por-
recuperação da atividade econômica ocorrida logo após a que a retomada da atividade econômica não foi duradoura.
estabilização da inflação acabariam por favorecer a renda Desta forma, a pequena e pouco duradoura melhoria
do trabalho dos vendedores de serviços e dos profissionais do perfil distributivo, indicada pela queda do índice de Gini
autônomos, mas este efeito durou apenas durante o curto entre 1995 e 1998, deveu-se a circunstâncias fortuitas re-
período de retomada econômica pós-estabilização. Mattos lacionadas à excessiva valorização cambial e ao fato de o
e Cardoso (1999) mostram que os ocupados dos setores mercado de trabalho ser desestruturado.

98 em círculos
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Esta mudança de preços relativos representou portan- prego, um aspecto central da desestruturação ocorrida no
to a principal explicação para a melhoria do perfil distribu- mercado de trabalho. Estes fatores foram determinantes
tivo nos 3 anos seguintes à implementação da nova moe- para a manutenção de uma elevada desigualdade na últi-
da. Este fenômeno se desvaneceu rapidamente, à medida ma década do século XX (Dedecca, 2003).

F
que a economia perdia dinamismo e que o desemprego
aumentava, diante das contradições de uma política eco- inalmente, um terceiro padrão pode ser per-
nômica que se baseou no binômio juros altos-câmbio va- cebido a partir de 2003, quando se conjugam
lorizado e que – também importante destacar – não criou uma trajetória ascendente do PIB real per ca-
mecanismos explícitos de formatação de políticas públicas pita de cerca de 2,4% entre 2003 e 2013 (bem
dedicadas à redução das desigualdades sociais e econô- menor do que a que vigorou nos anos da industrialização
micas existentes no país. sob o nacional-desenvolvimentismo, porém, também dife-
Deve-se assinalar, também, que a significativa expansão rente – e maior – do que a do período marcado pela parte
da população urbana no período assinalado com o número (2) no gráfico 1) e uma trajetória de redução da desigualda-
(2) no gráfico (crescimento de cerca de 2,6% ao ano, em de da renda do trabalho (o Gini caiu pouco mais que 10%
média, entre 1980 e 2000), em contexto de desaceleração entre 2003 e 2013). Esta redução da desigualdade, porém,
da atividade econômica e de desindustrialização6, promo- foi suficiente somente para recolocá-la em patamar seme-
veu novos movimentos de desestruturação dos mercados lhante à que vigorava antes do golpe civil-militar de 1964.
de trabalho urbanos7, ao mesmo tempo em que, nas ati- Existe uma ampla literatura que se debruça na investi-
vidades agrícolas, dada a falta da reforma agrária, por um gação sobre as causas e a dimensão desta queda de desi-
lado, e a expansão de diversos segmentos do agronegócio, gualdade9, que tem sido analisada sob diversos pontos de
de outro, ocorreu ampliação das diferenças intra e interse- vista. A forma mais habitual de interpretá-la ainda é a que
toriais de produtividade, com queda, em números absolu- leva em consideração a desigualdade pessoal da renda,
tos, do total de ocupados no setor rural (Belik et alli, 2003). tomando-se como fonte de informação a renda declarada
No referido período não ocorreu uma piora do perfil dis- nas pesquisas domiciliares, como as PNADs e os Censos,
tributivo8, comprando-se exclusivamente os anos extremos por exemplo. Nestes casos, os rendimentos têm como ori-
da década, mas a estabilização da desigualdade em pata- gem, principalmente, a renda do trabalho e aqueles prove-
mares muito altos, em contexto de um modesto cresci- nientes de transferências definidas pelas políticas públicas.
mento da renda per capita, promoveu piora das condições O que se verifica, na área delimitada pela parte (3) do
sociais ao longo do período. O baixo crescimento econô- gráfico 1, é que de fato houve redução da desigualdade
mico da década de 1990 resultou em aumento do desem- pessoal da renda no período em questão. Existe razoável

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 99


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

consenso de que a redução recente da desigualdade foi pacto positivo nestas duas vertentes (mercado de traba-
determinada por fatores pertinentes à dinâmica do funcio- lho10 e transferência de renda via políticas públicas, cujos
namento do mercado de trabalho (retomada de um proces- valores estão ancorados no salário-mínimo). O que se de-
so de formalização do trabalho, com ampliação do peso do bate, no momento atual, é qual o peso explicativo de cada
emprego com carteira no conjunto da ocupação; redução um desses dois aspectos. Além disso, também tem ha-
do desemprego; desaceleração do número de entrantes no vido uma ampliação do escopo da interpretação da desi-
mercado de trabalho, tanto por motivos econômicos quan- gualdade, procurando compreender as várias formas de
to também por razões demográficas) e também por ele- sua manifestação, conforme será mencionado nas con-
mentos relacionados às transferências de renda ocorridas clusões deste artigo.
para as classes populares, na forma de programas como Antes disso, vale interpretar os dois próximos gráficos,
o Bolsa Família e outras formas de transferência, como através dos quais a análise da evolução histórica do valor
principalmente os relacionados ao sistema previdenciário. real do salário-mínimo pode fornecer mais informações a
A ampliação do valor real do salário-mínimo teve im- respeito da evolução da desigualdade brasileira nas últi-
mas décadas.
O gráfico 2 apresenta a evolução do valor real do salá-
rio-mínimo desde sua implementação até o ano de 201311.
Os dados revelam significativas alterações ao longo do pe-
ríodo, tendo atingido seus maiores valores nos tempos do
chamado nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950 e
seu valor mais baixo no fim do governo Dutra. Registraram-
-se também quedas importantes logo no início do gover-
no civil-militar instalado em 1964 e, anos depois, durante o
momento mais agudo da aceleração inflacionária, que cor-
respondeu aos anos 1980 e à primeira metade dos anos
1990. Por fim, percebe-se uma lenta recuperação a partir
da segunda metade dos anos 1990 e uma ascensão mais
significativa a partir de 2005/2006.
Uma breve descrição da história de implementação do
salário-mínimo e das políticas que o definiram permite com-
preender a trajetória descrita no gráfico 2.
O salário-mínimo foi instituído no Brasil no fim dos anos
1930, mas foi a partir de um Decreto-Lei (no. 2162) assina-
do por Getúlio Vargas, em Primeiro de Maio de 1940, que
ele passou de fato a vigorar12. O salário-mínimo recebeu
seu primeiro reajuste em julho de 1943 e o segundo em
dezembro daquele mesmo ano. Depois disso, somente
em dezembro de 1951, já sob a presidência, novamente,
de Getúlio, o salário-mínimo seria novamente reajustado,
passando seu novo valor a vigorar a partir de 1952 (Singer,
1986). Depois disso, ocorreu o polêmico reajuste de maio
de 1954, em 100% de seu valor nominal, que havia sido

100 em círculos
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

precedido de grave crise política que levaria à demissão depois, ao de Juscelino Kubitschek, houve uma política de
do então ministro do Trabalho, João Goulart, em fevereiro sistemáticos reajustes dos valores reais do salário-mínimo,
daquele mesmo ano13. em momento em que a economia vivenciava um impor-

O
tante crescimento do PIB e do PIB per capita, em contex-
governo Dutra não promoveu qualquer re- to da instalação da industrialização pesada no Brasil. Veri-
ajuste no salário-mínimo. Ao fim da déca- fica-se uma evolução positiva expressiva no valor real do
da de 1940, portanto, dado que a inflação salário-mínimo no período, sendo que, em 1959, ele atin-
acumulada no período foi alta, notadamen- giu aquele que é, até hoje, o seu maior valor histórico des-
te por causa do período da II Guerra, o valor real do salá- de sua implementação14.
rio-mínimo havia caído vertiginosamente, apesar de ter A partir dali, seguiu-se um período de acentuada re-
tido um aumento real importante em 1943 (no caso, ainda tração de seu valor real, nos primeiros anos da década de
sob a primeira presidência de Getúlio Vargas). Na sua im- 1960, por motivos diferentes. Entre 1960 e 1964, a econo-
plementação, o salário-mínimo tinha valor real semelhan- mia passou por um período de estagnação e a crise política
te ao salário médio na indústria de transformação (Souen, que assolou a sociedade brasileira também veio acompa-
2013). Ao fim da década, porém, “o salário médio indus- nhada de um aumento dos níveis de inflação, o que provo-
trial já equivalia a 2,4 salários-mínimos” (Souen, 2013, ci- cou perda do poder de compra dos salários, mesmo tendo
tando Baltar e Dedecca, 1992). o governo Goulart implementado três reajustes nominais
Nos anos 1950, dada a natureza das coalizões políticas no valor do salário-mínimo15. Entre 1964 e 1967, houve ex-
que deram sustentação ao segundo Governo de Vargas e, pressiva redução do valor real do salário-mínimo, no con-

gráfico 2

salário-mínimo real médio anual em r$

1200

1000

800

600

400

200

0
1991
1994
1940
1943
1946
1949
1952
1955
1958
1961
1964
1967
1970
1973
1976
1979
1982
1985
1988

1997
2000
2003
2006
2009
2012

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 101


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

texto da política salarial adotada pelo plano gradualista de toda a série histórica (apenas em 1948, 1949, 1950 e 1951
combate à inflação do primeiro governo do movimento ci- o valor médio anual foi menor do que o de 1994). A partir
vil-militar golpista instalado em abril de 196416. Ainda nos da introdução do Plano Real, porém, o poder de compra do
últimos três anos da década de 1960, embora a economia mínimo voltou a recuperar-se, crescendo cerca de 3,8% em
já estivesse se recuperando, o valor real do salário-mínimo termos reais ao ano, em média, entre 1995 e 2002, e cerca
sofreu nova queda, adentrando os anos 1970 com um va- de 5,3% ao ano, em média, entre 2003 e 2012.

U
lor real cerca de 15% menor do que tinha quando fora cria-
do e cerca de metade do que foi o seu valor real mais alto, ma avaliação mais conclusiva a respeito da
registrado em 1959 (e cerca de 45% menor, por exemplo, evolução do valor real do salário-mínimo
em comparação com o valor vigente em agosto de 1954, em perspectiva histórica, porém, pode ser
quando Vargas se suicidou). feita quando analisada de forma conjunta
Ao longo dos anos 1970, o valor real do salário-mínimo com a trajetória da renda per capita em cada período. Des-
manteve-se estável (gráfico 2), apesar do intenso cresci- ta forma, pode-se perceber de forma mais clara os limites
mento econômico e do PIB per capita no período. O seu e os condicionantes do comportamento do poder de com-
valor real, porém, tornaria a perceber importante redução pra do salário-mínimo, em cada contexto, bem como seus
a partir do momento que a economia brasileira começou efeitos sobre o perfil distributivo.
a sofrer os efeitos da crise da dívida externa, no início dos Assim, o gráfico 3 demonstra de forma mais elucidati-
anos 1980. Nos anos 1990, seu valor real tornava a cair, atin- va os movimentos do salário-mínimo e permite uma ava-
gindo em 1994 um de seus valores reais mais baixos de liação relativa (e não mais absoluta, como no gráfico 2) de

gráfico 3

Salário-Mínimo Real / PIB per capita (%)

20%
18%
16%
14%
12%
10%
8%
6%
4%
2%
0%
1940
1943
1946
1949
1952
1955
1958
1961
1964
1967
1970
1973
1976
1979
1982
1985
1988
1991
1994
1997
2000
2003
2006
2009
2012

102 em círculos
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

sua evolução. A trajetória do indicador exposto no gráfico


3 (salário-mínimo/renda per capita17) permite aquilatar, de
forma mais precisa, o potencial da evolução do salário-mí-
nimo a cada momento histórico, dada a evolução do nível
de renda e da produtividade média da economia em cada
período. Pode-se perceber, por exemplo, que a estabilida-
de expressa em seu valor real ao longo dos anos 1970, que
foi revelada no gráfico 2, na verdade escondia uma situa-
ção de ampliação da desigualdade de renda (e, de certa
forma, de aumento da pobreza relativa para parcelas ex-
pressivas da população18) dentro da sociedade brasileira
(conforme a evolução do índice de Gini, expressa no gráfi-
co 1, já havia sugerido), pois, a despeito de o valor real do
salário-mínimo de fato ter permanecido praticamente no
mesmo patamar comparando-se o primeiro e o último ano
da década de 1970 (gráfico 2), ele se mostrava cada vez
mais distante da renda per capita brasileira (gráfico 3), em
momento em que a economia crescia significativamente
e em que o padrão de consumo se diversificava.
O expressivo crescimento econômico e a diversifica-
ção do padrão de consumo aumentavam a percepção das
necessidades de consumo diante de uma cesta básica de
bens e serviços que se ampliava à medida que o país se
desenvolvia, conforme salientou Singer (1986). Fica claro
que, em princípio, havia mais amplas possibilidades eco-
nômicas de uma recuperação do valor real do salário-mí- bém entre o fim dos anos 1960 e o fim dos anos 1970),
nimo, nos anos 1970, do que em outras épocas, e, se isso poderíamos afirmar sem receio que, do ponto de vista da
não ocorreu, foi pelos motivos políticos sobejamente co- evolução do perfil distributivo, a “década perdida” foi a de
nhecidos. Ao longo dos anos 1980, em contexto de perda 1970, pois, ali, em termos econômicos, estavam dadas
de dinamismo econômico, queda dos rendimentos reais as condições concretas para que o salário-mínimo tivesse
médios e aumento da informalidade, entre outras maze- uma forte recuperação de seu valor real, mas o contexto
las que atingiram o mundo do trabalho, a distância entre político definido pelo arco de alianças de classes que par-
o salário-mínimo e a renda per capita brasileira continuou ticiparam do golpe civil-militar de 1964 optou deliberada-
a aumentar (gráfico 3) e este distanciamento só não foi mente pela retenção do valor real do salário-mínimo, mol-
mais expressivo porque a renda per capita cresceu pouco dando um padrão de acumulação capitalista ancorado em
naquele período. uma crescente desigualdade econômica e exclusão social.
Desta forma, registre-se que, se, por um lado, a litera- Nos anos 1990, percebe-se que a relação salário-míni-
tura econômica batizou os anos 1980 como “a década per- mo/renda per capita manteve-se estável, revelando que o
dida”, devido aos lamentáveis índices de crescimento do Plano Real e a política econômica que a ele se seguiu não
PIB (ainda mais quando comparados aos que haviam vi- tinham uma preocupação explícita com a melhoria do per-
gorado desde, pelo menos, meados dos anos 1950 e tam- fil distributivo brasileiro.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 103


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A partir de 2003, porém, e especialmente de 2005 em A análise histórica apresentada neste artigo revela que
diante, a relação salário-mínimo/renda per capita começou o crescimento econômico (medido pelo PIB real ou, ainda
a subir, mas esta trajetória ascensional não foi tão expres- mais adequadamente, pelo PIB real per capita) é condição
siva quanto parecia denotar a trajetória do salário-mínimo necessária para a recuperação do salário-mínimo. Muitos
real tomado isoladamente no gráfico 2, no mesmo perío- outros fatores econômicos e, principalmente, políticos tam-
do. Isso leva a uma instigante questão acerca da real di- bém são intervenientes na determinação da trajetória do
mensão da melhoria do perfil distributivo dos anos mais valor real do salário-mínimo. Ademais, em um país como
recentes. Esta mudança positiva, em termos distributivos, o Brasil, em que a informalidade no mercado de trabalho
é consensual, mas ainda precisa e merece ser mais bem ainda é grande e em que já existe um razoável arcabouço
aquilatada, em seus diversos aspectos, e interpretada em institucional sob o qual se baseia a elaboração de políti-
suas causas e limitações. cas públicas, a determinação do salário-mínimo é elemen-
Um olhar atento para os dados referentes aos últimos to central para a trajetória da renda e de sua distribuição,
anos registrados no gráfico 1 já sugeria que, à medida pois o mesmo não afeta apenas as ocupações formais do
que o crescimento econômico que vinha ocorrendo desde mercado de trabalho, mas também as do setor informal e
2004/2005 perdia dinamismo e levava a economia a uma os valores reais das transferências sociais. Desta forma,
quase estagnação, sob o primeiro mandato presidencial pode-se perceber que o valor real do salário-mínimo con-
de Dilma Rousseff, o perfil distributivo (expresso pelo ín- tinua afetando parcela sem dúvida ainda amplamente ma-
dice de Gini) parou de melhorar. Ficavam assim evidentes joritária da população brasileira.
as dificuldades para continuar a promover melhorias con- A seguir, são feitas mais algumas outras reflexões a
sistentes e contínuas no perfil distributivo brasileiro (que respeito de fatores econômicos e políticos envolvidos na
ainda continua muito desigual) diante de um cenário de trajetória histórica do perfil distributivo brasileiro, a título
perda de dinamismo econômico. de conclusões do artigo.

104 em círculos
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

CONCLUSÕES butivo extremamente desigual, bastando que a estagna-


A análise conjunta de cada um dos três padrões de ção econômica ocorrida no início dos anos 1960 acirrasse
comportamento verificados no gráfico 1 e dos indicado- rivalidades sociais e políticas latentes, levando a um des-
res exibidos nos dois gráficos seguintes fornecem elemen- dobramento político dramático logo a seguir, com o golpe
tos importantes para analisar a evolução da desigualdade civil-militar de 1964.

O
econômica em perspectiva histórica, destacando como o
debate da questão distributiva se coloca diante dos dife- regime inaugurado em 1964 moldou um
rentes aspectos políticos e econômicos de cada etapa da padrão de acumulação excludente, para o
história econômica brasileira desde que aqui se consolidou qual a concentração da renda e da riqueza
a industrialização pesada. não representou entrave para o crescimen-
Uma primeira questão que chama a atenção é a valori- to da economia, pelo menos durante o chamado Milagre
zação expressiva ocorrida no valor real do salário-mínimo Econômico. As reformas institucionais feitas pelo PAEG, o
durante o período do chamado nacional-desenvolvimen- primeiro programa de governo do regime de exceção ins-
tismo. Não há dados organizados que permitam avaliar se talado em 1964, abriram espaço para que a desigualdade
naqueles anos houve melhoria do perfil distributivo, segun- já existente na sociedade brasileira pudesse ser reforçada
do os indicadores atualmente consagrados para medi-lo. no sentido de impulsionar um padrão de consumo que re-
De todo modo, a literatura sobre o período ensina que nos pousava na demanda por bens e serviços de valores uni-
anos 1950 ocorreu uma pronunciada transformação no pa- tários relativamente altos, tendo em vista a renda média
drão de consumo, ao lado de um processo de urbanização da sociedade brasileira. Para tanto, a política econômica,
marcado pela ascensão de camadas médias assalariadas, em seus diversos aspectos, promoveu a ampliação da de-
em sua maior parte, e com ligação direta ou indireta com sigualdade, quer seja pelas regras de definição da políti-
as transformações ocorridas no mercado de trabalho dian- ca salarial e da regulação do trabalho, quer seja pela po-
te do processo de industrialização. lítica tributária regressiva, ou ainda através do padrão de
Nos tempos do chamado nacional-desenvolvimentis- gastos públicos em que às camadas mais altas da pirâmi-
mo, apesar de suas contradições políticas e das recorren- de distributiva eram destinados os maiores benefícios di-
tes crises de balanço de pagamentos (manifestas em cri- retos ou indiretos.
ses cambiais derivadas das dificuldades inerentes à mon- A análise dos movimentos históricos dos indicadores
tagem de uma indústria pesada em um país periférico, ou aqui escolhidos (desigualdade da distribuição da renda do
seja, das dificuldades próprias do processo de substitui- trabalho, medida pelo índice de Gini; evolução da renda per
ção de importações), foi possível construir uma aliança de capita e evolução do valor real do salário-mínimo) ilustra
classes em favor da transformação do capitalismo nacio- as caraterísticas distributivas do período que se inicia nos
nal. Para engendrar o padrão de acumulação capitalista anos 1960 e que perpassa pela política econômica e medi-
daquele período, foi preciso criar pelo menos algum grau das estruturais tomadas no governo militar. E também re-
de fortalecimento do mercado interno e este intento foi vela as dificuldades de promover melhorias no perfil distri-
parcialmente obtido, sendo que, para isso, o instrumento butivo mesmo em contexto de democratização, como por
de recuperação do valor real do salário-mínimo (conforme exemplo ocorreu diante do ambiente de crise econômica
aconteceu, especialmente, sob o segundo governo Vargas que se abateu na economia brasileira nos anos 1980. Nos
e sob o Governo JK) teve papel decisivo. As desigualdades, anos 1990, a resposta política dada pela sociedade brasi-
porém, em suas causas mais estruturais, não foram elimi- leira, optando por uma abertura comercial e financeira de
nadas e nem mesmo diluídas, de tal forma que a socieda- caráter liberal, não permitiu, na prática, que fossem criadas
de brasileira adentrou os anos 196019 sob um perfil distri- condições para um enfrentamento da desigualdade eco-

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 105


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nômica. Por fim, percebe-se que a análise dos indicadores com estagnação ou baixíssimo crescimento da economia
escolhidos também alerta para os desafios existentes para (início dos anos 1960; a média dos anos 80; quase todos
a manutenção e eventual ampliação dos avanços identifi- os anos da década de 1990). Depois de 1960, também já
cados a partir do início dos anos 2000 no que diz respeito houve um período ditatorial (1964-1985) com momentos
à redução da desigualdade de renda. de crescimento significativo do PIB per capita (1968-1973,
Avaliando conjuntamente os indicadores aqui expostos, ou seja, o chamado “Milagre” e também no período 1974-
podem ser identificados os limites e os condicionantes para 1980, embora com média de crescimento do PIB menor
movimentos de melhoria do perfil distributivo brasileiro. do que no “Milagre”), mas também com momentos de es-
O primeiro debate organizado sobre distribuição de ren- tagnação (primeiros três anos do governo civil-militar ins-
da na economia brasileira foi estimulado pelo contexto do talado em 1964) ou com forte recessão, como ocorreu no
chamado “Milagre Econômico” do fim dos anos 1960/me- triênio 1981-1983.
ados dos anos 1970. Aquela realidade ensinou a todos que O que os indicadores reunidos neste artigo ensinam,
não basta haver crescimento econômico para que ocorra antes de mais nada, é que, sempre que houve descom-
melhoria do perfil distributivo. A complexidade estrutural promisso com a recuperação do valor real do salário-míni-
da desigualdade brasileira exige uma combinação virtuosa mo e/ou dificuldades econômicas para promover seu au-
de fatores econômicos e de elementos políticos que criem mento, o perfil distributivo só fez se deteriorar (mesmo,
as condições para que determinadas coalizões de classes muitas vezes, já partindo de uma situação de significativa
sociais atuem em favor do enfrentamento do problema da desigualdade).
pobreza e do perfil distributivo altamente concentrado que Historicamente, as pronunciadas oscilações dos valo-
caracteriza a sociedade brasileira. res reais do salário-mínimo refletiram os diferentes objeti-
Já houve, no Brasil, períodos democráticos com cres- vos a que as políticas de definição do mesmo tiveram ao
cimento econômico robusto (anos 1950), mas também longo dos anos. De um lado, houve momentos (sempre

106 em círculos
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

sob Democracia) em que a política de valorização do mí- ser conseguida com Democracia. No caso da democratiza-
nimo esteve entre os objetivos de uma política econômi- ção dos anos 1980, houve deterioração do perfil distributi-
ca e de definição de um padrão de acumulação capitalista vo, pois o momento foi marcado por uma crise econômica
que tinham no fortalecimento do mercado interno um de que impediu a recuperação do valor real do salário-mínimo.
seus pilares. Por outro lado, em diversos outros momen- No período pós-Real (1994 em diante), a estabilização da
tos a deterioração de seu valor real foi deliberada, como inflação abriu espaço para a recuperação do valor real do
no programa de combate gradualista à inflação, implemen- salário-mínimo, mas a coalização de poder que conduziu
tado pelo primeiro governo do período militar inaugurado a política macroeconômica nos anos 1990 não tinha com-
em 1964, ou como ocorreu nos anos 1980, quando a polí- promisso com uma mudança do perfil distributivo. Houve
tica para a definição do salário-mínimo procurou (sem êxi- recuperação no valor real do salário-mínimo, mas a mesma
to) atuar no sentido de rebaixar custos de produção e/ou foi modesta, ainda mais se comparada com a que ocorre-
de restringir a demanda interna, com o fito de tentar con- ria nos anos seguintes.
ter a escalada inflacionária. Vários estudos recentes têm revelado que a melhoria

D
do perfil distributivo, medida pelos indicadores de dis-
esta forma, pode-se argumentar que a evo- tribuição pessoal da renda, apontada pelos dados dos
lução do valor real do salário-mínimo refle- anos 2000, deveu-se em grande medida à recuperação
tiu aspectos políticos – e não apenas eco- do valor real do salário-mínimo, ocorrida, de forma mais
nômicos – das diversas fases do desenvol- consistente, a partir de 2004/2005. A trajetória do índi-
vimento econômico brasileiro. É claro que o raio de mano- ce de Gini e de outros indicadores de desigualdade, nos
bra para ajustar o seu valor real depende – e sempre de- anos 2000, parecia abrir uma jornada de melhoria do per-
penderá – da trajetória do crescimento econômico e, em fil distributivo que muitos julgavam ser duradoura. Infe-
especial, do comportamento da renda per capita (ou dos lizmente, bastaram quatro anos de desaceleração do
ganhos médios de produtividade da economia); não obs- crescimento econômico20, com índices de crescimento
tante, não é apenas desses elementos econômicos que de- do PIB per capita menores do que os que haviam per-
pende o comportamento do salário-mínimo. Dependendo mitido a redução do índice de Gini ocorrida entre 2002 e
do arco de alianças de classe que se instalam na socieda- 201021, para que a redução da desigualdade mostrasse
de, as políticas públicas adotadas pelas autoridades econô- também arrefecimento.
micas podem incluir a valorização do salário-mínimo como Mais do que entender as causas da desaceleração eco-
uma forma ou de ampliar o poder de compra no mercado nômica dos últimos 4 ou 5 anos, o desafio é compreender
interno em ascensão, ou, de maneira até mais abrangen- a natureza da melhoria do perfil distributivo ocorrida nos
te, de utilizar-se de sua valorização como um instrumento anos 2000, bem como buscar compreender as novas di-
de desenvolvimento econômico, conforme mostram vá- mensões que vêm sendo debatidas na literatura econômi-
rios artigos reunidos em Baltar et alli (2005). ca acerca do fenômeno da desigualdade22.
De todo modo, é possível afirmar, com base nos indica- Esta é uma tarefa para os pesquisadores sociais e em
dores demonstrados neste artigo, que nunca ocorreu ex- particular para os especialistas no tema da distribuição de
pansão do valor real do salário-mínimo, de forma consis- renda para os próximos anos.
tente, em períodos não democráticos. E, como a expan-
são do salário-mínimo é condição necessária (embora não O autor é professor e pesquisador do curso de graduação
suficiente) para melhorar o perfil distributivo em uma so- e do programa de pós-graduação da Faculdade de Econo-
ciedade como a brasileira, é possível constatar que, na so- mia da UFF
ciedade brasileira, a melhoria do perfil distributivo só pode fermatt1@hotmail.com

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 107


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

n0tas de rodapé

1. O Índice de Gini é uma das medidas mais conhe- plo, no fato de que a participação das ocupações siva do mercado de trabalho brasileiro. De todo
cidas de desigualdade para uma amostra de dados. por conta própria no conjunto dos ocupados, pas- modo, os dados e gráficos mostram que os efei-
Ele varia de ZERO (extrema igualdade) a UM (extre- sou de 18,4% para 22,5% entre 1989 e 1999, se- tos distributivos do salário-mínimo foram significa-
ma desigualdade). Quando o índice é igual a UM, gundo dados das respectivas PNADs. No mesmo tivos. Muitos anos depois – mais especificamente
significaria a hipotética situação em que um úni- intervalo de tempo, a participação do emprego do- a partir da Constituição de 1988 –, a trajetória do
co indivíduo detivesse toda a renda da economia méstico subiu de 8,4% para 9,9%. Com relação às salário-mínimo passou a ter maior impacto sobre o
e os demais não tivessem nada; no caso hipotéti- ocupações assalariadas, verificou-se, no mesmo in- conjunto do mercado de trabalho, pois ele passou
co de Gini igual a ZERO, significaria que todos os tervalo, uma queda generalizada do grau de forma- a valer também para o setor agrícola, ao mesmo
indivíduos da economia teriam exatamente a mes- lização em todos os setores de atividade investiga- tempo em que se tornou referência para reajustar
ma renda. Os dados de Gini aqui expostos medem dos pelas PNADs, conforme mostrou Baltar (2003). os valores das transferências sociais, em contex-
a desigualdade das rendas do trabalho, não infor- to de ampliação de políticas públicas que surgem
mando nada sobre a chamada distribuição funcio- 8. O Gini de 1980 era igual a 0,601, atingindo o pon- como consequência da promulgação da Constitui-
nal da renda, ou seja, sobre a repartição da renda to mais alto da série em 1989 (0,636), não por aca- ção Federal de 1988.
nacional entre lucros e salários. No Brasil, tanto a so o ano de auge do processo inflacionário, mas
desigualdade entre as rendas do trabalho (forma voltando a 0,595 em 2000 e encerrando o referido 15. Antes, o governo Vargas havia promovido dois
mais habitual de se medir a desigualdade na maio- período com 0,583, em 2003. reajustes no valor do mínimo (um em janeiro de
ria dos países) quanto a desigualdade funcional da 1952, de 200% em termos reais, e outro que pas-
renda são muito altas, estando entre as mais altas 9. Um primeiro trabalho de fôlego dedicado a com- saria a vigorar a partir de julho de 54, com reajuste
do mundo. Muitos estudos indicam que a uma ele- preender esse fenômeno recente foi o estudo orga- de 100% nominais e que, na prática, representou
vada desigualdade na distribuição funcional relacio- nizado por Barros et alli (2007; volume I) e Barros uma valorização real de cerca de 70% em relação
na-se também uma elevada desigualdade na dis- et alli (2008; volume II), nos quais estão reunidos a julho do ano anterior e de cerca de 37% em rela-
tribuição das rendas do trabalho, mas esta proble- trabalhos de diversos pesquisadores com diferen- ção a janeiro de 1952, data do último reajuste até
mática não será discutida neste artigo. Para mais tes formações teóricas e que também analisam o então), recuperando seu valor real após as signifi-
detalhes, ver: Mattos (2005); Mattos e Cardoso problema da desigualdade brasileira sob diversos cativas perdas provocadas no período Dutra. De-
(2012); Piketty (1995) e Piketty (2014). pontos de vista. pois de Getúlio, JK também promoveu mais dois
reajustes (agosto de 1956 e janeiro de 1959) (Sou-
2. Crescimento do PIB real significa o crescimento 10. Deve-se registrar que pesquisas e formulações en, 2013; p. 69), culminando no valor real mais alto
do PIB descontado dos efeitos da inflação. A va- teóricas feitas ao longo dos anos 1970 e 1980 da série histórica (janeiro de 1959) (no interregno
riação nominal do PIB não retira os efeitos da alta defenderam a ideia (respaldada em evidências Café Filho, não foi concedido nenhum reajuste do
de preços sobre o cálculo do produto interno bru- empíricas) de que o salário-mínimo não afetava salário-mínimo; idem para o breve período de Jâ-
to. Para efeito de comparação interanual da evo- apenas a renda do assalariado formal do merca- nio Quadros). A seguir, em seu encurtado manda-
lução da renda em uma economia, usa-se a varia- do de trabalho, mas também exercia uma impor- to, João Goulart concedeu mais três reajustes, os
ção real do PIB. tante função como “farol” das remunerações da quais, porém, não lograram produzir aumentos re-
pequena produção independente, e de todo um ais expressivos pois os reajustes foram feitos em
3. Este e demais dados a seguir mencionados fo- amplo espectro de mão de obra não qualificada, contexto de inflação alta e em aceleração, e em am-
ram calculados a partir das estatísticas históricas geralmente depositada no setor informal da eco- biente de estagnação econômica. Para mais deta-
oficiais do IBGE. nomia. Tudo indica que o salário-mínimo ainda ve- lhes, ver: Sabóia (1985; pp. 46); Souen (2013); Ba-
nha mantendo este papel até o presente, sendo rone, Bastos e Mattos (2015).
4. Bonelli e Ramos (1993) atribuem esta queda do possível também supor que assim será no futu-
índice de Gini no fim dos anos 1970 ao fato de ter ro. Daí o papel estruturante e relevante exercido 16. Ver Barone, Bastos e Mattos (2015), a respei-
coincidido com a abertura política, ao ressurgimen- pelas políticas de valorização do salário-mínimo to da controvérsia sobre distribuição de renda no
to do movimento sindical e – em grande medida em um país cujo mercado de trabalho tem as ca- governo militar instalado em 1964 e sua política
por isso mesmo – a mudanças nas regras de rea- racterísticas do mercado de trabalho brasileiro. econômica.
justes salariais definidas pelo Estado, com a intro- Sobre este assunto, ver: Souza e Baltar (1979) e
dução de reajustes semestrais de salários (e não Baltar e Dedecca (1992). E também artigos reuni- 17. O dado percentual expresso no eixo esquerdo
mais apenas anuais, como vinha acontecendo des- dos em obra mais recente, organizada por Baltar, revela a relação entre o valor do salário-mínimo men-
de o início do governo militar instalado em 1964) Dedecca e Krein (2005). sal médio a cada ano (numerador) e a renda per ca-
quando a inflação mostrava ter galgado patamares pita do respectivo ano (denominador).
mais elevados. Com relação à retomada da traje- 11. Os dados estão registrados em valores médios
tória ascendente da desigualdade nos anos 1980, anuais, a preços de 2013. 18. Conforme argumenta Singer (1988), especial-
especialmente nos anos finais desta década, os mente no capítulo III.
autores se incluem entre os vários estudiosos que 12. Para um histórico detalhado e analítico da in-
a explicam principalmente pelo recrudescimento trodução e evolução do salário-mínimo no Brasil e 19. Ler Bastos (2013) e Bastos (2014) para uma des-
inflacionário (e ao baixo crescimento econômico) de todas as políticas que o definiram, ver: Souen crição das dificuldades econômicas que a década
ocorrido no período. (2013), cap. 2. de 1950 legou aos anos 1960 e, em especial, para
avaliar as condições do conflito distributivo dos
5. Entre 1977 e 1981, o índice teve uma queda de 13. Sobre os fatos envolvidos na discussão sobre anos 1950 e 1960 e as causas econômicas do gol-
cerca de 6%, mas ele volta a subir entre 1981 e o reajuste do salário-mínimo de 1954 e sua dra- pe militar deflagrado em abril de 1964.
1985, quando cresceu quase 3% e depois mais mática repercussão política, ver, pelo menos: Ski-
cerca de 7% entre 1985 e 1989, quando atingiu o dmore (1982); Fonseca (1987), capítulo 6; Bastos 20. Não faz parte do objetivo deste artigo discutir
índice mais alto da série: 0,636. (2014); Affonso (2014), parte III. causas da desaceleração econômica ocorrida a
partir de 2011.
6. O total de pessoal ocupado na indústria de trans- 14. Deve-se ter em conta que os reajustes reais
formação caiu de cerca de 4,9 milhões de trabalha- do salário-mínimo, naquela época, afetavam prin- 21. Entre 2002 e 2010, o índice de Gini caiu quase
dores, em 1980, para apenas 3,1 milhões em 1995. cipalmente os assalariados urbanos, tendo pouco 10%, enquanto entre 2010 e 2014 caiu menos de 1%.
Dados oficiais do IBGE. impacto sobre os rendimentos do setor agrícola,
numa época em que este componente representa- 22. Ver, por exemplo, Dedecca (2009); Mattos
7. Uma ilustração desse fenômeno está, por exem- va a maioria da população e parcela muito expres- (2012); Piketty (2014); Piketty (1995).

108 em círculos
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 109


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Gustavo Maia Gomes


Economista

Cidades
perdidas,
submersas,
transplantadas
110 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 111


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

N
o passado, cultivamos lendas Lugar de muitos índios “sociedades complexas” com gran-
sobre cidades perdidas nas flo- Até a fundação de Belém, em 1616, des concentrações populacionais na
restas, quiçá testemunhos de os portugueses tiveram pouco inte- Amazônia anterior à chegada dos eu-
antiquíssimas civilizações. Em tempos resse e quase nenhuma presença na ropeus. Heckenberger, professor da
recentes, erigimos barragens e inun- Amazônia. Os espanhóis, ao contrário, Universidade da Flórida, em particu-
damos ruas, casas, igrejas. Algumas andaram por ali já no início dos anos lar, que há muitos anos visita regular-
vezes, reconstruímos tudo; em outras, 1540. No “Relatório sobre o novo des- mente o Brasil, escreveu: “Trabalhan-
apenas deixamos afundar. As cidades cobrimento do famoso Rio Grande, do com os índios cuicuro [região do
pré-colombianas nunca foram encon- descoberto por graça divina, desde a Alto Xingu, MT], escavei uma rede de
tradas, embora se acredite, hoje, que sua nascente até à foz, pelo Capitão cidades, aldeias e estradas ancestrais
existiram, em formas irredutíveis aos de Orellana”, Frei Gaspar de Carvajal que já sustentou uma população in-
padrões europeus; as submersas, sa- diz ter avistado aldeias indígenas se dígena talvez 20 vezes maior em seu
bemos onde estão. Quando as águas estendendo por até 25 quilômetros, tamanho do que a atual.”1
baixam, elas reaparecem, contemplam uma moradia colada à outra, ao longo Mesmo o mais ferrenho adepto
seu antigo mundo – e choram. Todas, das margens do Amazonas. Se a des- da tese de que existiram cidades na
menos uma. Mazagão não submer- crição for correta, Orellana (1511-46)
giu. Foi trazida das praias marroqui- descobriu uma cidade pré-colombiana
nas, na África, para o Amapá, no sé- no hoje território brasileiro.
culo 18. Por mais que a maré baixe e Certamente, ela não era semelhan-
ela estique o pescoço, não enxergará te às urbes europeias, nem se parecia
o próprio passado. com as então recém-encontradas no
México e no Peru. Mesmo assim, tan-
1. Cidades perdidas tos quilômetros de habitações adjacen-
Em meados do século 16, um pu- tes teriam de abrigar população enor-
nhado de espanhóis desceu o Amazo- me e concentrada. Seria, enfim, uma
nas das nascentes à foz. Foi a primeira cidade? Quando, na segunda metade
vez que europeus navegaram toda a do século 20, arqueólogos pesquisa-
extensão do rio. Francisco Orellana e ram a região – o livro Amazônia: A ilu-
seus comandados passaram ao lado são de um paraíso, de Betty Meggers
de cidades indígenas, mas não as vi- (1921-2012), foi publicado em 1971 –,
ram. Trezentos anos depois, aconte- a conclusão inicial deles foi que a flo-
ceu o contrário: o padre Benigno de resta não tinha capacidade de supor-
Carvalho acreditou ter visto, nas ma- tar grandes aglomerações humanas.
tas da Bahia, uma cidade que jamais Gaspar de Carvajal havia, portanto, exa-
existira. Já no século 20, o explorador gerado em sua memória.
inglês Percy Fawcett, (que viria a ser Mais recentemente, essa posição
o inspirador do personagem Indiana perdeu popularidade no meio cien-
Jones) embrenhou-se pelos sertões tífico. Anna Roosevelt (nascida em
do Mato Grosso em busca de uma 1946), Michael Heckenberger (1959)
mítica e grandiosa cidade “Z”. Nunca e Eduardo Góes Neves (1966), entre
a encontrou. outros, têm defendido a existência de

112 atlântida
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Amazônia pré-colombiana, entretan- apenas o primeiro europeu a testemu- Consta que Muribeca havia prometi-
to, admite que elas não se pareciam nhar sua existência, mas também um do ao Rei de Espanha e Portugal (era
com as de outras regiões das Améri- dos últimos. a época da União Ibérica, 1580-1640)
cas. As habitações eram distribuídas revelar a localização das minas, em tro-
por um grande território, não havia im- Da Amazônia à Bahia ca de um título de marquês. Viajou à
ponentes edificações administrativas Dois séculos depois de Francisco Europa, mas não conseguiu conven-
ou religiosas e, sobretudo, nada era Orellana descer o Rio Amazonas, outro cer o monarca. Instado a revelar seu
feito de pedra. Quando os povos que episódio importante aconteceu relativo segredo, mesmo sem receber o que
as construíram deixaram de existir, ou às cidades pré-colombianas. Começou pretendia, manteve-se calado até mor-
tiveram sua população grandemente assim: durante dez anos (1743-53), um rer na prisão.
reduzida, sobretudo, mas não apenas, grupo de paulistas bandeirantes vagou Apesar de todo o empenho, os ban-
depois do contato com os colonizado- pelos sertões da Bahia, em busca das deirantes dos anos 1743-53 jamais en-
res europeus, o tempo se encarregou lendárias Minas de Prata do Muribeca, contraram as supostas minas do Muri-
de apagar quase todos os seus traços. alcunha de Robério Dias, que as teria beca. Foram obrigados a desistir. Mas,
Gaspar de Carvajal pode ter sido não descoberto nos primeiros anos 1600. então, provavelmente, alguém que

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 113


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

participara da expedição, ou dela teve grandioso para o Brasil, capaz de le- Benigno José da Carvalho e Cunha (?-
conhecimento detalhado, escreveu e gitimar o país recém-criado que que- 1852), que morava na Bahia, foi convi-
enviou a um amigo do Rio de Janei- ria ser nação. Nessa luta, o Manuscri- dado a verificar se a tal povoação “an-
ro a “Relação histórica de uma oculta to 512 poderia ser de grande ajuda. tiquíssima”, citada no Manuscrito 512,
e grande povoação antiguíssima sem Seu anônimo autor descreve um con- realmente existia. Para fazê-lo, o padre
moradores, que se descobriu no ano junto de edificações cujas ruínas ele precisaria de um vultoso financiamen-
de 1753”. Este documento – mais tar- afirmava haver descoberto. O achado to, afinal, concedido ao Instituto Histó-
de conhecido como Manuscrito 512 – teria características de uma cidade rico e Geográfico por Pedro II, seu pa-
contava a descoberta de uma cidade clássica romana, com pórticos, impo- trono. Com a verba no bolso, o padre
muito antiga e abandonada, mas não nentes edifícios, templos majestosos se embrenhou nas matas da Chapada
fornecia sua localização precisa. O pa- e estátuas de heróis em poses digni- Diamantina, onde imaginou que a ci-
pel ficou perdido durante várias déca- ficantes. A cidade e seus monumen- dade se encontraria, mas nunca achou
das, até que, em 1838, apareceu na tos seriam feitos em pedra, compon- nada. Por quase uma década, andou
então Biblioteca da Corte, hoje Biblio- do um conjunto incomparavelmente pela região, estranhamente, gastando
teca Nacional. mais imponente que a pobreza arqui- parte de seus recursos na construção
Reproduzido no primeiro número tetônica até então conhecida do Bra- de pontes e estradas. Escreveu ao Ins-
(1839) da revista do Instituto Histórico sil anterior a 1500. tituto umas tantas cartas, nas quais en-
e Geográfico Brasileiro (IHGB), a “Rela- Era tudo mentira, mas isso ainda viava poucas informações confiáveis e
ção histórica” suscitou enorme curio- não se sabia. muitos pedidos de mais dinheiro, até
sidade. O Instituto decidiu tirar a lim- ser esquecido. Há versões de que en-
po se o documento contava mesmo O padre maluco louqueceu. Sabe-se que veio a morrer
a verdade. Na época, havia urgência Em 1841, dois anos depois de pu- na cidade da Bahia, em 1852.
de descobrir ou inventar um passado blicada a “Relação histórica”, o cônego O fracasso da expedição de Benig-

114 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

beca” Dias. Mas Alencar, ao contrário rou a região do Alto Xingu, no Mato
de outros escritores indianistas como Grosso, em busca da cidade “Z”. Não
Gonçalves de Magalhães (1811-82; A se sabe se ele acreditava tratar-se da
Confederação dos Tamoios) e Gonçal- mesma, supostamente, encontrada
ves Dias (1823-64, “Minha terra tem pelos bandeirantes do século 18, mas
palmeiras, onde canta o sabiá...”) não poderia ser.
tinha ligações com o Instituto. Talvez Fawcett publicou livros, também ga-
por isso, seu romance falhou em sus- nhou fama mundial, porém não achou
citar novas excursões em busca da ci- cidade alguma, fosse a “Z”, fosse a do
dade perdida. Manuscrito 512. Em compensação, ins-
pirou a criação do personagem India-
A história se torna internacional na Jones, celebrizado numa cinema-
É mais ou menos nessa época, fim tográfica dos anos entre 1981 e 2008.
dos anos 1860, que outro personagem Na sua última aventura, em 1925, tal
extraordinário entra na história. O qual um verdadeiro Indiana Jones, Fa-
britânico Richard Francis Burton (1821- wcett enfiou-se nas matas, na direção
90) foi o maior explorador e aventureiro da Serra do Roncador, acompanhado
ocidental do século 19. Entre 1865 e do filho e de outro inglês. Tratava-se
no Carvalho gerou constrangimento, 1869, ele morou no Brasil e viajou pelo de território desconhecido, habitado
obrigando o Instituto Histórico e Geo- país, após o que, como sempre fazia, por povos indígenas, possivelmente,
gráfico a ser mais cauteloso ao patro- escreveu um livro (Explorations of the inamistosos. Os três desapareceram,
cinar futuras empreitadas semelhan- Highlands of Brazil, 1869) que fez su- para sempre. Devido à sua celebrida-
tes. Nenhuma ação concreta (exceto cesso no mundo todo. De quebra, sua de e ao fato de ele estar em missão
publicar o material que lhe fora envia- mulher traduziu para o inglês e fez pu- científica oficial, muitas expedições
do) foi tomada pela direção do IHGB blicar no livro do marido o Manuscri- foram organizadas para resgatá-lo e
quando, por exemplo, em 1848, um to 512. Percy Fawcett, muito provavel-
major Manoel Rodrigues de Oliveira mente, o leu.
remeteu longo documento argumen- Mais novo que Burton, igualmente
tando que a cidade perdida, realmen- irrequieto, o coronel inglês Percy Harri-
te, existia, mas vinha sendo procura- son Fawcett (1867-1925) ficou fascina-
da no lugar errado. Que ficasse per- do pela cidade perdida da Bahia. Em
dida e esquecida, pensou a direção 1921, ele explorou a Chapada Diaman-
do Instituto. tina à sua procura, guiando-se não só
Esquecida, não ficaria por mui- pelo Manuscrito 512, como também
to tempo. Em 1862, José de Alencar pelas indicações fornecidas por outro
(1829-77) – já então um escritor famo- viajante britânico, Sullivan Beare, que
so – começou a publicar, em folhe- havia sido cônsul no Rio de Janeiro e
tos, seu romance As Minas de Prata, dizia haver conhecido uma cidade an-
apresentado como continuação de O tiga e abandonada como a descrita no
Guarani, no qual um dos personagens documento de 1753. Fawcett nada en-
principais era o notório Robério “Muri- controu. Em outra tentativa, ele explo-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a seus acompanhantes. Ou, pelo me- ciais P. H. F. e um revólver cuja bolsa nel fazendo parte de sua coleção?
nos, descobrir o que lhes havia acon- de couro era do tipo militar britâni- Ofereci-lhe a minha bolsa de fumo.
tecido. Nos anos subsequentes, mais co. Do outro lado, uma cartucheira. E enquanto ele enrolava o cigarro,
de cem pessoas teriam morrido na ten- Aquelas iniciais P. H. F. me bailaram decidi me aventurar:
tativa de saber o destino do coronel e na cabeça: P. H. Fawcett! – Diga-me, senhor, como obteve esse
dos outros dois acompanhantes. Ne- – Desculpe, senhor, disse, quebran- revólver e este compasso? Eles de-
nhuma conseguiu. do o silêncio – Ainda não tive a hon- vem ter uma história interessante.2”
ra de saber o seu nome.
Lampião no Mato Grosso – Lampião – respondeu ele, com sim- O relato d’A Província continua. Lam-
Tudo isso é bastante conhecido. plicidade, mas com uma certa pon- pião teria dado os objetos ao Capitão
O que vou acrescentar, agora, não é. ta de orgulho. Morris, que deixou o local o mais rapi-
Em pesquisas recentes, deparei com Tive um choque. Aquele pacato tipo damente possível. Não há notícias do
a seguinte notícia, publicada no jor- não era outro senão o bandido feroz que as armas tenham sido, jamais, mos-
nal A Província, do Recife, em 13 de cuja fama corre de um extremo ao tradas ao público, como provas de que
maio de 1932: outro do continente. Ele tinha cem Fawcett tinha, de fato, morrido, talvez,
mortes nas costas e, invariavelmen-
Em vez de esclarecê-lo, o explorador te, cortava as orelhas dos cadáveres
inglês capitão A. M. Morris complica de suas vítimas.
ainda mais o já misterioso caso do Ele ficou satisfeito com minha sur-
Coronel Fawcett presa.
Lampião [Virgulino Ferreira da Silva, – Sim, sou eu mesmo esse homem.
1898-1938, o cangaceiro nordestino] Peça o que quiser em recompensa
teria sido visto no sertão mato-gros- por ter salvo a vida de meu irmão.
sense trazendo consigo as armas do Imediatamente, excitou-se a minha
famoso desaparecido. imaginação. As armas são preciosi-
(...) dades nas florestas brasileiras. Daria
Conta [o capitão] Morris que, estan- o famoso bandoleiro suas armas? Eu
do certa vez numa povoação perdida precisava daquele revólver e daque-
nos confins mato-grossenses, salvou le compasso.
da morte um homem que pertencia a – Nunca podia imaginar – comecei
um grupo de outros, chegado pouco em tom cortês – que me fosse dada
antes à localidade. Conquistou, des- tão grande honra. O seu nome é, na
sa maneira, as simpatias dos rudes verdade, tão famoso em Montevidéu
sertanejos. como em Lima. Congratulo-me de
Deste ponto em diante, deixemos lhe ter prestado um pequeno favor.
ao próprio Morris a tarefa de contar Lampião sorriu. O padre chegou para
sua singular aventura. avisar que a comida estava pronta.
“Fixei fortemente a minha atenção Enquanto comíamos, meu pensa-
no homem moreno de óculos. Notei mento estava cheio de conjeturas.
que conduzia um compasso prismá- Teria Lampião morto o coronel Fa-
tico em cuja cobertura se viam as ini- wcett? Estariam as orelhas do coro-

116 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

assassinado por Lampião. De fato, a essa possibilidade. A prova definitiva, ragem do Ribeirão das Lajes, perten-
presença do cangaceiro nordestino em entretanto, não foi conseguida, pela cente à emprega Light, foi alteada, em
terras tão distantes é altamente impro- aparente razão de que os descenden- 1941. A previsão era que elas cobris-
vável e, tanto quanto eu saiba, jamais tes do coronel não têm permitido que sem a cidade, mas as águas jamais
foi alegada em outro testemunho. seja feito o exame de DNA. chegaram à cota prevista. Inundaram,
O fato é que a cidade perdida da apenas, uma pequena parte do local.
Epílogo Bahia ou de Mato Grosso nunca foi O erro de cálculo, contudo, não bene-
Em 1952, o indigenista Orlando Villas encontrada. Já não se acredita, hoje, ficiou o pequeno distrito, cujas casas
Boas (1914-2002), seguindo pistas for- que ela ou elas tenham jamais existi- foram destruídas previamente ao fe-
necidas por índios da região onde Fa- do. Mas a lenda continua. chamento das comportas. Transfor-
wcett havia andado, encontrou uma os- mada em cidade fantasma, São João
sada que ele acreditou ser do explora- 2. Submergida? Nem tanto Marcos somente renasceu, parcial-
dor. Provavelmente, não era, pois um São João Marcos, no Rio de Ja- mente, como um parque ecológico e
dentista que havia tratado dele, após neiro, é um caso único. Condenada a ambiental, em 2011, setenta anos de-
examinar os restos mortais, negou submergir, recusou-se a fazê-lo. A bar- pois de ter sido posta abaixo.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A sentença Reações logo apareceram. “Acham- para onde ir. Estão vivendo no mato, ao
Na ditadura varguista, com a im- -se sobressaltados os proprietários dos Deus-dará. (...) Em São João Marcos,
prensa sob censura, a notícia foi, ini- terrenos que circundam a represa da não se pode mais enterrar os mortos.
cialmente, dada numa versão palatável: Light, pelo decreto que autoriza a de- O desgraçado que esticar as canelas
“A vila de São João Marcos está con- sapropriação dos mesmos”, informa- tem que ser carregado na rede até [a
denada não a desaparecer, mas a ser va um jornal do Rio de Janeiro.6 Ou- localidade de] Passa Três.”9 Era verda-
transferida para outro local.”3 Fregue- tro aduzia: “Inúmeros lavradores de de, até os cemitérios tinham sido trans-
sia fundada em 1739 por João Macha- São João Marcos, revoltados contra feridos. Um edital do prefeito de Rio
do Pereira, “que ali erigiu capela”, fora as medidas ilegais e arbitrárias, pro- Claro deu sessenta dias para os fami-
promovida, em 1811, a Vila São João testam publicamente contra o ato de liares depositarem os restos mortais
do Príncipe, por decreto de D. João. pressão da Light, que procura dessa de seus parentes em local mais segu-
Com a República, teve seu nome tro- forma aniquilar sessenta por cento da ro. E assim foi feito.10
cado para São João Marcos (1890), até cultura local.”7 Eles sabiam do que es- A maior realização da “comissão
que, em 1938, perdeu a condição de tavam falando. Alguns tinham testemu- especial” instituída pelo interventor
cidade, sendo incorporada a Rio Claro. nhado a chegada das águas em 1911. Amaral Peixoto foi contribuir para que
Economicamente, São João Mar- Pressentindo uma segunda inunda- a igreja matriz – derrubada a dinamite
cos escreveu, a partir do início do sé- ção, os moradores haviam conseguido, – fosse reconstruída alguns quilôme-
culo 20, uma história de decadência em 1939, que o local fosse tombado tros adiante. Mas isso demorou. Na
(“Os 18 mil habitantes do fim do sécu- pelo governo. De nada adiantou: me- matéria já citada, Francisco de Assis
lo [19] caíram para 878, hoje.”)4, mas nos de um ano depois, Getúlio “des- Barbosa escreveu: “Reservo a minha
os anos de riqueza haviam contribuí- tombou” São João Marcos e permitiu derradeira visita para a Igreja Matriz
do para que se erguessem ali belas que a Light derrubasse tudo: teatro, de São João Marcos. (...) Sampaio, o
construções que foram preservadas escola, delegacia, igreja, casas. Era sineiro, está na porta. É um homem
pela mesma estagnação econômica. preciso impedir que as pessoas per- pequeno e feio, quase um anão. Res-
“À vista disso, o interventor federal manecessem em suas casas, ou vol- ponde humildemente às minhas per-
baixou decreto instituindo comissão tassem para elas. “Desço uma calça- guntas. (...) São João Marcos está no
especial para estudar medidas para a da de pedras gordas”, escreveu o jor- altar com seu manto bordado de ouro.
preservação do patrimônio histórico da- nalista Francisco de Assis Barbosa, A igreja está em silêncio. Onde estão
quela vila.”5 Preservação, de um lado; “com o capim crescendo nos interstí- as cadeiras? – Já levaram, responde
destruição, de outro. A antiga cidade cios. Como é domingo, hoje não hou- o sineiro, tartamudo. Sampaio quase
tinha sido a mais rica da província. Sua ve demolições. A Companhia derruba não sabe falar. Gesticula com os bra-
situação piorou com o declínio do café as casas e ateia fogo no madeirame. ços, olha o santo com ternura, como
no Rio de Janeiro e a construção, en- Não sobra nenhum pedaço para con- quem diz: – São João Marcos saberá
tre 1907 e 1911, da barragem do Ri- tar a história.”8 tirar a desforra.”11
beirão das Lajes, que inundou muitas Em 1943, a inundação tinha avan-
fazendas e parte da sua área urbana. Resistência çado. “As águas da represa do Ribei-
Agora, o Rio de Janeiro precisava de Mesmo sendo uma luta desigual, rão das Lages já atingiram a praça
mais água e mais energia elétrica; a os marcosenses não se entregariam onde está localizada a igreja, relíquia
barragem do Ribeirão das Lajes seria sem resistir. “Muita gente não se das épocas coloniais”, informava o
alteada; São João Marcos que saísse conforma de deixar o município. Há os Correio da Manhã. “Nos dias de chu-
do caminho. que saíram e já voltaram. Não sabem va, o líquido acumulado beija os pe-

118 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

destais da velha matriz, junto de cujo Foi um erro de cálculo, ou uma misti- prias pedras originais, as fachadas de
altar-mor rezaram gerações de brasi- ficação deliberada, para evitar que fi- algumas casas e parte do portal de en-
leiros. [Mas] o presidente da Repúbli- casse gente morando nas cercanias trada da igreja matriz. O busto de Feli-
ca resolveu que o tradicional templo da represa? Ainda não se sabe. Voltan- ciano Sodré, um marco da antiga cida-
fosse [reconstruído].” Só que “o local do a O Globo, numa matéria de 1981: de, foi trazido de volta à praça. Como
escolhido para a reconstrução da igre- “Hoje, São João Marcos é um fantas- indicador de sucesso, o parque, em
ja não corresponde ao que era de se ma. Suas ruínas, há três anos à tona seus três primeiros anos, recebeu 30
esperar. É o Rubião, ponto de acesso no leito seco da represa, de repente, mil visitantes. Tem (ou tinha?) financia-
difícil e quase deserto. Não há ali ne- espalharam inquietantes dúvidas: te- mento do BNDES (Banco Nacional de
nhum dos habitantes que louvavam ria havido, realmente, necessidade de Desenvolvimento Econômico e Social)
São João Marcos e nem sequer o lo- destruir tão rico e valioso patrimônio? para obras de restauração e de pesqui-
cal está situado dentro do município Descobriu-se, por exemplo, que boa sa arqueológica. A eterna Light apoia
que essa cidade outrora fora cabe- parte da cidade jamais foi inundada. o empreendimento. Seria um pedido
ça de comarca. Rubião é no municí- Escaparia das águas, sem necessida- de desculpas?
pio de Mangaratiba e, portanto, com de de demolição, a igreja matriz cons-
a reconstrução, lá, da matriz referida, truída entre 1783 e 1801”.15 3. As três Canudos
nenhuma homenagem é prestada aos Desde 2011, a antiga São João Mar- Entre as cidades submersas que
fieis de São João Marcos”.12 cos abriga um parque arqueológico e voltaram à tona, na atual seca do Su-
Muitas águas ainda se passaram até ambiental, cuja ideia é preservar, pelo deste e do Nordeste, Canudos, na
que a igreja fosse, afinal, reerguida, nos menos, o traçado estrutural da cidade. Bahia, é um caso emblemático, mas
últimos dias de 1949.13 A reconstrução Parece que o parque vai bem. Estão não único. Guapé (MG), inundada por
da cidade, entretanto, jamais ocorreu. conseguindo reconstruir, com as pró- Furnas em 1963, também emergiu das
Noticiava O Globo, em 1984: “Quaren-
ta anos depois do dilúvio, a esperança
renasce: Os deserdados de São Mar-
cos perto de voltar à terra boa.”14 Não
se tratava de moradores da cidade,
contudo, mas de trabalhadores rurais.
Quanto àqueles, hoje, já morreram
ou perderam a esperança de ter sua
cidade devolvida. Há um bairro de
Mangaratiba que leva o nome de São
João Marcos. Ele foi criado por marco-
senses expulsos de suas terras. Mas
não se trata de uma reconstrução em
qualquer sentido razoável.

Paradoxo
O paradoxo é que as águas jamais
inundaram São João Marcos, como os
engenheiros da Light haviam previsto.

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inteiro em 1999 e, mais recentemente, dos os combates. O Memorial Antô-


em 2013. Depois disso, voltaram a ser nio Conselheiro tem relíquias arqueo-
cobertas pelas águas do açude Coco- lógicas como animais, ossadas e uten-
robó, embora o guia histórico Izaílton sílios do arraial. Não é muito. Quase
Almeida, do Memorial Antônio Conse- tudo foi perdido, retirado do local ou,
lheiro, informe (em 27/8/15) que, tendo simplesmente, destruído.
o nível das águas baixado novamen-
te, as poucas partes mais altas ainda Canudos submersas
existentes das velhas cidades come- A primeira Canudos – das três que
çaram a reaparecer. Exceto do ponto já tiveram esse nome – surgiu no sé-
águas, assim como Redenção da Serra de vista turístico, essa não é uma boa culo 18, mas ganhou notoriedade ape-
e Natividade da Serra (São Paulo), que notícia. Para o sertanejo, falta de chu- nas a partir de 1893, quando ali chega-
ficaram debaixo da represa Paraibuna, vas nunca é boa notícia. ram Antônio Vicente Mendes Maciel,
dez anos depois. O bairro de Mogi das Em 1999, aproveitando a seca que o Conselheiro (1830-97), e seus segui-
Cruzes (Região Metropolitana de São expôs as ruínas das duas cidades cons- dores. O beato trocou o nome do vila-
Paulo) coberto no início da década de truídas no mesmo lugar, pesquisado-
1970 pelas águas do Rio Jundiaí, ti- res da Universidade Estadual da Bahia
nha aparecido, pela última vez, há vin- descobriram o antigo cemitério, con-
te anos. Já pode ser novamente visto. seguiram retirar algum material para
As partes das cidades baianas de estudo, mas tiveram a decepção, no
Sento Sé, Remanso, Casa Nova e Pi- dia seguinte, de ver que o local havia
lão Arcado submergidas em 1974 pe- sido invadido por vândalos, suposta-
las águas do Rio São Francisco acu- mente, em busca de metais preciosos.
muladas no lago artificial de Sobradi- “Hoje, pouco resta do cemitério, mas
nho estão, quase todas, à mostra. São a estiagem permite que se ande em
Rafael, no Vale do Açu, Rio Grande do meio às ruínas das duas Canudos”, es-
Norte, desde 1983, no fundo do Açu- creveu Guilherme Freitas para O Glo-
de Armando Ribeiro Gonçalves, voltou bo, em 2013. “A mais antiga [ruína] é
à superfície. Petrolândia, em Pernam- o pedestal do cruzeiro, que ficava na
buco, que desapareceu em 1988 nas Praça das Igrejas construída por An-
águas da barragem de Itaparica (tam- tônio Conselheiro. A mais imponente
bém no Rio São Francisco), voltou a é a arcada de uma igreja erguida por
mostrar uma parte grande da sua igreja sobreviventes.”16
principal. Jaguaribara, no Ceará, que o Outras sobrevivências do aconte-
enchimento do açude Castanhão en- cimento mais marcante da história de
cobriu, em 2002, está de novo visível. Canudos – a guerra que quase desmo-
Mas é de Canudos que irei falar. raliza o Exército nacional da recém-pro-
clamada República – são escassas. O
Caminhando entre as ruínas Instituto Popular Memorial guarda o
As ruínas das duas primeiras cida- cruzeiro fincado em frente à igreja ve-
des chamadas Canudos apareceram por lha e que foi dali retirado depois de fin-

120 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

rejo para Belo Monte, mais bonito que sua mãe trabalhara na casa do Conse- travam nas casas, as mulheres se ajo-
Canudos, com certeza, porém muito lheiro. O pai e a própria Hermenegilda elhavam nos pés daqueles miseráveis,
pouco descritivo, pois a pequena cida- também estavam por perto, na época implorando que não matassem seus
de ficava num vale. Quatro anos de- da guerra. Os dois morreram num tiro- maridos. Eles diziam que sim e metiam
pois, ela seria destruída na guerra ce- teio. A menina sobreviveu, sem saber o punhal no peito delas. Matavam tam-
lebrizada pela cobertura da imprensa direito como. Testemunhou os últimos bém os meninos. Serviam-se das mu-
contemporânea e, sobretudo, pelo su- momentos da cidade erguida pelo Pro- lheres. Fiquei quase louca de chorar e
cesso do livro Os Sertões, de Euclides feta e seus seguidores. “Foi uma cor- eles me pouparam. Dois dias depois,
da Cunha (1866-1909). reria medonha, por todo o povoado”, deixaram o povoado. Tanta era a carni-
O fim da primeira Canudos teve epi- diz ela. “As tropas entraram e foram ça, que os urubus nem mais comiam.
sódios dramáticos, como se esperaria tocando fogo em tudo. Agarravam os Um fedor danado.
de um desfecho de guerra. Em 1966, homens e levavam para a igreja, para Hermenegilda foi buscar outras pa-
Luís Paraguaçu colheu o depoimento degolá-los.” ragens, mas, depois de dez anos ou
de Hermenegilda Ferreira do Vale. Ela – Não desejo a ninguém que veja mais, ei-la de volta a Canudos, ago-
nem sabia sua idade, mas lembrava que uma coisa daquelas. Os soldados en- ra a segunda Canudos que, em 1969,

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

seria inundada pelo açude Cocorobó. sos de jagunços. Acabou-se Canudos em que as águas represadas fizeram
– Rumei para uma fazenda perto, e, durante uns dez anos, só se vinha a cidade desaparecer.19
ali vivi por algum tempo, casei-me e aqui de passagem.”18 Isso foi em março de 1969. A bar-
voltei para Canudos. Minha filha me Foram abaixo quase todas as cons- ragem já estava, praticamente, pronta,
mantém, carregando lenha e água. É truções, inclusive, as duas igrejas, am- exceto pelo sangradouro, quando co-
o triste fim de minha vida. Pagaram bas construídas por Antônio Conse- meçou a chover torrencialmente nos
seis mil cruzeiros pela nossa casinha, lheiro, a segunda, jamais terminada. sertões da Bahia. Em seis dias, o açu-
que não dão para comprar uma porta Depois desse período, durante o qual de de Cocorobó recebeu 160 milhões
e vão inundar Canudos. Aqui ficarei e o lugar permaneceu deserto de gen- de metros cúbicos de água (o total má-
as águas me sepultarão.17 te, outra cidade começou a surgir ali, ximo projetado era de 243 milhões),
Uma reportagem rememorativa em torno de 1910. Era a segunda Ca- criando um imenso lago um ano antes
dos cem anos desde o fim dos com- nudos, habitada, em grande medida, do tempo em que isso era esperado.
bates descreve como ficou Canudos por sobreviventes da chacina de 1897 “A pressa da natureza acabou por se-
quando a guerra terminou, segundo ou seus descendentes. Teria vida cur- pultar para sempre a vila de Canudos,
o depoimento de Manuel Ciríaco ao ta. Menos de 40 anos depois de seu imortalizada por Euclides da Cunha”,
jornalista Odorico Tavares, prestado surgimento, uma ameaça definitiva pai- escreveu Isidro Duarte. E continuou:
exatamente meio século antes: “Era rou sobre ela: “A construção do açude “As águas do Rio Vaza Barris, no ser-
de fazer medo. A podridão fedia a lé- Cocorobó se arrastou durante 25 anos, tão da Bahia, que deixaram a geografia
guas de distância, os bichos a gente [porém], desde 1944, técnicos alemães, e entraram na História como testemu-
via correndo pelos cadáveres e urubu austríacos e franceses [já formulavam] nhas da heroica e comovente epopeia
fazia nuvem. (...) Todas essas colinas sugestões para o projeto”, dizia uma de Antônio Conselheiro e seus jagun-
que o senhor vê estão cheias de os- reportagem do Jornal do Brasil no ano ços, começaram a rolar, semana pas-

122 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a demolição das antigas moradas”.21 descrito por Euclides da Cunha em


Maria Antônia dos Santos, 73 anos 1902, n’Os Sertões. A água acumula-
à época em que foi entrevistada, “vi- da fez diferença, mas não a ponto de
via feliz com os pais e irmãos quan- eliminar a pobreza dos moradores. “A
do soube da construção do açude. A economia local, baseada no cultivo
água da barragem subiu da noite para da banana no perímetro irrigado do
o dia. Muitos tentaram resistir, inclu- açude, se apoia em programas fede-
sive sua família. – Saímos com água rais como o Bolsa Família, que aten-
no pescoço, conta”. Francina de Sou- de [2013], 2.769 famílias, ou mais de
za Varjão também teve de se mudar, 70% da população, e o microcrédito,
ante a iminência da inundação. “Foi que só este ano injetou R$ 1 milhão
um desprazer, moço, Nasci e me criei na cidade.” 23
em Canudos. Meu marido era o agen- Na cidade existe, até mesmo, uma
te do Correio. Deixei contrariada a mi- Associação dos Sem Teto de Canudos,
nha casa.” Um terceiro personagem, que, ainda hoje, tem nostalgia de An-
sobrevivente da guerra, também deu tônio Conselheiro.
seu depoimento:
“Isolada nas proximidades do de- 4. A cidade que veio da África
serto do Raso da Catarina, vivendo de Assim como aconteceu com Canu-
sada, para a formação da represa de recordações retalhadas da guerra, D. dos, também houve três Mazagão. A
Cocorobó. O antigo arraial de Canudos Francisca, 102 anos, surpreende pela primeira foi fundada pelos portugue-
desaparecerá.”20 delicadeza da voz e precisão com que ses em 1513, nas praias de Marrocos.
Desapareceu, efetivamente, deixan- usa as palavras.” Era, na verdade, menos cidade do que
do poucas lembranças materiais. Des- – Dona Francisca, depois da constru- entreposto militar e comercial, e tinha
sa vez, o ato final da cidade foi menos ção do açude, a vida melhorou no ser- a função de dar suporte ao comércio
traumático. Desde 1967, a segunda Ca- tão de Canudos?, pergunta o repórter. com as Índias. Como ela, outras exis-
nudos tinha sido evacuada, exceto por – Para muitos, melhorou e para ou- tiram, distribuídas em diferentes pon-
uns poucos habitantes. Manuel Sales, tros piorou. Quem tinha sua terrinha, tos da costa africana. Em meados do
Maria dos Prazeres e Nininha Dones com o açude, ficou sem nada.22 século 18, entretanto, as relações com
insistiram em ficar, até mesmo depois o Oriente haviam perdido importância
que a imagem do Santo Antônio, pa- A situação, hoje para Portugal, ao mesmo tempo em
droeiro da cidade, foi trasladada para E a terceira Canudos? Nasceu em que a defesa dos seus postos avan-
a Vila de Cocorobó (que depois adotou outro lugar e sua origem está ligada çados ficou mais dispendiosa. As forti-
o nome de Canudos, a terceira Canu- às obras de construção do açude Co- ficações africanas foram sendo toma-
dos), doze quilômetros distante. Não corobó. Não corre risco de ser inun- das, uma a uma, pelos muçulmanos.
acreditavam que as águas do açude dada; a possibilidade de desaparecer Por vezes, sem que houvesse comba-
pudessem chegar, um dia, até à velha por efeito de uma nova guerra é quase tes. Apenas Mazagão resistia.
cidade. Seus casebres eram três dos nenhuma. Nisso, a Vila Nova de Canu- Por essa época, Sebastião José de
pouquíssimos que ainda existiam ali, dos não lembra as anteriores. Em ou- Carvalho e Melo (1699-1782), primeiro-
“porque os que abandonaram a vila tros aspectos, sim. O ambiente físico -ministro de Dom José I e futuro mar-
levaram o material que sobrou após inóspito, quase deserto, é o mesmo quês de Pombal, na tentativa de revi-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

talizar o império português, passou a Na África25 plicado, assim como as epidemias e


dar atenção prioritária ao Brasil, àquela A contestação à presença dos eu- pragas. Sem o auxílio da metrópole, o
altura, o esteio financeiro da Fazenda ropeus no Norte da África começou caos era inevitável”, continua Testoni.
real. Era preciso garantir a segurança cedo. Em 1534, já estavam ocupadas Em setembro de 1763, Sebastião
das possessões coloniais na América, por forças islâmicas as colônias portu- José de Carvalho e Melo decidiu subs-
o que incluía ocupar e policiar a Ama- guesas de Safim, Azamor e Arzila. Ma- tituir o governador de Mazagão e no-
zônia. Quando, em 1769, Mazagão se zagão, entretanto, embora sob cons- mear seu sobrinho Dinis Gregório de
encontrava sob forte ataque dos mou- tante ameaça, se mantinha firme. O Melo Castro de Mendonça. O novo
ros, Pombal decidiu que ela seria aban- Rei Dom João III decidiu, então, tor- governador logo percebeu que manter
donada. Seus habitantes iriam cruzar ná-la inexpugnável. Com a ajuda dos Mazagão sob controle português não
o oceano, enviados ao Pará, onde a ci- melhores arquitetos do Renascimen- seria fácil. Pediu reforços. Foi atendi-
dadela seria reconstruída. A segunda to, foi erguida uma fortaleza cercada do. Não bastou. Os muçulmanos for-
Mazagão não apenas seria povoada por fossos profundos, com planta em maram um exército de 75 mil comba-
pelas mesmas pessoas que antes vi- formato de estrela de quatro pontas. tentes, bem armados, e fustigaram a
viam em Marrocos; ela cumpriria, tam- Na vila instalada por trás dos muros, fortaleza. Em janeiro de 1769, exigiram
bém, idênticos objetivos estratégicos construíram-se casas, uma prisão, uma sua rendição.
de garantir a posse de um território e igreja paroquial e um hospital. Segun- Tudo isso acontecia num momen-
a segurança de uma rota comercial. do as fontes citadas por Marcelo Tes- to em que “Mazagão não atendia mais
Em 11 de março de 1769, duas mil toni, “a cidade-forte de Mazagão foi,
pessoas foram evacuadas da primei- até 1769, a maior obra construída por
ra Mazagão e conduzidas a Lisboa. portugueses fora da Europa”.26
Dali, em setembro, elas seriam em- A formidável construção, entretan-
barcadas para Belém, onde permane- to, não impediu que continuassem as
ceram durante três anos, até serem, investidas muçulmanas. Ao longo do
finalmente, transferidas ao seu novo século 16, Mazagão foi alvo de sucessi-
lar, no Brasil. “O projeto da fundação vos cercos, mas conseguiu resistir aos
de Vila Nova de Mazagão apontava ataques. “Cada nova vitória era come-
para a construção de mais de 500 ca- morada pela população com procissões
sas.” 24 Em 1773, só 56 estavam con- e jogos que exaltavam a supremacia
cluídas, mas a cidade começou a ser católica diante do Islã. Contudo, a pri-
ocupada assim mesmo. Poucos anos vação e a tensão sempre estiveram
depois, contudo, as doenças tropicais atreladas à rotina daquela gente. Ta-
e a falta de condições para a sobrevi- refas comuns, como buscar água ou
vência daquela gente no local esco- arar os campos eram sempre arrisca-
lhido para alojá-la forçaram uma nova das”, relata Testoni. Mais ou menos a
mudança. A cidade que veio da África mesma situação persistiu pelos anos
foi abandonada (o local passando a ser 1600. No século 18, gastos excessivos
conhecido, desde então, como “Velha da realeza comprometeram as finan-
Mazagão”) e uma nova se ergueu al- ças de Portugal, dificultando a defesa
guns quilômetros mais ao sul. Essa é de Mazagão. “Como se não bastasse,
a Mazagão atual. A terceira. os exércitos mouros haviam se multi-

124 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

aos interesses comerciais, marítimos, vedo e Silva, “embarcaram 2.092 pes- leza em tudo semelhante à que eles
administrativos e religiosos de Portu- soas (Mazagão chegou a ter mais de haviam deixado para trás seria cons-
gal”. Por isso, a decisão de abandonar 3000 habitantes, o que faz supor que truída. Não eram, ainda, planos mui-
a fortaleza tornou-se inevitável. No iní- algumas famílias já teriam sido evacu- to precisos. A Coroa demorou meses
cio de março, uma trégua foi acerta- adas antes), [das quais] 1.497 maiores para definir o local da nova Mazagão.
da entre as partes para a retirada dos de 10 anos e 595 menores dessa ida- Somente em setembro de 1769 a fro-
moradores. “Enquanto mulheres e de. Ao todo, eram 418 famílias, cuja ta zarpou para Belém do Pará. Àque-
crianças eram levadas a bordo com composição oscilava entre 2 e os 11 la altura, parte dos exilados havia es-
as riquezas da igreja e os documen- membros, tendo-se em conta que in- capado do controle, enquanto outros
tos oficiais do governo, os homens tegravam a família os criados, os es- aventureiros foram incluídos no grupo.
esvaziavam as casas e prédios públi- cravos e os enjeitados”.28 Quando, afinal, partiram do Tejo, as em-
cos e destruíam tudo que pudesse cair barcações levavam os futuros colonos,
nas mãos dos muçulmanos. Ao final, No Brasil mercadorias, materiais de construção,
o ‘espírito’ da fortaleza deixou o lito- Quando chegaram a Portugal, os objetos de culto e recursos para viabili-
ral marroquino, repartido em 14 cara- refugiados de Mazagão não sabiam zar a Mazagão da Amazônia. Uma nova
velas, rumo a Lisboa.”27 o que lhes aguardava, mas o gover- etapa da epopeia começava.
De acordo com documentos da no, sim. Eles iriam ser reembarcados A frota chegou ao Brasil em ja-
época citados por José Manuel Aze- para o Brasil, onde uma cidade-forta- neiro de 1770 e as pessoas que ela

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 125


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

na recém-criada vila de Macapá.” Vila


Vistosa e Mazagão formariam parte
desse mesmo sistema. Naturalmen-
te, “no pensamento do rei e do seu
gabinete, que povoadores mais ade-
quados à fundação desta última vila
que as gentes da praça marroquina
de Mazagão, habituadas a lidar com
situações de guerra?”30
Na verdade, nada deu certo na se-
gunda Mazagão, a primeira brasileira.
As fortificações defensivas jamais fo-
ram construídas. As casas entregues
trazia foram alojadas precariamente poucos prédios públicos – chegou a aos habitantes eram insuficientes para
na cidade de Belém. A expectativa ser construído e recebeu moradores. abrigar a todos. Ergueu-se uma igre-
era que sua estada fosse de poucos Um documento de 1784 contava que ja, mas ela tombou antes de ser con-
dias, meses, no máximo, mas o tem- cluída, por defeito na construção. Os
po passava e a mudança para a nova “A Vila de Mazagão (...) está na mar- egressos de Marrocos não convive-
cidade ia sendo adiada. Reconstruir gem setentrional do Rio Mutuacá, ram bem com a floresta tropical. Sua
Mazagão, ao sul de Macapá (local, fi- duas léguas e meia superior à sua agricultura era insuficiente até mes-
nalmente, definido) custaria muito di- barra. No ano de 1770, se conde- mo para o próprio sustento. Enquanto
nheiro para as finanças sempre cam- corou vila por ordem do Senhor rei as doenças proliferavam, muita gente
baleantes do Erário Real. “Os meses D. José I, e pela mesma se manda- fugiu em busca de vida melhor. “Em
de espera logo evoluíram para anos”, ram erigir nela moradas de casas pedaços”, diz Testoni, a cidade “ainda
informa Testoni. para cômodo dos moradores da pra- suportou virar o século 19, antes de
Uma parte das famílias tinha se ça de Mazagão na costa da África, entregar os pontos. Sua sentença se
abrigado em regiões próximas, mas que para este Estado tinham vindo consumou em 18 de outubro de 1828,
mantinha a esperança de ser premia- no fim do ano de 1769, depois de com a instituição da Vila de Macapá
da com uma cidade majestosa feita, largar a dita praça ao imperador de como capital da região. Mas somen-
especialmente, para eles. “Um local Marrocos.”29 te em 1833 os últimos 40 moradores
que justificasse tantos atrasos.” Pura receberam uma notificação real que
expectativa. Quando, afinal, o lugar fi- Por que reconstruir Mazagão exa- suprimia o nome da localidade, agora
cou em condições de receber seus pri- tamente naquele ponto e trazendo da substituído pelo de Regeneração.”31
meiros habitantes, eles descobriram África seus antigos moradores? Aze- Mazagão não morreria de todo,
que “a Vila Nova de Mazagão era pre- vedo e Silva explica que tudo fazia par- entretanto. Uma nova vila se formou,
cariamente erguida, a começar pelas te de um plano de defesa da Amazô- a terceira, 30 quilômetros distante da
casas modestas e de estrutura ques- nia. “De fato, quando em 1753 o ga- anterior, e ainda hoje existe, com o
tionável”, registrou o historiador Paulo binete josefino decidiu criar dois regi- mesmo nome trazido da África. Com
de Assunção, citado por Marcelo Tes- mentos militares no Pará, formados apenas 19 mil habitantes, não é um
toni. De qualquer forma, um arremedo por cerca de 1.200 homens, instalou modelo de prosperidade. Quase não
de cidade – que incluía a igreja e uns um na cidade de Belém (...) e o outro tem agricultura, nem pecuária, nem

126 atlântida
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

indústrias. A economia se baseia nos queólogos da Universidade Federal de conhecida como Mahdouma (Destru-
serviços, ou seja, no governo. O pro- Pernambuco descobriram os restos ída), depois se tornou El Jadida (Re-
grama Bolsa Família é uma entidade da antiga igreja, de tumbas coletivas, novada). A velha Mazagão, ex-cidade
muito conhecida, ali. e das ruas em torno da praça princi- portuguesa na África, ainda hoje está
Abandonado desde o princípio do pal da cidade que atravessara o ocea- lá. Em 2004, ganhou o título de patri-
século 20, o local do Amapá onde os no, quase dois séculos e meio antes. mônio da humanidade.
portugueses, em 1770, começaram a No Marrocos, a antiga fortaleza dos Pelas fotos, já que nunca estive lá,
construir a cidade transplantada passou portugueses passou muitos anos en- é um espetáculo.
a ser conhecido como Mazagão Velho. tregue a si mesma, até ser reaberta
Em 2003, ele voltou à tona, quando ar- em 1821, como bairro judeu. Antes gustavomaiagomes@gmail.com

notas de rodapé

1. Michael J. Heckenberger. “As cidades perdi- 15. O Globo, 11/1/1981, pág. 16. 24. José Manuel Azevedo e Silva. “De Marro-
das da Amazônia”, Scientific American Brasil, cos para a Amazónia”, in http://www.uc.pt/chsc/
s/d, em http://www2.uol.com.br/sciam/repor- 16. Guilherme Freitas, “Imagens da Resistên- recursos/jmas, pág. 11.
tagens/as_cidades_perdidas_da_amazonia.html cia”. O Globo, 21/12/13, (edição matutina; ca-
derno Prosa e Verso, pág. 2). 25. Esta seção e a próxima seguem de perto o
2. “Em vez de esclarecê-lo, o explorador inglês texto de Marcelo Testoni, “Mazagão: A cidade
Capitão A. M. Morris complica ainda mais o já 17. Luís Paraguaçu. “O que resta de Canudos que atravessou o mar”, Aventuras na História,
misterioso caso do Coronel Fawcett”, A Provín- arrasada”, O Globo, 19/1/1966 (edição matuti- 04/09/2013. (Disponível na Internet.)
cia (Recife), 13/5/1932. na, Geral, pág. 15).
26. Id., ibid.
3. Correio da Manhã, 29/6/1940, pág. 3. 18. Roberto Pompeu de Toledo. “O Legado do
Conselheiro, 2: Duas vezes morto, duas vezes 27. Id., ibid.
4. O Globo, 28/5/1984, pág. 6. ressuscitado”. Veja, 3/9/97, pág. 71.
28. José Manuel Azevedo e Silva. “De Marro-
5. Correio da Manhã, 26/9/1940, pág. 5. 19. Isidro Duarte. “Canudos: Uma história en- cos para a Amazónia”, in http://www.uc.pt/chsc/
cerrada”. Jornal do Brasil, Caderno B, 26/3/1969. recursos/jmas, pág. 6
6. Gazeta de Notícias, 7/8/1940, pág. 3.
20. Brasil aos domingos. Jornal do Brasil, 29. “Roteiro corográfico da viagem que o Ilmo.
7. A Noite, 25/10/1940, pág. 4. 23/9/1962, pag. 17 e Exmo. Sr. Martinho de Souza e Albuquerque,
governador e capitão geral do Estado do Bra-
8. Francisco de Assis Barbosa. “4.600 brasilei- 21. Isidro Duarte. “Canudos: Uma histó- sil, determinou fazer ao rio das Amazonas, em
ros que não querem desaparecer”. Diretrizes, ria encerrada”. Jornal do Brasil, Caderno B, a parte que fica compreendida na capitania do
20/11/1941, pág. 8. 26/3/1969. Grão-Pará: tudo em destino de ocularmente
observar e socorrer a praça, fortalezas e po-
9. Francisco de Assis Barbosa, idem, ibid., pág. 30. 22. “Com a estiagem, cidade de Canudos vol- voações que lhes são confrontantes.” Revis-
ta a aparecer após 17 anos”. Correio 24 Horas ta do Instituto Histórico e Geográfico do Bra-
10. Correio da Manhã, 11/8/1942, pág. 6; A Noi- online, 5/5/13, in http://www.correio24horas. sil, vol. 12, n. 15, 30 Trimestre de 1859. (A via-
te, 30/12/1942, pág. 10. com.br/detalhe/noticia/com-a-estiagem-cida- gem de Martinho de Souza e Albuquerque foi
de-de-canudos-volta-a-aparecer-apos-17-anos/. feita em 1784.)
11. Francisco de Assis Barbosa. “4.600 brasi- Isidro Duarte. “Canudos: Uma história encer-
leiros que não querem desaparecer”. Diretrizes, rada”. Jornal do Brasil, Caderno B, 26/3/1969. 30. José Manuel Azevedo e Silva. “De Marro-
20/11/1941, pág. 30. “Oitenta e dois anos depois: Canudos na me- cos para a Amazónia”, in http://www.uc.pt/chsc/
mória dos que ainda vivem”. Jornal do Brasil, recursos/jmas, pág. 12
12. Correio da Manhã, 29/9/1943, pág. 2. 18/6/79, pág. 10.
31. Marcelo Testoni, “Mazagão: A cidade
13. Correio da Manhã, 21/12/1949, pág. 14.. 23. Guilherme Freitas, “Imagens da Resistên- que atravessou o mar”, Aventuras na História,
cia”. O Globo, 21/12/13, (edição matutina; ca- 04/09/2013. (Disponível na Internet.)
14. O Globo, 28/5/1984, pág. 6. derno Prosa e Verso, pág. 2)

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Imaginação

r
política e um pouco de

rock oll and


na década de todas
as revoltas

luis Carlos Fridman


sociólogo

128 sixties
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o
s embates políticos e culturais da década de 60,
marcados pelo ano emblemático de 1968, fizeram
ressurgir a expressão “assalto ao céu”, mencionada
por Marx ao se referir à Comuna de Paris. O
horizonte muito amplo de iniciativas e lutas teve
como referência internacional a solidariedade em
torno das campanhas pelo fim da guerra no Vietnã,
e, em termos locais, uma imaginação política
renovadora que se estendeu à vida cotidiana. A
contestação arrebatou jovens no mundo inteiro e
deu origem a práticas libertárias e à transformação
de valores e estilos de vida, também presentes nas
esperanças e desafios da contracultura.
Aquele momento embriagador em que toda
mudança parecia estar à mão teve inegável impacto
histórico. Após o ápice da movimentação que atravessou continentes, os ares
da revolta acabaram por se dissipar e deram lugar ao júbilo conservador de
Margareth Thatcher e Ronald Reagan.
O caminho obstruído do “assalto ao céu” foi creditado ao fracasso das utopias da
época. No entanto, para além das formas consagradas de militância organizada, a in-
ventividade das ações políticas protagonizadas por estudantes, hippies radicalizados e
arruaceiros da contracultura criaram antecedentes que ultrapassam o diagnóstico sumá-
rio de ações que esbarraram na “resistência granítica” da realidade. Os embates propi-
ciaram, nos dois lados do Atlântico, formas inéditas de intervenção na sociedade. Nes-
se sentido, a “derrota das utopias” merece mais que um epitáfio.
Os contestadores dos anos 60 forjaram experiências políticas e culturais que tiveram
seguimento, sob outras formas, nas décadas seguintes. Muita coisa fica de fora se o olhar
se fixar apenas nos desmentidos históricos das promessas de felicidade daqueles anos
de intensa agitação, o que acaba por obscurecer os sentidos de um pioneirismo que ain-
da informa ou reverbera nos movimentos sociais contemporâneos.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 129


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a
explosão da criativi- pectivas de vida e estabilidade, ado- A imaginação política
dade musical acom- taram estilos de vida “extravagantes” nos dois lados do oceano
panhou a experiên- onde se dispensava a expectativa de As pichações nos muros de Paris
cia daquela geração suas performances sociais e passaram em 1968 mostraram algo além da cria-
que quis mudar tudo a se orientar pela órbita do desejo e tividade literária francesa na produção
e alimentou afinida- da liberdade. As famílias, os educado- de slogans. Estampavam uma mudança
des com correntes res, os conselheiros e os especialistas de valores e desafios ao poder que não
de opinião e modos buscavam sofregamente as razões de se limitavam às formas de luta experi-
de ação. Tais afini- tanta “insanidade” enquanto redobrava mentadas durante o século XX. Seus
dades vincularam, em graus e mo- a atenção das agências responsáveis dizeres politizavam outras esferas da
mentos variados, o ativismo político, pela manutenção da ordem. vida, imbricando a transformação social
a contracultura e o rock quando “[...] O cientista político André Singer com a transformação individual, como
os problemas morais/existenciais [fo- observa o surgimento do rock and roll estava escrito nas pichações «quanto
ram]... ativamente recuperados e trazi- na América dos anos 50 como expres- mais eu faço amor, mais tenho vonta-
dos para o debate público”, como su- são do lazer dos jovens trabalhadores de de fazer a revolução; quanto mais
gere o sociólogo inglês Anthony Gid- e seu poder de irradiação na juventude faço a revolução, mais tenho vontade
dens (Giddens, 2002:206). As imagens de classe média nos anos 60: de fazer amor» ou “tomo meus dese-
e mensagens contidas nas canções de jos por realidade, porque acredito na
rock, assimiladas ao comportamento O rock and roll dos anos 50 não tinha realidade dos meus desejos”.
e aos estilos de vida, vieram a se adi- uma direção política definida, mas, Outra convocação espantava os es-
cionar às aspirações que imiscuíam ao celebrar o lazer disruptivo da ju- trategistas mais sóbrios: «Sejam rea-
questões morais e existenciais com ventude trabalhadora norte-america- listas, exijam o impossível.» Tal pala-
as lutas sociais. Naquele contexto de na, apresentava uma rebeldia coleti- vra de ordem continha a disposição de
insurgências que tomavam as ruas e va, ao passo que o rock dos anos 60 “abrir fendas” no sistema, concepção
afetavam a vida privada, uma espé- caminhou na direção da transforma- que aproximou destacados intelectuais,
cie de “politização à revelia” emana- ção individual. A ideia de mudança como Jean-Paul Sartre e Edgar Morin,
va da gritaria dos adolescentes e dos interior alcançou foros de utopia co- do líder estudantil Daniel Cohn-Bendit,
hormônios à solta. Parcelas da juven- letiva, é verdade, a partir da segun- conscientes de que os grandes pode-
tude, que por suas origens de classe da metade da década, mas sempre res não se aproximavam de seu fim.
não estariam inclinadas a romper com acoplada às propostas de não violên-
o que lhes era oferecido como pers- cia, de mudança social sem confron-
to físico, armado e como aspiração
genérica da juventude, não só pro-
letária (Singer, 1985:60).

A rebeldia não derivou apenas no


pacifismo. Permitiu também o surgi-
mento de uma imaginação política
que ampliou o campo de afrontas às
instituições vigentes.

130 sixties
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

No calor dos acontecimentos da Para mim, não se trata de fazer me- do Terceiro Mundo são as que pro-
revolta estudantil na França, precisa- tafísica, nem de indagar como se vocarão a derrubada do mundo ca-
mente no dia 20 de maio de 1968, Je- terá que realizar a revolução. Já dis- pitalista. Outros: somente graças à
an-Paul Sartre entrevistou Daniel Co- se que creio que caminhamos muito revolução no mundo capitalista po-
hn-Bendit para a revista Le Nouvel Ob- mais para uma mudança perpétua da derá haver desenvolvimento do Ter-
servateur. Na conversa, Sartre chamou sociedade, provocada, em cada eta- ceiro Mundo. Todas as análises são
de expansão do campo do possível o pa, por ações revolucionárias. A mu- mais ou menos bem fundamentadas,
alcance das ações dos jovens que er- dança radical das estruturas de nos- mas na minha opinião isso não tem
guiam as barricadas. sa sociedade somente seria possível maior importância (Cohn-Bendit apud
Na entrevista concedida a Sartre, se se produzisse de repente a con- Cohn & Pimenta, 2008:18).
Daniel Cohn-Bendit (“Danny, le rouge”) comitância de uma crise econômica
demonstrava clareza do terreno em que grave com a ação de um potente mo- A “metafísica” recusada admitia
se movia. Suas palavras não se con- vimento operário e de um forte mo- que o futuro radiante não estava logo
fundiam com anseios utópicos de uma vimento estudantil. Hoje estas con- adiante. A intenção revolucionária – a
mudança abrupta, total e definitiva: dições não estão dadas. O máximo “mudança perpétua da sociedade” –
que se pode pretender é a queda do não delimitava às configurações insti-
governo. Mas não se pode sonhar tucionais do futuro. Naquele momen-
com destruir a sociedade burgue- to de fervor da agitação e de atordo-
sa. O que não significa que não haja amento dos poderes constituídos, as
nada a fazer; pelo contrário, é neces- palavras de Cohn-Bendit expressavam
sário lutar passo a passo a partir de
um questionamento global. A ques-
tão de saber se ainda podem ocor-
rer revoluções em sociedades capi-
talistas avançadas e o que se tem
que fazer para provocá-la, realmen-
te não me interessa. Cada qual com
sua teoria. Uns dizem: as revoluções

A explosão da

criatividade musical
acompanhou a experiência daquela geração
que quis mudar tudo e alimentou afinidades com
correntes de opinião e modos de ação

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 131


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O que vem acontecendo há duas se-


manas, a meu ver, é uma refutação
da famosa teoria das “vanguardas re-
volucionárias” consideradas como as
a consciência de que as condições de forças dirigentes de um movimento
ruptura não estavam dadas, mas reve- popular. Em Nanterre e Paris houve
lavam igualmente o propósito de sa- simplesmente uma situação objeti-
cudir a coesão do sistema. A amplia- va, nascida do que se chama vaga-
ção das iniciativas políticas, o “passo a mente de “o mal-estar estudantil” e
passo”, impunha-se às expectativas de da vontade de ação de uma parte da
suposta destruição da sociedade bur- juventude, decepcionada pela inação
guesa. Ao invés da domesticação e do das classes que exercem o poder. A
arrefecimento da insurgência propos- minoria ativa pode, pelo fato de ser
to pelo Partido Comunista Francês, os teoricamente mais consciente e es-
estudantes se lançavam em um ques- tar mais preparada, acender o esto-
tionamento global, radical, a exigência pim e meter-se pela fenda. Mas isso
do impossível, que estava a serviço de é tudo. Os outros podiam seguir ou
fendas a serem abertas e de oportu- não seguir. Acontece que seguiram.
nidades novas de desafios ao poder. Mas depois, nenhuma vanguarda,
A obediência a um roteiro prévio seja a UEC, a JCR ou os “marxistas-
da revolução não sumarizava as pre- -leninistas”, pôde assumir a direção esclarecida”. Na explosiva sucessão
tensões da revolta estudantil, apesar do movimento. Seus militantes pude- das insurgências, os estudantes não
de figurar nas ideias de grupos que ram participar das ações de um modo se pautaram preferencialmente por
participavam ativamente dos emba- decisivo, mas desapareceram absor- um percurso estratégico subordina-
tes. A intenção de produzir o ultima- vidos pelo movimento. Eles estão do às diretivas de um núcleo organi-
to às classes dominantes foi substitu- nos comitês de coordenação, onde zador. Na época, e mesmo depois, tal
ída pela ampliação do escopo da ação, possuem um papel importante, mas insubmissão a partidos e vanguardas
movida por necessidades radicais, ob- em nenhum momento houve opor- foi associada ao anarquismo. Eviden-
jetivas e subjetivas. A sucessão des- tunidade para que essas vanguardas temente havia parentescos com essa
sas investidas políticas chegou a es- desempenhassem um papel diretivo ideologia, mas a ampliação dos limi-
tremecer os alicerces do governo pelo (Cohn-Bendit, apud op.cit., 2008:19). tes da invenção política não foi uma
apoio recebido dos operários e de am- decorrência secundária.
plos setores da sociedade francesa, a Cohn-Bendit manifestava seu de- Jean-Paul Sartre, integrado às ações
ponto de o general Charles De Gaulle sinteresse pelos trajetos históricos su- de contestação naqueles dias, viu em
ter se deslocado para a Alemanha no geridos pelas teorias da revolução em Cohn-Bendit o representante destaca-
auge da crise que prendeu a respira- voga em 1968 – “Na minha opinião isso do de potências que levavam “a ima-
ção do país por quase um mês. A di- não tem maior importância” –, pois a ginação ao poder”. Em suas palavras,
nâmica desse breve e explosivo curso ênfase residia na margem de liberda- “... vocês têm uma imaginação muito
de acontecimentos ganhou a seguinte de de ação que, de certa maneira, dis- mais rica e as frases que se lê nos mu-
interpretação de Daniel Cohn-Bendit: pensava a concepção da “vanguarda ros da Sorbonne provam isso. Existe

132 sixties
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

algo que surgiu de vocês que assom- influente jornal israelense “Haaretz”, Ho- mo compulsório. Se as pessoas fos-
bra, que transtorna, que renega tudo ffman forneceu uma versão hilária do sem obrigadas a comer o que matam,
o que fez de nossa sociedade o que termo. “Yippie” não provinha de You- não haveria mais guerras.” E outras:
ela é. Trata-se do que eu chamaria de th Internacional Party, mas uma junção “Com certeza éramos jovens, éramos
expansão do campo do possível. Não de “yiddisher hippies” (hippies judeus). arrogantes, éramos ridículos, éramos
renunciem a isso” (Sartre apud op. cit., Hoffman não teve vida fácil em seu exagerados, éramos levianos, mas tí-
2008:25, grifos dele). país. Perseguido pelo FBI, ele viveu na nhamos razão.” “Os anos 60 termina-
A “expansão do campo do possí- clandestinidade por vários anos sob o ram, a droga nunca será tão barata, o
vel”, efetivada pelo radicalismo dos nome de Robert Freed, depois de sub- sexo nunca será tão livre e o rock and
estudantes franceses, continha apos- metido a várias operações plásticas. roll nunca tão bom.” “A democracia
tas políticas que mesclavam “apelos Entregou-se em 1980 e morreu em se mede pela liberdade que dá a seus
à transcendência” ao lado de arrojos 1989 por dose excessiva de barbitú- dissidentes, não pela liberdade que dá
de imaginação política que produziram ricos. Suas frases ficaram famosas, aos conformistas assimilados.”
efeitos sobre as relações de força na entre elas: “Sou a favor do canibalis- Em 1967, Hoffman e Rubin partici-
sociedade francesa naquele momento. param da organização de um protesto
O sentido meramente utópico desse em frente ao Pentágono, onde havia a
conjunto de iniciativas merece relativi- promessa de fazer levitar o complexo
zação, inclusive por suas repercussões de edificações. Com isso, atraíram a
em movimentos sociais posteriores. atenção de toda a mídia americana e
Já na América convulsionada por alcançaram repercussão nacional para
movimentos contra a guerra no Viet-
nã, dois radicais de Nova York, Abbie
Hoffman e Jerry Rubin, fundaram uma
organização política muito pouco con-
vencional chamada Youth International
Party. Definiam-se como “maníacos por
ações” e se orientavam pelo que cha-
mavam de “ideologia do ato”. Eram
conhecidos como yippies, acrônimo
do título de seu extravagante partido.
Pouco antes de falecer, em entrevista
concedida ao jornalista Benny Avni, do

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 133


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o movimento pela paz. Também foram bre isso, agora se você quiser experi- ação. Você tem que mostrar imagens
julgados e condenados como integran- mentar, aqui está. Mas, P.S.: a propósi- (Hoffman apud op. cit., 2008:203).”
tes dos Sete de Chicago, um conjunto to, apenas por segurar isso você pode Os hippies concebiam suas ações
de lideranças das manifestações con- pegar cinco anos de prisão (Hoffman como acontecimentos que buscavam
tra a convenção do Partido Democrata apud op. cit., 2008:198).” desmontar o mundo de fantasia cole-
em 1968, que abrigava correntes que Inspirado nas irreverentes entre- tivo propagado pela televisão. Esses
conferiam sustentação política à guer- vistas coletivas dos Beatles e de Bob embates, para eles, eram jogos que
ra no Vietnã. Dylan, Hoffman brincava de virar o jogo seguiam a regra de atos políticos. Ain-
No verão americano de 1967, em da manipulação da mídia. Tinha clare- da Abbie Hoffman:
um acontecimento por demais conhe- za da dinâmica da “sociedade do es-
cido, Hoffman e um grupo de hippies petáculo” como atesta a declaração: Nós não tínhamos que dizer com todas
jogaram centenas de notas de um dó- “Nós sabíamos que estávamos falan- as letras nossa ideologia porque era
lar no chão do salão da Bolsa de Valo- do para uma sociedade que deixou de muito claro, se você seguisse nossos
res de Nova York, enquanto viam cor- ser literária, tanto pós ou pré-literária. atos e se você tentasse fazer todas as
retores agachados em busca do di- Essa sociedade estava em uma fase na conexões intelectuais, você encontra-
nheiro para espanto, aplausos e vaias qual poderia assistir e ouvir, não que- ria muita teoria. Nós tínhamos visões
dos que lá se encontravam. O fato al- ria ler. Então, para espectadores ou ou- utópicas, “abolir dinheiro”, era grande.
cançou uma enorme repercussão na vintes, você tem que mostrar alguma E “abolir trabalho”. Nós éramos anti-
imprensa, tornando o episódio uma trabalho, antidinheiro. Então, o arre-
dessas histórias com muitas versões messo de dinheiro na Bolsa de Valo-
que acabam virando um mito. res se encaixou nisso. Você poderia
Além do episódio da Bolsa de Nova dizer que éramos anticapitalistas, e
York, os hippies faziam campanha con- nós éramos, mas nós não tínhamos
tra banheiros pagos na cidade e a du- um “ismo”. Nós tínhamos a ideia de
reza das penalidades da legislação an- liberdade. Nós persistíamos na ideia
tidrogas. Com dinheiro fornecido por que tudo deveria ser de graça, já que
Jimi Hendrix, enviaram três mil cigar- nossa sociedade era tão rica. Nós tí-
ros de maconha para moradores es-
colhidos na lista telefônica com uma
carta que dizia: “Você já leu muito so-

os hippies
concebiam suas ações como acontecimentos
que buscavam desmontar o mundo de fantasia
coletivo propagado pela televisão

134 sixties
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nhamos lojas gratuitas, você poderia


entrar e pegar todas as roupas que
quisesse. Comida de graça no par-
que. Poemas e concertos de graça. A
ideia era que estávamos vivendo em
“pós-escassez”. Nós tínhamos fartu-
ra nesse período, como sociedade.
Trabalhávamos em direção ao fim do
desemprego, trabalhávamos em di-
reção de uma sociedade com mais ções, sempre de forma espontânea.
qualidade de vida. Por que trabalhar Com intenções fundadas no caráter
num emprego por período integral? É exemplar a ser adotado por aqueles
chato. Bem, naturalmente porque as que porventura se sentissem impeli-
pessoas precisam de dinheiro. Bem, dos à ação, a “ideologia do ato” guar-
nós éramos tão ricos, nós somente dava semelhanças, em contextos ab-
iríamos dividir a riqueza. As pessoas e a agitação poderia vir de qualquer lu- solutamente diversos, com a “minoria
têm o direito à saúde, tratamento mé- gar. Os valores anticapitalistas infor- ativa” e a auto-organização dos estu-
dico gratuito, o que fornecíamos no mavam a ação e a criação de institui- dantes franceses. A movimentação
Lower East Side. Tivemos várias ins- ções que indicavam uma ordem alter- central na América contra a guerra no
tituições que atuaram como modelo nativa pelo tempo que pudessem ser Vietnã unia duas culturas políticas, a
por um período, pelo tempo que pu- sustentadas. da contracultura e dos hippies com a
demos sustentá-las. Quando você via Milhares de pessoas participaram contestação esquerdista. Ambas visa-
uma loja que dizia “loja grátis”, você dessas iniciativas de imaginação po- vam a alargar as vias de combate ao
poderia entrar e levar qualquer coisa lítica, com crenças variadas em sua sistema. Utópicos? Nem tanto.
que quisesse, que você gostasse. O efetividade, muitos sabendo da efe- Nos anos 60 e meados da década
furto de mercadorias não era permi- meridade dos projetos. Jerry Garcia, de 70, os intelectuais públicos não se
tido. E pessoas poderiam entrar e lar- o famoso guitarrista da banda Grate- resumiam àqueles que organizavam
gar todos os seus cacarecos, e tínha- ful Dead, já falecido, comentou: “Afi- manifestações, escreviam livros e arti-
mos outras pessoas separando-os e nal, o retrato da mídia dos jovens hi- gos na imprensa, proferiam conferên-
arrumando-os. Nós estávamos cons- ppies inocentes que carregavam flo- cias e interviam no debate político. En-
truindo uma comunidade de, talvez, res era uma piada. Tudo mundo sabia tre eles, John Lennon fazia canções e
quarenta ou cinquenta mil pessoas o que estava acontecendo. Não era colocava sua enorme popularidade a
no Lower East Side em New York (Ho- tão inocente assim... Ninguém ficava serviço de causas políticas. Como no
ffman apud op. cit., 2008:200- 201). surpreso porque ia preso. A surpresa episódio da prisão de Angela Davis,
era não ir preso (Graham & Greenfield, uma jovem professora universitária
Os “maníacos por ações” america- 2008:206).” que havia sido assistente de Herbert
nos também buscavam abrir fendas e A ideia de sensibilizar outros gru- Marcuse (Hoffman fora aluno dele na
não pretendiam submeter seus simpa- pos em todo o país através dessas Universidade de Brandeis) e namorava
tizantes a um projeto definido por uma ações obteve sucesso. A identifica- um destacado militante da organização
vanguarda. Eles se colocavam apenas ção com a “ideologia do ato” poderia Panteras Negras. Davis fora trancafiada
como uma referência, como exemplo, ser reproduzida em diferentes situa- sob falsas acusações de assassinato,

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sequestro e conspiração. No mesmo você é um dos milhares de prisionei- chard Nixon “tinha pessoalmente lan-
período, John Sinclair, um radical de ros políticos no mundo/ …/ Irmã, você çado mão de truques muito baixos e
Chicago fundador do partido “Panteras ainda é a professora do povo/ Irmã, sua atiçado seus cães contra John Lennon”
Brancas”, cumpria pena de dez anos palavra pode alcançar grandes distân- (Richards, 2010:13-14), com base na
de prisão por ter oferecido dois cigar- cias/ Irmã, existe milhões de diferen- suspeita de que o ídolo do rock poderia
ros de maconha a uma policial disfar- tes raças/ mas nós todos dividiremos contribuir para desestabilizar sua cam-
çada. Na campanha pela libertação de o mesmo futuro no mundo). panha eleitoral à presidência da Améri-
ambos, Jerry Rubin foi um dos organi- Para Sinclair, o estribilho dizia: They ca. No mesmo período, John Lennon
zadores de um concerto cuja atração give him ten for two/ What else can estabeleceu contatos com Tariq Ali,
principal foi John Lennon e que alcan- the judges do?/ Gotta, gotta.....gotta, o trotsquista paquistanês que havia
çou um público de quinze mil pessoas. set him free (Eles lhe deram dez por sido o principal líder estudantil da In-
Três dias depois, Sinclair ganhava a li- dois/ O que mais podem os juízes fa- glaterra na explosão de 1968, a quem
berdade. Esta participação certamente zer?/ O que têm a fazer, o que têm a deu uma longa entrevista que está re-
contou para a tentativa de deportação fazer... o que têm a fazer é colocá-lo produzida em O poder das barricadas
de Lennon por parte das autoridades em liberdade). – uma autobiografia dos anos 60 (Ali,
americanas (Norman, 2009: 682-685). Keith Richards, o guitarrista dos 2008:375-392).
No disco “Some Time in New York Rolling Stones, em seu livro autobio- A vertente mais politizada dos es-
City” Lennon gravou duas canções, “An- gráfico Vida, lembra que em 1972 Ri- tudantes americanos estava organi-
gela e John Sinclair”. Na primeira, a le- zada em torno da SDS (Students for
tra dizia: Angela, they put you in pris- a Democratic Society), que durante
on/ Angela, they shot down your man/ a ascensão do movimento estudan-
Angela, you’re one of the millions of til e da luta contra a guerra no Vietnã,
political prisioners in the world/…/ Sis- chegou a ter 100 mil afiliados (Sousa,
ter, you’re still a people teacher/ Sister, 2009:29). Em 1970, quando Nixon es-
your word reaches far/ Sister, there`s a tendeu a guerra ao Camboja, a SDS
million different races/ but we all share deflagrou uma greve que paralisou
the same future in the world (Ange- um quinto das universidades ameri-
la, eles a puseram na prisão/ Angela, canas com a adesão de um milhão e
eles atiraram no seu homem/ Angela, meio de estudantes. Um de seus prin-
cipais líderes, Tom Hayden, esteve en-
tre os radicais que haviam sacudido o
país em demonstrações em Chicago
e Washington.
Em A nova esquerda americana –
De Port Huron aos Weathermen (1960-
1969), Rodrigo Farias de Sousa descre-
ve alguns princípios políticos da SDS,
especialmente a “ação direta” e o im-
bricamento entre a política e a cultu-
ra, ou o nexo entre as transformações
subjetivas, a mudança das instituições

136 sixties
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

JOhn lennon
vistas na Inglaterra usaram uma ver-
são de “Yellow submarine” que dizia
“We all live on bread and margarine”
(Todos vivemos de pão e margarina) e
fazia canções e colocava sua em tempos de grande agitação na Lon-
don School of Economics (LSE), estu-
enorme popularidade a serviço
dantes e professores cantavam “We all
de causas políticas live in a Red LSE” (Todos vivemos na
LSE vermelha) (Ali, 2008:381).
Nas grandes manifestações londri-
nas, um grupo de hippies radicalizados
sempre dispostos ao confronto com a
polícia caminhava atrás de uma faixa
que dizia “Mártires da cannabis” (Ali,
e a vida cotidiana. Tom Hayden (tam- 2008:283). Os yippies de Abbie Hofman
bém um dos autores da “Declaração tinham similares em Londres: voluntá-
de Port Huron”, documento seminal rios quiseram formar uma delegação
da Nova Esquerda americana) concla- e vomitar em frente à Downing Stre-
mava os militantes a serem igualmen- et número 10, residência do primeiro-
te “guerrilheiros no terreno da cultura” -ministro Harold Wilson, em protesto
(Sousa, 2009:21). Ávido leitor de On the contra a política de apoio aos Estados
road, de Jack Kerouac, anteriormente deciam necessariamente a princípios Unidos no Vietnã.
Hayden já se largara de carona pelas ideológicos unificadores. Apesar das O movimento estudantil inglês
estradas americanas. polêmicas inevitáveis e das polariza- avançou no fim de 1967 e, em março
Uma das façanhas de Hayden na ções acirradas em torno de métodos de 1968, cerca de vinte mil pessoas,
militância da “ação direta” foi conse- e táticas, os “guerrilheiros culturais” e entre elas Mick Jagger, tentaram che-
guir a renúncia da decana da Universi- os “maníacos por ações” ombreavam gar à embaixada americana em Lon-
dade de Michigan, que havia montado na contestação ao sistema. Todos pro- dres para entregar um abaixo-assinado
um esquema de vigilância contra mo- tagonizaram iniciativas que alargaram pacifista, ao que se seguiu uma inten-
ças brancas que namorassem negros, o campo da política. sa batalha campal que redundou em
incluindo a colaboração de motoristas Em 1966, durante uma greve es- trezentas prisões e ferimentos gene-
de táxis e o envio de cartas às famílias tudantil na Universidade de Berkeley, ralizados em manifestantes e policiais
denunciando a “transgressão”. Hayden na Califórnia, por volta de mil pessoas (Gould, 2009:538). Mick Jagger, já en-
conseguiu provas contra a autoridade cantavam a Internacional e muitas de- tão um ídolo mundial do rock and roll,
acadêmica, que se sentiu obrigada a las não sabiam a letra do hino revolu- saiu ileso e logo após o conflito escre-
abandonar o posto (Sousa, 2009:89). cionário. Surpreendentemente passa- veu “Street fighting man”, cuja letra foi
A ideia de revolução cultural se ram a entoar o sucesso “Yellow subma- enviada para Tariq Ali em um pedaço
imiscuía à prática política. Além disso, rine”, dos Beatles, divulgado poucas de papel para ser publicada no jornal
a ênfase na autonomia constituía um semanas antes (Gould, 2009:403). No esquerdista The Black Dwarf, editado
elemento importante de sustentação livro de Ali, o sociólogo inglês Robin por Ali e seu grupo político. Sucesso
de formas de militância que não obe- Blackburn lembra que operários gre- que ultrapassou as fronteiras da Ingla-

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terra, a canção serviu de eco às bata- Os Provos defendiam a ecologia, a cidade de Amsterdam. Dentre eles:
lhas de rua que ocorriam por toda parte. o fim da monarquia, a vida nômade, a Plano da Bicicleta Branca – Os Pro-
Na Holanda, os Provos, um nume- arte imiscuída com a vida e abomina- vos propunham que a cidade tivesse
roso contingente de estudantes, artis- vam os automóveis, a polícia e a igre- bicicletas sem dono com a compra de
tas, intelectuais e arruaceiros encabe- ja. Propunham o uso generalizado da vinte mil delas por ano pela prefeitura
çou o movimento contracultural e anar- bicicleta e a irrestrita emancipação se- a serem espalhadas para uso público.
quista de Amsterdam. Provos era uma xual, sobretudo do homossexualismo. Plano do Cadáver Branco – Estabele-
abreviação de “provocadores”. Entre Propunham a legalização do uso da ma- cia que o responsável por cada mor-
1965 e 1967, período de sua atuação conha, o fim da propriedade privada e te por atropelamento deveria, sob a
mais intensa, eles tiveram papel deci- rejeitavam qualquer forma de poder ou escolta da polícia, esculpir no asfalto
sivo na disseminação da desobediên- proibição. Além da agitação, dos ha- os contornos de sua vítima com for-
cia civil e no assédio à passividade dos ppenings e do desafio generalizado às mão e martelo, numa profundidade de
cidadãos. Entre seus integrantes mais autoridades, divulgavam planos para três centímetros, e preencher o espa-
lúcidos já havia a percepção de que se ço com argamassa branca. Plano das
moviam na sociedade do espetáculo e Galinhas Brancas – Ganhou esse título
suas iniciativas guardavam semelhan- pelo apelido dado aos policiais; “kip”
ças com a “ação direta” dos yippies, é galinha em holandês. Os agentes
da SDS, dos estudantes franceses e de segurança deveriam ser transfor-
demais “maníacos”. Ganharam popula- mados em trabalhadores sociais que,
ridade e, apesar da repressão policial, em lugar de armas, carregassem sa-
chegaram a ter um representante na cos brancos repletos de doces e fru-
Câmara dos Vereadores, que depois tas a serem distribuídos aos transeun-
desistiu da política institucional para tes. Reivindicava que cada municipa-
se tornar um obscuro ator de cinema. lidade escolhesse democraticamente
seu chefe de polícia. Plano das Chami-
nés Brancas – Destinava-se à cobrança
de multas para quem poluísse o ar. As
chaminés dos maiores poluidores de-
veriam ser pintadas de branco. Plano
das Mulheres Brancas – Exigia a cria-
ção de clínicas públicas que ofereces-
sem orientação e contraceptivos grátis

o rock and roll


exibiu afinidades entre aqueles que se
encantavam com as inovações e revoluções na
linguagem musical com as inquietações e ações
daqueles que afrontavam a ordem

138 sixties
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

para mulheres maiores de dezesseis


anos. Recomendava também que as
mulheres não casassem virgens e que
experimentassem bastante a vida se-
xual antes de casarem e procriarem.
Plano das Moradias Brancas – Consi-
derava que o Estado deveria intervir e
frear a especulação imobiliária e que wm rememorou a contestação dos
os prédios vazios fossem disponibili- anos 60 e meados dos 70 como um
zados para habitação temporária de terremoto cultural. Ao invés da revo-
pessoas sem moradia se estes esti- lução malograda – o “assalto ao céu”
vessem à espera de solução por parte como emblema de uma derrota e o en-
dos donos ou do poder público. terro das aspirações de longo alcance
Os projetos dos Provos não ficaram por força de utopias desencontradas
relegados à curiosidade histórica. Hoje – os anos 60 mostraram que a ação
as bicicletas brancas e a liberalização e a imaginação políticas alcançaram
da maconha fazem parte da rotina outras esferas da convivência social
de Amsterdam. Em 2006, a cidade já em “efetiva ratificação de outro tipo
ostentava quinhentas mil bicicletas de revolução”.
para uma população por volta de se- “O que é pessoal é político” não
tecentos e cinquenta mil habitantes. era a palavra de ordem de utópicos
A “provocação” permanece gravada a década de 60 assistiu “à destruição em uma oportunidade histórica des-
na vida da cidade. dos padrões tradicionais de relaciona- perdiçada, mas a despedida da políti-
mento entre pessoas e comportamen- ca tradicional de esquerda no interior
Rock and roll to pessoal dentro da sociedade exis- da “sociedade existente”. Ou, em in-
Em maio de 1968, o historiador Eric tente” (Hobsbawm, 2002:279, grifos terpretação mais abrangente: “O que
Hobsbawm participava em Paris de um dele). E mais: “Nesse caso, não teria realmente transformou o mundo foi
congresso sobre “Marx e o pensamen- sido uma tentativa malograda de fazer a revolução cultural da década de 60
to científico contemporâneo”, onde “... um tipo de revolução, mas a efetiva ra- (grifos dele) (Hobsbawm, 2002:290).”
um pelotão de burocratas ideológicos tificação de outro: o que aboliria a po- Aquela onde se misturaram Abbie Ho-
da União Soviética contribuía com mo- lítica tradicional e, no fim das contas, ffman, John Lennon e Daniel Cohn-
nografias extremamente tediosas sem a política da esquerda tradicional atra- -Bendit, além de uma multidão de ino-
qualquer interesse [...] os palestrantes vés do slogan ‘O que é pessoal é polí- vadores e anônimos que se lançaram
se sentiam estimulados a deixar o salão tico’ (Hobsbawm, 2002:279).” à ação. Nas muitas dimensões das
de conferências e ir passear nas ruas” Algumas décadas depois, o histo- revoltas e insurgências dos anos 60,
(Hobsbawm, 2002:206). E as ruas fer- riador recuperou o sentido e a abran- por toda parte se sentia o estímulo à
viam, para perplexidade e entusiasmo gência das mudanças que ampliaram invenção estética e moral. Os signos
de intelectuais geralmente identifica- o escopo das disputas de poder na so- das novas aspirações acompanhavam
dos, como ele, com os Partidos Co- ciedade. Em texto de tocante hones- as manifestações de massa e também
munistas. Hobsbawm reconhece que tidade intelectual ao reconhecer seus podiam ser reconhecidos nas paradas
ele e seus pares não perceberam que equívocos de interpretação, Hobsba- de sucessos.

JULHO • AGOSTo • SETEMBRo 2015 139


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Na revolução cultural apontada por miradores. Compunham canções que Parte expressiva do público que adora-
Hobsbawm, o rock traduzia os ímpe- expressavam os sentimentos e dese- va a caudalosa criatividade musical da
tos de rompimento com os padrões jos dos jovens em uma época muito época não projetava na política a rea-
tradicionais. Em Tempos interessan- agitada que permitiu essa aproxima- lização de suas inquietações e dese-
tes, ele reforça: “... se há alguma coi- ção entre a música popular e a política. jos, apenas se deixava encantar pelas
sa que simboliza os anos 60 é o rock Milhares de jovens participavam de melodias, letras, intensidades vocais e
and roll (Hobsbawm, 2002:279).” Além manifestações, batalhas de rua, happe- inovações instrumentais. No entanto,
dos deleites artísticos, o rock deno- nings, liam panfletos e livros, mas esse a eletrizante atmosfera da época favo-
tou a emergência de algo que o ultra- contingente foi ampliado por “inadverti- receu que êxtases estéticos privados
passava, a “politização da experiência dos” que compravam discos e ouviam marcassem encontros significativos
existencial” ou “politização para além nas rádios as suas canções preferidas. com demandas públicas e as vidas
da política tradicional”. Na década de pudessem ser tocadas em outras di-
todas as revoltas, o barulho da época reções. Esse caudaloso fluxo de emo-
esteve recheado de notas musicais. ções, valores e visões de mundo atra-
Vale ressaltar que o rock and roll vessou a demarcação dos campos, ao
não foi a “forma” artística de “conteú- contrário do que se observa em tem-
dos” que povoavam a arena da políti- pos de quietude ordeira.
ca, mas exibiu afinidades entre aque-
les que se encantavam com as inova- O autor é professor do Departamen-
ções e revoluções na linguagem mu- to de Sociologia e do Programa de
sical com as inquietações e ações da- Pós-Graduação em Sociologia e Di-
queles que afrontavam a ordem. Artis- reito da UFF
tas reverenciados e amados do mun- lcfridman@bighost.com.br
do do rock poucas vezes conceberam
sua arte como um meio de despertar a
consciência política de seus fãs e ad-

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