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Mediavalismo epoesia moderna

Francisco José Gomes Corre:'a*

Introdugio

A infllléncia do Modiovo permoia toda a produqio literéria quo [ho é posterior


— sobrotudo a qua so vincula a estétioas nas quais é visivel o primado da
subjetividadc, dz-.1 musicalidade ou da emoofio. Seja através dos trovadores galogo-
portugueses, com as canfigos do omor o, sobrotudo, as do amigo, soja pela
vortento dos romanoeiros, obsorva-so dosde o pré-romantismo a presonga dc
tomas e dc recursos retorico-ostilisticos ligados A Idads Média. Segundo Denis
do Rougcmont, “toda a poosia do Ocidente descends do amor oortés c do romance
brctfio quo dole doriva’" c, diante disso, ostenta maroas qua a vinoulam, tanto
no dominio da oslrutura quanto no dos motivos e das imagons, a essas matrizcs
fundamentais.
Um dos exagoros da historia Litoréria, ligado A modornidado poélica (o aqui
permitimo-nos mencionar, paniculannente, o modexoismo brasiloiro) é o do
que. ola represontou uma ruptura na ooncepqfio o, sobretudo, na manoi ra dc fazer
poosia. Estudando autoros brasileiros desde o Simbolismo, peroobe-so quo as
atitudos o os procossos ligados £1 nova poética, so ¢I1fflli?.31'I{1 atitudos como a
metalinguagom e o contramonto na fatura do objoto ostétioo, nfio dispcnsam
contudo os recursos quo aoentuam a musicalidado e a omogfio — o do quo siio
oxcmplos o paralelismo, a roiteragfio, o metro hcptassilzibico o oulros oxpediontcs
ligados 51 poesia do Modievo.

Trés oxemplos paradigmfiticos

O csludo ovolutivo das espécies liricas (alba, barcarola, tonofio etc.)


dcmonstra quo os poetas modernos so utilizam dossos moldes Lradicionais,
transformando-os o adaptando-os ao sou artesanato o ao sou tomperarnonto.
Remontanclo comumonte d Biblia, tais espécios ovoluem proscrvando certos

* Francisco J. G. Corrcia (Chico Viana) é: profossor do Tooria do Literatum o Literatu-


ra Brasiloira no UFPB.
' ROUGEMUNT, Denis do. 0 omor s o Ocidente. Rio dc Ianoiro: Guailabara, 1938.
p. 110.

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Lroeos eorocteristicos, ligados oo teor emotive-sentimental dos eomposiooes, e
so mesmo tempo inoorporondo prooodimontos e moreos lo:-ricois, ostrutnrois e
semélntieos prdprias dos diferontos estilos do époeo. O estudo dosse oontinnum
demoostro que ossos espécios ostoo mois prosontes do que so penso nos textos
dos outores modemos.
Alguns desses autones vom sendo estudados no projeto integrodo do posquiso
Procnrsoros modiovois dopoosio moo'orno: posquiso o trodugfio do toxto,’ que
desonvolvemos om porcerio com o Prof. Dr. Maurice Von Woensel. De um
conjunto omplo qne tom-so sorvido dos moldes o dos temos prdprios do poesio
medioval, destoeomos neste ortigo Onostoldo do Permofort, Augusto dos Anjos
o Jofio Cabral do Melo Neto.
Onestoldo do Ponnafort é, polo menus dentre os eitados, quem mois acuso
influéncio do poesio medieval. Autor vinoulodo oo nosso Simbolismo e
injustomente poueo eonhoeido hojo, nele sfio perceptivois os ressonfincios dos
trovadores galego-pormgueses. Dos contigos do omor o do amigo, o suo lirieo
presorvo sugestfies e recursos formois (como o téenica do poroloiismo) e,
sobretudo, o represontaefio idoolizodo do objeto omoroso, dianto do quem o oo
poétioo so prostra em expectativo o quase veneroqzoo - eonforme atestom estes
verses do poems “Chuvo". “Se elo estivosse aqui... Se elo viosse/escutar o mou
nomef que nos meus lobios toroo o forms do unis proee”?‘.
Onestaldo do Ponnfort otuolizo topieos medievois eomo o do olhor,
desoncodeodor por oxoeléncio do poixoo omorosa, o o do omor eonoebido eomo
urn obstoculo. O sou lirismo, reeheodo do imogens em que sobressoem o
sublimofio o o idealizoeflo, ilustro o parodoxo born medieval do “urn omor que
remmeio s possibilidade do satisfafio do desejo amoroso”, on soja, do uma
paixfio que so colnproz em cantor, e onaltoeer, oquilo que a tomo impossivel.
Conforme observo Denis do Rougoment oo comentar o mito de Tristfio o
Isolda, nos peripocios em quo os dois so envolvom “o obstoenlo jo 1150 esto o
sorviqo do poixoo fatal; oo eontrorio, tomou-so o obje11'vo,'o fim desojodo por si
mosmo”". Esse eolto do obstoculo oeobo desvisndo os omontos um do outro. 0
dever do reniincia os for: persoguir noo o objeto, perdido no miragem do
idoalizaeoo, mos o omor em si mesmo, on sejo, o propno oto do amor. Tudo que
o omor lhos ptopicio é o prozer mosoquisto do cultivor o obstziculo, condiqoo
esta dromoticotnente tomotizoda por Onostoldo do Pennafort, per oxemplo, no
poems “Index”: “Nosso omor soro entoo um obstoeulo quo nos sepore? (. . .)/ Ah,

I Apoiodo pelo CNPq entre 03295 e U2f99.


1" PENNAFORT, Onestaldo do. Poosfo. Rio do Janoiro: Record, I937. p. 49.
‘ ROUGEMONT, D. op. on‘. p. 33.

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ostos do outro lodo do oroorlz‘ Por que o puseste ontre nos dois, eomo um
obstocu1o?l Se eu so to omavo o ti,/ por que pusoste o ornor ontre nos dois‘?”’
Nom tudo no poolo, oontudo, o uadiooo. Entre os troqos do modernidode
presentes om suo poesio, destaeam-so o uso do verso livro, o ironia e oerto
noturalismo que lhe tempera as notaofies lirieos o reflexivos. A ironia o o
noturalismo, cujo noto rnois evidonto é o rooorto vivido, palpovol e coneroto do
elomonto natural, constituom o melhor contraponto as roprosontoedes vagas o
sublimodas do omor o do tudo o que com ole so relociono.
No caso do Augusto dos Anjos, interessou-nos sobretudo a leituro do poema
“Barearola”. O titulo dosso eomposigfio, eomo so sobe, rofere-so o umo espéeio
medieval dos co'nI:'gos do amigo, no qua] o on Hrico - goralmonte umo moqa do
povo -- lomento a portida do amodo para o servigo militar. Como varies autoros
jzi o fir/.erom, Augusto dos Anjos modifica esso niicleo lE=IIl2'llZiCD e, do espocie
medieval, presowo somonto o motivo morinho. O poema so ostruturo, bem oo
rnodo borroco, come ulna ropresontoefio olegorica do poreurso existenciol
humono, eonformo explicitom os vorsos soguintos: “Voi umo onda, vom outta
ondof E nesso etorno voivémf Coitodas! Nfio achom quon1,l Quem as esconda,
as oscondo...fl Alogoria tristonhaf Do que polo mundo val!/' So um sonho o so
orguo, outro cai;l So um coi, outro so erguo e sor1l1a.”‘.
O cmioso é que, dos poemas insoridos om Eu o ootrospoosios, “BoIcorolo"
o o imieo construido om redondilhas maiores, metro ossenciolmonte popular o
tipico dos romances mediovois. Isso demonstra que, ombora trotando o ospécie
corn bostonto libordode (ou sojo: adoptando-a oo sou artosonato, oo sou
temperamonto o a sua visoo do mundo), o poets tinho oonsciéncia dosso vinculo
com a trodieiio e quis deixo-lo porooptivel.
No poemo do Augusto dos Anjos, o que era trodioionahnente un1 lomento
dc omor ligodo o motivos marinhos transforma-so em 11111 liiguble reconhooimonto
do poder do dostino, confundido com Tonotos: “Mos dosgraeodo do pobrel Que
em meio do vida coil! Esse nfio volta, esso voi] Poro o tumulo que o cobre”.
Traeos do rnolonoolio do poeta, troduzida em culpa, perdo do auto-estimo e desejo
do morto, repercutem om imagens do lute o desoonstinligfio do moteria. E mosmo
o voz do sereio, que comumento so associo is seduyfio, deixo do tor qualquer
eonotofio erotica para significor, too-somonto, pessimismo o dor. Segundo o
poeto, esso voz, “E eomo um requiem proflmdol De tlistissimos ben1ois.../ Sua
voo é iguol 5| vow‘ Dos dores todas do mundo.‘"'.

5 PENNAFORT, 0. op. oiI., p-72-3.


‘ ANJOS, Augusto dos. Ob:-o oompioro. Orgonizagfio, fixoeoo do toxto e notas por
Ale:-toi Bueno. Rio do Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 297.
Tldom, ibidom, p. 293.

|'2c)
No loitura do “Auto do Frode”, do Jeao Cabral do Mole Note, pereebemes
a eeoxistoncia do elementos medievais o modernos o procuramos destacar, oe
lode dos recurses tradicienais, a estilizaeoe do matoria poemotioa. Jeao Cabral
do Mole Note nolobilizou-so per sou rigor o frioza. Poota avosse it nuisico o oos
oxpediontos que ope-lam it sentimontalidade, nele e ofoito poético resulta do uma
escrupulesa engenbario no escolha dos polavros. Doi que elo rojeito o gratuidode
dos imagons facois, provindas do que so chama inspiroeiie, o opte per um
eonstrutivisme em que so privilogia e difieil, o tefletide, e elaberade. Sua criaede
poétieo, do base esseneiolmonto metolingfilstieo, visa ae “dosmaseoromonte dos
protensfies ilusionistas do discurse literarie”, conferme ebselva Antonie Carlos
Soechin.
0 que peuce so eementa, no ontonto, o que o poeto dove muito s trodieae do
lirico ooidentol, roprosontoda polo vortonto medieval do peosia ibériea - a mosmo
que tombém influonoieu es eerdolistos nerdestines. Ae ler outro fomose auto
do Jeao Cabral do Mole Note, “Merto e vido severina“, Maurice Van Woonsel
observa o neeessidode do interpret:-i-lo “contra e pone do fundo do litoratura
ibérica tradioienal, ja que osto enfenneu substoncialmente a eriaeao peetiea
oabralina.”*- Recursos formais -some e verse heptassilabico e as rimas pares
assenontes evideneiam a ligogoe do cones poemas do pernambueono com es
romances, dos quais essos peemas herdoram o tom, e riune e o equilibrie entre
a substaneia lirieo e a narrativo.
Ao ler “Auto do Frado”, contude, e que procurames dostacar nae foram es
elementos do trodigoe, e sim o fermo come, nesso espoeio medieval - o auto -,
tais olomentes so articulam com processes e reourses ligados a medomidode
poético. Ho nesse peemo, ao lode dos redendilhos, do orolidode o dos rimos
pores, todo um trobolho do estilizaefio que so liga o uma oenoepeiie modorno do
disourso peétioo - cenfermo otosto, per exemple, e emprego do elipso, da
dorivooae imprdpria ou do neolegisme. A par do substrate histerico, do forte
apelo omocienol, o tessitura fennal do “Auto do Frade“ revola desvios no plane
merfolegiee, sintatieo e semantice do linguo. Tois rocurses eperom no sentido
do tuna iuinteligibilidade imediota, dificultande propesitodarnente a cemunicaeae
o prevoeande no leiter/euvinte e ostranhamenio. O objetivo do tais osoolhas,
dontro do que postulam es formolistos n1sses(Chklovsld, porticulormento), é
difieultor a percepeoe do ebjete on do mensagom, para aumontor-lhe a expres-

* SECCI-[[N, Antonio Carlos. Jodo Cabral.‘ a poosio do monos. SEO Paulo: Duos
Cidados; Brasilia: INL, Fundooae Nacional Pro-Memoria, 1985. p. 124.
5' CORREIA, Franeisoe Jose Gomos (Chico Viana) e VAN WOENSEL, Maurice.
Poosia modiovai onion: o hojo. lode Possoo: Editera Universitario./CCI-]l.A, I998. p.
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HBO
sividade. Pois notamos e retemos rnelhor aquilo que nos esforoamos por oaptar
on compreender.
Nessa composiqfio “tradioional” de Jofio Cabral do Melo Neto, a quebra do
automatismo peroeptivo ocorre, entre omtros recursos, mediante a supressfio de
palavras — pot exemplo: “Ei-lo ohega, como so nada,/ como so nfio fosse o
condenado.” (159)"'; N50 deixarfio chegar onde ele,/ hé um erioado paredfio”
(I63); "Na sua booa ludo é clam! oomo é claro o dois e dois quatro." ( I59).
Ocorre também pola mudanea na classe dos voodbulos on convorsdo, o outro
nome com que se designa a derivaqfio impropria; é oomum, pot oxemplo, a
transfonnacgfio do advérbios e conjunooes em suhstantivos: “— A Taborda, oomo
esté longel - A mais do Lrés gritos deste ondo.” (156); “. . .sob um sol que cai dc
cima/' e é justo com talvozosl e até mosmo fodovios.” (137)”
Neologismos como “quarto-santaria", “fax-de bispo’ (espécie do “bispo do
faz-do-conta”), “milvi” (no sentido do visfio milltipla e oonfusa), juntomente
com os recursos que nos foi possivel apontar ncste trabalho, dfio hem a medida
da sofisticaofio que o poem imprime ao signo lingiiistico, visando a torné-Io
ambiguo e opaco. O resullado é que “Auto do Frade“ alimenta-so de nma tensfio
em que se equilibram presente e passado — o popular e o erudito.

Prooodirnontosfuturos

Muito hé que se investigar no firnbito das relagfies entre a poesia medieval


e a poesia moderna. Apontarnos abaixo alguns dos procedimentos que, a médio
e a longo prazo, oonstituem rnetas do projeto de pesquisa acima referido.
Na loitura dos contigos do amor e do amigo (e ainda, em Inenor quantidade,
nas do oscdmio e maldizor), devem-se investigar os esquemas métrioos, ritmicos
e rimicos, assim oomo as imagens e os ropof que evoluiram em temas on motives
incorporados A lirioa modorna — CDIHO o dos olhos vordos ou o da morto par
amor. Do ponto do vista rigorosamente estrulural, sord enfatizado o estudo do
para-Iofismo e do roitoragfio, que foram oonfrontados com expedientes
semelhantos utjlizados pot autores corno Jofio Cabral do Melo Neto, Cecilia
Meireles, Manuel Bandeira, Onestaldo de Pelmafort e outros.
Confrontzmdo-se o lirismo trovadorosoo com o moderno, um dos problemas
a ser investigados é a Ll'flIlSfDI‘lTl3(;5D doponro do vista do on-poétioo, o qual nos
lrovadores, oomo se sabe, vincula-so rigorosomente (com raras e transgressivas
excegfies) ao tipo de cantiga. Se esta é do omor, fala o um ou-lirico mascnlino;
1“ As indieagfies do pdgina, entre paxéntoses, referem-so a MELO NETO, Jofio Cabral.
Muson do tudo o dopais; poesias oompletas. Rio do Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

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so é do amigo, a voz e2 da mulhor. Na modomidade so desfaz essa oonvonsfio
(que nao era bom uma oonvonofio, pois dooorria das relaqoos sooiais e dos papois
quo cabiam ao homom o a nlulher) o isso oonoorrou, ao nivol da tooria litoréxia,
para uma nova oaractorizai;:ao dos ospecios poétioas (0nostaldo do Ponnafort,
por oxomplo, intilula “Cantar do amigo” uma oomposiofio em que quom fala é o
homem).
0 ostudo dossas transfonnaooos do modolos tradioionais podo sor foito,
ainda, considorando-so nao aponas avariagao da voz oomo também a dos tomas
o motivos, na vortento dos poetas chamados neouovadoros. Esso grupo,
represontado entre oulros por Joso Rodtigues do Paiva, Nadiii Paulo Ferroira e
Francisco Nobroga, dialogs com o passado prolongando e busoando rooriar o
lirismo trovadorosoo. Soria 1'1ti1 oonfrontar a sua produqao com a do autoros
modornos que, na perspoctiva do panifrase on na da parodia, relacionam-so oom
a poétioa medieval - dostacando-so, ontre olos, Manuel Bandoira, Guilhormo do
Almoida o Hilda Hilsl.
Em nivol mais goral, sera oportuno dosonvolver estudos sobre a evoluqao
historioa e formal do ospéoies oomo o pooma satirioo, o poema épioo e cenos
rooursos oomo os vorsos paxalelistioos e os poonias-ab-ocodéxios, invostigando a
interdopendénoia entre a poesia orudita o a popular.

I15’?

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