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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS:


análise musical, história e conexões

www.festivalvillalobos.com.br
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Anais do III Simpósio Nacional Villa-Lobos:
análise musical, história e conexões
55º Festival Villa-Lobos.

1ª Edição

Rio de Janeiro
Sarau Agência de Cultura e PPGM-UFRJ
2018
COMITÊ EDITORIAL
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: ANÁLISE MUSICAL,
HISTÓRIA E CONEXÕES.

Coordenação Geral: PROF. Dr. Antonio J. Augusto

Comissão organizadora: PROF. Dr. Pauxy Gentil-Nunes, PROF. Dr. Antonio J. Augusto

Comissão Científica: PROF. Dra. Lúcia Barrenechea; PROF. Dr. Humberto Amorim e PROF.
Dr. Antonio J. Augusto

Diagramador dos Anais: Nando Mercês

Simpósio Nacional Villa-Lobos (1: 2018: Rio de Janeiro, RJ)


Anais do III Simpósio Nacional Villa-Lobos: análise musi-
cal, história e conexões. Festival Villa-Lobos 2017, realizado
entre os dias 02 e 05 de novembro de 2017, no Centro Cultu-
ral do Banco do Brasil (CCBB), Rio de Janeiro, 55º Festival
Villa-Lobos / [organização] Antonio J Augusto, Lúcia Barre-
nechea e Humberto Amorim [et al.] - Rio de Janeiro: Sarau
Agência de Cultura Brasileira, PPGM/UFRJ, 2018

1ª Edição.

Modo de acesso: http://festivalvillalobos.com.br/site/simpo-


sio-nacional-villalobos

ISSN 2527-1652

1. Música 2. Villa-Lobos, Heitor, 1887-1959 3. Musicolo-


gia 4. Música brasileira. I. Augusto, Antonio J II. Amo-
rim, Humberto III. Barrenechea, Lúcia IV Título

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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Índice

CONFERÊNCIAS
Villa-Lobos e(m) seu tempo
Humberto Amorim 06

Heitor Villa-Lobos: o compositor e seus intérpretes


Hugo Pilger 21

MESA REDONDA I:PROCESSOS E PERMANÊNCIAS


Quarteto nº 17 de Villa-Lobos: síntese de processos composicionais
Roberto Macedo Ribeiro 31

Trio nº 2 de Marcelo Rauta: influências villalobianas e procedimentos composicionais


Wesley Higino e Willian Lizardo 46

MESA REDONDA II: RECEPÇÃO E CIRCULAÇÃO


Heitor Villa-Lobos e o americanismo musical de Francisco Curt Lange
Loque Arcanjo Júnior 60

A Dança Frenética: ecos da crítica no Rio de Janeiro e São Paulo nos anos 1920
Maria Aparecida dos Reis Valiatti Passamae 73

MESA REDONDA III: RELAÇÕES E TROCAS


O Violão em estudos - entre Villa-Lobos e Mignone
Cyro M. Delvizio 83

O desafio de compor para violão solista e orquestra


Elodie Bouny 97

MESA REDONDA IV: OS CHOROS


“Alma Brasileira”: impressões e reflexões sobre o “Choros nº5”
Maristela Rocha de Almeida Magalhães e Thalyson Rodrigues 111

Villa-Lobos e o Choros N.° 4 (1926): Ruptura ou Tradição?


Reginaldo Thimóteo 122

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análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

CONFERÊNCIAS

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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Conferência I

Villa-Lobos e(m) seu tempo

Humberto Amorim
UFRJ – humbertoamorim@ufrj.br

Articular uma relação de Villa-lobos no (e com o) tempo tem sido um desafio per-
cuciente para musicólogos, ensaístas e estudiosos. Ora se distanciando e ora se amalgamando,
duas visões - mito vs homem - têm orientado a abordagem desta personagem múltipla e esqui-
va, cujo instante-já parece deslocar-se através de furos multifacetados na rede de um presente
(ou melhor, presentes) enquanto instância humana e histórica. Como abordar Villa-Lobos e(m)
seus tempos? Ou, ainda, como (des)compreender Villa-Lobos e(m) nosso tempo? São inquieta-
ções que serviram de fagulha para o desenvolvimento deste ensaio.
A primeira articulação - a do mito - parece sugerir a significação de uma vida de-
sencarnada, alheia, em parte, às vicissitudes, desafios e possibilidades oferecidas pelo campo
sociocultural durante uma determinada trajetória artística. Este modo de apreender Villa-Lobos,
ainda tão marcante nas publicações sobre o tema e na visão geral sobre o compositor, insinua
uma relação paradoxal sobre a personagem: Villa só pode estar em seu (ou em nosso tempo) na
medida em que está fora dele, como um estranho extemporâneo ou gênio predestinado, fadado a
viver sob o signo de um thelos que já fora (pré) determinado antes e/ou depois de sua existência.
Tal visão, inclusive, parece ter sido instigada pela atuação e construção de si pro-
movida pelo próprio compositor. Enquanto era vivo, “ao mesmo tempo que fazia músicas, agia
no sentido de inseri-las em diferentes universos simbólicos e de atribuir-lhes sentidos e signi-
ficados” (GUÉRIOS, 2003: 27)1. Articulou-se, quase sempre (e de modo especial a partir da
década de 1920), para a afirmação da imagem de um artista transcendente. O desejo de instituir
uma “natureza cósmica” para sua produção e existência fica explícito em vários depoimentos,
dados em situações diversas, bem como nos escritos daqueles que com ele conviveram.
Em artigo publicado na revista Ariel, comentando o retorno de Villa-Lobos recém-
chegado de Paris, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) nos revela como “a ardente fé” e
“egotismo” do compositor já desfraldavam a busca por uma identidade, uma imagem pessoal:

Villa-Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega de Paris espera-se que venha cheio
de Paris. Entretanto Villa-Lobos chegou de lá cheio de Villa-Lobos. A ardente fé, a
vontade tenaz, a fecunda capacidade de trabalho que o caracterizam, renovam a cada
momento em torno dele aquela atmosfera de egotismo tão propicia às criações verda-
deiramente pessoais (BANDEIRA, 1924: 475).

1 Para mais detalhes, cf. o capítulo 1, Imagens de Villa-Lobos, em: (GUÉRIOS, 2003: 16-34).

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

Em entrevista concedida em junho de 1964, a Hermínio Bello de Carvalho, Tomas


Terán2, por sua vez, revela como Villa-Lobos teve importante atuação na formação dos mitos
a seu respeito:

As lendas que se formavam sobre Villa eram também uma consequência do espírito
mordaz, alegre e programaticamente polêmico do compositor. Em Paris, dera entre-
vista, dizendo-se antropófago, e lembra Terán que, num jantar, descrevia como se des-
trinchava um corpo humano, e, depois de minuciosa encenação, assustava com esga-
res (acentuados por um olhar vivo, aberto e penetrante) seu interlocutor. A descrição,
geralmente, causava o espanto que ele esperava. Era hábil: uma de suas brincadeiras
consistia em jogar para o alto, aparando-o sem prejuízos, um jogo de xícaras de café:
xícara-pires. Emborcava-as, jogando-as para o alto.
A sensação que obteve foi maior quando, certa vez, numa casa de família, fez a brin-
cadeira com um jogo caríssimo de xícaras chinesas.
Era o ‘charmeur’, a personalidade que sabia cativar plenamente e que atingia seus
objetivos através de meios de persuasão personalíssimos (CARVALHO, 1988: 162).

A tentativa de fixar sobre sua personalidade esta aura charmosa e persuasiva fica
ainda mais evidente no autorretrato delineado pelo compositor em diversos depoimentos, en-
trevistas e manuscritos:

Eu não sou um folclorista - me dizia Villa-Lobos, recentemente -. ‘O folclore não


me preocupa. Minha música é como é, porque a sinto assim. Não caço temas para
utilizá-los depois. Escrevo minhas composições com o espírito de quem faz música
pura. Entrego-me completamente ao meu temperamento. Acham muito brasileira mi-
nha música!. É, sobretudo, porque reflete uma sensibilidade absolutamente brasileira.
Essa é a minha sensibilidade: não desejaria ter outra [...] Quase todos os meus motivos
musicais são de minha invenção. E quando, em meus Choros, por exemplo, assoma
um motivo típico, sempre tem sido transformado de acordo com meu temperamento.
E se algum recorda, por seu caráter – com afirmava Florent Schmidt – alguma canção
popular de São Paulo, é porque essas canções são as que embalaram minha infância,
sendo, portanto, as mais aptas a me comover. Sinto-as do mesmo modo que um russo
sentiria os estribilhos dos cocheiros de Petrouchka’[...] 3 (apud CARPENTIER, 1928:
10).

Se, quando no turbilhão das raças de uma nação nova, surge um artista de tempera-
mento, embora sem um meio suscetível e suficientemente educado como as tradicio-
nais civilizações dos velhos países, meio de um povo em formação, por conseguinte
difícil de compreendê-lo, ele sofrerá fatalmente os embates de uma luta inglória no

2 Pianista espanhol (Valencia 1895 - Río de Janeiro 1964) que alcançou grande sucesso em Paris, na
década de 1920. Segundo relato de Segovia: “(...) Tomás Terán, na crista da onda, lotando as salas do concerto
e levando a platéia ao delírio. Quando toca Albeniz, até mesmo os críticos chamam-no ‘Toreador del piano’...”
(Apud CARVALHO, 1988: 158). A amizade entre Terán e Villa-Lobos era tão próxima que chegaram a morar
juntos durante a primeira estada do compositor em Paris (1923-1924).
3 Tradução livre de: “Yo no soy folklorista – me decía Villa-Lobos, recientemente -. ‘El follklore no me
preocupa. Mi música es como es, porque la siento así. No cazo temas para utilizarlos después. Escribo mis com-
posiciones con el espíritu de quien hace música pura. Me entrego completamente a mi temperamento. Hallan muy
brasilena mi música!. Es, sobre todo, porque refleja una sensibilidad absolutamente brasileña. Esa es mi sensibili-
dad; no lograria tener outra... Casi todos mis motivos musicales son de mi invención. Y cuando, em mis Choros,
por ejemplo, asoma un motivo típico, siempre ha sido transformado de acuerdo com mi temperamento. Y si alguno
recuerda, por su carácter – como afirmaba Florent Schmidt – alguna canción popular de São Paulo, es porque esas
canciones son las que arrullaron mi niñez, siendo, por lo tanto, las más aptas a conmoverme. Las siento del mismo
modo que un ruso sentiria los estribilos de cocheros de Petrouchka’...”

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

caminho sinuoso da sua predestinação. A originalidade natural será a sua única e


verdadeira salvação.
De todas as Artes, a que mais desperta a sensibilidade dos seres vivos é a música. Ela
é um dos milagres da arte e o artista concentra os mistérios da Natureza [...]
O criador original é aquele que, embora demonstrando na sua obra o conhecimento
exato da diversidade do estilo na Música, empregando de uma maneira elevada mo-
tivos folclóricos do país onde tem vivido e formado sua mentalidade, deixa transpa-
recer nas suas composições as tendências naturais da sua predestinação e influências
éticas do seu feitio... (Acervo do Museu Villa-Lobos).

Julgo que sempre devamos crer na intenção de toda obra de arte, embora ela nos pare-
ça confusa na primeira impressão. Porque ela nasce de uma função divina, misteriosa,
inexplicável e passa, fatalmente, para uma outra função no mesmo estado psíquico em
que nasceu. (Acervo do Museu Villa-Lobos).

Peço perdão a todos de ter que falar um pouco da minha vida em relação a esse Brasil.
Mas é necessário que possa, talvez, servir de exemplo aos jovens de seguir essa mes-
ma trilha, esse mesmo destino que Deus me deu.
Nunca na minha vida procurei a cultura, a erudição, o saber e mesmo a sabedoria nos
livros, nas doutrinas, nas teorias, nas formas ortodoxas. Nunca. Porque o meu livro era
o Brasil. (Transcrição de Conferência, 1951)4

[...] Eu fui levado a me servir desses elementos da natureza para formar minha música.
E mas, não é bem a questão humana, é sobretudo, a questão cósmica. É a natureza
do Brasil, a variedade, o mistério do Amazonas, os rios misteriosos que temos, rios
incríveis como o rio São Francisco. (apud KATER, 1991: 89) 5

E, por fim: “A minha obra é consequência da predestinação. Se ela é em grande


quantidade, é porque é fruto de uma terra extensa, generosa e quente” (Acervo do Museu Villa
-Lobos). 6
Em todos os relatos, parece nítida a intenção de se afirmar como artista livre, origi-
nal por natureza, predestinado e imbuído de uma “função divina, misteriosa e inexplicável”. É o
próprio Villa quem inicialmente sugere um princípio “cósmico” à sua criação, posicionando-a,
assim, em outro plano de análise que escapa de sua feição humana e dela se distancia. O mito
atemporal começa a derrubar, então, o homem de carne e osso, paradoxalmente este mesmo que
operava suas articulações dentro dos bojos socioculturais que o circundavam.
Esse posicionamento pode sugerir explicação para uma série de atitudes que, até o
imprescindível trabalho de Guérios (2003), ainda eram pouco discutidas por seus biógrafos: a
redatação de obras para evitar a constatação de possíveis influências de outros compositores,
sobretudo Stravinsky (Amazonas, Uirapuru e o Trio para Oboé, Clarineta e Fagote, por exem-

4 Essa conferência foi proferida em João Pessoa, no estado da Paraíba, e publicada com a voz original do
compositor, em Cd comercial.
5 Entrevista concedida a Madeleine Milhaud, a 12 de março de 1952, em Paris. Encontrava-se nos acervos
do I.N.A - Instituto Nacional de Audiovisual, em Paris, sendo material desconhecido até a transcrição e publicação
no artigo de Carlos Kater.
6 Importante ressaltar as datas dos depoimentos: o de Manuel Bandeira é de 1924; o inicial do compositor
é de 1928; o segundo é da década de 1930; o terceiro é da década de 1940; o seguinte é de 1951; o posterior é de
1952; e o último é de 1957. Nota-se, portanto, que o desenho de tal “predestinação” foi algo que o acompanhou
por toda a vida a partir da década de 1920.

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

plo)7; a maneira como dimensionava o seu autodidatismo8; a invenção de odisseias aventurei-


ras em torno de suas viagens e, sobretudo, a forma como se comportava em relação às críticas
que recebia: “[...] o relacionamento do compositor com quem falava a seu respeito [em desacor-
do com sua autoimagem] parecia, no mínimo, difícil” (GUÉRIOS, 2003: 35). Na reunião destes
lances de dados impetrados por Villa, sua potência criadora desponta como instância ao lado do
jogo temporal (ou seja, fora dele), e não propriamente articulada a partir dele.
Neste sentido, o que se projeta diante de nós é uma imagem de Villa-Lobos aparta-
do de seu tempo, duas retas paralelas que, embora caminhem juntas, somente se tocam quando
é preciso (re) afirmar a construção do mito desencarnado. Ou, em outras palavras, a produção
- intencional ou não - de um monumento9: “O documento é monumento. Resulta do esforço
das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada
imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é men-
tira” (LE GOFF, 1990: 545). A contínua reprodução e naturalização desta imagem monumental,
longe de ser fortuita, é fruto de um sinuoso método, cujas possíveis inconveniências são susci-
tadas por Michel de Certeau em a Invenção do Cotidiano:

O inconveniente do método, condição do seu sucesso, é extrair os documentos de


seu contexto histórico e eliminar as operações dos locutores em circunstâncias par-
ticulares de tempo, de lugar e competição. Ou seja, acabam sendo exercidas em um
‘campo próprio’ que é distante das formas variadas com que, de fato, são utilizadas
nas práticas e nos usos. Daí o privilégio que esses estudos concedem aos discursos,
coisa deste mundo que é aquela que se pode mais facilmente captar, registrar, trans-
portar e abordar em lugar seguro, enquanto o ato de palavra não pode separar-se da
circunstância” (CERTEAU, 1994: 81-82, grifo nosso).

A notável habilidade social de Villa-Lobos para impor a si e aos outros uma ima-

7 “Villa-Lobos fazia recuar várias composições em vários anos. Uma das intenções esperadas era demons-
trar que o caráter brasileiro de sua música existia desde cedo, mesmo quando ele compunha, de fato, num espírito
inteiramente francês e internacional. Era uma legitimação de precocidade nacionalista” (COLI, 2006: 73). Para
mais detalhes, ver também: (GUÉRIOS, 2003: 100-128, capítulo 4).
8 . Mesmo nos estudos mais recentes sobre Villa-Lobos, a formação musical do compositor continua a
fomentar dúvidas. Na última edição de seu livro, por exemplo, Mariz afirma: “ficou comprovado que Villa-Lobos
jamais esteve matriculado no antigo Instituto Nacional de Música, apesar de ele me haver afirmado ter sido aluno
de Benno [Breno] Niedenberger, Frederico Nascimento e Agnello França naquela instituição” (MARIZ, 2005:
163). No entanto, as pesquisas de Avelino Romero Pereira mostraram que houve, sim, inscrição de Villa-Lobos no
Instituto Nacional de Música, nos cursos noturnos, suspensos por Henrique Oswald em 1904, quando este acabara
de assumir a direção da casa. Villa-Lobos teve seus estudos interrompidos, portanto, não com a perspectiva de
novas viagens pelo Brasil, conforme sugerem seus primeiros biógrafos, mas com o fechamento do curso no qual
estava inscrito. O mais revelador é que Villa-Lobos estava matriculado em duas cadeiras: Violoncelo e Solfejo!
Para mais detalhes, ver: (PEREIRA, 1995: item “Uma greve no INM”).
9 “O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos
escritos [...] O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntá-
ria, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela
mínima são testemunhos escritos” (LE GOFF, 1990: 536).

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

gem mítica10 de si, resulta, muitas vezes, no apagamento de sua trajetória social em face às
particularidades de um “campo próprio”, delineado, como nos aponta Certeau, em condições
excepcionais de tempo, lugar e competição. Mesmo a análise técnica de sua produção acaba
recorrendo ao gênio nos momentos em que se torna difícil uma abordagem contextualizada e
mais profunda de seus procedimentos composicionais característicos11. Em sua História Social
da Música, o apontamento de Henry Raynor parece confrontar tal perspectiva:

A música só pode existir na sociedade; não pode existir, como também não o pode
uma peça, meramente como página impressa, pois ambas pressupõem executantes e
ouvintes. Está, pois, aberta a todas as influências que a sociedade pode exercer, bem
como às mudanças nas crenças, hábitos e costumes sociais (RAYNOR, 1981: 9).

Essa imagem de um Villa-Lobos extemporâneo acaba por atravessar, de modo mui-


to particular, a sua portentosa obra para violão. Pelas particularidades idiomáticas e força musi-
cal, não é mero encômio considerá-la a mais determinante coleção de um compositor brasileiro
para o instrumento.
Além das obras orquestrais (Concerto e Introdução aos Choros) e de suas 07 peças
para música de câmera com a participação do instrumento12, sua obra solo compreende a Valsa
de Concerto n. 2 (1904), a Suíte Popular Brasileira (6 peças, incluindo a Valse-Choro recém-
descoberta nos acervos da editora francesa Max-Eschig), o Choros 1 (1920), os 12 Estudos
(1929), os 05 Prelúdios (1940), além de quase duas dezenas de peças que se encontram per-
didas e/ou extraviadas. A relevância de tal conjunto tem sido esquadrinhada pela musicologia
brasileira em livros (PEREIRA, 1984; SANTOS, 1975) e uma portentosa quantidade de artigos
publicados nas últimas décadas, além de ser um repertório recorrente nas salas de concerto, no
Brasil e mundo afora.
Contudo, é preciso olhar o iceberg para além de seu contorno aparente. A aura
extemporânea de Villa projeta uma imagem sobre o violão de concerto brasileiro como algo
que se inicia (e muitas vezes se encerra) idiomaticamente a partir de sua obra. O cerne deste
idiomatismo instrumental, aliás, foi por nós esboçado em estudos anteriores (AMORIM, 2009)
através da análise de quase 50 procedimentos característicos de sua escrita, muitos dos quais
destilam a modernidade sobre o repertório do violão e descortinam uma série de possibilidades
criativas, texturais e mecânicas no trato do instrumento.
Muitos destes recursos são comumente considerados inéditos e/ou criações do pró-
10 Quando elaborava a primeira edição de seu livro, Mariz fez pesquisas com o intuito de finalizar as dú-
vidas sobre a data de nascimento de Villa-Lobos, que oscilava então, e de acordo com os depoimentos do próprio
Villa-Lobos, entre 1881 e 1891. Acabou por descobrir a certidão de batismo de sua irmã, Carmen, na Igreja de
São José. Nela, também, constava a data de nascimento e batizado do compositor. Na última edição de seu livro,
Mariz comenta: “Villa-Lobos ficou contrariado com a minha descoberta, pois eliminava uma fonte de debates e
especulações” (MARIZ, 2005: 160).
11 Com a publicação de Villa-Lobos: processos composicionais, estudo de referência neste campo, SAL-
LES (2009) inaugura um novo horizonte de possibilidades na compreensão da produção do compositor.
12 São elas: Sexteto Místico (1917); Modinha (1925); Distribuição de Flores (1932); Ária das Bachianas
Brasileiras n. 5 (1938); Canção do Poeta do Século XVIII (1953); Canção do Amor (1958); e Veleiros (1958).

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

prio Villa, desconsiderando-se em que medida os personagens com quem conviveu e os am-
bientes nos quais se articulou foram decisivos para que ele alcançasse tal síntese, em um contí-
nuo processo de bricolagem e manipulação das diversas condições de possibilidade disponíveis
em seu tempo.
Em diferentes momentos de sua vida, a permanência e/ou passagem por cidades
culturalmente efervescentes (como Rio de Janeiro, Paris e Nova Iorque) somadas à imersão em
iniciativas que extrapolaram o âmbito da música (como o projeto de educação musical conhe-
cido por Canto Orfeônico), foram fatores que contribuíram para formar uma rede complexa de
experiências que certamente tiveram ingerência na relação de Villa-Lobos com a música e com
o violão.
Hoje, por exemplo, já é possível comprovar o significativo influxo dos personagens
conhecidos como chorões na maneira de Villa-Lobos compreender o instrumento, bem como de
que modo foram decisivas as vivências compartilhadas com ilustres violonistas de seu tempo,
tais como Andrés Segovia (1893-1987), Regino Sainz de la Maza (1896-1981), Olga Praguer
Coelho (1909-2008) e Abel Carlevaro (1916-2001). Além disso, o próprio compositor deixou
testemunhos (cf. CARVALHO, 1963: 3-4) narrando o seu conhecimento de métodos e auto-
res clássicos do violão: Ferdinando Carulli (1770-1841), Fernando Sor (1778-1839), Dionisio
Aguado (1784-1849) e Matteo Carcassi (1792-1853). Havia, portanto, uma amálgama de in-
fluências das mais variadas no jeito de Villa pensar o instrumento e criar os eixos estruturantes
de seu sotaque violonístico.
No entanto, a partir do entrelaçamento destas diversas camadas que ajudaram a
compor o seu singular vocabulário instrumental, ainda não há estudos sobre as possíveis rela-
ções de Villa-Lobos com os violonistas brasileiros (ou radicados no Brasil) que, ao longo das
décadas finais do século XIX e iniciais do XX, dedicaram-se primordialmente ao estudo do
“violão de concerto”. O desconhecimento sobre tais personagens e a dificuldade de acessar suas
obras tornam-se impeditivos cruciais para o mapeamento das conexões e distanciamentos entre
a escrita de diferentes compositores do instrumento naquele período.
Até o momento, quando nos referimos à escrita para violão de compositores brasi-
leiros anteriores à década de 1950, trabalha-se basicamente em cima de três vertentes:
1) Em princípio, isolado, Heitor Villa-Lobos, como um criador extemporâneo que
teria elevado o idiomatismo do instrumento a partir de sua própria genialidade;
2) Depois, um grupo de violonistas que conseguiu impregnar um “sotaque” próprio
ao violão advindo da imersão do instrumento nos gêneros populares urbanos que pipocaram
no Brasil desde o século XVII e que, muitas vezes, mesclaram-se às danças europeias aqui en-
tronizadas durante e depois da colonização. Neste segundo processo, é possível sugerir que se
concentram algumas das fagulhas que engendraram o conceito genérico - e nem sempre muito
preciso - do que seria um “violão instrumental brasileiro”;
3) Finalmente, um terceiro grupo - não necessariamente vinculado à tradição ante-

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

rior - que, embora reconhecido pelo caráter pioneiro, tem sua produção distinguida como em-
brionária, com suas peças quase sempre encaradas como cópias simplificadas e/ou sem muitas
contribuições em relação às dos autores ocidentais que já circulavam em território brasileiro.
São obras as quais se atribuem, geralmente, um singular valor histórico que, contudo, não é
necessariamente correspondido pelo mesmo valor musical.
Esta imagem geral e turva sobre os compositores que escreveram para o instrumen-
to antes de 1950 concorre para a formação do paradigma dicotômico que tem guiado concei-
tualmente a maioria dos estudos dedicados ao tema (inclusive, mea culpa, os nossos): de um
lado, Villa-Lobos; do outro, o seu tempo e os seus contemporâneos. O fato é que a síntese da
escrita de Villa marcou tão indelevelmente a história do violão que, para justifica-la, torna-se
mais fácil retirá-lo de seu percurso histórico e da teia complexa de relações estabelecidas com
seus pares e com os espaços que frequentou.
A tarefa de fazer o caminho inverso - ou seja, a de projetá-lo em seu tempo - esbarra
nas poucas referências, fontes e estudos disponíveis. Entretanto, aos poucos, a descoberta e
ampliação do conhecimento sobre personagens coevos podem nos trazer pistas de como Villa
atingiu os resultados originais de sua escrita para violão a partir das ferramentas que, na verda-
de, estavam disponíveis na teia cultural que “oferece ao indivíduo um horizonte de possibilida-
des latentes - uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada
de cada um” (GINZBURG, 1987: 27). Do bojo desta jaula é que Villa-Lobos primeiramente
se articulou. Mas outros compositores-violonistas brasileiros ou radicados no Brasil também.
Neste sentido, e na tentativa de articular uma abordagem que privilegie um olhar de
(e sobre) Villa-Lobos em seu tempo, faremos uma breve (e ainda inicial) análise de suas pos-
síveis conexões com um de seus contemporâneos, o violonista Melchior Cortez (1882-1947).

1. Melchior Cortez, uma introdução

Figura obliterada nas narrativas históricas do violão no Brasil, Melchior Cortez


(1882-1947) é um exemplo concreto de como a manipulação de algumas ferramentas idio-
máticas do instrumento, naquele período, não se restringia ao instinto genial deste ou daquele
compositor.
Nascido em Portugal (1882) e radicado no Brasil desde os nove anos de idade
(1891), Cortez foi uma figura atuante no cenário do violão carioca nas três primeiras décadas
do século XX. Sua contribuição concentra-se em uma tríplice perspectiva:
1) Concertista, fez diversas apresentações documentadas pela imprensa carioca,
chegando a apresentar-se, em 1927, em duo com Quincas Laranjeiras no Teatro Casino de
Copacabana, além de ter alcançado, em 1929, o palco do Instituto Nacional de Música com
algumas de suas alunas;
2) Professor, deu aulas regulares em pelo menos quatro editoras/lojas musicais

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

(Casa Beethoven, Guitarra de Prata, Casa Buschmann & Guimarães e Casa Arthur Napoleão)
e fundou, em 1927, a Academia Brasileira de Violão, com a qual iniciou dezenas de estudantes
mulheres nos preceitos da escola de “violão clássico” que pretendia amplamente difundir no
Rio de Janeiro;
3) Compositor/autor, publicou diversos de seus trabalhos (peças originais, arranjos,
transcrições e métodos) por diferentes editoras, sendo a principal delas a Casa Romero y Fer-
nandez, da Argentina.
Neste último ramo de atuação, através de fontes recolhidas em jornais, revistas, tes-
temunhos, entrevistas e acervos públicos e privados, conseguimos levantar 16 registros de sua
produção para o instrumento, dos quais localizamos 11 obras. A diversidade das peças encontra-
das demonstra quão versátil foi a natureza das publicações editoriais do violonista nas décadas
iniciais do século XX, variando entre composições próprias, métodos, transcrições, arranjos
ou ainda músicas concebidas por outros compositores-violonistas, mas que foram anotadas em
partitura por Cortez.
Além de aumentar o ainda pequeno conhecimento sobre o repertório produzido
neste período, as 11 obras localizadas revelam um uso muito particular dos recursos técnico-
musicais do violão, indicando, muitas vezes, o domínio de certos idiomatismos que, até o mo-
mento, eram quase que exclusivamente vinculados à produção de Villa-Lobos.
E isto se nota desde a sua obra mais antiga que suscitamos, a elegia Ilusão Perdida
(1909). Diante de uma breve análise, tentaremos estabelecer algumas conexões entre a escrita e
a maneira de ambos pensarem o violão a partir das próprias topografias, possibilidades e limi-
tações do instrumento.

2. Breve análise de Ilusão perdida (1909) e possíveis estreitamentos entre a escrita de Mel-
chior Cortez e Villa-Lobos

Primeira publicação do compositor de que se tem notícia, a elegia Ilusão Perdida


foi lançada pela Casa Beethoven em 1909. Localizada no Rio de Janeiro à Rua do Ouvidor
n. 175, esta editora foi o lugar onde Melchior Cortez deu classes de violão por volta de 1910
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 1910) e onde possivelmente publicou pelo menos mais duas de suas
transcrições: Souvenir du Pará e Marche Louis XVI.

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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

Fig. 1. Capa da edição de Ilusão Perdida, de Melchior Cortez, publicada pela Casa Beethoven em 1909.
Fonte: acervo pessoal do autor a partir de cópia localizada nos acervos da Divisão de Música (DIMAS) da Fun-
dação Biblioteca Nacional (FBN).

Dedicada ao amigo Monteiro Diniz, ativo professor de música e animador cultural


do período, a partitura da obra foi localizada no Acervo da Divisão de Música (DIMAS) da
Fundação Biblioteca Nacional (FBN) durante o período de pesquisa-residência que realizamos
na instituição (2015-2017). Nominalmente, ela já havia sido citada em um catálogo de peças
realizado pela pesquisadora Fernanda PEREIRA (2007: 124). Seu conteúdo, no entanto, per-
manecia desconhecido.
À época de sua publicação, o violonista tinha entre 28 e 29 anos, estava no início
de sua atividade editorial e ainda assinava artisticamente com o nome intermediário abreviado:
Melchior P. [Pinto] Cortez.

Fig. 2. Cabeçalho da publicação de Ilusão Perdida, de Melchior Cortez.


Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/ FBN.

Contudo, apesar de constar dentre suas produções inaugurais, a obra apresenta al-
guns recursos idiomáticos surpreendentes, muitos dos quais, resguardadas as devidas propor-
ções, aproximam-se daqueles utilizados por Heitor Villa-Lobos em algumas de suas peças mais
representativas, reconhecidas pelo uso idiossincrático do instrumento. Eis alguns exemplos:
1) Já em seus primeiros compassos, um harmônico pedal na 12ª casa da 6ª corda é
intercalado por uma sequência de ligados que se movimentam em sentido vertical, horizontal

14
AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

e oblíquo pelo braço do violão, em uma textura que recorda o trecho escalar do Estudo n. 1, de
Heitor Villa-Lobos.

Fig. 3. Harmônico pedal e sequência de ligados em sentido vertical, horizontal e oblíquo pelo braço do violão.
Compassos 1, 2 e 3 de Ilusão Perdida, de Melchior Cortez. Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/ FBN.

2) Logo na sequência (comps. 5 e 6), outro interessante recurso é explorado pelo


compositor: uma mesma nota repetida em 3 oitavas vai progressivamente se distanciando da
base em movimentos paralelos de vai e vem até atingir o intervalo de uma 5ª justa 13. Também
foi um recurso utilizado por Villa-Lobos em diferentes passagens, sendo a mais característica
aquela que consta no fim da seção B de uma de suas peças mais conhecidas, o Prelúdio n. 1.

Fig. 4. Paralelismos de notas em 3 oitavas em movimento de vai e vem. Compassos 5, 6 e 7 de Ilusão Perdida, de
Melchior Cortez. Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/ FBN.

3) O motivo do tema (uma melodia exposta na região grave que se intercala com
dois acordes repetidos na região aguda no compasso seguinte) também apresenta uma textura
que remete a trechos de peças de Heitor Villa-Lobos, especialmente a ambiência temática do
Prelúdio 4, peça que tem a mesma tonalidade e uma ligação dos elementos estruturais seme-
lhante, sobretudo em relação ao modo como se organizam e se entrelaçam a melodia, a harmo-
nia e o ritmo.

13 Ou seja, através de uma figuração rítmica de semínima pontuada + semicolcheia, o E em três oitavas vai
progressivamente se distanciando e voltando à base até alcançar o B por intervalos diâtonicos: E - E; E - F#; E- G;
E - A; E - B.

15
AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

Fig. 5. Melodia do tema no grave intercalada com acordes repetidos no agudo. Na sequência da peça, Melchior
Cortez preserva a estrutura, mas inverte as regiões (a melodia passa para o agudo e os acordes de acompanha-
mento vão para a região média, em harmônicos). Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/ FBN.

4) Dentre os idiomatismos mais frequentes na produção de Villa-Lobos, um dos


mais recorrentes se dá na utilização de paralelismos horizontais, recurso que ocorre quando
uma determinada fôrma (seja bicorde, oitava paralela ou acorde) se translada no braço do violão
mantendo a sua estrutura. Também foi um recurso explorado por Melchior Cortez em algumas
de suas obras, incluindo as oitavas paralelas empregadas nos compassos finais de Ilusão Per-
dida: 14

Fig. 6. Oitavas em movimento paralelo horizontal nos compassos finais (35-38) da elegia Ilusão Perdida, de
Melchior Cortez. Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/FBN.

Ainda nesta passagem, observa-se a utilização de harmônicos naturais nos dois


últimos compassos, recurso que Melchior utilizou ostensivamente em sua produção (chegando
a conceber seções inteiras com a ferramenta, como na Marche Louis XVI). Tal recurso também
foi explorado massivamente em praticamente toda a obra de Villa-Lobos, sendo um de seus
usos mais expressivos aquele encontrado na seção A’ do Prelúdio 4 (compassos 27-32), onde o
tema principal da peça é reapresentado integralmente valendo-se desta textura.
5) O uso idiomático das cordas graves do violão (4ª, 5ª e 6ª). Ora conduzindo temas
cantantes, ora desenhos contrapontísticos, ora transições entre seções e mesmo momentos onde
todo o discurso musical é desenvolvido na região grave (por exemplo, a introdução do Estudo
8 e o Più Mosso do Estudo 12), este é outro recurso que perpassa do primeiro ao último ciclo
das peças de Villa-Lobos e que também integra decisivamente o vocabulário instrumental de
Melchior Cortez.

14 O exemplo aponta um erro da edição original no 2º tempo do 2º compasso: na voz aguda, trocou-se a
nota mi (E) da oitava paralela por um ré (D).

16
AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

Fig. 7. Melodia conduzida na 5ª corda do violão na elegia Ilusão Perdida (compassos 7-8), de Melchior Cortez.
Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/FBN.

Por razões espaciais, não faremos aqui a análise das outras obras de Melchior Cor-
tez e suas possíveis conexões com o repertório villalobiano (tarefa que merece ser aprofundada
em estudos futuros), mas tais estreitamentos parecem ainda mais nítidos quando volvemos um
primeiro olhar para o restante de sua produção conhecida, especialmente as originais Colibri,
Marche Louis XVI, Peteneras Sevillanas e transcrições como o Fado Liró, a Elegie op. 10 (J.
Massenet) e a Valse op. 69 n. 2 (F. Chopin). Outros cinco elementos que aparecem com recor-
rência na obra de ambos são os seguintes:
1) Uso do baixo na condução de uma voz intermediária: quando uma linha melódi-
ca conduzida pela 4ª ou 5ª corda fica entre um acompanhamento nas cordas agudas e um baixo
ainda mais grave ditando a harmonia;
2) Uso recorrente das tonalidades que privilegiam as cordas soltas: Mi maior, Mi
menor, Lá maior e Lá menor são as principais. É outra característica que atravessa significati-
vamente a produção de ambos;
3) Uso de cordas soltas com efeito pedal: quando as cordas soltas se repetem por
diferentes encadeamentos melódicos e/ou harmônicos. São exemplos de Villa-Lobos: os com-
passos 24-29 da Gavota-Choro; os acordes cromáticos da introdução da Valsa de Concerto nº 2;
os compassos 15-20 do Estudo nº 1 (compassos 15-20); por sua vez, Melchior Cortez utiliza o
recurso (ao modo de Villa, integrando-o simultaneamente aos paralelismos horizontais de acor-
des) na introdução que criou para a valsa Gemidos d’Alma, do cantor, violonista e compositor
Josué de Barros (1888-1959).
4) Uso de cordas soltas como elemento mediador entre as passagens de cordas:
quando ambos propositadamente usam as cordas soltas para mediar saltos ou passagens entre as
cordas do violão, como ocorre entre os compassos 22-29 do Estudo 12, no caso de Villa-Lobos;
e também como é característico durante quase toda a costura de Peteneras Sevillanas, no caso
de Melchior Cortez.
5) Exploração da timbragem e tensão características de cada corda: quando Villa
-Lobos pede que uma determinada melodia ou passagem seja tocada especificamente em uma
corda, um recurso utilizado no compasso 80 do Schottisch-Choro, nos compassos 33-54 da
Valsa-Choro, além de na primeira seção do Prelúdio 4 (compassos 1-10), onde a partitura indica
que as notas do tema devem ser tangidas em cordas específicas (3ª, 4ª, 5ª e 6ª), somente para
ilustrar alguns dos casos mais representativos. A produção de Melchior Cortez (especialmente

17
AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

suas transcrições) são todas permeadas por exemplos do gênero, o que revela o quão este com-
positor também sabia explorar com propriedade os diferenciados timbres das cordas do violão.
Ao relacionar possíveis recursos idiomáticos comuns entre peças de Villa-Lobos e
Melchior Cortez, o objetivo não é meramente tomar a produção de um pela do outro (e vice-ver-
sa), mesmo porque Villa entrelaça estes elementos a partir de estruturas harmônicas, rítmicas
e texturais mais densas (inclusive mesclando diversos destes elementos idiossincráticos simul-
taneamente), mas apenas reconhecer que tais ferramentas já estavam no rol de possibilidades
criativas de outros compositores do período.
Além disso, vale pontuar que estes dois personagens travaram algum nível de con-
tato direto ainda na década de 1900, quando ambos integraram o elenco de uma apresentação
coletiva coordenada pelo professor Monteiro Diniz, em 23 de maio de 1909 (mesmo ano de
publicação da elegia de Cortez), e cujo programa incluía a encenação de uma comédia e a rea-
lização de um concerto no Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. O objetivo da festa era angariar
fundos para a Capela de Santo Antônio, recém-erigida no bairro de Vila Isabel. Na ocasião,
além do próprio Monteiro Diniz, Villa também mostrou ao público suas habilidades ao violão:

Festa no Jardim Zoologico


[...]A 1ª parte será ás 2 horas, sendo executados pelo conjucto de bandolins, bandur-
ras, guitarras e violões, os seguintes números: a) Divertimento ‘avant.garde’ (Santos);
b) Marcha e fado. Revista Santo Antonio (Milano), cantado por senhoritas; c) Polka
-marcha “Est elle Jolie?” (R. Talamo); d) Nocturno, sólo de violão (C. Garcia); e)
Valsa 2ª (Villas Lobo).
2ª parte, ás 3 ½ horas: “Clume”, comedia em 1 acto (Cármen Lobo); 2) Fado (Ro-
bles); valsa lenta, “Walkirie”; 4) Fado corrido, cantos e variações em lá e ré maior,
arranjo de Montemiz; 5) Tarantella Napolitana (L. Ecuma); 6) Scherzo e tarantela
(Rovinazzi).
Tomarão parte as senhoritas Maria Machado, Irene Moura, Zulmira Gardey e Olin-
da Borges, e os Srs. Dr. John Mac Niven, Aurelio Machado, Melchior Cortez e os
professores Monteiro Diniz e Heitor Villas Lobo (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1909,
grifos nossos).

Villa-Lobos participa duplamente da apresentação: como compositor e intérprete da


Valsa 2ª. Como o manuscrito da valsa que compõe a sua Suíte Popular Brasileira data apenas
de 1912 e não há, em seu catálogo de obras, indicação de valsas para violão perdidas antes de
1909, muito provavelmente a peça tocada pelo maestro brasileiro foi a Valsa de Concerto nº 2,
obra escrita em 1904 e que aparentemente foi abreviada na grafia para a publicação no jornal.
Neste sentido, é emblemático que a peça tocada por Villa apresente recursos idio-
máticos que foram amplamente utilizados por Melchior Cortez em suas obras, notadamente
os paralelismos (horizontais, verticais, de acordes), harmônicos, sucessão de ligados (simples
e compostos), cordas soltas como pedal, rasgueios e o uso do baixo como recurso tímbrico e
condutor de melodias, só para citar alguns exemplos.
Embora ainda não seja possível averiguar se o contato entre eles fora além dos

18
AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

encontros em concertos coletivos, é difícil imaginar que, em um círculo tão restrito como o do
violão carioca no início do século XX, estes personagens não tenham tido o mínimo de influên-
cias recíprocas, já que ambos eram figuras reconhecidas na cena violonística do Rio de Janeiro.
Pelo menos, pode-se afirmar que os dois compartilharam um ambiente musical comum que já
permitia o uso de certos recursos idiomáticos com naturalidade.
Nas décadas seguintes ao encontro, Villa-Lobos levaria às últimas consequências
(especialmente nos campos harmônico, textural e técnico) tais ferramentas, elevando o idioma-
tismo do violão a um outro patamar e abrindo definitivamente as suas portas para uma escrita
moderna que, ainda hoje, soa atual. Contudo, a produção de Cortez revela que, embora a brico-
lagem produzida por Villa seja completamente original, os recursos técnicos por ele utilizados
eram, na verdade, mecanismos disponibilizados pelo estado da arte aos violonistas daquela
época.
Em outras palavras, a hipótese instilada é a de que a obra de ambos está longe de
emergir do nada, como instância deslocada e/ou fora de seu tempo. Em estudos anteriores, já
deflagramos o quão Villa se deixou marcar pelos seus contemporâneos do instrumento no Bra-
sil, notadamente os “chorões”. A relação de sua escrita com a de Melchior Cortez representa um
outro passo no mapeamento mais amplo das possibilidades criativas do período, uma vez que
este é um personagem que se vincula, no Brasil., de modo mais estrito à tradição do “violão de
concerto”.
Portanto, se ainda não é possível assegurar que entre Villa-Lobos e Melchior Cortez
houve uma influência direta e recíproca, também não é fora de propósito sugerir que ambos ar-
ticularam, ainda que por caminhos diferentes, as ferramentas idiomáticas do violão disponíveis
em seu tempo. Ademais, Cortez passou a ter Villa como uma grande referência ao longo de sua
carreira, conforme se depreende do seguinte trecho de sua entrevista concedida ao Diário de
Notícias em março de 1933:

- Em que fontes devemos buscar ensinamentos para uma completa victoria no


ponto de vista musical?
- Não há necessidade de recorrer aos vizinhos, pois, dentro de nossa casa temos gran-
des harmonistas e grandes contra-pontistas. Tudo é questão do governo querer lançar
mão delles. Haja vista o nosso maestro Heitor Villas Lobos, o quanto se tem esforçado
e demonstrado o que é a boa musica e o que se póde fazer em prol da cultura musical
de um povo. Melhor exemplo não é preciso. Como este existem muitos outros. É
questão do braço forte do governo, porque o nosso povo é muito inteligente e muito
dócil (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1933).

Em síntese, o que nos ensejou destacar neste estudo e ensaio embrionários (e que pre-
tendemos aprofundar em estudos futuros) é que a produção de Melchior Cortez para violão sugere
que alguns dos recursos instrumentais mais característicos da obra de Villa-Lobos também foram
utilizados por outros compositores, no Rio de Janeiro, já em fins da década de 1900. Cada qual a seu
modo, Melchior e Villa projetaram uma identidade de escrita que compreendia o instrumento a partir

19
AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO

de suas próprias dinâmicas, topografias, possibilidades e limitações. Em ambos, o violão é tomado


a partir do próprio violão, uma sugestão, talvez, de que Villa poderia não ter chegado às bricolagens
que alcançou se não caminhasse ao lado dos personagens com os quais conviveu (direta ou indireta-
mente) e se não estivesse completamente imerso às teias - jaulas flexíveis - de seu tempo.

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21
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Conferência II

Heitor Villa-Lobos: o compositor e seus intérpretes


Hugo Vargas Pilger
UNIRIO – hugopilger@gmail.com

Historicamente existe uma relação muito estreita entre compositores e intérpretes. Essa
colaboração traz contribuições importantes para o repertório dos instrumentos e, de forma ge-
ral, obras tornam-se consequentemente mais idiomáticas.
É famosa a relação de Johannes Brahms (1833-1897) com Joseph Joachim (1831-1907),
que resultou no Concerto para violino em Ré maior, Opus 77 e no Concerto Duplo para violino
e violoncelo em Lá menor, Opus 102. O Concerto para violino foi dedicado a Joachim, que
ao ser apresentado à partitura, sugeriu muitas modificações para torná-la mais idiomática, e
Brahms, com alguma relutância aceitou. Em relação ao Concerto Duplo, o caso foi um pouco
diferente:
Devo informá-lo da minha última tolice. Trata-se de um concerto para violino e vio-
loncelo! Sobretudo, devido minhas relações com Joachim, queria abandonar essa
ideia, mas não pude fazer nada. Nas questões artísticas, por sorte, ficamos sempre em
terreno amigável. Jamais teria pensado no entanto, que entre nós se instaurasse nova-
mente uma ligação pessoal (BRAHMS apud FLADT, 1984, [s.p.]).

Segundo Fladt (1984), essa carta de Brahms fora direcionada à casa Simrock, editora de
sua música em 1887 e tinha o propósito de tentar restabelecer as relações com o amigo Joachim,
“pelo menos no âmbito de um empenho musical comum” (FLADT, 1984, [s.p.]). Possivelmente
a empreitada deu certo pois, assim como aconteceu no Concerto para violino, “houve um novo
intercâmbio de experiências entre Brahms e Joachim no que diz respeito a questões de compo-
sição e técnica de execução especialmente” (FLADT, 1984, [s.p.]).

No repertório para violoncelo, um caso famoso de encomenda por parte de intérpretes é


o do Concerto para violoncelo, Opus 104 em Si menor de Antonín Dvorak (1841-1904):
Solicitado por Hanus Wihan, o violoncelista do Quarteto de Cordas da Boêmia, a lhe
escrever um Concerto, Dvorak relutou de inicio ante os enormes problemas de equi-
líbrio que teria de enfrentar. Mas ao ouvir em Brooklyn um Concerto para violoncelo
escrito por Victor Herbert, decidiu-se a atender ao pedido de Wihan, e a obra alcançou
um tal sucesso que Brahms declarou que, tivesse ele sabido que um concerto para
violoncelo era realizável, há muito tempo teria escrito um (CLAPHAM, 1983 [s.p.]).

No entanto, a amizade nutrida entre Dvorak e Wihan (1855-1920) pode ter sofrido um
abalo por causa deste mesmo Concerto:

22
PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

Dvorak conheceu as piores dificuldades quando da primeira execução do concerto:


tendo prometido a Wihan fazê-lo tocar nessa estreia, ficou horrorizado ao saber que a
Sociedade Filarmônica de Londres havia, sem consultá-lo, contratado Leo Stern para
o concerto, previsto para o dia 19 de março de 1896. Imediatamente remeteu ao secre-
tario uma carta de protesto, onde dizia em substância o seguinte: “Lamento informá-lo
de que não poderei reger o Concerto para violoncelo, tendo prometido ao meu amigo
Wihan que seria ele quem o tocaria. Se V.S. programar o concerto, não conte com a
minha presença. Mas seria feliz em vir em outra ocasião (CLAPHAM, 1983, [s.p.]).

Claphan completa que, apesar do teor contundente da carta, Dvorak retrocedeu: “Ele
acabou por aceitar reger mesmo com Stern, mas ignora-se se conseguiu fazer perdoar por
Wihan. Wihan havia proposto cadências para o primeiro e para o último movimentos, mas
Dvorak acreditou dever recusá-las” (CLAPHAM, 1983, [s.p.]).

Com os relatos acima, pode-se afirmar ser comum no meio musical tais colaborações.
Com Heitor Villa-Lobos (1887-1959) não foi diferente e há citações que esclarecem que, assim
como Brahms, buscava ajuda dos intérpretes para que suas obras ficassem mais adequadas à
técnica e idiomatismo do instrumento. O pianista João de Souza Lima (1898-1982) relatou o
seguinte:
Nossa camaradagem foi se tornando cada vez mais intensa, e Villa-Lobos, com aquela
simplicidade de todo grande artista, aparecia diariamente ao meu Studio e, no meu
piano, esboçava muito dos seus trabalhos, entre os quais o Rudepoema e a Prole do
Bebê, número 2. Para estes e outros trabalhos consultava-me sobre problemas de exe-
cução pianística, pois desejava que fossem de uma perfeita realização instrumental
(LIMA, 1982, p. 100).

Villa-Lobos, assim como a maioria dos grandes compositores, começou a receber inú-
meras encomendas vindas de grandes intérpretes no entanto, nem todas obtiveram a devida
acolhida por parte do compositor:
Contou-me [Villa-Lobos] que, na oportunidade de uma das poucas vindas, ao Rio de
Janeiro, do famoso violinista Jascha Heifetz, foi este procurá-lo para encomendar-
lhe, por alta soma, a composição de um concerto. Desagradado, com as recomenda-
ções que o virtuose então lhe fizera quanto à elaboração da obra, recusou-se a em-
preendê-la, de vez que somente entendia fazer música em estado de inteira liberdade.
Transcorridos alguns anos, visitando os Estados Unidos da América, teve ensejo de
conhecer melhor o ilustre violinista e de admirá-lo, qual o grande e digno artista que
é. Adveio-lhe, daí sincero arrependimento de não haver composto o concerto, a cuja
encomenda, se reiterada, atenderia, com muito júbilo, mesmo sem qualquer remune-
ração e admitindo razoáveis sugestões (GOMES, 1965, p. 62).

Outro caso de encomenda não atendida é narrado a seguir:


“Um casal de franceses” (Ida Presti e Lagoya) lhe haviam solicitado um concerto para
dois violões e orquestra, mas não tinham como pagar. “Música de graça é... desgra-
ça”. Daí só aceitar encomendas, mediante pagamento. Perguntei-lhe se Segovia havia
pago os 12 estudos que ele encomendara, ele respondeu que não, mas que ele era mui-
to generoso, sempre mandando muitos presentes para ele, Villa, e sua companheira
Mindinha (CARVALHO, 1969, p. 126).

23
PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

Há situação em que entra em jogo o poder de persuasão da pessoa que faz a encomenda
e, logicamente, suas condições financeiras:
Sou testemunha presencial das lutas para alcançar a celebridade. Por isso tínhamos o
privilégio de confidenciar certos detalhes de sua carreira artística. Certa vez, e penso
que este episódio é pouco conhecido, revelou-me que, estando nos Estados Unidos,
na cidade de Nova York, foi procurado no hotel de sua hospedagem por uma senhora
que declarou ser pianista e desejava que ele compusesse um concerto para piano e
orquestra. - “Senhor Villa-Lobos, gosto de sua música, tenho entusiasmo pelo seu
estilo e talento de composição. Desejava, para executar, um concerto seu, de piano e
orquestra. Proponho-lhe, como pagamento, a quantia de três mil dólares”. - “Minha
senhora”, respondeu ele, “sinto não poder considerar sua proposta, pois devo retornar
ao Brasil dentro de vinte dias. Não há tempo para esta obra”. - “Mas, Senhor Villa
-Lobos, vamos aumentar para quatro mil dólares”. - “Minha Senhora”, fez ele, “não
se trata de dólares, mas de tempo”. A Senhora Ellen Ballon, que era a grande pianista
em questão, não desanimou. De volta à casa telefonou para o hotel, insistindo: - “Se-
nhor Villa-Lobos, pense agora em cinco mil dólares”. Aí Villa-Lobos considerou e
respondeu: - “Minha Senhora, não quero negar-lhe mais e resolvo que me procure ao
final dos vinte dias e será o que sair. Venha buscar o seu concerto! (...) Mais tarde,
uns dois anos depois, Villa-Lobos recebe algum dinheiro de seus trabalhos e escreve
a Miss Ballon que deseja readquirir seu concerto e pedia aceitasse o reembolso. Miss
Ballon respondeu delicadamente que o concerto não tinha mais preço e que viria ao
Rio de Janeiro executá-lo sob sua regência. Assim aconteceu mais tarde, no Teatro
Municipal, em audiência espetacular. Miss Ellen Ballon gravou em L.P. o Concerto n°
1 de piano e orquestra, - gravação London [selo de gravação], ganhando muita vezes
os cinco mil dólares do preço do custo... (MARTINS, 1965, p. 112-113).

Na citação abaixo, na qual um solista tenta encomendar um outro concerto para har-
mônica, que não o dedicado a John Sebastian (1914-1980), não foi a cabo pois a questão finan-
ceira não foi abordada:
Disse-me ele [Villa-Lobos] que nessa noite esperava uma visita, a de um grande vir-
tuose da gaita de boca, internacionalmente conhecido que vinha vê-lo e fazer ouvir em
suas gravações algumas das obras que ele havia interpretado, com ou sem orquestra,
nos grandes centros musicais da Europa e do Continente Americano. Ele havia sido
o introdutor do modesto instrumento na esfera da música de alta classe e Villa-Lobos
havia passeado sobre os seus óculos, compondo para o concorrente mais tardiamen-
te surgido, John Sebastian (...). O nosso virtuose também queria um para ele, mas
Villa-Lobos só escrevia concertos dessa natureza por encomenda e essas encomendas
deviam ser bem pagas. Vamos, pois, assistir a um desses duelos entre o negociador,
sabido e esperto que era Villa-Lobos, e o solicitante cheio de si, consciente dos seus
méritos, mortificado pelo que já considerava uma humilhação prévia. A cena não de-
cepcionou nossa expectativa. Tivemos, primeiramente, uma extraordinária demons-
tração de virtuosismo instrumental. Sobre as gaitas minúsculas que nosso artista tirava
do bolso, acomodados em preciosos estojos e ouvindo os discos em fita magnética ou
em discos, ouvindo nesses discos as composições que mestres eminentes da música
contemporânea haviam escrito para o “ás” da harmônica oral, ali ficamos durante bas-
tante tempo. Mas Villa-Lobos permanecia impassível, observando o interlocutor com
uma desconfiança. A conversa que ele esperava, não vinha. E, como ela não veio, ape-
sar de o compositor haver encaminhado habilmente o assunto na boa direção, o nosso
homenzinho saiu do hotel com as mãos abanando ou, mais realisticamente, carregan-
do de volta as suas gravações, os seus instrumentos, o seu toca-discos e magnetofone,
mas sem aquilo por que viera: - a promessa de um novo Concerto (AZEVEDO, 1966,
p. 130-131).

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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

Muito interessante é uma outra história, que trata da gênese do Concerto para Harpa,
encomendada pelo virtuose Nicanor Zabaleta (1907-1993):
No Hotel Beford, em Paris, 1952, Villa-Lobos recebe a visita do famoso harpista espa-
nhol Nicanor Zabaleta: - “desejo encomendar-lhe um Concerto para meu instrumento;
não gostaria que usasse arpejos; prefiro notas plaqués, batidas, em acordes”. Enfim,
uma série de recomendações especiais (VILLA-LOBOS [Arminda], 1981, p. 129).

A respeito desse pedido, Villa-Lobos mais tarde comentou:


“...lastimo que Zabaleta tenha tanto preconceito contra arpejos; compreendo-o, po-
rém, receia baratear seu instrumento. E como está errado! Poderia criar inovações
com arpejos e a obra seria, assim, bem mais interessante!” (VILLA-LOBOS apud
VILLA-LOBOS [Arminda] 1981, p. 129).

A citação acima deixa claro como Villa-Lobos estava sempre preocupado em descobrir
novas sonoridades, contribuindo desta forma com o desenvolvimento técnico e idiomático dos
instrumentos.

Apesar de valorizar as encomendas comissionadas, Villa-Lobos demonstrou apreço aos


amigos músicos dedicando-lhes várias obras. Naturalmente, como resultado há importantes
composições que nasceram da afeição que o compositor nutria pelo intérprete em questão:
Anos e anos consecutivos o grande Amigo Andrés Segovia insistia com Villa-Lobos
para que compusesse um concerto para violão e orquestra. E a história se inicia: Villa
-Lobos só concordaria em escrevê-lo se pudesse utilizar um microfone. Apaixonado
pelo violão, Villa-Lobos ainda o preferia como instrumento íntimo, que ecoasse com
caráter recôndito.(...) O nosso Segovia sempre apelando para nós: - “Mindinha, lem-
bra ao Heitor (assim Segovia o chamava) que componha o meu Concerto” (VILLA
-LOBOS [Arminda], 1980, p. 135)

Uma fonte interessante de como Villa-Lobos se relacionava com seus intérpretes vem
de declarações deixadas pelo violoncelista brasileiro responsável pela encomenda do Concerto
nº 2 para violoncelo e orquestra e há muitos anos radicado nos Estados Unidos, Aldo Parisot (n.
1921). Parisot acompanhou de perto o processo de composição desse concerto através de cartas
e permanecendo junto do compositor durante uma semana no hotel em que Villa-Lobos estava
hospedado em Nova York. Mais tarde ele relatou a experiência:
Eu fui de New Haven para Nova York todos os dias durante uma semana e lá eu pra-
ticava no seu quarto de hotel - escalas, estudos, concertos - enquanto ele estava escre-
vendo. De um lado ele tinha o concerto para violoncelo e do outro uma sinfonia, e ele
ficava pulando de um para outro. E quem lá foi durante todas essas sessões? Andrés
Segovia!...1 (ALDO PARISOT apud AQUINO, 2000, p. 24).

Questionado pela esposa de Parisot sobre que tipo de composição tinha em mente, Villa
-Lobos teria respondido:
1 “I went to New York from New Haven every Day for one week and there I practiced in his hotel room
- scales, etudes, concertos - while he was writing. On one side he had the cello concerto, on the other side a sym-
phony, and he was jumping from one to the other. And who was there during all those sessions? Andrés Segovia!
...”

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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

(…) Agora, aqui vai a resposta para sua simpática esposa: quando um pai pode di-
zer que seu filho será isso ou aquilo? Sendo assim, eu não sei o que poderá sair de
minha caneta e desta maneira, é impossível para mim fazer alguma promessa sobre o
Concerto para Violoncelo e Orquestra. A única coisa que eu posso declarar é que eu
escreverei uma obra com sinceridade; vamos ver se esta sinceridade agradará ou não
(VILLA-LOBOS apud AQUINO, 2000, p. i)2.

O fato de Villa-Lobos ter sido violoncelista, lhe deu segurança para que essa relação
compositor e intérprete com Parisot se tornasse mais completa, ou seja, tinha segurança abso-
luta sobre a viabilidade técnica do que escrevia: “... Parisot relembra que durante o processo
composicional do Segundo Concerto para Violoncelo, em 1953, Villa-Lobos estava constante-
mente demonstrando no violoncelo como uma certa frase ou efeito deveria soar3” (PARISOT
apud AQUINO, 2000, p. 4).

Peter Dauelsberg (n. 1933), em entrevista concedida em 2011, afirma que Parisot tinha
pedido para Villa-Lobos fazer o segundo andamento do Concerto nº 2 para violoncelo e orques-
tra mais ou menos como a Ária/Cantilena da Bachianas Brasileiras nº 5, sendo que Villa-Lobos
teria dito: “Nunca!”, mas quando a obra ficou pronta, “Villa-Lobos reconheceu que Parisot
havia conseguido” (DAUELSBERG, 2011).

A exemplo do que aconteceu com Joachim e Brahms, Parisot efetuou alterações na parte
do solista e segundo Aquino (2000), colaborou com Villa-Lobos em muitos aspectos da partitu-
ra, especialmente nas passagens que mostram mais virtuosismo:
Apesar de sua estreita participação durante o processo composicional e pelo fato,
do compositor ter sido um talentoso violoncelista, Aldo Parisot continuou a alterar
a parte do violoncelo, tanto na estreia quanto na subsequente gravação da obra. Ele
alegou que essas alterações foram feitas, para que a obra soasse mais idiomática para
o instrumento. De acordo com ele, Villa-Lobos aprovou essas mudanças, embora elas
não tenham aparecido na publicação da partitura4 (AQUINO, 2000, p. 24 e 25).

Mas a relação entre compositor e intérprete não se restringe somente a colaboração


durante o processo de criação de um concerto. O compositor pode dar muitas indicações aos in-
térpretes como estes devem realizar uma determinada passagem ou mesmo auxiliar na decodi-
ficação da partitura5. Villa-Lobos muitas vezes contribuiu amiúde não só com seus intérpretes,
2 “(...) Now , here is the answer to your kind wife: when can a father say that the ‘Son’ will be this or that?
Now then, I don’t know that will come out of my pen and thus it will be impossible for me to make any promise
about the Concerto for Violoncello and Orchestra. The only thing I can declare is that I shall write a work with
sincerity; it remains to be seen, nevertheless, if this sincerity will please or not.”
3 “Parisot, recounts that during the compositional process of the Second Cello Concerto, in 1953, Villa-Lo-
bos was always demonstrating on the cello how a certain phrase or effect should sound.”
4 “Despite his close participation during the compositional process and the fact that the composer was an
accomplished cellist, Aldo Parisot continued to alter the cello part both in the first performance and in his sub-
sequent recording of the work. He claims (sic) (claimed) that these alterations were done so that the work would
sound more idiomatic to the instrument. According to him, Villa-Lobos approved these changes, even though they
did not appear in the published score.”
5 Especialmente na música contemporânea, devido aos inúmeros recursos usados, como por exemplo a
técnica expandida, esse auxílio pode ser decisivo para uma correta interpretação.

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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

mas com praticamente todos que iam a seu encontro em busca de alguma informação:
Chegavam as visitas domingueiras: Andrés Segovia, José Limon, Horzowsky, críticos
de músicas e jovens artistas para aprenderem dele a inspiração para as suas interpre-
tações. Vinham cantores e quartetos ensaiar com ele. Ali era o culto da música em sua
mais séria e compenetrada expressão. “Eu sou um profissional”, dizia com severidade
ao referir-se à música. Às vezes concentrado, silente, ia cobrindo as pautas com as
notas negras que fluíam dos dedos dando expressão às páginas, enquanto conversáva-
mos a meia voz, respeitando o silêncio do Mestre. Sentia-se bem de ter aquele rumor
de vozes perto que não o molestavam em nada. Ou eram dias em que artistas vinham
tocar ou cantar para saber a opinião do Maestro (VASCONCELOS, 1965, p. 59).

Villa-Lobos sabia da importância desses atos. Tinha consciência que a partitura não
passa de um código, e como tal precisa ser, além de corretamente decodificada, compreendida
no seu aspecto mais íntimo: “O que acontece (...) é que nem todo mundo escreve exatamente
o que pensa e uma boa orquestra, embora toque tudo o que está escrito, não tem obrigação de
adivinhar” (VILLA-LOBOS apud NÓBREGA, 1966, p. 11).

Ao ser questionado sobre a qualidade dos músicos da Orquestra BBC de Londres em


1948, Villa-Lobos, ciente da dificuldade que a música brasileira traz aos intérpretes, declarou:
Naturalmente como latino e filho de um país tropical (...) senti que os solistas não
interpretam, na execução, o saboroso das frases sentimentais tão características da
mentalidade do povo do Brasil (sem contudo serem do aspecto do rubato italiano), e
ainda mais sendo elas pousadas sobre uma unidade mecânica de ritmo bem próprio
(VILLA-LOBOS, 1969, p. 116).

Além da contextualização histórica e cultural que o intérprete precisa fazer da obra,


espera-se também que contribua com o seu ponto de vista, num processo de recriação artística:
De passagem, notemos o conteúdo de criação contido no ato de interpretar, e a pre-
cariedade da notação musical quanto a sua função específica, pois fixa a matéria mas
não consegue fixar o espírito, as entidades estéticas que se integram em obra de arte.
Por isso, reside aí a margem de criação por parte do intérprete (VILLA-LOBOS apud
CALDEIRA FILHO, 1972, p. 109).

A busca de informações por parte dos solistas não significa em hipótese alguma, incapa-
cidade em compreender uma determinada obra, mas em muitos casos, a necessidade de tentar
manter intacta a concepção imaginada originalmente pelo compositor. Por isso muitas vezes é
possível ver grandes intérpretes ávidos por algum momento de privacidade com o compositor
da obra que irá apresentar:
Dias antes do concerto eis-nos a vê-lo ali sentado, junto ao seu velho Gaveau, mos-
trando a Guiomar Novaes - essa prodigiosa deusa do piano - o concerto para esse ins-
trumento e orquestra, há dias executado brilhantemente, por Souza Lima. O concerto
é dificílimo e requer virtuosidade pianística excepcional. Há trechos cuja interpreta-
ção só um grande mestre do teclado conseguirá vencer. Naquela luz um pouco velada
do apartamento, nós, a um canto da janela com o Dr. Octavio Pinto, marido de Guio-
mar Novaes e Arminda nos deslumbrávamos vendo aquelas duas almas elevadas pela
música. Guiomar Novaes com o braço esquerdo apoiado sobre o espaldar da cadeira

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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

em que Villa-Lobos estava assentado e a mão direita sobre o teclado ia intervindo na


leitura que o Maestro fazia, com um elan e uma vibração incomuns. A parte da orques-
tra, Villa-Lobos cantava como podia... Sim, como podia, porque aquelas escalas, rapi-
díssimas não há quem as cante e a parte de piano ele ia defendendo também da melhor
forma. Guiomar Novaes, ao lado, estava magnetizada (BARROS, [s.d.], p. 120).

Fato semelhante aconteceu com a Bachianas Brasileiras nº 4, escrita originalmente para


piano solo:
Tive um aperto no coração. Mais de uma vez, em minha casa, ouvira o Mestre acon-
selhar jovens pianistas que haviam abordado essa peça e vinham submeter suas in-
terpretações ao compositor. Ele acabava sentando-se ao piano e executando de uma
maneira inigualável, pela regularidade rítmica, pela severa economia de colorido so-
noro - aquela linha melódica de modinha e de ária, tão pura, tão nua, tão cheia de gra-
ça. A menor afetação pode turbá-la; o mais leve descontrole dinâmico. Mas os dedos
desajeitados de Villa-Lobos, que não era um pianista, obedeciam como um pelotão de
guardas reais em parada, ao comando de sua inteligência interpretativa; nervos de aço
transmitindo esse comando. Nenhuma precipitação. Nenhum desequilíbrio. O peso do
quinto dedo sempre igual ao do primeiro (AZEVEDO, 1965, p. 137).

Num interessante artigo escrito por João da Cunha Caldeira Filho (1900-1982) para a
Editora Fermata de São Paulo em 1971, Villa-Lobos discorreu longamente sobre o importante
papel do intérprete.
Interpretação é o ato pelo qual o indivíduo exprime a sua capacidade de dar existência
sonora (real ou atual), à obra de arte musical. O intérprete ou executante, por um lado,
é dotado da capacidade para realizar a execução vocal ou instrumental; por outro lado,
suas potencialidades artísticas estão também estruturadas em concordância com esse
tipo de capacidade, cujos impulsos levam à execução. Não se trata, porém, de mera
atualização sonora, tal a de uma pianola. Trata-se de traduzir a criação do abstrato
para o concreto, do imaginário para o real, para o atual. Aí se situa a importância das
inflexões expressivas da linguagem musical, em tudo análogas - enquanto a lingua-
gem musical apresentar analogias - às da linguagem oral, na qual a enunciação do
pensamento se faz sempre mediante a atribuição de uma carga expressiva à locução.
É como declamar. Nenhuma indicação de expressão se encontra do texto poético es-
crito: o declamador terá de verificar o seu dizer, completando com essa ‘vida’ a comu-
nicabilidade original da criação poética. Para tanto, no campo da música, o executante
terá de penetrar, e substancialmente, no espírito da criação do compositor. Aí está a
parte criadora de interpretação, pois esta deve ser também planejada, previamente
concebida, de sorte a atualizar a obra como um objeto - coisa significante - dando-lhe
no tempo a estabilidade e a coerência que, no espírito do autor, lhe informaram a exis-
tência. Assim, interpretar é um comportamento expressivo relativo à atualização da
obra de arte musical (VILLA-LOBOS apud CALDEIRA FILHO, 1972, p. 102-103).

Num outro artigo publicado em O Estado de São Paulo em 16/11/1969, Caldeira Filho sinteti-
za de forma convincente o papel das partes envolvidas no processo de realização musical: “(...) a obra
de arte musical é uma expressão, ou como se diz comumente, uma mensagem, escrita pelo compositor,
transmitida pelo executante e recebida pelo ouvinte” (CALDEIRA FILHO, 1972 b, p. 111).

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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

Conclusão
É possível concluir que Villa-Lobos exercia um poder muito grande perante seus intér-
pretes. O fluxo desta relação não era muito equilibrada, já que Villa-Lobos, além de concepções
muito claras, conhecia os instrumentos de forma prodigiosa. Walter Burle Marx relatou o se-
guinte:
Dirigindo em Chicago, durante um ensaio, o harpista que era uma pessoa desagra-
dável, afirmou que a música escrita era impossível de ser executada. Villa-Lobos
desceu do podium, o que não era seu costume nos últimos anos, tomou então seu
lugar e executou o trecho na harpa, levantando em seguida sem dizer uma palavra e
recebendo uma ovação da orquestra. Depois de saber desta proeza na harpa perguntei
ao Villa-Lobos que instrumentos ele tocava e ele respondeu-me que só não tocava
oboé, o qual procurou aprender mais tarde (MARX, 1977, p. 184).

Villa-Lobos tinha nítido em sua mente o resultado musical do que escrevia e as nuances
da música brasileira lhe eram muito caras. Para isso atribuía aos intérpretes o papel de cocria-
dores, tendo estes a responsabilidade de “penetrar, e substancialmente, no espírito da criação”
pois a performance, segundo ele, também deve ser previamente concebida a fim de dar à obra,
uma existência sonora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AQUINO, Felipe José Avellar de. Villa-Lobos’s Cello Concerto nº 2: a Portrait of Brazil.
2000. Tese (Doutorado em Música) - University of Rochester, New York.

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MEC-Museu Villa-Lobos, v. 1, p. 137-138, 1965.

______. Villa-Lobos. In: Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC-Museu Villa-Lobos,


v. 2, p. 129-131, 1966.

BARROS, C. Paula. O Romance Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Editora A Noite [s. d.].

CALDEIRA FILHO, J. Interpretando Villa-Lobos. In: Presença de Villa-Lobos. Rio de Janei-


ro: MEC-Museu Villa-Lobos, v. 7, p. 99-110, 1972.

______. Villa-Lobos, Resposta Vira. In: Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC-Museu
Villa-Lobos, v. 7, p. 111-113, 1972.

CARVALHO, Hermínio Bello de. Villa-Lobos e o Violão. In: Presença de Villa-Lobos. Rio de

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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES

Janeiro: MEC-Museu Villa-Lobos, v. 3, p. 123-145, 1969.

CLAPHAM, John. Dvorak - Cello Concerto, Bruch - Kol Nidrei. London, 50 041, 1984.

DAUELSBERG, Peter. Entrevista concedida a Hugo Vargas Pilger em sua residência na


cidade do Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2011. MP3 (58 min.).

FLADT, Hart mut. Encarte de Johannes Brahms. Deutsche Grammophon, 410 603-1, 1984.

GOMES, Edegard. Villa-Lobos. In: Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC-Museu


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LIMA, Souza. Moto Perpétuo: a visão poética da vida através da música: autobiografia do
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

MESA REDONDA I:
PROCESSOS E PERMANÊNCIAS

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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Quarteto nº 17 de Villa-Lobos: síntese de processos


composicionais1
Roberto Macedo Ribeiro2
Escola de Música – UFRJ – robertomacedo@musica.ufrj.br

Resumo: O conjunto dos 17 quartetos de cordas de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) oferece um


campo bastante vasto para o estudo dos elementos estilísticos que constituem a linguagem do com-
positor. Além do aspecto quantitativo, algo incomum para um compositor do século XX, o que mais
chama a atenção é o fato dos quartetos estarem dispostos de tal forma a abranger quase toda a tra-
jetória artística de Villa-Lobos. O primeiro movimento do 17o Quarteto (1957), que é considerado
como portador da síntese dos procedimentos composicionais encontrados nos últimos quartetos,
é analisado aqui, buscando rastrear traços que elucidem os processos composicionais respectivos.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Quarteto de cordas. Análise estilística. Processos composicionais.

Quartet nº 17 of Villa-Lobos: synthesis of compositional processes


Abstract: The set of the 17 string quartets by Heitor Villa-Lobos (1887-1959) offers a vast field for
the study of the stylistic elements that constitute the language of the composer. In addition to the
quantitative aspect, something unusual for a composer of the twentieth century, what is most striking
is the fact that the quartets were distributed in such a way as to cover almost the entire artistic tra-
jectory of Villa-Lobos. The first movement of the 17th Quartet (1957), which is considered to carry
the synthesis of the compositional procedures found in the last quartets, is analysed here, seeking to
trace hints that elucidate the respective compositional processes.
Keywords: Villa-Lobos. String Quartet. Stylistic analysis. Compositional processes.

O décimo sétimo quarteto de cordas, o último composto por Villa-Lobos, revela-


se como o ponto culminante de um processo de síntese de linguagem, que se inicia a partir
do décimo primeiro quarteto, processo este que consiste numa espécie de filtragem de todo o
elemento acessório, tornando-se paradigmático para o entendimento do pensamento musical de
Villa no período final de sua vida. Portanto, essa obra se mostra como um campo privilegiado
de estudo, no intuito de se alcançar um aprofundamento das características que compõem o
estilo composicional de Villa, com foco tanto no vocabulário e sintaxes harmônicas quanto
na manipulação motívica. Simultaneamente, objetiva-se situar a escrita dessa obra na moldu-
ra dos processos e soluções composicionais referentes à música do século XX. Optou-se por
1 Esta obra pertence à fase denominada de “universalista” de Villa-Lobos. Os recursos composicionais
empregados revelam uma espécie de depuração, seleção e síntese de tudo o que fora anteriormente experimentado,
incluindo-se aí o uso de elementos ligados de alguma forma à música popular (RIBEIRO, 2002, f. 314). Este quar-
teto é contemporâneo de outras obras, nas quais é possível reconhecer, em grande parte, as mesmas características:
a ópera Yerma (1956), a 12a Sinfonia (1956) e o oratório Bendita Sabedoria (1958). Dedicado a Arminda (“Min-
dinha”), sua segunda esposa, o 17o Quarteto, foi estreado pelo Quarteto Budapest em 1959 (ESTRELLA, 1970,
p. 128), sendo que Eero Tarasti menciona a estreia fora do Brasil em 1964, em Londres, pelo Quarteto do Rio de
Janeiro (TARASTI, 1995, p. 321).
2 ROBERTO MACEDO RIBEIRO é compositor, professor, pianista, nascido no Rio de Janeiro. Mestre
em Música (Composição – EM/ UFRJ) e Bacharel em Música (Regência – EM/UFRJ). Está lotado no setor de
Contraponto e Fuga do Departamento de Composição da Escola de Música da UFRJ, onde leciona as disciplinas
Contraponto e Instrumentação e Orquestração. Tem peças estreadas em Bienais da Música Brasileira Contemporâ-
nea e nos Panoramas da Música Brasileira Atual, além de música de câmara e para orquestra executadas no Brasil
e no exterior.

32
RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

convergir o trabalho analítico sobre o 1º movimento, por ser a parte de maior extensão da obra.
O referencial teórico originário que norteou a análise foi o livro Guidelines to a Musical Analy-
sis de Jan LaRue (1970), que, por sua vez balizara as observações de Ribeiro (2002)3.

Preliminarmente, como colocado em outra oportunidade pelo presente autor,


Os primeiros compassos do 1o movimento já demonstram um domínio completo da
escrita específica para o quarteto de cordas, adquirido, com certeza, pelo trabalho
mais constante para essa formação instrumental, principalmente após o 8o Quarteto.
Isso se expressa, sem dúvida, através de uma capacidade maior em lidar com o diálogo
entre os quatro instrumentos, ao mesmo tempo em que se encontra plenamente
amadurecida a capacidade de realizar a total fusão entre as vozes instrumentais. Há
muito estão superadas a necessidade de busca de uma igualdade por meio de uma
textura contrapontística densa, como no 2o quarteto (1915), a exploração de efeitos
tímbricos ouvidos no 3o Quarteto, das ‘pipocas’ (1916), e a tentativa de extrapolação
da sonoridade camerística, vista no 7o quarteto (1942). Em suma, por meio de uma
análise superficial da peça, mostra-se evidente a conquista do amadurecimento de
uma escrita própria para o quarteto, emoldurada pela linguagem do autor, consolidada
já há algum tempo (RIBEIRO, 2002, f. 315).

De fato, ao tratar das especificidades da escrita para o quarteto de cordas, Bernard


Fournier (1999) menciona como qualidades intrínsecas, frente a outros meios e gêneros came-
rísticos:

- a homogeneidade, tanto tímbrica quanto expressiva do conjunto, para a qual con-


tribui uma escrita que ele denomina de “fusional” e que faz com que o quarteto pareça, na
verdade, um só instrumento, ao mesmo tempo em que se mantém resguardada (e até mesmo
valorizada) a individualidade polifônica de cada parte (FOURNIER, , p. 26 – 27);

- a “quaternidade”, ou seja, a escritura a quatro partes, que se caracteriza princi-


palmente por um diálogo, no qual os instrumentos estão em igualdade de condições (idem, p.
29 – 31).

Confrontando os indicativos apontados por Fournier, com as afirmações do presen-


te autor, acima citadas, é possível se inferir que o 17º quarteto seja o ponto culminante de uma
trajetória de refinamento composicional.

Nesse particular, vale atentar para o fato de que o conhecimento desses traços idio-
máticos da escrita quartetística é elemento essencial à abordagem analítica desse gênero ca-
merístico e que, no presente caso, emoldura o estudo da elaboração motívica e da organização
harmônica do 1º movimento, o que engloba o vocabulário harmônico e mecanismos de conexão
entre os acordes.
3 As ferramentas de análise foram retiradas de outras importantes fontes bibliográficas, voltadas para abor-
dagem analítica do repertório da música do século XX, referenciadas no decorrer do texto e no final do artigo.

33
RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

1 – Questões Formais – articulação de material temático e centricidade:

A organização geral do 17º quarteto obedece à disposição clássica em quatro


movimentos, adotada a partir do 2o quarteto, com a parte lenta ocupando a segunda posição na
sequência, valendo dizer que esta disposição encontra-se presente na maioria dos quartetos que
vêm após o 7º. É esta, portanto, a ordem dos movimentos: 1o movimento – Allegro non troppo;
2o movimento – Lento; 3o movimento – Allegro vivace (scherzo) e 4o movimento – Allegro
vivace (com fuoco).

A forma ternária do tipo A-B-A’ é patente, sendo que a este plano se soma uma
extensa parte conclusiva, a título de finalização4.

A seção A (c. 1 a 48) está subdividida em três subseções: a (c. 1 a 21), b (c. 22 a
36) e c (c. 36 a 48). Uma suposta subdivisão binária não privilegia, neste caso, as mudanças
relacionadas ao material temático, à organização textural, isto sem mencionar ainda a questão
relativa à centricidade.

Na 1a subseção é exposto e desenvolvido o primeiro e mais importante material


do movimento: o inciso encontrado logo no primeiro compasso. Sua fragmentação, já a partir
do compasso 4, aponta para a estratégia composicional escolhida: fazer derivar de um único
elemento a maior parte do conteúdo do movimento. Assim, o material da 1a subseção já
está associado ao trabalho de elaboração motívica, feita com base no desmembramento e na
justaposição de elementos de uma única célula. Verifica-se ainda que, a partir do compasso 12,
a configuração textural da primeira subseção – resultado do tipo de manipulação do material
descrito acima – começa por se desfazer, as três partes inferiores assumindo paulatinamente o
caráter de sustentação harmônica.

A 2a subseção tem o Ré como centro e nela o 1o violino expõe uma nova ideia,
um fragmento de escala descendente, trabalhado sequencialmente. Com base nesse recurso, a
subseção se estende até o compasso 36, onde, elipticamente, tem início a 3a subseção.

Na subseção c são expostos dois novos elementos: o primeiro de caráter melódico


(c. 36 a 39) e o segundo de feição rítmica mais acentuada.

4 A agregação de uma seção conclusiva a uma disposição ternária encontra, no caso dos quartetos de
Villa-Lobos, o seu primeiro exemplo ao final do último movimento do 2o quarteto, fazendo-se presente em outros
quartetos do mesmo autor. É possível se questionar se o molde pretendido seria, no entanto, uma foram binária:
A – B // A’ – C. Entretanto, a organização, seja no campo harmônico, seja no campo motívico ou temático (além do
agógico) demonstram que a pretensão do autor era fazer com que a seção C possuísse claras funções conclusivas.
Dentro dum enquadramento ternário da forma, é possível se considerar uma suposta pretensão de emular a forma
sonata, contudo, numa abordagem bem livre do paradigma vigente no final do séc. XVIII (ROSEN, p. 330).

34
RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

A seção central – B (c. 49 a 80) – Meno Mosso, propõe um novo material, além de
nova textura e organização rítmica, dividindo-se em duas subseções:

A primeira subseção – d (c. 49 a 59) - apresenta a fórmula de acompanhamento


como uma espécie de ostinato. Após um compasso introdutório (c. 49), um novo elemento é
apresentado pela viola. O centro projetado inicialmente é o Mi.

Na segunda subseção – e (c. 59 a 80), a viola continua mantendo (pelo menos


inicialmente) a condução melódica. A partir do compasso 63, a figura do acompanhamento,
antes realizada pelos dois violinos, é transferida para a viola e violoncelo, assumindo o 1o
violino a tarefa de encaminhar a melodia. A dominante de Dó, ampliada por reiteração (c.
71 a 76), indica o final da seção numa cadência à dominante efetuando-se sua resolução no
compasso 80.

A seção A’ (c. 81 a 128) consiste da repetição integral da seção A ao intervalo de


terça maior superior.

A parte conclusiva – Allegro piu mosso (c. 129 a 165), cuja extensão é pouco maior
do que a da seção central, é formada por uma sucessão de pequenos segmentos, cada qual
apresentando um tipo distinto de material e disposição polifônica. Uma cadência sobre o acorde
de nona menor, tendo Dó como fundamental, encerra este trecho no compasso 160, donde se
encaminha a cadência final, com dois acordes, a tríade de Lá menor e a tríade de Dó com sexta
acrescentada5.

O Dó pode ser considerado o centro principal do 1º movimento. A primeira


harmonia – uma tríade menor com sexta e sétima maiores acrescentadas (c. 1.4) - e também o
acorde final, projetariam, em grande escala, a centralidade do Dó. No entanto, o processo de
definição deste (como dos demais) possíveis centros tonais variam consideravelmente ao longo
da peça, e nenhum polo ganha estabilidade, mesmo dentro de uma mesma seção. O problema
se torna ainda mais complexo tendo em vista o deslocamento uma terça maior acima de todo
o conjunto da seção reexpositiva.15 Se, no início da 1a seção, o acorde de abertura é tomado
como referencial, na verdade, como se sabe, este fato em si, não é suficiente para que seja
estabelecido, desde então, um centro num âmbito maior. A estruturação harmônica presente nos
compassos 1 a 8 não oferece subsídios claros para definir um foco. Um pálido indício é dado

5 A definição de centricidade em peças do repertório pós-tonal, é adotada por diversos autores, entre eles,
Joseph Straus, que afirma que “na ausência da harmonia funcional e do encadeamento tradicional, os compositores
uma variedade de meios contextuais de reforço” (STRAUS, 2013, p. 144). O que se pode verificar na música de
Villa é, muitas vezes, a justaposição de alguns dos processos descritos por Straus, com outros patentemente ema-
nados da common practice.

35
RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

pelas notas estruturais da parte melódica. O Dó encontrado no primeiro tempo do compasso


8 é antecedido por um segmento descendente6, apresentando características de um ponto de
chegada da trajetória melódica a partir de uma dominante.

Figura 1 – Esquema melódico do trecho (c. 5 a 8) – 1º violino.

A linha do baixo, situada entre os compassos 16 e 20, enfatiza o Dó como centro,


não só por meio da reiteração, mas pela sua própria trajetória descendente. Isto é corroborado
por uma maior clareza e direcionalidade presentes na estrutura harmônica, especialmente com a
harmonia de sexta aumentada cumprindo as funções de dominante no compasso 19. A progressão
dominante-tônica (esta, com sétima maior acrescentada) fornece elementos suficientes para
afirmar que o Dó cumpre papel de centro da 1a subseção.

Já na 2a subseção, pelo menos ao início, a centralidade do Ré é incontestável. Não


só a harmonia inicial (c. 22) como a fórmula de acompanhamento, presente a partir do compasso
25, confirmam esta assertiva. Contudo, o Ré recolocado na posição de centro tonal, assume esta
condição de maneira efêmera, visto que um acorde de sexta aumentada (sexta alemã – c. 34.3)
resolve sobre a tríade de Si maior. Este último acorde aqui substitui a função de dominante de
Mi.

Não se vê, logo ao início da 3a subseção, um centro explicitado. Oculta dentro de


um acorde de nona, ele só vai aparecer antecedido por uma dominante no compasso 40, mesmo
assim na forma de acorde com sexta e sétima maior acrescentadas. Sucede-se um trecho em que
é abandonado, por completo, o conteúdo escalar de Mi maior, observando-se uma passagem
harmônica sequencial, por quartas (cc. 43 a 46) e que sofre uma resolução defectiva ao início
do compasso 48 sobre uma tríade de Fá maior.

6 Como sugere Paulo de Tarso Salles, esse segmento descendente apresenta a característica comum de
figuração em dois registros, na forma de “ziguezague” (SALLES, 2009, p. 114 a 119).

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

1 21 22 36 49 59 80 81 102 113 115 128 129 165


36 48 59 100
Seção A Seção B Seção A’ Parte Conclusiva
a b c d e a b c
Dó Dó Ré Mi Mi Fá# Mi Mi Fá# Sol# Dó Dó# (Lá)
Mi Fá Fá# Dó Sol# Lá Dó
Figura 2 – Esquema estrutural do 1º movimento - divisão em seções e subseções e polarização

2. Elaboração Motívica e Temática:

Conforme apontado por Ribeiro, o primeiro gesto melódico, enunciado pelo 1º


violino, é formado por
(…) uma estrutura que contém duas tríades, sendo a primeira a de Dó menor (o que
de pronto sugere uma tonalidade) e a segunda de Si maior. Nesse caso específico
prevalece a tríade de Dó, já que sua fundamental é reiterada, e a parte inferior
(violoncelo) perfaz um arpejo sobre este mesmo acorde. De toda forma, sendo o Si a
nota mais aguda, decerto que a tríade de Si acaba por se transformar num outro ponto
focal que compete com o acorde de Dó menor. Outro fato que merece menção especial
é a simetria de sua disposição, tendo o Mib como eixo. É fato sabido que as estruturas
intervalares simétricas criam ambiguidades tonais, tais como os acordes de quinta
aumentada, de quinta diminuta, de sétima diminuta, para não citar formações mais
complexas. (RIBEIRO, 2002, f. 326)

Resta saber se existe na sua organização intervalar algum dado que permita dirigir
posteriores observações. No exemplo a seguir foi transcrita apenas sua estrutura intervalar.

Figura 3 – estrutura intervalar do primeiro gesto melódico do 1º mov. do 17º Quarteto.

O exame do inciso (doravante motivo I), tomando como referência a formulação


teórica de Forte / Straus, revela os seguintes traços:

a) tanto a forma normal (FN) quanto a forma prima (FP) do inciso – [01478] – deixam claro a
simetria intervalar interna, e que isso se revela pelos três tetracordes contidos -, [0147), [0148]
e [0156];

b) a configuração original comporta os tricordes [037] e [036] e [048], correspondentes


respectivamente às tríades perfeitas, diminutas e aumentadas, além das formas [014], [015] e
[016].

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

Essas observações já nos permitem avaliar alguns desdobramentos do motivo I


no campo melódico como, por exemplo, no compasso 57. Aqui, é elidida a repetição da tríade
diminuta (Sib-Réb-Mi) e o último intervalo é modificado: em vez de uma quarta justa ascendente,
uma terça descendente, estabelecendo assim uma nova configuração: a forma [01457] que
contém uma nova díade: o intervalo de tom inteiro, inexistente no agrupamento original.

Figura 4 – Segmento melódico do c. 5 – 1º violino, dobrado duas oitavas abaixo pela viola

Tal modificação se mostra relevante para derivações motívicas, pois, de certa forma,
“diatoniza” o conteúdo do parâmetro melódico e harmônico posteriores, seja na subseção b e c,
seja na seção central (B).

A segunda derivação direta de I (c. 6) amplia o desenho original, com alteração


da matriz rítmica e o acréscimo de um intervalo de quinta justa ascendente, sendo que no
compasso 9 é encontrada a terceira derivação direta de I, com o intervalo de terça maior usado
no compasso 5 é disposto agora na forma ascendente [01469].

As derivações a partir do inciso I no campo melódico indicam um processo de


acumulação contínua de novas unidades intervalares adicionadas a um subconjunto básico
[0147]. Mesmo os gestos melódicos que não demonstram nenhuma vinculação direta com
o motivo I apresentam-se como derivações remotas, pelo mesmo processo de ampliação do
conjunto inicial (c. 10 e 11 - 1o vln. e vla.), ou motivo II, como pode ser visto na figura 3

Figura 5 – Motivo II como gesto melódico (1º violino e viola) e respectivos tricordes (FP)

Ou seja, como constatado por Ribeiro, a sonoridade do conjunto inicial permeia grande

7 As possíveis derivações do motivo no campo harmônico serão objeto de estudo nos itens afins, ou seja,
na análise do vocabulário harmônico.

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

parte do conteúdo melódico da 1a subseção. (RIBEIRO, f. 359).

Na subseção b são empregadas novas figuras, secundárias, mas que têm


desdobramentos tanto dentro da própria 2a como na 3a subseção e na seção central. O motivo
III dá início ao desenho melódico da subseção b. Fora isso, ele constitui o fator mais relevante
da estrutura sequencial, entre os compassos 22 e 26, bem como sua derivação mais importante
– III’ – encontrada no compasso 28, quando o desenho descendente é ampliado, mas os valores
encurtados (diminuição), dando lugar ao aparecimento das tercinas.

Figura 6 – Derivação motívica no conteúdo melódico da 2a subseção – b (1º violino c. 1 22 e 28).

A derivação mais importante – por figurar em ponto de articulação formal, é


encontrada nos compassos 31 e 32: sua configuração rítmica está alterada, figurando totalmente
em tercinas, invertida a direção, assumindo agora a forma de escala ascendente.

Figura 7 – Escala ascendente como derivação do motivo III - c. 32 - 1º violino

3. Organização Harmônica.

O primeiro ponto a se verificar é o conteúdo harmônico fornecido pelo somatório das


partes do 1o violino e do violoncelo no inciso inicial (c. 1.1 a 1.3).

Figura 8 – Conjuntos de notas presentes no primeiro compasso – 1º violino e violoncelo.

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

A forma total é a do conjunto [013569], ao passo que a parte do violoncelo


corresponde à forma prima [0258]8, o que demonstra que, se de um lado há subgrupos que são
comuns às duas vozes - [036] e [037], há elementos que estão presentes apenas na parte do 1o
violino, como é o caso das tríades aumentadas [048] e dos conjuntos [014] e [015]. Contudo, há
uma configuração que não participa da parte do 1o violino: [025], mas que é parte fundamental
do desenho do violoncelo. O primeiro agregado harmônico [02458], no 4o tempo do compasso
1, revela a fusão dos dois estratos (1o violino e violoncelo), com uma disposição que privilegia a
tríade menor sobre o Dó, ficando claro que a omissão do Fá# retira o conflito que poderia existir
com a fundamental. O mais importante, porém, é verificar como a sonoridade deste acorde, em
especial o intervalo de sexta menor (ou quinta aumentada), produz os fatores que presidirão o
tipo de encadeamento harmônico que se segue (c. 2 a 4.3).

Figura 9 – Organização harmônica do gesto inicial (c. 1) e seu desdobramento nos compassos 2 a 4.

O desenvolvimento de todo o trecho mostra como os acordes derivam da formação


resultante do somatório da parte superior e inferior do inciso que abre o movimento.

8 Essa forma prima constitui o que se convencionou chamar de “acorde de Tristão”. Esse é um agregado
harmônico cuja presença na obra de Villa é apontada por Bruno Kiefer (1986, p. 42) e também por Paulo de Tarso
Salles (op. cit., p. 28 – 36).

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

Figura 10 – conteúdo harmônico do 1º compasso e suas derivações ao longo da 1a subseção.

Ao longo da 1a parte da subseção, patenteia-se a relação entre formações que, num


primeiro olhar, aparentemente não possuiriam nenhum vínculo formal. Algumas matrizes
intervalares são mantidas (invariâncias) e que estabelecem o vínculo entre agregados harmônicos,
e que são representadas pelos conjuntos [026] e [0258], todas elas relacionadas diretamente ao
primeiro acorde (c. 1.4) e, indiretamente, à célula melódica com que começa o movimento. Há
também um contraste com o conteúdo melódico, que expande mais diretamente os elementos
característicos da parte superior do inciso inicial.

Permanece, no trecho entre o compasso 9 e 15, em substituição à lógica funcional,


a conexão entre os acordes produzida por conduções das partes em que é mantido o maior
número de notas comuns e no qual se privilegia o mínimo deslocamento das vozes, quase
sempre por semitons em movimento paralelo, ou seja, de condução parcimoniosa, como se vê
no exemplo a seguir.

Figura 11 – representação esquemática da condução parcimoniosa das vozes na conexão entre acordes

(c. 9 - 15)

Mesmo ao aproximar-se o final da 1a subseção (c. 10 a 12), quando a textura


não apresenta características tão fortes de fragmentação do material quanto nos primeiros
oito compassos, a presença das tríades aumentadas [048] em movimento paralelo na estrutura
harmônica mantém uma conexão, ainda que remota, com os eventos harmônicos da abertura do
movimento.

Um outro traço que também permeia o processo de organização harmônica, pelo

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

menos no 1º movimento desse quarteto, é a presença de dois estratos (ou camadas) harmônicos,
um constituído de um paralelismo descendente (muitas vezes cromático), que é interrompido
por uma progressão substituta à fórmula funcional dominante-tônica. Em grande parte dos
casos, a dominante é substituída por um acorde de sexta aumentada, que assume a função de
dominante.

Figura 12 – representação esquemática das camadas diferenciadas – compassos 17 a 19.

Em outras situações, o processo culmina com a substituição da dominante por


uma tríade com sexta maior acrescentada (FP [0258]), como ocorre entre os compassos 32 e 33,
na subseção b.

Figura 13 – progressão com linha do baixo cromática e tríade menor com sexta acrescentada com função
de dominante de Ré (c. 32 e 33).

Ou por sétimas da dominante secundárias, antecedidas das progressões formadas


por paralelismos de acordes de sétima.

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

Figura 14 – progressão com linha do baixo cromática e acorde de dominante secundária do VI de


empréstimo (c. 68 - 69).

Mais significativo, caso se opte pela adoção de uma concepção analítica que
admite um maior grau de abstração no tratamento do material harmônico, é a subdivisão em
camadas a partir do conteúdo intervalar. É o que se pode depreender da análise do início da
seção conclusiva (c. 129 a 133). É evidente aqui a existência de duas camadas harmônicas no
segmento inicial: uma formada pelas duas vozes superiores (1o e 2o violinos) e a outra pelas
quatro partes inferiores (viola e violoncelo). De pronto, no substrato inferior será encontrado
o conjunto [01378], cuja configuração se relaciona diretamente com o inciso inicial [01478].
Este conjunto contém a maior parte das formas presentes na harmonia da 1a subseção da obra,
das quais as mais relevantes são [0158], [026] e [015] notando-se, entretanto, a ausência da
tríade diminuta [036]. As duas partes superiores pertencem, por sua vez, ao conjunto [01368]
onde estão inclusos os subconjuntos [026] e [025] mais a tríade diminuta [036), todos presentes
no primeiro acorde assim como na parte grave (violoncelo) do 1o inciso, desempenhando
importante papel na elaboração harmônica da 1a subseção do movimento.

Figura 15 – relação em grande escala do conteúdo intervalar do primeiro compasso e do início da seção
conclusiva e a divisão em camadas harmônicas (c. 129 - 133).

4. Considerações finais:

A análise empreendida no presente trabalho tinha como objetivo mostrar,


de forma resumida, alguns dos procedimentos adotados por Villa-Lobos na escrita do seu

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

último quarteto. Forma e meio instrumental que tem sido considerado o mais desafiador aos
compositores por exigir grande aporte técnico aliado a uma igualmente capacidade criativa, o
quarteto de cordas se configura, na produção villalobiana, numa espécie de síntese da maioria
dos recursos e modus operandi em termos de composição musical. O estudo do 17º quarteto
apresenta um Villa-Lobos com domínio totalmente consistente do material musical, tanto nas
grandes, quanto nas médias e pequenas dimensões, dentro das diretrizes analíticas assentadas
por LaRue (1998, p. 5 – 9).

Considerando-se o fato de que a análise partiu inicialmente de aspectos


macroestruturais, no sentido de oferecer um enquadramento mais amplo para um detalhamento
posterior, e que esse último se deu sobre dois aspectos – elaboração motívica e organização
harmônica – é possível afirmar-se que a consolidação dos dados compilados permite se chegar
às seguintes conclusões:

a) Grande Escala

- a relação entre os polos ou centros da seção A e B é de terça maior Dó – Mi, sendo que
a cadência final desta última estabelece o Dó como centro tonal, o que cria a expectativa
de um retorno de A (como A’) iniciando-se em Dó. No entanto, tendo em vista que a
seção A’ inicia polarizando o Mi, as seções extremas não se conectam em grande escala
a partir do mesmo patamar tonal, mas sim por meio de uma relação de terças – Dó – Mi.
O retorno e estabilização de Dó têm lugar no início da parte conclusiva;

- em cada um dos segmentos da seção conclusiva são trabalhados elementos motívicos


pertencentes a cada subseção de A, com os desdobramentos da figura inicial I
concentrados na estrutura harmônica, enquanto os motivos II e III projetam-se na
elaboração do conteúdo melódico;

- o inciso que abre o movimento fornece matrizes de construção harmônica, não somente
para o começo da 1a seção, mas produz consequências no conteúdo harmônico do
início da parte conclusiva. Assim sendo, os eventos harmônicos da parte conclusiva
e da 1a parte da subseção a estão inter-relacionados pelos mesmos tipos de material
intervalar, em especial os conjuntos [025] e [026]. Constata-se, portanto, um processo de
derivação harmônica que atua não apenas em pequena escala, mas que relaciona eventos
harmônicos separados no tempo, conferindo coesão, principalmente entre seções que
não se conectam diretamente por intermédio do material temático.

- o trabalho motívico não se caracteriza meramente por um jogo construtivo, indo mais
além: enseja muitas vezes uma elaboração consistente de uma sonoridade básica (um

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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

conjunto de intervalos) que permeia organicamente a dimensão horizontal, vertical e


temporal de passagens e até de movimentos inteiros.

b) Média escala e pequena escala:

- uma matriz intervalar, presente no primeiro gesto, subjaz a todas as derivações motívicas
no campo melódico na primeira subseção, por exemplo;
- sintaxe constituída de paralelismos harmônicos (quase sempre descendentes) formados
de acordes de 7ª;

- divisão do material harmônico em camadas ou estratos harmônicos, cada uma delas com
sua lógica de condução e tipologia;

- lógica de conexão entre acordes que muitas das vezes recusa a sintaxe tonal, mas que
recorre ao princípio da condução parcimoniosa, isto é, de um mínimo movimento das
vozes no encadeamento entre acordes.

Por fim, os traços acima apontados demonstram características marcadamente


pessoais de Villa-Lobos no trato com o quarteto, mas, ao mesmo tempo, apontam para uma
consistência na utilização dos meios técnicos a seu dispor que expressam uma síntese de
processos composicionais encontrados em outras fases, colocando-o em situação bastante
favorável perante os avanços conquistados na composição musical ao longo da primeira metade
do século XX.

REFERÊNCIAS:

ESTRELLA, Arnaldo. Os Quartetos de Cordas de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/DAC -


Museu Villa-Lobos, 1978. 142 p.

FOURNIER, Bernard. L’esthétique du quatuor à cordes. Paris: Fayard, 1999. 706 p.

KIEFER, Bruno. Villa-Lobos e o modernismo. Porto Alegre: Movimento, 1986.

LARUE, Jan. Análisis del estilo musical. Original em inglês: Guidelines for Style Analysis.
Cooper City: Spanpress, 1998, 186 p..

ROSEN, Charles. Sonata Forms. New York e London: Norton, 1980, 344p..

45
RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS

SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora da Uni-


camp, 2009, 263 p..

STRAUS, Joseph N. Introdução à Teoria Pós-tonal. Original em inglês: Introduction to


Post-tonal theory. Trad. Ricardo Bordini. São Paulo: Editora da Unesp, 2012, Salvador: EDU-
FBA, 2013, 310 p..

TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos: The Life and Works, 1887-1959. Jefferson: McFarland,
1995. 438 p..

RIBEIRO, Roberto Macedo. A Escrita Polifônica dos Quartetos de Cordas de Villa-Lobos:um


estudo do 1º, 2º e 17º quartetos. 2002. 498 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Música) –
PPGM/Escola de Música/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

46
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Trio nº 2 de Marcelo Rauta: influências villalobianas


e procedimentos composicionais

Wesley Higino1
UNIRIO - wesley.nhp@gmail.com
Willian Lizardo2
UFRJ - willianlizardo@gmail.com

Resumo: Este artigo busca demonstrar as influências exercidas por Heitor Villa-Lobos, através
de seus procedimentos composicionais e o tratamento dado por ele ao material folclórico, na obra
Trio nº 2, do compositor contemporâneo Marcelo Rauta. Esta obra é dedicada à memória de Villa
-Lobos e nela, Rauta utiliza algumas melodias populares tradicionais brasileiras como: Os escra-
vos de Jó, Marcha Soldado, Terezinha de Jesus, Fui no Itororó, Caranguejo, O pastorzinho e A
alface já nasceu, algumas delas retiradas do Guia Prático de Villa-Lobos. Observamos que apesar
dos procedimentos composicionais adotados por ambos serem os mesmos, o resultado musical é
diverso.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Procedimentos composicionais. Canção folclórica. Dialogismo.
Marcelo Rauta.

The Trio nº 2 of Marcelo Rauta: influences of Heitor Villa-Lobos and compositional proce-
dures
Abstract: This paper seeks to demonstrate the influences of Heitor Villa-Lobos, through his com-
positional procedures and his treatment of the folkloric material, on the chamber music piece Trio
nº 2, by contemporary composer Marcelo Rauta. This piece is dedicated to the memory of Vil-
la-Lobos and throughout the piece, Rauta uses melodies from traditional brazilian folk songs: Os
escravos de Jó, Marcha Soldado, Terezinha de Jesus, Fui no Itororó, Caranguejo, O pastorzinho
and A alface já nasceu, some of them taken from Villa-Lobos’s Practical Guide. Although both of
them use the same compositional procedures, the musical result is entirely different.
Keywords: Villa-Lobos. Compositional procedures. Folk song. Dialogism. Marcelo Rauta.

INTRODUÇÃO

No início do século XX, a figura de maior destaque no cenário musical brasileiro foi
Heitor Villa-Lobos (1887-1959). O compositor foi capaz de interagir tanto com tendências es-
téticas vanguardistas europeias quanto com músicas populares e canções folclóricas nacionais,
no intuito de promover a afirmação da chamada “música brasileira” idealizada no movimento
modernista brasileiro. Por sua notoriedade, Villa-Lobos foi capaz de influenciar a obra de diver-
sos compositores brasileiros, entre eles Marcelo Rauta.

1 WESLEY HIGINO. UNIRIO. Mestrando em Música pela UNIRIO. Bacharel em violino pela Faculda-
de de Música do Espírito Santo. Recebe orientação regular da Profª Me. Carla Rincón (Quarteto Radamés Gna-
talli) desde o ano de 2012. Atualmente é Mestrando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO) na área de Musicologia e linha de pesquisa Linguagem e Estruturação Musical, sob orientação
do Prof. Dr. Marcus Wolff.
2 WILLIAN LIZARDO. UFRJ. Professor da Faculdade de Música do Espírito Santo. Mestrando em Mú-
sica pela UFRJ. Bacharel em piano pela Faculdade de Música do Espírito Santo. Recebe orientação regular da
pianista e professora Linda Bustani desde o ano de 2016. Atualmente é Mestrando em Música pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na área de Práticas Interpretativas e na linha de pesquisa Processos do Desen-
volvimento Artístico onde é orientado pela Profª Drª Miriam Grosman.

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

Marcelo Rauta é natural de Guarapari (ES), doutorando em Educação Musical pela


UNIRIO, sob orientação da Profª Drª Ermelinda A. Paz, mestre e bacharel em composição pela
UFRJ, orientado por João Guilherme Ripper, Marcos Vinícius Nogueira e Paulo Peloso. Atuou
como professor de harmonia, análise musical e contraponto na Faculdade de Música do Espírito
Santo (FRAGA, 2015). Em sua intensa atividade composicional Rauta possui 45 obras publi-
cadas pela editora Periferia Music (Barcelona/Espanha) e pela Academia Brasileira de Música
(Rio de Janeiro/RJ). Além das obras publicadas, o compositor possui um extenso catálogo de
obras que abrangem variados instrumentos e formações.

Rauta pode ser considerado como um dos compositores contemporâneos mais


atuantes do Espírito Santo e pesquisas sobre sua obra têm colaborado para um melhor enten-
dimento da música realizada no Estado. Neste artigo, assim, objetivamos expor aproximações
e influências dos processos criativos de Villa-Lobos na obra de Marcelo Rauta, em especial no
Trio nº 2, objeto de estudo deste trabalho.

HEITOR VILLA-LOBOS E A CULTURA POPULAR

Em suas viagens pelo país, o compositor pôde ter contato com diversas formas
de cultura popular, e tal fato ajudou a formar a imagem de Villa-Lobos como pesquisador da
música brasileira. Segundo Neves (2008), Villa-Lobos verá o folclore e as tradições populares
como um todo, uma mescla complexa, de onde não se pode isolar um ou outro elemento. Assim,
sua música não se prende às características negras ou indígenas, procurando refletir sempre um
clima sonoro que, como já disseram muitos autores, mostra mais a terra do que a raça.

Para Neves (2008), havia vários pontos comuns entre o trabalho pessoal de Villa
-Lobos e as ideias modernistas, principalmente sua busca pela nacionalização da criação mu-
sical, através do aproveitamento do folclore e as experiências composicionais em ebulição na-
quele período, com destaque para os esquemas harmônicos de superposição de tonalidades e
afastamento das normas cadenciais tradicionais. Kostka afirma que:
O século XX levou compositores à necessidade cada vez maior de meios alternativos
de organização musical e de um vocabulário que pudesse dialogar e agregar adequa-
damente variados métodos e conceitos. É possível observar cada um desses caminhos
se ramificando em várias direções criando assim um grande conjunto de estilos musi-
cais, filosofias e práticas e sua inexorável sobreposição, mesmo quando aparentam um
distanciamento (KOSTKA, 2008, p. 427)

Para além das questões musicais, a funcionalidade da obra de arte e seu emprego
social e educativo, são pontos concordantes entre o pensamento do compositor e do poeta Má-
rio de Andrade. Este era categórico ao afirmar que os compositores brasileiros teriam de cola-
borar para a determinação e a normalização dos caracteres étnicos da música brasileira e para a

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

afirmação nacional. (NEVES, 2008, p. 78).

Na década de 1930, Villa-Lobos receberá apoio político para pôr em prática seus
ideais educacionais junto à ideologia do Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas. Seu progra-
ma incluía a difusão do conhecimento de música nas escolas primárias a partir do canto, buscando
formar a mentalidade infantil para cantar a grandeza da pátria e o trabalho de construí-la, podendo
desenvolver a disciplina, o civismo, o espírito patriótico, fomentando o trabalho em conjunto e
preparando futuras plateias. Com esse fim, o compositor elabora uma coletânea de canções po-
pulares folclóricas para ser utilizado nas aulas de canto orfeônico, o Guia Prático, conjunto de
137 peças retiradas da tradição popular e grafadas em partitura, algumas delas harmonizadas e
rearranjadas por ele, buscando despertar a sensibilidade da criança por meio da percepção rítmica,
sonora, dos intervalos, dos timbres, dos acordes, da dinâmica. Nele, o compositor produz arranjos
que podem ser de fácil acesso para vozes e instrumentos, “dando-lhes forma mais elaborada, ape-
sar de, por vezes, revesti-las de uma atmosfera de ingenuidade e de improvisação despretensiosa,
que são características do folclore” (GANDELMAN, 2011, p. 22).

MARCELO RAUTA

No Trio nº 2 de Marcelo Rauta, há o emprego de melodias presentes na infância


do compositor e algumas das melodias catalogadas no Guia Prático como: Os escravos de Jó,
Terezinha de Jesus, Fui no Itororó, Caranguejo, O pastorzinho e A alface já nasceu. Também
destacamos a utilização da construção cíclica (característico em César Franck), onde o com-
positor usa materiais expostos no primeiro movimento também no último movimento da obra.
Esse procedimento é similar em outras obras do compositor.

Sua admiração pelo processo criativo villalobiano o motivou a criar a Sinfonietta nº


4 que traz procedimentos composicionais presentes no Choros nº 10 de Villa-Lobos (FRAGA,
2015). No trecho a seguir, em entrevista concedida à pesquisadora Gomes, Rauta comenta sua
proximidade com os procedimentos composicionais villalobianos:
[...] confesso ter abusado da afinação do violão em quartas para escrever nesta lingua-
gem, o procedimento que mais usei nos últimos dez anos. Sou fã de Villa-Lobos, estu-
do seus procedimentos composicionais e, assim, também me interessei por consultar
suas obras para violão, em especial os estudos (RAUTA, Marcelo. Entrevista conce-
dida pelo compositor no dia 08 de outubro de 2015 à Sabrina Souza Gomes, p. 6).

A maior parte dos procedimentos composicionais utilizados por Marcelo Rauta foi
estabelecida no decorrer do século XX, mas também podemos observar o emprego de procedi-
mentos característicos de outros períodos da história da música. Segue um trecho de entrevista
realizada pelo autor com Marcelo Rauta, onde o compositor comenta os procedimentos compo-
sicionais usados em sua produção:
Observo o padrão estético da forma, da forma aberta (fantasia e improvisação), uso de

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

centros tonais, imitações, paralelismos, superposições de segundas, quartas e sétimas,


clusters, escalas naturais (maior/menor) e artificiais, modalismos, texturas contra-
pontísticas, textura de melodia acompanhada (inclusive o baixo d’Alberto), texturas
figurativas, monofonias, elementos rítmicos/construções melódicas populares e fol-
clóricas da música brasileira e do mundo, ou seja, um padrão relativamente amplo e
de escolhas que misturadas podem se tornar híbridas. Não sou preocupado em utilizar
uma só linguagem ou estética para cada obra (RAUTA, Marcelo. Entrevista concedida
ao autor no dia 05 de junho de 2017).

No trecho acima transcrito, podemos observar sua busca por não utilizar somente
uma linguagem ou estética, mas a possibilidade de equilibrar elementos diversificados em uma
obra, evidenciando assim o dialogismo característico em sua obra. Para Avvad (2010), os com-
positores brasileiros contemporâneos seriam desprovidos do preconceito em utilizar elementos
ligados às estéticas anteriores ou ultrapassadas, e revisitariam tais elementos com liberdade,
apropriando-se de determinados elementos estéticos, ou recriando-os à sua própria maneira.

DIÁLOGOS ENTRE MARCELO RAUTA, HEITOR VILLA-LOBOS E A CULTURA


POPULAR BRASILEIRA

A criação artística ou científica estará sempre em diálogo com conhecimentos e


produções passados; seja apropriando-se dos modos criativos anteriores, seja negando-se par-
cialmente a aproximação de tais modos. “A obra criativa representa um processo histórico con-
tínuo, onde cada forma nova tem por base a precedente.” (VIGOTSKI, 2014).

Mikhail Bakhtin no início do século XX em seus estudos de literatura compara-


da de romances do século XIX, “[...] estabelece a noção de dialogismo - diálogo ao mesmo
tempo interno e externo à obra - que estabelece relações com as diferentes vozes internas e com
diferentes textos sociais.” (ALÓS, 2006, p. 1). Para Bakhtin, um texto não subsiste sem o outro,
seja atraindo-o ou rejeitando-o, e assim, permitindo que ocorra um diálogo entre dois [ou mais]
discursos.

Esse tipo de diálogo pode ser observado no momento da criação musical. Um com-
positor conscientemente ou não, trabalha dentro de um sistema musical - e porque não cultural
- que o precede e que propõe um diálogo, onde, dentro das inúmeras possibilidades que este sis-
tema lhe oferece, o compositor escolhe os caminhos que lhe aprouver para a construção de seu
“novo” texto (ou discurso) musical. “Um discurso, qualquer que seja, nunca é isolado, nunca é
falado por uma única voz, é discursado por muitas vozes geradoras de textos, discursos que se
intercalam no tempo e no espaço.” (ZANI, 2003, p. 125).

Salientamos que a relação dialógica existente entre o discurso antecedente com o


discurso “novo”, de forma alguma pressupõe qualquer relação hierarquizante entre os mesmos.

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

Pelo contrário, a constante relação entre eles gera transformação e novidade. Ambos possuem
seus valores. Alós (2006) argumenta também na mesma direção:
A palavra do mesmo e a palavra do outro não se miscigenam homogeneamente no
processo de enunciação narrativa, perdendo suas características próprias e formando
um terceiro elemento; ao contrário, ambas mantêm determinadas particularidades dis-
cursivas em confronto, organizadas em uma mesma enunciação narrativa [...] (ALÓS,
2006, p. 3).

Têm-se assim, a concretização do dialogismo bakhtiniano. Através dessa perspec-


tiva poderemos observar no objeto de estudo deste artigo, relações dialógicas entre os proce-
dimentos composicionais utilizados por Marcelo Rauta com os procedimentos villalobianos;
além do diálogo realizado por Rauta com canções folclóricas brasileiras. A seguir iremos expor
tais relações dialógicas.

SIMETRIA

O Trio Nº2 se inicia com um material temático (Comp. 1 a 6) que possui uma cons-
trução intervalar baseada principalmente em cromatismos descendentes. Esse material, porém,
é repetido imediatamente (Comp. 7 a 12), mas de forma transposta, o que sugere uma simetria
translacional (SALLES, 2009) por transposição direta do material original, repetido uma quar-
ta acima da altura original. Observe a Figura 1:

Figura 1: Simetria translacional. Comp. 1 a 12. Fonte: Editoração dos autores.

Podemos observar este mesmo procedimento em A Prole do Bebê Nº1 Caboclinha


de Villa-Lobos. O ostinato inicial é reutilizado de forma transposta em diferentes momentos,
sugerindo também, simetria translacional. Observe as figuras 2 e 3 para melhor compreensão.

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

Figura 2: Ostinato inicial em Caboclinha. Comp. 1 e 2. Fonte: Editoração dos autores.

Figura 3: Reutilização do ostinato inicial em Caboclinha. Comp. 37 a 40. Fonte: Editoração dos autores.

Salientamos que o uso de simetrias pode ser uma ferramenta valiosa para uma cons-
trução musical coesa, ocasionada pelo reaproveitamento de materiais.

OSTINATO

A partir do compasso 27, inicia-se uma seção onde observamos a apresentação de


um ostinato de particular importância. O compositor apresenta no piano, esse ostinato que será
reproduzido em 48 compassos no decorrer do primeiro movimento da peça, o que corresponde
a 20% de sua duração total. Na seção final, ele funcionará como fundo textural, sendo sobre-
posto por outros materiais temáticos apresentados anteriormente, intercalados entre o violino e
o violoncelo. O ostinato e os materiais temáticos estão representados na Figura 6.

Figura 6: Setas: figurações temáticas reutilizadas. Destaque: Ostinato. Comp. 211 a 219. Fonte: Editoração dos
autores.

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

Essa forma de utilização do ostinato pode ser encontrada também nas obras de
Villa-Lobos. A saber; enquanto há uma simultaneidade de apresentação de diversos materiais
no eixo vertical, horizontalmente o ostinato proporciona organicidade aos eventos diversos que
ocorrem (SALLES, 2009). Abaixo, na Figura 7, podemos observar um exemplo onde Villa-Lo-
bos utiliza o ostinato como fundo textural em contraposição à figuração melódica.

Figura 7: Figuração melódica e fundo textural. Quarteto Nº5 de Villa-Lobos, primeiro movimento. Comp. 101.
Fonte: Editoração dos autores.

UTILIZAÇÃO E TRATAMENTO DE MELODIAS FOLCLÓRICAS

Tal como comentado em seções anteriores, devido ao ensejo de se construir


uma identidade nacional na música brasileira, Villa-Lobos incorporou em suas composições
cantigas folclóricas que receberam diferentes tratamentos harmônicos, sejam eles próximos
da harmonia tonal tradicional, ou até mesmo tratamentos harmônicos tonais expandidos. Nas
Cirandinhas de 1926, o tratamento harmônico tradicional pode ser observado nas diversas pe-
ças que compõe essa coleção (Zangou-se o Cravo com a Rosa, por exemplo). Já em A Prole
do Bebê Nº 1, Villa-Lobos dá um tratamento tonal expandido às melodias folclóricas utilizadas
(Polichinelo, por exemplo). Observe os exemplos nas Figuras 8 e 9.

Figura 8: Acompanhamento harmônico tonal tradicional. Cirandinhas Nº1. Comp. 17 a 20. Fonte: Editoração dos
autores.

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

Figura 9: Acompanhamento harmônico tonal expandido. Canção folclórica em destaque. A Prole do Bebê Nº 1,
Polichinelo. Comp. 23 a 33. Fonte: Editora Casa Arthur Napoleão, Rio de Janeiro.

Marcelo Rauta trabalha da mesma forma no Trio Nº 2. O tratamento harmônico


dado por Rauta para as melodias folclóricas são tradicionais ou expandidos. Estruturalmente,
porém, observamos uma série de sobreposições de temas, texturas e tonalidades, gerando estru-
turas complexas. Em outros momentos, podemos observar construções harmônicas simples e
tradicionais, o que nos revela em Rauta, o interesse pela mescla de procedimentos e construção
de contrastes.

A primeira citação melódica folclórica no Trio Nº 2 ocorre no compasso 29. Rauta


cita a canção Os escravos de Jó de forma variada sob um fundo textural gerado pelo principal
ostinato utilizado na peça. Observe na Figura 10, a melodia folclórica tal como ela é conhecida,
e na Figura 11, como a melodia foi trabalhada no Trio Nº 2.

Figura 10: Canção folclórica Os escravos de Jó. Primeira frase musical. Fonte: Editoração dos autores.

Figura 11: Ostinato e melodia folclórica variada. Comp. 27 a 31. Fonte: Editoração dos autores.

A segunda canção folclórica utilizada é Marcha Soldado. Inicialmente o compositor a


apresenta de forma variada, mas logo depois ele a cita na forma original. Destacamos o trata-

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

mento tonal tradicional dado à canção. Abaixo, observe a Figura 12 para mais detalhes.

Figura 12: Melodia folclórica com tratamento harmônico tonal tradicional. Comp. 52 a 64. Fonte: Editoração dos
autores.

Nos compassos 123 a 137, ocorre uma superposição de materiais temáticos. São
eles: a canção folclórica Marcha Soldado no violino (com variação), o material temático inicial
no piano, e um ostinato no violoncelo. Observe a Figura 13.

Figura 12: Superposição de materiais. Comp. 121 a 132. Fonte: Editoração dos autores.

ELEMENTOS CONTRAPONTÍSTICOS

Bach é fonte de inspiração e estudo de Villa-Lobos desde pelo menos 1910, quando o
compositor realiza uma transcrição de uma fuga do Cravo bem temperado de Bach, para vio-

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

loncelo e piano. O ciclo das Bachianas é a afirmação maior da valorização por Villa-Lobos da
produção musical de Bach. Citamos em especial a Bachianas Brasileiras Nº1 para octeto de
violoncelos, que em seu último movimento intitulado Fuga (Conversa), Villa-Lobos constrói
uma exposição fugada inspirada nos moldes bachianos. Observe a Figura 13, onde exemplifi-
camos um trecho da exposição.

Figura 13: Entradas em estilo fugado indicadas pelas setas. Bachianas Brasileiras Nº1 Comp. 1 a 9. Fonte: Edi-
toração dos autores.

Marcelo Rauta se inspira também nesse estilo composicional. No Trio Nº 2, toda a


seção que engloba os compassos 148 a 199 está estruturada a partir de procedimentos contra-
pontísticos que incluem imitações e stretti. O “sujeito” dessas construções é a frase inicial de
Os escravos de Jó. Observe as Figuras 14 e 15 para melhor visualização.

Figura 14: Entradas temáticas em estilo fugado estão indicadas pelas setas. Comp. 148 a 153. Fonte: Editoração
dos autores.

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

Figura 15: Entradas em stretto indicadas pelas setas. Comp. 180 a 199. Fonte: Editoração dos autores.

SOBREPOSIÇÃO DE ACORDES (CLUSTER)

Dentro da variedade de procedimentos adotados por Villa-Lobos em suas obras,


podemos listar também a sobreposição de acordes (Clusters). José Maria Neves (1988), em
“Villa-Lobos e os choros”, comenta elementos característicos da linguagem villalobiana e lista
dentre eles a sobreposição de acordes.
[...] três processos [harmônicos] são mais frequentes: a harmonia no sentido convencio-
nal dando roupagem a melodias e preservando suas características tonais, às vezes utili-
zando marcha de acordes; com emprego de massas sonoras formadas por superposição
de acordes ou “cluster”, e por último um processo mais horizontal, próximo à concepção
contrapontística, com grande quantidade de elementos melódicos. (NEVES, 1988, p. 6).

Separamos um exemplo em A Prole do Bebê Nº 2 de Villa-Lobos onde podemos


observar o uso desse procedimento composicional (Figura 16).

Figura 16: Superposição de acordes em destaque. O Lobosinho de vidro em A Prole do Bebê Nº 2. Comp. 180 a
199. Fonte: Max Eschig, Paris.

Marcelo Rauta no Trio Nº2 faz uso do mesmo procedimento. A partir do com-
passo 200, há uma sobreposição de acordes e tonalidades. Na “mão esquerda” da parte do piano
há as notas, Dó, Ré, Mi, Fá e Sol, na “direita” Dó, Mib, Solb e Lá, o que gera uma sobreposição

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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

de acordes (Dó maior, Dó menor com quinta diminuta e Ré menor). Entre o violoncelo e o vio-
lino há sobreposição de tonalidade, Dó maior no violoncelo e Dó# maior no violino. Observe a
Figura 17 para melhor entendimento.

Figura 17: Sobreposição acordes e tonalidades. Comp. 200 a 205. Fonte: Editoração dos autores.

CONCLUSÕES

A partir das análises realizadas, pudemos observar os diálogos existentes no mo-


mento da criação musical. Villa-Lobos e Bach; Canções folclóricas com Rauta e Villa-Lobos;
Villa-Lobos e Rauta; ambos e a tradição musical ocidental… Através desses diálogos, obser-
vamos a importância dos mesmos para a criação. É como diz o ditado: “Quem conta um conto,
aumenta um ponto”. Diálogo gera transformação e novidade. Assim, este trabalho não preten-
deu esgotar todas as possibilidades de reflexão a respeito das influências exercidas por Heitor
Villa-Lobos na obra de Marcelo Rauta, mas sim, oferecer subsídios e novas informações para
a ampliação da pesquisa sobre música contemporânea brasileira, em especial a música de Mar-
celo Rauta.

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LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS

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GOMES, Sabrina Souza. Análise e digitação do Estudo Nº 5 para Violão de Marcelo Rau-
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Disponível em: < http://hugoribeiro.com.br/bd-harmonia.php >. Acesso em 3 de set. 2017.

NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. 2ª edição revista e ampliada por
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VIGOTSKI, Lev Semionovich. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Wmf


Martins Fontes, 2014. Tradução de João Pedro Fróis.

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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

MESA REDONDA II:


RECEPÇÃO E CIRCULAÇÃO

60
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Heitor Villa-Lobos e o americanismo musical de


Francisco Curt Lange1
Loque Arcanjo Júnior2
(UFMG/UEMG/UNIBH)
arcanjo.loque@gmail.com

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar os diálogos entre Heitor Villa-Lobos e o projeto
musicológico e editorial de Francisco Curt Lange intitulado Americanismo Musical. A partir do
levantamento da documentação presente no Acervo Curt Lange, localizado na Biblioteca Central da
Universidade Federal de Minas Gerais, em especial as cartas trocadas entre estes interlocutores e o
material musicológico disponível no acervo, tornou-se possível perceber, entre aproximações e dis-
tanciamentos, o papel desempenhado pelo musicólogo alemão radicado no Uruguai na divulgação,
circulação e internacionalização da obra do compositor brasileiro no contexto político e cultural dos
anos 1930 e 1940.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Curt Lange. Americanismo. nacionalismo.

Heitor Villa-Lobos and the musical americanism of Francisco Curt Lange


Abstract: This article aims to analyze the dialogues between Heitor Villa-Lobos and the musicology
and editorial project of Francisco Curt Lange entitled Americanismo Musical. From the survey of
the documentation present in the Acervo Curt Lange, located in the Central Library of the Federal
University of Minas Gerais, especially the letters exchanged between these interlocutors and the
available musicological material in the collection, it became possible to perceive that between ap-
proximations and distances the the role played by the German musicologist based in Uruguay in
the dissemination, circulation and internationalization of the work of the Brazilian composer in the
political and cultural context of the 1930s and 1940s.
Key words: Villa-Lobos. Curt Lange. Americanism. nationalism.

1. Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical: pan-americanismo, nacionalis-


mo e musicologia

Creemos, sin embargo, que la era del nacionalismo ha llegado a su mayor oscilación
y que el péndulo se dirige al otro extremo.
(F. Curt Lange, 1946)

Franz Kurt Lange, musicólogo idealizador do Americanismo Musical, nasceu em


Eilemburg, Prússia, atual Alemanha, em 1903. Mais tarde, quando adquiriu cidadania uruguaia,
1 Este artigo é parte da pesquisa de Pós-doutorado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Mú-
sica da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, na linha de Pesquisa Música e Cultura, sob a
supervisão da professora Dra. Edite Maria Oliveira da Rocha.
2 LOQUE ARCANJO JÚNIOR, Doutor e mestre em História Social da Cultura e especialista. em Histó-
ria da Cultura e da Arte pela UFMG. Pós-doutorado em andamento na Escola de Música da UFMG na linha de
pesquisa Música e Cultura. Professor da Escola de Música da UEMG. Principais publicações, artigos: Um músico
brasileiro em Nova York: o Pan-Americanismo na obra de Heitor Villa-Lobos (1939-1945). Revista Estudos Po-
líticos, v. 6, p. 467-486, 2016. O violão de Heitor Villa-Lobos: entre a Belle Époque carioca e as rodas de choro.
e-Hum, v. 6, p. 1, 2013. História da Música: Reflexões teórico-metodológicas. Modus UEMG, v. 07, p. 3-13, 2012
Livros publicados: Heitor Villa-Lobos os sons de uma nação imaginada. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Letramen-
to, 2016. . O ritmo da mistura e o compasso da História: o modernismo musical nas Bachianas Brasilerias de Heitor
Villa-Lobos. Rio de Janeiro: E-papers, 2008.

61
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

passou a se chamar Francisco Curt Lange. Na sua infância mudaria frequentemente de residên-
cia por imposição das atividades profissionais do pai, Franz Josep Lange, engenheiro de acús-
tica de alta sofisticação, que chegou ainda jovem a residir na Rússia. A residência definitiva da
família Lange seria em Bremen, cidade vizinha de Hamburgo. Josep, herdeiro de uma fortuna,
manteve com conforto a família durante a adolescência de Kurt Lange. Sua mãe, Elisabeth Von
Luchsenring Klauss Lange, tocava piano e cantava. Em um universo familiar muito favorável,
o jovem Kurt Lange iniciou sua formação musical aos seis anos, por meio das aulas de violino
e, posteriormente, de piano (MOURÃO, 1990).

Apesar da Primeira Guerra Mundial, Kurt Lange completou seus estudos sem atropelos
e partiu para Munique para estudar arquitetura na Escola Politécnica Superior daquela cidade,
além de doutorar-se em musicologia comparativa com Von Hornbostel, em Berlim. Formado
numa tradição de estudos musicológicos que se caracterizava pela narrativa dos grandes vultos
da música universal, sua vinculação à história comparada da música, com seu professor Ernst
Buecken, teria mais tarde uma importância fundamental nos seus estudos sobre a música na
América Hispânica e nos Estados Unidos. Nas palavras de Buecken: “os objetos de observação
são obras, os estilos, as culturas nas suas formas de desenvolvimento: posicionados um ao lado
do outro, um contra o outro, um em relação ao outro” (MOURÃO, 1990, p. 23).

Como ocorrera com diversos outros intelectuais alemães, Lange emigrou para a Amé-
rica do Sul fugindo da crise que assolava seu país natal. Chegou, inicialmente, em Buenos Aires
e visitou Córdoba e Mar del Plata, radicando-se no Uruguai, a partir de 1926, onde permaneceu
até fins da década de 1940. À mesma maneira que Koellreuter, Curt Lange faz parte de um
grande número de imigrantes alemães que vieram para a América no período entre guerras.
“Entre o final da Primeira Guerra e 1933 chegaram em torno de 80.000 alemães para o Brasil,
constituindo-se esse período como o mais intensivo de imigração alemã para o país em toda a
história da imigração alemã” (GERTZ, 1996, p. 85-105).
Depois da Primeira Guerra Mundial, ocorreu uma onda de emigração alemã para a
América Latina que, numericamente, ultrapassou muito àquela ocorrida no século
XIX. O Brasil, durante a República de Weimar, com mais de 58.000 alemães, segundo
as estatísticas governamentais, tornava-se novamente o principal alvo da emigração
alemã para a América Latina e, com isto, o segundo alvo mais importante da emigra-
ção alemã além-mar, perdendo apenas para os Estados Unidos. (RINKE, 2008).

Para compreender a América musical desenhada por Curt Lange, por meio de seu
projeto musicológico intitulado Americanismo Musical, é importante perceber que o seu pro-
jeto correspondia às estratégias de atuação da União Pan-Americana. Neste sentido, Lange
realizaria na Biblioteca do Congresso de Washington, por solicitação do secretário de Estado
dos Estados Unidos, a Primeira Conferência de Relações Interamericanas no campo da música.
Como ressonância desses interesses, foi oficializado pelo governo do Uruguai, em 26 de junho

62
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

de 1940, o Instituto Interamericano de Musicologia, por iniciativa de Curt Lange e recomenda-


ção da VIII Conferência Internacional Americana de Lima (1938), do Congresso Internacional
de Musicologia de Nova York e da já mencionada Conferência de Relações Interamericanas de
Washington, estas duas últimas de 1939 (BUSCACIO, 2009).

O pan-americanismo teve como marco oficial a Primeira Conferência Internacional


Americana, nas sessões que ocorreram de 2 de outubro de 1889 a 19 de abril de 1890. O termo
teria aparecido pela primeira vez na imprensa norte-americana e, assim, passou a ser utilizado
para designar a Conferência Pan-americana e as reuniões posteriores. Desta forma, o termo
pan-americanismo difundiu-se e passou a denominar o conjunto de políticas de incentivo à
integração dos países americanos, sob a hegemonia dos Estados Unidos, que buscavam, fun-
damentalmente, o crescimento das exportações de seus produtos para o restante do continente.
Como resultado desta primeira conferência, foi criado o Departamento Comercial das Repú-
blicas Americanas, posteriormente denominado União PanAmericana. Encontros periódicos
foram realizados durante toda a primeira metade do século XX, em diversas capitais do conti-
nente, até que, em 1948, na Conferência de Bogotá, foi criada a OEA – Organização dos Esta-
dos Americanos.

Este intervalo de 58 anos foi marcado por tensas relações entre os países hispano-a-
mericanos e os Estado Unidos, devido à agressiva política intervencionista conhecida como
política do Big Stick. A partir dos anos de 1930, com a Política de Boa Vizinhança de Franklin
Roosevelt, os Estados Unidos, com o objetivo de reforçar sua hegemonia na América Latina,
substituem as ações de força por estratégias de relações culturais.

No caso dos estudos sobre as relações entre a América Latina e o Brasil, na mesma
direção da história das representações destacada por Burke (2005) e Chartier (1990), Baggio
(1998) destacou as diferentes imagens e representações construídas pelos intelectuais brasilei-
ros de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX (Eduardo Prado, Manoel de
Oliveira Lima, José Veríssimo, Manoel Bomfim, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Artur
Orlando e Silvio Romero), demonstrando a fluidez e a variação presentes na identificação dos
intelectuais brasileiros com a América Hispânica.

A ideia de integração esteve presente por diversos momentos na história da América


Latina durante o século XX, debate ligado às relações com os Estados Unidos e à busca por
uma identidade comum a todas as nações americanas. O lugar do Brasil dentro deste cenário foi
sempre oscilante: ora o país se apresentou como parte integrante da América, ora como o outro
diferente. De acordo com Kátia Baggio:
A necessidade de constituir e fortalecer uma identidade nacional brasileira levou mui-
tos historiadores, cientistas sociais e ensaístas a reforçar as diferenças do Brasil em

63
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

relação aos demais países americanos. Éramos únicos, singulares, particulares: termos
recorrentes no discurso destes autores. Este distanciamento do Brasil em relação aos
países hispânicos foi, de certa maneira, incorporado pela sociedade brasileira. A iden-
tificação dos brasileiros como latino-americanos é fluida, variável, mais ou menos
presente dependendo das circunstâncias e do momento histórico. A América Hispâ-
nica – vista a partir de olhares brasileiros – é uma outra América, ainda que façamos
parte deste todo complexo e contraditório denominado América Latina. (BAGGIO,
1998, p. 9).

Estes estudos mais recentes sobre a América Latina têm demonstrado que “há no pen-
samento brasileiro sobre a América Hispânica significativas imagens e representações de discri-
minação. Essa ‘outra’ América é vista como um lugar menos desenvolvido e mais caótico que
o Brasil” (DORELLA, 2010, p. 104-122). A primeira metade do século XX é um momento em
que os intelectuais brasileiros nutriam grande resistência em relação aos países hispano-ameri-
canos, resistência que remontaria ao processo de colonização e às rivalidades entre Espanha e
Portugal.

Em 1939, Curt Lange se encontrava em uma intensa atividade política e musical nos
Estado Unidos, pois, para a VIII Conferência Internacional Americana, teriam sido encomenda-
dos a ele, pelo secretário de Estado Cordel Hill, uns quarenta programas musicais de composi-
tores latino-americanos para serem apresentados nos Estados Unidos ainda naquele ano. Ainda
de acordo com Curt Lange, nesse momento foi vislumbrada a visita de Villa-Lobos àquele país.
Porém, isto iria ocorrer somente em 1944 (CURT LANGE , 1988, p. 25).
Em agosto de 1941, Aaron Copland, membro do Comitê de Música do Departamento
de Estado dos E.U.A., iniciou seus contatos pessoais com artistas da América Latina.
Nessas viagens, Copland aproximou-se dos músicos latino-americanos e brasileiros,
em especial, incluindo os que não compartilhavam com a política de Boa Vizinhança
defendida por Roosevelt. Numa conjuntura caracterizada pelo anti-americanismo de
Villa-Lobos, Copland destacou esse compositor como o seu principal interlocutor.
(CONTIER, 2004).

Para Buscacio (2009), há mais de uma década Curt Lange tentava estabelecer um pro-
jeto de integração da América por meio de contatos nos países hispano-americanos, no Brasil
e nos Estados Unidos. O musicólogo tentou transformar seus projetos em programas apoiados
pela União Pan-Americana. Porém, os Estados Unidos, ao contrário, estavam mais interessa-
dos em investir em políticas que estivessem sob seu controle e, de preferência, que estivessem
sediadas em seu próprio território. Nesse sentido, o projeto de Curt Lange, sediado no Uruguai,
foi descartado de forma oficial, apesar de o musicólogo ter sido importante interlocutor dos nor-
te-americanos no contexto dos anos 1940, graças à impressionante rede de relações construída
por ele com as principais personalidades e compositores da vida musical da América Hispânica
e do Brasil, como confirma sua correspondência pessoal.

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

2. Heitor Villa-Lobos e o americanismo musical de Francisco Curt Lange: aproxi-


mações e distanciamentos

Para discutir os diálogos de Villa-Lobos com o Americanismo Musical, deve-se obser-


var que, durante o século XIX, a Europa foi invadida por movimentos ideológicos internacionais
– os panismos – que tinham como proposta reunir, em torno de um centro dominante, países,
povos, ou comunidades de parentesco vinculadas a questões étnicas, linguísticas e culturais.
Como exemplos citamos: pan-americanismo, pangermanismo, paneslavismo, pan-islamismo,
etc. Entretanto, a particularidade do pan-americanismo era seu caráter geográfico continental,
embora não deixasse de ter sua intenção política, apesar de não conter um plano estritamente
político em termos doutrinários (ARDAO, 1987, p. 157-171).

Para Ardao (1987), o que se percebe é que, por detrás dos conceitos de “pan-ameri-
canismo” e “latino-americanismo”, escondidos sob o viés de integração cultural e política, se
escondem os projetos de dominação tanto dos Estados Unidos quanto da França, que iniciavam
seu processo de expansão industrial e consequentemente expansão imperialista. E que desses
conceitos percebe-se, além da busca de aproximações e de dominações, que havia também uma
tomada de posicionamento das nações hispano-americanas. É difícil dizer qual dos projetos
políticos saiu vitorioso nesse “conflito pela América Latina”. O projeto francês talvez tenha se
dado de maneira um pouco mais sutil, mais “cultural”, com a adesão e difusão de intelectuais
hispano-americanos ligados à França, em oposição ao intervencionismo militar norteamerica-
no. Historicamente, a atuação norteamericana parece apagar de certa forma o brilho francês, ou
talvez a historiografia careça de estudos aprofundados sobre o projeto francês de intervenção
na América Latina.

Entre os anos 1930 e 1940, o movimento musical e musicológico, denominado por seu
criador, a partir de 1933, Americanismo Musical, apresentava algumas metas centrais que são
identificadas nos seus textos: a integração musical e musicológica do continente americano; o
incentivo a publicações no campo musical e musicológico; a fundação de instituições culturais,
discotecas e bibliotecas, responsáveis pela guarda da cultura musical e musicológica das Amé-
ricas. Projetos expressos por meio de publicações tais como o Dicionário Latino-Americano de
Música; Guia Profissional Latino-Americano e, em especial, os Boletins Latino Americano de
Música.

O contato entre Curt Lange e Villa-Lobos foi mediado por Mário de Andrade. Em 8 de
março de 1933, Curt Lange escreveu uma carta para o musicólogo brasileiro na qual solicitava
o contato com diversos personagens do cenário musical brasileiro, dentre eles, Villa-Lobos:
Gostaria também que me colocasse em contato, se possível imediatamente, com os
seguintes senhores: Villa-Lobos, Lorenzo Fernández, que sei que é um velho amigo

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

seu, o Sr. Braga e o Sr. Burle-Max, eu ouço constantemente. É possível que hoje adi-
cionarei as cartas aos senhores, solicitando que você as envie aos destinatários com
algumas linhas, mas se você não tiver tempo, enviarei em poucos dias.3 (ACL 2.1.
S15.001.152). [Tradução do autor].

Daquele momento em diante, Mário de Andrade passou a ser um dos mediadores entre
Curt Lange e nomes importantes do modernismo musical brasileiro: Villa-Lobos e Lorenzo
Fernandez, além de Andrade Muricy e Renato Almeida.

Na mesma data, Curt Lange escreveu a primeira carta para Villa-Lobos, na qual ao se
apresentar, destacou os objetivos do contato:
Por intermédio do Senhor. Professor Mário de Andrade de São Paulo, permito-me
enviar estas linhas solicitando sua colaboração em uma obra que me permito detalhar
em breves linhas: Sendo professor em Ciências Musicais na Universidade e diretor da
Discoteca Nacional do Governo tenho desenvolvido, dentre outras obras um Léxico
Sul Americano de Música no qual pretendo tratar das manifestações culturais desde
o ponto de vista histórico, crítico, biográfico, estético e científico (...). Agradeceria
infinitamente a você, estimado maestro, se me repassasse alguns contatos de músicos,
intérpretes, cantores e outras personalidades vivas ou não que podem ser incluidas
ou mesmo dados sobre organizações oficiais e seus respectivos diretores. Também
preciso de uma relação de obras de sua autoria impressas em discos com indicação
de marca, número e outros detalhes. correspondentes.4 (ACL 2.2.001.104). [Tradução
do autor].

Podemos perceber, a partir do material presente no Acervo Curt Lange-Biblioteca


Central/UFMG, que Villa-Lobos correspondeu às demandas iniciais de Curt Lange, em especial
pelo envio daqueles materiais solicitados pelo musicólogo alemão. Neste sentido, o material en-
viado por Villa-Lobos viria, posteriormente a compor parte da produção musicológica de Curt
Lange, em especial o Boletin Latinoamericano de Música em 1946.

Em carta timbrada do Departamento de Educação, escrita ainda em 1933, Villa-Lobos


afirmava que:
Sobre os bailados Amazonas e Pedra Bonita, junto remeto programas. Amazonas foi
escrito em 1917. (...) [...] Junto remeto as músicas que me solicita, podendo ser procu-
rada na Casa Arthur Napoleão, ou então na SEMA. Um abraço amigo do Villa-Lobos.
(ACL 2.2S.1096).

3 Le agradecería también si me pusiera en contacto, si es posible inmediatamente, con los siguientes seño-
res: Villa-Lobos, Lorenzo Fernández, de quien sé que eres un viejo amigo, el señor Braga y el señor Burle-Max,
oigo constantemente. Es posible que hoy mismo yo agregue las cartas a los señores señores, pidiendo que las
remita a los destinatarios con unas pocas líneas, pero si no tiene tiempo, las enviaré dentro de pocos días.
4 Por intermédio do Senhor. Professor Mário de Andrade de São Paulo, permito-me enviarle estas líneas
solicitando sú colaboración em uma obra que me permito detallar em breves rasgos a continuación: Siendo profes-
sor em Ciencias Musicales em la Univerdidad e diretor de la Discoteca Nacional del Gobierno, he empreendido,
entre otras obras la de um Léxico Sudmericano de Música em el cual tratar é todas las manifestaciones musicales
desde el punto de vista histórico, crítico, biográfico, estético y científico (...). Agradecería infinitamente a Ud.,
estimado maestro, que me facilitara algunas direcciones de músicos, ejecutantes, cantantes e otras personalidades
vivientes y también desaparecidas que pueden ser incluidas en la obra, lo mismo que datos sobre organizaciones
oficiales, y sus respectivos directores. También necesitaría la ración de las obras suyas impresas en discos, con
indicación de marca, número y otros detalles correspondientes.

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

Sobre uma possível ida de Curt Lange ao Rio de Janeiro para desenvolvimento de suas
pesquisas musicológicas, Villa-Lobos afirmou que “Quanto à sua viagem ao Rio, vou trabalhar
para que possa proporcionar a sua vinda, que me dará grande prazer” (ACL2.2S.1096). A pri-
meira viagem de Curt Lange ao Brasil, o musicólogo alemão iria concretizá-la no ano de 1934,
graças ao convite do maestro Walter Burle-Marx, que havia conhecido o musicólogo no ano
anterior, em Montevidéu. Realizou uma série de conferências no Conservatório Brasileiro de
Música, na Associação Brasileira de Imprensa e no Instituto de Educação Caetano de Campos.
Curt Lange permaneceu durante um mês, tempo suficiente para travar relações com figuras im-
portantes das artes e da política brasileira: o próprio Villa-Lobos, Mário de Andrade, Luiz Hei-
tor Correa de Azevedo, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez, Camargo Guarnieri, Guiomar
Novaes, Oneida Alvarenga, Anísio Teixeira, Cândido Portinari, entre outros. Sua permanência
mais longa no Brasil aconteceria apenas em 1944, para a polêmica publicação do VI Volume do
Boletim Latino Americano de Música dedicado à música e à musicologia brasileira.

Villa-Lobos passou a reconhecer a importância de Curt Lange para a divulgação de sua


obra, pois, seu intercâmbio com o projeto do musicólogo fica explícito na carta enviada pelo
compositor brasileiro no dia 10 de janeiro de 1935. Nela, Villa-Lobos afirmou:
Caro amigo Curt Lange
Com todo prazer respondo a sua carta pedindo-lhe mil desculpas por não ter enviado
desde logo a composição que me fora solicitada. Não o fiz imediatamente, foi somen-
te por estar muito ocupado. [...] Agradeço-lhe a amizade testemunhada e todo apoio
dispendido a minha obra, que são da mesma maneira sinceramente retribuídos. Breve
lhe escreverei mais detalhadamente. Um grande abraço do amigo. (ACL 2.2S.1096).
[Tradução do autor].

Em carta escrita por Villa-Lobos em 29 de julho de 1936, nota-se, mais uma vez, que
o musicólogo alemão foi um interlocutor ativo em relação à divulgação das composições do
maestro. Este papel desempenhado por Curt Lange fica explicito na fala do compositor brasilei-
ro ao afirmar: “tenho o prazer de remeter alguns dados sobre meu trabalho na SEMA e minha
atuação na Europa e a minha música ‘Jeribáu’ que pode ser publicada no Boletim sob sua inte-
ligente direção. Um abraço amigo de Villa-Lobos”. (ACL 2.2 S15.1096).

Em carta enviada a Villa-Lobos no dia 9 de agosto de 1936, Curt Lange destacava a


importância do material enviado pelo compositor brasileiro para a publicação do Boletin. De
acordo com ele:
Meu querido amigo,
Recebi com a consequente alegria um material precioso que você colocou à minha
disposição e que farei saber no terceiro volume do Boletim que aparecerá em outubro.
Sim, é possível integralmente. Lamento apenas que você seja tão breve em sua carta e
que você não detalhe suas atividades futuras no Rio.5 (ACL 2.1 S15.110)

5 Mi querido amigo, He recibido con consiguiente alegría un material precioso que pone Ud. A mi dis-
posición y que daré a conocer en el tercer tomo del Boletín que aparecerá en octubre. Sí posible integralmente.

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

Em 8 setembro de 1936, Villa-Lobos informava a Curt Lange sobre suas atividades na


SEMA e além de destacar outras atividades ligadas ao governo Vargas, ratificou o envio de no-
tas dos jornais sobre a concentração de canto orfeônico realizada no “Dia da Pátria”, celebrado
no dia anterior. Segundo Villa-Lobos:
Prezado professor Curt Lange,
Só hoje pude responder a sua estimada carta do dia 9 do mês p. f, devido a grandes
trabalhos que tenho tido ultimamente. Realizei ontem uma concentração cívica com
conjunto de 20000 crianças escolares e mil músicos de banda, cujas notas nos jornais,
tenho o prazer de lhe enviar. (ACL 2.2 S15.1096).

Em outra carta, datada de 13 de abril de 1938, podemos observar, novamente, os inter-


câmbios musicais proporcionados por Curt Lange em relação à circulação da obra de Villa-Lo-
bos impressa e também gravada. Nesta carta, Villa-Lobos disse:
Prezado amigo professor Curt Lange,
Recebeu a música manuscrita “Dança do Índio Branco” que lhe enviei? É inédita e
está sendo gravada pelo grande pianista Tomás Terán em disco Victor. Fui convidado
oficialmente para representar o Brasil e reger dois concertos no centenário da cidade
de Bogotá-Colômbia, porém não decidi ainda sobre minha ida, pelos inúmeros afaze-
res que me prendem atualmente no Brasil. (ACL 2.2 S15.027).

É muito significativo notar que as atividades políticas e burocráticas de Villa-Lobos


e a historicidade das relações entre os intelectuais brasileiros e a América Hispânica explicam
este hiato existente entre a tentativa de Curt Lange em levar Villa-Lobos aos Estados Unidos e
a primeira viagem do maestro àquele país, ao final de 1944. Se, num primeiro momento, Villa-Lo-
bos era resistente em relação ao projeto de integração musical que envolvia diretamente Curt
Lange, num segundo, a ligação direta com os Estado Unidos foi levada a cabo pelo compositor
brasileiro.

Em 1940, Villa-Lobos foi convidado por Curt Lange para fazer uma série de concertos
em Montevidéu. Aceitando o convite, o músico brasileiro organizou uma “Embaixada Artística
Brasileira” para os concertos no SODRE – Serviço Oficial de Difusão Rádio Elétrica do Uru-
guai, órgão dirigido por Curt Lange.

Poucos meses antes da viagem, Villa-Lobos solicitou a Curt Lange que ele conseguisse
que os músicos brasileiros da Embaixada realizassem alguns concertos remunerados atuando
como solistas no Uruguai durante a estada destes naquele país, “atendendo a que o governo não
lhes pagará suficientemente para indenizá-los do prejuízo que os mesmos terão aqui nas suas
atividades artísticas” (2.2S15.1096).

Por iniciativa do SODRE, Villa-Lobos levou ao público uruguaio algumas de suas


obras escritas nas décadas de 1910 e 1920. Sob a direção do maestro brasileiro, o concerto
Lamento tan sólo que Ud. Sea tan escueto en su carta y que no me detalle algunas de sus futuras actividades en Río.

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

contou com a apresentação de três peças de sua autoria e outras obras de cinco compositores da
música nacionalista brasileira. Mas, é muito significativo observar que os recortes de jornais da
época, selecionados por Curt Lange em seu arquivo, apresentavam, na mesma direção do Ame-
ricanismo Musical de Curt Lange, Villa-Lobos como “o mais alto valor musical da América”
(JORNAL EL DIÁRIO, 1940, ACL 2.2S15.1096) “Artista mais genial e original da América,
“Villa-Lobos terminou a audição com uma suíte de danças afroamericanas” (LA TRIBUNA
POPULAR, 1940, ACL 2.2S15.1096).

Os jornais presentes no arquivo Curt Lange que analisaram os concertos realizados


por Villa-Lobos atribuem, portanto, uma identidade “americana” tanto à sua obra, quanto à sua
imagem enquanto compositor. Nestes concertos realizados no Uruguai, o repertório contava
ainda com obras de outros compositores nacionalistas, tais como Lorenzo Fernandez e Fran-
cisco Mignone. É muito significativo notar também que as danças afroamericanas citadas pelo
jornal La Tribuna Popular são as Danças Características Africanas, que foram escritas entre
1914 e 1916, e apresentadas por Villa-Lobos durante a Semana de Arte Moderna de 1922 (LA
TRIBUNA POPULAR, 1940).

Em carta enviada no dia 4 de fevereiro de 1941, Villa-Lobos falava de maneira bastante


informal sobre sua visita a Montevideo, onde conhecera a família de Curt Lange. Nas palavras
do compositor brasileiro:
Venho hoje responder as suas duas cartas, não tenho feito há mais tempo por estar
longe da cidade. Como vai D. Maria e os filhinhos? Tenho tido grande saudades de
todos os amigos dessa “hermoza ciudad” e de “los ninos de las escuelas”. Gostou do
espanhol? Saberá por acaso se as escolas da Venezuela e Argentina receberam mi-
nhas cartas? Um grande abraço a todos da família e aos amigos que aí ficaram (ACL
2.2S15.1096).

Além destas trocas de informações e diálogos muito positivos para ambas as partes, apre-
sentaram-se, também, resistências e dificuldades para concretização do projeto de Curt Lange,
dificuldades estas ligadas às complexas relações políticas do Brasil com diferentes projetos de
integração que envolviam a América Hispânica. As dificuldades encontradas por Curt Lange
para conseguir apoio financeiro e político para estabelecer um diálogo mais próximo com seus
interlocutores brasileiros e para a publicação do referido Boletim pode ser atribuída, também, às
constantes transformações no cenário político brasileiro nos anos 1930 e 1940. Foi um contexto
no qual o Brasil viveu episódios que alteravam significativamente, por meio de crises políticas,
o papel dos intelectuais em relação ao Estado: Revolução Constitucionalista de São Paulo em
1932, o Estado Novo de 1937-1945, dentre outros eventos.

Ecos deste cenário conturbado podem ser percebidos na correspondência entre Curt Lan-
ge e Villa-Lobos. A intenção de uma segunda viagem ao Brasil não se realizou com o apoio de

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

Villa-Lobos devido às divergências político-culturais e às mudanças constantes daquele con-


texto. A carta enviada em 13 de abril de 1938, em resposta à carta de Curt Lange datada de 12
de março na qual o musicólogo solicitara apoio para um retorno ao Brasil, deixa implícita esta
perspectiva. Nela, Villa-Lobos afirmou que “comunico ao caro amigo que estou aguardando a
reforma desta superintendência, a fim de ver o que é possível para que o ilustre amigo venha ao
Brasil”. (ACL 2.2S15.1096)

Em carta enviada a Curt Lange naquele mesmo ano, Mário de Andrade, da mesma forma
que Villa-Lobos, expressava sua preocupação com a influência das mudanças políticas no seu
lugar social e no seu trabalho. Nesse momento específico, os dois pesquisadores já tratavam,
também, do projeto de Lange para a publicação do Boletim Latino Americano de Musicologia
dedicado ao Brasil e da viagem do musicólogo ao Rio de Janeiro:
As coisas aqui se transformaram completamente com a mudança política. Nada mais
posso prometer ou garantir, pois subiu gente do partido oposto e estamos sendo fe-
rozmente combatidos. Não vale a pena levantar o problema da publicação agora. Meu
destino não é político, mas cultural [...] Por enquanto não passo de um funcionário
subalterno. Muito cordialmente e tristonho. (ACL 2.2S15.027).

As dificuldades encontradas por Curt Lange para publicação do Boletin dedicado ao Bra-
sil já começam a ficar evidentes nas cartas trocadas com Villa-Lobos a partir de 1941. Numa
delas Villa-Lobos deixa implícita estas dificuldades e também um afastamento em relação ao
projeto editorial de Curt Lange ao afirmar na carta que “Sobre o seu projetado Boletim, tomarei
as necessárias providências por ocasião de sua próxima vinda ao Brasil [...]. Quanto à música
que me pede, poderei mandar-lhe uma, simplesmente como amigo, visto já ter, de longa data,
editores” (ACL 2.2S15.1096).

Ao analisar a rede construída por Curt Lange com os modernistas no Brasil, Cesar
Maia Buscacio afirma que “Curt Lange percebia com grande animosidade a postura de Villa
-Lobos no interior do campo musical”. Numa carta enviada a Camargo Guarnieri em 1940, o
musicólogo alemão afirmou:
A partir de 9 de novembro irei ao norte argentino para fazer alguns estudos. Gostaria
também de ir ao Brasil no próximo ano, mas ainda não sei como e como preparar
minha viagem. Nada pode ser esperado de Villa-Lobos, porque ele pensa apenas em
si mesmo. Eu já sabia disso e, pelo mesmo motivo, nunca pedi nada. Também estou
satisfeito por ter vindo, porque acima de tudo, há sua personalidade forte.6 [Tradução
do autor].

Ao analisar estes embates entre Villa-Lobos e Curt Lange, Assis (2016) afirma que
6 A partir del 9 de noviembre me iré al norte argentino para hacer unos estudios. Gustosamente iría también
al Brasil en el año que viene, pero no sé aún cómo y en qué forma preparar mi viaje. De Villa-Lobos nada puede
esperarse, pues piensa sólo en sí mismo. Yo ya sabía esto y por la misma razón no le pediré nunca nada. Me satis-
face asimismo que haya venido, porque por encima de todo, está su recia personalidad.

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

A série dos seis volumes do Boletim Latino-Americano de Música (BLAM), publica-


da entre 1935 e 1946, contendo artigos de diferentes especialistas da musicologia que
se praticava nas três Américas - incluindo textos de etnomusicólogos e historiadores,
além de partituras inéditas encomendadas por Curt Lange para serem editadas em seu
Suplemento Musical -, embora venha sendo citada em recentes trabalhos de cunho
ainda não encontrou acolhida efetiva nos estudos brasileiros, sobretudo o Boletim
Tomo VI, de 1946, que foi integralmente dedicado às práticas musicais do Brasil.
(...) A obtenção do financiamento para a publicação da primeira parte do Boletim se
deu, de acordo com seu editor, graças à influência e o prestígio de Villa-Lobos nos
meios públicos. A admiração e o reconhecimento de Lange expressos a Villa-Lobos
no prólogo do Boletim, não foi impedimento para que o músico brasileiro tentasse
inviabilizar sua circulação, assunto que detalharemos mais adiante. Destaca-se tam-
bém o espaço privilegiado atribuído a Villa-Lobos. Além de assinar dois trabalhos
que juntos somam quase 200 páginas (1/3 da publicação), sua obra é objeto de aná-
lise por dois outros autores: Souza Lima e Lorenzo Fernandez. Soma-se, ainda, a
publicação das Bachianas Brasileiras 06, no Suplemento Musical que acompanha o
Boletim. A presença de duas peças dodecafônicas no Suplemento Musical, em meio
a outras dezessete obras com forte traço nacionalista simbolizava, por um lado, que o
Americanismo Musical de Lange não se limitava à produção musical “oficializada”
do Brasil ou de qualquer outro país contemplado nos BLAM (haja visto que outras
obras dodecafônicas de compositores americanos já haviam aparecido em números
anteriores), mas, por outro lado, foi responsável pela forte reação de Villa-Lobos e
seus colegas (ASSIS, 2016, p.10).

O distanciamento de Villa-Lobos em relação ao trabalho de Curt Lange fica evidente ao


observarmos a morosidade com a qual Villa-Lobos cuidava das questões burocráticas relacio-
nadas à publicação do Boletín. Esta indiferença foi o motivo da carta enviada, em 1944, a Mário
de Andrade na qual Curt Lange frisava sua indignação com o músico brasileiro:
Villa-Lobos fala abertamente a certas pessoas e até a um amigo meu que se o Boletim
não sair como ele quer, tirará o seu título e o fará sair editado com o nome do seu
famoso Conservatório [...]. Não gosto de brigar, mas se Villa-Lobos quiser, ele terá.
Nunca vi em parte alguma uma pessoa que seja mais detestada que este homem. (ACL
2.1.001.068)

Em artigo intitulado Distanciamentos e Aproximações, publicado no Estado de São


Paulo no dia 10 de maio de 1942, Mário de Andrade já apontava para o distanciamento em
relação ao projeto musicológico de Curt Lange ao afirmar:
Os compositores brasileiros andam preocupados com certas observações e exemplos
apresentados ultimamente por compositores e críticos do resto das Américas a respei-
to da música nacional. No último número do seu admirável boletin latino-americano
de música, o professor Curt Lange, insistindo sobre o caráter fortemente ‘folclórico’
de certas obras de compositores brasileiros, chama atenção para o grupo, aliás interes-
santíssimo, de compositores chilenos, já... libertos da pesquisa nacionalizante. [...] E
na Argentina, no Uruguay, por várias partes da América, surgem grupos de composi-
tores moços, não sei se direi... avançadíssimos, mas resolutamente convertidos à ‘mú-
sica pura’, despreocupados por completo de soluções técnicas nacionais para as obras.
[...] Eu não conheço suficientemente a situação erudita nos outros países americanos,
e por isso nada quero censurar a ninguém. Mas, entre nós, o caso talvez seja outro.

A carta enviada a Villa-Lobos em 16 de junho de 1946 aponta a insatisfação de Curt


Lange com o compositor brasileiro. Sobre os exemplares do Suplemento Musical referentes ao
Boletim Latino-Americano de Música dedicado ao Brasil, Curt Lange afirmava que Villa-Lobos

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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

já estava distribuindo a publicação sem sua autorização. Nesta mesma carta, o musicólogo ex-
pressa seu desagrado referente ao não recebimento de valores ligados aos subsídios do governo
brasileiro referentes à obra. O tom das cartas a partir deste ano de 1946 tornou-se muito menos
amigável. Nas palavras de Curt Lange:
Eu soube pelas notícias de várias pessoas amigas que você já está distribuindo o Su-
plemento Musical do Boletim. Houve comentários nos jornais, dos quais eu não tenho
recebido nenhum deles. Peço-lhe de me dar notícias sobre este particular, pois na
minha última eu já reclamei os Suplementos para iniciar a distribuição, a qual é mais
necessária porque a gente já ficou cansada de esperar, e a chegada do suplemento é
uma espécie de alívio o justificativo. A minha situação também agrava-se de dia em
dia. Peço-lhe de “acompanhar”, como Você disse, o processo, porque aqui preciso
reintegrar dinheiro que recebi do governo em prestação e pagar uma série de dívidas,
muitas delas urgentes, pelo fato de ter-se originado exclusivamente pelo nosso regres-
so. (ACL 2.1S15.488).

Em carta enviada por Villa-Lobos no dia 14 de junho de 1946, ele justifica a morosidade
do processo mais uma vez dizendo sobre o contexto político e menciona outros dois interlocu-
tores importantes do grupo de Lange: Cláudio Santoro e J. Koellreuter.
Não temos descuidado absolutamente de tratar do caso dos Cr$15.000 que você de-
verá receber. [...] Felizmente, foi há dias aprovado pelo presidente Dutra e espero que
não demorará a solução de seu recebimento, assim cremos. Quanto à importância do
“Boletim”, o pagamento está dependendo apenas do Koellreuter que temos mandado
recado pelo Santoro para que nos procure afim de poder lhe ser entregue a mesma.
Infelizmente não poderei facilitar a você o adiantamento que me pede, pois tive com
minha mãe inúmeras despesas, inclusive a compra de um apartamento em que ele
morava e que estou ainda pagando. Além destas despesas, quero dizer-lhe que para
a confecção do Suplemento Musical, devo dar de minhas economias talvez 15.000
cruzeiros (ACL 2.2S15.1096).

As questões que envolvem estas polêmicas presentes nas cartas e que se referem à
publicação do referido Boletim não podem ser reduzidas apenas a questões pessoais entre os
interlocutores. No caso de Villa-Lobos, o compositor, ao longo de sua trajetória, compartilhou
ideias, linguagens musicais, projetos estéticos, aderiu a novas práticas, mas se afastou de outras,
contrariou amigos e se aproximou de outros. Neste jogo identitário de aproximações e afasta-
mentos, construído por meio de redes de sociabilidades observadas na tessitura do pentagrama e
da sonoridade, imaginou uma nação sonora, construiu um rosto musical e imagético do Brasil.

O modernismo de Villa-Lobos, construídos desde o início do século XX, pode ser


compreendido a partir do estudo das suas relações com outros projetos internacionais, com
os quais o compositor manteve diálogo. O Americanismo Musical e o Música Viva, projetos
pan-americanos de integração musical, sofreram resistência por parte do compositor brasileiro
em função de questões políticas e não apenas estéticas. O acirramento das tensões envolvendo
a publicação do Boletim Latino Americano de Música, expresso na correspondência com Curt
Lange em especial no ano de 1946, se explicam a partir da compreensão dos fatores políticos

72
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE

relacionados ao final da ditadura do Estado Novo, regime ao qual o compositor brasileiro estava
vinculado por estar à frente da Secretaria de Educação Musical e Artística submetida à pasta de
Gustavo Capanema. Mas por outro lado, as relações com o musicólogo teuto-uruguaio foram
fundamentais para a difusão e a internacionalização da obra do compositor.

Diversos trabalhos acadêmicos destacam a presença e a difusão da imagem e da mú-


sica de Heitor Villa-Lobos no exterior. Apesar disso, a temática carece de uma reflexão mais
conceitual e historiográfica. Os contatos do compositor como universo cultural de Paris a partir
de suas duas viagens realizadas em 1923 e em 1927-1930 e a presença dele nos Estados Uni-
dos, a partir de 1944, são destacados como marcos para a internacionalização da música do
compositor brasileiro. Com relação à França, além de suas viagens à capital daquele país foram
destacados pela memória historiográfica, dentre outros temas: importância do contato de Villa
-Lobos com Darius Mihaud no Brasil, com o pianista Arthur Rubinstein, com a intelectualidade
francesa de modo geral e com o mecenato paulista logo após a Semana de Arte Moderna que
financiara a ida do compositor à capital francesa.

Nesta mesma direção, os objetivos deste texto se concentraram na tentativa de pensar o


papel de Curt Lange para a difusão e para a recepção da obra de Villa-Lobos no Uruguai, deslo-
cando, numa perspectiva historiográfica, o eixo de diálogo sobre o compositor para a América
Hispânica e para a interface entre a história e as relações internacionais. Para tanto, pretende-se
expandir futuramente a reflexão sobre a visita de Villa-Lobos ao Uruguai realizada em 1940.
Investigar, também, o lugar de Villa-Lobos e da “Embaixada Artística Brasileira”, em relação
aos intercâmbios internacionais do Brasil naquele contexto, bem como o papel de Villa-Lobos
e sua obra.

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75
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

A Dança Frenética: ecos da crítica no Rio de Janeiro


e São Paulo nos anos 1920
Maria Aparecida dos Reis Valiatti Passamae1
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo – OSES
aparecidavaliatti@hotmail.com

Resumo. Este trabalho apresenta e discute a evolução da crítica musical desde o século XVIII até o
século XX, com suas principais características. Faz uma breve abordagem das características socio-
culturais das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro para, então, expor as críticas publicadas nos
jornais sobre o trecho sinfônico do bailado Dança Frenética, do primeiro ato da ópera Zoé de Heitor
Villa-Lobos, apresentada, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, pela orquestra da Sociedade
de Cultura Artística e, no mesmo ano, apresentada no Rio de Janeiro pela orquestra Filarmônica de
Viena. As críticas abordadas neste artigo foram publicadas pelos jornais paulistas Correio Paulistano
e Folha da Noite e pelo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, esse, a cargo de Oscar Guanabarino.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Dança frenética. Crítica musical. Oscar Guanabarino.

The Dança Frenética (Frenetic Dance): echoes of critique on Rio de Janeiro and São Paulo
in the 1920’s
Abstract. This paper presents and discusses the evolution of musical criticism from the eighteenth
century to the twentieth century with its main characteristics. Briefly discusses the socio-cultural
characteristics of the cities of São Paulo and Rio de Janeiro, and then exposes the critics published in
the newspapers about the symphonic piece of Dança Frenética (Frenetic Dance), from the first act of
the opera Zoé by Heitor Villa-Lobos as composer, presented at the Municipal Theater of São Paulo
in 1922 by the Orchestra da Sociedade de Cultura Artística (Society of Artistic Culture Orchestra)
and in the same year presented in Rio de Janeiro by the Vienna Philharmonic Orchestra. The criti-
cisms addressed in this article were published by the newspapers Correio Paulistano and Folha da
Noite from the City of São Paulo and the Jornal do Commercio on Rio de Janeiro, this one by Oscar
Guanabarino responsability.
Keywords. Villa-Lobos. Dança frenética (Frenetic dance). Musical criticism. Oscar Guanabarino.

Introdução

A última década do século XIX e as primeiras do século XX foram de fortes trans-


formações no Brasil com o advento da República (1889) e o aparato ideológico positivista que

1 MARIA APARECIDA DOS REIS VALIATTI PASSAMAE atua como violista da Orquestra Sinfônica
do Estado do Espírito Santo, Coordenadora Pedagógica da Pós-graduação lato sensu em Música de Câmara da
Alpha Cursos e como empresária musical no mercado de Vitória. Além destas, atuou também como violista na
Orquestra da Universidade Federal do Espírito Santo e da Orquestra da Faculdade de Música do Espírito Santo.
Professora de viola no Programa Vale Música até 2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Mu-
sicologia. Instituto de Ensino Superior Professor Nelson Abel de Almeida, Pós-graduação latu sensu em Educação
Pré-escolar. Faculdade de Música do Espírito Santo, Bacharel em piano e em viola e Licenciatura em Música. Uni-
versidade Federal do Espírito Santo, Licenciatura Plena em Pedagogia. Prêmio FUNARTE em produção crítica em
música 2016. Análise da sonata para viola e piano de Radamés Gnattali: primeiro movimento (ANPPOM, 2015).
A crítica na mudança dos paradigmas da apreciação musical do século XX (ANPPOM, 2015). Temporada lírica
de 1922: os cenários do Rio de Janeiro, Europa e América do Sul (VI SIM-UFRJ, 2015). Oscar Guanabarino e o
português brasileiro no canto erudito (SIMPOM, 2014). A pedagogia do piano: o método de Oscar Guanabarino
(XIV SEMPEM, 2014). Radamés Gnattali, a era Vargas, e a construção da identidade nacional (ANPPOM, 2011).
CD Melodiário (MD-Musicservice Ltda, 1997).

76
PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

permeava o pensamento da oficialidade jovem do Exército que derrubou o Império e direciona-


va as ações do governo na busca de uma modernização que fosse representativa de uma nova
mentalidade do novo regime.

Nesse contexto, duas cidades despontavam para a modernidade representativa do


novo regime: o Rio de Janeiro, a capital da República, e a cidade de São Paulo, com uma grande
parcela de sua elite muito vibrante e empreendedora.

“O Rio de Janeiro, a capital, passara por fortes transformações no início do século


XX para readequar a cidade ao formato das capitais dos países importantes do mundo, no mo-
delo parisiense de urbanização” e, conforme mencionado, “para romper com o passado colonial
e imperial” pela busca da consolidação do novo regime. (PASSAMAE, 2015, p. 3).

São Paulo, por essa época, era uma realidade totalmente diferente da cidade do Rio
de Janeiro, que usufruía os benefícios da bela urbanização, herança da política que lhe trouxe
a aparência da Paris da belle époque (PASSAMAE, 2013, p. 71). Possuía suas especificidades
configuradas, ao contrário do Rio com seu cosmopolitismo parisiense, no “[...] empenho das
elites locais, mergulhadas num universo de imigrantes de múltiplas nacionalidades em bus-
car uma mítica identidade regional empreendedora” (PINTO, 1999, p. 140 apud PASSAMAE,
2013, p. 71).

O objetivo deste trabalho é apresentar e discutir os cenários da crítica musical no


contexto da obra Dança Frenética, de Heitor Villa-Lobos, ambientada no Rio de Janeiro e em
São Paulo com suas diferentes especificidades regionais, ou seja, nos diferentes contextos so-
cioculturais de cada ambiente regional.

As cidades do Rio de Janeiro e São Paulo no início da década de 1920

As transformações por que passara a cidade do Rio de Janeiro em princípios do


século XX para se adequar como Capital da República recém instalada, como já mencionado,
não se configurava apenas com suas mudanças físicas de inspiração parisiense. A cidade, repre-
sentativa do país, deveria se mostrar também como um espelho da transformação que o regime
republicano se propôs a implantar. Nesse contexto, a Capital deveria também espelhar uma
sociedade culturalmente alinhada com os padrões urbanísticos europeus.

Do ponto de vista artístico, comparativamente à cidade de São Paulo, “[...] o am-


biente musical do Rio não era apenas mais encorpado [...]”; era também muito mais entrosado
nas novas tendências, especialmente as francesas. Milhaud trabalhara como adido da embai-

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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

xada francesa no Rio, entre 1917 e 1918, e surpreendeu-se com a descoberta de “[...] uma elite
viajada e bem informada que lhe permitia viver num ambiente sintonizado com a cultura de seu
país” (GONÇALVES, 2012, p. 234 apud PASSAMAE, 2013, p. 71).

São Paulo, por outro lado, passava, na década de 20, por transformações vigorosas
“[...] de todas as naturezas: econômicas, sociais, administrativas e principalmente culturais”. Sua
conformação não era conhecida em sua totalidade, pois ainda se formava. A composição desse
semblante se apoiava, “[...] por um lado na influência do modelo civilizador e modernizador da
Belle Époque europeia - particularmente a francesa - e de outro numa sólida herança cultural,
advinda das nossas raízes coloniais” (PINTO, 1999, p. 140 apud PASSAMAE, 2013, p. 71).

O cenário da crítica musical

A crítica musical do século XIX foi submetida a uma mudança de estilo que já vi-
nha se apresentando desde fins do século XVIII. Assim, “tornou-se pesada, mais simples e aces-
sível, também mais flexível, ao que a mentalidade romântica acrescentou o entusiasmo, a poesia
e às vezes o idealismo na abordagem e apreciação da música” (SUPICIC, 1997, p. 671). No
século XVIII, o crítico musical era um especialista, músicos competentes ou mesmo teóricos.
Com o aumento do público e o novo cenário da música e dos músicos no século XIX “[...] quase
todo mundo começou a sentir-se com direito de dar palpite nessa área, o que contribuiu para o
desenvolvimento de um certo diletantismo e impressionismo crítico”. A crítica profissional e
competente, de um lado, e a que não o era, de outro, passaram a coexistir lado a lado. Músicos
notáveis e de renome, como Schumann e Berlioz, foram críticos. Mas escritores metidos, “sem
competência específica, como Stendhal e Balzac, formavam um numeroso grupo que também
escreveu sobre música” (SUPICIC, 1997, p 671-72).

O que se consolidou como a principal característica da crítica musical do século


XIX, entretanto, “foi o fato dela ter enfrentado praticamente as mesmas contestações que a
estética da música”. Assim, foi desaparecendo aos poucos “toda a unidade de concepções que
a fundamentava no século anterior” e, para isso, as movimentações da sociedade, ocorridas na
época, vieram a contribuir sobremaneira, visto encontrarem-se “marcados cada vez mais por
divisões de toda espécie – filosóficas, políticas e sociais”. Como contraponto “à competência
profissional e ao brilho estilístico de certos críticos, como Hanslick”, por exemplo, “somava-se
todo um mundo de intenções malévolas, apadrinhamentos e partis pris que levava os críticos a
dizerem absurdos e desviarem-se dos verdadeiros objetivos de uma crítica musical autêntica e
respeitadora da verdade” (SUPICIC, 1997, p. 671).

O problema parece persistir ao longo do século XX, como pode ser observado no

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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

artigo de Liliana Harb Bollos, intitulado Crítica musical no jornal: uma reflexão sobre a cultura
brasileira. Embora o foco do texto seja a crítica jornalística de música popular, a autora comen-
ta a crítica jornalística de música erudita efetuada por escritores na primeira metade do século
XX e a transição para os cronistas na segunda metade. Assim, segundo a autora, “a crítica de
música erudita [...] produziu um jornalismo cultural de características literárias desde a primei-
ra metade do século XX com expoentes importantes da nossa cultura como os escritores Mário
de Andrade, Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux” (BOLLOS, 2005, p. 271). Vale observar
que alguns desses personagens possuíam também formação musical, embora suas atividades
principais ficassem no campo da poesia e literatura. Mário de Andrade, por exemplo, lecionava
piano e atuava como musicólogo com obras de etnomusicologia e Otto Maria Carpeaux, erudito
de primorosa formação, autor de vasta obra literária que inclui Uma Nova História da Música,
entre outros expoentes da cultura brasileira.

Sobre a crítica, a partir da etimologia, a autora estabelece uma definição funcional


na qual a crítica teria como função “fragmentar uma obra de arte, colocar em crise a ideia que
se tem do objeto, para, assim, poder interpretá-la” (BOLLOS, 2005, p. 271). Pelo menos é o que
deveria acontecer como padrão.

Por outro lado, citando Adorno, mostra que, de modo geral, aos críticos musicais
jornalísticos do século XX, falta conhecimento do objeto, ou seja, da música e, nesse sentido, a
crítica passa a sofrer uma influência subjetiva muito além do razoável e a análise vem, de certa
forma, contaminada.
Influenciado pela indústria cultural e pelo poder dos meios de comunicação (e mais
tarde pela obrigatoriedade do diploma de jornalismo), esse formato de jornalismo im-
pôs novos padrões à crítica musical, sendo o escritor substituído pelo ‘cronista’, pelo
jornalista não-especialista, e irá explorar do texto um caráter mais ideológico e histó-
rico e menos estético, deixando os aspectos musicais para segundo plano (BOLLOS,
2005, p. 271).

Um dos mais importantes críticos de artes das últimas décadas do século XIX e das
primeiras do século XX, Oscar Guanabarino de Sousa Silva (Niterói, 1851 – Rio de Janeiro,
1937), chegou a debater com outro colega, crítico de outro jornal, essas lacunas na formação
técnica de um lado e, de outro lado, a questão do caráter duvidoso, também citado por Bollos
em seu artigo, numa citação direta de Adorno.

Na troca de acusações, Oscar Guanabarino dá-lhe as alcunhas de crítico impossível


e crítico ladrão. A primeira se relacionava com a alegada incompetência musical do antagonis-
ta: o aprendizado do crítico impossível estava impossibilitado – por isso impossível – devido ao
seu início tardio na profissão de crítico musical, cujas possibilidades de educar o ouvido e sedi-
mentar sua capacidade de observação se encontram dificultadas. A segunda alcunha, a de crítico

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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

ladrão, refere-se à prática do antagonista em copiar e publicar, como seus, textos de terceiros
mais de oito vezes após ter sido pilhado no ato (PASSAMAE, 2013, p. 83).

É nesse contexto, que emergem as críticas da obra de Heitor Villa-Lobos intitulada


A Dança Frenética.

As críticas de Dança Frenética de Heitor Villa-Lobos

Segundo o catálogo Villa-Lobos e sua obra, do Museu Villa-Lobos, a peça intitu-


lada Dança Frenética é um trecho sinfônico de um bailado do primeiro ato da ópera Zoé, em
3 atos, com libreto de Renato Vianna2, composta no Rio de Janeiro por Heitor Villa-Lobos, em
1919 (MUSEU VILLA-LOBOS, 2010, p. 75).

A peça foi apresentada em São Paulo, em 07 de março de 1922, cerca de duas sema-
nas após o festival da Semana de Arte Moderna de São Paulo (11/02 a 18/02/1922) e noticiada
na coluna Registro de Arte do jornal Correio Paulistano que não vem assinada. Segundo o jor-
nal, a obra foi apresentada “perante uma seleta assistência, [...] no Theatro Municipal, [como]
mais um interessante sarau da Sociedade de Cultura Artística, com um concerto sinfônico, em
que foram executados exclusivamente trechos do compositor patrício Sr. Villa-Lobos”3.

A nota do jornal é bastante favorável ao programa apresentado, com raros e mui-


to cuidadosamente elegantes comentários desfavoráveis, registrando que as obras foram “[...]
reveladoras de um perfeito conhecimento dos modernos processos de orquestração, as compo-
sições do festejado maestro produziram, em conjunto, favorável impressão na assistência”. O
comentário jornalístico informa que as peças estavam “[...] subordinadas a vários gêneros [...]”
e que foram escritas em épocas diferentes. As composições incluídas no programa “[...] evi-
denciaram também um belo talento, preocupado, porém não raro com inovações nem sempre
felizes”.

Desconsiderando as infelizes inovações, prossegue o jornal afirmando que seria


“justo reconhecer em vários trabalhos, como no poema baile Naufrágio de Klenikos, no pre-
lúdio sinfônico da ópera Izakt (sic!)4 e em parte da Dança Frenética, da ópera Zoé, raras qua-
lidades de orquestrador aliadas a certa felicidade de inspiração”. A reação do público também
foi noticiada como sendo diversa daquela da Semana de Arte Moderna: “[...] a assistência, que
por vezes se mostrou excessivamente reservada, não lhe regateou, porém, sinceros aplausos no
final do concerto”, inclusive ao “talentoso violoncelista Newton de Pádua” coberto “com fartas
2 Renato Vianna (Rio de Janeiro RJ 1894 - idem 1953). Autor, diretor, ator. Autor do único espetáculo que,
no ano em que nasce o Modernismo no Brasil, procura criar uma estética nova.
3 Correio Paulistano: 8-3-1922, quarta-feira, p. 4. [Registro de Arte].
4 Provavelmente referem-se à opera Izath.

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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

palmas a ótima execução que deu ao concerto primeiro de violoncelo e orquestra”5. A orquestra,
da Sociedade de Concertos Sinfônicos, foi regida pelo maestro Villa-Lobos.

Vale lembrar que outros jornais, como o Folha da Noite6, em meados de fevereiro,
em matéria também não assinada, referindo-se à Semana de Arte Moderna, comenta que as ex-
pectativas eram tenebrosas devido às promessas prévias dos promotores e, embora o programa
apresentado houvesse sido inusitado, os ditos “reformadores” da arte passaram “a gozar da re-
putação de idiotas”. Não obstante o jornal ter considerado Villa-Lobos “um grande compositor
e [...] um temperamento artístico excepcional”, considera também que as tendências mostradas
no programa da Semana “estariam melhor num capítulo de psicopatologia”.

A mesma peça foi apresentada no Rio de Janeiro pela Filarmônica de Viena sob o
maestro Felix Weingartner (1863 – 1942), acompanhada de perto por Oscar Guanabarino, o
pianista, professor e crítico nos jornais O Paiz e Jornal do Commercio. Guanabarino não foi
menos duro com a composição do que apresentou a Folha da Noite.

No contexto das polêmicas ocorridas por ocasião da Semana de Arte Moderna,


Guanabarino “não aceita [...] que se julgue genial qualquer artista que transgrida os cânones
dos procedimentos artísticos apenas pela transgressão: não se trata [...] de reproduzir sons, mas
produzir sons com arte”. Para o crítico, a obra nada mais era que um “[...] amontoados de notas
que chocalham [...] como se todos os músicos da orquestra [...] tocassem pela primeira vez [...]
que assim perdem o seu colorido, o seu timbre, a sua nobreza e majestade, transformando [...]
em guizos, berros e latidos” (PASSAMAE, 2013, p. 69-70).

A obra fora também repudiada pelo público e o “repúdio da plateia carioca à peça
do maestro Villa-Lobos, consubstanciado em risos durante a execução, ensejou comentário do
poeta Ronald de Carvalho” ao que, Oscar Guanabarino confronta os cenários dos “concertos
da Filarmônica de Viena e os dirigidos pelo maestro Francisco Braga” com a orquestra da So-
ciedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro que nunca aconteciam diante de “[...] poltronas
vazias, como aconteceu agora com os concertos futuristas do Sr. Villa-Lobos” (PASSAMAE,
2013, p. 70).

Sobre os textos críticos de Oscar Guanabarino, Clovis Marques7 escreve sobre


“duas reações contraditórias de Guanabarino à música de um Heitor Villa-Lobos que então
ainda não era o monstro modernista que esse crítico viria a invectivar com regularidade”. Se-
gundo o autor, “[...] sob a batuta de Weingartner em 1920, Guanabarino se ‘encheu de alegria’
5 Correio Paulistano: 8-3-1922, quarta-feira, p. 4. [Registro de Arte].
6 Folha da Noite, 14-02-1922, São Paulo.
7 Clovis Marques é co-autor da obra O Municipal do Rio enfim contado, organizado por Núbia Melhem
Santos. Publicou um artigo com excertos de sua participação na obra coletiva, utilizado neste artigo.

81
PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

com a audição de O naufrágio de Kleonikos, de Villa-Lobos, ‘já executado nesta Capital, mas
muito antes do Pelléas et Mélisande’”. Guanabarino prossegue na crítica elogiosa, na opinião
de Marques, de O naufrágio de Kleonikos: “[...] vimos, então, que Debussy não é esse gênio
que mereça tão alto pedestal como querem os músicos futuristas ou coisa que o valha. O traba-
lho do nosso patrício vale muito mais do que a partitura do nefelibata francês”. Prosseguindo,
ainda segundo Marques, Guanabarino justifica sua apreciação sobre O naufrágio no contexto
da obra de Debussy:

Lá estão os mesmos processos, os mesmos efeitos, o mesmo sistema de harmonia


dissonante tomando a exceção como regra, a escala de tons inteiros, etc.; mas no final há mú-
sica, há arte, há o belo contemplativo na melodia cantada pelo violoncelo acompanhado por
efeitos delicadíssimos e originais obtidos das harpas e clarinetes. O Sr. Villa-Lobos merecia
uma ovação dos seus patrícios (MARQUES, 2011, p. 5).

A contradição, por outro lado, é apresentada quando, em 1922, dois anos depois,
portanto, Guanabarino encerrava, segundo Marques, “uma das críticas dos concertos dos filar-
mônicos vienenses regidos por Weingartner”:

“[O público] Aplaudiu também o Ave! Libertas, de Leopoldo Miguez, e com cer-
teza não compreendeu a Dança frenética de Villa-Lobos, talvez por estar errado o título, que
deveria ser Dança de S. Guido, com uma nota explicativa que dissesse: Para ser executada por
músicos epilépticos e ser ouvida por paranóicos” (MARQUES, 2011, p. 5).

Não há contradição. O autor se refere à reação negativa do crítico e da platéia ca-


rioca ao Pelléas et Mélisande, de fato. Guanabarino ousou “expor o insuportável de Pelléas et
Mellissande e, ao mesmo tempo, elogiar L’enfant prodigue, ambas de Debussy” (PASSAMAE,
2013, p. 70). Não se trata de contradição para Guanabarino que, mais de uma vez considerou
obras de Villa-Lobos um desperdício de talento devido a erros por falta de revisão.

Conclusão

O espírito de mudança para consolidar a transição do regime monárquico para o


republicano espraiou-se pelas maiores cidades brasileiras entre a última década do século XIX
e as primeiras décadas do século XX, tendo como uma de suas vertentes a Semana de Arte
Moderna de São Paulo, cuja capital vinha se desenvolvendo espantosamente devido à intensa
imigração e à parte operosa de sua elite.

O Rio de Janeiro guardava a tradição de ex-capital imperial e, em 1922, a capital

82
PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

da República já se encontrava totalmente remodelada no formato da belle époque parisiense,


com uma população mais sofisticada e influenciada pela convivência com o corpo diplomático
da República.

A crítica de arte, principalmente a das artes musicais, já vinha se desenvolvendo


desde o século XVIII, quando era exercida por músicos e profissionais com formação adequada.

Durante o século XIX, foi se transformando com o aumento do público, pois, neste
período, já se desvinculara de serem demandadas pela aristocracia e pela Igreja, como ocorria
no século anterior. Se, de um lado, figuras de elevado conhecimento técnico como Hanslick
e músicos como Schumann e Berlioz, estiveram nessa atividade de críticos, por outro lado,
grandes escritores carentes de competência específica, como Stendhal e Balzac, também se
meteram a escrever críticas de artes musicais. Mas havia muitos sem uma coisa ou outra e cujas
motivações eram de más intenções, tendenciosas e de apadrinhamentos que os levavam a dizer
absurdos em relação aos objetivos de uma crítica musical autêntica e verdadeira. Esse processo
continuou no século XX, apenas deixando de ser exercido pelos grandes escritores, mas guar-
dando os vícios observados anteriormente, em parte, com carência de conhecimento técnico e
em parte motivada por interesses nem sempre virtuosos, com as exceções de sempre.

A constatação pode ser verificada num debate aberto pela imprensa especializada
entre Oscar Guanabarino e um outro crítico musical sem qualquer capacitação e com baixo
padrão moral e ético.

Heitor Villa-Lobos compôs, em 1919, a ópera Zoé em 3 atos, com libreto de Renato
Vianna, na qual, em seu primeiro ato, há um bailado intitulado Dança Frenética, com um trecho
sinfônico apresentado, em 1922, em São Paulo, pela orquestra da Sociedade de Cultura Artís-
tica, regida pelo compositor e, no mesmo ano, no Rio de Janeiro pela orquestra Filarmônica de
Viena.

As críticas publicadas pelos jornais da época, tanto em São Paulo quanto no Rio,
não são, de modo geral, favoráveis à obra e repercutem a mesma impressão do público, com
exceção do Correio Paulistano, cuja crítica é apresentada numa linguagem menos contundente
que os demais e relata que a obra apresenta, “não raro, [...] inovações nem sempre felizes”.
Outros jornais paulistanos são mais contundentes, classificando o programa como caso de psi-
copatia, como é o caso do Folha da Noite.

A crítica efetuada pelo principal articulista de arte carioca, Oscar Guanabarino, foi
muito ácida, acompanhando a linha do Folha da Noite. Para o crítico carioca, a obra se resume

83
PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

num “amontoado de notas que chocalham como se todos os músicos da orquestra tocassem pela
primeira vez” e, portanto, as notas “[...] perdem o seu colorido, o seu timbre, a sua nobreza e
majestade, transformando [-se] em guizos, berros e latidos”. Portanto, nesse caso, não se tem
uma peça musical.

Alguns autores avaliam como contraditórias as críticas de Guanabarino que, se de


um lado, detona Dança Frenética, de outro, elogia O naufrágio de Kleonikos, comparativa-
mente ao Pelléas et Mélisande de Claude Debussy, que havia sido rejeitado pelo público e
por ele mesmo ao publicar sua crítica sobe essa obra. Guanabarino, acerca de O naufrágio de
Kleonikos, informa que possui os mesmos processos, os mesmos efeitos e o mesmo sistema
de harmonia dissonante do Pelléas et Mélisande, porém, a obra de Villa-Lobos possui o belo
contemplativo na melodia do violoncelo, entre outras passagens elogiadas. Ou seja, há arte na
obra do compositor brasileiro.

Esse posicionamento de Guanabarino não pode ser avaliado como contraditório,


visto que esse crítico não se atém ao indivíduo compositor, mas à obra composta. Igualmente,
detonou Pelléas et Mélisande, de um lado, e elogiou muito o L’enfant prodigue do mesmo
compositor, do outro.

Assim, verifica-se que, de modo geral, o trecho sinfônico do bailado Dança Fre-
nética, do primeiro ato da ópera Zoé, composta por Villa-Lobos em 1919, não foi muito bem
aceita pela crítica especializada tanto em São Paulo, quando foi executada no Teatro Municipal
pela orquestra da Sociedade de Cultura Artística daquela cidade, regida pelo compositor, quan-
to no Rio de Janeiro, quando foi executada pela Orquestra Filarmônica de Viena, regida por
Felix Weingartner.

REFERÊNCIAS

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Opus, Goiânia, v.11, n.11, p. 270-282, dez. 2005.

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Letras, 2012.

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cia.com.br/cultura/o-municipal-do-rio-enfim-contado/>. Acesso em: 15 jul. 2017.

MUSEU VILLA-LOBOS. Catálogo das Obras de Villa-Lobos. Disponível em: <http://museu-

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DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920

villalobos.org.br/bancodad/VLSO_1.0.1.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2017.

PASSAMAE, Maria Aparecida dos Reis Valiatti. Oscar Guanabarino e sua produção crítica
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PASSAMAE, Maria Aparecida dos Reis Valiatti. Temporada lírica de 1922: os cenários do Rio
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

MESA REDONDA III:


RELAÇÕES E TROCAS

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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

O Violão em estudos - entre Villa-Lobos e Mignone


Cyro M. Delvizio1
PPGMUS ECA-USP, cyrodel@gmail.com

Resumo: A prática violonística brasileira pode se orgulhar de ter em sua produção algumas das
séries de “Estudos” mais célebres mundialmente. Enquanto os “12 Estudos para violão” (1929)
de Heitor Villa-Lobos são amplamente adotados didaticamente, tocados e gravados ao redor do
globo, o mesmo não pode ser dito a respeito da série homônima de Francisco Mignone, embora
também celebrizada internacionalmente, mas dessa vez por suas dificuldades que para muitos
beiram a impossibilidade. Tal mito tem criado uma barreira (ou ao menos uma falta de estímulo) aos
intérpretes a enfrentar, discutir (academicamente ou não) executar e gravar os estudos Mignonianos,
fato também estimulado por uma natural comparação ao marco gerado pelos estudos Villa-
lobianos, já bem absorvidos pela comunidade violonistica. O objetivo deste artigo é promover uma
comparação entre os mesmos que não busque julgá-los uns à luz dos outros, mas entender e valorizar
suas qualidades, defeitos, similitudes e diferenças.
Palavras-chave: Estudos para violão. Francisco Mignone. Heitor Villa-Lobos.

Brazilian classical guitar in studies: between Villa-Lobos and Mignone


Abstract: The Brazilian classical guitar community can be proud of having some of the most
celebrated guitar studies series. While the 12 Etudes (1929) by Heitor Villa-Lobos are worldwide
didactically used, played and recorded, the same is not true for those written by Francisco Mignone,
o although also internationally praised, but this time considered of having technique difficulties
almost impossible to overcome. This myth created a barrier (or at least a lack of incentive) to guitar
players to face, discuss (academically or not) perform and record the Mignone’s studies, fact also
intensified by the natural comparison with the foundation stone provided by Villa-Lobos’s studies,
already well comprehended by the guitar community. The main goal of this article is to provide a
impartial comparison between those cicle of studies, praising it’s differences, qualities, defects,
similarities and differences.
Keywords: Guitar. Studies. Etudes. Francisco Mignone. Heitor Villa-Lobos.

Violão! “O mais paradoxal dos instrumentos musicais é um dos elementos mais


fortes e vivos da cultura brasileira” (GLOEDEN, 2002, p. 5). Tanto isso é verdade que o
brasileiro pode se gabar de alguns feitos de sua produção violonística: instrumento democrático,
possui incontáveis bons executantes, produziu alguns dos mais célebres duos de violões da
história (Duo Abreu, Duo Assad, etc) e, finalmente, produziu algumas das mais respeitadas
séries de prelúdios e estudos violonísticos, em nítido legado Villalobiano. Inegável é a quebra
de paradigmas que seus “12 Estudos” geraram, configurando base didática do violão moderno.
Já os “12 estudos” de Francisco Mignone, foram celebrizados como quase inatingíveis
técnicamente e consequentemente pouco visitados.

1 CYRO DELVIZIO. Doutorando em Performance já qualificado na ECA-USP sob orientação do Dr.


Edelton Gloeden com tese focada nos Estudos para violão de Francisco Mignone. Mestre em Musicologia (UFRJ,
2011) orientado pela Dra. Marcia Taborda e Bacharel em violão (UFRJ, 2008) orientado pelos Drs. Graça Alan e
Turíbio Santos. Duas vezes professor Substituto na EM-UFRJ. Sua dissertação foi contemplada com o “Prêmio
Funarte de Produção Crítica em Música 2013” e publicada em 3 versões: Português impressa e Ingles, impressa
e e-book.O lançamento foi realizado por meio de recitais-palestra no Brasil e exterior, notadamente no “GFA
International Convention 2015”, “New Mexico Classical Guitar Festival” e “New Orleans International Guitar
Festival”, entre outros.

87
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

A canonização de Villa-Lobos, embora ele não seja “o vilão da situação atual”


também “pode contribuir para colocar a produção de nossos importantes compositores em
segundo plano” (GLOEDEN, 2002, p. 1-2).

Dessa forma, teceremos comparações entre estes dois corpos de estudos, valorizando
suas especificidades a fim de tentar entender o fenômeno que os cerca, trazendo para o âmbito
acadêmico uma discussão que tem perdurado décadas na informalidade.

Relação com violão em ambos os casos

A primeira diferença notável entre tais compositores reside em sua relação com
o instrumento: enquanto “o violão esteve presente na vida e na obra de Heitor Villa-Lobos”
“desde sua primeira composição [...] até a década final de sua vida” (AMORIM, 2009, p.19),
Mignone somente se aproximaria em sua maduridade. Embora ambos tenham tido contato
com o chorões, apenas Villa-Lobos o fez com o violão, o que lhe propiciou convívio com os
maiores nomes do violão local (Sátiro Billhar, José do Cavaquinho, João Pernambuco, Donga,
e Quincas Laranjeiras, entre outros), além de declarar ter contato com os métodos tradicionais
(Carulli, Sor, Aguado e Carcassi), gerando conhecimento profundo do instrumento (AMORIM,
2009, p.47-50; TABORDA, 2004, p. 58-59 e 77-78).

Já Mignone utilizou a flauta nesses encontros, o que ao menos lhe familiarizou


com o vocabulário violonístico. Mesmo com tal proximidade, e apesar de ter composto quatro
obras em 1953, Mignone somente acreditou no valor artístico do instrumento após ouvir
Barbosa Lima em 1970, o que lhe incentivou a compor seus estudos tomando Villa-Lobos
como ponto de partida: “Villa-Lobos indiscutivelmente deu ao violão novas e insuspeitadas
possibilidades [...] relendo e estudando Villa-Lobos, me propus a ampliar e especular ainda mais
as possibilidades do mais romântico dos instrumentos de corda. Cada estudo, por mim escrito,
tem uma peculiaridade técnica que permite ao executor o emprego de todos os seus recursos
artísticos interpretativos” (MIGNONE apud APRO, 2004, p.127). Os objetivos e características
dos estudos

Trataremos de descrever os principais objetivos de desenvolvimento da técnica


violonística almejados em cada estudo, baseado em estruturas texturais, articulações, efeitos,
etc.

88
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

Descrição dos (principais) objetivos técnicos dos 12 estudos de Villa-Lobos:


O Ciclo de Doze de Villa-Lobos foi completados em 1929, mas teve seu início de
composição em 19242, quando da estadia do compositor brasileiro na França e de seu
contato com o violonista espanhol Andrés Segóvia, a quem a obra foi dedicada. Este
ciclo está basicamente dividido em dois: até a primeira metade, eles são direcionados
à técnica instrumental específica, sendo que os 6 últimos são mistos de estudos
de técnica com questões musicais mais abrangentes em termos de interpretação
(ANTUNES e FERNANDES, 2009, p. 30)

Estudo 1 (Mi menor / A-B monotemática): Estudo de arpejos (ritornellos a cada


compasso). Em padrão fixo, a mão direira (a partir de agora MD) ascende e descende em cordas
muitas vezes não adjacentes. Mão esquerda (a partir de agora ME) em um acorde estático
por compasso. Ocorrência de acorde paralelos na ME. Ocorrência de uma escala com ligados.
Parece-nos um estudo mais focado em MD do que em ME. Há ritornellos na maior parte dos
compassos.

Estudo 2 (Lá maior / A-B monotemática): Estudo de arpejos com ligados (ritornellos
a cada compasso). ME também com um acorde por compasso, mas agora não estático, ou seja,
há amplo translados e saltos. Ocorrência de uma escala que atravessa quase toda a extensão do
instrumento. Segundo Amorim “na escrita, talvez seja o menos audacioso”, porém demanda
“alto nível de exigência técnica” para sua execução (AMORIM, 2009, p.133). Segundo Turíbio
Santos (1975, p.16, apud AMORIM, 2009, p.133) parte de uma ideia básica de Dionísio
Aguado enquanto Thiago Abdalla (2005, p. 30) vê semelhanças com o “Estudo Nº 20” de
Mateo Carcassi.

Estudo 3 (Ré maior / Seção única monotemática): Estudo de acordes chapados e


arpejos aplicados por vezes em notas ornamentais (apojeaturas e bordaduras) em ligados da
ME, dando uma impressão escalar (na ME e na grafia musical) ainda que tocados com um
padrão de arpejo na MD. Há ritornellos a cada compasso. “A existência de arpejos (como é
explícito, logo abaixo do título na edição de 1953) é de importância secundária perto do intenso
trabalho na técnica dos ligados” (ABDALLA, 2005, p. 30).

Estudo 4 (Sol maior / A-A´-B-B´-Coda): É um estudo de acordes repetidos, onde


a MD trabalha em blocos e por vezes salta pelas cordas. A escrita polifônica utiliza “harmonia
a quatro partes onde impera o movimento paralelo das vozes, a não resolução dos acordes e as
modulações sem preparações” (PEREIRA, 1984, p. 38 apud AMORIM, 2009, p.135). “Há nada
menos que 20 alternâncias da unidade” de compasso neste estudo (AMORIM, 2009, p.135).

Estudo 5 (Dó maior): É um estudo polifônico (a 3 vozes), consequentemente


2 Como veremos mais a frente, Humberto Amorim (2009, p. 127) aponta uma datação diferente para tal
obra.

89
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

exigindo independência de movimentos dos dedos de ambas a mãos e legato. Para Antunes e
Fernandes (2009, p. 30) “há uma nítida alusão à viola caipira, com acompanhamento em terças
[paralelas] e melodia propositadamente monótona”.

Estudo 6 (Mi menor / Seção única repetida variada): É também um estudo de


acordes, mas agora trocados rapidamente (em colcheias) exigindo maior movimentação da
ME aplicada inicialmente à trabalho em blocos da MD. O estudo é repetido com padrão mais
complexo de MD onde os blocos de acorde são alternados contra o polegar.

Estudo 7 (Mi maior / A-B-A`-C): Há trabalhos técnicos diferentes em cada


seção, respectivamente, Escalas, Arpejos (com 3 planos diferentes: melodia, baixo e recheio
harmônico), acordes paralelos chapados contra baixo e trinados (de MD em acordes paralelos).

Estudo 8 (Dó sustenido menor / Introdução-A-A´-A-Coda monotemática): Estudo


também misto. Introdução em dois planos com intervalos paralelos nas cordas graves contra
baixo. A melodia exposta no baixo é repetida na seção seguinte pela voz superior, agora em
arpejo em três planos diferentes (similar ao estudo 7). Há passagens em ligados que lembram o
Estudo 3 e ocorrências interessantes de arpejos em sextinas “elemento técnico que será foco de
toda a seção central do Estudo nº11 (arpejo circular p, i, m, a, m, i, p, ....)” (ABDALLA, 2005,
p. 35).

Estudo 9 (Fá sustenido menor / Seção única repetida variada): Para Amorim “a
ideia fundamental consiste nas variadas ornamentações do tema principal ... muito simples,
consistido de uma melodia em graus conjuntos de caráter descendente” (AMORIM 2009,
p.135). Para Antunes e Fernandes (2009, p. 30) “é mais voltado, principalmente à sua segunda
parte, aos ligados, e sua alusão novamente à viola caipira é preponderante”.

Estudo 10 (Si menor / A-B-C-A’-Coda): Estudo principalmente de independência


da ME. Possui introdução e codas cujo trabalho da MD realiza saltos em acordes similares ao
estudo 4, enquanto a ME segura acordes paralelos ascendentes, alternados com figuração de
ligados, que passam a ser o foco principal na seção seguinte em ostinato onde é introduzida
nova melodia nos baixos, em textura semelhante ao estudo 3 e 9. O estudo é finalizados com
rasgueios e com arpejo de digitação escovada na MD.

Estudo 11 (Mi menor / A-B-A’-B’-A): o Estudo 11 possui trabalhos de melodia


acompanhada (em três planos, com melodia principal agora na voz intermediária), terças
repetidas contra melodia (também em terças) no baixo, acordes de arpejo descendente com
translados verticais do indicador (ou outro dedo) da MD (escovados), arpejo em sextinas MD

90
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

(com 3 cordas em uníssos) com movimento paralelo da ME, toque duplo de polegar MD.
Abdalla (2005, p. 33) encontra semelhanças com o Estudo 4 no que tange à ocorrência de
acordes repetidos, que neste estudo aparecem em terças maiores.

Estudo 12 (Lá menor / A-A´-B-A-Coda): Estudo de arraste (glissando) de acordes


paralelos da ME, aliado a movimento repetitivo em blocos da MD. Também aparecem escalas
(com modelo de imitação vertical na ME), acordes de arpejo descendente com translados
verticais de dedos da MD (p, i ou am escovados), e seção de melodia nas cordas graves sobre
ostinato da sexta corda solta (resolvido tecnicamente de várias formas). Trocas constantes de
fórmula de compasso.

Descrição dos (principais) objetivos técnicos dos 12 estudos de Francisco Mignone:

Estudo 1 – Vivo (Lá menor): Estudo de arpejos em tercinas, com longa melodia
cantabile (que segundo APRO, 2004, p.92, remete ao Estudo Brilhante de Francisco Tárrega
e Sinfonia n.4 de Brahms) normalmente na voz superior, mas por vezes a atenção melódica
se volta a outras vozes. Faz uso de grande parte da tessitura do instrumento. Também há a
ocorrência de ligados e harmônicos articificais.

Estudo 2 – Seresteiro (Ré menor): Estudo seresteiro em ABA. Primeira seção se


baseia em longa melodia com resposta de acordes chapados. Já a segunda, focaliza diferentes
padrões de arpejos, primeiro com melodia na voz inferior e posteriormente na voz superior. Há
passagens escalares cadenciais entre frases ou seções.

Estudo 3 – Tempo de chorinho (Sol maior): Estudo misto, iniciado por trabalho
de melodia com respostas no baixo (alla baixaria de choro). A melodia superior aparece em
escalas, terças, décimas e em blocos de acordes com 3 ou 4 notas, com conotação caipira. Há
grandes e súbitas mudanças de agógica.

Estudo 4 – Allegro Scherzoso (Mi menor): Estudo de ligados de grande


agilidade em ritmo de galope. Primeiramente ligados ascendentes aplicados a arpejos (com
notas de passagem) de grande extensão. Em seguida ligados descendentes acompanhados por
pontuações de acordes. Há seção lenta com melodia na voz inferior acompanhada por acordes
no contratempo, depois repetida em arpejos.

Estudo 5 – Vagaroso (Lá menor): Estudo lento e interpretativo também de caráter


seresteiro com uma variedade de texturas. Inicia-se com blocos de acordes (4 notas) contra baixo
(com uma voz a três vozes), gerando saltos verticais de MD similares a repetição do Estudo 6

91
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

de Villa-Lobos. A segunda seção (que é rememorada no final) apresenta acordes de 5 notas com
notas ligadas, o que trabalha independência da ME e a dinâmica suave exige controle da MD.
A melodia principal do estudo somente é apresentada na segunda página, primeiramente na voz
inferior (polegar) acompanhada por pontuações de acordes chapados e arpejados. No compasso
64, a mesma melodia aparece na voz superior acompanhada por acordes quebrados. Também
há aparições de escalas cromáticas, acordes chapados repetidos insistentemente e harmônicos
artificiais.

Estudo 6 – Assai Vivo (Sol maior): De caráter amaxixado, trabalha principalmente


arpejos variados, mas com ocorrência de outras texturas, como escalas (seja de ligação ou
cadenciais) e melodia no baixo pontuada por acordes. O tema principal (re)aparece nos
compassos 1, 55 e 76) sempre com tratamento textural distinto. Na primeira seção ocorrem notas
repetidas no meio dos arpejos pouco usuais ao instrumento, mas que se tornaram idiomáticas
de Mignone.

Estudo 7 – Molto Lento/Cantiga de ninar3 (Fá sustenido menor): Estudo


interpretativo em “tonalidade pouco familiar entre os violonistas” (ANTUNES e FERNANDES,
2009, p. 31) criando dificuldades severas de sustentação de legato na ME, mesmo com o alerta
do compositor no rodapé da partitura ao dizer que a obra “foi escrita desse jeito apenas para
que o executor faça vibrar os sons o mais que possível”. Tais dificuldades podem ser sanadas
por digitação atenciosa. A textura é de melodia (1 ou 2 vozes paralelas) acompanhada por
pontuações de acordes cheios. Há ocorrência de harmônicos naturais e artificiais.

Estudo 8 – Allegro (Sol menor): “Um dos mais difíceis da série, possui elementos
de trabalho que vão de arpejos e escalas até a rasgueados e notas repetidas” (ANTUNES e
FERNANDES, 2009, p. 31). Contrastando com a harmonia áspera e ritmo frenético predominante
da peça, a peça é finalizada com acordes maiores paralelos de conotação também caipira.

Estudo 9 – Allegro Moderato (Sol maior): Também preconiza o trabalho de arpejos


(em posição fechada), mas neste caso com muitas mudanças de padrões (MD), que às vezes
ocorrem a cada compasso, em atitude pouco habitual ao instrumento mas benéfica ao estudo. A
sonoridade remete à viola caipira e é ainda mais evidenciada na seção lenta, por suas melodias
em terças, décimas e em blocos de acordes. Há ocorrência eventual de escalas ligando seções.

Estudo 10 – Lento e com muito sentimento (Fá menor): “Mostra os desafios de


melodia acompanhada com o peso correto dos acordes” (ANTUNES e FERNANDES, 2009,
p. 31) sobretudo na primeira e ultima seção, que em tonalidade também ingrata somada a
andamento lento, também exige molto legato realizável apenas com trabalho de independência
3 Subtítulo no manuscrito.

92
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

de movimentação dos dedos da ME. A seção central também trabalha melodia acompanhada,
mas agora em arpejo também em posição fechada.

Estudo 11 – Andante (Ré menor): “Com seu subtítulo Spleen (que nos remete
rapidamente a aspectos da literatura romântica, inclusive a de autores brasileiros da primeira
metade do século dezenove), é novamente mais um estudo de interpretação (ANTUNES
e FERNANDES, 2009, p. 31)”. A primeira seção apresenta melodia que se movimenta
primeiramente em blocos de acordes chapados na região médio-grave, contra pontuações
no baixo, exigindo trabalho em blocos da MD. Em seguida a melodia é desenvolvida pela
voz superior com acompanhamento mais complexo, levando ao clímax no compasso 26 com
interessante e rara figuração em quiálteras de 7. O final sutil é alcançado pelo uso de harmônicos
e reexposição variada da introdução.

Estudo 12 – Com velocidade (Mi menor): É considerado um dos mais difíceis


da série, principalmente por sua extenuante primeira seção de escrita muito pianística e
consequentemente pouco violonística (sobretudo para ME), que trabalha acordes chapados com
melodia em ligados, passagens escalares, arpejos, finalizada por uma interessante rememoração
do tema no baixo. A seção contrastante é diametralmente mais simples, com melodia (em
Décimas e Oitavas) quase folclórica numa “remota alusão à canção O cravo brigou com a rosa”
(APRO, 2004, p.111), num nítido propósito de dar descanso ao intérprete. Após repetição da
primeira seção, retornasse a este tema quase folclórico, agora levemente modificado e tocado
em acordes cheios sob a indicação molto aperggiato, finalizados com súbita escala descendente
e acordes sforzando.

Idiomatismo

Para esta seção, tomaremos como ponto de partida o tópico “Síntese dos elementos
que caracterizam a escrita de Villa-Lobos para violão” do livro de Amorim (2009, p.167-172),
comparando-o com os procedimentos habituais dos estudos de Mignone.

Paralelismo horizontal: para Amorim, trata-se de movimentos paralelos de acordes


com grande translado. Em Villa-Lobos esse movimento é empregado em acordes diminutos e
meio-diminutos (comp. 9-14 do Estudo 4 e comp. 6-11 do Estudo 6) enquanto em Mignone
aparece em acordes maiores (Estudo VII, comp. 32).

Utilização de paralelismos verticais: para Amorim, trata-se de movimento de


desenho igual desenho na ME que são repetidos em várias cordas. VL comp. 44-45 do Estudo
10 e comp. 22-29 do Estudo 12. Em Mignone, “forçando um pouco a barra”, é encontrado no

93
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

início e final da Coda do Estudo 12.

Uso idiomático das cordas graves (4ª, 5ª e 6ª): Mignone também faz este uso, mas
não sendo violonista não o faz de forma tão idiomática quanto Villa-Lobos.

Harmônicos: para Amorim, Villa-Lobos faz uso extensivo de harmônicos naturais,


enquanto Mignone utiliza mais os harmônicos artificiais, e por vezes (principalmente no
manuscrito) os utiliza em duas e até três notas simultâneas, o que exige certo malabarismo
do intérprete e, assim sendo, são comumente simplificados pela maioria dos intérpretes, sem
grande prejuízo musical.

Uso de tonalidades que privilegiam as cordas soltas: Villa-Lobos o faz em 7 de


seus estudos, enquanto Mignone em 6, mas nem sempre parece fazê-lo pautado na existência
de cordas soltas, que em nossa impressão existem em menor número em sua obra (contabilizar
essa ocorrência em ambos os ciclos seria demasiado fastidioso).

Uso de cordas soltas como efeito pedal: ambos os compositores o usam. VL no


comp. 15-20 do Estudo 1 e Mignone no comp. 57-61 do Estudo 1 e comp. 52-58 do Estudo 4,
por exemplo.

Uso da afinação natural do instrumento como elemento musical: embora seja


um procedimento Villa-Lobiano ocorrente em várias obras (concerto para violão, Prelúdio 3 e
Distribuição das Flores), mas não nos seus estudos, citamos este elemento por ele curiosamente
ocorrer também no comp. 67-69 do Estudo 4 de Mignone, mesmo sem ele ser violonista. Este
procedimento virou uma das marcas da Sonata de Alberto Ginastera, que inicia-se com este
acorde de cordas abertas.

Exploração de toda a extensão do instrumento: ambos os compositores sabem


“passear” pelos registros do instrumento com maestria. Villa-Lobos nas escalas do Estudo 2 e
nos comp. 9-14 do Estudo 4, enquanto Mignone o faz no comp. 37-43 e 57-67 do Estudo 1,
comp. 31-32 do Estudo 2, comp. 65-69 do Estudo 3, comp. 31-33 do Estudo 4, comp. 90-95 do
Estudo 6, comp. 1-4, 15-17 e 48-50 do Estudo 12.

Uso extensivo de sinais e recursos de expressão: ambos os compositores o fazem,


mas Mignone mais frequentemente, até assustando possíveis intérpretes tal seu detalhismo
interpretativo. Além disso, Villa-Lobos possui vários erros de edição, fruto de falta de revisão,
enquanto Mignone declara: “... sou e serei sempre um eterno insatisfeito, refaço cinco ou mais
vezes as minhas obras” (Francisco Mignone aos 80 anos, excertos da entrevista ao Jornal do

94
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

Brasil, a 6/4/1968, apud MARIZ, p.45, 1997).

Utilização do ritornelo como recurso técnico e expressivo: Villa-Lobos o usa


mais frequentemente, mais especificamente em seus 3 primeiros estudos. Mignone apenas no
Estudo 4, embora tenha preferido a grafia por extenso de repetição de compasso.

Exigência do intérprete de fino controle tímbrico e dinâmico do instrumento:


intimamente ligado aos sinais interpretativos descritos em tópico anterior, ambos os ciclos
necessitam de tal habilidade.

Melodias acompanhadas por acordes quebrados: Villa-Lobos os usa no comp.


15-23 do Estudo 8 e Mignone a partir do comp. 64 do Estudo 5, em padrão menos orgânico.

Linhas cromáticas: existentes em ambos os ciclos.

Exploração do potencial harmônico do violão: cada qual o faz à sua maneira, Villa-
Lobos mais voltado a elementos orgânicos como fôrmas de acordes, paralelismos (horizontais e
verticais) e Mignone, embora também use paralelismo e fôrmas, o faz menos frequentemente,
mas não deixa de ser menos inventivo no uso arrojado do violão como instrumento harmônico
(o Estudo VII basta para comprovar isso).

Exploração das capacidades polifônicas do violão: enquanto Villa-Lobos dedica


um estudo inteiramente a este procedimento composicional e ainda o utiliza “nos Estudos nº
3 (compassos 3-5, 8, 12, 13, 19-22 e 26 -30), diversas seções dos nºs 4 e 9, na parte B do nº 7,
em quase totalidade do nº 8, na parte B do nº 10 (em que temos a sobreposição de notas fixas
com ligados – um dos momentos de maior dificuldade técnica do ciclo) e, no Estudo nº 11, de
modo geral” (ABDALLA, 2005, p. 30), Mignone praticamente não o utiliza, privilegiando a
melodia acompanhada (que por sua vez às vezes sugere vozes distintas) e havendo no máximo
insinuações polifônicas mas normalmente justapostas e não simultâneas.

Uso constante de quiálteras: ocorrente em ambos compositores.

Intercalação de passagens atonais em peças tonais: ocorrente em ambos


compositores. Villa-Lobos nos Estudos 1, 10 e 12, Mignone nos Estudo 1, 2 e 8.

Passagens de grande intensidade sonora: ocorrente em ambos compositores.

Alternância de unidade de compasso em uma mesma peça: Amorim ressalta o

95
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

exemplo do Estudo 4 de Villa-Lobos, onde ocorrem 20 alternâncias de unidade em apenas 65


compassos. Mignone usa este recurso mais parcimoniosamente (apenas nos Estudos 4 e 8).

Escalas com digitações oblíquas: ocorrente apenas nos estudos 7 e 10 de Villa-


Lobos.

Utilização de ornamentos como recurso principal na composição: tratando-se


de ideia totalmente Villalobiana no Estudos 7, 9 e 10, ela não ocorre em Mignone.

Uso de notas repetidas como transição entre seções ou partes de seções:


novamente um procedimento bastante Villalobiano consequentemente não explorado por
Mignone. Em contrapartida este último autor as explora de maneira distinta dentro de arpejos,
provendo-lhes articulação rítmica. Apesar de procedimento criativo, ele é pouco usual para os
instrumentistas, embora seja musicalmente eficaz e passível de ser absorvido com estudo.

Utilização de rasgueios de mão direita: Este procedimento totalmente característico


do instrumento e merecedor de estudos específicos é raramente utilizado em ambos os ciclos,
aparecendo apenas no Estudo 12 de Villa e final do 3 de Mignone, embora existam interpretes
que os usem em outras passagens.

Arpejos com efeito de trêmulo: trata-se de efeito praticamente de ocorrência


isolada na história musical, onde Villa-Lobos propõe, no Estudo 11, passagem de uníssono em
três cordas diferentes, tocadas em arpejo rápido resultado em um trêmulo. No entanto, o efeito
habitualmente nomeado trêmulo pelos violonistas (rápida e insistente reiteração de uma nota
em una corda) não é utilizado por nenhum dos compositores, sendo outro vocabulário técnico
merecedor de estudos específicos.

Capacidade de interpenetrar idiomatismos de instrumentos distintos: Amorim


nota a semelhança de passagens dos Estudos Villa-lobianos com o violoncelo, instrumento
também tocado pelo compositor. Mignone apresenta atitude semelhante, mas em relação aos
dois instrumentos que tocava: a flauta e o piano.

Caráter programático de algumas peças: Villa-Lobos não o faz em seus estudos,


mas em seu ciclo de prelúdios, enquanto Barbosa-Lima sugere que Mignone tinha a ideia de
colocar subtítulos dessa natureza em seus estudos, apenas parcialmente realizada (há estudos
com subtítulos de “seresteiro”, “tempo de chorinho”, “cantiga de ninar”, o que não são o bastante
para serem chamados de programáticos).

96
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

Dificuldades

Uma das questões mais polêmicas em relação a estas séries de estudos remete às
suas dificuldades. A tendência habitual (e de certa forma errônea) é a de se pensar que o ciclo
de Mignone é “mais difícil” simplesmente baseando essa opinião em uma impressão auditiva
ou na repetição de verdades alheias (em outras palavras o “ouvi falar...”), fato compreensível
quando poucos se aventuraram a tocar tais estudos.

Por outro lado, muitos estudantes são apresentados muito cedo a estudos (por vezes
difíceis) de Villa-Lobos e essa exposição precoce somada ao estudo intenso e prolongado os
faz, anos depois, julgá-los “fáceis” simplesmente por estarem em sua zona de conforto.

Com esses fatores em conta, gostaríamos de desmistificar essa falsa relação


de dificuldade entre os estudos, ao relembrar que o critério de dificuldade é muito relativo
(sobretudo em estudos tão complexos e variados tecnicamente como os aqui discutidos). Dessa
forma, cremos que um estudante pode ter uma facilidade escalar para o Estudo 7 de Villa-Lobos
e não apresentar a mesma propensão para os ligados do Estudo 3 ou 10 do mesmo autor.

As dificuldades aparentes em Mignone são derivadas de um duplo fenômeno: por


um lado sua escrita é menos orgânica (algo esperado se tratando de compositor não violonista)
e por outro seus idiomatismos e passagens problemáticas foram menos decifrados e discutidos
quanto os de Villa-Lobos. Portanto, acreditamos ser menos uma questão de dificuldade e mais
uma questão de aproximação da comunidade violonística.

Ademais, há estudos de Mignone bastante acessíveis como os de número 2, 10 e 11


e mais ou menos medianos como o 1, 3, 5 e 7, dependendo sempre da especificidade de quem
estiver julgando.

A título de exemplo, reproduzimos abaixo tabela de Thiago Abdalla, a qual expõe


uma proposta de hierarquização de dificuldades entre estudos brasileiros de quatro autores,
mesmo que não seja indiscutível.

Para exemplificar o quão distintas podem ser as opiniões, nossa avaliação teria
algumas diferenças em relação à de Abdala no que tange às obras de Villa-Lobos e Mignone.
Em nosso julgamento, a ordem de dificuldade progressiva dos estudos de Mignone após estudo
diligente por mais de 2 anos, seria mais ou menos a seguinte: 2, 11, 10, 7, 5, 3, 1, 4, 6, 9, 8 e 12.
Mesmo assim não consideremos nossa opinião isenta. Tomamos como exemplo os de número 4
e 6, que foram as primeiras obras a serem estudadas por nós e que, portanto, podem estar sendo

97
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

subestimadas nesta hierarquização.

Já na relação entre os ciclos de estudos, custamos acreditar que o 4 de Mignone e


o 5 de Villa-Lobos têm o mesmo nível de dificuldade (como exposto na tabela), por exigirem
habilidades completamente distintas, sendo assim sua comparação de dificuldade totalmente
pessoal. Com isso queremos enaltecer o valor da proposta de Abdalla, mas não sem deixar o
leitor ciente de sua subjetividade.

Estrutura e duração dos estudos

Outra diferença notável entre as séries de estudos é sua duração, sendo a de Mignone
mais longa que a de Villa-Lobos, autor que segundo Mário de Andrade “se expressa [...] muito
melhor dentro das formas estruturalmente de pequena duração no tempo” (apud AMORIM,
2009, p.125). Assim sendo, reunimos na tabela abaixo as durações médias de ambos os ciclos,
para melhor sua visualização.

98
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

Com tal organização, expressa-se em números uma impressão habitual de que os


estudos de Mignone tendem mais ao desenvolvimento de ideias, resultando em 7-17 minutos a
mais na duração total e 1 minuto a mais na duração média das peças. Tudo o que foi exposto aqui
não é um demérito, apenas uma constatação das diferentes características dos compositores.

O hiato – gravações, performances e escritos

Um último grande fator a ser considerando nesta comparação e habitualmente


ignorado em obras desse calibre é a ocorrência de grande descompasso entre a composição e
sua absorção (tanto pelos instrumentistas quanto pelo público apreciador). Obviamente esse
fenomeno não ocorre em qualquer obra musical, mas é frequente, sobretudo em obras que
contenham inovações técnicas, musicais (e etc), como nos grupos de estudos selecionados,
cada um a sua maneira. É como se além do tempo de gestação da obra pelo compositor, ela
muitas vezes precisasse de uma segunda gestação, agora pelos intérpretes (para resolverem
suas questões técnico-interpretativas e de grafia) e público (para deglutirem suas inovações de
sonoridade até finalmente conseguir apreciá-las).

A história comprova que esse fenômeno é verdadeiro em relação ao Estudos de


Villa-Lobos. Compostos “na década de 1920, durante as duas passagens de Villa-Lobos por
Paris: de 1923 a 1925 e de 1927 a 1930” (AMORIM, 2009, p.127), eles foram publicados
apenas em 1953 pela editora francesa Max Eschig (mais de 20 anos depois). Mesmo dedicados
ao espanhol Andres Segóvia, violonista mais célebre de sua época e com prefácio do mesmo,

99
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

estes estudos ainda tardariam muito a encontrar o intérprete capaz de divulgá-los a um


público maior. Segóvia, embora declarasse em seu prefácio que considerava os estudos “de
surpreendente eficácia para o desenvolvimento das técnicas de ambas as mãos” e “de valores
estéticos permanentes de obras de concerto” (Max Eschig, 1953 p.1) somente tocou e gravou os
estudos de números 1 e 7. Conhecendo-se a personalidade e preferências do espanhol (que em
suas encomendas estava sempre voltado para a música nacionalista de seu país e sempre pesava
por obrigar seus alunos a seguir suas digitações em masterclasses), podemos imaginar que o
ciclo de estudos villalobiano não se adequava a este intérprete, tanto por estética, quanto por ter
de se sujeitar às digitações de Villa-Lobos para fazê-los funcionar. Ele mesmo revela que “não
quis variar nenhuma digitação que Villa-Lobos marcou” e que “devemos estrita obediência a
seu desejo, mesmo a custa de nos submetermos a maiores esforços de ordem técnica” (Max
Eschig, 1953, p.1). Essa declaração simplesmente não soa como Segovia, conhecido por impor
o seu ímpeto artístico sobre as obras em uma visão artística do romantismo-tardio. Imaginamos
que, talvez, ele não quis mexer no que não conseguia decifrar, ou ao menos que não quis gastar
seu precioso tempo revisando obras de uma estética que não estava comprometido... Mas isso
recai no âmbito da pura conjecturação.

Enquanto Segóvia deu pouco proveito à obra a ele dedicada, o brasileiro Turíbio
Santos soube aproveitá-la para lançar sua carreira (somada a outros feitos) se tornando
o concertista ideal para a tarefa de defendê-la frente aos apreciadores do violão. Em 1963
ele gravaria os 12 estudos a convite de Arminda Villa-Lobos e os apresentaria no dia 21 de
novembro daquele mesmo ano no Palácio Gustavo Capanema do Rio de Janeiro, configurando
a primeira performance integral em concerto (SANTOS, 2015, p.29). Resumidamente, a partir
dai (do esforço deste intérprete, entre inúmeros outros) os estudos ganharam mundo, criando-
se uma reação em cadeia para sua popularização e consequente divulgação. Para dar-se conta
de seu sucesso atual, basta dizer que Amorim levantou a existência de ao menos 93 gravações
parciais ou integrais desses estudos (ver Amorim, 2007, Anexos, p.231-234), sendo que o
próprio Turibio os gravaria 4 vezes...

Com isso podemos contabilizar um espantososo hiato de ao menos 33 anos entre


a composição e o momento de início de sua aceitação, celebrização e mais, sua compreensão
pelo meio violonístico. Hoje os estudos de Villa-Lobos integram programas de conservatórios
e universidades, sendo parte indispensável de qualquer formação violonística, ao mesmo tempo
em que figuram nos concertos dos mais prestigiados intérpretes internacionais e pode-se dizer
que há certo consenso de como resolver seus problemas técnicos, interpretativos e de grafia.

Por outro lado, eis a situação dos estudos de Mignone: compostos em 1970 eles
foram editados logo em seguida em 1973 pela Columbia Music Company, e não tardaram tanto

100
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

a ser gravados em LP pelo próprio dedicatário da obra, em 1978, pela Polygram (esgotado),
que também nos declarou ter feito várias performances parciais do ciclo em concertos. Porém,
após esse pontapé, temos conhecimento de poucos intérpretes que se dedicaram aos mesmos
(dos quais elencaríamos Fábio Zanon, Paulo Pedrassoli, Flávio Apro e o próprio autor deste
artigo) havendo apenas a gravação de Flávio Apro disponível comercialmente. Nestes anos este
ciclo ganhou indiscutível notoriedade, mas infelizmente aliada a uma reputação de que suas
dificuldades seriam intransponíveis.

O âmbito acadêmico também não tem sido favorável ao ciclo Mignoniano:


enquanto a obra violonística de Villa-Lobos foi foco direto ao menos de 22 pesquisas de
mestrado e doutorado (resultando em dissertações e teses) e indireto de mais 7 (esses números
foram contabilizados nas referências bibliográficas de Amorim, 2009, p.179-183) sem falar em
incontáveis artigos. Enquanto isso, temos conhecimento de apenas 5 dissertações dedicadas à
obra violonística de Mignone somadas a cerca de 4 artigos (alguns deles de foco indireto).

Acreditando na circularidade de conhecimentos entre a prática e teoria, entre o


universo acadêmico e extra-acadêmico, temos certeza de que quanto mais numerosas forem
as discussões sobre estes estudos de Mignone (acadêmicas ou não), tal qual ocorreram com os
de Villa-Lobos, sua absorção pela comunidade violonística crescerá (e também consequentes
performances e gravações) e, com tal desmistificação, virá a revitalização de um ciclo brasileiro
da maior importância histórica, estética, técnica e musical. Passados 46 anos desde a composição
dos 12 Estudos para violão de Mignone, é chegado o momento de a comunidade violonística
reavaliar a atenção que tem dado a esta obra.

REFERÊNCIAS

ABDALLA, Thiago. “Análise Técnico-interpretativa dos ciclos de Estudo para violão de César
Guerra-Peixe, Radamés Gnatalli e Heitor Villa-Lobos”. Trabalho de Conclusão de curso (TCC).
ECA-USP, 2005.

AMORIM, Humberto. “Heitor Villa-Lobos: uma revisão bibliográfica e considerações sobre a


a produção violonística”. Dissertação de mestrado, UNIRIO, 2007.

AMORIM, Humberto. “Heitor Villa-Lobos e o violão”. Academia Brasileira de Música, Rio de


Janeiro, 2009.

101
DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE

ANTUNES, Gilson e FERNANDES, Marcelo. “Aplicações Técnico-Instrumentais e


Similaridades nos Estudos para Violão de Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnattali e Francisco
Mignone”. Simpósio Internacional Villa-Lobos, USP, 2009. Disponível no link www2.eca.usp.
br/etam/vilalobos/resumos/CO005.pdf acesso em 03/12/2016.

APRO, Flávio. “Os fundamentos da interpretação musical: aplicabilidade nos 12 etudos para
violão de Francisco Mignone”. Dissertação de mestrado, UNESP, 2004.

GLOEDEN, Edelton. “As 12 valsas brasileiras em forma de estudos para violão de Francisco
Mignone: um ciclo revisitado”. Tese de doutorado, USP, 2002.

MARIZ, Vasco (org.). “Francisco Mignone, O homem e a obra”. Rio de Janeiro, p.45, Funarte
& ED.UERJ, 1997.

SANTOS, Turibio. “Caminhos, encruzilhadas e mistérios...”, 2ª ed. ARTVIVA, 2015.

TABORDA, Márcia. “Violão e identidade nacional - Rio de Janeiro 1830-1930”. Tese de


Doutorado, UFRJ, Rio de Janeiro, 2004. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011.

Partituras:

“Douze Etudes pour guitare” de Heitor Villa-Lobos, Max Eschig, 1953.

“Twelve Etudes” de Francisco Mignone, Columbia Music Company, 1973.

102
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

O desafio de compor para violão solista e orquestra

Elodie Bouny/Universidade Federal do Rio de Janeiro


eloviolao@gmail.com

Escrever para violão solista e orquestra constitui um desafio para os compositores e o presente
artigo trata dessas questões. Por natureza, o violão é um instrumento que, dificilmente, consegue
se sobressair à frente de uma orquestra, mas isso não impediu uma produção ampla para essa
formação, sobretudo, depois da segunda metade do século XX. Por meio de análises de trechos de
obras compostas com essa formação, este artigo apresenta estratégias no sentido de facilitar a escrita
para violão solista e orquestra, tendo como objetivos valorizar o timbre do violão e estabelecer um
equilíbrio sonoro entre o solista e a orquestra.
Palavras-chave: Concerto para violão. Orquestra. Timbre. Composição.

The Challenge of composing for guitar and orchestra


Writing for guitar and orchestra is a challenge for composers and this article addresses these issues.
By nature, the guitar is an instrument that can hardly stand out in front of an orchestra, but this did
not prevent a broad production for this formation, especially after the second half of the twentieth
century. This article presents strategies to facilitate writing for solo guitar and orchestra, with the
purpose of evaluating the timbre of the guitar and establishing a sound balance between the soloist
and the orchestra.
Keywords: Guitar Orchestra. Orchestra. Timbre. Composition.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta aspectos acerca da escrita para violão solista e orquestra, e
apresenta, também, questões que esse tipo de escrita levanta sendo que, uma delas, consiste em
lidar com o timbre intimista do violão e com a mistura desse timbre com o da orquestra.

Existem mais de mil de concertos escritos para violão e mais de trezentos gravados.
Porém, apesar dessa realidade, escrever para violão e orquestra não deixa de ser uma tarefa
delicada, podendo-se dizer, ousada.

O violão era, originalmente, designado para cumprir o papel de acompanhador, mas


foi conquistando, aos poucos, seu lugar como instrumento solista, a partir do século XIX, com
o surgimento de peças virtuosísticas e de estrutura formal mais complexas. Dionisio Aguado,
Fernando Sor, Mauro Giuliani, Fernando Carulli, Napoleon Coste, são alguns exemplos de
compositores que começaram a estabelecer o novo repertório solista desse instrumento durante
o século XIX.

O primeiro concerto para violão solista e orquestra tocado em público ocorreu em

103
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

1808 e foi composto por Mauro Giuliani1. Desde então, vários compositores se interessaram por
essa formação, resultando em um repertório crescente para violão e orquestra.

Porém, a escrita para violão e orquestra, apresenta problemas, principalmente no


que diz respeito ao equilíbrio e mistura dos timbres. Desta forma, a principal questão levantada
neste artigo é: quais são as estratégias possíveis para valorizar o timbre do violão solista junto
à orquestra?

Para tanto, este artigo está estruturado em itens distintos sendo que o primeiro deles
está reservado à contextualização histórica do timbre, da orquestra e da formação para solista e
orquestra. Num primeiro momento conceituei o timbre a partir de diferentes vieses.

Por outro lado, observa-se que o violão é pouco comentado nos métodos tradicionais
de orquestração, nos quais não existem descrições detalhadas das possibilidades técnicas do
instrumento, nem descrição de tessituras; isso provavelmente ocorre por não ser um instrumento
da orquestra. Portanto, faço a seguir essa descrição do violão e das suas possibilidades.

Vale deixar claro que quando cito o violão solista na formação de concerto considero,
nesses casos, que o violão é amplificado. Hoje em dia, é difícil imaginar um violonista solista
tocando na frente de uma orquestra sem amplificação, a não ser que essa escolha seja conceitual.

Apresento brevemente o Concerto para violão e pequena orquestra de Villa-Lobos


que foi uma obra marcante para a formação de concerto para violão, e pode se dizer, uma obra
polêmica por diversas razões, que são expostas neste momento do artigo.

Destaco a seguir o Concerto de Aranjuez em que analiso vários trechos da obra


e demonstro como o autor, Joaquim Rodrigo, conseguiu valorizar o violão, a orquestra e a
mistura dos timbres instrumentais.

Finalizo o artigo tecendo consideração finais sobre esse concerto destacando como
o compositor criou texturas orquestrais que permitem que o violão se sobressaia.

O timbre do violão

O timbre é um dos princípios básicos do som e está em toda parte; somos rodeados
por timbres. Porém, é difícil atribuir ao timbre uma definição clara, abrangente e definitiva.

1 Mauro Sergio Giuseppe Pantaleo Giuliani (1781-1829) foi um violoncelista, violonista e compositor
italiano (Nota da autora).

104
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

Nesse sentido, Manoury (1991, tradução da autora) afirma: “falar de timbre é como
falar de gosto.” As diferentes tentativas de apropriação do timbre, como componente musical,
ao longo do século XX, entraram em conflito tanto no que diz respeito à sua natureza quanto à
sua definição. Contudo, sabemos que hoje em dia, o timbre se impõe claramente como elemento
fundamental da composição. E, por mais que se sabia sobre o timbre, mais o horizonte desse
total entendimento fica distante.

Para introduzir essa análise sobre o timbre do violão, gostaria de lembrar um trecho
de um depoimento, de Andrés Segovia, considerado, até hoje, o pai do violão. Esse depoimento
foi concedido a Christopher Nupen autor de um documentário, de 1967, denominado Andrés
Segovia at Los Olivos.
De fato, [o violão] é como uma orquestra que olhamos com binóculos ao contrário.
O que quero dizer é que todos os instrumentos da orquestra estão dentro do violão,
mas com menos potencia sonora. Ele tem diferentes cores e timbres, e por isso é
necessário desenvolver essas qualidades do instrumento (SEGOVIA, apud NUPEN,
1967. Tradução desta autora).

Na maioria dos métodos de orquestração, podemos achar uma tabela que descreve o
timbre dos instrumentos segundo a tessitura em que eles se encontram; não se vê nada parecido
para violão. Diante disso é que proponho descrever os timbres do violão segundo as tessituras
e digitações normalmente usadas.

A fig. 1 a seguir ilustra o resultado dessa minha descrição.

105
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

Figura 1 – Descrição do timbre do violão


Fonte: elaborado pela autora (2017).

Ressalta-se, contudo, que essa descrição não pode ser considerada uma referência
perfeita, porque nela o papel da mão direita é totalmente deixado de lado.

Sabe-se que na produção do som o papel da mão direita é de suma importância, pois
é responsável por pulsar a corda. A maneira de fazer a corda vibrar pode mudar muito e o ato de
pulsar da corda depende de vários fatores tais como: qualidade das unhas, formato das unhas,
ponto onde a corda é pulsada, angulo de ataque da unha, dentre outros.

A afirmação de Traube (2004), transcrita a seguir, reforça essa minha ideia:


Os principais parâmetros que afetam o envelope espectral são a escolha das cordas,
a posição do ataque da corda, e a direção na qual a corda deixa o dedo/unha que
a acionou. Além de usar cordas diferenciadas, o método mais efetivo para variar o
timbre de uma nota é mudar o ponto de ataque da corda (TRAUBE, 2004, p. 20).

Dependendo do ponto onde a corda é pulsada, por exemplo, podemos obter timbres
bem diferentes: perto do cavalete o som é ponticello e tem uma característica metálica e nasal;
entre a boca e o cavalete o som é bem projetado e tem um caráter muito brilhante; na altura
da boca do violão, é considerado o ponto neutro de ataque; é um som cheio e brilhante com
excelente projeção. Ainda temos o som sul tasto, que ocorre quando a corda é pulsada entre as
casas XIV e XIX, e que tem uma característica doce.

Existe, também, a possibilidade de se obter um som flautado e muito doce, porém,


com pouca projeção, pulsando a corda na sua metade, na altura da casa XII.

É preciso levar em conta, também, a importância do uso das diferentes madeiras na


construção do instrumento. As madeiras que são tradicionalmente usadas para a fabricação do
tampo – parte vibrante mais importante do violão – são o Spruce e o Red Cedar.

Tradicionalmente, o spruce – o pinho – era mais utilizado para a construção do


tampo. Trata-se de uma madeira flexível que oferece uma boa projeção do som, que costuma ser
muito brilhante e claro. O pinho evolui com o tempo e, cabe ao violonista, amadurecer o violão
para deixar o som mais cheio.

O cedro entrou na construção do instrumento nos anos 60 do século XX e oferece um


som quente menos cristalino e com uma projeção menos percussiva que o pinho. Ao contrario
do pinho, o cedro não evoluiu muito ao longo do tempo.

106
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

O violão e as suas possibilidades na orquestra: Um exemplo em obras de Clarice Assad

Como foi dito na introdução deste estudo, a escrita para violão solista e orquestra é
um desafio para os compositores, especialmente no que diz ao equilíbrio dos timbres e volumes.

Sobre a mistura do violão com a orquestra, cito a seguir um depoimento que


compositora Clarice Assad me concedeu sobre sua experiência de compor para violão e
orquestra. A compositora tratou, especificamente, das obras “Album de retratos” para dois
violões e orquestra e “Saci Pererê” para violão e orquestra:
Eu levei muito tempo para fazer a orquestração, não queria fazer correndo, porque
quando eu fiz o primeiro concerto [Álbum de retratos para dois violões e orquestra,
nda], eu me ferrei... [...] eu achei que a minha escrita era bem balanceada na época,
mas não era... A orquestra engoliu o violão!

A primeira formação era bem maior, full strings, double quase tudo [se referindo aos
instrumentos de sopro, nda], era bem grande. A orquestra do Saci é bem menor.

Na época, mesmo as passagens com violão e quarteto não deram certo... acho que por
conta dos registros... não deu certo! Pizzicato era o único que funcionava. Quando
passava para arco, soava mal, engolia tudo...

E fiquei muito triste na época, então fiz uma análise da minha própria peça e fiquei
muito crítica comigo mesmo, e acho que acabei entendendo bastante coisa ali, até de
forma inconsciente... tentei identificar os erros, mas não foi totalmente consciente.

Eu diminuí os metais. Na percussão eu coloquei efeitos que não cobrem, porque só a


percussão às vezes engole até a orquestra. [...] Não adianta por os instrumentos para
brigar! Se tiver a orquestra toda tocando, então o violão tem que tocar em strumming
(acordes rasgueados, nda), aí tudo bem.

[...] em todo caso, quando a orquestração fica muito cheia, ou a orquestra está sozinha,
ou o violão fica fazendo strumming ou a orquestra fica dando acentos pontuais, ela
só está colorindo o que o violão está fazendo, sem engolir o violão, isso é uma outra
estratégia (ASSAD, 2017, entrevista concedida a esta autora).

Fica claro no depoimento de Assad (2017) que compor para violão solista e
orquestra constitui um desafio. Ao afirmar: “a orquestra engoliu o violão!”, a compositora
revela a dificuldade que há em equilibrar o solista com o resto da orquestra.

Assad (2017) oferece algumas pistas práticas e fáceis de serem aplicadas: a) a


orquestra usada na segunda tentativa, que obteve sucesso, foi “bem menor” do que na primeira
tentativa, b) diminuição do naipe dos metais, c) efeitos de percussão que não cobrem, d) enquanto
a orquestra inteira toca, o violão deve usar um efeito que oferece volume sonoro elevado, como,
por exemplo, o strumming – acordes rasgueados –, ou a orquestra deve tocar sozinha ou, então,
realizar acentos pontuais para não cobrir o violão.

107
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

Concerto para violão e pequena orquestra de Villa-Lobos

Esta obra do Heitor Villa-Lobos, encomendada por Andrés Segovia em 1944-46, é um


marco na historia do concerto para violão e orquestra. Desde a gênese da escrita do concerto,
surgiram várias questões, e uma delas era justamente o equilíbrio entre o violão e a orquestra.

Sobre esta questão, Marco Pereira escreve


Villa-Lobos nunca se sentiu muito embalado para utilizar o violão como instrumento
solista no meio de uma orquestra, apesar da importância que este havia ocupado em sua
formação musical. De um lado porque ele não via exatamente que combinações tímbricas
poderiam ser utilizadas. De outro, porque achava um tanto quanto aberrante a oposição de
um violão solo a toda uma orquestra, dado, sobretudo, ao seu baixo potencial. (PEREIRA
apud ALMEIDA, 2006, p.129)

Inclusive, é importante lembrar que o próprio Villa-Lobos era favorável ao uso da


amplificação para deixar a orquestra mais livre, como esclarece a seguir o depoimento do
Turibio Santos:
O compositor relutava, falta de tempo, e quem sabe, falta de entusiasmo com a combinação
violão e orquestra. (....) No concerto de estréia da peça, foi a própria Arminda que ajudou
a duplicar as indicações de piano nas partes. Um p virou dois p, dois viraram três e três
viraram quatro. A ponto de Villa-Lobos ficar inquieto, se a obra era para violão e orquestra
ou para violão simplesmente. É interessante notar aqui, que nós recolhemos o testemunho
de Villa-Lobos sobre o uso do microfone, no caso do violão e orquestra. Ele não somente
não se opunha, como era a favor do uso do microfone, a fim de que a orquestra pudesse
tocar com maior liberdade. (SANTOS, 1975, p.29)

Fica claro nestes depoimentos que a questão do equilíbrio entre o violão e a orquestra
era uma real preocupação para Villa-Lobos.

O próprio compositor escreve sobre o concerto:


“Obra escrita em 1951, para violão e uma orquestra equilibrada com recursos de timbre que
não se sobrepõe à sonoridade do solista. É constituída de três movimentos: Allegro Preciso,
2
Andantino e Andante, Allegro non Troppo”

Houveram alguns desentendimentos depois da entrega do manuscrito ao Segovia; um


deles foi que o concerto não possuía cadencia na primeira versão, então intitulada Fantasia
Concertante par violão e pequena orquestra. Segovia teve que ser extremamente insistente para
2 IDEM, Ibidem, loc. cit.

108
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

que Villa-Lobos conceda uma nova versão onde constaria uma cadencia, que se situa entre o
segundo e terceiro movimento. (SANTOS, p.29)

Por fim, Segovia teria feito algumas mudanças, como esclarece Almeida
Quando, no ano de 2003, Ângelo Gilardino trabalhava na catalogação dos arquivos deixados
por Segovia, o famigerado “Arquivo de Linares”, encontrou cópia do manuscrito da redução
para piano e violão da então Fantasia Concertante e, no meio dessa cópia, encontrou
também três folhas em que Segovia havia escrito algumas mudanças na partitura, segundo
Gilardino, à revelia do compositor, com o intuito de obter uma escrita mais violonística e
sonora para o instrumento. (ALMEIDA, 2006, p.131)

Concerto de Aranjuez: Uma breve analise da orquestração

O Concerto de Aranjuez foi composto, em 1939, pelo compositor espanhol Joaquim


Rodrigo (1901-1999). Encomendado em 1938 pelo Marquis de Bolarque, a estreia aconteceu
em Barcelona no dia 9 de novembro de 1940 com Regino Sainz de la Maza no violão junto
à Orquestra Sinfônica de Barcelona sob a regência de Cesar Mendoza Lasalle. (ALMEIDA,
2006).

O Concerto de Aranjuez é formado por três movimentos; Allegro con spirito,


Adágio e Allegro gentile e conta com os seguintes instrumentos: flauta I, flauta II e Piccolo,
oboé I, corne inglês (2º movimento), clarinete em si bemol, fagote, trompas em fá, trombone em
dó, violão com a 6ª corda em ré (solista), violinos I, violinos II, violas, violoncelo, contrabaixo.

A seguir analiso alguns trechos do Concerto de Aranjuez – primeiro e segundo


movimento – e demonstro de que maneira o compositor conseguiu valorizar o violão, a orquestra,
e a mistura de ambos. Essa análise se atrela essencialmente à instrumentação e orquestração dos
trechos escolhidos por mim, assim como a notação das dinâmicas.

O objetivo principal dessa análise é evidenciar as estratégias de escrita usadas pelo


compositor para valorizar o timbre do violão junto à orquestra.

No exemplo ilustrado na Fig. 2, é possível observar que o violão está sendo dobrado
por quatro instrumentos: oboé na região media-aguda, fagote na região aguda, violino II e viola
em pizzicato. O oboé nessa região tem um timbre agradável, não tão nasal, e não tão cortante.
O fagote na região aguda não é muito potente.

As indicações de staccato nos sopros ainda tendem a deixar as intervenções mais


leves. As cordas em pizzicato também têm um volume limitado, além de intervenções muito

109
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

pontuais. As tessituras escolhidas, as articulações e os efeitos não são anódinos.

Essas tessituras, articulações e efeitos escolhidos contribuem com a aparição da


voz do violão, que se encontra numa região favorável. Posteriormente, quando flautas, piccolo,
trompas, trombones, cordas e violão tocam juntos, é possível notar que as dinâmicas usadas vão
desde o pianíssimo (pp) até o pianississimo (ppp).

Figura 2 – Concerto de Aranjuez-Primeiro movimento p. 9


Fonte: Ernst Eulenburg Ltd ([s.d.]).

A indicação forte (f) é rara quando a orquestra toca junto ao violão. É possível
observar (Fig. 3) que o violão toca acordes arpegiados de seis notas. Essa técnica é bastante
sonora, sobretudo quando realizada como rasgueado com os dedos indicador-médio-anelar
(i-m-a). A indicação de dinâmica do acorde arpegiado é fortíssimo (ff). Provavelmente, essa
seja a maneira mais sonora de escrever para violão. Rodrigo arrisca todos os naipes das cordas
tocando forte junto ao violão, mas garante o volume do violão graças a uma escrita na qual o

110
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

instrumento tem bastante volume sonoro.

Figura 3 – concerto de Aranjuez-Primeiro movimento p.10


Fonte: Ernst Eulenburg Ltd ([s.d.]).

No trecho destacado a seguir (Fig. 4) é possível observar que a orquestra toca


fortíssimo com o violão em acordes fortíssissimo também; porém, assim que o violão toca
escalas rápidas, a orquestra começa a tocar notas acentuadas e pontuais.

O violão, quando executa frases rápidas, tem dificuldade em manter um som cheio
e um volume muito alto. É de suma importância aliviar, nesse ponto, a escrita da orquestra para
que as linhas do violão apareçam.

111
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

O violão, nesse trecho, encontra-se numa situação bastante virtuosística, tanto pela
velocidade das escalas quanto pela tessitura muito aguda que dificulta a execucção da passagem.
Mais uma vez, nesse tipo de situação, o violão tem dificuldade em manter um volume muito
elevado e o timbre, depois do Mi5 da casa XII, tende a ser mais magro e com menos projeção.

A articulação das flautas é staccato, enquanto os clarinetes tocam notas longas com
algumas intervenções pontuais.

Observamos que as flautas e os clarinetes estão numa região em que o timbre não é
tão brilhante, enquanto as cordas estão todas numa dinâmica pianíssimo e só executando notas
longas. Dessa maneira, o violão se sobressai graças aos cuidados da orquestração do Rodrigo.

Figura 4 – Concerto de Aranjuez-Primeiro movimento p.18


Fonte: Ernst Eulenburg Ltd ([s.d.]).

A maioria dos métodos de orquestração recomenda não usar os metais junto ao


violão. No trecho a seguir (Fig. 5), Rodrigo junta as trompas ao violão e às cordas. Porém, nota-
se que Rodrigo usa um registro não tão brilhante das trompas, numa dinâmica de pianíssimo,

112
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

enquanto o violão está tocando um mesmo acorde repetido de seis cordas, em rasgueado que
cobre toda a tessitura do instrumento, dando um resultado muito sonoro; as cordas tocam forte.

Provavelmente, essa escrita é a que dá mais volume ao violão. Temos aqui uma
orquestração arriscada em termos de equilibrio sonoro, compensada por uma escrita para o
violão, que garante volume suficiente para esse instrumento aparecer, mesmo com uma orquestra
bastante sonora.

Figura 5 – Concerto de Aranjuez-Primeiro movimento p. 20


Fonte: Ernst Eulenburg Ltd ([s.d.]).

No segundo movimento do concerto, (Fig. 6 e 7) o violão tem papel de solista


quase o tempo inteiro. A particularidade da escrita do violão nesse movimento é de ser uma
linha melódica única, com poucos acordes ou elementos armônicos tocados juntos. É um tema
suave e cantabile.

Neste caso, o desafio de destacar o violão é ainda maior porque mesmo a linha
melódica estando numa tessitura favoravel, ela soa menos do que quando o violão produz
acordes cheios.

Por outro lado, quando se tem uma única linha melódica, é mais fácil timbrá-la e,
assim, produzir um som cheio e projetado.

113
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

É relevante ressaltar que quando o violão está em situação de solar a melodia


principal, o resto da orquestra toca com a dinâmica pianissimo (pp) ou pianississimo (ppp).

Outra situação interessante de se notar é nos instantes em que o violão tem a linha
principal e é acompanhado pelo naipe de cordas ou parte deste.

No segundo movimento do Concerto de Aranjuez, aparecem duas configurações


orquestrais em que outros instrumentos intervêm com contracantos: uma vez com a trompa que
faz um comentário em notas longas e, outra vez, com o fagote, igualmente em notas longas.
Nessas duas configurações, a trompa e o fagote tocam pianíssimo (pp).

Figura 6 – Concerto de Aranjuez-Segundo movimento p. 39


Fonte: Ernst Eulenburg Ltd ([s.d.]).

114
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

Figura 7 – Concerto de Aranjuez-Segundo movimento p. 47


Fonte: Ernst Eulenburg Ltd ([s.d.]).

Nos exemplos citados nesse item, podemos ver claramente que Rodrigo adota
uma escrita meticulosa e delicada no que se trata do equilíbrio entre o violão e a orquestra.
As dinâmicas escolhidas para a orquestra se situam sempre num registro piano, e a orquestra
inteira só toca com dinâmicas mais intensas quando o violão sai de cena.

Considerações finais

Por meio das observações e análises que fiz de trechos do primeiro e segundo


movimentos do Concierto de Aranjuez, pude deduzir que a escrita do Rodrigo é muito delicada
e procura sempre valorizar o timbre do violão; que o compositor conseguiu um equilíbrio entre
o solista e a orquestra graças ao seu profundo conhecimento do violão e da instrumentação
orquestral, requisito obrigatório para quem pretende escrever para violão solista e orquestra.

No primeiro e segundo movimentos do Concerto de Aranjuez, quando o violão


está presente, a orquestra toca com uma dinâmica menos intensa e linhas que não brigam com
o timbre do violão, pois os demais instrumentos têm articulações e tessituras diferentes das do
violão, entre outras características.

Quando o violão tem a linha principal, as intervenções da orquestra são pontuais,


com articulações leves – staccato, por exemplo –, ou com linhas horizontais quando o violão
tem notas rápidas.

115
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA

Por outro lado, quando o violão não está presente, Rodrigo aproveita o
instrumentarium da orquestra, no seu pleno potencial, escrevendo dinâmicas fortes, em
tessituras privilegiadas, criando mais uma vez um contraste potente entre os trechos em que o
violão aparece e os trechos em que a orquestra se expressa liberada da obrigação de não cobrir
o solista. Dessa forma, a noção de contraste na escrita para violão solista e orquestra aparece
como uma estratégia eficaz.

A meu ver, a criação de texturas orquestrais leves e contrastantes, que valorizam cada
timbre da orquestra, é mais propícia na configuração de escrita para violão solista e orquestra.

Em vez de procurar a mistura dos timbres, criando assim uma massa sonora mais
cheia, parece-me mais adequada a procura de texturas orquestrais mais transparentes e mais
contrastantes nas quais o timbre do violão se sobressai mais facilmente.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Renato da Silva. Do intimismo a Grandiloquência. Trajetória e estética do


concerto para violão e orquestra: das raízes até a metade do século XX em torno de Segovia e
Heitor Villa-Lobos. 2006. 167f. Dissertação (Mestrado em Artes). Universidade de São Paulo
(USP). São Paulo, 2006.

ASSAD, Clarice. Entrevista de Elodie Bouny em 12 de maio de 2017. Rio de Janeiro. Skype.

RODRIGO, JOAQUIN. Concierto de Aranjuez for Guitar and Orchestra. [s.d.]. Disponível
em: <http://lib.mosconsv.ru/conslib/media/book/00005084.pdf >. Acesso em: 3 maio 2017.

MANOURY, Philippe. Les limites de la notion de “timbre”. In: BARRIÈRE, Jean-Baptiste


(org.). Le timbre, métaphore pour la composition. Paris: Christian Bourgois/IRCAM, 1991.
p. 293-335.

NUPEN, Christopher. Andrés Segovia at Los Olivos. Documentário. 1967. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=1QV_56-9flA>. Acesso em: 3 maio 2017.

TRAUBE, Caroline. Na interdisciplinar study of the timbre of the classical guitar. 2004.
218f. Tese (Doutorado em Filosofia). Music Technology Department of Theory Faculty of
Music McGill University Montreal, Canada. 2004.

116
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

MESA REDONDA IV:


OS CHOROS

117
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

“Alma Brasileira”: impressões e reflexões sobre o


“Choros nº5”
Maristela Rocha de Almeida Magalhães1
Universidade Federal de Juiz de Fora
maristelarocha.rocha@gmail.com

Thalyson Rodrigues2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
tharodriguesaraujo@gmail.com

Resumo: A série dos 14 “Choros”, escrita no período entre 1920 e 1928, é uma das mais conhecidas
obras do compositor carioca Heitor Villa-Lobos (1887/1959), um dos mais representativos com-
positores da América. Pretendemos, através de uma análise estrutural, elucidar como o compositor
transcreveu a estética do choro para a linguagem pianística no “Choros nº 5”, intitulado “Alma
Brasileira”. Analisaremos, pois, alguns dos recursos musicais utilizados pelo compositor na obra,
bem como o seu contexto histórico, tendo como tempo-espaço o Rio de Janeiro em 1925, data de
composição da obra. Aspectos relacionados à capital da República e ao mecenato serão também
abordados no trabalho.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Choro. Choros nº 5. Alma Brasileira.

Abstract: The series of 14 “Choros”, written in the period between 1920 and 1928, is one of the
best-known works by the Rio de Janeiro composer Heitor Villa-Lobos (1887/1960), considered the
largest in the Americas. We intend, through a structural analysis, to elucidate how the composer
transcribed the aesthetics of choro into the pianistic language in “Choros nº 5», entitled «Brazilian
Soul». We will analyze, therefore, some of the musical resources used by the composer in the work,
as well as its historical context, having as space-time Rio de Janeiro in 1925, work›s composition
date. Aspects related to the Republic capital and to patronage will also be approached in the work.
Keywords: Villa-Lobos. Choro. Choros nº 5. Alma Brasileira.

A música, eu a considero, em princípio, como um indispen-


sável alimento da alma humana.
*Villa-Lobos

[...] tudo é triste. Há uma tonalidade triste, uma maneira


triste de ser [...] todos têm um ar de chorões e eis o título
Choros dado no Brasil para todo esse gênero de canções
em lamento.
** Villa-Lobos apud ASSIS
1 Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (com tese em Sociologia da
Música), mestre em Comunicação e Cultura pela UFJF (dissertação em Comunicação e Música), especialista em
Música Brasileira e Educação Musical pela Universidade Vale do Rio Verde, bacharel em Comunicação Social,
Jornalismo, pela UFJF. Experiência como professora e coordenadora de cursos no ensino superior em instituições
privadas. Pesquisadora de música brasileira com ênfase no século XIX e primeiras décadas do século XX – com
várias publicações, palestras proferidas e participações em congressos. Professora de Educação Musical com ex-
periência em instituições públicas e privadas.
ROCHA, Maristela. Chiquinha Gonzaga e o Forrobodó: O choro da cidade nova eternizou-se na história. 18º
Congresso Brasileiro de Sociologia, 2017, Brasília.
______. O maxixe excomungado e o Choros nº 1: da periferia aos grandes mestres. II Simpósio Nacional Villa
-Lobos. 54º Festival Villa-Lobos. Ano Egberto Gismonti, 2016, Rio de Janeiro.
2 Mestrando Profissional PROMUS-UFRJ, sob orientação da Profa. Dra. Miriam Grosman. Professor
substituto – Piano - do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (Bacharelado e Licen-
ciatura em Piano). Bacharel em piano pela Escola de Música da UFRJ. Foi premiado em concursos nacionais de
piano, nos quais se destacam o Concurso Cora Pavan Caparelli (MG-2014) e o Prêmio Estímulo Mozart (RJ-2007).
Trabalhou também como pianista nos musicais “Os Miseráveis” (Montagem acadêmica, UFRJ-2012) e em
“Be careful, It’s my heart”, com canções de Irving Berlin , com Laura Lobo e Darwin del Fabro.

118
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

Parece-nos inexequível, segundo parâmetros científicos, analisar qualquer obra de


arte se desvinculada, descontextualizada do tempo-espaço na qual foi produzida. Dessa forma,
torna-se impossível dissociar Heitor Villa-Lobos do Rio de Janeiro do seu tempo. Ademais, é
desafiador apresentar um trabalho um dos mais representativos compositores da América, após
tantas publicações acadêmicas, biografias, reportagens, dentre outros. Não obstante, cabe a nós,
imersos na academia musical, redescobrirmos, rememorarmos personalidades que legaram um
vasto repertório que raramente chega ao grande público através da mídia massiva. Falar ou es-
crever sobre o compositor, bem como interpretá-lo, é sempre muito instigante, sobretudo pelas
múltiplas influências perceptíveis em suas obras.

Antes de adentrarmos, especificamente, na análise de “Alma Brasileira”, nos reme-


teremos, ainda que brevemente, ao Rio de Janeiro da década de 1920, incluindo, especialmente,
o choro como gênero popular, o mecenato dos Guinle e as contradições de um Brasil que pre-
tendia ser industrial e moderno, mas que continuava arraigado ao modus vivendi europeu. Além
do mais, o artista brasileiro ascendia em capital simbólico (BOURDIEU, 1989; 2007) quando
aprimorava seus estudos e apresentava suas obras no exterior. Nas primeiras décadas do século
XX, a França era o destino pretendido, como foi o caso de Villa-Lobos.

Com o ciclo dos “Choros”, Villa-Lobos apostou no choro como gênero eminente-
mente popular e no emprego de materiais folclóricos e regionais. A série apresenta diferentes
formações, ou seja, não segue o formato original do choro. É possível, pois, encontrar peças
para piano e violão solos, bem como obras para grupos camerísticos e orquestra, algumas com
uma densa orquestração. Outra peculiaridade é a numeração do ciclo, que não obedece a uma
ordem cronológica. Além disso, cada peça foi dedicada a uma personalidade. O “Choros nº 1”,
por exemplo, foi composto para violão em 1920, e consagrado ao compositor carioca Ernesto
Nazareth (1863-1934).

O “Choros nº 3”, “Picapau”, composto para coro masculino e septeto de sopros,


foi inspirado em uma canção dos índios Parecis, “Nozani-ná”, recolhida pelo escritor e antro-
pólogo carioca Roquette-Pinto (1884-1954), e dedicado à artista plástica Tarsila do Amaral
(1886-1973) e ao escritor Oswald de Andrade (1890-1954), amigos paulistas do compositor. Já
o “Choros nº 103”, “Rasga o Coração”, composição de 1926, é dedicado ao poeta e compositor
maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863-1946).

Para este trabalho, escolhemos o “Choros” nº 5, de 1925, dedicado ao banqueiro,


mecenas e dirigente esportivo do Fluminense Football Club entre 1916 e 1931, Arnaldo Guinle
3 O texto consiste em sílabas e vocalizes, sem sentido literário, como efeitos onomatopaicos. Com o cres-
cendo das vozes, aparece uma melodia lírica à maneira da modinha “suburbana”, extraída de uma canção popular,
com letra do poeta seresteiro Catulo da Paixão Cearense, denominada “Rasga Coração” (MEC/DAC/MUSEU
VILLA-LOBOS, 1972).

119
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

(1884-1963). Obra conhecida do repertório pianístico, “Alma Brasileira” permite uma leitura
muito particular do discurso musical utilizado pelo compositor, o que pode resultar em uma
interpretação sui generis, seja apaixonada, melancólica ou nostálgica.

Ressaltamos que não é nosso intuito enaltecer a figura de Heitor Villa-Lobos, isso a
história já o faz, nem mesmo criticar sua personalidade, ou induzir o receptor às nossas próprias
impressões acerca de “Alma Brasileira”. Antes de tudo, convidamos o leitor a fazer uma imer-
são nessa obra, a partir da nossa proposta de estabelecer um diálogo sobre os elementos com-
posicionais utilizados por Villa-Lobos no “Choros nº 5”, nos remetendo, também, à linguagem
do choro tradicional.

Rio de Villa, futebol, choro e mecenato

Rio de Janeiro, capital da República, 1925. O mineiro Arthur Bernardes presidia


o Brasil, desde 1922, em meio à oposição da opinião pública carioca, bem como a conflitos
oriundos de sucessões presidenciais e fraudes eleitorais. Vigorava ainda a política do “café com
leite”, por meio do qual São Paulo e Minas Gerais se revezavam na presidência da República.
Aumentava, gradativamente, o trânsito de automóveis importados em uma cidade ainda arbo-
rizada. O jornalista Irineu Marinho fundava o jornal “O Globo”, faziam sucesso as revistas de
humor “O Malho”, “Fon Fon”, “Careta” e “D. Quixote”; e cresciam os movimentos operário e
tenentista. A radiodifusão ainda era novidade no país e desenvolvia-se, lentamente, a indústria
fonográfica.

O teatro de revista brasileiro ainda era sucesso no Rio de Janeiro, e Heitor Villa-Lo-
bos figurava entre os artistas que ganharam mais visibilidade a partir da Semana de Arte Moder-
na de 1922. A high society desfrutava o glamour do hotel Copacabana Palace, a “vanguarda da
civilité” (ELIAS, 2011). Para o cronista e teatrólogo carioca João Paulo Emílio Cristóvão dos
Santos Coelho Barreto (1881-1921), o João do Rio, a cidade caminhara, desde o final do século
XIX, na direção da “Frivola City, a cidade do espetáculo”
No trottoir roulant da Grande Avenida passa, na auréola da tarde de inverno, o Rio
inteiro, o Rio anônimo e o Rio conhecido – o Rio dos miseráveis ou o Rio cuja vida se
prolonga de legendas odiosas e invejas contínuas. Mas ninguém vê a miséria. Podem
parar nas terrasses dos bares, podem entrar pelas casas de chá os mendigos, resse-
quidos esqueletos da seca do norte, estrangeiros de falar confuso, exploradores da
caridade, (...) a luz de inverno lustra os aspectos, faz ressaltar os primas belos, apaga
a fealdade. Não há gente desagradável como não há automóveis velhos. Ninguém os
vê. Os olhos estão nas mulheres bonitas, nos homens bem vestidos, nos automóveis
de luxo. É um desfilar de ópera (RIO, 1917, p. 9).

Villa-Lobos, que desde a infância já demonstrava o talento e interesse pela música,


construiu uma carreira repleta de excentricidades, com atitudes que, muitas vezes, o colocavam

120
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

em uma posição outsider (ELIAS, 1995; 2000) perante o establishment da sociedade, e que o
tornaram conhecido pela vida conturbada, além do seu extenso legado artístico, bem como o
sistema de educação musical desenvolvido e sua obra pedagógica – fatos amplamente expostos
e detalhados em várias obras e biografias. “Até o governo Vargas, sobreviver foi uma dificulda-
de constante na vida do compositor. Chega a ser irônico saber que hoje, Villa-Lobos é o artista
brasileiro que mais recebe direitos autorais do exterior” (GUÉRIOS, 2003, p. 202).

Segundo recorte temporal deste trabalho, vamos apontar o compositor em sua pri-
meira viagem a Paris, em 1923, quando ele começou a, efetivamente, utilizar materiais mais
especificamente nacionais em suas obras. O nacionalismo constitui uma das mais poderosas
crenças sociais do século XIX até a atualidade. “Mesmo em uma análise sociológica prelimi-
nar, o nacionalismo revela-se como um específico fenômeno social característico das grandes
sociedades-Estados industriais no nível de desenvolvimento atingido nos séculos XIX e XX”
(ELIAS, 1997, p. 142).

Villa-Lobos pretendia, então, participar do ethos nacionalista que já era tendência


também no Brasil. “Desde então, comporia músicas brasileiras e faria preleções emocionadas
sobre sua nação e seu pertencimento ao imaginário nacional” (GUÉRIOS, 2003, p. 141). É
preciso, pois, ressaltar que a linguagem musical utilizada estava alinhada à música ocidental e
europeia, ou seja, o material coletado recebia sempre um tratamento pertinente à música de con-
certo, o que resultou no reconhecimento de seus pares, ao habitus da classe artística em voga
(...) tal reconhecimento obtido por Villa Lobos adveio não somente da transposição de
alteridades socioculturais ao plano da sonoridade, em prol da constituição de um ‘na-
cionalismo musical brasileiro’, mas pela promoção concomitante de uma bricolagem4
bem efetuada por ele entre elementos culturais brasileiros e franceses ou, mais espe-
cificamente, entre distintas matrizes teórico-culturais e estético-musicais brasileiras e
francesas (BUSCACIO E BUARQUE, 2016, p. 21).

“Fica claro que o Brasil que Villa-Lobos representa em sua música é o Brasil selva-
gem e exótico” (GUÉRIOS, 2003 p. 142), o que é perceptível nas peças que compõem os “Cho-
ros”. Segundo o próprio compositor, o choro apresenta uma forma de composição inovadora,
que sintetiza várias modalidades dessa música espontânea, tendo como principais elementos o
ritmo e qualquer melodia popularizada, “que aparece de quando em quando, acidentalmente.
Os processos harmônicos são também quase que uma estilização completa do próprio original”
(VILLA-LOBOS apud GUÉRIOS, 2003, p. 142).

Além da influência europeia, certamente, Villa-Lobos foi também influído, ins-


pirado por compositores chorões, como Chiquinha Gonzaga (1847-1935), Ernesto Nazareth
4 Para os autores, bricolagem é uma “prática criativa que rompe parcialmente com dicotomizações e hie-
rarquias; não as elimina, mas, por sua própria operacionalidade, torna-as mais moventes e tensionais”. Os autores
partem da hipótese de que Heitor Villa-Lobos tenha recriado musicalmente a noção de identidade nacional ao
reconfigurá-la sob um primitivismo romântico e moderno, simultaneamente.

121
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

(1863-1934), Anacleto de Medeiros (1866-1907), João Pernambuco (1883-1947) e Pixinguinha


(1897-1973) - “que conferiu maior visibilidade ao gênero e produziu a mais importante obra
chorística de todos os tempos” (DINIZ, 2003, p. 27). Por sinal, o compositor, maestro e arranja-
dor Alfredo da Rocha Vianna Filho, Pixinguinha, era apreciador da linguagem musical de Villa
-Lobos e o considerava um gênio, conforme relata Antônio Barroso Fernandes: “Villa-Lobos
para mim é um Stravinski, um Wagner, essa gente toda”. Ainda segundo Pixinguinha
Ele era garoto. Ia sempre na minha casa na rua Itaipu, número 97. Tocava violão muito
bem, como sempre tocou. Às vezes, acompanhava meu pai. Mais tarde é que toquei
uns chorinhos para ele. Sempre gostou de música [...] ele ia na minha casa porque
admirava os ‘chorões’. Às vezes até fazia um acompanhamento no violão (...). Mas
o negócio era meio antigo e ele tinha uma formação moderna. Por isso talvez não
acompanhasse bem, para nós. Mas ele gostava (PIXINGUINHA apud FERNANDES
In: MARTINS, 2014, p. 160).

Os 14 “Choros” aparecem com destaque na obra villalobiana. “São a obra-prima


do Villa. Ali ele não procura ser classicista, e se inspira na música das ruas do Rio de Janeiro
(...). A forma, para Villa-Lobos, às vezes podia ser uma camisa-de-força. Ele precisava de liber-
dade e encontrou essa liberdade nos Choros”, explica o maestro John Neschling, que recebeu
em Paris, em 2009, o Diapason d’Or pela integral do ciclo, junto a Osesp (NESCHLING In:
PERPETUO, 2009, p. 23).

“Inovador e imaginativo, Villa-Lobos foi capaz de criar uma nova linguagem, uma
linguagem sua, uma linguagem que tem a sua marca: melodias cativantes, ritmos interessantes
e planos sonoros diversos”, explica a pianista Sonia Rubinsky, que registrou em oito discos
a integral pianística de Villa-Lobos. “Para isso, ele desenvolveu uma técnica pianística que
exige um grande controle de ritmo, de dinâmica e de pedal. As grandes novidades pianísticas
apresentam-se mais claramente em obras como Rudepoema, Prole do Bebê nº 2 e Choros nº5”
(RUBINSKY In: PERPETUO, 2009, p. 23).

Se choro e futebol não dão samba, ambos inspiraram uma das músicas mais co-
nhecidas do gênero. Trata-se do “Um a zero”, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, uma home-
nagem ao lendário jogo realizado no estádio do Fluminense Football Club, uma das primeiras
agremiações de elite5 a adotar o futebol no Rio de Janeiro. Na disputa, o Brasil ganhou seu
primeiro título internacional de futebol, derrotando o Uruguai por 1x0, no terceiro Campeonato
Sul-Americano, em 1919. E a partir do final da década de 1920, o futebol, inicialmente conside-
rado um esporte elitizado e praticado em clubes elegantes, começou a ser popularizado. Coube
ao tricolor carioca Arnaldo Guinle6, em especial, o incentivo financeiro para que Villa-Lobos
5 As escolas grã-finas passaram, a partir da primeira década do século XX, a adotar o futebol como forma
de recreação para os discentes. Em 1903, os aristocratas do café, da Associação Athlética Ponte Preta, formaram o
primeiro time de futebol organizado no Brasil e, na década de 1910, são criados o The Bangu Athletic Club, o Ca-
rioca, o Andaraí, o Mangueira, o Fluminense, o Vila Isabel e o Sport Club Corinthians Paulista (CALDAS, 2011)
6 O mecenato Guinle incluía também um projeto de pesquisa, e músicos como Pixinguinha, Donga e João

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MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

pudesse mostrar suas obras em Paris. Certamente, o compositor não teria saído do país sem os
recursos da família Guinle
Graças a um grupo de amigos, pôde Villa-Lobos fazer frente às primeiras despesas e
abrir caminho no meio musical. Foram eles: Arnaldo e Carlos Guinle, Paulo Prado,
o conselheiro Antônio Prado, Geraldo Rocha, Laurinda Santos Lobo, Graça Aranha
e Olívia Guedes Penteado. Falando a esse respeito, disse-me, certa vez, o maestro:
‘Eram tantos que, de gota em gota, me enchiam o papo’. O apoio decisivo, na segunda
viagem a Paris, foi de Carlos e Arnaldo Guinle, generosos mecenas que foram motiva-
dos a auxiliá-los por interferência direta de Arthur Rubinstein (MARIZ, 2005, p.94).

Villa-Lobos não conseguiu imediatamente repercussão com o seu trabalho em Pa-


ris, o que só aconteceu no ano seguinte com um concerto na Salle de la Société des agriculteurs
de France. Todos os compromissos financeiros ficaram por conta de Arnaldo Guinle, o que pos-
sibilitou a contratação de uma orquestra e a produção de partituras na Casa Max Eschig7, e, por
conseguinte, desencadeou uma série de apresentações. Entretanto, o maestro não conseguiu se
manter economicamente com o apoio recebido e teve que retornar ao Brasil. “Cinco meses mais
tarde, o músico estava de volta ao Rio de Janeiro. Apesar da decepção, Arnaldo ainda lhe deu de
presente um piano de cauda e pagou seu transporte da França para o Brasil” (BULCÃO, 2015).
Carlos Guinle, irmão de Arnaldo, propiciou o retorno de Villa-Lobos a Paris, em 1927, graças
à intervenção do pianista polonês, naturalizado estadunidense, Arthur Rubinstein (1887-1982)
Diga-me Carlos, você gostaria de ser célebre após a sua morte? O arquiduque Ru-
dolph, o príncipe Lichnowsky e o conde Waldstein teriam sido esquecidos se não
tivessem tido a sorte de entender e amar a música de Beethoven e de se tornarem seus
benfeitores (...). Carlos, no Brasil, aqui mesmo, vive um autêntico gênio, sem dúvida
o único da sua espécie em todo o continente americano (...). Como todos os grandes
criadores, ele não dispõe de meios para tornar a sua obra conhecida em todo o mundo,
a não ser que seja auxiliado por um grande mecenas. Eu pensei em você, em primeiro
lugar... (RUBINSTEIN apud ASSUMPÇÃO, 2014).

O contato de Villa-Lobos com outros compositores que também se estabeleceram


em Paris no início do século XX é notado de várias maneiras em sua produção musical, como
a influência do compositor, pianista e maestro russo Igor Stravinski (1882-1971) e a “Sagração
da Primavera”8. Dessa forma, “as músicas que compôs na década de 1920 – incluindo a série
Pernambuco tinham como missão transcrever para partituras cantigas de compositores populares, coletadas em
suas pesquisas, o que deveria resultar, posteriormente, na organização de uma antologia. Essas pesquisas propicia-
ram o encontro dos Guinle com Villa-Lobos, pois coube a ele organizar o material colhido, hoje conhecido como
Fundos Villa-Lobos (BULCÃO, 2015).
7 A Max Eschig colaborou com parte dos custos, e Villa-Lobos teve, ainda, que recorrer ao apoio financeiro
dos amigos, entre eles Tarsila do Amaral (1886/1973) e Oswald de Andrade (1890/1954).
8 A estética apresentada por Stravinski explorava timbres (com ênfase na percussão), ritmos, estruturas
orquestral e harmônica de forma inovadora. Somado a isso, também causou estranheza por parte do público a
performance criada pelo bailarino russo Vaslav Nijinsky (1889/1950). Com cenário do artista plástico Nicholas
Roerich, a estreia aconteceu no Théâtre des Champs-Élysées, em 29 de maio de 1913. Há que se ressaltar que
o escândalo causado pela “Sagração da Primavera” não foi apenas motivado pelo fator artístico, mas envolveu
também o embate gerado por culturas diferentes (no caso, a francesa e a russa), já que, naquele momento, a França
ainda detinha o poder como centro cultural europeu.

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MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

dos Choros e o Amazonas – foram diretamente tributárias do impacto que a música “primitiva”
e “selvagem” do compositor russo teve sobre ele” (GUÉRIOS, 2003, p. 167).

Alma brasileira em forma de choro

O choro tradicional apresenta 3 partes: A, B, C, com repetições (forma rondó),


temas independentes e ligação entre as modulações (normalmente tonalidades vizinhas). Fre-
quentemente, há uma simplicidade harmônica que acompanha a rapidez de andamento das
melodias. Nas melodias, é possível encontrar arpejos relacionados às progressões harmônicas,
escalas e sequencias cromáticas (VALENTE, 2014, p. 45). No que se refere à estrutura melódi-
ca do choro, a maioria vincula-se ao instrumento para o qual foi composta (o instrumento solis-
ta). Entretanto, com a inserção de novos instrumentos aos tradicionais flauta (solo), cavaquinho
(centro) e violão (baixaria), nota-se a variação funcional de cada um, ou seja, o cavaquinho, por
exemplo, pode assumir a função solista. Além disso, a capacidade de improvisação é condição
básica para uma música que integre uma roda de choro, e as modulações imprevistas acabam
por desafiar a capacidade de performance e senso polifônico dos chorões.

Segundo Rafael dos Santos, “Os elementos musicais característicos do choro são,
no seu aspecto estrutural, de natureza melódica, harmônica e rítmica, sendo que, num conjunto
típico de choros, eles estão distribuídos entre os seus diferentes instrumentos”, entretanto
Tais elementos estruturais, entretanto, não são originais nem exclusivos do choro,
e sua simples ocorrência não é suficiente para defini-lo como tal. Existe ainda um
outro aspecto importante, que é a maneira como ele deve ser executado, e que está
relacionada com práticas interpretativas específicas da música popular, tais como uma
sonoridade leve que permita manter a textura transparente, realização do ritmo de
forma relaxada em relação ao pulso, uma articulação que enfatize a síncopa, e forma
de frasear, geralmente sem exageros de dinâmica (SANTOS, 2002, p. 8).

O “Choros nº 5” se apresenta em 3 seções: A, B e C (A A’ B C A’’), e a delimitação


das seções abrangem os compassos:

A: (exposição) c. 1 – 11 em Mi menor
A’: (variação de A) c. 12 – 24 em Mi menor
B: (seção contrastante no tom homônimo) c. 25 – 35 em Mi Maior
C: (desenvolvimento como expansão de B) c. 36 – 64 em Dó# menor
A’’: (reexposição) c. 65 – 79 em Mi menor

Com variada riqueza de planos e matizes sonoros, a peça demanda uma investi-
gação quanto ao uso de toques diferenciados, à pedalização, ao “uso do peso do corpo”, aos
ataques para projeção sonora, bem como aos elementos que buscam caracterizar e atenuar os

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MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

diferentes planos sonoros durante a execução. Distinto do choro tradicional, que geralmente
é composto em compasso binário, o “Choros nº 5” foi criado em compasso quaternário, pro-
porcionando uma fusão da complexa escrita polifônica de Villa-Lobos à rítmica tradicional do
choro, o que torna a peça um desafio para o intérprete.

Villa-Lobos utiliza o recurso de ostinato durante toda a peça, visando a criação de


um “clima atmosférico” ideal para o desenvolvimento melódico. Esse ostinato é estabelecido
a cada nova seção, e, como podemos ver na seção A, essa “atmosfera” é estabelecida desde os
dois primeiros compassos da peça, que também podem ser considerados como uma pequena
introdução da mesma. Em conformidade com Carlos Alberto Assis
A inspirada e perspicaz brasilidade de Villa-Lobos manifesta-se através de figurações
rítmicas baseadas em danças populares e em ostinatos que ajudam a criar um ambien-
te sonoro denso e dinâmico que permeia toda a obra e sustenta o discurso musical,
unificando as seções (ASSIS, 2009, p. 66).

Nota-se, pois, o ostinato caracterizado pela sequência de acordes realizada inicial-


mente pela mão direita e, em seguida, pela esquerda.

Sobre a variedade rítmica apresentada na peça, podemos citar trechos de complexi-


dade para o executante como, por exemplo, o desdobramento do tema A, devido à sobreposição
dos planos sonoros adjacentes (planos: melódico, harmônico, figuração pianística em semicol-
cheias na mão direita e baixos), com ritmos diversos, o que caracteriza mais um exemplo da
complexidade mecânica no “Choros nº 5”.

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MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

Na seção B, em Mi Maior, podemos observar uma proposta contrastante realizada pelo


compositor, uma vez que o mesmo utiliza alguns elementos: a utilização do tom homônimo do
tom principal (Mi menor) em dinâmicas fracas, a indicação de andamento “um pouco mais mo-
vido”, a melodia em oitavas na mão direita, a mudança no acompanhamento da mão esquerda,
gerando um novo ostinato rítmico e harmônico, além da manutenção do plano intermediário de
semicolcheias na mão direita (iniciado em A).

Já a seção C (desenvolvimento como expansão de B em Dó# Menor) denota a parte


de maior interesse rítmico da peça, desenvolvendo o clímax central próximo ao compasso 50.

A fusão do ritmo do choro com o movimento de marcha, característico da seção,


aponta o requinte da escrita composicional de Villa-Lobos, que perpassa o choro tradicional,
através de uma escrita tipicamente idiomática e própria de suas composições.

Considerações finais

Heitor Villa-Lobos compôs cerca de 1.000 obras, e foi o compositor brasileiro que
alcançou maior reconhecimento internacional na primeira metade do século XX. Destinou à
música “exótica”, folclórica e popular, um tratamento erudito para “civilizados”, conquistando
respeito de seus pares, apoio de mecenas, amigos e, posteriormente, do governo Vargas. Con-
seguiu notoriedade em Paris, então centro cultural europeu. Apesar das posturas pessoais extra-
vagantes e personalidade forte, que causavam transtornos em sua vida pessoal e profissional e o

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MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

colocavam em uma posição outsider, conquistou, por seu talento, persistência e um tempo-es-
paço favoráveis, um lugar profícuo no establishment da sociedade da sua época.

Inspirado pela nascente música popular urbana e pelo choro enquanto gênero, criou
a série dos 14 “Choros” com especificidades pertinentes à sua genialidade: a começar pela li-
berdade da forma estrutural e pela formação instrumental: solo, de câmara ou sinfônica. Se em
sua origem o choro era executado pela formação de flauta, violão e cavaquinho, posteriormente,
ganhou novos instrumentos como o piano, o clarinete, trombone, oficleide, dentre outros. Com
Heitor Villa-Lobos, novas possibilidades de formação instrumental foram ainda mais explora-
das. A fase áurea dos conjuntos de música de choro, oriundos do século XIX, se estendeu até o
período em que a atração do teatro de revistas, do disco e do rádio vieram oferecer novas opções
de entretenimento, numa linguagem mais atraente para o público ávido por inovações.

Em “Alma brasileira”, o piano é explorado a ponto de exigir do intérprete uma en-


trega de sentimentos que deverá ser traduzida através da pesquisa sonora que propiciará toques
diferenciados. Além da análise estrutural realizada neste trabalho, pudemos dar pistas ao leitor
do contexto no qual a obra foi criada, através do convite à breve viagem ao Rio de Janeiro de
1925.

Ademais, o caráter nostálgico, sentimental, introspectivo do “Choros nº 5” é capaz


de sintetizar muito do espírito musical de Heitor Villa-Lobos e de apontar uma outra faceta bem
diferente da mais divulgada, do homem enérgico, tempestuoso e imprevisível: a sensibilidade
aflorada da “alma brasileira”. No que se refere à nossa hipótese de trabalho, podemos afirmar
que o compositor proporcionou a essa peça um tratamento inusitado, que extrapola as caracte-
rísticas originais do choro: da forma à instrumentação.

REFERÊNCIAS

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Villa-Lobos. São Paulo: Martin Claret Editores, 1987. pág. 69.

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ASSUMPÇÃO, Maurício Torres. A história do Brasil nas ruas de Paris. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra, 2014.

127
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REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

______. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989.

BULCÃO, Clovis. Os Guinle: a história de uma dinastia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

CALDAS, Waldenyr. Temas da Cultura de Massa. Música, Futebol, Consumo. São Paulo:
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ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Trad. Sergio Goes de Paula. Rio de Janeiro:
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______. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Trad.
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______. O processo civilizador. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das rela-
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MARIZ, Vasco. Villa-Lobos. O Homem e a Obra. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora,
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MEC/DAC/MUSEU VILLA-LOBOS. Villa-Lobos, sua obra. Programa de Ação Cultural. Rio


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PERPETUO, Irineu Franco. 50 anos sem Villa-Lobos. Revista Concerto. Ano XV. Nº 156.
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REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”

RIO, João do. Pall-Mall Rio: o inverno carioca de 1916. Rio de Janeiro: Villas, 1917.

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros para piano solo
Canhôto e Manhosamente de Radamés Gnattali. Disponível em http://www.musica.ufmg.br/
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VALENTE, Paula Veneziano. Transformações do choro no século XXI: estruturas, perfor-


mances e improvisação. Tese de doutorado pela USP. Área de concentração: Processos de cria-
ção musical. São Paulo, 2014. Disponível em file:///C:/Users/Silvio/Downloads/PaulaVenezia-
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129
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Villa-Lobos e o Choros N.° 4 (1926): Ruptura ou


Tradição?
Reginaldo Thimóteo1
email: thimbone@hotmail.com

Resumo: O presente exame tem por finalidade trazer à tona dois importantes aspectos refe-
rentes ao Choros N. º 4 (1926) de Villa-Lobos, a utilização de um quarteto de metais formado
por 03 trompas e 01 trombone, descrita em algumas publicações como uma excepcionalidade
ou inovação de nosso compositor. O segundo, diz respeito a “descoberta” de um manuscrito,
depositado no Museu Villa-Lobos.
Palavras-chave: Villa-Lobos, Choros, Trompa, Trombone, Tradição, Música de Câmara.

Villa-lobos and choros no. 4 (1926): rupture or tradition?


Abstract: The purpose of this article is to bring to light two important aspects concerning
Villa-Lobos Choros No. 4 (1926), the use of a brass quartet formed by 03 horns and 01 trom-
bone, described in some publications as an exceptionality or innovation of our composer. The
second, concerns the “finding” a manuscript, deposited at the Villa-Lobos Museum.
Keywords: Villa-Lobos, Choros, Horn, Trombone, Tradition. Chamber Music.

1. O CHOROS N. º 4 (1926), DE HEITOR VILLA-LOBOS


Este pequeno CHOROS é sem dúvida uma obra importante, uma verdadeira síntese
do espírito dos CHOROS, embora não tenha o brilho de outras obras da série. O pró-
prio Villa-Lobos disse que este “é talvez o mais significativo dos CHOROS na sua
forma e significação elevadas.” (NEVES, 1977, p. 46) (Grifo do autor)

O Choros nº 4 foi composto em 1926, sendo dedicado ao mecenas Carlos Guinle


(1889-1959), que patrocinara sua segunda viagem e estada na França em 1926. Com aproxi-
madamente 04 minutos de duração, a obra foi escrita para três trompas e um trombone, tendo
sua estreia mundial na Salle Gaveau2, em Paris, no dia 24 de outubro de 1927. Neste mesmo
concerto foram também apresentados os Choros nº 2, nº 7 e nº 8, além de algumas Serestas e o
Rudepoema (1921-26). (GUÉRIOS, 2009, p. 177,178).

1 Reginaldo Thimóteo é mestrando em Práticas Interpretativas na Universidade Federal do Rio de Janeiro


(UFRJ), sob a orientação do Prof. Dr. Antonio J. Augusto. Atua como primeiro trombone na Orquestra Municipal
de Santos e como chefe de naipe na Banda Sinfônica de Cubatão. É Professor de trombone, metais graves e prática
de banda no Programa Guri Santa Marcelina desde 2008. Durante o ano de 2015 e primeiro trimestre de 2016
atuou como primeiro trombone (alto) junto à Camerata Paulistana & Coral Paulistano Mário de Andrade - THMSP,
realizando o ciclo de missas e oratórios de Mozart, Handel e Haydn. Foi professor de trombone e regente da Banda
Sinfônica Acadêmica nas XVI, XVII e XVIII edições do Festival Eleazar de Carvalho – Fortaleza – CE. Especia-
lizou-se nos principais Festivais de Música do País dentre eles: Festival de Inverno de Campos do Jordão – SP;
Femusc – SC; Oficina de Música de Curitiba – PR; Encontros da Associação Brasileira de Trombonistas; Projeto
Bone – SP; e internacionais: Trombonanza - ARG e Latzch Trombone Festival – ALE. Graduou-se na Faculdade
Mozarteum de São Paulo (FAMOSP) em 2007 com o Professor Gilberto Gianelli.

2 Através de dois e-mails, tentamos contato com a direção da Salle Gaveau na França, afim de colhermos
qualquer documento referente a este concerto de estreia, no entanto, infelizmente não obtivemos nenhum retorno
por parte da direção da ilustre sala de espetáculos.

130
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

Na estreia da peça, o trombonista relacionado no programa3 foi Jules Dervaux (?-?),


um dos três laureados com o primeiro lugar no concurso realizado anualmente pelo Conservató-
rio de Paris, no ano de 1911 (CARLSON, 2015, p. 85), além dos trompistas Edmond Entraigue
(?-?), Jean-Lazare Pénable (?-?), e Mr. Marquette (?-?).

A primeira gravação brasileira do Choros n. º 4 foi realizada em 1978, no Rio de


Janeiro, em formato de LP. O álbum intitulado de Choros da Câmera contemplou todos as
obras da série para instrumentos solistas e grupos cameristicos de pequeno porte, sendo eles os
Choros nº 1, 2, 3, 4, 5, 7 e o Bis. Os metais responsáveis por esta gravação foram os trompistas
Sdenek Svab, Thomas Tritle, Carlos Gomes e o trombonista Jessé Sadoc.

Destacamos também o álbum, A Obra de Câmera para Sopros de Heitor Villa-Lo-


bos , lançado em 2005, pelo Quinteto Villa-Lobos e convidados, um importantíssimo registro
4

contendo a obra cameristica do compositor em sua totalidade, que contou com a participação
do trombonista tenor João Luiz Areias.

Somando a estes registros, ainda mencionamos a gravação ao vivo de um DVD


em 2006, pela Sociedade Musical Bachiana Brasileira5, intitulado de Quadros de Uma Alma
Brasileira, contendo os Choros n. º 1,2,3,4,5,7, Bis, o Sexteto Místico e o Nonetto, na qual
destacamos com Marco della Fávera, ao trombone tenor; o CD Heitor Villa-Lobos, Choros n.
º 6,1,8,4,9 lançado pela OSESP6 em 2008, gravado por seu trombonista baixo titular Darrin
Milling.

Além disso fazemos referência a um recém-lançamento em março de 2017, pelo


quarteto Trombonismo7, que afora dedicar inúmeras obras brasileiras exclusivas para esta for-
mação, contem uma faixa dedicada ao Choros nº 4, transcrita para essa formação.

O período que antecede e compreende a produção da série Choros e outras obras


do compositor foi também marcada pela estreia de importantes obras cameristicas e orquestrais
de importantes compositores e com diferentes tipos de orquestrações, mas que contemplavam
pelo menos um trombone em sua formação. Dentre elas citamos História do Soldado (1918),
Pucinella (1920), Sinfonia para Sopros (1921) e Octet (1924) de Stravinsk, Octandre (1923) de

3 A relação dos músicos encontra-se descrita no catalogo geral de obras do compositor: Villa-Lobos e
sua Obra -Versão 1.0.1 - (2010, p.13), organizado pelo MVL; e no link do portal Imslp.org: http://imslp.org/wiki/
Ch%C3%B4ros_No.4%2C_W218_(Villa-Lobos%2C_Heitor), acesso em 11/10/2017
4 http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI04961, acesso em
16/10/2017
5 https://bachiana.weebly.com/, acesso em 16/10/2017
6 http://www.osesp.art.br/paginadinamica.aspx?pagina=CDheitorvillalobos1468e9, acesso em 16/10/2017
7 Trombonismo: Quarteto de trombones paulista formado em meados de 1980. Informações sobre a disco-
grafia: http://www.concerto.com.br/contraponto.asp?id=3682, acesso em 16/10/2017

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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

Varese, La Création du monde (1923), de Milhaud.

Estes compositores eram conhecidos e admirados por Villa-Lobos, como é o caso


de sua citação sobre Stravinsk, ‘[...]. Mas acima de todos, acima de escolas e agremiações, pla-
na o gênio...’. (Sérgio Milliet,1926) Apud (GUÉRIOS, 2009, p. 165)

A série Choros produzida por Villa-Lobos traz em resumo, elementos e aspectos ab-
sorvidos do ambiente cultural musical urbano, sobretudo influenciados pelo choro e pela seresta
por volta do início do século XIX, além é claro de todo o aporte folclórico brasileiro, como por
exemplo a possível alusão contextual feita à canção popular nordestina infantil Rema que rema
(figura 1), coletada por Mário de Andrade em 1920 e publicada em seu livro Ensaio Sobre a
Música Brasileira (1928), presente no solo da segunda trompa um compasso antes do número
15 de ensaio (Animé) (figura 2). (ALBUQUERQUE, 2014, p. 199)
Figura 1 – Rema que rema, melodia nordestina recolhida por Mário de Andrade (1920)

Fonte: (ANDRADE, 1928, p. 99)


Figura 2 – Excerto do solo presente na segunda trompa no Choros N. 4 (1926), Villa-Lobos

Fonte: Imslp.org8

A partir desses elementos é possível perceber tamanha a importância com que o


compositor empregou e tratou tanto os fatores rítmicos que são – “...de certo modo, o fio con-
dutor de cada obra, o ponto unificador e, ao mesmo tempo, a razão primeira dos contrastes obti-
dos. “; e harmônicos – “...revela sempre uma liberdade tonal, [...], à bitonalidade e à politonali-
dade, atingindo mesmo em certas obras total atonalidade”; quanto os fatores da textura em suas
orquestrações – “...[...], as obras de câmara ou os trechos de caráter câmeristico [...] revelam o
cuidado extremo na combinação de diferentes elementos em misturas timbrícas originais e de
real transparência” (NEVES, 1977, p. 11).

Embora nossa pesquisa não se configure sob o plano da análise musical e harmôni-
8 Disponível em: http://petruccilibrary.ca/files/imglnks/caimg/6/64/IMSLP40964-PMLP89574-Villa-Lo-
bos_-_Ch%C3%B4ros_No._4_(score).pdf, acesso em 25/12/2017.

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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

ca, é importante registrar alguns aspectos que correspondem a estas perspectivas. Assim como
muitas obras de Villa-Lobos, incluir o Choros nº 4 em uma forma musical, é uma tarefa das
mais árduas, pois cada uma delas trazem ao longo de seu processo composicional parâmetros
que por vezes fogem àqueles sistemas mais tradicionais de enquadramento quanto à forma,
gênero ou estilo.

Neste ponto Neves (1977, p. 26), é tácito em afirmar que: “...não existe uma forma
definida comum a toda a série Choros”, do mesmo modo que Paulo de Tarso (2003) discorren-
do sobre a produção musical brasileira pós-modernista, também dialoga com este pensamento
e cita que a obra de Villa-Lobos “...é marcada pela falta de rigor estilístico.” (SALLES, 2003,
p. 186).

Verifica-se, no entanto, ainda que de maneira isolada, uma lembrança à proposta da


forma AB dentro do âmbito estrutural da obra:
Numa nota aposta à partitura dos Choros Villa-Lobos os propõe como uma “nova
forma” musical, pretensão desconsiderada pela maioria dos estudiosos. É claro que os
Choros, tomados isoladamente, não se parecem formalmente entre si. Entretanto, os
Choros nº 4 e 10 formam um par notável, em que a forma AB se manifesta de modo
semelhante, apresentando ambos uma sessão B com caráter de música popular (res-
pectivamente dobrado e marcha). (SALLES, 2009, p. 233) (Grifo nosso)

Ainda que não possamos atribuir aos Choros uma configuração única e específica,
se faz necessário o apontamento de Marcos Lacerda (2011) feita sobre parte do Choros nº 4
enquadrando-o sob o plano do gênero harmônico9, identificando sessões que correspondem ao
diatonismo, pentatonismo, octatonismo, escalas de tons inteiros e modos.

Não obstante, ressaltamos a recorrência de um elemento vital, que exerce um papel


de grande relevância, não apenas neste nosso objeto de estudo, mas que está presente quase que
na totalidade de suas obras, o ostinato10, citado como “...o alicerce dos Choros.” (BERNSTEIN,
9 A discussão sobre gêneros passa a ser abordada com foco especial por Allen Forte em artigo de 1988.
Richard Parks, em seguida, reelabora a teoria em âmbito bastante amplo e abstrato. Ele distingue entre gêneros
complexos e simples. Ao gênero simples, que nos interessa aqui, ele dá a seguinte definição: “A simple genus
is a collection of scs [set-class set] related to a single cynosural sc [set-class] by inclusion, as either subsets or
supersets of that sc” (Parks, 1998, p. 207). O conceito de gênero refere-se, portanto, a uma coleção de notas dita
cynosural, isto é, focal, assim como qualquer outra coleção relacionada a ela. Importa-nos também o fato de que o
termo cynosural redefine o que Allen Forte designava por progenitor-set, isto é, um conjunto referencial marcante,
do qual se originam ou ao qual se relacionam outros conjuntos. Ambos procuram então estabelecer elementos
que deixem reconhecer um conjunto dado como focal. Segundo as regras de preferência apontadas por Parks, um
gênero simples não precisa ser necessariamente reconhecido em estado bruto, isto é, livre de interferências, e pode
apresentar similaridades com “familiar pitch constructs” (LACERDA, 2011, p. 278)
10 Termo que se refere à repetição de um padrão musical por muitas vezes sucessivas. Um ostinato meló-
dico pode ocorrer no baixo (ver BASSO OSTINATO e GROUND), como melodia numa voz superior (p.ex., o
“Dargason” da Suite de St. Paul, de Holst), ou simplesmente como uma sucessão de alturas repetidas (p. ex., o
“Carrilon” da Suite L’Arlésienne nº 1 de Bizet). A progressão de um acorde constantemente repetido produz um
ostinato harmônico como na Berceuse de Chopin, enquanto que um ostinato rítmico ocorre no Bolero de Ravel.

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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

2014, p. 58).

Essa mistura de estruturas, muitas vezes encobertas por texturas maiores e mais
densas, revelam que o compositor não se via engessado e invólucro em meio aos modos ope-
randi da música tradicional, mas se mostrou disposto a sacrifica-los afim de expandir os rumos
de sua música.

Encerrando os pormenores e os diferentes pontos de vista sobre a ‘irregularidade’


com que Villa-Lobos ergueu toda a série Choros, incluímos a citação do musicólogo alemão
Giselher Schubert (1944), que ao fazer um comparativo entre os aspectos composicionais do
Choros a estética musical do início do século XX, sintetiza de maneira singular os processos
criativos de Villa-Lobos dizendo que:
Os Choros de Villa-Lobos, por outro lado, quebra o contexto tradicional da ordem
musical sem constituir sua própria ordem (como no caso dos compositores acima
mencionados ([Eisler, Hindemith e Shoenberg]); os temas destas obras, a indiferen-
ça da orquestração, a concepção sem forma da forma, uma incoerência tendenciosa
em todos os eventos musicais como uma espécie de negação do contexto musical
tradicional (que, é certo, é aqui experimentado como uma nova qualidade estética)
se reflete nesses trabalhos como um gesto evidente, como uma maneira indiferente e
concreta de fazer música, que engloba toda a heterogeneidade.’11 (TARASTI, 1995, p.
85) apud (Lidov 1980, 55-59) (Grifo nosso)

Outro dado de grande relevância no Choros n. º 4 no âmbito da orquestração e um


dos cernes de nossa reflexão, é a utilização das três trompas e um trombone, que num primeiro
instante pode soar como uma revolucionária e inusitada ideia formulada pelo próprio Villa-Lo-
bos: “...pelo ineditismo ou raridade da composição do conjunto. ” (NÓBREGA, 1973, p. 45)
(Grifo nosso), ou vista de maneira equivoca como uma obra composta ‘...para um incomum
quarteto de metais.” (BARROS, 2014, p. 109) (Grifo nosso).

No entanto, esta mesma formação, foi utilizada pelo austríaco Sigismund Neukomm
(1778-1858), em seu Quatuor pour 3 cors et trombone pour être exécuté à la Grotte tuonante
près le Scoglio di Virgilio dans le Golfe de Naples, em 1826, quando passou por Nápoles, sul
da Itália. Neukomm fora provavelmente influenciado pelo trompista francês Antoine Clapisson
(1808-1866), que também compôs uma peça com esta mesma formação, variações sobre Au
Clair de la Lune (? -?). Embora tenha sido citada em um periódico de Leipzig12, em 1828, não

(SADIE, 2008, p. 687)


11 ‘Villa-Lobos’s Choros, on the other hand, break the traditional context of musical order without constitu-
ing their own order (as in the case of the aforementioned composers [Eisler, Hindemith, Schoenberg]); the themes
os these works, the indifference of the orchestration, the formless conception of form, the tendentious incoherence
in all musical events as a sort of negation of the traditional musical context (which, to be sure, is experienced here
as a new esthetic quality) is reflected in these works as a self-evident gesture , as an indifferent and concrete way of
making music, which engulfs all heterogeneity.’ (TARASTI, 1995, p. 85) Apud (Lidov 1980, 55-59). (Grifo nosso)
12 Disponível em: http://imslp.org/wiki/Handbuch_der_musikalischen_Literatur_(Whistling,_Carl_Frie-
drich), no livro Instrumental Woks p. 321. Acesso em 11/07/2017

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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

encontramos a data de sua composição.

Não podemos afirmar que Villa-Lobos teria tido conhecimento ou acesso a estas
composições, mas em todo o caso, a proposição desta instrumentação não foi uma simples
invenção ou mera constituição do acaso, mas sim uma tradição de escrita formalizada na mú-
sica europeia no início do século XIX. A seguir inserimos pequenos extratos do quarteto de
Neukomm (figuras 3 e 4), gentilmente cedidos por Christopher Larkin13 (1947), trompista e um
dos diretores do London Gabrileli Brass Ensemble14:

Figura 3 – Contracapa e partitura do primeiro movimento do Quatour (1826) de Neukomm, S.

Fonte: Arquivo cedido por Christopher Larkin15

13 Biografia completa de Christopher Larkin (1947): http://www.hyperion-records.co.uk/a.asp?a=A260, acesso em


11/07/2017
14 London Gabrileli Brass Ensemble (1963-2013), grupo de metais Londrino de reconhecida expressão internacional,
responsável por divulgar o repertório para metais dentro das mais diversas formações e períodos da história da música. Infor-
mações mais detalhadas no site http://www.lgbe.co.uk/history.html, acesso em 10/07/2017.
15 Ibidem 87. 135
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

Figura 4 –Excerto do quarto e último movimento do Quatour (1826), datado e assinado pelo
próprio Neukomm, S.

Fonte: Arquivo cedido por Christopher Larkin16

O fato de Villa-Lobos usar esta mesma formação, leva-nos a pensar que o compo-
sitor assim como os outros citados acima, teria tido em mente usar a sonoridade do trombone
como uma voz mais densa, mediante as outras três vozes mais agudas destinadas às trompas,
além, é claro, fazê-lo atuar como solista em algumas sessões.

A diferença entre esta utilização do trombone por Villa-Lobos e por Clapisson e


Neukomm se ampliava na possibilidade de fornecer um baixo que transitava facilmente e de
maneira homogênea em qualquer tonalidade, condição inversa das trompas utilizadas neste
período, que ainda eram naturais, ou seja, ainda não possuíam as válvulas rotativas presentes
nos instrumentos de hoje.

2 – Manuscrito Versus Partitura Editada

Dentre os materiais disponíveis para análise do Choros nº 4 (1926), tivemos acesso


a duas fontes17: uma cópia manuscrita da partitura (A) cedida pelo Museu Villa-Lobos, e uma
partitura (B) com as respectivas partes cavadas, editadas e publicadas em 1928 pela editora

16 Ibidem 87.
17 A fonte é o suporte físico, manuscrito, impresso ou digital que contém uma ou mais obras, ou parte das
obras. (FIGUEIREDO, 2014, p. 30)

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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

Max Eschig.

Assim sendo, consideramos a cópia manuscrita como uma fonte primária que, de
acordo com Carlos Alberto Figueiredo é:
...qualquer documento originado do autor: anotações várias ou correspondências, nas
quais planos sobre a obra podem ser mencionados, sketchs, rascunhos, manuscritos
acabados, páginas datilografadas, provas de impressão ou o conteúdo de um disquete
de computador. (2014, p. 69) (Grifo do autor)

Embora esse material primário não contenha nenhuma assinatura, ao que tudo in-
dica é oriundo do próprio compositor, segundo a descrição do catálogo publicado pelo Museu
Villa-Lobos (Villa-Lobos e Sua Obra, 2010, p. 13).Na tentativa de encontrarmos mais alguma
fonte manuscrita da obra, entramos em contato, via e-mail, com a Academia Brasileira de Músi-
ca, questionando a possibilidade de ela ainda possuir algum outro material à parte daqueles que
possuímos ou foram publicados. Este questionamento se deu em função de que o próprio Villa
-Lobos algumas vezes finalizava uma “prova final” de suas obras antes de envia-las as editoras.

A ABM nos respondeu não possuir nenhum outro material do Choros n. º 4, a não
ser o impresso pela Max Eschig.

Como podemos perceber abaixo (figura 5), este manuscrito foi inicialmente organi-
zado por Villa-Lobos numa pauta musical que, sugere até certo ponto um caminho estruturado
a partir de um pensamento pianistico, já com ênfases nas articulações, ligaduras e acentos; in-
dicações de dinâmica, andamento e fermatas; apoggiaturas, glissandos, algumas rasuras, além
é claro da indicação da orquestração logo no topo da página destinada a (3 Corns em fá e um 1
Trombone de vara).
Figura 5 – Excerto da primeira página do Manuscrito do Choros nº4 (1926), Villa-Lobos

Fonte: Museu Villa-Lobos

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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

No que tange a partitura e suas cavas impressas pela Max Eschig, atualmente se en-
contram disponíveis gratuitamente para download no portal eletrônico Imslp.org., e em ótimas
condições de visualização. Este material à qual tomamos como fonte secundaria, a qual tem
sido usada para performance, cumpre a função de uma edição prática, ou seja, aquela que, “...
é destinada exclusivamente a executantes, sendo baseada em fonte única, na verdade qualquer
fonte, com utilização de critérios ecléticos para atingir seu texto. ” (FIGUEIREDO, 2014, p.
66).

Numa breve comparação entre as fontes, queremos estabelecer alguns pontos diver-
gentes relacionado entre ambas:

PARTITURA EDITADA (B) MANUSCRITO (A)


No início da peça, a anacruse do segundo Este mesmo trecho está descrito uma oitava
para terceiro compasso, temos um Dó 3 para abaixo, um Dó 2:
o trombone;
No primeiro compasso de 2 temos uma col- Uma semínima ligada a mínima pontuada do
cheia; compasso anterior;
O terceiro tempo do segundo compasso de 5 O mesmo local possui duas colcheias no ter-
possui um colcheia pontuada e semicolcheia ceiro tempo;
na terceira trompa;
No 6, encontramos a indicação de surdina Não há a indicação para a inserção da surdi-
para a primeira trompa; na;
Em 7, é solicitada a retirada da surdina, ‘Via Não há solicitação para a retirada da surdina;
surdina’;
Os quatros compassos depois de 7, estão A proposta original traz colcheias acrescidas
notados com figuras de semicolcheias acres- de pontos (staccato (.); a última nota foi des-
cidas de pontos (staccato (.); além disso a crita como Mi natural;
última nota deste quarto compasso foi notada
como um Fá sustenido;
Nos quatro compassos de 8, o compositor Aqui, a parte que representaria o trombone
alterna o grupo de tercinas como a terceira a ou de certa forma a ‘mão esquerda do piano’,
segunda trompa, concedendo um soli de dois conduz toda a sessão de tercinas, sugerindo
compassos ao trombone; que o soli permaneça na segunda trompa;
Antes do início de 10, temos uma fermata e a Não temos nenhuma das duas indicações;
indicação ‘Via surdina’ (Sem surdina);
No último tempo de um compasso antes de Não há o registro desta fermata;
11, verificamos a ocorrência de uma fermata.

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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?

Nos dois primeiros tempos do quarto com- No manuscrito temos o registro de um Dó


passo de 13 há uma correção de uma nota real, soando uma quinta acima, um Sol,
Sol para a nota Lá, o mesmo acontece no oi- como descrito na parte editada;
tavo compasso e nos dois últimos tempos do
nono compasso, todas na primeira trompa;
Nas sessões de 15 a 19, a terceira trompa No manuscrito, Villa-Lobos parece ter omiti-
cumpre um papel apenas de reforço rítmico; do esse apoio rítmico, mantendo seu dialogo
musical em apenas três vozes; nos dois pri-
meiros compassos de 15, encontramos um
pequeno rascunho, uma guia composta por 6
notas (exemplo musical);
Em 18, temos uma repetição formada por Nesta sessão do manuscrito, Villa-Lobos já
três compassos iguais ao 17, sendo que no inicia 19; além disso encontra-se uma rasu-
último ele usa o segundo compasso de 17, ra de quatro compassos, que correspondem
para conectar a preparação da coda final; à cifra 20 da parte editada, sendo reescrita
logo em seguida para a finalização da obra;
Há uma correção no terceiro compasso antes Esta correção confere com o Mi bemol real,
do fim, foi acrescentado o bemol na nota Si descrito pelo compositor;
no terceiro tempo da primeira trompa;

Além do processo de transposição feita às trompas, diante desta confrontação pude-


mos perceber e encontrar inúmeros itens faltantes, que aparecem devidamente complementadas
na partitura editada. Os que mais nos chamaram atenção nesta contraposição foram: as mudan-
ças na forma de escrita das colcheias para semicolcheias constantes em 7; a inserção posterior
do reforço rítmico da terceira trompa nas sessões de 15 a19; além dos quatro compassos rasu-
rados encontrados em 19.

Estas alterações trazem consigo pelo menos duas possibilidades, a primeira seria
aquela que citamos anteriormente e da qual acreditamos ser a mais lógica, de que o próprio
Villa-Lobos de fato tenha editado uma “partitura final” a partir deste manuscrito primário; a
segunda, seria de os editores terem finalizado apenas os poucos detalhes inexistentes referentes
a notação musical, acentuação, expressões, acentos, etc., de acordo com o contexto musical
e aparato técnico que possuíam naquela década, a partir de um ‘segundo manuscrito’ com as
ideias musicais devidamente finalizadas pelo compositor.

Analisando o contexto geral cada uma das fontes, podemos ter uma visão abran-
gente em que o processo composicional de Villa-Lobos, de certa forma se manteve inalterado
desde o início, já diretivo e intencionado com relação as questões de fraseado, articulação,
dinâmica, andamento e até mesmo com relação a disposição de cada uma das vozes, ou seja, a

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RUPTURA OU TRADIÇÃO?

partitura mesmo após sua edição, em sua essência ainda reflete a primazia do objeto sonoro do
compositor. Este pensamento difere do ideal proposto por Carlos Alberto Figueiredo (2014, p.
66), quando sugere que um dos tipos18 de edição prática, tem como intensão trazer as intenções
sonoras “do editor” e não aquelas previstas pelo compositor.

As rasuras encontradas no manuscrito, também externam parte do caminho com-


posicional de Villa-Lobos e se justificam como ‘... sendo o processo de criação um “ato per-
manente de tomada de decisão”, significa a rasura a consequência das prováveis discussões
que o autor teve consigo mesmo, no ato de compor sua obra’. (SALLES, 1992, p. 31) Apud
(FIGUEIREDO, 2014, p. 73)

3. – Conclusão

A importância deste Choros verificada pelo próprio Villa-Lobos no âmbito de sua


significação enquanto expoente máximo da cultura brasileira, também dimensiona o quanto
nosso compositor contribuiu de maneira substancial para a música de câmara brasileira, bem
como todo o conjunto de obras cameristicas de sua coleção. Ainda temos um imenso campo de
pesquisa a ser investigado em nossa recente história musical, entretanto, é possível arrazoarmos
que tanto o Choros n.º 3 (1925) (01 clarinete, 01saxofone alto, 03 trompas, 01 trombone) quan-
to o Choros n.º 4 (1926) (03 trompas, 01 trombone), figurem como as primeiras composições
brasileiras originalmente escritas neste segmento dentro século XIX, que tenham recebido a
inclusão do trombone.

A contribuição de Villa-Lobos para os sopros, também reflete um aspecto relevante


da estética musical francesa no século XIX, a produção de obras confeccionadas especialmen-
te para as madeiras e metais, como citou Tarasti: “Mais do que o som descoberto dos sopros,
particularmente os metais, então estavam na moda...”19 (1995, p. 103 – tradução nossa), não
obstante, essa perspectiva chega a ser quase um contrassenso, se levarmos em consideração
os numerosos trabalhos destinados aos quartetos de cordas, ponto alto da tradição camerística
europeia durante o Classicismo e Romantismo, percebida também em Villa-Lobos com a pro-
dução de seus dezessete quartetos.

O resultado final expresso pela partitura editada, ajuíza e cumpre quase que em sua
18 Tipos de edição prática: ‘O primeiro tipo de edição prática enfatiza a realização sonora, trazendo sinais de
vários tipos (de dinâmica, de articulação, de fraseado), que tem a intensão de conduzir o executante que a utiliza.
Não se trata, porém, de trazer a intenção sonora do compositor, mas a do editor...’ ‘O segundo tipo de edição prática
é aquela que provoca modificações na textura da composição original, normalmente com o objetivo de ampliação
do número de executantes, além de arranjos, transcrições, reduções para piano, etc. ...’ (FIGUEIREDO, 2014, p.
66,67)
19 No original: “(...) moreover, the bare sound of winds, particularly that of the brass, was then in fashion...”
(Tarasti, 1995, p. 103)

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totalidade as informações constantes e descritas pelo compositor na fonte primária, sobretudo


a instrumentação à qual se destinou, a de um típico e não fora do comum quarteto de metais.

Coincidentemente este Choros, de Villa-Lobos, foi composto a exatos 100 anos


(1826-1926) após o quarteto de Neukomm, e apesar de possuírem tantas diferenças na estrutura
do trato orquestral em decorrência dos distintos períodos técnicos e estéticos que os separam,
não podemos deixar de especular uma possível homenagem, ainda que velada, de Villa-Lobos
para com o austríaco, que teve uma importante passagem e atuação em nosso país em meados
de 1816. Embora essa teoria possa soar como um fato isolado, devemos considera-la se tomar-
mos como base o registro da obra O Canto do Cisne Negro (1917), para violoncelo e piano de
Villa-Lobos, extraído do poema sinfônico O Naufrágio de Kleônicos (1916), um retrato mani-
festo de O Cisne (1886), de Camile Saint-Saëns (1835-1921) (SALLES, 2009, p. 20) , execu-
tado pelo próprio Villa-Lobos em 1909 no Rio de Janeiro, acompanhado ao piano por Ernesto
Nazaré (1863-1934). (PILGER, 2013, p. 59)

Esperamos que esta reflexão possa contribuir de forma a elucidar e compreender os


possíveis caminhos percorridos por nosso compositor, bem como enriquecer de maneira signi-
ficativa a história da música brasileira de câmara no âmbito da academia.

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