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Anais do III Simpósio Nacional Villa-Lobos:
análise musical, história e conexões
55º Festival Villa-Lobos.
1ª Edição
Rio de Janeiro
Sarau Agência de Cultura e PPGM-UFRJ
2018
COMITÊ EDITORIAL
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: ANÁLISE MUSICAL,
HISTÓRIA E CONEXÕES.
Comissão organizadora: PROF. Dr. Pauxy Gentil-Nunes, PROF. Dr. Antonio J. Augusto
Comissão Científica: PROF. Dra. Lúcia Barrenechea; PROF. Dr. Humberto Amorim e PROF.
Dr. Antonio J. Augusto
1ª Edição.
ISSN 2527-1652
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Índice
CONFERÊNCIAS
Villa-Lobos e(m) seu tempo
Humberto Amorim 06
A Dança Frenética: ecos da crítica no Rio de Janeiro e São Paulo nos anos 1920
Maria Aparecida dos Reis Valiatti Passamae 73
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
CONFERÊNCIAS
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Conferência I
Humberto Amorim
UFRJ – humbertoamorim@ufrj.br
Articular uma relação de Villa-lobos no (e com o) tempo tem sido um desafio per-
cuciente para musicólogos, ensaístas e estudiosos. Ora se distanciando e ora se amalgamando,
duas visões - mito vs homem - têm orientado a abordagem desta personagem múltipla e esqui-
va, cujo instante-já parece deslocar-se através de furos multifacetados na rede de um presente
(ou melhor, presentes) enquanto instância humana e histórica. Como abordar Villa-Lobos e(m)
seus tempos? Ou, ainda, como (des)compreender Villa-Lobos e(m) nosso tempo? São inquieta-
ções que serviram de fagulha para o desenvolvimento deste ensaio.
A primeira articulação - a do mito - parece sugerir a significação de uma vida de-
sencarnada, alheia, em parte, às vicissitudes, desafios e possibilidades oferecidas pelo campo
sociocultural durante uma determinada trajetória artística. Este modo de apreender Villa-Lobos,
ainda tão marcante nas publicações sobre o tema e na visão geral sobre o compositor, insinua
uma relação paradoxal sobre a personagem: Villa só pode estar em seu (ou em nosso tempo) na
medida em que está fora dele, como um estranho extemporâneo ou gênio predestinado, fadado a
viver sob o signo de um thelos que já fora (pré) determinado antes e/ou depois de sua existência.
Tal visão, inclusive, parece ter sido instigada pela atuação e construção de si pro-
movida pelo próprio compositor. Enquanto era vivo, “ao mesmo tempo que fazia músicas, agia
no sentido de inseri-las em diferentes universos simbólicos e de atribuir-lhes sentidos e signi-
ficados” (GUÉRIOS, 2003: 27)1. Articulou-se, quase sempre (e de modo especial a partir da
década de 1920), para a afirmação da imagem de um artista transcendente. O desejo de instituir
uma “natureza cósmica” para sua produção e existência fica explícito em vários depoimentos,
dados em situações diversas, bem como nos escritos daqueles que com ele conviveram.
Em artigo publicado na revista Ariel, comentando o retorno de Villa-Lobos recém-
chegado de Paris, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) nos revela como “a ardente fé” e
“egotismo” do compositor já desfraldavam a busca por uma identidade, uma imagem pessoal:
Villa-Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega de Paris espera-se que venha cheio
de Paris. Entretanto Villa-Lobos chegou de lá cheio de Villa-Lobos. A ardente fé, a
vontade tenaz, a fecunda capacidade de trabalho que o caracterizam, renovam a cada
momento em torno dele aquela atmosfera de egotismo tão propicia às criações verda-
deiramente pessoais (BANDEIRA, 1924: 475).
1 Para mais detalhes, cf. o capítulo 1, Imagens de Villa-Lobos, em: (GUÉRIOS, 2003: 16-34).
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
As lendas que se formavam sobre Villa eram também uma consequência do espírito
mordaz, alegre e programaticamente polêmico do compositor. Em Paris, dera entre-
vista, dizendo-se antropófago, e lembra Terán que, num jantar, descrevia como se des-
trinchava um corpo humano, e, depois de minuciosa encenação, assustava com esga-
res (acentuados por um olhar vivo, aberto e penetrante) seu interlocutor. A descrição,
geralmente, causava o espanto que ele esperava. Era hábil: uma de suas brincadeiras
consistia em jogar para o alto, aparando-o sem prejuízos, um jogo de xícaras de café:
xícara-pires. Emborcava-as, jogando-as para o alto.
A sensação que obteve foi maior quando, certa vez, numa casa de família, fez a brin-
cadeira com um jogo caríssimo de xícaras chinesas.
Era o ‘charmeur’, a personalidade que sabia cativar plenamente e que atingia seus
objetivos através de meios de persuasão personalíssimos (CARVALHO, 1988: 162).
A tentativa de fixar sobre sua personalidade esta aura charmosa e persuasiva fica
ainda mais evidente no autorretrato delineado pelo compositor em diversos depoimentos, en-
trevistas e manuscritos:
Se, quando no turbilhão das raças de uma nação nova, surge um artista de tempera-
mento, embora sem um meio suscetível e suficientemente educado como as tradicio-
nais civilizações dos velhos países, meio de um povo em formação, por conseguinte
difícil de compreendê-lo, ele sofrerá fatalmente os embates de uma luta inglória no
2 Pianista espanhol (Valencia 1895 - Río de Janeiro 1964) que alcançou grande sucesso em Paris, na
década de 1920. Segundo relato de Segovia: “(...) Tomás Terán, na crista da onda, lotando as salas do concerto
e levando a platéia ao delírio. Quando toca Albeniz, até mesmo os críticos chamam-no ‘Toreador del piano’...”
(Apud CARVALHO, 1988: 158). A amizade entre Terán e Villa-Lobos era tão próxima que chegaram a morar
juntos durante a primeira estada do compositor em Paris (1923-1924).
3 Tradução livre de: “Yo no soy folklorista – me decía Villa-Lobos, recientemente -. ‘El follklore no me
preocupa. Mi música es como es, porque la siento así. No cazo temas para utilizarlos después. Escribo mis com-
posiciones con el espíritu de quien hace música pura. Me entrego completamente a mi temperamento. Hallan muy
brasilena mi música!. Es, sobre todo, porque refleja una sensibilidad absolutamente brasileña. Esa es mi sensibili-
dad; no lograria tener outra... Casi todos mis motivos musicales son de mi invención. Y cuando, em mis Choros,
por ejemplo, asoma un motivo típico, siempre ha sido transformado de acuerdo com mi temperamento. Y si alguno
recuerda, por su carácter – como afirmaba Florent Schmidt – alguna canción popular de São Paulo, es porque esas
canciones son las que arrullaron mi niñez, siendo, por lo tanto, las más aptas a conmoverme. Las siento del mismo
modo que un ruso sentiria los estribilos de cocheros de Petrouchka’...”
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
Julgo que sempre devamos crer na intenção de toda obra de arte, embora ela nos pare-
ça confusa na primeira impressão. Porque ela nasce de uma função divina, misteriosa,
inexplicável e passa, fatalmente, para uma outra função no mesmo estado psíquico em
que nasceu. (Acervo do Museu Villa-Lobos).
Peço perdão a todos de ter que falar um pouco da minha vida em relação a esse Brasil.
Mas é necessário que possa, talvez, servir de exemplo aos jovens de seguir essa mes-
ma trilha, esse mesmo destino que Deus me deu.
Nunca na minha vida procurei a cultura, a erudição, o saber e mesmo a sabedoria nos
livros, nas doutrinas, nas teorias, nas formas ortodoxas. Nunca. Porque o meu livro era
o Brasil. (Transcrição de Conferência, 1951)4
[...] Eu fui levado a me servir desses elementos da natureza para formar minha música.
E mas, não é bem a questão humana, é sobretudo, a questão cósmica. É a natureza
do Brasil, a variedade, o mistério do Amazonas, os rios misteriosos que temos, rios
incríveis como o rio São Francisco. (apud KATER, 1991: 89) 5
4 Essa conferência foi proferida em João Pessoa, no estado da Paraíba, e publicada com a voz original do
compositor, em Cd comercial.
5 Entrevista concedida a Madeleine Milhaud, a 12 de março de 1952, em Paris. Encontrava-se nos acervos
do I.N.A - Instituto Nacional de Audiovisual, em Paris, sendo material desconhecido até a transcrição e publicação
no artigo de Carlos Kater.
6 Importante ressaltar as datas dos depoimentos: o de Manuel Bandeira é de 1924; o inicial do compositor
é de 1928; o segundo é da década de 1930; o terceiro é da década de 1940; o seguinte é de 1951; o posterior é de
1952; e o último é de 1957. Nota-se, portanto, que o desenho de tal “predestinação” foi algo que o acompanhou
por toda a vida a partir da década de 1920.
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
A notável habilidade social de Villa-Lobos para impor a si e aos outros uma ima-
7 “Villa-Lobos fazia recuar várias composições em vários anos. Uma das intenções esperadas era demons-
trar que o caráter brasileiro de sua música existia desde cedo, mesmo quando ele compunha, de fato, num espírito
inteiramente francês e internacional. Era uma legitimação de precocidade nacionalista” (COLI, 2006: 73). Para
mais detalhes, ver também: (GUÉRIOS, 2003: 100-128, capítulo 4).
8 . Mesmo nos estudos mais recentes sobre Villa-Lobos, a formação musical do compositor continua a
fomentar dúvidas. Na última edição de seu livro, por exemplo, Mariz afirma: “ficou comprovado que Villa-Lobos
jamais esteve matriculado no antigo Instituto Nacional de Música, apesar de ele me haver afirmado ter sido aluno
de Benno [Breno] Niedenberger, Frederico Nascimento e Agnello França naquela instituição” (MARIZ, 2005:
163). No entanto, as pesquisas de Avelino Romero Pereira mostraram que houve, sim, inscrição de Villa-Lobos no
Instituto Nacional de Música, nos cursos noturnos, suspensos por Henrique Oswald em 1904, quando este acabara
de assumir a direção da casa. Villa-Lobos teve seus estudos interrompidos, portanto, não com a perspectiva de
novas viagens pelo Brasil, conforme sugerem seus primeiros biógrafos, mas com o fechamento do curso no qual
estava inscrito. O mais revelador é que Villa-Lobos estava matriculado em duas cadeiras: Violoncelo e Solfejo!
Para mais detalhes, ver: (PEREIRA, 1995: item “Uma greve no INM”).
9 “O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos
escritos [...] O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntá-
ria, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela
mínima são testemunhos escritos” (LE GOFF, 1990: 536).
9
AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
gem mítica10 de si, resulta, muitas vezes, no apagamento de sua trajetória social em face às
particularidades de um “campo próprio”, delineado, como nos aponta Certeau, em condições
excepcionais de tempo, lugar e competição. Mesmo a análise técnica de sua produção acaba
recorrendo ao gênio nos momentos em que se torna difícil uma abordagem contextualizada e
mais profunda de seus procedimentos composicionais característicos11. Em sua História Social
da Música, o apontamento de Henry Raynor parece confrontar tal perspectiva:
A música só pode existir na sociedade; não pode existir, como também não o pode
uma peça, meramente como página impressa, pois ambas pressupõem executantes e
ouvintes. Está, pois, aberta a todas as influências que a sociedade pode exercer, bem
como às mudanças nas crenças, hábitos e costumes sociais (RAYNOR, 1981: 9).
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
prio Villa, desconsiderando-se em que medida os personagens com quem conviveu e os am-
bientes nos quais se articulou foram decisivos para que ele alcançasse tal síntese, em um contí-
nuo processo de bricolagem e manipulação das diversas condições de possibilidade disponíveis
em seu tempo.
Em diferentes momentos de sua vida, a permanência e/ou passagem por cidades
culturalmente efervescentes (como Rio de Janeiro, Paris e Nova Iorque) somadas à imersão em
iniciativas que extrapolaram o âmbito da música (como o projeto de educação musical conhe-
cido por Canto Orfeônico), foram fatores que contribuíram para formar uma rede complexa de
experiências que certamente tiveram ingerência na relação de Villa-Lobos com a música e com
o violão.
Hoje, por exemplo, já é possível comprovar o significativo influxo dos personagens
conhecidos como chorões na maneira de Villa-Lobos compreender o instrumento, bem como de
que modo foram decisivas as vivências compartilhadas com ilustres violonistas de seu tempo,
tais como Andrés Segovia (1893-1987), Regino Sainz de la Maza (1896-1981), Olga Praguer
Coelho (1909-2008) e Abel Carlevaro (1916-2001). Além disso, o próprio compositor deixou
testemunhos (cf. CARVALHO, 1963: 3-4) narrando o seu conhecimento de métodos e auto-
res clássicos do violão: Ferdinando Carulli (1770-1841), Fernando Sor (1778-1839), Dionisio
Aguado (1784-1849) e Matteo Carcassi (1792-1853). Havia, portanto, uma amálgama de in-
fluências das mais variadas no jeito de Villa pensar o instrumento e criar os eixos estruturantes
de seu sotaque violonístico.
No entanto, a partir do entrelaçamento destas diversas camadas que ajudaram a
compor o seu singular vocabulário instrumental, ainda não há estudos sobre as possíveis rela-
ções de Villa-Lobos com os violonistas brasileiros (ou radicados no Brasil) que, ao longo das
décadas finais do século XIX e iniciais do XX, dedicaram-se primordialmente ao estudo do
“violão de concerto”. O desconhecimento sobre tais personagens e a dificuldade de acessar suas
obras tornam-se impeditivos cruciais para o mapeamento das conexões e distanciamentos entre
a escrita de diferentes compositores do instrumento naquele período.
Até o momento, quando nos referimos à escrita para violão de compositores brasi-
leiros anteriores à década de 1950, trabalha-se basicamente em cima de três vertentes:
1) Em princípio, isolado, Heitor Villa-Lobos, como um criador extemporâneo que
teria elevado o idiomatismo do instrumento a partir de sua própria genialidade;
2) Depois, um grupo de violonistas que conseguiu impregnar um “sotaque” próprio
ao violão advindo da imersão do instrumento nos gêneros populares urbanos que pipocaram
no Brasil desde o século XVII e que, muitas vezes, mesclaram-se às danças europeias aqui en-
tronizadas durante e depois da colonização. Neste segundo processo, é possível sugerir que se
concentram algumas das fagulhas que engendraram o conceito genérico - e nem sempre muito
preciso - do que seria um “violão instrumental brasileiro”;
3) Finalmente, um terceiro grupo - não necessariamente vinculado à tradição ante-
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
rior - que, embora reconhecido pelo caráter pioneiro, tem sua produção distinguida como em-
brionária, com suas peças quase sempre encaradas como cópias simplificadas e/ou sem muitas
contribuições em relação às dos autores ocidentais que já circulavam em território brasileiro.
São obras as quais se atribuem, geralmente, um singular valor histórico que, contudo, não é
necessariamente correspondido pelo mesmo valor musical.
Esta imagem geral e turva sobre os compositores que escreveram para o instrumen-
to antes de 1950 concorre para a formação do paradigma dicotômico que tem guiado concei-
tualmente a maioria dos estudos dedicados ao tema (inclusive, mea culpa, os nossos): de um
lado, Villa-Lobos; do outro, o seu tempo e os seus contemporâneos. O fato é que a síntese da
escrita de Villa marcou tão indelevelmente a história do violão que, para justifica-la, torna-se
mais fácil retirá-lo de seu percurso histórico e da teia complexa de relações estabelecidas com
seus pares e com os espaços que frequentou.
A tarefa de fazer o caminho inverso - ou seja, a de projetá-lo em seu tempo - esbarra
nas poucas referências, fontes e estudos disponíveis. Entretanto, aos poucos, a descoberta e
ampliação do conhecimento sobre personagens coevos podem nos trazer pistas de como Villa
atingiu os resultados originais de sua escrita para violão a partir das ferramentas que, na verda-
de, estavam disponíveis na teia cultural que “oferece ao indivíduo um horizonte de possibilida-
des latentes - uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada
de cada um” (GINZBURG, 1987: 27). Do bojo desta jaula é que Villa-Lobos primeiramente
se articulou. Mas outros compositores-violonistas brasileiros ou radicados no Brasil também.
Neste sentido, e na tentativa de articular uma abordagem que privilegie um olhar de
(e sobre) Villa-Lobos em seu tempo, faremos uma breve (e ainda inicial) análise de suas pos-
síveis conexões com um de seus contemporâneos, o violonista Melchior Cortez (1882-1947).
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
(Casa Beethoven, Guitarra de Prata, Casa Buschmann & Guimarães e Casa Arthur Napoleão)
e fundou, em 1927, a Academia Brasileira de Violão, com a qual iniciou dezenas de estudantes
mulheres nos preceitos da escola de “violão clássico” que pretendia amplamente difundir no
Rio de Janeiro;
3) Compositor/autor, publicou diversos de seus trabalhos (peças originais, arranjos,
transcrições e métodos) por diferentes editoras, sendo a principal delas a Casa Romero y Fer-
nandez, da Argentina.
Neste último ramo de atuação, através de fontes recolhidas em jornais, revistas, tes-
temunhos, entrevistas e acervos públicos e privados, conseguimos levantar 16 registros de sua
produção para o instrumento, dos quais localizamos 11 obras. A diversidade das peças encontra-
das demonstra quão versátil foi a natureza das publicações editoriais do violonista nas décadas
iniciais do século XX, variando entre composições próprias, métodos, transcrições, arranjos
ou ainda músicas concebidas por outros compositores-violonistas, mas que foram anotadas em
partitura por Cortez.
Além de aumentar o ainda pequeno conhecimento sobre o repertório produzido
neste período, as 11 obras localizadas revelam um uso muito particular dos recursos técnico-
musicais do violão, indicando, muitas vezes, o domínio de certos idiomatismos que, até o mo-
mento, eram quase que exclusivamente vinculados à produção de Villa-Lobos.
E isto se nota desde a sua obra mais antiga que suscitamos, a elegia Ilusão Perdida
(1909). Diante de uma breve análise, tentaremos estabelecer algumas conexões entre a escrita e
a maneira de ambos pensarem o violão a partir das próprias topografias, possibilidades e limi-
tações do instrumento.
2. Breve análise de Ilusão perdida (1909) e possíveis estreitamentos entre a escrita de Mel-
chior Cortez e Villa-Lobos
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
Fig. 1. Capa da edição de Ilusão Perdida, de Melchior Cortez, publicada pela Casa Beethoven em 1909.
Fonte: acervo pessoal do autor a partir de cópia localizada nos acervos da Divisão de Música (DIMAS) da Fun-
dação Biblioteca Nacional (FBN).
Contudo, apesar de constar dentre suas produções inaugurais, a obra apresenta al-
guns recursos idiomáticos surpreendentes, muitos dos quais, resguardadas as devidas propor-
ções, aproximam-se daqueles utilizados por Heitor Villa-Lobos em algumas de suas peças mais
representativas, reconhecidas pelo uso idiossincrático do instrumento. Eis alguns exemplos:
1) Já em seus primeiros compassos, um harmônico pedal na 12ª casa da 6ª corda é
intercalado por uma sequência de ligados que se movimentam em sentido vertical, horizontal
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
e oblíquo pelo braço do violão, em uma textura que recorda o trecho escalar do Estudo n. 1, de
Heitor Villa-Lobos.
Fig. 3. Harmônico pedal e sequência de ligados em sentido vertical, horizontal e oblíquo pelo braço do violão.
Compassos 1, 2 e 3 de Ilusão Perdida, de Melchior Cortez. Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/ FBN.
Fig. 4. Paralelismos de notas em 3 oitavas em movimento de vai e vem. Compassos 5, 6 e 7 de Ilusão Perdida, de
Melchior Cortez. Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/ FBN.
3) O motivo do tema (uma melodia exposta na região grave que se intercala com
dois acordes repetidos na região aguda no compasso seguinte) também apresenta uma textura
que remete a trechos de peças de Heitor Villa-Lobos, especialmente a ambiência temática do
Prelúdio 4, peça que tem a mesma tonalidade e uma ligação dos elementos estruturais seme-
lhante, sobretudo em relação ao modo como se organizam e se entrelaçam a melodia, a harmo-
nia e o ritmo.
13 Ou seja, através de uma figuração rítmica de semínima pontuada + semicolcheia, o E em três oitavas vai
progressivamente se distanciando e voltando à base até alcançar o B por intervalos diâtonicos: E - E; E - F#; E- G;
E - A; E - B.
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
Fig. 5. Melodia do tema no grave intercalada com acordes repetidos no agudo. Na sequência da peça, Melchior
Cortez preserva a estrutura, mas inverte as regiões (a melodia passa para o agudo e os acordes de acompanha-
mento vão para a região média, em harmônicos). Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/ FBN.
Fig. 6. Oitavas em movimento paralelo horizontal nos compassos finais (35-38) da elegia Ilusão Perdida, de
Melchior Cortez. Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/FBN.
14 O exemplo aponta um erro da edição original no 2º tempo do 2º compasso: na voz aguda, trocou-se a
nota mi (E) da oitava paralela por um ré (D).
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
Fig. 7. Melodia conduzida na 5ª corda do violão na elegia Ilusão Perdida (compassos 7-8), de Melchior Cortez.
Fonte: Casa Beethoven, Acervo DIMAS/FBN.
Por razões espaciais, não faremos aqui a análise das outras obras de Melchior Cor-
tez e suas possíveis conexões com o repertório villalobiano (tarefa que merece ser aprofundada
em estudos futuros), mas tais estreitamentos parecem ainda mais nítidos quando volvemos um
primeiro olhar para o restante de sua produção conhecida, especialmente as originais Colibri,
Marche Louis XVI, Peteneras Sevillanas e transcrições como o Fado Liró, a Elegie op. 10 (J.
Massenet) e a Valse op. 69 n. 2 (F. Chopin). Outros cinco elementos que aparecem com recor-
rência na obra de ambos são os seguintes:
1) Uso do baixo na condução de uma voz intermediária: quando uma linha melódi-
ca conduzida pela 4ª ou 5ª corda fica entre um acompanhamento nas cordas agudas e um baixo
ainda mais grave ditando a harmonia;
2) Uso recorrente das tonalidades que privilegiam as cordas soltas: Mi maior, Mi
menor, Lá maior e Lá menor são as principais. É outra característica que atravessa significati-
vamente a produção de ambos;
3) Uso de cordas soltas com efeito pedal: quando as cordas soltas se repetem por
diferentes encadeamentos melódicos e/ou harmônicos. São exemplos de Villa-Lobos: os com-
passos 24-29 da Gavota-Choro; os acordes cromáticos da introdução da Valsa de Concerto nº 2;
os compassos 15-20 do Estudo nº 1 (compassos 15-20); por sua vez, Melchior Cortez utiliza o
recurso (ao modo de Villa, integrando-o simultaneamente aos paralelismos horizontais de acor-
des) na introdução que criou para a valsa Gemidos d’Alma, do cantor, violonista e compositor
Josué de Barros (1888-1959).
4) Uso de cordas soltas como elemento mediador entre as passagens de cordas:
quando ambos propositadamente usam as cordas soltas para mediar saltos ou passagens entre as
cordas do violão, como ocorre entre os compassos 22-29 do Estudo 12, no caso de Villa-Lobos;
e também como é característico durante quase toda a costura de Peteneras Sevillanas, no caso
de Melchior Cortez.
5) Exploração da timbragem e tensão características de cada corda: quando Villa
-Lobos pede que uma determinada melodia ou passagem seja tocada especificamente em uma
corda, um recurso utilizado no compasso 80 do Schottisch-Choro, nos compassos 33-54 da
Valsa-Choro, além de na primeira seção do Prelúdio 4 (compassos 1-10), onde a partitura indica
que as notas do tema devem ser tangidas em cordas específicas (3ª, 4ª, 5ª e 6ª), somente para
ilustrar alguns dos casos mais representativos. A produção de Melchior Cortez (especialmente
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
suas transcrições) são todas permeadas por exemplos do gênero, o que revela o quão este com-
positor também sabia explorar com propriedade os diferenciados timbres das cordas do violão.
Ao relacionar possíveis recursos idiomáticos comuns entre peças de Villa-Lobos e
Melchior Cortez, o objetivo não é meramente tomar a produção de um pela do outro (e vice-ver-
sa), mesmo porque Villa entrelaça estes elementos a partir de estruturas harmônicas, rítmicas
e texturais mais densas (inclusive mesclando diversos destes elementos idiossincráticos simul-
taneamente), mas apenas reconhecer que tais ferramentas já estavam no rol de possibilidades
criativas de outros compositores do período.
Além disso, vale pontuar que estes dois personagens travaram algum nível de con-
tato direto ainda na década de 1900, quando ambos integraram o elenco de uma apresentação
coletiva coordenada pelo professor Monteiro Diniz, em 23 de maio de 1909 (mesmo ano de
publicação da elegia de Cortez), e cujo programa incluía a encenação de uma comédia e a rea-
lização de um concerto no Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. O objetivo da festa era angariar
fundos para a Capela de Santo Antônio, recém-erigida no bairro de Vila Isabel. Na ocasião,
além do próprio Monteiro Diniz, Villa também mostrou ao público suas habilidades ao violão:
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
encontros em concertos coletivos, é difícil imaginar que, em um círculo tão restrito como o do
violão carioca no início do século XX, estes personagens não tenham tido o mínimo de influên-
cias recíprocas, já que ambos eram figuras reconhecidas na cena violonística do Rio de Janeiro.
Pelo menos, pode-se afirmar que os dois compartilharam um ambiente musical comum que já
permitia o uso de certos recursos idiomáticos com naturalidade.
Nas décadas seguintes ao encontro, Villa-Lobos levaria às últimas consequências
(especialmente nos campos harmônico, textural e técnico) tais ferramentas, elevando o idioma-
tismo do violão a um outro patamar e abrindo definitivamente as suas portas para uma escrita
moderna que, ainda hoje, soa atual. Contudo, a produção de Cortez revela que, embora a brico-
lagem produzida por Villa seja completamente original, os recursos técnicos por ele utilizados
eram, na verdade, mecanismos disponibilizados pelo estado da arte aos violonistas daquela
época.
Em outras palavras, a hipótese instilada é a de que a obra de ambos está longe de
emergir do nada, como instância deslocada e/ou fora de seu tempo. Em estudos anteriores, já
deflagramos o quão Villa se deixou marcar pelos seus contemporâneos do instrumento no Bra-
sil, notadamente os “chorões”. A relação de sua escrita com a de Melchior Cortez representa um
outro passo no mapeamento mais amplo das possibilidades criativas do período, uma vez que
este é um personagem que se vincula, no Brasil., de modo mais estrito à tradição do “violão de
concerto”.
Portanto, se ainda não é possível assegurar que entre Villa-Lobos e Melchior Cortez
houve uma influência direta e recíproca, também não é fora de propósito sugerir que ambos ar-
ticularam, ainda que por caminhos diferentes, as ferramentas idiomáticas do violão disponíveis
em seu tempo. Ademais, Cortez passou a ter Villa como uma grande referência ao longo de sua
carreira, conforme se depreende do seguinte trecho de sua entrevista concedida ao Diário de
Notícias em março de 1933:
Em síntese, o que nos ensejou destacar neste estudo e ensaio embrionários (e que pre-
tendemos aprofundar em estudos futuros) é que a produção de Melchior Cortez para violão sugere
que alguns dos recursos instrumentais mais característicos da obra de Villa-Lobos também foram
utilizados por outros compositores, no Rio de Janeiro, já em fins da década de 1900. Cada qual a seu
modo, Melchior e Villa projetaram uma identidade de escrita que compreendia o instrumento a partir
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AMORIM, H. VILLA-LOBOS E(M) SEU TEMPO
REFERÊNCIAS
AMORIM, H. Heitor Villa-Lobos e o Violão. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música,
2009.
BANDEIRA, Manuel. Villa-Lobos. Revista Ariel. Rio de Janeiro, Ano II, vol. XIII, p. 475-
477, 1924.
CARPENTIER, Alejo. Hector Villa-Lobos. In: Gaceta Musical, Paris, 1 (7-8): 6-13, jul./ago,
1928.
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Conferência II
Historicamente existe uma relação muito estreita entre compositores e intérpretes. Essa
colaboração traz contribuições importantes para o repertório dos instrumentos e, de forma ge-
ral, obras tornam-se consequentemente mais idiomáticas.
É famosa a relação de Johannes Brahms (1833-1897) com Joseph Joachim (1831-1907),
que resultou no Concerto para violino em Ré maior, Opus 77 e no Concerto Duplo para violino
e violoncelo em Lá menor, Opus 102. O Concerto para violino foi dedicado a Joachim, que
ao ser apresentado à partitura, sugeriu muitas modificações para torná-la mais idiomática, e
Brahms, com alguma relutância aceitou. Em relação ao Concerto Duplo, o caso foi um pouco
diferente:
Devo informá-lo da minha última tolice. Trata-se de um concerto para violino e vio-
loncelo! Sobretudo, devido minhas relações com Joachim, queria abandonar essa
ideia, mas não pude fazer nada. Nas questões artísticas, por sorte, ficamos sempre em
terreno amigável. Jamais teria pensado no entanto, que entre nós se instaurasse nova-
mente uma ligação pessoal (BRAHMS apud FLADT, 1984, [s.p.]).
Segundo Fladt (1984), essa carta de Brahms fora direcionada à casa Simrock, editora de
sua música em 1887 e tinha o propósito de tentar restabelecer as relações com o amigo Joachim,
“pelo menos no âmbito de um empenho musical comum” (FLADT, 1984, [s.p.]). Possivelmente
a empreitada deu certo pois, assim como aconteceu no Concerto para violino, “houve um novo
intercâmbio de experiências entre Brahms e Joachim no que diz respeito a questões de compo-
sição e técnica de execução especialmente” (FLADT, 1984, [s.p.]).
No entanto, a amizade nutrida entre Dvorak e Wihan (1855-1920) pode ter sofrido um
abalo por causa deste mesmo Concerto:
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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES
Claphan completa que, apesar do teor contundente da carta, Dvorak retrocedeu: “Ele
acabou por aceitar reger mesmo com Stern, mas ignora-se se conseguiu fazer perdoar por
Wihan. Wihan havia proposto cadências para o primeiro e para o último movimentos, mas
Dvorak acreditou dever recusá-las” (CLAPHAM, 1983, [s.p.]).
Com os relatos acima, pode-se afirmar ser comum no meio musical tais colaborações.
Com Heitor Villa-Lobos (1887-1959) não foi diferente e há citações que esclarecem que, assim
como Brahms, buscava ajuda dos intérpretes para que suas obras ficassem mais adequadas à
técnica e idiomatismo do instrumento. O pianista João de Souza Lima (1898-1982) relatou o
seguinte:
Nossa camaradagem foi se tornando cada vez mais intensa, e Villa-Lobos, com aquela
simplicidade de todo grande artista, aparecia diariamente ao meu Studio e, no meu
piano, esboçava muito dos seus trabalhos, entre os quais o Rudepoema e a Prole do
Bebê, número 2. Para estes e outros trabalhos consultava-me sobre problemas de exe-
cução pianística, pois desejava que fossem de uma perfeita realização instrumental
(LIMA, 1982, p. 100).
Villa-Lobos, assim como a maioria dos grandes compositores, começou a receber inú-
meras encomendas vindas de grandes intérpretes no entanto, nem todas obtiveram a devida
acolhida por parte do compositor:
Contou-me [Villa-Lobos] que, na oportunidade de uma das poucas vindas, ao Rio de
Janeiro, do famoso violinista Jascha Heifetz, foi este procurá-lo para encomendar-
lhe, por alta soma, a composição de um concerto. Desagradado, com as recomenda-
ções que o virtuose então lhe fizera quanto à elaboração da obra, recusou-se a em-
preendê-la, de vez que somente entendia fazer música em estado de inteira liberdade.
Transcorridos alguns anos, visitando os Estados Unidos da América, teve ensejo de
conhecer melhor o ilustre violinista e de admirá-lo, qual o grande e digno artista que
é. Adveio-lhe, daí sincero arrependimento de não haver composto o concerto, a cuja
encomenda, se reiterada, atenderia, com muito júbilo, mesmo sem qualquer remune-
ração e admitindo razoáveis sugestões (GOMES, 1965, p. 62).
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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES
Há situação em que entra em jogo o poder de persuasão da pessoa que faz a encomenda
e, logicamente, suas condições financeiras:
Sou testemunha presencial das lutas para alcançar a celebridade. Por isso tínhamos o
privilégio de confidenciar certos detalhes de sua carreira artística. Certa vez, e penso
que este episódio é pouco conhecido, revelou-me que, estando nos Estados Unidos,
na cidade de Nova York, foi procurado no hotel de sua hospedagem por uma senhora
que declarou ser pianista e desejava que ele compusesse um concerto para piano e
orquestra. - “Senhor Villa-Lobos, gosto de sua música, tenho entusiasmo pelo seu
estilo e talento de composição. Desejava, para executar, um concerto seu, de piano e
orquestra. Proponho-lhe, como pagamento, a quantia de três mil dólares”. - “Minha
senhora”, respondeu ele, “sinto não poder considerar sua proposta, pois devo retornar
ao Brasil dentro de vinte dias. Não há tempo para esta obra”. - “Mas, Senhor Villa
-Lobos, vamos aumentar para quatro mil dólares”. - “Minha Senhora”, fez ele, “não
se trata de dólares, mas de tempo”. A Senhora Ellen Ballon, que era a grande pianista
em questão, não desanimou. De volta à casa telefonou para o hotel, insistindo: - “Se-
nhor Villa-Lobos, pense agora em cinco mil dólares”. Aí Villa-Lobos considerou e
respondeu: - “Minha Senhora, não quero negar-lhe mais e resolvo que me procure ao
final dos vinte dias e será o que sair. Venha buscar o seu concerto! (...) Mais tarde,
uns dois anos depois, Villa-Lobos recebe algum dinheiro de seus trabalhos e escreve
a Miss Ballon que deseja readquirir seu concerto e pedia aceitasse o reembolso. Miss
Ballon respondeu delicadamente que o concerto não tinha mais preço e que viria ao
Rio de Janeiro executá-lo sob sua regência. Assim aconteceu mais tarde, no Teatro
Municipal, em audiência espetacular. Miss Ellen Ballon gravou em L.P. o Concerto n°
1 de piano e orquestra, - gravação London [selo de gravação], ganhando muita vezes
os cinco mil dólares do preço do custo... (MARTINS, 1965, p. 112-113).
Na citação abaixo, na qual um solista tenta encomendar um outro concerto para har-
mônica, que não o dedicado a John Sebastian (1914-1980), não foi a cabo pois a questão finan-
ceira não foi abordada:
Disse-me ele [Villa-Lobos] que nessa noite esperava uma visita, a de um grande vir-
tuose da gaita de boca, internacionalmente conhecido que vinha vê-lo e fazer ouvir em
suas gravações algumas das obras que ele havia interpretado, com ou sem orquestra,
nos grandes centros musicais da Europa e do Continente Americano. Ele havia sido
o introdutor do modesto instrumento na esfera da música de alta classe e Villa-Lobos
havia passeado sobre os seus óculos, compondo para o concorrente mais tardiamen-
te surgido, John Sebastian (...). O nosso virtuose também queria um para ele, mas
Villa-Lobos só escrevia concertos dessa natureza por encomenda e essas encomendas
deviam ser bem pagas. Vamos, pois, assistir a um desses duelos entre o negociador,
sabido e esperto que era Villa-Lobos, e o solicitante cheio de si, consciente dos seus
méritos, mortificado pelo que já considerava uma humilhação prévia. A cena não de-
cepcionou nossa expectativa. Tivemos, primeiramente, uma extraordinária demons-
tração de virtuosismo instrumental. Sobre as gaitas minúsculas que nosso artista tirava
do bolso, acomodados em preciosos estojos e ouvindo os discos em fita magnética ou
em discos, ouvindo nesses discos as composições que mestres eminentes da música
contemporânea haviam escrito para o “ás” da harmônica oral, ali ficamos durante bas-
tante tempo. Mas Villa-Lobos permanecia impassível, observando o interlocutor com
uma desconfiança. A conversa que ele esperava, não vinha. E, como ela não veio, ape-
sar de o compositor haver encaminhado habilmente o assunto na boa direção, o nosso
homenzinho saiu do hotel com as mãos abanando ou, mais realisticamente, carregan-
do de volta as suas gravações, os seus instrumentos, o seu toca-discos e magnetofone,
mas sem aquilo por que viera: - a promessa de um novo Concerto (AZEVEDO, 1966,
p. 130-131).
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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES
Muito interessante é uma outra história, que trata da gênese do Concerto para Harpa,
encomendada pelo virtuose Nicanor Zabaleta (1907-1993):
No Hotel Beford, em Paris, 1952, Villa-Lobos recebe a visita do famoso harpista espa-
nhol Nicanor Zabaleta: - “desejo encomendar-lhe um Concerto para meu instrumento;
não gostaria que usasse arpejos; prefiro notas plaqués, batidas, em acordes”. Enfim,
uma série de recomendações especiais (VILLA-LOBOS [Arminda], 1981, p. 129).
A citação acima deixa claro como Villa-Lobos estava sempre preocupado em descobrir
novas sonoridades, contribuindo desta forma com o desenvolvimento técnico e idiomático dos
instrumentos.
Uma fonte interessante de como Villa-Lobos se relacionava com seus intérpretes vem
de declarações deixadas pelo violoncelista brasileiro responsável pela encomenda do Concerto
nº 2 para violoncelo e orquestra e há muitos anos radicado nos Estados Unidos, Aldo Parisot (n.
1921). Parisot acompanhou de perto o processo de composição desse concerto através de cartas
e permanecendo junto do compositor durante uma semana no hotel em que Villa-Lobos estava
hospedado em Nova York. Mais tarde ele relatou a experiência:
Eu fui de New Haven para Nova York todos os dias durante uma semana e lá eu pra-
ticava no seu quarto de hotel - escalas, estudos, concertos - enquanto ele estava escre-
vendo. De um lado ele tinha o concerto para violoncelo e do outro uma sinfonia, e ele
ficava pulando de um para outro. E quem lá foi durante todas essas sessões? Andrés
Segovia!...1 (ALDO PARISOT apud AQUINO, 2000, p. 24).
Questionado pela esposa de Parisot sobre que tipo de composição tinha em mente, Villa
-Lobos teria respondido:
1 “I went to New York from New Haven every Day for one week and there I practiced in his hotel room
- scales, etudes, concertos - while he was writing. On one side he had the cello concerto, on the other side a sym-
phony, and he was jumping from one to the other. And who was there during all those sessions? Andrés Segovia!
...”
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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES
(…) Agora, aqui vai a resposta para sua simpática esposa: quando um pai pode di-
zer que seu filho será isso ou aquilo? Sendo assim, eu não sei o que poderá sair de
minha caneta e desta maneira, é impossível para mim fazer alguma promessa sobre o
Concerto para Violoncelo e Orquestra. A única coisa que eu posso declarar é que eu
escreverei uma obra com sinceridade; vamos ver se esta sinceridade agradará ou não
(VILLA-LOBOS apud AQUINO, 2000, p. i)2.
O fato de Villa-Lobos ter sido violoncelista, lhe deu segurança para que essa relação
compositor e intérprete com Parisot se tornasse mais completa, ou seja, tinha segurança abso-
luta sobre a viabilidade técnica do que escrevia: “... Parisot relembra que durante o processo
composicional do Segundo Concerto para Violoncelo, em 1953, Villa-Lobos estava constante-
mente demonstrando no violoncelo como uma certa frase ou efeito deveria soar3” (PARISOT
apud AQUINO, 2000, p. 4).
Peter Dauelsberg (n. 1933), em entrevista concedida em 2011, afirma que Parisot tinha
pedido para Villa-Lobos fazer o segundo andamento do Concerto nº 2 para violoncelo e orques-
tra mais ou menos como a Ária/Cantilena da Bachianas Brasileiras nº 5, sendo que Villa-Lobos
teria dito: “Nunca!”, mas quando a obra ficou pronta, “Villa-Lobos reconheceu que Parisot
havia conseguido” (DAUELSBERG, 2011).
A exemplo do que aconteceu com Joachim e Brahms, Parisot efetuou alterações na parte
do solista e segundo Aquino (2000), colaborou com Villa-Lobos em muitos aspectos da partitu-
ra, especialmente nas passagens que mostram mais virtuosismo:
Apesar de sua estreita participação durante o processo composicional e pelo fato,
do compositor ter sido um talentoso violoncelista, Aldo Parisot continuou a alterar
a parte do violoncelo, tanto na estreia quanto na subsequente gravação da obra. Ele
alegou que essas alterações foram feitas, para que a obra soasse mais idiomática para
o instrumento. De acordo com ele, Villa-Lobos aprovou essas mudanças, embora elas
não tenham aparecido na publicação da partitura4 (AQUINO, 2000, p. 24 e 25).
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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES
mas com praticamente todos que iam a seu encontro em busca de alguma informação:
Chegavam as visitas domingueiras: Andrés Segovia, José Limon, Horzowsky, críticos
de músicas e jovens artistas para aprenderem dele a inspiração para as suas interpre-
tações. Vinham cantores e quartetos ensaiar com ele. Ali era o culto da música em sua
mais séria e compenetrada expressão. “Eu sou um profissional”, dizia com severidade
ao referir-se à música. Às vezes concentrado, silente, ia cobrindo as pautas com as
notas negras que fluíam dos dedos dando expressão às páginas, enquanto conversáva-
mos a meia voz, respeitando o silêncio do Mestre. Sentia-se bem de ter aquele rumor
de vozes perto que não o molestavam em nada. Ou eram dias em que artistas vinham
tocar ou cantar para saber a opinião do Maestro (VASCONCELOS, 1965, p. 59).
Villa-Lobos sabia da importância desses atos. Tinha consciência que a partitura não
passa de um código, e como tal precisa ser, além de corretamente decodificada, compreendida
no seu aspecto mais íntimo: “O que acontece (...) é que nem todo mundo escreve exatamente
o que pensa e uma boa orquestra, embora toque tudo o que está escrito, não tem obrigação de
adivinhar” (VILLA-LOBOS apud NÓBREGA, 1966, p. 11).
A busca de informações por parte dos solistas não significa em hipótese alguma, incapa-
cidade em compreender uma determinada obra, mas em muitos casos, a necessidade de tentar
manter intacta a concepção imaginada originalmente pelo compositor. Por isso muitas vezes é
possível ver grandes intérpretes ávidos por algum momento de privacidade com o compositor
da obra que irá apresentar:
Dias antes do concerto eis-nos a vê-lo ali sentado, junto ao seu velho Gaveau, mos-
trando a Guiomar Novaes - essa prodigiosa deusa do piano - o concerto para esse ins-
trumento e orquestra, há dias executado brilhantemente, por Souza Lima. O concerto
é dificílimo e requer virtuosidade pianística excepcional. Há trechos cuja interpreta-
ção só um grande mestre do teclado conseguirá vencer. Naquela luz um pouco velada
do apartamento, nós, a um canto da janela com o Dr. Octavio Pinto, marido de Guio-
mar Novaes e Arminda nos deslumbrávamos vendo aquelas duas almas elevadas pela
música. Guiomar Novaes com o braço esquerdo apoiado sobre o espaldar da cadeira
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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES
Num interessante artigo escrito por João da Cunha Caldeira Filho (1900-1982) para a
Editora Fermata de São Paulo em 1971, Villa-Lobos discorreu longamente sobre o importante
papel do intérprete.
Interpretação é o ato pelo qual o indivíduo exprime a sua capacidade de dar existência
sonora (real ou atual), à obra de arte musical. O intérprete ou executante, por um lado,
é dotado da capacidade para realizar a execução vocal ou instrumental; por outro lado,
suas potencialidades artísticas estão também estruturadas em concordância com esse
tipo de capacidade, cujos impulsos levam à execução. Não se trata, porém, de mera
atualização sonora, tal a de uma pianola. Trata-se de traduzir a criação do abstrato
para o concreto, do imaginário para o real, para o atual. Aí se situa a importância das
inflexões expressivas da linguagem musical, em tudo análogas - enquanto a lingua-
gem musical apresentar analogias - às da linguagem oral, na qual a enunciação do
pensamento se faz sempre mediante a atribuição de uma carga expressiva à locução.
É como declamar. Nenhuma indicação de expressão se encontra do texto poético es-
crito: o declamador terá de verificar o seu dizer, completando com essa ‘vida’ a comu-
nicabilidade original da criação poética. Para tanto, no campo da música, o executante
terá de penetrar, e substancialmente, no espírito da criação do compositor. Aí está a
parte criadora de interpretação, pois esta deve ser também planejada, previamente
concebida, de sorte a atualizar a obra como um objeto - coisa significante - dando-lhe
no tempo a estabilidade e a coerência que, no espírito do autor, lhe informaram a exis-
tência. Assim, interpretar é um comportamento expressivo relativo à atualização da
obra de arte musical (VILLA-LOBOS apud CALDEIRA FILHO, 1972, p. 102-103).
Num outro artigo publicado em O Estado de São Paulo em 16/11/1969, Caldeira Filho sinteti-
za de forma convincente o papel das partes envolvidas no processo de realização musical: “(...) a obra
de arte musical é uma expressão, ou como se diz comumente, uma mensagem, escrita pelo compositor,
transmitida pelo executante e recebida pelo ouvinte” (CALDEIRA FILHO, 1972 b, p. 111).
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PILGER, H.V HEITOR VILLA-LOBOS: O COMPOSITOR E SEUS INTÉRPRETES
Conclusão
É possível concluir que Villa-Lobos exercia um poder muito grande perante seus intér-
pretes. O fluxo desta relação não era muito equilibrada, já que Villa-Lobos, além de concepções
muito claras, conhecia os instrumentos de forma prodigiosa. Walter Burle Marx relatou o se-
guinte:
Dirigindo em Chicago, durante um ensaio, o harpista que era uma pessoa desagra-
dável, afirmou que a música escrita era impossível de ser executada. Villa-Lobos
desceu do podium, o que não era seu costume nos últimos anos, tomou então seu
lugar e executou o trecho na harpa, levantando em seguida sem dizer uma palavra e
recebendo uma ovação da orquestra. Depois de saber desta proeza na harpa perguntei
ao Villa-Lobos que instrumentos ele tocava e ele respondeu-me que só não tocava
oboé, o qual procurou aprender mais tarde (MARX, 1977, p. 184).
Villa-Lobos tinha nítido em sua mente o resultado musical do que escrevia e as nuances
da música brasileira lhe eram muito caras. Para isso atribuía aos intérpretes o papel de cocria-
dores, tendo estes a responsabilidade de “penetrar, e substancialmente, no espírito da criação”
pois a performance, segundo ele, também deve ser previamente concebida a fim de dar à obra,
uma existência sonora.
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
MESA REDONDA I:
PROCESSOS E PERMANÊNCIAS
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
convergir o trabalho analítico sobre o 1º movimento, por ser a parte de maior extensão da obra.
O referencial teórico originário que norteou a análise foi o livro Guidelines to a Musical Analy-
sis de Jan LaRue (1970), que, por sua vez balizara as observações de Ribeiro (2002)3.
Nesse particular, vale atentar para o fato de que o conhecimento desses traços idio-
máticos da escrita quartetística é elemento essencial à abordagem analítica desse gênero ca-
merístico e que, no presente caso, emoldura o estudo da elaboração motívica e da organização
harmônica do 1º movimento, o que engloba o vocabulário harmônico e mecanismos de conexão
entre os acordes.
3 As ferramentas de análise foram retiradas de outras importantes fontes bibliográficas, voltadas para abor-
dagem analítica do repertório da música do século XX, referenciadas no decorrer do texto e no final do artigo.
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
A forma ternária do tipo A-B-A’ é patente, sendo que a este plano se soma uma
extensa parte conclusiva, a título de finalização4.
A seção A (c. 1 a 48) está subdividida em três subseções: a (c. 1 a 21), b (c. 22 a
36) e c (c. 36 a 48). Uma suposta subdivisão binária não privilegia, neste caso, as mudanças
relacionadas ao material temático, à organização textural, isto sem mencionar ainda a questão
relativa à centricidade.
A 2a subseção tem o Ré como centro e nela o 1o violino expõe uma nova ideia,
um fragmento de escala descendente, trabalhado sequencialmente. Com base nesse recurso, a
subseção se estende até o compasso 36, onde, elipticamente, tem início a 3a subseção.
4 A agregação de uma seção conclusiva a uma disposição ternária encontra, no caso dos quartetos de
Villa-Lobos, o seu primeiro exemplo ao final do último movimento do 2o quarteto, fazendo-se presente em outros
quartetos do mesmo autor. É possível se questionar se o molde pretendido seria, no entanto, uma foram binária:
A – B // A’ – C. Entretanto, a organização, seja no campo harmônico, seja no campo motívico ou temático (além do
agógico) demonstram que a pretensão do autor era fazer com que a seção C possuísse claras funções conclusivas.
Dentro dum enquadramento ternário da forma, é possível se considerar uma suposta pretensão de emular a forma
sonata, contudo, numa abordagem bem livre do paradigma vigente no final do séc. XVIII (ROSEN, p. 330).
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
A seção central – B (c. 49 a 80) – Meno Mosso, propõe um novo material, além de
nova textura e organização rítmica, dividindo-se em duas subseções:
A parte conclusiva – Allegro piu mosso (c. 129 a 165), cuja extensão é pouco maior
do que a da seção central, é formada por uma sucessão de pequenos segmentos, cada qual
apresentando um tipo distinto de material e disposição polifônica. Uma cadência sobre o acorde
de nona menor, tendo Dó como fundamental, encerra este trecho no compasso 160, donde se
encaminha a cadência final, com dois acordes, a tríade de Lá menor e a tríade de Dó com sexta
acrescentada5.
5 A definição de centricidade em peças do repertório pós-tonal, é adotada por diversos autores, entre eles,
Joseph Straus, que afirma que “na ausência da harmonia funcional e do encadeamento tradicional, os compositores
uma variedade de meios contextuais de reforço” (STRAUS, 2013, p. 144). O que se pode verificar na música de
Villa é, muitas vezes, a justaposição de alguns dos processos descritos por Straus, com outros patentemente ema-
nados da common practice.
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
6 Como sugere Paulo de Tarso Salles, esse segmento descendente apresenta a característica comum de
figuração em dois registros, na forma de “ziguezague” (SALLES, 2009, p. 114 a 119).
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
Resta saber se existe na sua organização intervalar algum dado que permita dirigir
posteriores observações. No exemplo a seguir foi transcrita apenas sua estrutura intervalar.
a) tanto a forma normal (FN) quanto a forma prima (FP) do inciso – [01478] – deixam claro a
simetria intervalar interna, e que isso se revela pelos três tetracordes contidos -, [0147), [0148]
e [0156];
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
Figura 4 – Segmento melódico do c. 5 – 1º violino, dobrado duas oitavas abaixo pela viola
Tal modificação se mostra relevante para derivações motívicas, pois, de certa forma,
“diatoniza” o conteúdo do parâmetro melódico e harmônico posteriores, seja na subseção b e c,
seja na seção central (B).
Figura 5 – Motivo II como gesto melódico (1º violino e viola) e respectivos tricordes (FP)
Ou seja, como constatado por Ribeiro, a sonoridade do conjunto inicial permeia grande
7 As possíveis derivações do motivo no campo harmônico serão objeto de estudo nos itens afins, ou seja,
na análise do vocabulário harmônico.
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
3. Organização Harmônica.
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
Figura 9 – Organização harmônica do gesto inicial (c. 1) e seu desdobramento nos compassos 2 a 4.
8 Essa forma prima constitui o que se convencionou chamar de “acorde de Tristão”. Esse é um agregado
harmônico cuja presença na obra de Villa é apontada por Bruno Kiefer (1986, p. 42) e também por Paulo de Tarso
Salles (op. cit., p. 28 – 36).
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
Figura 11 – representação esquemática da condução parcimoniosa das vozes na conexão entre acordes
(c. 9 - 15)
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
menos no 1º movimento desse quarteto, é a presença de dois estratos (ou camadas) harmônicos,
um constituído de um paralelismo descendente (muitas vezes cromático), que é interrompido
por uma progressão substituta à fórmula funcional dominante-tônica. Em grande parte dos
casos, a dominante é substituída por um acorde de sexta aumentada, que assume a função de
dominante.
Figura 13 – progressão com linha do baixo cromática e tríade menor com sexta acrescentada com função
de dominante de Ré (c. 32 e 33).
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
Mais significativo, caso se opte pela adoção de uma concepção analítica que
admite um maior grau de abstração no tratamento do material harmônico, é a subdivisão em
camadas a partir do conteúdo intervalar. É o que se pode depreender da análise do início da
seção conclusiva (c. 129 a 133). É evidente aqui a existência de duas camadas harmônicas no
segmento inicial: uma formada pelas duas vozes superiores (1o e 2o violinos) e a outra pelas
quatro partes inferiores (viola e violoncelo). De pronto, no substrato inferior será encontrado
o conjunto [01378], cuja configuração se relaciona diretamente com o inciso inicial [01478].
Este conjunto contém a maior parte das formas presentes na harmonia da 1a subseção da obra,
das quais as mais relevantes são [0158], [026] e [015] notando-se, entretanto, a ausência da
tríade diminuta [036]. As duas partes superiores pertencem, por sua vez, ao conjunto [01368]
onde estão inclusos os subconjuntos [026] e [025] mais a tríade diminuta [036), todos presentes
no primeiro acorde assim como na parte grave (violoncelo) do 1o inciso, desempenhando
importante papel na elaboração harmônica da 1a subseção do movimento.
Figura 15 – relação em grande escala do conteúdo intervalar do primeiro compasso e do início da seção
conclusiva e a divisão em camadas harmônicas (c. 129 - 133).
4. Considerações finais:
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
último quarteto. Forma e meio instrumental que tem sido considerado o mais desafiador aos
compositores por exigir grande aporte técnico aliado a uma igualmente capacidade criativa, o
quarteto de cordas se configura, na produção villalobiana, numa espécie de síntese da maioria
dos recursos e modus operandi em termos de composição musical. O estudo do 17º quarteto
apresenta um Villa-Lobos com domínio totalmente consistente do material musical, tanto nas
grandes, quanto nas médias e pequenas dimensões, dentro das diretrizes analíticas assentadas
por LaRue (1998, p. 5 – 9).
a) Grande Escala
- a relação entre os polos ou centros da seção A e B é de terça maior Dó – Mi, sendo que
a cadência final desta última estabelece o Dó como centro tonal, o que cria a expectativa
de um retorno de A (como A’) iniciando-se em Dó. No entanto, tendo em vista que a
seção A’ inicia polarizando o Mi, as seções extremas não se conectam em grande escala
a partir do mesmo patamar tonal, mas sim por meio de uma relação de terças – Dó – Mi.
O retorno e estabilização de Dó têm lugar no início da parte conclusiva;
- o inciso que abre o movimento fornece matrizes de construção harmônica, não somente
para o começo da 1a seção, mas produz consequências no conteúdo harmônico do
início da parte conclusiva. Assim sendo, os eventos harmônicos da parte conclusiva
e da 1a parte da subseção a estão inter-relacionados pelos mesmos tipos de material
intervalar, em especial os conjuntos [025] e [026]. Constata-se, portanto, um processo de
derivação harmônica que atua não apenas em pequena escala, mas que relaciona eventos
harmônicos separados no tempo, conferindo coesão, principalmente entre seções que
não se conectam diretamente por intermédio do material temático.
- o trabalho motívico não se caracteriza meramente por um jogo construtivo, indo mais
além: enseja muitas vezes uma elaboração consistente de uma sonoridade básica (um
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
- uma matriz intervalar, presente no primeiro gesto, subjaz a todas as derivações motívicas
no campo melódico na primeira subseção, por exemplo;
- sintaxe constituída de paralelismos harmônicos (quase sempre descendentes) formados
de acordes de 7ª;
- divisão do material harmônico em camadas ou estratos harmônicos, cada uma delas com
sua lógica de condução e tipologia;
- lógica de conexão entre acordes que muitas das vezes recusa a sintaxe tonal, mas que
recorre ao princípio da condução parcimoniosa, isto é, de um mínimo movimento das
vozes no encadeamento entre acordes.
REFERÊNCIAS:
LARUE, Jan. Análisis del estilo musical. Original em inglês: Guidelines for Style Analysis.
Cooper City: Spanpress, 1998, 186 p..
ROSEN, Charles. Sonata Forms. New York e London: Norton, 1980, 344p..
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RIBEIRO, R. M. QUARTETO Nº 17 DE VILLA-LOBOS: SÍNTESE DE
PROCESSOS COMPOSICIONAIS
TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos: The Life and Works, 1887-1959. Jefferson: McFarland,
1995. 438 p..
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Wesley Higino1
UNIRIO - wesley.nhp@gmail.com
Willian Lizardo2
UFRJ - willianlizardo@gmail.com
Resumo: Este artigo busca demonstrar as influências exercidas por Heitor Villa-Lobos, através
de seus procedimentos composicionais e o tratamento dado por ele ao material folclórico, na obra
Trio nº 2, do compositor contemporâneo Marcelo Rauta. Esta obra é dedicada à memória de Villa
-Lobos e nela, Rauta utiliza algumas melodias populares tradicionais brasileiras como: Os escra-
vos de Jó, Marcha Soldado, Terezinha de Jesus, Fui no Itororó, Caranguejo, O pastorzinho e A
alface já nasceu, algumas delas retiradas do Guia Prático de Villa-Lobos. Observamos que apesar
dos procedimentos composicionais adotados por ambos serem os mesmos, o resultado musical é
diverso.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Procedimentos composicionais. Canção folclórica. Dialogismo.
Marcelo Rauta.
The Trio nº 2 of Marcelo Rauta: influences of Heitor Villa-Lobos and compositional proce-
dures
Abstract: This paper seeks to demonstrate the influences of Heitor Villa-Lobos, through his com-
positional procedures and his treatment of the folkloric material, on the chamber music piece Trio
nº 2, by contemporary composer Marcelo Rauta. This piece is dedicated to the memory of Vil-
la-Lobos and throughout the piece, Rauta uses melodies from traditional brazilian folk songs: Os
escravos de Jó, Marcha Soldado, Terezinha de Jesus, Fui no Itororó, Caranguejo, O pastorzinho
and A alface já nasceu, some of them taken from Villa-Lobos’s Practical Guide. Although both of
them use the same compositional procedures, the musical result is entirely different.
Keywords: Villa-Lobos. Compositional procedures. Folk song. Dialogism. Marcelo Rauta.
INTRODUÇÃO
No início do século XX, a figura de maior destaque no cenário musical brasileiro foi
Heitor Villa-Lobos (1887-1959). O compositor foi capaz de interagir tanto com tendências es-
téticas vanguardistas europeias quanto com músicas populares e canções folclóricas nacionais,
no intuito de promover a afirmação da chamada “música brasileira” idealizada no movimento
modernista brasileiro. Por sua notoriedade, Villa-Lobos foi capaz de influenciar a obra de diver-
sos compositores brasileiros, entre eles Marcelo Rauta.
1 WESLEY HIGINO. UNIRIO. Mestrando em Música pela UNIRIO. Bacharel em violino pela Faculda-
de de Música do Espírito Santo. Recebe orientação regular da Profª Me. Carla Rincón (Quarteto Radamés Gna-
talli) desde o ano de 2012. Atualmente é Mestrando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO) na área de Musicologia e linha de pesquisa Linguagem e Estruturação Musical, sob orientação
do Prof. Dr. Marcus Wolff.
2 WILLIAN LIZARDO. UFRJ. Professor da Faculdade de Música do Espírito Santo. Mestrando em Mú-
sica pela UFRJ. Bacharel em piano pela Faculdade de Música do Espírito Santo. Recebe orientação regular da
pianista e professora Linda Bustani desde o ano de 2016. Atualmente é Mestrando em Música pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na área de Práticas Interpretativas e na linha de pesquisa Processos do Desen-
volvimento Artístico onde é orientado pela Profª Drª Miriam Grosman.
47
HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Em suas viagens pelo país, o compositor pôde ter contato com diversas formas
de cultura popular, e tal fato ajudou a formar a imagem de Villa-Lobos como pesquisador da
música brasileira. Segundo Neves (2008), Villa-Lobos verá o folclore e as tradições populares
como um todo, uma mescla complexa, de onde não se pode isolar um ou outro elemento. Assim,
sua música não se prende às características negras ou indígenas, procurando refletir sempre um
clima sonoro que, como já disseram muitos autores, mostra mais a terra do que a raça.
Para Neves (2008), havia vários pontos comuns entre o trabalho pessoal de Villa
-Lobos e as ideias modernistas, principalmente sua busca pela nacionalização da criação mu-
sical, através do aproveitamento do folclore e as experiências composicionais em ebulição na-
quele período, com destaque para os esquemas harmônicos de superposição de tonalidades e
afastamento das normas cadenciais tradicionais. Kostka afirma que:
O século XX levou compositores à necessidade cada vez maior de meios alternativos
de organização musical e de um vocabulário que pudesse dialogar e agregar adequa-
damente variados métodos e conceitos. É possível observar cada um desses caminhos
se ramificando em várias direções criando assim um grande conjunto de estilos musi-
cais, filosofias e práticas e sua inexorável sobreposição, mesmo quando aparentam um
distanciamento (KOSTKA, 2008, p. 427)
Para além das questões musicais, a funcionalidade da obra de arte e seu emprego
social e educativo, são pontos concordantes entre o pensamento do compositor e do poeta Má-
rio de Andrade. Este era categórico ao afirmar que os compositores brasileiros teriam de cola-
borar para a determinação e a normalização dos caracteres étnicos da música brasileira e para a
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Na década de 1930, Villa-Lobos receberá apoio político para pôr em prática seus
ideais educacionais junto à ideologia do Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas. Seu progra-
ma incluía a difusão do conhecimento de música nas escolas primárias a partir do canto, buscando
formar a mentalidade infantil para cantar a grandeza da pátria e o trabalho de construí-la, podendo
desenvolver a disciplina, o civismo, o espírito patriótico, fomentando o trabalho em conjunto e
preparando futuras plateias. Com esse fim, o compositor elabora uma coletânea de canções po-
pulares folclóricas para ser utilizado nas aulas de canto orfeônico, o Guia Prático, conjunto de
137 peças retiradas da tradição popular e grafadas em partitura, algumas delas harmonizadas e
rearranjadas por ele, buscando despertar a sensibilidade da criança por meio da percepção rítmica,
sonora, dos intervalos, dos timbres, dos acordes, da dinâmica. Nele, o compositor produz arranjos
que podem ser de fácil acesso para vozes e instrumentos, “dando-lhes forma mais elaborada, ape-
sar de, por vezes, revesti-las de uma atmosfera de ingenuidade e de improvisação despretensiosa,
que são características do folclore” (GANDELMAN, 2011, p. 22).
MARCELO RAUTA
A maior parte dos procedimentos composicionais utilizados por Marcelo Rauta foi
estabelecida no decorrer do século XX, mas também podemos observar o emprego de procedi-
mentos característicos de outros períodos da história da música. Segue um trecho de entrevista
realizada pelo autor com Marcelo Rauta, onde o compositor comenta os procedimentos compo-
sicionais usados em sua produção:
Observo o padrão estético da forma, da forma aberta (fantasia e improvisação), uso de
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
No trecho acima transcrito, podemos observar sua busca por não utilizar somente
uma linguagem ou estética, mas a possibilidade de equilibrar elementos diversificados em uma
obra, evidenciando assim o dialogismo característico em sua obra. Para Avvad (2010), os com-
positores brasileiros contemporâneos seriam desprovidos do preconceito em utilizar elementos
ligados às estéticas anteriores ou ultrapassadas, e revisitariam tais elementos com liberdade,
apropriando-se de determinados elementos estéticos, ou recriando-os à sua própria maneira.
Esse tipo de diálogo pode ser observado no momento da criação musical. Um com-
positor conscientemente ou não, trabalha dentro de um sistema musical - e porque não cultural
- que o precede e que propõe um diálogo, onde, dentro das inúmeras possibilidades que este sis-
tema lhe oferece, o compositor escolhe os caminhos que lhe aprouver para a construção de seu
“novo” texto (ou discurso) musical. “Um discurso, qualquer que seja, nunca é isolado, nunca é
falado por uma única voz, é discursado por muitas vozes geradoras de textos, discursos que se
intercalam no tempo e no espaço.” (ZANI, 2003, p. 125).
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Pelo contrário, a constante relação entre eles gera transformação e novidade. Ambos possuem
seus valores. Alós (2006) argumenta também na mesma direção:
A palavra do mesmo e a palavra do outro não se miscigenam homogeneamente no
processo de enunciação narrativa, perdendo suas características próprias e formando
um terceiro elemento; ao contrário, ambas mantêm determinadas particularidades dis-
cursivas em confronto, organizadas em uma mesma enunciação narrativa [...] (ALÓS,
2006, p. 3).
SIMETRIA
O Trio Nº2 se inicia com um material temático (Comp. 1 a 6) que possui uma cons-
trução intervalar baseada principalmente em cromatismos descendentes. Esse material, porém,
é repetido imediatamente (Comp. 7 a 12), mas de forma transposta, o que sugere uma simetria
translacional (SALLES, 2009) por transposição direta do material original, repetido uma quar-
ta acima da altura original. Observe a Figura 1:
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Figura 3: Reutilização do ostinato inicial em Caboclinha. Comp. 37 a 40. Fonte: Editoração dos autores.
Salientamos que o uso de simetrias pode ser uma ferramenta valiosa para uma cons-
trução musical coesa, ocasionada pelo reaproveitamento de materiais.
OSTINATO
Figura 6: Setas: figurações temáticas reutilizadas. Destaque: Ostinato. Comp. 211 a 219. Fonte: Editoração dos
autores.
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Essa forma de utilização do ostinato pode ser encontrada também nas obras de
Villa-Lobos. A saber; enquanto há uma simultaneidade de apresentação de diversos materiais
no eixo vertical, horizontalmente o ostinato proporciona organicidade aos eventos diversos que
ocorrem (SALLES, 2009). Abaixo, na Figura 7, podemos observar um exemplo onde Villa-Lo-
bos utiliza o ostinato como fundo textural em contraposição à figuração melódica.
Figura 7: Figuração melódica e fundo textural. Quarteto Nº5 de Villa-Lobos, primeiro movimento. Comp. 101.
Fonte: Editoração dos autores.
Figura 8: Acompanhamento harmônico tonal tradicional. Cirandinhas Nº1. Comp. 17 a 20. Fonte: Editoração dos
autores.
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Figura 9: Acompanhamento harmônico tonal expandido. Canção folclórica em destaque. A Prole do Bebê Nº 1,
Polichinelo. Comp. 23 a 33. Fonte: Editora Casa Arthur Napoleão, Rio de Janeiro.
Figura 10: Canção folclórica Os escravos de Jó. Primeira frase musical. Fonte: Editoração dos autores.
Figura 11: Ostinato e melodia folclórica variada. Comp. 27 a 31. Fonte: Editoração dos autores.
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
mento tonal tradicional dado à canção. Abaixo, observe a Figura 12 para mais detalhes.
Figura 12: Melodia folclórica com tratamento harmônico tonal tradicional. Comp. 52 a 64. Fonte: Editoração dos
autores.
Nos compassos 123 a 137, ocorre uma superposição de materiais temáticos. São
eles: a canção folclórica Marcha Soldado no violino (com variação), o material temático inicial
no piano, e um ostinato no violoncelo. Observe a Figura 13.
Figura 12: Superposição de materiais. Comp. 121 a 132. Fonte: Editoração dos autores.
ELEMENTOS CONTRAPONTÍSTICOS
Bach é fonte de inspiração e estudo de Villa-Lobos desde pelo menos 1910, quando o
compositor realiza uma transcrição de uma fuga do Cravo bem temperado de Bach, para vio-
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
loncelo e piano. O ciclo das Bachianas é a afirmação maior da valorização por Villa-Lobos da
produção musical de Bach. Citamos em especial a Bachianas Brasileiras Nº1 para octeto de
violoncelos, que em seu último movimento intitulado Fuga (Conversa), Villa-Lobos constrói
uma exposição fugada inspirada nos moldes bachianos. Observe a Figura 13, onde exemplifi-
camos um trecho da exposição.
Figura 13: Entradas em estilo fugado indicadas pelas setas. Bachianas Brasileiras Nº1 Comp. 1 a 9. Fonte: Edi-
toração dos autores.
Figura 14: Entradas temáticas em estilo fugado estão indicadas pelas setas. Comp. 148 a 153. Fonte: Editoração
dos autores.
56
HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Figura 15: Entradas em stretto indicadas pelas setas. Comp. 180 a 199. Fonte: Editoração dos autores.
Figura 16: Superposição de acordes em destaque. O Lobosinho de vidro em A Prole do Bebê Nº 2. Comp. 180 a
199. Fonte: Max Eschig, Paris.
Marcelo Rauta no Trio Nº2 faz uso do mesmo procedimento. A partir do com-
passo 200, há uma sobreposição de acordes e tonalidades. Na “mão esquerda” da parte do piano
há as notas, Dó, Ré, Mi, Fá e Sol, na “direita” Dó, Mib, Solb e Lá, o que gera uma sobreposição
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HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
de acordes (Dó maior, Dó menor com quinta diminuta e Ré menor). Entre o violoncelo e o vio-
lino há sobreposição de tonalidade, Dó maior no violoncelo e Dó# maior no violino. Observe a
Figura 17 para melhor entendimento.
Figura 17: Sobreposição acordes e tonalidades. Comp. 200 a 205. Fonte: Editoração dos autores.
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
ALÓS, Anselmo Peres. Texto Literário, Texto Cultural, Intertextualidade. Revista Virtual de
Estudos da Linguagem, Brasil, v. 4, n. 6, p.1-25, mar. 2006. Disponível em: <http://www.
revel.inf.br/files/artigos/revel_6_texto_literario.pdf>. Acesso em: 25 out. 2017.
FRAGA, Higor Fernandes. Trombonada de Marcelo Rauta: Uma proposta Analítica e In-
terpretativa. 2015. 35. Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Música do Espírito
58
HIGINO, W. ; LIZARDO, W. TRIO Nº 2 DE MARCELO RAUTA: INFLUÊNCIAS VILLA-
LOBIANAS E PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS
Santo. Vitória.
GOMES, Sabrina Souza. Análise e digitação do Estudo Nº 5 para Violão de Marcelo Rau-
ta: Uma proposta de construção interpretativa. 2015. 32. Trabalho de Conclusão de Curso.
Faculdade de Música do Espírito Santo. Vitória.
KOSTKA, Stefan. PAYNE, Dorothy. Harmonia Tonal. Traduzido a partir da Sexta Edição, de
2008 por Hugo L. Ribeiro, Jamary Oliveira e Ricardo Bordini. Última atualização: 14 abr. 2015.
Disponível em: < http://hugoribeiro.com.br/bd-harmonia.php >. Acesso em 3 de set. 2017.
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. 2ª edição revista e ampliada por
Salomea Gandelman. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2008.
PILGER, Hugo Vargas. Heitor Villa-Lobos: O violoncelo e seu idiomatismo. Curitiba: Crv,
2013.
RAUTA, Marcelo. Entrevista concedida pelo compositor no dia 08 de outubro de 2015 à Sabri-
na Souza Gomes.
59
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar os diálogos entre Heitor Villa-Lobos e o projeto
musicológico e editorial de Francisco Curt Lange intitulado Americanismo Musical. A partir do
levantamento da documentação presente no Acervo Curt Lange, localizado na Biblioteca Central da
Universidade Federal de Minas Gerais, em especial as cartas trocadas entre estes interlocutores e o
material musicológico disponível no acervo, tornou-se possível perceber, entre aproximações e dis-
tanciamentos, o papel desempenhado pelo musicólogo alemão radicado no Uruguai na divulgação,
circulação e internacionalização da obra do compositor brasileiro no contexto político e cultural dos
anos 1930 e 1940.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Curt Lange. Americanismo. nacionalismo.
Creemos, sin embargo, que la era del nacionalismo ha llegado a su mayor oscilación
y que el péndulo se dirige al otro extremo.
(F. Curt Lange, 1946)
61
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
passou a se chamar Francisco Curt Lange. Na sua infância mudaria frequentemente de residên-
cia por imposição das atividades profissionais do pai, Franz Josep Lange, engenheiro de acús-
tica de alta sofisticação, que chegou ainda jovem a residir na Rússia. A residência definitiva da
família Lange seria em Bremen, cidade vizinha de Hamburgo. Josep, herdeiro de uma fortuna,
manteve com conforto a família durante a adolescência de Kurt Lange. Sua mãe, Elisabeth Von
Luchsenring Klauss Lange, tocava piano e cantava. Em um universo familiar muito favorável,
o jovem Kurt Lange iniciou sua formação musical aos seis anos, por meio das aulas de violino
e, posteriormente, de piano (MOURÃO, 1990).
Apesar da Primeira Guerra Mundial, Kurt Lange completou seus estudos sem atropelos
e partiu para Munique para estudar arquitetura na Escola Politécnica Superior daquela cidade,
além de doutorar-se em musicologia comparativa com Von Hornbostel, em Berlim. Formado
numa tradição de estudos musicológicos que se caracterizava pela narrativa dos grandes vultos
da música universal, sua vinculação à história comparada da música, com seu professor Ernst
Buecken, teria mais tarde uma importância fundamental nos seus estudos sobre a música na
América Hispânica e nos Estados Unidos. Nas palavras de Buecken: “os objetos de observação
são obras, os estilos, as culturas nas suas formas de desenvolvimento: posicionados um ao lado
do outro, um contra o outro, um em relação ao outro” (MOURÃO, 1990, p. 23).
Como ocorrera com diversos outros intelectuais alemães, Lange emigrou para a Amé-
rica do Sul fugindo da crise que assolava seu país natal. Chegou, inicialmente, em Buenos Aires
e visitou Córdoba e Mar del Plata, radicando-se no Uruguai, a partir de 1926, onde permaneceu
até fins da década de 1940. À mesma maneira que Koellreuter, Curt Lange faz parte de um
grande número de imigrantes alemães que vieram para a América no período entre guerras.
“Entre o final da Primeira Guerra e 1933 chegaram em torno de 80.000 alemães para o Brasil,
constituindo-se esse período como o mais intensivo de imigração alemã para o país em toda a
história da imigração alemã” (GERTZ, 1996, p. 85-105).
Depois da Primeira Guerra Mundial, ocorreu uma onda de emigração alemã para a
América Latina que, numericamente, ultrapassou muito àquela ocorrida no século
XIX. O Brasil, durante a República de Weimar, com mais de 58.000 alemães, segundo
as estatísticas governamentais, tornava-se novamente o principal alvo da emigração
alemã para a América Latina e, com isto, o segundo alvo mais importante da emigra-
ção alemã além-mar, perdendo apenas para os Estados Unidos. (RINKE, 2008).
Para compreender a América musical desenhada por Curt Lange, por meio de seu
projeto musicológico intitulado Americanismo Musical, é importante perceber que o seu pro-
jeto correspondia às estratégias de atuação da União Pan-Americana. Neste sentido, Lange
realizaria na Biblioteca do Congresso de Washington, por solicitação do secretário de Estado
dos Estados Unidos, a Primeira Conferência de Relações Interamericanas no campo da música.
Como ressonância desses interesses, foi oficializado pelo governo do Uruguai, em 26 de junho
62
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
Este intervalo de 58 anos foi marcado por tensas relações entre os países hispano-a-
mericanos e os Estado Unidos, devido à agressiva política intervencionista conhecida como
política do Big Stick. A partir dos anos de 1930, com a Política de Boa Vizinhança de Franklin
Roosevelt, os Estados Unidos, com o objetivo de reforçar sua hegemonia na América Latina,
substituem as ações de força por estratégias de relações culturais.
No caso dos estudos sobre as relações entre a América Latina e o Brasil, na mesma
direção da história das representações destacada por Burke (2005) e Chartier (1990), Baggio
(1998) destacou as diferentes imagens e representações construídas pelos intelectuais brasilei-
ros de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX (Eduardo Prado, Manoel de
Oliveira Lima, José Veríssimo, Manoel Bomfim, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Artur
Orlando e Silvio Romero), demonstrando a fluidez e a variação presentes na identificação dos
intelectuais brasileiros com a América Hispânica.
63
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
relação aos demais países americanos. Éramos únicos, singulares, particulares: termos
recorrentes no discurso destes autores. Este distanciamento do Brasil em relação aos
países hispânicos foi, de certa maneira, incorporado pela sociedade brasileira. A iden-
tificação dos brasileiros como latino-americanos é fluida, variável, mais ou menos
presente dependendo das circunstâncias e do momento histórico. A América Hispâ-
nica – vista a partir de olhares brasileiros – é uma outra América, ainda que façamos
parte deste todo complexo e contraditório denominado América Latina. (BAGGIO,
1998, p. 9).
Estes estudos mais recentes sobre a América Latina têm demonstrado que “há no pen-
samento brasileiro sobre a América Hispânica significativas imagens e representações de discri-
minação. Essa ‘outra’ América é vista como um lugar menos desenvolvido e mais caótico que
o Brasil” (DORELLA, 2010, p. 104-122). A primeira metade do século XX é um momento em
que os intelectuais brasileiros nutriam grande resistência em relação aos países hispano-ameri-
canos, resistência que remontaria ao processo de colonização e às rivalidades entre Espanha e
Portugal.
Em 1939, Curt Lange se encontrava em uma intensa atividade política e musical nos
Estado Unidos, pois, para a VIII Conferência Internacional Americana, teriam sido encomenda-
dos a ele, pelo secretário de Estado Cordel Hill, uns quarenta programas musicais de composi-
tores latino-americanos para serem apresentados nos Estados Unidos ainda naquele ano. Ainda
de acordo com Curt Lange, nesse momento foi vislumbrada a visita de Villa-Lobos àquele país.
Porém, isto iria ocorrer somente em 1944 (CURT LANGE , 1988, p. 25).
Em agosto de 1941, Aaron Copland, membro do Comitê de Música do Departamento
de Estado dos E.U.A., iniciou seus contatos pessoais com artistas da América Latina.
Nessas viagens, Copland aproximou-se dos músicos latino-americanos e brasileiros,
em especial, incluindo os que não compartilhavam com a política de Boa Vizinhança
defendida por Roosevelt. Numa conjuntura caracterizada pelo anti-americanismo de
Villa-Lobos, Copland destacou esse compositor como o seu principal interlocutor.
(CONTIER, 2004).
Para Buscacio (2009), há mais de uma década Curt Lange tentava estabelecer um pro-
jeto de integração da América por meio de contatos nos países hispano-americanos, no Brasil
e nos Estados Unidos. O musicólogo tentou transformar seus projetos em programas apoiados
pela União Pan-Americana. Porém, os Estados Unidos, ao contrário, estavam mais interessa-
dos em investir em políticas que estivessem sob seu controle e, de preferência, que estivessem
sediadas em seu próprio território. Nesse sentido, o projeto de Curt Lange, sediado no Uruguai,
foi descartado de forma oficial, apesar de o musicólogo ter sido importante interlocutor dos nor-
te-americanos no contexto dos anos 1940, graças à impressionante rede de relações construída
por ele com as principais personalidades e compositores da vida musical da América Hispânica
e do Brasil, como confirma sua correspondência pessoal.
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
Para Ardao (1987), o que se percebe é que, por detrás dos conceitos de “pan-ameri-
canismo” e “latino-americanismo”, escondidos sob o viés de integração cultural e política, se
escondem os projetos de dominação tanto dos Estados Unidos quanto da França, que iniciavam
seu processo de expansão industrial e consequentemente expansão imperialista. E que desses
conceitos percebe-se, além da busca de aproximações e de dominações, que havia também uma
tomada de posicionamento das nações hispano-americanas. É difícil dizer qual dos projetos
políticos saiu vitorioso nesse “conflito pela América Latina”. O projeto francês talvez tenha se
dado de maneira um pouco mais sutil, mais “cultural”, com a adesão e difusão de intelectuais
hispano-americanos ligados à França, em oposição ao intervencionismo militar norteamerica-
no. Historicamente, a atuação norteamericana parece apagar de certa forma o brilho francês, ou
talvez a historiografia careça de estudos aprofundados sobre o projeto francês de intervenção
na América Latina.
Entre os anos 1930 e 1940, o movimento musical e musicológico, denominado por seu
criador, a partir de 1933, Americanismo Musical, apresentava algumas metas centrais que são
identificadas nos seus textos: a integração musical e musicológica do continente americano; o
incentivo a publicações no campo musical e musicológico; a fundação de instituições culturais,
discotecas e bibliotecas, responsáveis pela guarda da cultura musical e musicológica das Amé-
ricas. Projetos expressos por meio de publicações tais como o Dicionário Latino-Americano de
Música; Guia Profissional Latino-Americano e, em especial, os Boletins Latino Americano de
Música.
O contato entre Curt Lange e Villa-Lobos foi mediado por Mário de Andrade. Em 8 de
março de 1933, Curt Lange escreveu uma carta para o musicólogo brasileiro na qual solicitava
o contato com diversos personagens do cenário musical brasileiro, dentre eles, Villa-Lobos:
Gostaria também que me colocasse em contato, se possível imediatamente, com os
seguintes senhores: Villa-Lobos, Lorenzo Fernández, que sei que é um velho amigo
65
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
seu, o Sr. Braga e o Sr. Burle-Max, eu ouço constantemente. É possível que hoje adi-
cionarei as cartas aos senhores, solicitando que você as envie aos destinatários com
algumas linhas, mas se você não tiver tempo, enviarei em poucos dias.3 (ACL 2.1.
S15.001.152). [Tradução do autor].
Daquele momento em diante, Mário de Andrade passou a ser um dos mediadores entre
Curt Lange e nomes importantes do modernismo musical brasileiro: Villa-Lobos e Lorenzo
Fernandez, além de Andrade Muricy e Renato Almeida.
Na mesma data, Curt Lange escreveu a primeira carta para Villa-Lobos, na qual ao se
apresentar, destacou os objetivos do contato:
Por intermédio do Senhor. Professor Mário de Andrade de São Paulo, permito-me
enviar estas linhas solicitando sua colaboração em uma obra que me permito detalhar
em breves linhas: Sendo professor em Ciências Musicais na Universidade e diretor da
Discoteca Nacional do Governo tenho desenvolvido, dentre outras obras um Léxico
Sul Americano de Música no qual pretendo tratar das manifestações culturais desde
o ponto de vista histórico, crítico, biográfico, estético e científico (...). Agradeceria
infinitamente a você, estimado maestro, se me repassasse alguns contatos de músicos,
intérpretes, cantores e outras personalidades vivas ou não que podem ser incluidas
ou mesmo dados sobre organizações oficiais e seus respectivos diretores. Também
preciso de uma relação de obras de sua autoria impressas em discos com indicação
de marca, número e outros detalhes. correspondentes.4 (ACL 2.2.001.104). [Tradução
do autor].
3 Le agradecería también si me pusiera en contacto, si es posible inmediatamente, con los siguientes seño-
res: Villa-Lobos, Lorenzo Fernández, de quien sé que eres un viejo amigo, el señor Braga y el señor Burle-Max,
oigo constantemente. Es posible que hoy mismo yo agregue las cartas a los señores señores, pidiendo que las
remita a los destinatarios con unas pocas líneas, pero si no tiene tiempo, las enviaré dentro de pocos días.
4 Por intermédio do Senhor. Professor Mário de Andrade de São Paulo, permito-me enviarle estas líneas
solicitando sú colaboración em uma obra que me permito detallar em breves rasgos a continuación: Siendo profes-
sor em Ciencias Musicales em la Univerdidad e diretor de la Discoteca Nacional del Gobierno, he empreendido,
entre otras obras la de um Léxico Sudmericano de Música em el cual tratar é todas las manifestaciones musicales
desde el punto de vista histórico, crítico, biográfico, estético y científico (...). Agradecería infinitamente a Ud.,
estimado maestro, que me facilitara algunas direcciones de músicos, ejecutantes, cantantes e otras personalidades
vivientes y también desaparecidas que pueden ser incluidas en la obra, lo mismo que datos sobre organizaciones
oficiales, y sus respectivos directores. También necesitaría la ración de las obras suyas impresas en discos, con
indicación de marca, número y otros detalles correspondientes.
66
JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
Sobre uma possível ida de Curt Lange ao Rio de Janeiro para desenvolvimento de suas
pesquisas musicológicas, Villa-Lobos afirmou que “Quanto à sua viagem ao Rio, vou trabalhar
para que possa proporcionar a sua vinda, que me dará grande prazer” (ACL2.2S.1096). A pri-
meira viagem de Curt Lange ao Brasil, o musicólogo alemão iria concretizá-la no ano de 1934,
graças ao convite do maestro Walter Burle-Marx, que havia conhecido o musicólogo no ano
anterior, em Montevidéu. Realizou uma série de conferências no Conservatório Brasileiro de
Música, na Associação Brasileira de Imprensa e no Instituto de Educação Caetano de Campos.
Curt Lange permaneceu durante um mês, tempo suficiente para travar relações com figuras im-
portantes das artes e da política brasileira: o próprio Villa-Lobos, Mário de Andrade, Luiz Hei-
tor Correa de Azevedo, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez, Camargo Guarnieri, Guiomar
Novaes, Oneida Alvarenga, Anísio Teixeira, Cândido Portinari, entre outros. Sua permanência
mais longa no Brasil aconteceria apenas em 1944, para a polêmica publicação do VI Volume do
Boletim Latino Americano de Música dedicado à música e à musicologia brasileira.
Em carta escrita por Villa-Lobos em 29 de julho de 1936, nota-se, mais uma vez, que
o musicólogo alemão foi um interlocutor ativo em relação à divulgação das composições do
maestro. Este papel desempenhado por Curt Lange fica explicito na fala do compositor brasilei-
ro ao afirmar: “tenho o prazer de remeter alguns dados sobre meu trabalho na SEMA e minha
atuação na Europa e a minha música ‘Jeribáu’ que pode ser publicada no Boletim sob sua inte-
ligente direção. Um abraço amigo de Villa-Lobos”. (ACL 2.2 S15.1096).
5 Mi querido amigo, He recibido con consiguiente alegría un material precioso que pone Ud. A mi dis-
posición y que daré a conocer en el tercer tomo del Boletín que aparecerá en octubre. Sí posible integralmente.
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
Em 1940, Villa-Lobos foi convidado por Curt Lange para fazer uma série de concertos
em Montevidéu. Aceitando o convite, o músico brasileiro organizou uma “Embaixada Artística
Brasileira” para os concertos no SODRE – Serviço Oficial de Difusão Rádio Elétrica do Uru-
guai, órgão dirigido por Curt Lange.
Poucos meses antes da viagem, Villa-Lobos solicitou a Curt Lange que ele conseguisse
que os músicos brasileiros da Embaixada realizassem alguns concertos remunerados atuando
como solistas no Uruguai durante a estada destes naquele país, “atendendo a que o governo não
lhes pagará suficientemente para indenizá-los do prejuízo que os mesmos terão aqui nas suas
atividades artísticas” (2.2S15.1096).
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
contou com a apresentação de três peças de sua autoria e outras obras de cinco compositores da
música nacionalista brasileira. Mas, é muito significativo observar que os recortes de jornais da
época, selecionados por Curt Lange em seu arquivo, apresentavam, na mesma direção do Ame-
ricanismo Musical de Curt Lange, Villa-Lobos como “o mais alto valor musical da América”
(JORNAL EL DIÁRIO, 1940, ACL 2.2S15.1096) “Artista mais genial e original da América,
“Villa-Lobos terminou a audição com uma suíte de danças afroamericanas” (LA TRIBUNA
POPULAR, 1940, ACL 2.2S15.1096).
Além destas trocas de informações e diálogos muito positivos para ambas as partes, apre-
sentaram-se, também, resistências e dificuldades para concretização do projeto de Curt Lange,
dificuldades estas ligadas às complexas relações políticas do Brasil com diferentes projetos de
integração que envolviam a América Hispânica. As dificuldades encontradas por Curt Lange
para conseguir apoio financeiro e político para estabelecer um diálogo mais próximo com seus
interlocutores brasileiros e para a publicação do referido Boletim pode ser atribuída, também, às
constantes transformações no cenário político brasileiro nos anos 1930 e 1940. Foi um contexto
no qual o Brasil viveu episódios que alteravam significativamente, por meio de crises políticas,
o papel dos intelectuais em relação ao Estado: Revolução Constitucionalista de São Paulo em
1932, o Estado Novo de 1937-1945, dentre outros eventos.
Ecos deste cenário conturbado podem ser percebidos na correspondência entre Curt Lan-
ge e Villa-Lobos. A intenção de uma segunda viagem ao Brasil não se realizou com o apoio de
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
Em carta enviada a Curt Lange naquele mesmo ano, Mário de Andrade, da mesma forma
que Villa-Lobos, expressava sua preocupação com a influência das mudanças políticas no seu
lugar social e no seu trabalho. Nesse momento específico, os dois pesquisadores já tratavam,
também, do projeto de Lange para a publicação do Boletim Latino Americano de Musicologia
dedicado ao Brasil e da viagem do musicólogo ao Rio de Janeiro:
As coisas aqui se transformaram completamente com a mudança política. Nada mais
posso prometer ou garantir, pois subiu gente do partido oposto e estamos sendo fe-
rozmente combatidos. Não vale a pena levantar o problema da publicação agora. Meu
destino não é político, mas cultural [...] Por enquanto não passo de um funcionário
subalterno. Muito cordialmente e tristonho. (ACL 2.2S15.027).
As dificuldades encontradas por Curt Lange para publicação do Boletin dedicado ao Bra-
sil já começam a ficar evidentes nas cartas trocadas com Villa-Lobos a partir de 1941. Numa
delas Villa-Lobos deixa implícita estas dificuldades e também um afastamento em relação ao
projeto editorial de Curt Lange ao afirmar na carta que “Sobre o seu projetado Boletim, tomarei
as necessárias providências por ocasião de sua próxima vinda ao Brasil [...]. Quanto à música
que me pede, poderei mandar-lhe uma, simplesmente como amigo, visto já ter, de longa data,
editores” (ACL 2.2S15.1096).
Ao analisar a rede construída por Curt Lange com os modernistas no Brasil, Cesar
Maia Buscacio afirma que “Curt Lange percebia com grande animosidade a postura de Villa
-Lobos no interior do campo musical”. Numa carta enviada a Camargo Guarnieri em 1940, o
musicólogo alemão afirmou:
A partir de 9 de novembro irei ao norte argentino para fazer alguns estudos. Gostaria
também de ir ao Brasil no próximo ano, mas ainda não sei como e como preparar
minha viagem. Nada pode ser esperado de Villa-Lobos, porque ele pensa apenas em
si mesmo. Eu já sabia disso e, pelo mesmo motivo, nunca pedi nada. Também estou
satisfeito por ter vindo, porque acima de tudo, há sua personalidade forte.6 [Tradução
do autor].
Ao analisar estes embates entre Villa-Lobos e Curt Lange, Assis (2016) afirma que
6 A partir del 9 de noviembre me iré al norte argentino para hacer unos estudios. Gustosamente iría también
al Brasil en el año que viene, pero no sé aún cómo y en qué forma preparar mi viaje. De Villa-Lobos nada puede
esperarse, pues piensa sólo en sí mismo. Yo ya sabía esto y por la misma razón no le pediré nunca nada. Me satis-
face asimismo que haya venido, porque por encima de todo, está su recia personalidad.
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
já estava distribuindo a publicação sem sua autorização. Nesta mesma carta, o musicólogo ex-
pressa seu desagrado referente ao não recebimento de valores ligados aos subsídios do governo
brasileiro referentes à obra. O tom das cartas a partir deste ano de 1946 tornou-se muito menos
amigável. Nas palavras de Curt Lange:
Eu soube pelas notícias de várias pessoas amigas que você já está distribuindo o Su-
plemento Musical do Boletim. Houve comentários nos jornais, dos quais eu não tenho
recebido nenhum deles. Peço-lhe de me dar notícias sobre este particular, pois na
minha última eu já reclamei os Suplementos para iniciar a distribuição, a qual é mais
necessária porque a gente já ficou cansada de esperar, e a chegada do suplemento é
uma espécie de alívio o justificativo. A minha situação também agrava-se de dia em
dia. Peço-lhe de “acompanhar”, como Você disse, o processo, porque aqui preciso
reintegrar dinheiro que recebi do governo em prestação e pagar uma série de dívidas,
muitas delas urgentes, pelo fato de ter-se originado exclusivamente pelo nosso regres-
so. (ACL 2.1S15.488).
Em carta enviada por Villa-Lobos no dia 14 de junho de 1946, ele justifica a morosidade
do processo mais uma vez dizendo sobre o contexto político e menciona outros dois interlocu-
tores importantes do grupo de Lange: Cláudio Santoro e J. Koellreuter.
Não temos descuidado absolutamente de tratar do caso dos Cr$15.000 que você de-
verá receber. [...] Felizmente, foi há dias aprovado pelo presidente Dutra e espero que
não demorará a solução de seu recebimento, assim cremos. Quanto à importância do
“Boletim”, o pagamento está dependendo apenas do Koellreuter que temos mandado
recado pelo Santoro para que nos procure afim de poder lhe ser entregue a mesma.
Infelizmente não poderei facilitar a você o adiantamento que me pede, pois tive com
minha mãe inúmeras despesas, inclusive a compra de um apartamento em que ele
morava e que estou ainda pagando. Além destas despesas, quero dizer-lhe que para
a confecção do Suplemento Musical, devo dar de minhas economias talvez 15.000
cruzeiros (ACL 2.2S15.1096).
As questões que envolvem estas polêmicas presentes nas cartas e que se referem à
publicação do referido Boletim não podem ser reduzidas apenas a questões pessoais entre os
interlocutores. No caso de Villa-Lobos, o compositor, ao longo de sua trajetória, compartilhou
ideias, linguagens musicais, projetos estéticos, aderiu a novas práticas, mas se afastou de outras,
contrariou amigos e se aproximou de outros. Neste jogo identitário de aproximações e afasta-
mentos, construído por meio de redes de sociabilidades observadas na tessitura do pentagrama e
da sonoridade, imaginou uma nação sonora, construiu um rosto musical e imagético do Brasil.
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
relacionados ao final da ditadura do Estado Novo, regime ao qual o compositor brasileiro estava
vinculado por estar à frente da Secretaria de Educação Musical e Artística submetida à pasta de
Gustavo Capanema. Mas por outro lado, as relações com o musicólogo teuto-uruguaio foram
fundamentais para a difusão e a internacionalização da obra do compositor.
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JUNIOR, L.A . HEITOR VILLA-LOBOS E O AMERICANISMO MUSICAL
DE FRANCISCO CURT LANGE
JORNAL EL PLATA. Obras de Villa-Lobos bajo la dirección Del autor. Montevideo. 16/10/1940
Recortes ACL/Biblioteca Central/UFMG. 2.2.S.15.1096
MOURÃO, Rui. O alemão que descobriu a América. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1990.
75
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Resumo. Este trabalho apresenta e discute a evolução da crítica musical desde o século XVIII até o
século XX, com suas principais características. Faz uma breve abordagem das características socio-
culturais das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro para, então, expor as críticas publicadas nos
jornais sobre o trecho sinfônico do bailado Dança Frenética, do primeiro ato da ópera Zoé de Heitor
Villa-Lobos, apresentada, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, pela orquestra da Sociedade
de Cultura Artística e, no mesmo ano, apresentada no Rio de Janeiro pela orquestra Filarmônica de
Viena. As críticas abordadas neste artigo foram publicadas pelos jornais paulistas Correio Paulistano
e Folha da Noite e pelo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, esse, a cargo de Oscar Guanabarino.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Dança frenética. Crítica musical. Oscar Guanabarino.
The Dança Frenética (Frenetic Dance): echoes of critique on Rio de Janeiro and São Paulo
in the 1920’s
Abstract. This paper presents and discusses the evolution of musical criticism from the eighteenth
century to the twentieth century with its main characteristics. Briefly discusses the socio-cultural
characteristics of the cities of São Paulo and Rio de Janeiro, and then exposes the critics published in
the newspapers about the symphonic piece of Dança Frenética (Frenetic Dance), from the first act of
the opera Zoé by Heitor Villa-Lobos as composer, presented at the Municipal Theater of São Paulo
in 1922 by the Orchestra da Sociedade de Cultura Artística (Society of Artistic Culture Orchestra)
and in the same year presented in Rio de Janeiro by the Vienna Philharmonic Orchestra. The criti-
cisms addressed in this article were published by the newspapers Correio Paulistano and Folha da
Noite from the City of São Paulo and the Jornal do Commercio on Rio de Janeiro, this one by Oscar
Guanabarino responsability.
Keywords. Villa-Lobos. Dança frenética (Frenetic dance). Musical criticism. Oscar Guanabarino.
Introdução
1 MARIA APARECIDA DOS REIS VALIATTI PASSAMAE atua como violista da Orquestra Sinfônica
do Estado do Espírito Santo, Coordenadora Pedagógica da Pós-graduação lato sensu em Música de Câmara da
Alpha Cursos e como empresária musical no mercado de Vitória. Além destas, atuou também como violista na
Orquestra da Universidade Federal do Espírito Santo e da Orquestra da Faculdade de Música do Espírito Santo.
Professora de viola no Programa Vale Música até 2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Mu-
sicologia. Instituto de Ensino Superior Professor Nelson Abel de Almeida, Pós-graduação latu sensu em Educação
Pré-escolar. Faculdade de Música do Espírito Santo, Bacharel em piano e em viola e Licenciatura em Música. Uni-
versidade Federal do Espírito Santo, Licenciatura Plena em Pedagogia. Prêmio FUNARTE em produção crítica em
música 2016. Análise da sonata para viola e piano de Radamés Gnattali: primeiro movimento (ANPPOM, 2015).
A crítica na mudança dos paradigmas da apreciação musical do século XX (ANPPOM, 2015). Temporada lírica
de 1922: os cenários do Rio de Janeiro, Europa e América do Sul (VI SIM-UFRJ, 2015). Oscar Guanabarino e o
português brasileiro no canto erudito (SIMPOM, 2014). A pedagogia do piano: o método de Oscar Guanabarino
(XIV SEMPEM, 2014). Radamés Gnattali, a era Vargas, e a construção da identidade nacional (ANPPOM, 2011).
CD Melodiário (MD-Musicservice Ltda, 1997).
76
PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
São Paulo, por essa época, era uma realidade totalmente diferente da cidade do Rio
de Janeiro, que usufruía os benefícios da bela urbanização, herança da política que lhe trouxe
a aparência da Paris da belle époque (PASSAMAE, 2013, p. 71). Possuía suas especificidades
configuradas, ao contrário do Rio com seu cosmopolitismo parisiense, no “[...] empenho das
elites locais, mergulhadas num universo de imigrantes de múltiplas nacionalidades em bus-
car uma mítica identidade regional empreendedora” (PINTO, 1999, p. 140 apud PASSAMAE,
2013, p. 71).
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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
xada francesa no Rio, entre 1917 e 1918, e surpreendeu-se com a descoberta de “[...] uma elite
viajada e bem informada que lhe permitia viver num ambiente sintonizado com a cultura de seu
país” (GONÇALVES, 2012, p. 234 apud PASSAMAE, 2013, p. 71).
São Paulo, por outro lado, passava, na década de 20, por transformações vigorosas
“[...] de todas as naturezas: econômicas, sociais, administrativas e principalmente culturais”. Sua
conformação não era conhecida em sua totalidade, pois ainda se formava. A composição desse
semblante se apoiava, “[...] por um lado na influência do modelo civilizador e modernizador da
Belle Époque europeia - particularmente a francesa - e de outro numa sólida herança cultural,
advinda das nossas raízes coloniais” (PINTO, 1999, p. 140 apud PASSAMAE, 2013, p. 71).
A crítica musical do século XIX foi submetida a uma mudança de estilo que já vi-
nha se apresentando desde fins do século XVIII. Assim, “tornou-se pesada, mais simples e aces-
sível, também mais flexível, ao que a mentalidade romântica acrescentou o entusiasmo, a poesia
e às vezes o idealismo na abordagem e apreciação da música” (SUPICIC, 1997, p. 671). No
século XVIII, o crítico musical era um especialista, músicos competentes ou mesmo teóricos.
Com o aumento do público e o novo cenário da música e dos músicos no século XIX “[...] quase
todo mundo começou a sentir-se com direito de dar palpite nessa área, o que contribuiu para o
desenvolvimento de um certo diletantismo e impressionismo crítico”. A crítica profissional e
competente, de um lado, e a que não o era, de outro, passaram a coexistir lado a lado. Músicos
notáveis e de renome, como Schumann e Berlioz, foram críticos. Mas escritores metidos, “sem
competência específica, como Stendhal e Balzac, formavam um numeroso grupo que também
escreveu sobre música” (SUPICIC, 1997, p 671-72).
O problema parece persistir ao longo do século XX, como pode ser observado no
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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
artigo de Liliana Harb Bollos, intitulado Crítica musical no jornal: uma reflexão sobre a cultura
brasileira. Embora o foco do texto seja a crítica jornalística de música popular, a autora comen-
ta a crítica jornalística de música erudita efetuada por escritores na primeira metade do século
XX e a transição para os cronistas na segunda metade. Assim, segundo a autora, “a crítica de
música erudita [...] produziu um jornalismo cultural de características literárias desde a primei-
ra metade do século XX com expoentes importantes da nossa cultura como os escritores Mário
de Andrade, Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux” (BOLLOS, 2005, p. 271). Vale observar
que alguns desses personagens possuíam também formação musical, embora suas atividades
principais ficassem no campo da poesia e literatura. Mário de Andrade, por exemplo, lecionava
piano e atuava como musicólogo com obras de etnomusicologia e Otto Maria Carpeaux, erudito
de primorosa formação, autor de vasta obra literária que inclui Uma Nova História da Música,
entre outros expoentes da cultura brasileira.
Por outro lado, citando Adorno, mostra que, de modo geral, aos críticos musicais
jornalísticos do século XX, falta conhecimento do objeto, ou seja, da música e, nesse sentido, a
crítica passa a sofrer uma influência subjetiva muito além do razoável e a análise vem, de certa
forma, contaminada.
Influenciado pela indústria cultural e pelo poder dos meios de comunicação (e mais
tarde pela obrigatoriedade do diploma de jornalismo), esse formato de jornalismo im-
pôs novos padrões à crítica musical, sendo o escritor substituído pelo ‘cronista’, pelo
jornalista não-especialista, e irá explorar do texto um caráter mais ideológico e histó-
rico e menos estético, deixando os aspectos musicais para segundo plano (BOLLOS,
2005, p. 271).
Um dos mais importantes críticos de artes das últimas décadas do século XIX e das
primeiras do século XX, Oscar Guanabarino de Sousa Silva (Niterói, 1851 – Rio de Janeiro,
1937), chegou a debater com outro colega, crítico de outro jornal, essas lacunas na formação
técnica de um lado e, de outro lado, a questão do caráter duvidoso, também citado por Bollos
em seu artigo, numa citação direta de Adorno.
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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
ladrão, refere-se à prática do antagonista em copiar e publicar, como seus, textos de terceiros
mais de oito vezes após ter sido pilhado no ato (PASSAMAE, 2013, p. 83).
A peça foi apresentada em São Paulo, em 07 de março de 1922, cerca de duas sema-
nas após o festival da Semana de Arte Moderna de São Paulo (11/02 a 18/02/1922) e noticiada
na coluna Registro de Arte do jornal Correio Paulistano que não vem assinada. Segundo o jor-
nal, a obra foi apresentada “perante uma seleta assistência, [...] no Theatro Municipal, [como]
mais um interessante sarau da Sociedade de Cultura Artística, com um concerto sinfônico, em
que foram executados exclusivamente trechos do compositor patrício Sr. Villa-Lobos”3.
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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
palmas a ótima execução que deu ao concerto primeiro de violoncelo e orquestra”5. A orquestra,
da Sociedade de Concertos Sinfônicos, foi regida pelo maestro Villa-Lobos.
Vale lembrar que outros jornais, como o Folha da Noite6, em meados de fevereiro,
em matéria também não assinada, referindo-se à Semana de Arte Moderna, comenta que as ex-
pectativas eram tenebrosas devido às promessas prévias dos promotores e, embora o programa
apresentado houvesse sido inusitado, os ditos “reformadores” da arte passaram “a gozar da re-
putação de idiotas”. Não obstante o jornal ter considerado Villa-Lobos “um grande compositor
e [...] um temperamento artístico excepcional”, considera também que as tendências mostradas
no programa da Semana “estariam melhor num capítulo de psicopatologia”.
A mesma peça foi apresentada no Rio de Janeiro pela Filarmônica de Viena sob o
maestro Felix Weingartner (1863 – 1942), acompanhada de perto por Oscar Guanabarino, o
pianista, professor e crítico nos jornais O Paiz e Jornal do Commercio. Guanabarino não foi
menos duro com a composição do que apresentou a Folha da Noite.
A obra fora também repudiada pelo público e o “repúdio da plateia carioca à peça
do maestro Villa-Lobos, consubstanciado em risos durante a execução, ensejou comentário do
poeta Ronald de Carvalho” ao que, Oscar Guanabarino confronta os cenários dos “concertos
da Filarmônica de Viena e os dirigidos pelo maestro Francisco Braga” com a orquestra da So-
ciedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro que nunca aconteciam diante de “[...] poltronas
vazias, como aconteceu agora com os concertos futuristas do Sr. Villa-Lobos” (PASSAMAE,
2013, p. 70).
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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
com a audição de O naufrágio de Kleonikos, de Villa-Lobos, ‘já executado nesta Capital, mas
muito antes do Pelléas et Mélisande’”. Guanabarino prossegue na crítica elogiosa, na opinião
de Marques, de O naufrágio de Kleonikos: “[...] vimos, então, que Debussy não é esse gênio
que mereça tão alto pedestal como querem os músicos futuristas ou coisa que o valha. O traba-
lho do nosso patrício vale muito mais do que a partitura do nefelibata francês”. Prosseguindo,
ainda segundo Marques, Guanabarino justifica sua apreciação sobre O naufrágio no contexto
da obra de Debussy:
A contradição, por outro lado, é apresentada quando, em 1922, dois anos depois,
portanto, Guanabarino encerrava, segundo Marques, “uma das críticas dos concertos dos filar-
mônicos vienenses regidos por Weingartner”:
“[O público] Aplaudiu também o Ave! Libertas, de Leopoldo Miguez, e com cer-
teza não compreendeu a Dança frenética de Villa-Lobos, talvez por estar errado o título, que
deveria ser Dança de S. Guido, com uma nota explicativa que dissesse: Para ser executada por
músicos epilépticos e ser ouvida por paranóicos” (MARQUES, 2011, p. 5).
Conclusão
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DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
Durante o século XIX, foi se transformando com o aumento do público, pois, neste
período, já se desvinculara de serem demandadas pela aristocracia e pela Igreja, como ocorria
no século anterior. Se, de um lado, figuras de elevado conhecimento técnico como Hanslick
e músicos como Schumann e Berlioz, estiveram nessa atividade de críticos, por outro lado,
grandes escritores carentes de competência específica, como Stendhal e Balzac, também se
meteram a escrever críticas de artes musicais. Mas havia muitos sem uma coisa ou outra e cujas
motivações eram de más intenções, tendenciosas e de apadrinhamentos que os levavam a dizer
absurdos em relação aos objetivos de uma crítica musical autêntica e verdadeira. Esse processo
continuou no século XX, apenas deixando de ser exercido pelos grandes escritores, mas guar-
dando os vícios observados anteriormente, em parte, com carência de conhecimento técnico e
em parte motivada por interesses nem sempre virtuosos, com as exceções de sempre.
A constatação pode ser verificada num debate aberto pela imprensa especializada
entre Oscar Guanabarino e um outro crítico musical sem qualquer capacitação e com baixo
padrão moral e ético.
Heitor Villa-Lobos compôs, em 1919, a ópera Zoé em 3 atos, com libreto de Renato
Vianna, na qual, em seu primeiro ato, há um bailado intitulado Dança Frenética, com um trecho
sinfônico apresentado, em 1922, em São Paulo, pela orquestra da Sociedade de Cultura Artís-
tica, regida pelo compositor e, no mesmo ano, no Rio de Janeiro pela orquestra Filarmônica de
Viena.
As críticas publicadas pelos jornais da época, tanto em São Paulo quanto no Rio,
não são, de modo geral, favoráveis à obra e repercutem a mesma impressão do público, com
exceção do Correio Paulistano, cuja crítica é apresentada numa linguagem menos contundente
que os demais e relata que a obra apresenta, “não raro, [...] inovações nem sempre felizes”.
Outros jornais paulistanos são mais contundentes, classificando o programa como caso de psi-
copatia, como é o caso do Folha da Noite.
A crítica efetuada pelo principal articulista de arte carioca, Oscar Guanabarino, foi
muito ácida, acompanhando a linha do Folha da Noite. Para o crítico carioca, a obra se resume
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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
num “amontoado de notas que chocalham como se todos os músicos da orquestra tocassem pela
primeira vez” e, portanto, as notas “[...] perdem o seu colorido, o seu timbre, a sua nobreza e
majestade, transformando [-se] em guizos, berros e latidos”. Portanto, nesse caso, não se tem
uma peça musical.
Assim, verifica-se que, de modo geral, o trecho sinfônico do bailado Dança Fre-
nética, do primeiro ato da ópera Zoé, composta por Villa-Lobos em 1919, não foi muito bem
aceita pela crítica especializada tanto em São Paulo, quando foi executada no Teatro Municipal
pela orquestra da Sociedade de Cultura Artística daquela cidade, regida pelo compositor, quan-
to no Rio de Janeiro, quando foi executada pela Orquestra Filarmônica de Viena, regida por
Felix Weingartner.
REFERÊNCIAS
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Opus, Goiânia, v.11, n.11, p. 270-282, dez. 2005.
GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922: a semana que não terminou. 14. ed. São Paulo: Cia. das
Letras, 2012.
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PASSAMAE, M. A. R. V. A DANÇA FRENÉTICA: ECOS DA CRÍTICA NO RIO
DE JANEIRO E SÃO PAULO NOS ANOS 1920
PASSAMAE, Maria Aparecida dos Reis Valiatti. Oscar Guanabarino e sua produção crítica
de 1922: 2013. Dissertação (Mestrado em Musicologia) - Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro, Rio de Janeiro, 2013.
PASSAMAE, Maria Aparecida dos Reis Valiatti. Temporada lírica de 1922: os cenários do Rio
de Janeiro, Europa e América do Sul. In: VI SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLO-
GIA DA UFRJ, n. 6., 2015, Rio de Janeiro/RJ. Anais... Rio de Janeiro: VI Sim, 2015. p 2 – 15.
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cultura de massas e representações na paulicéia dos anos
20. Revista Brasileira de História, São Paulo: Departamento de História/FFLCH-USP, v. 19,
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SUPICIC, Ivo. Situação sócio-histórica da música no século XIX. In: MASSIN, Jean; MAS-
SIN, Brigitte. História da música ocidental. Trad. Ângela Ramalho Viana, Carlos Sussekind e
Maria Teresa Resende Costa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 661-672.
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Resumo: A prática violonística brasileira pode se orgulhar de ter em sua produção algumas das
séries de “Estudos” mais célebres mundialmente. Enquanto os “12 Estudos para violão” (1929)
de Heitor Villa-Lobos são amplamente adotados didaticamente, tocados e gravados ao redor do
globo, o mesmo não pode ser dito a respeito da série homônima de Francisco Mignone, embora
também celebrizada internacionalmente, mas dessa vez por suas dificuldades que para muitos
beiram a impossibilidade. Tal mito tem criado uma barreira (ou ao menos uma falta de estímulo) aos
intérpretes a enfrentar, discutir (academicamente ou não) executar e gravar os estudos Mignonianos,
fato também estimulado por uma natural comparação ao marco gerado pelos estudos Villa-
lobianos, já bem absorvidos pela comunidade violonistica. O objetivo deste artigo é promover uma
comparação entre os mesmos que não busque julgá-los uns à luz dos outros, mas entender e valorizar
suas qualidades, defeitos, similitudes e diferenças.
Palavras-chave: Estudos para violão. Francisco Mignone. Heitor Villa-Lobos.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
Dessa forma, teceremos comparações entre estes dois corpos de estudos, valorizando
suas especificidades a fim de tentar entender o fenômeno que os cerca, trazendo para o âmbito
acadêmico uma discussão que tem perdurado décadas na informalidade.
A primeira diferença notável entre tais compositores reside em sua relação com
o instrumento: enquanto “o violão esteve presente na vida e na obra de Heitor Villa-Lobos”
“desde sua primeira composição [...] até a década final de sua vida” (AMORIM, 2009, p.19),
Mignone somente se aproximaria em sua maduridade. Embora ambos tenham tido contato
com o chorões, apenas Villa-Lobos o fez com o violão, o que lhe propiciou convívio com os
maiores nomes do violão local (Sátiro Billhar, José do Cavaquinho, João Pernambuco, Donga,
e Quincas Laranjeiras, entre outros), além de declarar ter contato com os métodos tradicionais
(Carulli, Sor, Aguado e Carcassi), gerando conhecimento profundo do instrumento (AMORIM,
2009, p.47-50; TABORDA, 2004, p. 58-59 e 77-78).
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
Estudo 2 (Lá maior / A-B monotemática): Estudo de arpejos com ligados (ritornellos
a cada compasso). ME também com um acorde por compasso, mas agora não estático, ou seja,
há amplo translados e saltos. Ocorrência de uma escala que atravessa quase toda a extensão do
instrumento. Segundo Amorim “na escrita, talvez seja o menos audacioso”, porém demanda
“alto nível de exigência técnica” para sua execução (AMORIM, 2009, p.133). Segundo Turíbio
Santos (1975, p.16, apud AMORIM, 2009, p.133) parte de uma ideia básica de Dionísio
Aguado enquanto Thiago Abdalla (2005, p. 30) vê semelhanças com o “Estudo Nº 20” de
Mateo Carcassi.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
exigindo independência de movimentos dos dedos de ambas a mãos e legato. Para Antunes e
Fernandes (2009, p. 30) “há uma nítida alusão à viola caipira, com acompanhamento em terças
[paralelas] e melodia propositadamente monótona”.
Estudo 9 (Fá sustenido menor / Seção única repetida variada): Para Amorim “a
ideia fundamental consiste nas variadas ornamentações do tema principal ... muito simples,
consistido de uma melodia em graus conjuntos de caráter descendente” (AMORIM 2009,
p.135). Para Antunes e Fernandes (2009, p. 30) “é mais voltado, principalmente à sua segunda
parte, aos ligados, e sua alusão novamente à viola caipira é preponderante”.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
(com 3 cordas em uníssos) com movimento paralelo da ME, toque duplo de polegar MD.
Abdalla (2005, p. 33) encontra semelhanças com o Estudo 4 no que tange à ocorrência de
acordes repetidos, que neste estudo aparecem em terças maiores.
Estudo 1 – Vivo (Lá menor): Estudo de arpejos em tercinas, com longa melodia
cantabile (que segundo APRO, 2004, p.92, remete ao Estudo Brilhante de Francisco Tárrega
e Sinfonia n.4 de Brahms) normalmente na voz superior, mas por vezes a atenção melódica
se volta a outras vozes. Faz uso de grande parte da tessitura do instrumento. Também há a
ocorrência de ligados e harmônicos articificais.
Estudo 3 – Tempo de chorinho (Sol maior): Estudo misto, iniciado por trabalho
de melodia com respostas no baixo (alla baixaria de choro). A melodia superior aparece em
escalas, terças, décimas e em blocos de acordes com 3 ou 4 notas, com conotação caipira. Há
grandes e súbitas mudanças de agógica.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
de Villa-Lobos. A segunda seção (que é rememorada no final) apresenta acordes de 5 notas com
notas ligadas, o que trabalha independência da ME e a dinâmica suave exige controle da MD.
A melodia principal do estudo somente é apresentada na segunda página, primeiramente na voz
inferior (polegar) acompanhada por pontuações de acordes chapados e arpejados. No compasso
64, a mesma melodia aparece na voz superior acompanhada por acordes quebrados. Também
há aparições de escalas cromáticas, acordes chapados repetidos insistentemente e harmônicos
artificiais.
Estudo 8 – Allegro (Sol menor): “Um dos mais difíceis da série, possui elementos
de trabalho que vão de arpejos e escalas até a rasgueados e notas repetidas” (ANTUNES e
FERNANDES, 2009, p. 31). Contrastando com a harmonia áspera e ritmo frenético predominante
da peça, a peça é finalizada com acordes maiores paralelos de conotação também caipira.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
de movimentação dos dedos da ME. A seção central também trabalha melodia acompanhada,
mas agora em arpejo também em posição fechada.
Estudo 11 – Andante (Ré menor): “Com seu subtítulo Spleen (que nos remete
rapidamente a aspectos da literatura romântica, inclusive a de autores brasileiros da primeira
metade do século dezenove), é novamente mais um estudo de interpretação (ANTUNES
e FERNANDES, 2009, p. 31)”. A primeira seção apresenta melodia que se movimenta
primeiramente em blocos de acordes chapados na região médio-grave, contra pontuações
no baixo, exigindo trabalho em blocos da MD. Em seguida a melodia é desenvolvida pela
voz superior com acompanhamento mais complexo, levando ao clímax no compasso 26 com
interessante e rara figuração em quiálteras de 7. O final sutil é alcançado pelo uso de harmônicos
e reexposição variada da introdução.
Idiomatismo
Para esta seção, tomaremos como ponto de partida o tópico “Síntese dos elementos
que caracterizam a escrita de Villa-Lobos para violão” do livro de Amorim (2009, p.167-172),
comparando-o com os procedimentos habituais dos estudos de Mignone.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
Uso idiomático das cordas graves (4ª, 5ª e 6ª): Mignone também faz este uso, mas
não sendo violonista não o faz de forma tão idiomática quanto Villa-Lobos.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
Exploração do potencial harmônico do violão: cada qual o faz à sua maneira, Villa-
Lobos mais voltado a elementos orgânicos como fôrmas de acordes, paralelismos (horizontais e
verticais) e Mignone, embora também use paralelismo e fôrmas, o faz menos frequentemente,
mas não deixa de ser menos inventivo no uso arrojado do violão como instrumento harmônico
(o Estudo VII basta para comprovar isso).
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
Dificuldades
Uma das questões mais polêmicas em relação a estas séries de estudos remete às
suas dificuldades. A tendência habitual (e de certa forma errônea) é a de se pensar que o ciclo
de Mignone é “mais difícil” simplesmente baseando essa opinião em uma impressão auditiva
ou na repetição de verdades alheias (em outras palavras o “ouvi falar...”), fato compreensível
quando poucos se aventuraram a tocar tais estudos.
Por outro lado, muitos estudantes são apresentados muito cedo a estudos (por vezes
difíceis) de Villa-Lobos e essa exposição precoce somada ao estudo intenso e prolongado os
faz, anos depois, julgá-los “fáceis” simplesmente por estarem em sua zona de conforto.
Para exemplificar o quão distintas podem ser as opiniões, nossa avaliação teria
algumas diferenças em relação à de Abdala no que tange às obras de Villa-Lobos e Mignone.
Em nosso julgamento, a ordem de dificuldade progressiva dos estudos de Mignone após estudo
diligente por mais de 2 anos, seria mais ou menos a seguinte: 2, 11, 10, 7, 5, 3, 1, 4, 6, 9, 8 e 12.
Mesmo assim não consideremos nossa opinião isenta. Tomamos como exemplo os de número 4
e 6, que foram as primeiras obras a serem estudadas por nós e que, portanto, podem estar sendo
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
Outra diferença notável entre as séries de estudos é sua duração, sendo a de Mignone
mais longa que a de Villa-Lobos, autor que segundo Mário de Andrade “se expressa [...] muito
melhor dentro das formas estruturalmente de pequena duração no tempo” (apud AMORIM,
2009, p.125). Assim sendo, reunimos na tabela abaixo as durações médias de ambos os ciclos,
para melhor sua visualização.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
Enquanto Segóvia deu pouco proveito à obra a ele dedicada, o brasileiro Turíbio
Santos soube aproveitá-la para lançar sua carreira (somada a outros feitos) se tornando
o concertista ideal para a tarefa de defendê-la frente aos apreciadores do violão. Em 1963
ele gravaria os 12 estudos a convite de Arminda Villa-Lobos e os apresentaria no dia 21 de
novembro daquele mesmo ano no Palácio Gustavo Capanema do Rio de Janeiro, configurando
a primeira performance integral em concerto (SANTOS, 2015, p.29). Resumidamente, a partir
dai (do esforço deste intérprete, entre inúmeros outros) os estudos ganharam mundo, criando-
se uma reação em cadeia para sua popularização e consequente divulgação. Para dar-se conta
de seu sucesso atual, basta dizer que Amorim levantou a existência de ao menos 93 gravações
parciais ou integrais desses estudos (ver Amorim, 2007, Anexos, p.231-234), sendo que o
próprio Turibio os gravaria 4 vezes...
Por outro lado, eis a situação dos estudos de Mignone: compostos em 1970 eles
foram editados logo em seguida em 1973 pela Columbia Music Company, e não tardaram tanto
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
a ser gravados em LP pelo próprio dedicatário da obra, em 1978, pela Polygram (esgotado),
que também nos declarou ter feito várias performances parciais do ciclo em concertos. Porém,
após esse pontapé, temos conhecimento de poucos intérpretes que se dedicaram aos mesmos
(dos quais elencaríamos Fábio Zanon, Paulo Pedrassoli, Flávio Apro e o próprio autor deste
artigo) havendo apenas a gravação de Flávio Apro disponível comercialmente. Nestes anos este
ciclo ganhou indiscutível notoriedade, mas infelizmente aliada a uma reputação de que suas
dificuldades seriam intransponíveis.
REFERÊNCIAS
ABDALLA, Thiago. “Análise Técnico-interpretativa dos ciclos de Estudo para violão de César
Guerra-Peixe, Radamés Gnatalli e Heitor Villa-Lobos”. Trabalho de Conclusão de curso (TCC).
ECA-USP, 2005.
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DELVIZIO, C. M. O VIOLÃO EM ESTUDOS - ENTRE
VILLA-LOBOS E MIGNONE
APRO, Flávio. “Os fundamentos da interpretação musical: aplicabilidade nos 12 etudos para
violão de Francisco Mignone”. Dissertação de mestrado, UNESP, 2004.
GLOEDEN, Edelton. “As 12 valsas brasileiras em forma de estudos para violão de Francisco
Mignone: um ciclo revisitado”. Tese de doutorado, USP, 2002.
MARIZ, Vasco (org.). “Francisco Mignone, O homem e a obra”. Rio de Janeiro, p.45, Funarte
& ED.UERJ, 1997.
Partituras:
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Escrever para violão solista e orquestra constitui um desafio para os compositores e o presente
artigo trata dessas questões. Por natureza, o violão é um instrumento que, dificilmente, consegue
se sobressair à frente de uma orquestra, mas isso não impediu uma produção ampla para essa
formação, sobretudo, depois da segunda metade do século XX. Por meio de análises de trechos de
obras compostas com essa formação, este artigo apresenta estratégias no sentido de facilitar a escrita
para violão solista e orquestra, tendo como objetivos valorizar o timbre do violão e estabelecer um
equilíbrio sonoro entre o solista e a orquestra.
Palavras-chave: Concerto para violão. Orquestra. Timbre. Composição.
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta aspectos acerca da escrita para violão solista e orquestra, e
apresenta, também, questões que esse tipo de escrita levanta sendo que, uma delas, consiste em
lidar com o timbre intimista do violão e com a mistura desse timbre com o da orquestra.
Existem mais de mil de concertos escritos para violão e mais de trezentos gravados.
Porém, apesar dessa realidade, escrever para violão e orquestra não deixa de ser uma tarefa
delicada, podendo-se dizer, ousada.
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BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
1808 e foi composto por Mauro Giuliani1. Desde então, vários compositores se interessaram por
essa formação, resultando em um repertório crescente para violão e orquestra.
Para tanto, este artigo está estruturado em itens distintos sendo que o primeiro deles
está reservado à contextualização histórica do timbre, da orquestra e da formação para solista e
orquestra. Num primeiro momento conceituei o timbre a partir de diferentes vieses.
Por outro lado, observa-se que o violão é pouco comentado nos métodos tradicionais
de orquestração, nos quais não existem descrições detalhadas das possibilidades técnicas do
instrumento, nem descrição de tessituras; isso provavelmente ocorre por não ser um instrumento
da orquestra. Portanto, faço a seguir essa descrição do violão e das suas possibilidades.
Vale deixar claro que quando cito o violão solista na formação de concerto considero,
nesses casos, que o violão é amplificado. Hoje em dia, é difícil imaginar um violonista solista
tocando na frente de uma orquestra sem amplificação, a não ser que essa escolha seja conceitual.
Finalizo o artigo tecendo consideração finais sobre esse concerto destacando como
o compositor criou texturas orquestrais que permitem que o violão se sobressaia.
O timbre do violão
O timbre é um dos princípios básicos do som e está em toda parte; somos rodeados
por timbres. Porém, é difícil atribuir ao timbre uma definição clara, abrangente e definitiva.
1 Mauro Sergio Giuseppe Pantaleo Giuliani (1781-1829) foi um violoncelista, violonista e compositor
italiano (Nota da autora).
104
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
Nesse sentido, Manoury (1991, tradução da autora) afirma: “falar de timbre é como
falar de gosto.” As diferentes tentativas de apropriação do timbre, como componente musical,
ao longo do século XX, entraram em conflito tanto no que diz respeito à sua natureza quanto à
sua definição. Contudo, sabemos que hoje em dia, o timbre se impõe claramente como elemento
fundamental da composição. E, por mais que se sabia sobre o timbre, mais o horizonte desse
total entendimento fica distante.
Para introduzir essa análise sobre o timbre do violão, gostaria de lembrar um trecho
de um depoimento, de Andrés Segovia, considerado, até hoje, o pai do violão. Esse depoimento
foi concedido a Christopher Nupen autor de um documentário, de 1967, denominado Andrés
Segovia at Los Olivos.
De fato, [o violão] é como uma orquestra que olhamos com binóculos ao contrário.
O que quero dizer é que todos os instrumentos da orquestra estão dentro do violão,
mas com menos potencia sonora. Ele tem diferentes cores e timbres, e por isso é
necessário desenvolver essas qualidades do instrumento (SEGOVIA, apud NUPEN,
1967. Tradução desta autora).
Na maioria dos métodos de orquestração, podemos achar uma tabela que descreve o
timbre dos instrumentos segundo a tessitura em que eles se encontram; não se vê nada parecido
para violão. Diante disso é que proponho descrever os timbres do violão segundo as tessituras
e digitações normalmente usadas.
105
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
Ressalta-se, contudo, que essa descrição não pode ser considerada uma referência
perfeita, porque nela o papel da mão direita é totalmente deixado de lado.
Sabe-se que na produção do som o papel da mão direita é de suma importância, pois
é responsável por pulsar a corda. A maneira de fazer a corda vibrar pode mudar muito e o ato de
pulsar da corda depende de vários fatores tais como: qualidade das unhas, formato das unhas,
ponto onde a corda é pulsada, angulo de ataque da unha, dentre outros.
Dependendo do ponto onde a corda é pulsada, por exemplo, podemos obter timbres
bem diferentes: perto do cavalete o som é ponticello e tem uma característica metálica e nasal;
entre a boca e o cavalete o som é bem projetado e tem um caráter muito brilhante; na altura
da boca do violão, é considerado o ponto neutro de ataque; é um som cheio e brilhante com
excelente projeção. Ainda temos o som sul tasto, que ocorre quando a corda é pulsada entre as
casas XIV e XIX, e que tem uma característica doce.
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BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
Como foi dito na introdução deste estudo, a escrita para violão solista e orquestra é
um desafio para os compositores, especialmente no que diz ao equilíbrio dos timbres e volumes.
A primeira formação era bem maior, full strings, double quase tudo [se referindo aos
instrumentos de sopro, nda], era bem grande. A orquestra do Saci é bem menor.
Na época, mesmo as passagens com violão e quarteto não deram certo... acho que por
conta dos registros... não deu certo! Pizzicato era o único que funcionava. Quando
passava para arco, soava mal, engolia tudo...
E fiquei muito triste na época, então fiz uma análise da minha própria peça e fiquei
muito crítica comigo mesmo, e acho que acabei entendendo bastante coisa ali, até de
forma inconsciente... tentei identificar os erros, mas não foi totalmente consciente.
[...] em todo caso, quando a orquestração fica muito cheia, ou a orquestra está sozinha,
ou o violão fica fazendo strumming ou a orquestra fica dando acentos pontuais, ela
só está colorindo o que o violão está fazendo, sem engolir o violão, isso é uma outra
estratégia (ASSAD, 2017, entrevista concedida a esta autora).
Fica claro no depoimento de Assad (2017) que compor para violão solista e
orquestra constitui um desafio. Ao afirmar: “a orquestra engoliu o violão!”, a compositora
revela a dificuldade que há em equilibrar o solista com o resto da orquestra.
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BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
Fica claro nestes depoimentos que a questão do equilíbrio entre o violão e a orquestra
era uma real preocupação para Villa-Lobos.
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BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
que Villa-Lobos conceda uma nova versão onde constaria uma cadencia, que se situa entre o
segundo e terceiro movimento. (SANTOS, p.29)
Por fim, Segovia teria feito algumas mudanças, como esclarece Almeida
Quando, no ano de 2003, Ângelo Gilardino trabalhava na catalogação dos arquivos deixados
por Segovia, o famigerado “Arquivo de Linares”, encontrou cópia do manuscrito da redução
para piano e violão da então Fantasia Concertante e, no meio dessa cópia, encontrou
também três folhas em que Segovia havia escrito algumas mudanças na partitura, segundo
Gilardino, à revelia do compositor, com o intuito de obter uma escrita mais violonística e
sonora para o instrumento. (ALMEIDA, 2006, p.131)
No exemplo ilustrado na Fig. 2, é possível observar que o violão está sendo dobrado
por quatro instrumentos: oboé na região media-aguda, fagote na região aguda, violino II e viola
em pizzicato. O oboé nessa região tem um timbre agradável, não tão nasal, e não tão cortante.
O fagote na região aguda não é muito potente.
109
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
A indicação forte (f) é rara quando a orquestra toca junto ao violão. É possível
observar (Fig. 3) que o violão toca acordes arpegiados de seis notas. Essa técnica é bastante
sonora, sobretudo quando realizada como rasgueado com os dedos indicador-médio-anelar
(i-m-a). A indicação de dinâmica do acorde arpegiado é fortíssimo (ff). Provavelmente, essa
seja a maneira mais sonora de escrever para violão. Rodrigo arrisca todos os naipes das cordas
tocando forte junto ao violão, mas garante o volume do violão graças a uma escrita na qual o
110
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
O violão, quando executa frases rápidas, tem dificuldade em manter um som cheio
e um volume muito alto. É de suma importância aliviar, nesse ponto, a escrita da orquestra para
que as linhas do violão apareçam.
111
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
O violão, nesse trecho, encontra-se numa situação bastante virtuosística, tanto pela
velocidade das escalas quanto pela tessitura muito aguda que dificulta a execucção da passagem.
Mais uma vez, nesse tipo de situação, o violão tem dificuldade em manter um volume muito
elevado e o timbre, depois do Mi5 da casa XII, tende a ser mais magro e com menos projeção.
A articulação das flautas é staccato, enquanto os clarinetes tocam notas longas com
algumas intervenções pontuais.
Observamos que as flautas e os clarinetes estão numa região em que o timbre não é
tão brilhante, enquanto as cordas estão todas numa dinâmica pianíssimo e só executando notas
longas. Dessa maneira, o violão se sobressai graças aos cuidados da orquestração do Rodrigo.
112
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
enquanto o violão está tocando um mesmo acorde repetido de seis cordas, em rasgueado que
cobre toda a tessitura do instrumento, dando um resultado muito sonoro; as cordas tocam forte.
Provavelmente, essa escrita é a que dá mais volume ao violão. Temos aqui uma
orquestração arriscada em termos de equilibrio sonoro, compensada por uma escrita para o
violão, que garante volume suficiente para esse instrumento aparecer, mesmo com uma orquestra
bastante sonora.
Neste caso, o desafio de destacar o violão é ainda maior porque mesmo a linha
melódica estando numa tessitura favoravel, ela soa menos do que quando o violão produz
acordes cheios.
Por outro lado, quando se tem uma única linha melódica, é mais fácil timbrá-la e,
assim, produzir um som cheio e projetado.
113
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
Outra situação interessante de se notar é nos instantes em que o violão tem a linha
principal e é acompanhado pelo naipe de cordas ou parte deste.
114
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
Nos exemplos citados nesse item, podemos ver claramente que Rodrigo adota
uma escrita meticulosa e delicada no que se trata do equilíbrio entre o violão e a orquestra.
As dinâmicas escolhidas para a orquestra se situam sempre num registro piano, e a orquestra
inteira só toca com dinâmicas mais intensas quando o violão sai de cena.
Considerações finais
115
BOUNY, E. O DESAFIO DE COMPOR PARA
VIOLÃO SOLISTA E ORQUESTRA
Por outro lado, quando o violão não está presente, Rodrigo aproveita o
instrumentarium da orquestra, no seu pleno potencial, escrevendo dinâmicas fortes, em
tessituras privilegiadas, criando mais uma vez um contraste potente entre os trechos em que o
violão aparece e os trechos em que a orquestra se expressa liberada da obrigação de não cobrir
o solista. Dessa forma, a noção de contraste na escrita para violão solista e orquestra aparece
como uma estratégia eficaz.
A meu ver, a criação de texturas orquestrais leves e contrastantes, que valorizam cada
timbre da orquestra, é mais propícia na configuração de escrita para violão solista e orquestra.
Em vez de procurar a mistura dos timbres, criando assim uma massa sonora mais
cheia, parece-me mais adequada a procura de texturas orquestrais mais transparentes e mais
contrastantes nas quais o timbre do violão se sobressai mais facilmente.
REFERÊNCIAS
ASSAD, Clarice. Entrevista de Elodie Bouny em 12 de maio de 2017. Rio de Janeiro. Skype.
RODRIGO, JOAQUIN. Concierto de Aranjuez for Guitar and Orchestra. [s.d.]. Disponível
em: <http://lib.mosconsv.ru/conslib/media/book/00005084.pdf >. Acesso em: 3 maio 2017.
NUPEN, Christopher. Andrés Segovia at Los Olivos. Documentário. 1967. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=1QV_56-9flA>. Acesso em: 3 maio 2017.
TRAUBE, Caroline. Na interdisciplinar study of the timbre of the classical guitar. 2004.
218f. Tese (Doutorado em Filosofia). Music Technology Department of Theory Faculty of
Music McGill University Montreal, Canada. 2004.
116
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Thalyson Rodrigues2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
tharodriguesaraujo@gmail.com
Resumo: A série dos 14 “Choros”, escrita no período entre 1920 e 1928, é uma das mais conhecidas
obras do compositor carioca Heitor Villa-Lobos (1887/1959), um dos mais representativos com-
positores da América. Pretendemos, através de uma análise estrutural, elucidar como o compositor
transcreveu a estética do choro para a linguagem pianística no “Choros nº 5”, intitulado “Alma
Brasileira”. Analisaremos, pois, alguns dos recursos musicais utilizados pelo compositor na obra,
bem como o seu contexto histórico, tendo como tempo-espaço o Rio de Janeiro em 1925, data de
composição da obra. Aspectos relacionados à capital da República e ao mecenato serão também
abordados no trabalho.
Palavras-chave: Villa-Lobos. Choro. Choros nº 5. Alma Brasileira.
Abstract: The series of 14 “Choros”, written in the period between 1920 and 1928, is one of the
best-known works by the Rio de Janeiro composer Heitor Villa-Lobos (1887/1960), considered the
largest in the Americas. We intend, through a structural analysis, to elucidate how the composer
transcribed the aesthetics of choro into the pianistic language in “Choros nº 5», entitled «Brazilian
Soul». We will analyze, therefore, some of the musical resources used by the composer in the work,
as well as its historical context, having as space-time Rio de Janeiro in 1925, work›s composition
date. Aspects related to the Republic capital and to patronage will also be approached in the work.
Keywords: Villa-Lobos. Choro. Choros nº 5. Alma Brasileira.
118
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
Com o ciclo dos “Choros”, Villa-Lobos apostou no choro como gênero eminente-
mente popular e no emprego de materiais folclóricos e regionais. A série apresenta diferentes
formações, ou seja, não segue o formato original do choro. É possível, pois, encontrar peças
para piano e violão solos, bem como obras para grupos camerísticos e orquestra, algumas com
uma densa orquestração. Outra peculiaridade é a numeração do ciclo, que não obedece a uma
ordem cronológica. Além disso, cada peça foi dedicada a uma personalidade. O “Choros nº 1”,
por exemplo, foi composto para violão em 1920, e consagrado ao compositor carioca Ernesto
Nazareth (1863-1934).
119
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
(1884-1963). Obra conhecida do repertório pianístico, “Alma Brasileira” permite uma leitura
muito particular do discurso musical utilizado pelo compositor, o que pode resultar em uma
interpretação sui generis, seja apaixonada, melancólica ou nostálgica.
Ressaltamos que não é nosso intuito enaltecer a figura de Heitor Villa-Lobos, isso a
história já o faz, nem mesmo criticar sua personalidade, ou induzir o receptor às nossas próprias
impressões acerca de “Alma Brasileira”. Antes de tudo, convidamos o leitor a fazer uma imer-
são nessa obra, a partir da nossa proposta de estabelecer um diálogo sobre os elementos com-
posicionais utilizados por Villa-Lobos no “Choros nº 5”, nos remetendo, também, à linguagem
do choro tradicional.
O teatro de revista brasileiro ainda era sucesso no Rio de Janeiro, e Heitor Villa-Lo-
bos figurava entre os artistas que ganharam mais visibilidade a partir da Semana de Arte Moder-
na de 1922. A high society desfrutava o glamour do hotel Copacabana Palace, a “vanguarda da
civilité” (ELIAS, 2011). Para o cronista e teatrólogo carioca João Paulo Emílio Cristóvão dos
Santos Coelho Barreto (1881-1921), o João do Rio, a cidade caminhara, desde o final do século
XIX, na direção da “Frivola City, a cidade do espetáculo”
No trottoir roulant da Grande Avenida passa, na auréola da tarde de inverno, o Rio
inteiro, o Rio anônimo e o Rio conhecido – o Rio dos miseráveis ou o Rio cuja vida se
prolonga de legendas odiosas e invejas contínuas. Mas ninguém vê a miséria. Podem
parar nas terrasses dos bares, podem entrar pelas casas de chá os mendigos, resse-
quidos esqueletos da seca do norte, estrangeiros de falar confuso, exploradores da
caridade, (...) a luz de inverno lustra os aspectos, faz ressaltar os primas belos, apaga
a fealdade. Não há gente desagradável como não há automóveis velhos. Ninguém os
vê. Os olhos estão nas mulheres bonitas, nos homens bem vestidos, nos automóveis
de luxo. É um desfilar de ópera (RIO, 1917, p. 9).
120
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
em uma posição outsider (ELIAS, 1995; 2000) perante o establishment da sociedade, e que o
tornaram conhecido pela vida conturbada, além do seu extenso legado artístico, bem como o
sistema de educação musical desenvolvido e sua obra pedagógica – fatos amplamente expostos
e detalhados em várias obras e biografias. “Até o governo Vargas, sobreviver foi uma dificulda-
de constante na vida do compositor. Chega a ser irônico saber que hoje, Villa-Lobos é o artista
brasileiro que mais recebe direitos autorais do exterior” (GUÉRIOS, 2003, p. 202).
Segundo recorte temporal deste trabalho, vamos apontar o compositor em sua pri-
meira viagem a Paris, em 1923, quando ele começou a, efetivamente, utilizar materiais mais
especificamente nacionais em suas obras. O nacionalismo constitui uma das mais poderosas
crenças sociais do século XIX até a atualidade. “Mesmo em uma análise sociológica prelimi-
nar, o nacionalismo revela-se como um específico fenômeno social característico das grandes
sociedades-Estados industriais no nível de desenvolvimento atingido nos séculos XIX e XX”
(ELIAS, 1997, p. 142).
“Fica claro que o Brasil que Villa-Lobos representa em sua música é o Brasil selva-
gem e exótico” (GUÉRIOS, 2003 p. 142), o que é perceptível nas peças que compõem os “Cho-
ros”. Segundo o próprio compositor, o choro apresenta uma forma de composição inovadora,
que sintetiza várias modalidades dessa música espontânea, tendo como principais elementos o
ritmo e qualquer melodia popularizada, “que aparece de quando em quando, acidentalmente.
Os processos harmônicos são também quase que uma estilização completa do próprio original”
(VILLA-LOBOS apud GUÉRIOS, 2003, p. 142).
121
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
“Inovador e imaginativo, Villa-Lobos foi capaz de criar uma nova linguagem, uma
linguagem sua, uma linguagem que tem a sua marca: melodias cativantes, ritmos interessantes
e planos sonoros diversos”, explica a pianista Sonia Rubinsky, que registrou em oito discos
a integral pianística de Villa-Lobos. “Para isso, ele desenvolveu uma técnica pianística que
exige um grande controle de ritmo, de dinâmica e de pedal. As grandes novidades pianísticas
apresentam-se mais claramente em obras como Rudepoema, Prole do Bebê nº 2 e Choros nº5”
(RUBINSKY In: PERPETUO, 2009, p. 23).
Se choro e futebol não dão samba, ambos inspiraram uma das músicas mais co-
nhecidas do gênero. Trata-se do “Um a zero”, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, uma home-
nagem ao lendário jogo realizado no estádio do Fluminense Football Club, uma das primeiras
agremiações de elite5 a adotar o futebol no Rio de Janeiro. Na disputa, o Brasil ganhou seu
primeiro título internacional de futebol, derrotando o Uruguai por 1x0, no terceiro Campeonato
Sul-Americano, em 1919. E a partir do final da década de 1920, o futebol, inicialmente conside-
rado um esporte elitizado e praticado em clubes elegantes, começou a ser popularizado. Coube
ao tricolor carioca Arnaldo Guinle6, em especial, o incentivo financeiro para que Villa-Lobos
5 As escolas grã-finas passaram, a partir da primeira década do século XX, a adotar o futebol como forma
de recreação para os discentes. Em 1903, os aristocratas do café, da Associação Athlética Ponte Preta, formaram o
primeiro time de futebol organizado no Brasil e, na década de 1910, são criados o The Bangu Athletic Club, o Ca-
rioca, o Andaraí, o Mangueira, o Fluminense, o Vila Isabel e o Sport Club Corinthians Paulista (CALDAS, 2011)
6 O mecenato Guinle incluía também um projeto de pesquisa, e músicos como Pixinguinha, Donga e João
122
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
pudesse mostrar suas obras em Paris. Certamente, o compositor não teria saído do país sem os
recursos da família Guinle
Graças a um grupo de amigos, pôde Villa-Lobos fazer frente às primeiras despesas e
abrir caminho no meio musical. Foram eles: Arnaldo e Carlos Guinle, Paulo Prado,
o conselheiro Antônio Prado, Geraldo Rocha, Laurinda Santos Lobo, Graça Aranha
e Olívia Guedes Penteado. Falando a esse respeito, disse-me, certa vez, o maestro:
‘Eram tantos que, de gota em gota, me enchiam o papo’. O apoio decisivo, na segunda
viagem a Paris, foi de Carlos e Arnaldo Guinle, generosos mecenas que foram motiva-
dos a auxiliá-los por interferência direta de Arthur Rubinstein (MARIZ, 2005, p.94).
123
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
dos Choros e o Amazonas – foram diretamente tributárias do impacto que a música “primitiva”
e “selvagem” do compositor russo teve sobre ele” (GUÉRIOS, 2003, p. 167).
Segundo Rafael dos Santos, “Os elementos musicais característicos do choro são,
no seu aspecto estrutural, de natureza melódica, harmônica e rítmica, sendo que, num conjunto
típico de choros, eles estão distribuídos entre os seus diferentes instrumentos”, entretanto
Tais elementos estruturais, entretanto, não são originais nem exclusivos do choro,
e sua simples ocorrência não é suficiente para defini-lo como tal. Existe ainda um
outro aspecto importante, que é a maneira como ele deve ser executado, e que está
relacionada com práticas interpretativas específicas da música popular, tais como uma
sonoridade leve que permita manter a textura transparente, realização do ritmo de
forma relaxada em relação ao pulso, uma articulação que enfatize a síncopa, e forma
de frasear, geralmente sem exageros de dinâmica (SANTOS, 2002, p. 8).
A: (exposição) c. 1 – 11 em Mi menor
A’: (variação de A) c. 12 – 24 em Mi menor
B: (seção contrastante no tom homônimo) c. 25 – 35 em Mi Maior
C: (desenvolvimento como expansão de B) c. 36 – 64 em Dó# menor
A’’: (reexposição) c. 65 – 79 em Mi menor
Com variada riqueza de planos e matizes sonoros, a peça demanda uma investi-
gação quanto ao uso de toques diferenciados, à pedalização, ao “uso do peso do corpo”, aos
ataques para projeção sonora, bem como aos elementos que buscam caracterizar e atenuar os
124
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
diferentes planos sonoros durante a execução. Distinto do choro tradicional, que geralmente
é composto em compasso binário, o “Choros nº 5” foi criado em compasso quaternário, pro-
porcionando uma fusão da complexa escrita polifônica de Villa-Lobos à rítmica tradicional do
choro, o que torna a peça um desafio para o intérprete.
125
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
Considerações finais
Heitor Villa-Lobos compôs cerca de 1.000 obras, e foi o compositor brasileiro que
alcançou maior reconhecimento internacional na primeira metade do século XX. Destinou à
música “exótica”, folclórica e popular, um tratamento erudito para “civilizados”, conquistando
respeito de seus pares, apoio de mecenas, amigos e, posteriormente, do governo Vargas. Con-
seguiu notoriedade em Paris, então centro cultural europeu. Apesar das posturas pessoais extra-
vagantes e personalidade forte, que causavam transtornos em sua vida pessoal e profissional e o
126
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
colocavam em uma posição outsider, conquistou, por seu talento, persistência e um tempo-es-
paço favoráveis, um lugar profícuo no establishment da sociedade da sua época.
Inspirado pela nascente música popular urbana e pelo choro enquanto gênero, criou
a série dos 14 “Choros” com especificidades pertinentes à sua genialidade: a começar pela li-
berdade da forma estrutural e pela formação instrumental: solo, de câmara ou sinfônica. Se em
sua origem o choro era executado pela formação de flauta, violão e cavaquinho, posteriormente,
ganhou novos instrumentos como o piano, o clarinete, trombone, oficleide, dentre outros. Com
Heitor Villa-Lobos, novas possibilidades de formação instrumental foram ainda mais explora-
das. A fase áurea dos conjuntos de música de choro, oriundos do século XIX, se estendeu até o
período em que a atração do teatro de revistas, do disco e do rádio vieram oferecer novas opções
de entretenimento, numa linguagem mais atraente para o público ávido por inovações.
REFERÊNCIAS
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Villa-Lobos. São Paulo: Martin Claret Editores, 1987. pág. 69.
ASSUMPÇÃO, Maurício Torres. A história do Brasil nas ruas de Paris. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra, 2014.
127
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BULCÃO, Clovis. Os Guinle: a história de uma dinastia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
CALDAS, Waldenyr. Temas da Cultura de Massa. Música, Futebol, Consumo. São Paulo:
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DINIZ, André. Almanaque do Choro. A história do Chorinho, o que ouvir, o que ler, onde
curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Trad. Sergio Goes de Paula. Rio de Janeiro:
Zahar, 1995.
______. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Trad.
Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
______. O processo civilizador. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das rela-
ções de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
MARIZ, Vasco. Villa-Lobos. O Homem e a Obra. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora,
2005.
MARTINS, Luiza Mara Braga. Os Oito Batutas. História e música brasileira nos anos 1920.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.
PERPETUO, Irineu Franco. 50 anos sem Villa-Lobos. Revista Concerto. Ano XV. Nº 156.
Novembro. 2009. págs 22-24.
128
MAGALHÃES, M. R. A.; RODRIGUES, T. “ALMA BRASILEIRA”: IMPRESSÕES E
REFLEXÕES SOBRE O “CHOROS Nº5”
RIO, João do. Pall-Mall Rio: o inverno carioca de 1916. Rio de Janeiro: Villas, 1917.
Referências digitais
BARROS, José D’Assunção. Villa-Lobos: os Choros como retrato musical do Brasil (1920-
1929). Disponível em file:///C:/Users/silvi/Downloads/11300-38463-1-PB%20(1).pdf Acesso
em 13.10.2016.
SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros para piano solo
Canhôto e Manhosamente de Radamés Gnattali. Disponível em http://www.musica.ufmg.br/
permusi/port/numeros/03/num03_cap_01.pdf Acesso em 14.10.2017.
129
III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: de 02 a 05 de novembro de 2017
análise musical, história e conexões Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Resumo: O presente exame tem por finalidade trazer à tona dois importantes aspectos refe-
rentes ao Choros N. º 4 (1926) de Villa-Lobos, a utilização de um quarteto de metais formado
por 03 trompas e 01 trombone, descrita em algumas publicações como uma excepcionalidade
ou inovação de nosso compositor. O segundo, diz respeito a “descoberta” de um manuscrito,
depositado no Museu Villa-Lobos.
Palavras-chave: Villa-Lobos, Choros, Trompa, Trombone, Tradição, Música de Câmara.
2 Através de dois e-mails, tentamos contato com a direção da Salle Gaveau na França, afim de colhermos
qualquer documento referente a este concerto de estreia, no entanto, infelizmente não obtivemos nenhum retorno
por parte da direção da ilustre sala de espetáculos.
130
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?
contendo a obra cameristica do compositor em sua totalidade, que contou com a participação
do trombonista tenor João Luiz Areias.
3 A relação dos músicos encontra-se descrita no catalogo geral de obras do compositor: Villa-Lobos e
sua Obra -Versão 1.0.1 - (2010, p.13), organizado pelo MVL; e no link do portal Imslp.org: http://imslp.org/wiki/
Ch%C3%B4ros_No.4%2C_W218_(Villa-Lobos%2C_Heitor), acesso em 11/10/2017
4 http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI04961, acesso em
16/10/2017
5 https://bachiana.weebly.com/, acesso em 16/10/2017
6 http://www.osesp.art.br/paginadinamica.aspx?pagina=CDheitorvillalobos1468e9, acesso em 16/10/2017
7 Trombonismo: Quarteto de trombones paulista formado em meados de 1980. Informações sobre a disco-
grafia: http://www.concerto.com.br/contraponto.asp?id=3682, acesso em 16/10/2017
131
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?
A série Choros produzida por Villa-Lobos traz em resumo, elementos e aspectos ab-
sorvidos do ambiente cultural musical urbano, sobretudo influenciados pelo choro e pela seresta
por volta do início do século XIX, além é claro de todo o aporte folclórico brasileiro, como por
exemplo a possível alusão contextual feita à canção popular nordestina infantil Rema que rema
(figura 1), coletada por Mário de Andrade em 1920 e publicada em seu livro Ensaio Sobre a
Música Brasileira (1928), presente no solo da segunda trompa um compasso antes do número
15 de ensaio (Animé) (figura 2). (ALBUQUERQUE, 2014, p. 199)
Figura 1 – Rema que rema, melodia nordestina recolhida por Mário de Andrade (1920)
Fonte: Imslp.org8
Embora nossa pesquisa não se configure sob o plano da análise musical e harmôni-
8 Disponível em: http://petruccilibrary.ca/files/imglnks/caimg/6/64/IMSLP40964-PMLP89574-Villa-Lo-
bos_-_Ch%C3%B4ros_No._4_(score).pdf, acesso em 25/12/2017.
132
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?
ca, é importante registrar alguns aspectos que correspondem a estas perspectivas. Assim como
muitas obras de Villa-Lobos, incluir o Choros nº 4 em uma forma musical, é uma tarefa das
mais árduas, pois cada uma delas trazem ao longo de seu processo composicional parâmetros
que por vezes fogem àqueles sistemas mais tradicionais de enquadramento quanto à forma,
gênero ou estilo.
Neste ponto Neves (1977, p. 26), é tácito em afirmar que: “...não existe uma forma
definida comum a toda a série Choros”, do mesmo modo que Paulo de Tarso (2003) discorren-
do sobre a produção musical brasileira pós-modernista, também dialoga com este pensamento
e cita que a obra de Villa-Lobos “...é marcada pela falta de rigor estilístico.” (SALLES, 2003,
p. 186).
Ainda que não possamos atribuir aos Choros uma configuração única e específica,
se faz necessário o apontamento de Marcos Lacerda (2011) feita sobre parte do Choros nº 4
enquadrando-o sob o plano do gênero harmônico9, identificando sessões que correspondem ao
diatonismo, pentatonismo, octatonismo, escalas de tons inteiros e modos.
133
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?
2014, p. 58).
Essa mistura de estruturas, muitas vezes encobertas por texturas maiores e mais
densas, revelam que o compositor não se via engessado e invólucro em meio aos modos ope-
randi da música tradicional, mas se mostrou disposto a sacrifica-los afim de expandir os rumos
de sua música.
No entanto, esta mesma formação, foi utilizada pelo austríaco Sigismund Neukomm
(1778-1858), em seu Quatuor pour 3 cors et trombone pour être exécuté à la Grotte tuonante
près le Scoglio di Virgilio dans le Golfe de Naples, em 1826, quando passou por Nápoles, sul
da Itália. Neukomm fora provavelmente influenciado pelo trompista francês Antoine Clapisson
(1808-1866), que também compôs uma peça com esta mesma formação, variações sobre Au
Clair de la Lune (? -?). Embora tenha sido citada em um periódico de Leipzig12, em 1828, não
134
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?
Não podemos afirmar que Villa-Lobos teria tido conhecimento ou acesso a estas
composições, mas em todo o caso, a proposição desta instrumentação não foi uma simples
invenção ou mera constituição do acaso, mas sim uma tradição de escrita formalizada na mú-
sica europeia no início do século XIX. A seguir inserimos pequenos extratos do quarteto de
Neukomm (figuras 3 e 4), gentilmente cedidos por Christopher Larkin13 (1947), trompista e um
dos diretores do London Gabrileli Brass Ensemble14:
Figura 4 –Excerto do quarto e último movimento do Quatour (1826), datado e assinado pelo
próprio Neukomm, S.
O fato de Villa-Lobos usar esta mesma formação, leva-nos a pensar que o compo-
sitor assim como os outros citados acima, teria tido em mente usar a sonoridade do trombone
como uma voz mais densa, mediante as outras três vozes mais agudas destinadas às trompas,
além, é claro, fazê-lo atuar como solista em algumas sessões.
16 Ibidem 87.
17 A fonte é o suporte físico, manuscrito, impresso ou digital que contém uma ou mais obras, ou parte das
obras. (FIGUEIREDO, 2014, p. 30)
136
THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?
Max Eschig.
Assim sendo, consideramos a cópia manuscrita como uma fonte primária que, de
acordo com Carlos Alberto Figueiredo é:
...qualquer documento originado do autor: anotações várias ou correspondências, nas
quais planos sobre a obra podem ser mencionados, sketchs, rascunhos, manuscritos
acabados, páginas datilografadas, provas de impressão ou o conteúdo de um disquete
de computador. (2014, p. 69) (Grifo do autor)
Embora esse material primário não contenha nenhuma assinatura, ao que tudo in-
dica é oriundo do próprio compositor, segundo a descrição do catálogo publicado pelo Museu
Villa-Lobos (Villa-Lobos e Sua Obra, 2010, p. 13).Na tentativa de encontrarmos mais alguma
fonte manuscrita da obra, entramos em contato, via e-mail, com a Academia Brasileira de Músi-
ca, questionando a possibilidade de ela ainda possuir algum outro material à parte daqueles que
possuímos ou foram publicados. Este questionamento se deu em função de que o próprio Villa
-Lobos algumas vezes finalizava uma “prova final” de suas obras antes de envia-las as editoras.
A ABM nos respondeu não possuir nenhum outro material do Choros n. º 4, a não
ser o impresso pela Max Eschig.
Como podemos perceber abaixo (figura 5), este manuscrito foi inicialmente organi-
zado por Villa-Lobos numa pauta musical que, sugere até certo ponto um caminho estruturado
a partir de um pensamento pianistico, já com ênfases nas articulações, ligaduras e acentos; in-
dicações de dinâmica, andamento e fermatas; apoggiaturas, glissandos, algumas rasuras, além
é claro da indicação da orquestração logo no topo da página destinada a (3 Corns em fá e um 1
Trombone de vara).
Figura 5 – Excerto da primeira página do Manuscrito do Choros nº4 (1926), Villa-Lobos
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THIMÓTEO, R. VILLA-LOBOS E O CHOROS N.° 4 (1926):
RUPTURA OU TRADIÇÃO?
No que tange a partitura e suas cavas impressas pela Max Eschig, atualmente se en-
contram disponíveis gratuitamente para download no portal eletrônico Imslp.org., e em ótimas
condições de visualização. Este material à qual tomamos como fonte secundaria, a qual tem
sido usada para performance, cumpre a função de uma edição prática, ou seja, aquela que, “...
é destinada exclusivamente a executantes, sendo baseada em fonte única, na verdade qualquer
fonte, com utilização de critérios ecléticos para atingir seu texto. ” (FIGUEIREDO, 2014, p.
66).
Numa breve comparação entre as fontes, queremos estabelecer alguns pontos diver-
gentes relacionado entre ambas:
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RUPTURA OU TRADIÇÃO?
Estas alterações trazem consigo pelo menos duas possibilidades, a primeira seria
aquela que citamos anteriormente e da qual acreditamos ser a mais lógica, de que o próprio
Villa-Lobos de fato tenha editado uma “partitura final” a partir deste manuscrito primário; a
segunda, seria de os editores terem finalizado apenas os poucos detalhes inexistentes referentes
a notação musical, acentuação, expressões, acentos, etc., de acordo com o contexto musical
e aparato técnico que possuíam naquela década, a partir de um ‘segundo manuscrito’ com as
ideias musicais devidamente finalizadas pelo compositor.
Analisando o contexto geral cada uma das fontes, podemos ter uma visão abran-
gente em que o processo composicional de Villa-Lobos, de certa forma se manteve inalterado
desde o início, já diretivo e intencionado com relação as questões de fraseado, articulação,
dinâmica, andamento e até mesmo com relação a disposição de cada uma das vozes, ou seja, a
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partitura mesmo após sua edição, em sua essência ainda reflete a primazia do objeto sonoro do
compositor. Este pensamento difere do ideal proposto por Carlos Alberto Figueiredo (2014, p.
66), quando sugere que um dos tipos18 de edição prática, tem como intensão trazer as intenções
sonoras “do editor” e não aquelas previstas pelo compositor.
3. – Conclusão
O resultado final expresso pela partitura editada, ajuíza e cumpre quase que em sua
18 Tipos de edição prática: ‘O primeiro tipo de edição prática enfatiza a realização sonora, trazendo sinais de
vários tipos (de dinâmica, de articulação, de fraseado), que tem a intensão de conduzir o executante que a utiliza.
Não se trata, porém, de trazer a intenção sonora do compositor, mas a do editor...’ ‘O segundo tipo de edição prática
é aquela que provoca modificações na textura da composição original, normalmente com o objetivo de ampliação
do número de executantes, além de arranjos, transcrições, reduções para piano, etc. ...’ (FIGUEIREDO, 2014, p.
66,67)
19 No original: “(...) moreover, the bare sound of winds, particularly that of the brass, was then in fashion...”
(Tarasti, 1995, p. 103)
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REFERÊNCIAS
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tins.1972
CARLSON, A. P. The French Connection: A Pedagogical Analysis of the Trombone Solo Lit-
erature of the Paris Conservatory. Tuscalosa, Alabama: The University of Alabama, v. Doctoral
Thesis, 2015.
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RUPTURA OU TRADIÇÃO?
FIGUEIREDO, C. A. Música sacra e religiosa dos séculos XVIII e XIX, Teorias e práticas
editoriais. 1º. ed. Rio de Janeiro: [s.n.], 2014.
MVL. Villa-Lobos e Sua Obra. MinC / IBRAM / Museu Villa-Lobos. Rio de Janeiro. 2010.
NÓBREGA, A. Os Choros de Villa-Lobos. 2º. ed. Rio de Janeiro: Minister Artes Gráficas
Ltda., 1973.
PILGER, H. V. Heitor Villa-Lobos, o Violncelo e seu Idiomatismo. 1º. ed. Curitiba: CRV,
2013.
TARASTI, E. Heitor Villa-lobos The Life and Works, 1887-1959. North Carolina, EUA:
McFarland & Company, Inc., Publishers, 1995.
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