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O mito do lago 

      Em um recanto isolado de um planeta existia um povo cuja civilização era


basicamente perfeita. Era um povo de grande sapiência e naquele mundo todos os seres
seguiam em obediência à orientação de um Senhor Supremo, justo, sábio e pleno de
amor. Embora constituíssem uma civilização ideal, mesmo assim, os seres traziam viva
a chama do conhecimento, tinham grande desejo de saber, de ter conhecimento objetivo
do mundo que os cercava.

      Certa vez o GRANDE SER, Senhor Supremo daquele povo idealizou e criou um
lindo lago, um lago imenso, misterioso e profundo. Os seres podiam usufruir o lago,
mas logo ficou claro que isso não lhes bastava. Eles se sentiram impelidos pela
curiosidade a conhecer tudo a respeito do lago, a conhecê-lo em profundidade e a
examinar as leis que operavam em seu interior. Assim, aquele lago deixou de ser-lhes
tão maravilhoso, passou a ser, de certa forma, causa de sofrimentos em decorrência do
"querer conhecer". O desejo de conhecer tudo a respeito do lago sobrepunha-se aos
prazeres que ele podia proporcionar. Nasceu o sofrimento pela curiosidade do querer
conhecer. Os seres quiseram, não somente saber sobre a natureza do lago, mas
especialmente conhecê-lo em sua plenitude. Para tanto precisavam explorá-lo em todos
os sentidos possíveis, precisavam examinar tudo objetivamente, conhecer todos os
detalhes, testar as leis físicas, analisar tudo de modo objetivo, sensorialmente. O saber
subjetivo não lhes era bastante para que houvesse quietude em suas mentes.

      Certa vez os seres tiveram uma idéia, fariam uma exploração ao fundo do lago para
conhecer-lhe as profundezas. Decidiram fazer uma expedição muita bem organizada e
para tanto se prepararam de forma a mais adequada possível. De início os seres sabiam
que o interior do lago era um ambiente hostil em decorrência das grandes diferenças
existentes entre o lago e o ambiente exterior.

Para que a missão não fracassasse, normas de segurança foram estabelecidas a fim de
que as criaturas não sofressem danos em decorrência da ação das leis naturais inerentes
ao mundo onde penetrariam. Também, foram devidamente instruídos para se
precaverem de inúmeras situações e influências que possivelmente iriam encontrar
durante a missão. Visando a consecução de uma missão segura, haveria equipes em
bases de apoio para prestarem auxílios e orientações que se fizessem necessárias para o
melhor cumprimento da missão, assim os seres no lago deveriam se manter em contato
com as bases de apoio de onde receberiam instruções e suprimentos precisos.

      De início ficou estabelecido que os seres devessem usar uma espécie de escafandro,
pois o meio liquido não lhes era próprio desde que normalmente viviam em meio bem
diverso. Como algo imprescindível cada ser deveria ter cuidados especiais com o seu
escafandro, do contrário a missão, por certo, fracassaria.

      Periodicamente, sempre que fosse necessário o escafandro iria sendo substituída a
fim de garantirem uma adequada proteção ao ocupante. Daí, cada ser, durante o longo
período de missão teria que substituir muitas vezes suas vestimentas protetoras.

      partida foi um momento de glória, pois os seres iriam mitigar a sede de
conhecimento de tudo aquilo que pudesse existir no lago. Mas a euforia foi logo sendo
substituída pela tristeza na medida em que os seres mergulhavam para os profundos
abismos do lago, saindo do mundo da luz para um mundo em que reinavam as trevas do
abismo. Logo de início ficou bem claro que a expedição seria bastante demorada, pois
havia coisas e mais coisas para serem conhecidas, leis e mais leis para serem
vivenciadas.

      Iniciada a missão nas profundezas, não demorou em que os seres sentissem a
necessidade de uma divisão de trabalho, assim grupos foram formados visando cada um
determinado tipo de exploração, a conscientização objetiva de determinados ângulos
para no final somarem as experiências individuais. Com a divisão em grupos houve
diversificações das funções. Isto acarretou a necessidade de movimentos mais livres
para certos indivíduos. A missão envolvia a necessidade de muitas decisões pessoais por
isto certa autonomia – livre arbítrio – teve que existir entre os seres e as bases. Assim
houve a concessão de certo grau de livre arbítrio.

      Ante a necessidade da execução de diferentes funções, a base passou a enviar


escafandros especiais e adequados às diversas atividades, especialmente adaptados às
necessidades próprias de cada grupo. Assim foram surgindo modificações, de
conformidade com as necessidades. Se, por um lado, era importante a adaptação de
diversos tipos de "vestimentas", por outro lado também isso acarretou transtornos.
Muitas "vestes" reduziam muito o nível de comunicação com a base e até mesmo a
comunicação entre os grupos, e mesmo entre as espécies.

      Assim já não era possível um intercâmbio fácil de idéias entre os seres,
especialmente entre os seres de grupos (linhagens) diferentes. Dai foi um passo para que
ocorressem desentendimentos entre as linhagens, chegando mesmo umas a destruírem
outras, para que indivíduos destruíssem outros, e assim muitos grupos procuraram viver
isolado como meio de evitarem agressões, ou como forma de sobrevivência física, não
só individuais como também grupais. Enquanto a exploração desenvolvida por algumas
linhagens transcorria naturalmente seguindo aquilo que fora programado, verificou-se
que os grupos que dispunham de mais autonomia de movimentos, e conseqüentemente
de decisões próprias em decorrência da relativa independência do mundo exterior,
começaram a negligenciar as normas de segurança e assim passaram a cometer muitos
erros. Se, por um lado, o livre arbítrio proporcionava-lhe uma maior capacidade de
ação, por outro dava margem à que negligencias fossem cometidas, e como
conseqüência, em virtude das leis físicas serem imutáveis e invioláveis quando estas
passaram a ser infligido inúmeros problemas surgiram como conseqüência criando
problemas os mais diversos possíveis para os infratores.

      Isolados do mundo exterior por bastante tempo muito “exploradores” começaram a
esquecer a sua própria origem, e assim foram sentindo necessidade de poderes
individuais, a necessidade de liderança visando fins pessoais já que haviam esquecido
conscientemente a finalidade de suas presenças naquele mundo hostil. Procuraram tirar
o máximo proveito do mundo artificial em que viviam por haverem esquecido que um
mundo muito maior e mais perfeito havia aguardando-os no regresso.

      Houve, então, lutas e aposições. As linhagens se dividiram em subgrupos, houve o


"cada um por si" e assim nasceu o sentimento de individualidade egoísta – o ego. O
mais grave foi que a missão foi sendo esquecida por parte de muitos, e o pior ainda é
que os seres foram se tornando totalmente esquecidos de importância de se
comunicarem com a base perdendo assim o conhecimento da maneira como deveriam
agir para regressarem um dia.

      A infração das leis gerou sofrimentos e dores. Estavam pagando com o sofrimento e
preço do fruto da árvore do conhecimento. Diante dos sofrimentos aqueles seres
começaram a clamar por algo melhor, pressentindo que um mundo mais fácil de existir
deveria haver. Traziam alguns indícios de reminiscências registradas em seu íntimo e
aqueles que assim sentiam começaram a agir visando o restabelecimento de contactos
com as bases. Sentiam dentro de si algo muito tênue, reminiscências de algum lugar em
um tempo distante, saudade de uma felicidade perdida.

      Os sofrimentos aumentaram, a dor se avolumou, e teve o inicio a grande revolta, o


grande clamor. Os mais revoltados começaram a proferir impropérios àqueles que
falavam de um Chefe da Hierarquia que, segundo a tradição, fora o responsável pela
criação do lago. Assim acabaram por criar um ambiente estruturado em falsos valores e
para garantirem aqueles falsos valores adotaram um sistema de tudo negar. Criaram-se
códigos, leis e regulamentos próprios, muitos deles essencialmente perversos em que
sistematicamente a existencial de um mundo exterior passou a ser negada pela
afirmativa de que o mundo do abismo em que viviam era único.

      Os grupos lutaram entre si uns querendo sempre sobrepujar os outros, e, dentro de
cada grupo, um querendo sufocar o outro. Enquanto isto no mundo de origem
lamentava-se aquela situação, porém, malgrado os clamores, a base continuava
envidando esforços para aliviar os infelizes habitantes do abismo, para os quais ela
enviava orientações, mas que na maioria das vezes não era sequer escutadas, pois os
seres não crendo em outro mundo além daquele não davam ouvidos às orientações
indispensáveis para o regresso. Para que aqueles seres infelizes continuassem a ser
orientados para um necessário regresso. Mas, mesmo assim os seres continuaram
impassíveis em seus erros.

      Sabia-se que o livre arbítrio necessário para parte da missão fora responsável pela
balbúrdia, e que as condições ambientais daquele mundo hostil ante as naturezas
próprias dos seres determinavam distúrbios graves. Trazê-los todo de uma só vez era
impossível, pois para o regresso se fazia necessário a colaborarão dos seres e estes não
queriam colaborar por não mais acreditarem sequer na existência de alguma base.
Mesmo assim a base continuava a auxiliá-los atendendo grande parte das necessidades
dos seres, alimentação, oxigênio para a respiração, além de orientações sobre como
subsistirem o tempo necessário até encontrarem os meios de dirigem os seus barcos de
regresso ao mundo de onde um dia partiram. A base nunca deixava de remeter novos
escafandros para substituírem os danificados. O mundo exterior a cada momento
enviava mensagens orientadoras e quando não mensageiros, mas lamentavelmente estes
não eram levados a sério e suas mensagens perdiam-se em grande parte porque os seres
julgavam-nas destituídas de finalidades precisas.

      Mas, pouco a pouco, alguns, diante dos sofrimentos intensos, começaram a duvidar
que aquele fosse o único mundo e a partir daí iniciaram a busca de alguma forma de
regresso. Somente estes davam ouvidos às informações recebidas e acatavam os
ensinamentos. Em algumas ocasiões apareciam naves estranhas que alguns dos seres
julgavam provir do tal mundo de origem, quando na realidade elas eram simplesmente
ocupadas por seres igualmente falidos vindos de outras partes do próprio lago. Muitos
daqueles seres oriundos de outros pontos, evidentemente, eram mais avançados em
alguns pontos da vida aquática. Eram mais desenvolvidos, enquanto outros eram bem
mais atrasados em muitos aspectos. Alguns dos visitantes se diziam emissários da
verdade, emissários do verdadeiro mundo exterior, do mundo de origem, mas na
realidade eram desgarrados, eram seres que também haviam perdido a capacidade de
regresso. O fato de dominarem uma técnica de viagem de um ponto afastado do lago
para outro, não lhes conferia, porém o direito de se julgarem perfeitos e de saberem a
maneira de regressar.

      Assim a missão parecia fracasso. Na realidade ela não fracassava, pois tudo aquilo
reapresentava condições inerentes à vida no lago que eles tanto almejaram saber, ação
das leis existente no lago, a vulnerabilidade dos seres ante as condições do lago. Afinal,
eles quiseram saber tudo sobre o lago e os fracassos também eram condições impostas
pelo lago, pois afinal o conhecimento absoluto do lago não envolvia apenas o seu lado
bom. Todas as coisas têm um oposto, e sendo assim mesmo o drama de muitos e muitos
seres, na realidade, também foram conhecimentos adquiridos sobre o mundo para onde
vieram a fim de dominarem tudo, de saberem tudo.

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