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antepassados?
Seria a humanidade o resultado seletivo do acaso?
Em algum momento, teriam de fato, os habilis modernos, merecido o seu domínio sobre a
gênesis?
Prólogo
Bem antes dos homo sapiens se espalharem por todo o planeta, quando ainda
viviam em pequenos grupos nômades e eram apenas mais uma, entre tantas espécies
disputando a própria sobrevivência, o planeta Terra explodia em vida e eco sistemas.
Florestas densas e intermináveis, assim como oceanos sem fim, abrigavam uma
infinidade de espécimes e criaturas que dançavam ao som de seus instintos e das leis
variáveis da natureza. A vida selvagem e exuberante, com suas cores vividas e
perigosas, se espalhara incontidamente por todo o planeta, num espetáculo glorioso de
vida e também de morte, onde sobreviver era a única constante.
E assim, a vida se perpetuava vagarosamente neste planeta, à mercê apenas, de
pequenos saltos evolutivos.
A Terra, no entanto, não era o único foco de vida do universo. Existiam inúmeros
outros “planetas-mãe”, assim como a Terra, espalhados pela interminável vastidão do
espaço, e cada um deles com as suas próprias crias. Em muitos desses planetas haviam
apenas seres microscópicos ou de pouca complexidade, enquanto noutros a vida já havia
evoluído para seres de grande porte, de biologia complexa. Na maioria destes planetas a
vida era tão selvagem quanto na própria Terra, porém, numa pequena parte destes, o
milagre inexplicável do raciocínio superior já havia se manifestado, e seres inteligentes
já haviam se destacados dos de raciocínio inferior. Haviam planetas onde já existiam
povos organizados em grupos, sociedades, classes e poderes. Nessa época o planeta
Terra encontrava-se protegido pela distância, e não passava de um ponto inatingível no
universo enxergado por estes povos inteligentes.
* * *
Num ponto ermo na vastidão do universo, onde uma nuvem densa de estrelas gerou
um grande número de sistemas solares não muito distantes entre si, a luz da razão foi
que brilhou mais intensamente. A vida inteligente prosperara abundantemente naquele
conglomerado de estrelas, gerando seres que cumpriram seus ciclos evolutivos em seus
próprios planetas e construíram sociedades complexas e avançadas tecnologicamente,
ao ponto de se lançarem ao espaço em busca de outras civilizações. Algumas dessas
civilizações mais avançadas tentaram por muitos anos manter contato com seres
inteligentes em outros planetas: comunicações morosas eram trocadas entre alguns
destes povos e o sonho de uma viagem interplanetária esbarravam nas grandes
distâncias espaciais e no tempo necessário para uma viagem desse porte. Foi justamente
de um planeta que mantivera-se calado e indiferente às mensagens direcionadas ao seu
sistema solar que revelaram-se, finalmente, os primeiros povos capazes de realizar as
inconcebíveis viagens interplanetárias. Vindos do planeta Lemuria, os Lemurianos
constituíam uma civilização visionária e de inteligência superior. Foram eles os
primeiros a descobrir a Matéria Prima do Universo, como assim a chamaram, e os
primeiros a fissioná-la para utilizar como fonte de alimentação contínua para suas
espaçonaves. Criaram assim, as primeiras naves capazes de atingir a Hipervelocidade
Espacial, avanço incondicional para vencer as longas distâncias espaciais. Foram eles
os responsáveis pelas primeiras visitas interplanetárias e a chamar aquela imensa nuvem
estelar pelo nome de Aria Galáctica. Os Lemurianos eram uma civilização bastante
avançada tecnologicamente, com cérebros complexos e de grande volume, primavam
pelo raciocínio e elevação espiritual, e construíram uma sociedade pacífica e
cooperativa, urbana e altamente mecanizada em seu planeta. Prevendo o fim dos seus
recursos naturais, lançaram-se ao espaço em busca de planetas ermos e desabitados que
pudessem servi-lhes de fontes de matérias-primas. Do estudo do espaço e dos
incontáveis planetas e, ávidos por conhecimento e novas experiências, viram nas demais
civilizações de Aria Galáctica um amplo campo de pesquisa, além de civilizações para
compartilhar conhecimento e descobertas. Assim, munidos de boas intenções, saíram do
isolamento e fizeram contato.
Do encontro desses povos e na euforia das novas descobertas, acabaram por fundar
uma rede de cooperação interplanetária, a Aria Aliança, onde as diversas civilizações
participantes se ajudavam mutuamente tencionando melhorias comuns, assim como
encontrar e engajar outros povos à Aliança, além de buscar por novas fontes de
matérias-primas. Logo os primeiros expedicionários lançaram-se ao espaço explorando
e mapeando planetas e delimitando os limites de Aria Galáctica. Esses limites eram
estabelecidos levando-se em consideração as distâncias seguras (ou seja, que permitiam
ida e volta) que poderiam ser atingidas partindo-se dos planetas civilizados conhecidos.
Desse mapeamento e das possíveis descobertas, planetas distantes poderiam ser
colonizados para ampliar, cada vez mais, a abrangência de Aria Galáctica.
Dentre os povos que faziam parte da Aria Aliança, alguns tinham mais a contribuir
em avanços tecnológicos, outros em matérias-primas, outros em força de trabalho e
alguns, de fato, não tinham muito a oferecer, mas muito a ganhar com os novos aliados.
Logo algumas civilizações sentiram-se prejudicadas por esse sistema de cooperação e
igualdade e, sorrateiramente, começaram a estabelecer os primeiros acordos bilaterais,
que diziam respeito apenas a interesses próprios dos envolvidos. Os pequenos acordos
abriram caminho para negócios de grande magnitude, que não passaram desapercebidos
dos demais povos da Aliança, gerando assim uma onda de desconfiança e animosidade
mútua. A sombra da discórdia logo pairou sobre a Aria Aliança e pequenos conflitos de
interesses começaram a colocar algumas nações em disputa, o que, consequentemente,
levaram aos primeiros ataques armados. Rapidamente esses ataques deram lugar às
primeiras guerras interplanetárias.
Guerras foram travadas durante anos, inúmeros acordos foram estabelecidos e
quebrados, líderes sucumbiram e civilizações inteiras foram subjugadas, até que,
finalmente, após centenas de milhares de mortos em incontáveis batalhas, a paz fora
finalmente costurada e estabelecida sob o domínio totalitário dos mais fortes, dos que
melhor souberam jogar o jogo das intrigas e traições, do povo mais apático e violento,
os Achyronianos. ̶ e pareciam predestinados para tal ̶
Os Achyronianos, habitantes do planeta Achyros, evoluíram de modo a se tornar a
civilização mais capacitada a sobrepujar as demais, pareciam ter nascido para a batalha
e para a vitória. Dentre os povos de Aria Galáctica, eram os que possuíam os corpos
mais fortes e avantajados: ostentavam uma pele grossa, difícil de romper, com uma
tonalidade que assemelhava-se a cor de areia escura com manchas ainda mais escuras
espalhadas por todo o corpo, o que lhes serviam de camuflagem natural em ambientes
de pouca luz. As pernas, fortes e compridas, proporcionavam saltos de quase a própria
altura, que eram amortecidos por pés de sola ainda mais grossa e resistente que a pele
do restante do corpo, tornando o uso de calçados uma escolha e não uma necessidade.
Seus braços, normalmente corpulentos, e mãos robustas, possuíam incrível força, tanto
para agarrar, quanto para golpear. Possuíam ainda a audição bastante apurada,
permitindo-lhes uma ótima localização espacial e, consequentemente, a detecção mais
fácil de um provável inimigo em aproximação. Nenhuma outra civilização da Aliança
reunia condições puramente físicas para derrotá-los. Somados aos fatores físicos,
acrescente-se a paixão pela batalha e a grande astúcia estratégica, decorrentes de toda
uma cultura voltada para a guerra, o que os tornava guerreiros incomparáveis, quase
imbatíveis. Os Lemurianos eram de fato a civilização mais intelectualizada e avançada,
capazes de construir equipamentos superiores para uma guerra, mas eram incapazes de
lutar, tanto pela fragilidade e despreparo de seus corpos, quanto pela sua própria cultura
pacifista. Não demonstravam interesse em reinar sobre Aria Galáctica, mas tinham
interesses no reestabelecimento da Aliança, apoiando assim os que apresentavam
melhores condições físicas para uma guerra, disponibilizando aos Achyronianos apoio
bélico e tecnológico para vencerem as guerras interplanetárias.
Ainda sobre o povo de Achyros, não se sabe ao certo se eles evoluíram para as
batalhas, ou se evoluíram das batalhas, afinal, é fato que, desde os primórdios da sua
ancestralidade, os Achyronianos sempre estiveram em guerra, lutando entre si pelo
domínio de suas tribos ou territórios. Desde criança já são treinados pelos pais e irmãos
para lutar e manter as conquistas dos seus antepassados. Conta a história daquele povo,
em todo o seu curso documentado, que houvera apenas um grande período de paz, que
ficou conhecido como O Predomínio de Ferro, período em que um antigo general
chamado Virggo Fehenna dominou e unificou todo aquele povo, que até então vivera
separado em tribos, clãs ou em pequenos territórios independentes chamados de
províncias. Essas províncias invariavelmente pertenciam a alguma família tradicional e
poderosa e organizavam-se como uma espécie de cidade-estado, onde o patriarca da
família a quem pertencia a província vivia como rei e fazia as suas próprias leis
conforme a sua vontade. Corriqueiramente usavam seus exércitos para invadir e tomar
terras ou a produção de alimentos das tribos que viviam fora da província. Segundo as
velhas lendas, Virggo, que ganhara a alcunha de “Mestre da Guerra”, era um guerreiro
admirável, muito superior aos demais em habilidade e astúcia; Montara o seu primeiro e
pequeno exército entre os amigos e admiradores de sua tribo, com o único intuito de
libertar o seu povo do domínio de uma poderosa família que há muitos anos já os
explorava. Com as primeiras vitórias sobre o exército da província, outros guerreiros
vindos de outras tribos também exploradas se engajaram ao seu exército de insubmissos
e logo a primeira grande família fora derrotada, atraindo mais guerreiros e refugiados
vindos de outras regiões que também sofriam opressão por parte de outras famílias
dominantes, impulsionando-o, assim, a levar a sua luta para outros territórios.
Libertando os que clamavam por sua ajuda, esses, em contrapartida, o acolhiam como
seu líder e passavam a ajudar a manter o seu crescente exército. Diz-se que lutava junto
ao seu exército na linha de frente, expandindo seus domínios com as próprias mãos.
Além de vencer todas as batalhas que empreendeu, sobrepujando os exércitos das
famílias tradicionais e expandindo sua liderança por toda Achyros, Virggo cativara o seu
povo que, apaixonados pelas batalhas e pelos grandes guerreiros, sentiam-se honrados
em serem liderados por um beligerante tão superior e habilidoso. É herança de Fehenna
a designação que este povo mais gosta de usar para os definir, se autodenominando
como “O Povo de Fehenna”, ou como se convencionou:“O Povo de Ferro”.
Foram os Achyronianos os primeiros a serem visitados pelos Lemurianos, ainda no
reinado de Oliffante Fehenna, filho de Earenddel, descendentes genealógicos do próprio
Virggo, cuja a família mantivera-se no poder a custa de muitas lutas no decorrer dos
séculos que sucederam a sua morte. Oliffante ficou conhecido como “O Rei Tolo”, por
ter sido o primeiro rei de Achyros a abdicar do trono, passando o poder ao seu filho
mais novo, Cronnus Fehenna. Contam os boatos que o rei Oliffante teria abdicado do
trono por influência de sua jovem e sedutora esposa, a rainha Sirennia, mãe de Cronnus.
Inconformados com a linha sucessória, o jovem príncipe e sua mãe ̶ que longe aos seus
ouvidos era alcunhada de “Feiticeira Pálida”, por causa do seu conhecido interesse
pelo ocultismo e feitiçaria ̶ , enxergaram na visita dos Lemurianos uma oportunidade de
alavancar o jovem príncipe ao poder, dando um golpe pacífico em Hierophantes
Fehenna, filho mais velho de Oliffante e fruto do seu primeiro casamento, e que, em
caso de morte do rei, seria o herdeiro natural do trono. O rei Oliffante já sentia a pressão
sobre o seu reinado exercida pelos chefes das famílias tradicionais de Achyros que, ora
aliados, ora rivais, fortaleceram-se muito diante das suas fraquezas como administrador,
montando grandes exércitos e ameaçando constantemente destroná-lo.
Engenhosamente, Cronnus conseguira ganhar a confiança dos visitantes interplanetários
e estabelecer uma aliança para explorarem juntos, Lemurianos e Achyronianos, o
restante dos planetas de Aria Galáctica. O ambicioso príncipe entendeu que aquele povo
de inteligência superior, tão avançados tecnologicamente, cheios de boas intenções e
com tão pouca malícia, seriam os aliados providenciais para alavancá-lo ao trono de
Achyros e, quem sabe, expandir seus domínios para lugares até então inimagináveis!
Sonhava ele se tornar maior que própria lenda do seu cultuado antepassado…
* * *
Capítulo I – O gatilho
Neste ponto da história, Cronnus já havia consolidado seu domínio sobre a Aliança
e se autoproclamado Imperador Regente de toda Aria Galáctica, título reconhecido por
todos os povos da Aliança que, derrotados em inúmeras batalhas, reconheciam assim a
incapacidade de vencer o ambicioso rei Achyroniano e o seu povo guerreiro.
Encontrava-se neste momento imerso no cinturão rochoso de Amorphos, planeta
garimpo originalmente desabitado e composto em quase sua totalidade de grande
variedades de metais, utilizado pela Aliança como fonte de matérias-primas. Amorphos
era um planeta de formato irregular, com uma enorme depressão em seu hemisfério
norte, provavelmente o resultado do choque com um grande meteoro ou mesmo com
um outro planeta, o que teria jogado grande quantidade de pedregulhos e poeira em sua
órbita, formando um imenso e denso cinturão de detritos rochosos ao seu redor. Pelo
tamanho, e por possuir grande quantidade de metais raros e elementos radiativos,
Amorphos era considerado um dos planetas garimpo mais importantes para a Aliança. O
jovem imperador estava ali a espera de sua mais recente obsessão, a Suppernova, nave
espacial recém-construída e já bastante comentada por ser considerada a maior e mais
avançada nave de guerra até então construída. Encomendada pelo próprio regente, seria
uma espécie presente dos Lemurianos ao novo imperador. Cronnus sempre mantivera
uma relação de grande respeito e cuidado com os Lemurianos e não houve imposição
em relação ao presente: sabia serem eles os principais responsáveis pela sua grande
vitória, já que, sem o equipamento tecnológico fornecido por eles, os Achyronianos
jamais teriam vencido as guerras interplanetárias. Manipulando-os de forma leviana,
Fehenna conseguira convencer um povo pacífico e bem-intencionado a construir armas
de guerra e a apoiá-lo em seus planos de dominação.
A incumbência de trazer a Suppernova fora designada a alguém da mais alta
confiança do imperador, tamanha era a importância e poder bélico da nave: ninguém
menos que Hierophantes Fehenna, irmão mais velho de Cronnus que, apesar de
primogênito, fora preterido pelo próprio pai na sucessão ao trono Achyroniano.
Hierophantes jurou respeitar a decisão do velho rei e ajudar o irmão a manter o trono na
família. Como prêmio de consolação ganhara o cargo de chefe do Conselho Superior do
Rei e, teoricamente, seria o segundo em comando em Achyros. Mas, chefiar o Conselho
Superior não lhe trouxera grandes responsabilidades, já que o rei Cronnus não escutava
ninguém nem se importava com a opinião de quem quer que fosse, com exceção da
própria mãe, a rainha Sirennia, essa sim a verdadeira conselheira do rei. Apesar da
suposta importância do cargo ocupado em seu planeta, nenhuma função fora delegada a
Hierophantes no comando da “nova” Aliança Interplanetária, exercida por um conselho
composto por representantes de todas as civilizações de Aria Galáctica sob o comando
totalitário de Cronnus.
Ao chegar bem próximo ao local indicado como ponto de encontro pelas
coordenadas recebidas, a Suppernova desacelera até parar completamente, porém, ainda
mantendo uma distância considerável do marco zero. Com os visores frontais abertos,
podia-se enxergar ao longe a Tennebris Tranquilittate, até então a nave real de Cronnus,
em meio ao cinturão de pedregulhos descomunais que orbitam o imenso planeta
avermelhado, e que, assim de perto, já não traziam tanta beleza quanto ao serem vistos
de longe.
Cronnus, com feições de quem está irritado, olha diretamente nos olhos de Inpherne,
chefe da sua segurança pessoal, finalmente levantando-se de sua poltrona. Pede
diretamente ao chefe de operações que abra um canal de comunicação por vídeo com a
nave onde se encontra seu irmão. Alguns segundos cansativos se passam até que a
Suppernova finalmente responda ao chamado, o que irrita ainda mais o já impaciente
Imperador:
− Suppernova na escuta.
̶ Comunicação estabelecida, sen...
Fehenna mal deixa o chefe de operações concluir a sua fala e toma a frente no
comunicador, encontrando a chefe de operações da Suppernova ainda em seu posto.
(Por conveniência, a engenharia Lemurianas coloca o comunicador principal de suas
espaçonaves em um painel de controles mais recuado dentro da grande sala de
controles, estrategicamente limitando a visão da cabine de comandos, preservando
assim a sua integridade. Esse painel é destinado ao chefe de operações da nave, que
normalmente é o responsável por toda a comunicação com o interior e exterior da
espaçonave)
− Soldado, onde está o meu irmão, está aí na cabine? Quero falar com ele…
(indaga o imperador já demonstrando a impaciência típica dos poderosos)
− Aqui, Cron, estou aqui… (responde Hierophantes aparecendo finalmente em
frente a câmera)
− Phanty, seu velho chacal, porque a demora?!
(alguns segundo se passam em que Hierophantes apenas olha fixamente para o
visor sem esboçar qualquer palavra) Não importa… conte-me logo como se
comportou a minha preciosa máquina. Bellchior fez todos os testes como
recomendei? E você, o acompanhou para ver se estava tudo certo como lhe pedi?
− Pela espada de Virggo, Phanty! Nosso pai nos conhecia muito bem e sabia
que Achyros precisava não só de um grande guerreiro, que ambos somos, mas
também de um bom estrategista. Precisava de um negociador de pulso firme,
capaz de controlar as famílias rivais e manter o trono nas mãos dos Fehenna,
como assim tem sido desde que Virggo se fez rei. Você é um grande guerreiro,
meu irmão, mas é tranquilo, confia demais nas pessoas... não tem malícia. Você
seria um grande rei em tempos de calmaria, mas não na situação que Achyros se
encontrava. Nosso pai sabia que eu estava mais preparado para assumir o trono e
liderar o nosso povo. Ele sabia que somente alguém como eu poderia aguentar a
pressão das famílias rivais... E eu consegui: eu mantive o poder na nossa família!
Eu fiz todos os chefes das grandes famílias engolirem o orgulho pelo rabo e
jurarem lealdade a mim! E ainda fiz mais: eu fiz do Povo de Ferro a maior raça
do universo... Hoje eu sou mais poderoso que o próprio Virggo um já dia foi…
Hoje, EU sou a lenda (Cronnus bate no próprio peito já demonstrando
exaltação), EU sou o Grande Rei Guerreiro. Hoje eu domino tudo que você pode
enxergar... EU fiz toda Aria Galáctica dobrar os joelhos diante de mim. Nem o
próprio Virggo sonhara ser possível chegar tão longe!
− BESTEIRA! (interrompe Hierophantes enfurecido) Nosso pai é um fraco,
vive humilhado, abatido, de cabeça baixa obedecendo ordens da sua mãe
feiticeira! Foi a pedido dela que o trono me foi negado e entregue a você, que
não passa de um garoto mimado...
Grande guerreiro, você? Grande rei? Maior que Virggo? Não me faça rir! Virggo
era amado pelo povo: você é temido, considerado um louco vingativo,
carniceiro, desleal... Eu estive todo o tempo ao seu lado, nesses anos de guerra,
lhe entregando na mão as estratégias de combate que eram traçadas por Tunna
Trull... lhe dizendo quando e onde atacar. É a mim e a Tunna Trull que você deve
cada vitória. Era Tunna Trull que o nosso exército seguia. Ele sim tem o respeito
do nosso povo e do nosso exército... E agora você se aproveita e senta no trono
do grande imperador?! Você é uma fraude, isso sim!
– Filho da Sabbra Negra! (interrompe Cronnus enfurecido) Que a
febre do vômito te consuma! Que feridas no rabo lhe empesteiem! Retire
agora tudo o que disse ou vai pagar caro por cada palavra invejosa que
saiu dessa sua boca traiçoeira…
– Pagar caro eu? (continua Hierophantes) Não me faça rir. (voltando-se para sua
tripulação [que também assistia a tudo pelos demais monitores de comunicação
da cabine] com ar de desdém) Vejam agora o grande estrategista, o grande
Imperador Regente em pleno espaço, a mercê de qualquer imbecil com apenas
uma nave de escolta…. UMA NAVE APENAS! (batendo forte no painel)
Bastariam três naves para abater-lhe, grande rei pretensioso. Não.., duas naves com
bons bélicos bastariam para livrar Aria Galáctica de toda a sua empáfia. O que você me
diz, então, das cinco máquinas que agora estão à sua volta, cercando-lhe, prontas para
abrir fogo sobre toda a sua soberba? Hein, o que me diz? Talvez o grande rei e sua
enorme pretensão ache que todos agora o temem e por isso não precise de uma grande
escolta?! Ou talvez ache que estar a bordo da Tennebris Tranquilittate baste para estar
suficientemente protegido?! Mais um grande erro seu, irmão. Aliás, seu último grande
erro!
Veja você mesmo, grande rei guerreiro: você e sua nave escolta estão cercados e com os
nossos canhões mais poderosos armados, apontados e prontos para atirar… Apenas um
comando meu... ou um movimento não autorizado em qualquer uma das duas
espaçonaves e: boom... vocês vão virar poeira estelar!
Mal Cronnus termina a sua fala e um clarão chama a atenção de todos nos imensos
visores de observação da Suppernova e, mesmo à distância que estavam, pôde-se ver a
olho nu um segundo clarão deflagrado, agora sob a atenção de todos, já da segunda es-
paçonave da frota de Hierophantes que explodia. Como que vindas do nada, aparecem
inúmeras outras espaçonaves surpreendendo as que faziam o cerco a nave real. Os pilo-
tos e tripulação, focados em qualquer reação que pudesse vir da Tennebris ou da Vippe-
ra, mal perceberam ou tiveram tempo de se defender das espaçonaves que vieram pela
retaguarda. Em questão de segundos, toda a frota de amotinados estava aniquilada, es-
palhadas em um milhão de pedaços incandescentes pelo espaço.
Catatônico Hierophantes assiste seus planos serem pulverizados à sua frente. Parali-
sado, sem saber como acontecera ou como reagir, é trazido de volta ao mundo dos vivos
pelos escárnios e as longas risadas do irmão:
Apesar de Jassco não contestar a ideia, Tunna percebe que ele também não está con-
fiante de que, por entre o emaranhado de rochas gigantes, seja, de fato, uma rota de fuga
viável.
Jassco não fala nada, apenas olha nos olhos do seu comandante por alguns segundos
e balança a cabeça em sinal positivo, enquanto já vai acionando os primeiros comandos
no imenso painel, empurrando-os de açoite com a parte dorsal dos dedos, como se qui-
sesse dizer simplesmente: foda-se!
Mal a Suppernova começa a se mover e na nave real a ação não passa despercebida:
Na Replicante não houve tempo sequer para acatar a ordem do obsessivo imperador:
numa fração de segundos ainda foi possível assistir, pelo comunicador, a nave se despe-
daçando antes da comunicação ser interrompida pelo choque com uma das pedras side-
rais. A colisão causou uma reação em cadeia que movimentou vários dos pedregulhos
naquele setor, vitimando logo em seguida também uma outra Replicante que estava logo
atrás e não pode escapar das pedras rolantes que se movimentaram velozmente em sua
direção.
ꟷ Pela ira de Inffestus, Phanty! Eu juro que você vai pagar muito
caro por isso! (grita e braceja violentamente Cronnus, que a essa altura
já tomara à frente do chefe de operações no comunicador) Mantenham a
perseguição! Tentem alcançá-los: 7650, 6600, eles estão conseguindo se
distanciar!
ꟷ Meu senhor, nós estamos tentando nos aproximar, mas eles estão
conseguindo acelerar cada vez mais… Não sei se conseguiremos acom-
panhá-los… (responde o chefe de operações da 7650).
ꟷ Incompetentes! Imbecis! Malditos! (esbraveja Cronnus esmurran-
do o painel) Como uma máquina daquele tamanho consegue passar pelas
rochas e vocês não?!
Atenção, Appex-Predadora e Jigssore: vocês continuarão seguindo-os por fora do
cinturão de pedras. Cedo ou tarde eles terão que tentar fugir para espaço aberto; e
quando eles resolverem sair, vocês tem que estar lá para recebê-los…
Nesse momento mais uma colisão vitimiza uma outra Replicante que tentava acele-
rar seguindo as ordens do imperador Regente. Apesar de não ser considerada uma nave
de grande porte, como as Naves Cruzadoras ou Arcas, a Suppernova é uma espaçonave
bastante grande para aqueles caminhos. Mas o talento de Jassco Mahatta, reconhecido
desde os tempos em que a frota aérea de Achyros resumia-se apenas às aeronaves plane-
tárias, com o auxílio dos armeiros, tem conseguido manter a espaçonave intacta e veloz
em meio aos pedregulhos.
Tunna já previa que Cronnus manteria naves perseguindo-os e esperando-os fora da
área do cinturão rochoso, por isso instrui Jassco a sair da área das pedras e penetrar na
atmosfera de Amorphos, onde poderiam voar próximo ao solo e seria possível utilizar as
gigantescas montanhas e outras formações rochosas do planeta para escondê-los, tor-
nando impossível a localização via radar. Num grande mergulho sinuoso em direção a
Amorphos, ainda conseguem visualizar a última Replicante que ainda os perseguia se
desintegrando e sumindo dos radares em mais uma colisão, o que fora bastante come-
morado na cabine de comandos da Suppernova, já que esta era a única espaçonave da
frota imperial que ainda estava em distância hábil e poderia persegui-los dentro da zona
atmosférica do planeta vermelho antes que conseguissem se camuflar.
Com a Suppernova desaparecida em Amorphos, Cronnus trata de tentar inviabilizar a
saída dos rebeldes do planeta, colocando naves em sentinela, espalhadas em redor do
imenso astro rubro, enquanto entrava em contato com a base terrestre em Amorphos e
desviava de suas funções as espaçonaves de carga em serviço de garimpo no planeta
para que se mobilizassem também para procurá-los.
Mas Tunna também sabia que não poderiam dar tempo para que se organizassem e,
certo de que Cronnus e Malleus esperavam que eles fossem se manter escondidos no
planeta por algum tempo, instrui Jassco que retorne imediatamente ao espaço, dessa vez
sem pressa, utilizando as tais rochas radiativas do cinturão de Amorphos para camuflá-
los visualmente assim como dos radares. De forma hábil Jassco conduz lentamente a
Suppernova entre as grandes rochas, dessa vez em sentido oposto, buscando sempre as
maiores, as que pudessem cobrir-lhes o rastro com a radiação; e antes mesmo que Cron-
nus ponha em prática tudo que havia planejado para a busca, a Suppernova já está de
volta ao espaço aberto.
As sentinelas ainda não estavam preparadas para a vigília em área tão extensa e se-
quer perceberam a fuga; não fossem os satélites a disposição da base planetária além do
cinturão rochoso, que controlam o tráfego intenso de naves de carga chegando e saindo
a todo momento de Amorphos, a fuga nem teria sido percebida pelos desatentos vigilan-
tes. Mas, informados pela base sobre a nave que acabara de deixar o planeta sem pedir
autorização, Cronnus, a essa altura ensandecido pela ira, beirando a histeria, coloca a
sua frota em perseguição novamente, mesmo com a grande distância de vantagem que a
Suppernova já possuía.
Na Suppernova, a informação de que ainda estavam sendo caçados pelo obstinado
imperador não causou surpresa:
Enquanto ainda há uma boa distância que lhes garanta alguma segurança, Tristannes
trata de tentar traçar uma rota de fuga segura. As naves menores conseguem ser mais
velozes e podem alcançá-los, apesar da vantagem que conseguiram; a Appex-Predadora,
em particular, é justamente considerada a nave de guerra mais veloz e eficaz em perse-
guição e assalto, e logo conseguirão alcançá-los. Sem tempo para elaborar uma rota per-
feita, o que demandaria consulta e espera por informações externas, a Suppernova co-
meça a acelerar para a hipervelocidade utilizando uma rota bruta traçada às pressas por
Tristannes.
A ação logo foi notada pela telemetria da Appex, que já se encontrava em vias de in-
terceptá-los, e é repassada à Tennebris Tranquilittate:
Meu senhor, preciso lhe falar, essa ordem nos levará a morte (sentenciou
Malleus, olhando fixamente para Cronnus). Me escute, não existe persegui-
ção em hipervelocidade e o senhor sabe bem disso. Podemos nos chocar com
qualquer coisa no espaço, até mesmo com a própria Suppernova, caso desa-
celerem repentinamente. E o mais difícil é conseguir manter o mesmo curso,
afinal, por menor que seja o desvio da nave perseguida, nos colocaria em
dois pontos distintos e distantes no espaço! É um risco inútil. Estará colocan-
do toda a sua frota em perigo desnecessário, além da sua própria vida!
Pela ira de Inffestus! Preciso recuperar aquela máquina e dar uma lição
nos malditos traidores.
Calma, meu senhor, eles não tem onde se esconder. Toda Aria Galáctica
está sob seu domínio e a mercê do olhar atento dos nossos informantes. To-
dos temem o peso de sua mão e sabem que vale muito mais a pena entregá-
los do que aliar-se a um inimigo que já está derrotado. Quanto tempo acha
que o pequeno exército que sobrou, ou mesmo a tripulação, permanecerão
engajados e fiéis depois do que aconteceu aqui hoje? Fique tranquilo, os de-
latores continuam lá… terá a sua vingança mais cedo do que Tunna e Hie-
rophantes imaginam.
Você tem toda razão, Malleus. Ordene a todas as máquinas que abando-
nem a perseguição e reagrupem em torno da nave real.
… Acho que terei mais tempo para pensar no castigo apropriado para os traido-
res…
* * *
Claro, você está certa, Tristannes. Creio que não há mais razão para per-
manecer em hipervelocidade… (voltando-se para o primeiro piloto) Jassco,
acho que já podemos desacelerar. Precisamos, agora sim, estabelecer o nosso
verdadeiro destino…
Tunna Trull era um guerreiro muito respeitado pelo seu exército e por toda
Achyros; Além de exímio lutador, era um estrategista incomparável: enxergava brechas
onde ninguém as via e traçava planos de combate em frações de segundos, o que o
tornava em um oponente muito difícil de ser superado para quem o desafiasse. Tinha um
certo dom para comandar, do tipo: linha de frente em qualquer lugar. Prezava pelo justo,
correto, pelo combate honesto, mas sem ser idiota: se a sentença se anuncia bruta, sabia
jogar sujo também. Tais características acabaram por causar, no imaginário do povo
Achyroniano, uma associação espontânea com o lendário Virggo Fehenna, que fora
mitificado por aquele povo, e ainda figurava como o herói maior de Achyros. Junte a
tudo isso o fato de ter vencido por três vezes os Grandes Jogos de Guerra, celebração
maior e mais tradicional daquele povo, instituído pelo próprio Virggo para celebrar a
unificação de Achyros, e tinha-se aí todas as características para torná-lo um verdadeiro
culto entre os achyronianos.
Muito além do porte físico invejável, Tunna trazia em si uma altivez, um olhar que,
por mais que não fosse essa a sua intenção, denotava superioridade, e isso incomodava
muito alguns membros da nobreza e de algumas famílias tradicionais de Achyros. E um
dos primeiros a se incomodar com a suposta empáfia do guerreiro fora justamente o
então príncipe, Cronnus Fehenna, ainda quando Tunna vencia pela primeira vez os
Grandes Jogos. Inconformado com a ovação do público para com o jovem guerreiro,
que vencera todos os combates disputados de forma primorosa, inclusive vencendo o
protegido e aposta de Cronnus, este o desafiara a confirmar a sua vitória duelando até a
morte com um dos membros do grupo que ficara conhecido na época como Brigada do
Ódio: quarteto de assassinos que fazia a guarda pessoal do jovem príncipe e, sob vista
grossa de Cronnus, brigavam, matavam, roubavam e até estupravam impunemente.
Impossibilitado de negar-se ao duelo, Tunna acabara vencendo o desafiante que, morto,
tivera as dores tomadas por outro membro do grupo, que quis vingar-se ali mesmo,
porém só conseguira, de fato, encontrar nas mão de Tunna Trull o mesmo destino do
amigo. O ocorrido só acirrou os ânimos entre Tunna e Cronnus, que se viu obrigado a
congratular o aclamado vencedor.
Dali por diante, a animosidade entre os dois só aumentou, inda mais quando
Hierophantes o recrutara para ser o chefe de sua guarda pessoal, dando-lhe certa
imunidade contra os desmandos do príncipe Cronnus. Provavelmente, Hierophantes
reconhecera em Tunna o aliado perfeito para o que idealizava para o seu futuro reinado;
Reinado que nunca acontecera por interferência da Feiticeira Pálida e seu irmão
Cronnus. Foi graças ao respeito e admiração que a tropa tem por Tunna Trull que
Hierophantes conseguira juntar o seu exército insurgente. E àquela altura, Hierophantes
precisaria ainda mais da figura do seu comandante e das suas táticas de guerra para
remontar o seu exército.
Nesse momento a nave já começa a desacelerar e a tripulação começa a se olhar
aliviada. Encontram-se na Suppernova quase 200 embarcados, entre soldados:
guerreiros que vão a campo nas lutas corpo-a-corpo; a guarda pessoal do príncipe
conselheiro: soldados que o acompanham em qualquer situação ou lugar; bélicos:
aqueles que manejam as armas da espaçonave e veículos de guerra; tripulação de
cabine: pilotos, chefe de operações e os responsáveis pelo funcionamento tecnológico
da nave; e ainda o pessoal da manutenção, limpeza e produção de alimentos, além de
Hierophantes, Tunna Trull e o cientista Bellchior de Calabbar. A frota que fora buscar a
Suppernova em Lemuria era composta por cinco naves, incluindo aí a nave oficial de
Hierophantes. Como só contavam com o sucesso da emboscada, Tunna Trull e
Hierophantes transferiram toda a tripulação da antiga nave para a Suppernova,
considerando que esta já seria a nova nave espacial do novo rei, e ratearam quase que
aleatoriamente os soldados de todas as espaçonaves entre as seis que retornaram de
Lemuria, embarcando na Suppernova um número bem maior de guerreiros do que nas
outras naves. Ironicamente, a Suppernova, a tripulação e esses soldados, agora são toda
a força o que lhes resta.
Tristannes, Bellchior e o co-piloto começam então a traçar uma rota segura para
Alduruna Rediviva, um dos planetas mais distantes do núcleo mais populoso da Aria
Aliança. Inclusive, o sistema solar onde se encontra Alduruna é considerado como uma
das fronteiras de Aria Galáctica. Originalmente desabitado por vida inteligente, porém
com bom número de criaturas selvagens e com muitos recursos naturais, Alduruna
passou a ser habitado e cuidado por um grupo de voluntários de diversos planetas e
soldados da Aliança, que lá fundaram uma pequena vila. O planeta vem sendo estudado
e colonizado para se tornar base e ponto de partida para uma futura expansão dos
domínios da Aliança, no entanto, a falta de uma rede de satélites, como em Amorphos, e
a pequena quantidade de moradores que atualmente habita o planeta, são insuficientes
para cobrir e proteger todo o seu território, tornando muito fácil para uma espaçonave
desautorizada pousar e permanecer incógnita no planeta. Poderiam se passar anos sem
que fossem descobertos, se fossem tomados os devidos cuidados, claro.
Traçada a rota pelos navegadores, os processadores da nave são alimentados com os
dados do percurso para que os computadores de bordo guiem a nave ao seu destino,
tarefa impossível de ser executada pelo piloto quando a nave entra em Hipervelocidade.
Rapidamente a Suppernova começa a movimentar-se novamente e vai ganhando
velocidade, enquanto as placas escuras e espelhadas que revestem simetricamente o
casco da nave vão lentamente acendendo-se como uma lâmpada fraca tentando vencer a
noite escura. O sistema de alimentação contínua começa então a tragar e decompor a
escuridão do espaço e das trevas vem a luz que vai acendendo cada vez mais as placas
energéticas até atingir o seu ápice. Com o ascendimento total das placas a nave
transforma-se em luz intensa de um tom escuro, quase roxo, como se fosse uma estrela
negra enganadora, e então dispara e some pelo espaço deixando para trás apenas o seu
estranho rastro de luz negra. Enquanto isso, em seu interior, o campo de energia criado
pelo Sealcon isola a nave do restante do universo. A partir de então, os tripulantes
respondem apenas à gravidade e as leis física mantidas artificialmente pelos
simuladores da espaçonave.
* * *
Nascidos entre uma guerra e outra, criados para a batalha, os Achyronianos já trazem
desde a sua mais tenra infância o gosto pelas disputas. Grandes períodos de calmaria são
incomuns entre este povo. Os Achyronianos tem paixão pela guerra e quando não estão
envolvidos em alguma batalha que lhes dizem respeito, buscam informações e
acompanham os acontecimentos em conflitos que estão acontecendo em lugares
distantes da sua região. Muitos jovens que ainda não constituíram família chegam a
viajar para as regiões onde estão ocorrendo essas disputas e, tomando um dos lados
aleatoriamente, ingressam nas linhas de batalha. Termina-se uma batalha e já se começa
a pensar na próxima. Quando enfim voltam para seus locais de origem, são tratados
como especiais, como se, agora sim, fossem dignos de respeito; suas histórias são
ouvidas atentamente em grandes rodas de conversa e, finalmente, conseguem despertar
a atenção das fêmeas locais e já podem então constituir suas famílias. Talvez seja essa
predisposição à guerra, somados a admiração que todos tem pela figura de Tunna Trull,
que tenham feito aquele pequeno exército acreditar na possibilidade de vitória sobre o
astuto Imperador Regente. Mas o fato é que diante de derrota tão humilhante e cientes
da perseguição implacável que será promovida por Cronnus Fehenna, somente a
admiração pela figura de Tunna ou mesmo a vontade de guerrear talvez não sejam
suficientes para manter os ânimos dos remanescentes. Após a longa e demorada viagem,
quando finalmente chegaram a Alduruna Rediviva, o clima de descontentamento era
visível nas feições de cada um naquela nave.
Após percorrer boa parte do hemisfério oposto ao que está localizada a colônia da
Aliança no planeta procurando por um lugar adequado para pousar, Tunna e Jassco
entendem ser mais seguro esconder a espaçonave em uma espécie de cratera,
provavelmente causado pelo impacto de um meteoro, e que acabara criando uma grande
saliência parecida com uma caverna. Havia um paredão rochoso em volta de todo o
buraco e que, na parte superior, quase cobria a caverna inteira e serviria de barreira
natural, dificultando tanto a entrada de animais selvagens por baixo, quanto a
visualização por cima, caso alguma espaçonave sobrevoasse aquele setor. Encravado em
meio a uma floresta, ainda havia em volta da cratera uma alta e densa cobertura vegetal,
tornando mais escondido o seu interior.
Imaginando o desanimo e falta de perspectivas dos remanescentes, Tunna orienta
Hierophantes para que convoque o seu pequeno exército e a tripulação para uma reunião
no grande salão de desembarque da nave; a essa altura Hierophantes ainda não parecia
estar à vontade com a humilhante derrota, mas entende ser necessário tal conversa. De
pronto todos os embarcados, cansados de esperar e ficar trancafiados naquela
espaçonave, comparecem a reunião, vislumbrando talvez, poder sair o quanto antes para
explorar o planeta. Hierophantes faz-lhes um discurso morno, onde claramente
percebia-se estar abatido e envergonhado. Seguindo orientações de Tunna Trull,
esclarece a todos o fato de que foram traídos e que por isso teria fracassado o levante;
informa-lhes que com extrema brevidade remontará o seu exército com a ajuda de
outros líderes planetários também insatisfeitos com o imperialismo de Cronnus e, por
fim, que transformarão juntos aquele planeta em uma base e ponto de partida para a
derrocada do soberbo imperador. Cientes das grandes dificuldades para concretizar o
prometido, os ouvintes pouco reagem ao discurso de Hierophantes e Tunna Trull trata
logo de tomar a frente do príncipe para que este não prolongue o falatório, evitando
alguma reação vexatória por parte dos impacientes e descrentes Achyronianos;
Estabelece então algumas funções para os presentes, que vão desde o reconhecimento
da própria caverna, até a busca e caça de alimentos na floresta do lado de fora. Assim, a
maior parte dos remanescentes se lança no reconhecimento e exploração do
desconhecido planeta.
Permanecendo na espaçonave, Hierophantes procura imediatamente entrar em
contato com alguns reis e chefes de algumas das civilizações subjugadas por Cronnus:
líderes inconformados com a ascensão do rei Achyroniano, com quem Hierophantes já
havia se acordado anteriormente, e que prometeram-lhe apoio, caso obtivesse sucesso
em sua emboscada e tomada do poder. Utilizando-se de comunicação codificada,
Hierophantes precisa estabelecer, o quanto antes, alianças para remontar o seu exército.
Havia um risco razoável em se estabelecer comunicação externa, ainda que codificada;
é que, mesmo tendo o seu conteúdo protegido, elas podem ser interceptadas e
rastreadas, denunciando não só o destino da mensagem, como também o seu ponto de
partida. Um risco que Hierophantes acredita ser aceitável, dada a sua situação em que se
encontravam. Sem o apoio de outros exércitos, suas pretensões se tornariam
irrealizáveis. Deste modo, enquanto espera pela resposta dos possíveis aliados,
Hierophantes passa o dia calado, praticamente recluso e em prontidão na cabine de
comandos.
Ao entardecer, os grupos de desbravadores começam a retornar, trazendo consigo
caça em abundância: os Achyronianos adoram caçar, principalmente se forem animais
de grande porte, que constituam um desafio de força. Alguns grupos tinham a função de
coletar vegetais, atividade não muito apreciada pelos machos da espécie: consideram
esta uma atividade para as fêmeas. A equipe da cabine de comando, liderados por Tunna
Trull, que saíra apenas com o intuito de analisar o pouco conhecido planeta, também
retornam com material para análise, entre eles alguns vegetais, pequenos animais,
minérios e água. Mas já em alta noite e com o fim do fluxo de retorno, fica claro que
muitos dos que saíram não retornaram. Poderiam ter se perdido ou mesmo ter ido longe
demais para retornar no mesmo dia mas, dado os últimos acontecimentos, era motivo de
preocupação para Tunna e o príncipe rebelde.
No dia seguinte repetem-se os fluxos de saída da tripulação, dessa vez com maior
foco na busca por água, cuja a qualidade fora atestada e liberada para o consumo por
Bellchior. Hierophantes, ainda sem qualquer resposta dos seus possíveis aliados,
mantêm-se recluso na cabine de comando, em prontidão, numa espera interminável.
Tunna, percebendo a preocupação do amigo, encurtara o seu passeio neste dia e tenta
distraí-lo contando as suas poucas descobertas sobre o planeta, assim como ideias para
restruturação do pequeno exército; prefere não comunicar-lhe que os soldados que não
retornaram no dia anterior permaneciam ainda não localizados, o que fazia pouca
diferença, pois Hierophantes sabia que se Tunna os tivesse localizados, teria lhe
comunicado de imediato. Por insistência de Tunna, e já exausto, Hierophantes
finalmente resolve tentar dormir e dirigi-se para sua cabine pessoal. No caminho cruza
com alguns soldados que faziam a guarda noturna da espaçonave, que calam-se
imediatamente ao perceber a sua presença e o cumprimentam de forma bastante
comedida e fria e, reciprocamente, ambos percebem o desânimo estampado em seus
olhares. Hierophantes martiriza-se por ter subestimado o irmão e, a cada hora que se
passa, maior se torna a convicção que não possui mais aliados. Deita-se e tenta dormir
mas, no silêncio da sua cabine, a visão de sua frota sendo surpreendia e explodindo à
sua frente não lhe sai da cabeça. Uma visão repetitiva que não cessa mesmo quando é
vencido pelo cansaço e finalmente chega o sono, e vai permanecendo em sua mente em
forma de sonho. Apesar de ainda estar em ondas leves, o sonho parece-lhe bastante real,
de imagens vivas! Tanto que em um determinado momento pulo fora do entorpecimento
assustado, julgando ter ouvido, de verdade, o barulho das explosões! ( ̶ Explosões?!
Estou ouvindo explosões?!) De repente o barulho do alarme ecoa pela espaçonave e
Hierophantes percebe que o barulho que escutara e ainda escuta é real! ( ̶ Estamos
sendo atacados!) Salta rapidamente da cama e, ainda se vestindo e correndo, retorna à
cabine de comandos ao som dos estampidos. Logo ao entrar se depara com as imagens
de um ataque maciço exibidas pelas grandes telas e Tunna Trull tentando coordenar a
sua tropa encurralada:
As ordens do comandante são postas em prática sem esperar pela confirmação de que
todos estivessem sentados e afivelados dentro da nave. Assim, a as placas energéticas
em volta da Suppernova começam a acender novamente, enquanto a nave vai
aumentando rapidamente a sua velocidade, até restar visível apenas o rastro de luz,
semelhante ao de uma estrela cadente, rasgando o espaço.
A espaçonave que vinha logo a frente tentando encurralá-los é surpreendida pelo
inesperado rastro de luz que passa bem ao lado e, por onde passa, produz uma dobra
energética que mexe com a estrutura da nave, causando-lhe um leve tremor.
Mal haviam entendido do que se tratava o rastro de luz quando são novamente
chacoalhados por outro, que passa no mesmo sentido, logo abaixo da espaçonave, dessa
vez bem mais próximo, quase causando uma colisão: era a Appex-Predadora em sua
perseguição incondicional.
A velocidade atingida pelas naves hipervelozes era tão descomunal, que superava a
própria velocidade da luz! As naves viajavam protegidas por uma espécie de campo
energético gerado pelas placas do Sealcon em volta da nave, que as isolava do resto do
universo, criando dentro da espaçonave um ambiente seguro, porém, onde as regras
físicas convencionais eram distorcidas e até mesmo desaceleradas. O próprio tempo
passa mais devagar em uma nave em hipervelocidade: testes cronometrados
comprovaram que marcadores de tempo iniciados ao mesmo tempo, e onde um deles foi
levado a uma viagem em hipervelocidade, ao fim da jornada, o que foi levado na
espaçonave apresentava pouco mais de sessenta por cento da contagem de tempo
medida pelo marcador que permaneceu imóvel ou em movimento em velocidades
convencionais. É como se houvesse uma viagem no tempo, saltando-se para frente. E
quanto mais tempo se permanece em hipervelocidade, maior é a diferença ou o salto. O
simples ato de se locomover ou apenas movimentar-se em uma espaçonave em
hipervelocidade torna-se mais lento; a queda de um objeto pode ser acompanhada em
toda a sua trajetória pelo olhar e raciocínio porém, é tão difícil de ser impedida quanto
em um ambiente normal, pois, não só o objeto cai mais lento, como o braço que tenta
impedi-lo de cair também. O raciocínio parece ocorrer de modo convencional, no
entanto, em um estado constante de sonolência leve. Toda essas distorções causam dores
de cabeça que podem ser muito fortes, além de elevado estresse muscular e náuseas,
tornando-se recomendável permanecer em hipervelocidade apenas o tempo mínimo
necessário, ou hibernar em cápsulas de estase, se a distância a ser percorrida for muito
longa e demorada. Na Suppernova, no entanto, apesar do tempo decorrido nesta fuga,
nenhum dos tripulantes utilizara as cápsulas de estase; primeiro porque todos estavam
demasiadamente tensos com a possibilidade de uma colisão com qualquer elemento
espacial, o que pulverizaria a nave instantaneamente; e segundo porque todos
precisavam ficar alertas pois a telemetria da nave indicava que a Appex-Predadora
continuava com a nave real travada no seu sistema de captura, e acompanhando-os a
uma distância hábil que pudesse lhes possibilitar uma mudança de trajeto conforme o
destino da nave em fuga. Tuna sabia que assim que desacelerassem, agora longe da
visão de Cronnus, a primeira reação dos tripulantes da Appex seria a de tentar por fim a
esta perseguição insana definitivamente, atacando e destruindo a Suppernova e
retornando para casa com a notícia do desfecho “inevitável”. Até mesmo a
desaceleração poderia resultar em colisão das duas espaçonaves.
Muito tempo já se passara e a essa altura todos na Suppernova sentiam os efeitos da
viagem, mas o príncipe Hierophantes, o único na nave que não recebera o treinamento
apropriado para as viagens em hipervelocidade, era visivelmente o mais atingido pelos
efeitos da situação extrema. Sentia dores de cabeça quase insuportáveis, seu corpo
também doía muito e parecia tomado por um cansaço mortal; tudo que lhe vinha a
cabeça era a vontade de acabar logo com essa jornada agonizante. Afivelado na poltrona
para não cair sobre o painel, olhava fixamente pros controles do sistema de
hipervelocidade e tudo que pensava era em desacelerar… Subitamente, na tela ao lado,
uma frase vermelha começa a piscar e lhe força a desviar a atenção: “Mudança de rota
imediata acionada”! Só houve tempo para um único pensamento: COLISÃO! Nesse
momento sente uma força descomunal sobre seu corpo, forçando-o contra a poltrona e
ao mesmo tempo tentando separar sua cabeça e membros do tronco; uma dor
insuportável invade todo seu corpo e então… apaga…
* * *
Lentamente Tunna Trull vai recobrando os sentidos e a imagem turva que consegue
enxergar vai se transformando na figura de Bellchior, sentado no assento logo ao lado,
gesticulando enquanto aperta o seu pulso, como se estivesse tentando medir a sua
pressão cardíaca. Mal consegue, finalmente, reconhecê-lo e repentinamente tudo fica
escuro novamente. Balança a cabeça assustado, pisca os olhos, no entanto não consegue
de forma alguma enxergar mais nada. Por mais que pisque ou massageie os olhos, a
escuridão não cessa.
Bellchior, o que houve? Não exergo nada! Será que levei alguma
pancada que me afetou a visão?! Mas estava enxergando ainda a pouco!…
Calma, meu jovem... espere um pouco, a luz voltará.
Apesar de escutar o que o cientista fala, Tunna ainda não se sente nada bem. A
tontura é agravada pelo ofuscamento causado pela luz que entra na cabine e logo vai
embora jogando a nave novamente no breu profundo antes mesmo que os olhos possam
se acostumar à luz. Sente ainda dores por todo o corpo, agravadas por qualquer
movimento que faça.
Com a volta da claridade à cabine mais uma vez, Tunna vira-se o máximo que pode e
consegue localizar a alavanca que recordava já ter visto anteriormente e, mesmo ainda
se sentindo muito mal, sabia que precisava acionar o dispositivo o quanto antes, para
que Bellchior pudesse tentar parar com a quela rotação infernal.
Tunna tenta a todo custo projetar seu corpo em qualquer direção porém, agora a
mercê da falta de gravidade e da inércia, só a rotação da nave consegue movê-lo
lentamente, e cada vez para mais longe do assento onde estava. Intercalando momentos
de intensa claridade e completa escuridão a nave continua girando sucessivamente,
permanecendo bem mais tempo às escuras. Em um desses mergulhos nas trevas,
sutilmente Tunna sente que algo encostou em suas costas e, instintivamente, vira-se e
agarra o objeto como se achasse ter tocado algum ponto de apoio. Ao tocar o elemento
desconhecido ainda no escuro, as sensações de imediato lhe revelam não se tratar de
alguma parte sólida da nave, mas sim algo úmido, pegajoso… ( ̶ Que raios será isso?!!)
A luz então invade novamente a cabine de comando e revela a macabra situação: Tunna
encontrava-se agarrado e já praticamente envolto ao corpo estraçalhado de um dos seus
companheiros de cabine! ( ̶ Com mil bichos de fedor! Maldição!) Afoito Tunna tenta
escapar das entranhas que o cercam e acaba por se emaranhar ainda mais nas vísceras
flutuantes. A escuridão domina novamente a cabine de comando e Tunna, afoito, só
piora a sua própria situação. Naquele duelo infeliz, de tentar escapar das vísceras de
algum dos seus amigos, Tunna flerta com o desespero, até que, como num despertar da
força, apunhala o drama e para de se debater, e então espera pelo próximo ciclo de luz…
Desde que despertou do impacto, esse é o primeiro momento que Tunna para e se
permite raciocinar sobre toda aquela situação: percebe o quanto estava descontrolado,
fora de si. Sabe que não costuma ser assim e então, como que apreciando o silêncio e a
escuridão, espreguiça-se e estira o máximo que pode o próprio corpo, e então espera
calmamente. Com o retorno da luz à cabine, Tunna consegue se desvencilhar das
entranhas do cadáver mas, antes mesmo de estar completamente livre, percebe, preso à
cinta do pobre infeliz, uma arma de projéteis de grosso calibre. Nesse momento o Tunna
Trull astuto e equilibrado já está no comando dos seus instintos novamente e, antes que
o cadáver estivesse longe de sua mãos, Tunna o agarra novamente e lhe toma a arma
que está presa a sua cintura.
Não, espere! O que você pretende fazer com esta arma? (pergunta
Bellchior, que até então assistia a tudo calado)
Você já atirou com uma destas? Já vi pessoas serem jogadas no chão
com o coice desta arma. Vou usá-la como propulsor para chegar até a alavanca…
Você está louco, meu jovem?! De onde você está, teria que disparar justamente
em direção ao visor externo da nave para conseguir chegar até a alavanca com o
coice. Sei que dizem que o visor é inquebrável mas, de fato, não o é. Dentre as
dezenas de esferas metálicas dentro do cartucho que se espalharão pela cabine
com o disparo, uma única que venha a atingir o visor, já seria suficiente para
causar uma leve fissura ou mesmo uma trinca, o que, devido à diferença de
pressão entre o meio externo e o interior da nave, destruiria completamente o
visor e nós seríamos tragados e jogados ao espaço aberto! Lembre-se que é por
isso que só viajamos com o visor coberto pela carenagem da nave, e ele só está
aberto agora porque faz parte do procedimento de emergência da nave abri-lo
em caso de falta de energia, para deixar entrar a iluminação externa.
Calma, homem, você fala demais! Sei o que faço, não sou louco…
Antes mesmo que Bellchior pudesse argumentar mais alguma coisa, Tunna Trull
força até dobrar o cadáver do ex-colega ao meio. ( ̶ Bartton, meu amigo, longe de mim
querer desonrar o corpo de um guerreiro de respeito como você, mas é preciso. Você nos
ajudará mais uma vez, e mesmo depois de morto) Coloca então o cano da arma
diretamente no corpo sem vida e encosta a extremidade oposta da arma no centro da
própria barriga e dispara! O forte estampido estoura o corpo moribundo espalhando
sangue e entranhas por toda a cabine de comando e, com o coice, Tunna é arremessado
em direção a uma das paredes da espaçonave. Ao se chocar de costas com os armários
na parede, Tunna ricocheteia, mas vira-se rapidamente e, por muito pouco, quase não
conseguindo agarrar em nada, salvo por uma das portas abertas de um desses armários,
localizados a alguns metros da alavanca onde pretendia agarrar.
Assim que consegue estabilizar-se, Tunna olha para Bellchior e ri, enquanto ele
assiste a tudo estático, boquiaberto e coberto pelos restos mortais do corpo alvejado.
Tunna tinha um corte nas costas, provavelmente causado pela porta do armário ao
qual se chocara, além de um grande hematoma no local onde havia apoiado a arma. Do
corte saía um filete de sangue que flutuava. Tunna guarda na sua cinta a arma que ainda
estava segurando, cospe na mão e pressiona sobre o corte, olha para a alavanca que
precisa alcançar e, com toda força do braço que mantinha segurando na maçaneta,
arremessa-se em direção ao seu objetivo. Num voou certeiro Tunna finalmente alcança a
alavanca e move-a, porém, nada acontece!
Sem gravidade, Tunna mal consegue apoio para levar a rígida alavanca à posição
original. Bellchior, que assiste a tudo, entrega-se às gargalhadas ao ver o grande
guerreiro tentando reverter a posição da alavanca enquanto luta contra a falta de
gravidade.
Meu jovem, entenda a falta de gravidade. Use-a a seu favor. Você pode
apoiar-se na própria parede para puxar a alavanca.
Tunna olha para todo o cenário e entende a luta boba e desnecessária que disputava
contra a gravidade, e ambos caem no riso. Assim, projetando-se para cima, Tunna apoia
os dois pés na parede e puxa a alavanca de volta. Mal a colocara na posição original e já
usa toda a sua força para acioná-la novamente. Desta vez, ouve-se um barulho e em
seguida um zumbido; logo um dos painéis da nave acende-se e Bellchior, que estava
próximo ao painel, aciona um dos botões. A partir daí, novos zumbidos são ouvidos e as
telas de navegação da nave começam a se acender junto com os computadores e demais
painéis.
( ̶ Ainda temos energia!!!) O entusiasmo de Bellchior é uníssono porém abafado
pelos gritos e murros de Tunna Trull na lataria da nave, e estes interrompidos pelos
informativos automáticos de voz emitidos pelos computadores da nave: “Iniciando
análise de danos após impacto em curso”, … “Danos à integridade física da espaçonave
não impedem o restabelecimento da gravidade artificial”, …
* * *
Sem dar chances para que o ex-conselheiro real tomasse alguma decisão, Tunna
interrompe a conversa e determina:
Todos na cabine surpreendem-se pois entendem que Tunna acabara de chamar, sem
rodeios, o comando da situação para si e ainda esperam alguns segundos por alguma
reação por parte de Hierophantes que, apesar de visivelmente desconfortável, mantêm-
se calado.
De fato, as ações táticas sempre foram determinadas por Tunna Trull, mas sempre
submetidas ao aval de Hierophantes, que as transmitia ao restante da tripulação como
uma ordem sua. Percebe-se um certo ar de contentamento entre os tripulantes da nave
com a atitude de Tunna Trull, já que, este sim, tem o respeito e a admiração da
tripulação e do exército, e por suas conquistas e feitos, e não simplesmente por ser
irmão do imperador. Coloque-se na balança ainda o respeito e atenção que Tunna
dispensa a todos indiscriminadamente, em contrapartida à empáfia e soberba do ex-
conselheiro real, só diminuída se comparada ao do próprio imperador Cronnus, e
entende-se porque todos preferem os comandos diretos do lendário guerreiro.
A equipe científica e de manutenção da nave tratou de começar rapidamente os testes
necessários, verificando todos os componentes indispensáveis para que se pudesse
acionar os propulsores da nave. Todos temiam que a Suppernova não pudesse mais voar
depois do forte impacto e houve comemoração na cabine de comando quando as
turbinas foram finalmente ligadas.
Bellchior, temendo a pane completa do sistema de propulsão, alerta ao comandante
que deveriam esquecer o ponto do impacto e, o quanto antes, se dirigir ao planeta
próximo para efetuar os reparos na nave pois, impossibilitada de produzir sua própria
energia, a Suppernova viajava agora queimando o combustível fóssil estocado em seus
tanques. Destinados para percorrer pequenas distâncias, os combustíveis fósseis
limitavam drasticamente a velocidade da nave e traziam o temor de uma “pane seca”, o
que os jogaria a deriva e os forçaria a tentar realizar os reparos no casco da nave e no
Sealcon em pleno espaço.
Apesar dos argumentos de Bellchior, Tunna também sabia que precisavam afastar de
vez a possibilidade de uma nova perseguição, ou mesmo estarem preparados para um
possível ataque. Assim retornaram ao local indicado pela telemetria como o ponto de
impacto. Surpreenderam-se com a longa distância percorrida pela nave após o impacto,
mas surpresa ainda maior foi causada pela visão do enorme meteoro ao qual haviam se
chocado: uma gigantesca rocha negra, aparentemente orbitando lentamente o grande sol
desse sistema, e onde a Suppernova batera apenas de raspão, e isso graças aos
avançados equipamentos de detecção da espaçonave, que ligeiramente efetuaram uma
leve mudança de direção, evitando o choque direto, e restringindo à colisão a apenas
uma pequena elevação rochosa do meteoro. A mesma sorte não tiveram os tripulantes da
Appex-Predadora, que atingiram em cheio a grande rocha espacial e foram
instantaneamente estraçalhados com o impacto, deixando apenas um emaranhado de
destroços espalhados pelo espaço, além de uma enorme cratera na superfície irregular
do grande meteoro.
Hierophantes, Tunna e toda a sua Armada Insurgente foram, mais uma vez, salvos
pela grande nave, que agora era também tudo o que lhes restava. Perseguidos, correndo
risco de execução e forçados a sair além das fronteiras de Aria Galáctica, agora só lhes
restara mergulhar rumo ao desconhecido; Continuar e ir além…
* * *
Com mil bichos de fedor, esse planeta é uma porcaria! Não pode haver
nada aqui que possa justificar o interesse dos Lemurianos (resmungou
decepcionado Tunna Trull).
Deve haver fontes de minério ou algum material energético no
subterrâneo. Não acredito que eles nomeariam este planeta a troco de nada.
(ponderou Bellchior) Não é do feitio deles…
E os computadores da nave, já concluíram a análise da
atmosfera? (pergunta Hierophantes)
Deixe-me ver… As análises indicam a existência de uma boa quantidade
de oxigênio na atmosfera… O suficiente para ser respirado por nós, inclusive…
O problema é que existem também inúmeros outros gases tóxicos em
abundância nesta atmosfera, como a amônia e o enxofre, o que provavelmente é
decorrente da grande atividade vulcânica do planeta. Até é possível respirar sem
equipamentos, mas por um período muito curto de tempo. Creio eu que uma
exposição acima de cinco minutos poderia causar sufocamento e até sérios danos
aos pulmões e ao cérebro! Essa chuva forte também é rica em enxofre: é o que
poderíamos chamar de chuva ácida, e pode queimar a nossa pele se nos
expormos por muito tempo a ela. Me parece ser uma atmosfera em
transformação e ainda faltam alguns milhares de anos para que venha a se tornar
um planeta adequado à nossa espécie… Precisaremos usar os trajes de proteção
quando desembarcados. As criaturas detectadas até o momento são de pequeno
porte, mas se sobrevivem num planeta como este, melhor tomar muito cuidado
com elas. Os vegetais, pelo mesmo motivo, também precisarão ser estudados,
afinal podem ser venenosos para nós. Se houver um rio ao fundo desse cânion,
com toda essa chuva ácida que cai, provavelmente será ácido também…
Resumindo, é melhor tomar todo o cuidado ao pisar na porcaria deste
planeta. (sentencia, irritada, Tristtanes).
* * *
Central, eu estou vendo errado ou esses trajes realmente não estão com as
baterias totalmente carregadas?! (pergunta pelo comunicador Haggarde de Ithe-
ria, chefe do Primeiro Pelotão)
Humm… Pela centelha de Eruddis… confere, Haggarde!… Esses trajes
são fabricados e as baterias recebem a primeira carga para os testes. Os testes
são minuciosos e são verificados o funcionamento de cada item do traje, o que
consome boa parte dessa primeira carga da bateria. As baterias devem ser recar-
regadas posteriormente para que os trajes estejam prontos para o uso. Provavel-
mente, com a pressa inconsequente de Cronnus para receber logo esta nave, não
houve tempo para recarregá-las após os testes. E com toda essa confusão e cor-
reria, ainda não tive tempo e nem oportunidade de verificar esses detalhes. (res-
ponde Bellchior)
Então é melhor não utilizar, estas porcarias. Se as baterias descarregarem
totalmente, esses trajes só vão fuder com a gente! (interfere Borknaggah, chefe
do Segundo Pelotão, que também aguarda para desembarcar)
Negativo, Bork. Segundo Bellchior, não é possível permanecer lá fora
sem os trajes… (responde Tunna)
Então teremos que encurtar essa operação… (observa Haggarde)
Nesse primeiro momento tentaremos não exigir muito dos trajes, Haggar-
de. A manutenção da nave precisa ser feita e não sabemos quanto tempo vai de-
morar… Depois veremos o que pode ser feito. (acrescenta Tunna)
Desta vez, uma verdadeira operação de defesa e contra-ataque fora montada para o
desembarque. Com os holofotes externos da nave cortando a escuridão do enorme
planalto, o Primeiro Pelotão desembarca: todos vestindo os trajes especiais e
empunhando armas de energia dirigida (armas de raios) que, apesar de mais leves e
versáteis, também não agradava aos Achyronianos, que preferiam as armas de projéteis,
barulhentas e capazes de produzir estrago bem aparente no inimigo. Traziam ainda as
suas inseparáveis espadas presas à cintura, aparato que todo guerreiro de Achyros
carregava por onde quer que fosse e nenhum chefe ou general se opunha ao seu porte. A
espada era considerada a arma primordial para aquele povo guerreiro: consideravam
honrosa a luta e morte pela espada. Estavam ainda todos conectados por comunicadores,
outro aparato que os guerreiros Achyrones pouco apreciavam: preferiam soltar seus
palavrões e zombarias livremente, sem a central de comando escutando e gravando suas
conversas. Com Haggarde a frente, desembarcaram em passo acelerado, mirando tudo e
em todas as direções, posicionando-se um logo após o outro, sempre de costas para a
espaçonave, enquanto iam circundando-a, atentos a qualquer aproximação que pudesse
tentar se valer da pouca visibilidade causada pela chuva forte e pela atmosfera
escurecida do planeta. Permaneceram nesta formação por um bom tempo, até que o
comandante Tunna considerasse seguro o desembarque do Segundo Pelotão. Estes
desembarcam com Borknaggah a frente, que passa esbarrando em Haggarde e abre
caminho além do primeiro círculo formado, e assim, um a um, vão ultrapassando o
limite estabelecido pelo Primeiro Pelotão, espalhando-se por uma área mais ampla do
planalto, levando o perímetro seguro mais adiante. Só com a certeza de que não havia
perigo iminente ou aparente, Tunna finalmente autoriza o desembarque da equipe de
manutenção.
Trazendo o metódico e reservado Bellchior de Calabbar na vanguarda, a equipe de
manutenção da nave era composta pelo chefe operacional, mais dois mecânicos e um
técnico em energia e cabeamento que, sem perder tempo, já começam a analisar o
estrago causado pela colisão.
Logo após as primeiras verificações, Bellchior começa a distribuir à sua equipe as
primeiras ordens e assim, auxiliados por alguns soldados devidamente requisitados por
Bellchior para ajudá-los a carregar o pesado equipamento, começou um incessante entra
e sai em busca do material necessário para a manutenção da espaçonave. Pressionado
pelo seu comandante, Bell não tarda em comunicar ao à cabine de comando que a
manutenção não seria breve e que não seria possível estimar um tempo máximo para
que a nave estivesse pronta:
Melhor seria começar imediatamente os procedimentos de exploração do
planeta a fim de encontrar recursos ou algum sinal dos Lemurianos. (incita Bell-
chior)
Tunna, apesar de conhecido por seus feitos heroicos e por sua coragem, não é dado
aos riscos desnecessários e acha melhor que toda a tropa mantenha-se unida e em
prontidão:
Insistia Tristannes, quase gritando e, mesmo assim, sem conseguir ser ouvida pelo ci-
entista. A algazarra dos soldados predominava nos comunicadores.
Mais uma vez o silêncio toma conta dos comunicadores, enquanto os soldados próxi-
mos a Borknaggah se entreolham e olham para ele esperando pela sua defesa, mas antes
que ele possa reagir, Hagarde interrompe o silêncio:
Verdade! Eu tive que tirar ela de cima dele porque o pobre coitado apa-
nhava deitado no chão molhado do banheiro e gritava como uma menininha sem
conseguir se levantar!
AAaHAHAHaAH (gargalhadas ainda mais intensas tomam conta dos co-
municadores: os soldados se refastelam)
É mentira dessa invertida louca e desse “cara de cicatriz”… Eles devem é
estar se comendo isso sim! E ela é que deve ser o macho da relação… (tentava
se defender Borknaggah, envergonhado, em meio às risadas incessantes) Eu es-
tava muito bêbado, isso sim…
Tanto quanto Bellchior, Hierophantes também estava bastante curioso sobre aquele
planeta: vislumbrava que houvesse ali alguma vantagem energética ou estratégica des-
coberta pelos Lemurianos que pudesse lhe auxiliar na batalha contra seu irmão. Temia
que Tunna não estivesse assim tão interessado em colocar a tropa em perigo naquele
planeta tão inóspito. Precisava pô-los em ação antes que a espaçonave estivesse pronta
para partir e antes que as baterias dos trajes estivessem completamente descarregadas,
inviabilizando a incursão pelo planeta. Sabendo que Bellchior também compartilhava
do seu interesse na exploração do planeta, e se aproveitando da recente algazarra, em
canal aberto determina:
Tunna, a tropa está dispersa e desatenta, e isso pode ser ainda mais peri-
goso em caso de um ataque surpresa. Mais até do que a própria exploração desse
planeta. Precisamos descobrir mais sobre este lugar, e antes que as baterias dos
trajes descarreguem por completo…
Bellchior, como esperado por Hierophantes, instiga a saída, sem dar tempo para que
o comandante das tropas acrescente sua opinião:
Tunna determina, então, que metade de cada pelotão deveriam ficar e manter a
guarda do lado de fora da nave, enquanto a equipe de manutenção trabalhava; a guarda
pessoal do príncipe não deveria por nada se afastar da cabine de comando, mantendo
assim, tanto a guarda pessoal de Hierophantes, quanto a proteção da cabine. Tristannes e
Jassco deveria permanecer lá também, monitorando e mantendo ativa as comunicações
da nave. Aos demais soldados foi determinado que espalhassem-se pela grande
plataforma procurando um caminho viável para dentro do cânion, mas que não fossem
longe demais, garantindo, se necessário, um retorno não muito demorado caso fossem
atacados ou chamados pelo comando, ou mesmo se precisassem voltar à espaçonave
com alguma descoberta. Cada pelotão responderia ao seu respectivo chefe e Tunna Trull
também estaria em campo chefiando toda a missão de reconhecimento. Estariam todos
em comunicação e sendo monitorados pela cabine de comando: qualquer ameaça ou
descoberta, deveria ser comunicada imediatamente aos demais.
A chuva densa e escurecida não permitia que se enxergasse muito além de poucos
metros. Olhando-se à beira do desfiladeiro, a visão, ou mesmo as fracas lanternas dos
capacetes, não alcançavam o fundo do cânion. Mesmo os mais afoitos, a primeira vista
percebiam que o paredão era bastante íngreme, e que descê-lo já seria difícil, mas
escalá-lo de volta seria praticamente impossível com toda aquela chuva. Em pouco
tempo já se ouvia pelos comunicadores os murmúrios de alguns soldados sobre as
impossibilidades de se ir adiante com a missão de reconhecimento. Indiferente aos
comentários que lhe chegavam aos ouvidos, Tunna já desconsiderara a descida pelo
paredão e já buscava por um caminho alternativo para baixo. Notara que toda aquela
água que se precipitava do céu escoava muito pouco, ou quase nada, pelas bordas do
desfiladeiro. Escorriam, isso sim, em direção ao centro da enorme plataforma rochosa: o
platô parecia ter um sutil desnível da borda para o centro. Comunicou aos soldados o
que percebera e que todos deveriam seguir na mesma direção das águas procurando o
ponto onde toda aquela água descia da plataforma, esse poderia ser um caminho viável
para baixo. Seguindo o caminho das águas silenciosas, percebia-se que uma correnteza
ia se formando e ficando cada vez mais forte ao ponto de formar um forte córrego.
Tunna estava certo: não precisaram caminhar muito tempo para encontrar o ponto em
que toda aquela água, vindo de todas as direções, se encontravam e rompiam a
plataforma em direção ao o fundo do cânion. Uma enorme fenda na rocha aberta pela
força das águas em seu caminho para baixo, formando uma forte e barulhenta corredeira
que a certa altura despencava em cachoeira. A fenda era bastante acidentada e, com a
força das águas, tornava-se bastante perigosa também, porém, melhor caminho para
baixo provavelmente não haveria. Começaram então, um após outro, a descida rumo ao
interior do cânion. Tunna Trull ia a frente passando aos demais as suas orientações pelo
comunicador. Quanto mais fundo chegavam, mais escuro se tornava o cânion e diminuía
a pouca visibilidade. Havia uma espécie de lodo escorregadio ao longo de todo o
córrego, o que deixava ainda mais perigosa e demorada a descida.
Apesar da escuridão do cânion, já se percebia serem bastante estranhas a vegetação
do lugar, assemelhando-se a grandes algas escurecidas. A cachoeira formada pelo
córrego desaguava diretamente sobre um rio que, como previsto, corria bravio lá em
baixo. A primeira vista, parecia ser o único ponto onde o rio tocava as paredes do
cânion: provavelmente, com o tempo, a forte cachoeira e a erosão fizeram com que o rio
encostasse no paredão somente naquele ponto, dividindo aquela margem do rio em
duas. Alguns mais afoitos ameaçavam encurtar a descida se jogando logo dentro do rio,
o que foi repreendido por Bellchior, que da nave escutava tudo que era dito pelos
soldados e assistia, por meio de um receptor especial, algumas imagens selecionadas
por Tristannes; segundo ele, eram águas desconhecidas de um paneta bastante agressivo,
não se sabia que tipo de criaturas poderiam habitar aquelas águas ácidas e misteriosas:
Como a margem do rio estava dividida, existiam duas direções a percorrer; Tunna
determina que Haggarde e o Primeiro Pelotão o acompanhasse seguindo o sentido do
rio, e que o Segundo Pelotão, chefiado por Borknaggah, já desceria do paredão pelo
outro lado da cachoeira, seguindo o sentido contrário à correnteza. Sempre que possível,
Tunna preferia estar acompanhado por Haggarde; dizia ele em tom de brincadeira: “ ̶
Acompanhado do melhor guerreiro de Áchyros, talvez eu consiga sobreviver!”. Por
mais que o consenso geral, e até mesmo o próprio Haggarde, achassem que esse título,
de fato, pertencesse ao próprio Tunna, era inegável as grandes habilidades do guerreiro
de Itheria. Vindo de uma das regiões mais abastadas de Áchyros, o pouco que se julga
conhecer sobre Haggarde de Itheria conta que este seria um membro renegado da
família aristocrática local e, justamente, o filho mais velho e herdeiro preferencial dos
poderes do pai sobre a região. Conta-se que seu pai tentara invadir uma região próxima
a Itheria a fim de dominar a tribo local e tomar posse sobre uma mina rica em um metal
pesado raro, energético, que se tornara muito valioso com a chegada das tecnologias
Lemurianas. Haggarde teria sido contra a invasão e teria se recusado abertamente a
marchar junto as tropas do pai e, por este motivo, fora encarcerado em prisão comum,
junto aos criminosos comuns para que aprendesse a lição e voltasse atrás na sua decisão.
Conta-se que houve uma rebelião entre os condenados e um de seus irmãos tentou
ajudá-lo a fugir: este acabara morto pelos revoltosos e Haggarde conseguira fugir com
um grave ferimento na face, que posteriormente se tornou em uma grande cicatriz de
cima a baixo do lado esquerdo do rosto, em forma de uma linha reta perfeita. Após o
ocorrido, Haggarde nunca mais voltou a Itheria e nunca mais usou o sobrenome da
família; Quando engajou-se nas tropas do rei Cronnus, passou a ser conhecido como
Haggarde de Itheria e ganhara o apelido de Cicatriz Simétrica. Assim que Tunna Trull o
viu em batalha pela primeira vez, manejando com exímia habilidade as duas espadas
que carrega sempre consigo, Tunna pediu que o remanejassem para o seu destacamento,
e assim não demorou para que se tornasse chefe de pelotão e homem de confiança do
grande comandante.
Com todos os soldados já embaixo, logo os dois grupos começaram a se espalhar
pelo interior do cânion, onde a visão era ainda mais restrita e só os pequenos faroletes
nos capacetes entregavam a localização dos colegas: como as baterias dos trajes
estavam com pouca carga, Bellchior aconselhara a usar apenas as lanternas de curta
distância. Cada homem ia reportando aos demais, via comunicador, aquilo que
considerasse importante. Apesar de estarem em um planeta totalmente desconhecido e
do local onde se encontravam, não tardou para que se reestabelecesse o clima de
descontração, característica comum daquele povo destemido; e, mais uma vez,
instigadas principalmente por Borknaggah. Assim, as inevitáveis brincadeiras,
carregadas de ironias, chacotas e desdem, que comumente envolviam os pais, esposas e
familiares dos outros soldados, começaram a se sobrepor sobre os informes nos
comunicadores e eram quase sempre seguidas pelas gargalhadas dos demais…
Mesmo no efusivo estado de descontração, os desbravadores ainda mantinham-se
atentos, e alguns soldados começaram a perceber pequenas movimentações entre a
vegetação; logo as primeiras pequenas criaturas foram avistadas:
Pessoal, tomem cuidado, acho que vi algo se movendo aqui em baixo!
(avisa Haggarde)
Também tive a mesma impressão, Hag. Alguma coisa se moveu bem
próximo dos meus pés. (relata Tunna Trull)
Definitivamente temos pequenas criaturas aqui em baixo senhor. (alertou
um outro soldado do outro lado da margem do rio)
Hááá! Maldição! Uma dessas criaturas tentou me atacar… Mas agora
está com minha espada enfiada dentro da cabeça! Aahaha… (informa Borknag-
gah) Com mil bichos de fedor, que porcaria é esta?! A minha espada está atra-
vessada na cabeça do monstrinho e a praga continua se mexendo! E que criaturi-
nha mais feia! Parece a sua avó, Jassco! Aahaaha!
Borknnagah, seu imbecil, minha avó está velha e doente… E você nunca
nem viu a minha avó! (responde Jassco da cabine de comandos)
Aahahha! Vi sim, quando fomos te buscar na sua casa. A sua irmã veio
nos atender e consegui ver a velha se balançando numa daquelas redes que sua
tribo usa para dormir: nossa que velha feia! Mastigando alguma coisa, baban-
do… parecia com uma dessas criaturas tentando me morder. Ahahah (gargalha-
das gerais nos comunicadores) Aliás, a feiura parece ser de família, a sua irmã
também é quase tão feia quanto a velha! Aahahhah (gargalhadas ensurdecedoras
tomam conta dos comunicadores)
Feridas no rabo te empesteiem, seu Olho Seco! Vou te enrabar por isso!
Sua sorte é que estamos distantes um do outro… Torça para que alguma criatura
te mate antes de nos reencontrarmos, seu escroto… (mais risos pelo comunica-
dor)
Por Krigg-Ha, pessoal, calem a boca! Eu sinto alguma coisa muito estra-
nha nesse planeta… É como se a própria morte estivesse à nossa espreita. (inter-
rompeu Haggarde de Itheria, criando um pequeno momento de silêncio que logo
foi quebrado pelas gargalhadas de Borknaggah)
Haggarde, seu merdinha supersticioso! E você e o seu povo fazem algu-
ma coisa além de sentir que sentiram alguma coisa estranha?! Aahahah (nova-
mente as gargalhadas se espalham pelos comunicadores)
Você é mesmo um imbecil, Bork. Eu falo sério…
O chefe do Segundo Pelotão não contem suas gargalhadas espalhafatosas, que aca-
bam contaminando a maioria dos soldados porém, suas gargalhadas as vezes parecem
forçadas, impelidas somente para irritar e ridicularizar alguns colegas.
Borknaggah, preste atenção à sua missão! Tente trazer essa criatura quan-
do voltar para a nave, preciso examiná-la. (interrompe Bellchior com um certo
tom áspero e sério na voz, tentando lembrar a todos que estão em uma missão de
reconhecimento)
Maldição, essas criaturinhas estão nos atacando mesmo! Nunca vi criatu-
ras pequenas serem tão agressivas! Também acabei de matar uma… Se é que
está mesmo morta… Continua se debatendo! (informa Tunna Trull)
Tomem muito cuidado, podem ser venenosas. Criaturas pequenas não
costumam atacar oponentes tão maiores que eles, a menos que tenham algum
trunfo escondido. (alerta Bellchior) Ah, não esqueçam: eu sei o quanto está escu-
ro nesse desfiladeiro mas, repito, tentem usar apenas as luzes de iluminação
aproximada. Os faróis de iluminação à longa distância consomem muita carga
das baterias. Evitem ao máximo usá-los…
Espalhando-se pelo desfiladeiro nos dois sentidos do rio, alguns soldados, sob
orientação de Bellchior, começaram a coletar material para levar de volta à nave para
serem analisados. Sem descuidar da manutenção, Bellchior acompanhava atentamente
as imagens que lhe eram retransmitidas, dando instruções de alguns exemplares que
deviam ser coletados. Aos olhos dos soldados Achyronianos nada aparentava ser
comestível naquele lugar, e os equipamentos não reconhecem espécie alguma daquela
vegetação: se os Lemurianos estiveram mesmo naquele planeta, não catalogaram nos
seus bancos de dados nada do que está sendo encontrado até o momento, o que não
condizia com a postura normalmente adotada por aquele povo.
Tunna tem pressa e curiosidade, seguindo à frente do seu pelotão, começa a se
distanciar sem perceber. Apesar da pouca visibilidade, avista nos imensos paredões,
algumas reentrâncias que se aparentavam ser cavernas. Ao aproximar-se de uma a pouca
altura, justamente a que lhe pareceu ser a maior delas, e percebe que há um pequeno
córrego vindo do seu interior, que descia pelo paredão, escorria pelo chão ate desaguar
dentro do rio. Poderia ser água de chuva adentrando por alguma fenda na rocha e
escoando por ali, mas poderia ser uma nascente de água pura, uma descoberta que seria
muito útil àquela altura. Avisou pelo comunicador o que havia encontrado e escalou
com facilidade aquela pouca altura até a entrada da gruta.
Adentrando poucos metros na caverna, já se percebia que a água do veio tinha uma
aparência bastante diferente das águas esbranquiçadas e borbulhantes do rio lá fora;
poderia mesmo ter encontrado água boa para beber! Tentou informar aos demais colegas
as suas novas descobertas mas o silêncio repentino nos comunicadores já denunciava
que ali no interior da gruta os comunicadores não estavam captando bem o sinal da
nave. Continuou se aprofundando dentro da caverna escura utilizando apenas as
lanternas mais fracas do capacete e estranhou o fato de não ver ali dentro as pequenas
criaturas que insistiam em incomodá-los do lado de fora, mesmo sendo o interior da
caverna um lugar protegido contra as chuvas constantes daquele lugar.
Continuou seguindo o veio de água e se aprofundando ainda mais na caverna até
perceber que em um determinado ponto a luz de curta distância que utilizava já não
encontrava as paredes ou mesmo o teto da caverna e, mesmo desviando a sua rota um
pouco para o os lados, já não conseguia encontrar as extremidades. Apesar das
orientações contrárias de Bellchior, sabia que estava em um lugar bem mais amplo e
precisaria utilizar as luzes mais fortes do traje para investigar o lugar.
Um zumbido dispara os faróis de longa distância e, assim que os olhos se acostumam
com a forte claridade, a surpresa os mantêm abertos ao máximo: era um enorme salão
circular, bem maior que poderia ter imaginado. No centro havia um grande reservatório
de água escavado numa rocha de um lado e mantido por uma contenção do outro, e que,
apesar de rústico, não podia ser obra da natureza. Era desse reservatório, fluindo por um
canal esculpido na parede de contenção, que brotava o córrego que o trouxera até ali.
Nas paredes do grande salão haviam símbolos talhados na rocha e, por toda parte,
dezenas de buracos, provavelmente outras cavernas menores. No fundo do salão,
estranhamente, estavam algumas pedras dispostas de uma forma que pareciam feitas
para o repouso de alguma coisa grande: aquilo não estava ali, daquela forma, por
simples ação da natureza: algum povo inteligente preparara aquele lugar, que mais
parecia um altar ou santuário! Mas não parecia obra dos Lemurianos… ( ̶ Então
quem?!) Ao se aproximar da formação rochosa notou que onde deveria estar o encontro
das paredes da caverna com o chão, na verdade havia uma reentrância, algo como uma
passagem para uma espécie de nível inferior que circulava todo aquele salão:
Central, podem me ouvir? … Acho que encontrei mesmo, água pura nes-
ta caverna. Há uma nascente aqui e não parece haver infiltração de água da chu-
va no local. Mas a caverna, com certeza, foi modificada ou construída por vida
inteligente e creio que não foram os Lemurianos…
(Pelo grande Virggo! Esta caverna nem é tão profunda e a porcaria desse
comunicador já não funciona…) Central, se estiverem me ouvindo, existem vá-
rias outras cavernas aqui dentro e umas formações rochosas dispostas de forma
muito estranha, talvez seja o salão central de alguma espécie de moradia ou altar
de cerimônias, não sei… preciso investigar melhor…
Vocês entenderam alguma coisa do que ele falou? Disse que havia encon-
trado algum sinal dos Lemurianos?
Daqui também não conseguimos entender nada, Bell. Vamos mandar
o pelotão de apoio entrar na caverna. (responde Tristannes, conforme orien-
tou Hierophantes)
Haggarde, a comunicação com o comandante Tunna está horrível e
ele pode estar precisando de ajuda. A última vez que conseguimos entender o
que ele dizia, informou que estava prestes a entrar em uma caverna por onde
saía um córrego d'água. Veja se encontra essa caverna. Leve metade do seu
pessoal para dentro da caverna e os demais ficam de guarda do lado de fora
esperando pelo seu retorno ou por novas ordens.
Borknaggah, seu pelotão permanece do outro lado da cachoeira e prosseguem
com o reconhecimento…
Tunna, se estiver ouvindo, o apoio já está a caminho…
Confirmado, central… (corresponde Haggarde de Itheria) Mas algo mui-
to estranho também está acontecendo aqui fora: as pequenas criaturas que esta-
vam nos atacando e reagindo a nossa presença… Repentinamente fugiram,
como se algo os tivesse afugentando…
Que bosta, cara! Você é mesmo muito cagão! Fugiram por causa da nossa
presença aqui, imbecil… Aahahha (interrompe indignado Borknnagah)
Você é muito burro mesmo, Olho Seco! Estamos aqui embaixo já há um
tempão, e só agora que essas criaturas resolveram ficar com medo da gente?!
Concordo, Haggarde. Esse sujeito é um louco! (responde Jassco, cha-
mando a conversa para si)
Claro, claro, o maluco tem sempre que defender o cagão… Ahahah! (des-
denha o mofante guerreiro)
Bom, fiquem todos atentos aí embaixo. (interrompe Tristannes, tentando
por fim àquela falação) Qualquer movimentação estranha reportem imediata-
mente. Se perceberem perigo iminente, recuem. Desde já, planejem a rota de
fuga…
Com toda velocidade que podia correr, Tunna percorre o caminho de volta ao grande
salão ignorando com um único salto a elevação que separa o subnível do vão central.
Mas, antes mesmo que pudesse visualizar alguma coisa, além de pequenos pontos de luz
na escuridão, um ensurdecedor e eufórico grito impõem-se sobre as conversas nos
comunicadores. Tunna ainda tenta alertá-los para que saiam todos da caverna, mas em
meio a forte balbúrdia, sequer foi percebido. Enquanto corre em direção ao seu pelotão,
mais um grito apavorado cala a todos:
Em meio a toda aquela escuridão Tunna não vê outra opção senão acionar as luzes de
longa distância mais uma vez. Emitindo o forte feixe de luz em direção a entrada da
grande caverna, consegue visualizar a tropa ainda próximo a entrada principal e, logo
acima, encontra a fonte do pedido de socorro: um dos soldados sendo arrastado para
dentro de uma das cavernas menores no paredão por uma criatura toda negra, puxando-
o com pela longa cauda enrolada ao seu pescoço.
Todos os soldados, num movimento defensivo, voltam-se então contra a fonte do
foco de luz, esperando por um possível novo ataque, até reconhecerem Tunna correndo
naquela direção e gritando pelo comunicador:
Totalmente no escuro, Tunna aciona a mira luminosa da arma, sua única fonte de luz
agora, e decide ir adiante…
O pequeno feixe de luz avermelhado não iluminava quase nada além do ponto onde
tocava, mas produzia uma fraca luminosidade que era apenas suficiente para se localizar
na escuridão total. Aquela estranha caverna mais se parecia com um longo corredor, um
caminho ou passagem para algum lugar, e não era irregular como costumavam ser as
cavernas naturais. Caminhando cuidadosamente, Tunna movimentava o feixe em todas
as direções e, vez ou outra, vira-se para trás cortando a claustrofóbica escuridão da
caverna. A caminhada angustiante prolonga-se por alguns minutos até que, subitamente,
o feixe de luz encontra algo no chão a não mais que dez metros de distância, no que
parece ser uma curvatura na caverna. Aproxima-se lentamente até entender que se
tratava do soldado raptado e que, ao que tudo indica, fora deixado caído no chão pelo
seu raptor em fuga.
Busca em volta por algum sinal da criatura e só então vai ao encontro do corpo caído
de bruços. Coloca a arma no chão de modo que o feixe de luz ilumine o local onde estão
e então tenta reanimá-lo ou mesmo descobrir se ainda está vivo. O seu traje, agora com
quase todas as suas funções desabilitadas, sem a captação de áudio externo, mas ainda
totalmente isolado do meio, mais atrapalha do que ajuda nos sentidos do grande
guerreiro. Ainda assim tem a impressão de ver algo se movendo na escuridão… Seus
olhos movem-se rapidamente tentando desvendar a penumbra do lugar, até focarem em
um certo ponto no teto da caverna onde parecia que a própria escuridão estava se
movendo. Tunna aguça a visão mas, antes mesmo que pudesse entender do que se
tratava, a terrível criatura pula da escuridão sobre o desavisado comandante,
arremessando-o bruscamente contra uma das paredes da caverna, onde bate forte e quica
para o chão e sente, além do impacto na cabeça e costas, o peso da enorme criatura
caindo em seguida sobre si.
Por um breve momento a criatura parece estudá-lo ou talvez procurasse alguma falha
no traje, o que dá a Tunna algum tempo para recobrar os sentidos, mas não o suficiente,
logo a besta entende o que se passa e então abre a boca como se tencionasse devorá-lo
ou pretendesse ao menos assustá-lo com as enormes presas. Com a pouca iluminação do
feixe de luz da arma caída no chão, Tunna vê a salivação exagerada da criatura cobrir o
visor do seu capacete e acontece algo inesperado: a criatura começa a desferir golpes
com a própria cabeça contra o visor do capacete… Mesmo sem enxergar direito o que
se passava, Tunna não espera por mais nenhuma surpresa e desfere um potente soco que
consegue momentaneamente conter a ação da fera. Com a criatura ainda pesando sobre
seu corpo, Tunna continua golpeando a criatura, que sente a força do oponente, mas
continua prendendo-o ao chão com o próprio peso. Subitamente Tunna sente uma
pontada fina e dolorosa na região logo abaixo das costelas, logo mais outra, e outra, e
outra, até se dá conta que a criatura o estava golpeando com a cauda, onde devia haver
alguma espécie de ponta ou ferrão afiado na extremidade, pois os golpes assemelhavam-
se a punhaladas e, apesar da forte dor que causavam, o ataque ainda não havia
atravessado o resistente traje. Mas, com certeza, não demoraria para que a besta
atingisse o seu objetivo. Tunna olha em volta e percebe que a sua arma está a pouca
distância e, caso consiga mover-se um pouco mais para o lado, poderia pegá-la. No
entanto, a criatura o mantém preso e incapaz de alcançá-la… ( ̶ AAAhhh!) Nesse
momento Tunna sente o traje e sua pele serem perfurados de uma só vez pela cauda da
criatura e a dor é muito intensa! Num movimento impulsivo, quase espasmódico em
reação à perfuração, Tunna golpeia a criatura com toda a força que a dor da estocada lhe
impusera e a criatura treme com impacto descomunal deste último soco; Tunna, ainda
gritando, desfere mais dois golpes certeiros que desequilibram a criatura que pende para
o lado. Instintivamente Tunna Trull leva a mão até a cintura e saca a sua espada e, num
golpe único e certeiro, atravessa o crânio da criatura de um lado a outro, de baixo para
cima. Mesmo com a perfuração mortal a criatura permanece sobre Tunna se movendo
descontroladamente com a espada ainda presa ao seu crânio; Tunna segura a cabeça da
criatura com a outra mão para conseguir arrancar a sua espada e, mal consegue soltar a
sua espada e já desfere um segundo golpe que arranca-lhe de vez a enorme cabeça
comprida, que separa-se do corpo esguichando o seu líquido vital sobre o capacete do
guerreiro. Temendo novo ataque de outra destas criaturas, o comandante joga o corpo
ainda em espasmos para longe de si e levanta-se rapidamente, já tentando limpar o visor
do capacete com as mãos; todavia, por mais que esfregue, o visor não limpa e parece
sujar cada vez mais. Percebe então que suas luvas estão esquentando muito, como se
algo fervescente estivesse sobre elas e então entende que a substância expelida pela
criatura é corrosiva e está corroendo o capacete e as luvas! Sentindo as primeiras
queimaduras na mão, Tunna destrava rapidamente as luvas do traje e as arremessa
longe, fazendo logo em seguida o mesmo com o capacete, que já estava com o visor
perfurado. ( ̶ Que espécie de aberração é esta que carrega uma substância tão corrosiva
em suas próprias entranhas?!)
Sem o capacete Tunna prende a respiração o máximo que consegue mas, cansado
pelo combate, não resiste muito tempo e, sufocando, enfim traga o ar do ambiente… A
sensação é quase tão sufocante como o próprio ato de prender a respiração: sente como
se estivesse respirando alguma substância tóxica, carregada, esfumaçada mas, no
entanto, parece-lhe que alguma coisa seu corpo aproveitou daquela tragada e, após mais
alguns segundos prendendo a respiração, repete a ação dolorosa novamente… Lembra
então do que Bellchior alertara sobre respirar o ar daquele planeta e sabe que precisará
correr imediatamente para a Suppernova, se quiser sobreviver.
Sabendo do pouco tempo que lhe resta, Tunna prefere não averiguar a criatura e,
prendendo a respiração o quanto pode, corre para o soldado caído pra verificar se ainda
está vivo, pois a morte daquele soldado pode ser agora a sua única esperança de vida.
Virando-o para cima descobre a causa mortis: estrangulamento! Tão forte foi a força
aplicada pela cauda da criatura em seu pescoço, que o próprio capacete fora danificado,
e justamente onde se trava ao restante do traje. Sem conseguir destravar completamente
o capacete danificado, Tunna arranca-o do traje original e tenta encaixá-lo a todo custo
no seu, deixando uma enorme brecha por onde escapa o oxigênio vindo dos seus
reservatórios de ar. Contenta-se com o fato de, pelo menos por enquanto, poder respirar
novamente. Sem tempo para ponderações, Tunna pega a sua arma no chão e corre
tentando refazer o caminho de volta em direção ao vão central. Ainda usando a mira
luminosa para se guiar na escuridão, a essa altura sequer tinha a certeza de estar indo na
direção correta até começar a enxergar alguma pouca luminosidade no fim do grande
corredor de pedra, e então corre mais apressadamente, até deter-se surpreso à beira do
despenque:
– Pela espada do grande Virggo, que loucura é esta?!
Tunna sabia agora que não havia mais nada a ser feito além de tentar sobreviver: a
situação era crítica e toda ação para minimizar o ataque das criaturas poderia ser
relevante. De suas cintas de utilitários, que trazia cruzadas sobre o peito, sacou dois
artefatos explosivos (granadas) e pediu as que Haggarde também trazia consigo:
Haggarde encara o seu comandante com o olhar fatídico de quem não quer aceitar a
tragédia que se anuncia…
– Hag, você me conhece bem, eu colocaria a minha própria vida em risco
se achasse que haveria alguma chance de salvar qualquer um lá dentro. Mas não
há. Esse lugar é a verdadeira residência do mal!
O Guerreiro de Itheria pensa por alguns segundos e então saca as suas duas granadas
e ele próprio se dirige a uma das paredes da caverna e as coloca em dois pontos nas
imediações da entrada da gruta, gira um botão com diversos níveis de intensidade até o
máximo, assim como também faz Tunna Trull em outros pontos da parede oposta. Nesse
momento ambos sentem uma pequena vibração crescente sob os pés, como se uma
manada se aproximasse em disparada fazendo o chão temer: ambos sabem que resta
pouco tempo até as criaturas apontarem pela saída da caverna e correm, pulando no
limite do beiral, rumo ao exterior da caverna:
– AGOOORA!
– Booork, seu desgraçado! Você acabou de mandar vários dos nossos ho-
mens para a morte! (grita Tunna desesperado, tragando grande quantidade de ar
tóxico e, numa vertigem mais acentuada, quase caindo também, sendo salvo por
Haggarde que estava logo ao seu lado.)
Borknaggah olha para Tunna com olhar de desdém e, ao vê-lo quase despencando,
ignora-o e continua a sua escalada. Tunna e Haggarde logo mais abaixo e sem mais
criaturas em seu encalço, graças a ação de Borknaggah, dedicam a sua atenção
exclusivamente à escalada e logo estão em cima do planalto novamente. O esforço da
escalada fez com que Tunna respirasse com maior frequência o ar contaminado e, a essa
altura, mal consegue manter-se de pé. Apoiando-se em Haggarde caminham de volta à
nave o mais rápido que conseguem mas, ao chegar ao ponto onde a Suppernova havia
pousado, encontram apenas Borknaggah chutando pedras e plantas e gritando pelo
comunicador em meio a um cenário de horrores: centenas de cadáveres esparramados
pelo chão, onde a grande maioria eram dos soldados que ficaram protegendo a
espaçonave, mas havia muitos das bestas também :
Era visível a ira nas feições de Hierophantes mas, ameaçado pelo mesmo homem que
numa ação totalmente inesperada em se tratando daquele pacato cientista, acabara de
matar o seu fiel escudeiro, acha melhor conter-se e não arriscar outra surpresa do tipo.
Mas o que era esperado por Tristannes não se realiza: como medida de segurança,
com a abertura do portão de embarque, o próprio computador da nave desativa e recolhe
algumas armas; Com a aproximação ao solo, os outros canhões da parte inferior
também são desativados automaticamente, assim como os primeiros. Os únicos que
continuam funcionando após a aterrizagem são os canhões laterais, porém, mesmo com
o auxílio dos computadores detectando o movimento inimigo e disparando em modo
automático, esses não parecem ser suficientes para deter a grande quantidade de
criaturas tentando chegar aos soldados que correm para a espaçonave ainda atirando e
carregando o pesado comandante Tunna preso aos ombros.
Prevendo tal possibilidade, ao baixar do portão de embarque, o armeiro Vyrr
Belatthor já estava os aguardando à saída da nave e portando duas armas de projéteis
explosivos de grosso calibre: enquanto os soldados em terra corriam para o embarque,
Belatthor atirava nos alienígenas que tentavam aproximação.
Vyrr Belatthor era um sujeito bastante exótico, mesmo para aquele povo tão
extravagante. Tinha por costume vestir roupas bastante chamativas, normalmente em
couro preto, perfuradas por metais, argolas e até pequenos troféus que arrancava de
algumas vítimas, como presas, garras, ossos… além das características cintas de
projéteis cruzadas sobre o peito. De temperamento efusivo e briguento, falava alto
sempre, e era difícil uma discussão ou peleja em que não tentasse vencer no grito. Mas
era em momentos como aquele, em batalha direta, que Belatthor se refastelava e
mostrava o modo mais estranho da sua personalidade: enquanto atirava nas criaturas
que tentavam se aproximar, ria, gritava, xingava, pulava e até batia as armas contra o
próprio peito vendo os monstros explodirem. Era bastante eficiente de armas em mãos,
mostrando claramente porque o tornaram chefe de armamentos daquele pequeno
exército; Enquanto corriam para a espaçonave, Bork e Hag chagavam a sentir o calor de
algumas explosões próximas a eles, além de pequenas queimaduras nas costas causadas,
ou por fragmentos em fogo, ou talvez pelos respingos do próprio sangue corrosivo das
bestas.
Conseguindo finalmente embarcar os três, a nave começa a levantar voou ainda com
o portão de embarque abaixado, onde Belatthor mantinha-se atirando nas criaturas que,
incessantes no ataque, ainda tentavam invadir a nave se dependurando no portão por
levantar. Uma última delas consegue ainda invadir o grande salão pela parte superior do
portão mas, como golpe final, é surpreendida pelo armeiro, que explode sua cabeça
espalhando corrosão pelo convés e sobre um dos braços da sua jaqueta, que Bellattror
tira rapidamente antes de a corrosão o atingir.
– Porcaria, porcaria! Com mil bichos de fedor! E agora, como vou conse-
guir outra dessa?! (resmunga Belatthor)
– Ele ainda está vivo, Bell? (pergunta Haggarde bastante preocupado, en-
quanto os demais apenas observam com seus semblantes também denunciando
preocupação).
– Sim, sim, ele está vivo! E as leituras indicam que vai sobreviver…
As reações de alívio dos três soldados são claramente visíveis em suas feições e cada
um comemora contidamente ao seu jeito.
– Não dá para saber ainda a extensão dos estragos causados ao pulmão e ao cére-
bro do comandante após ter respirado durante tanto tempo a atmosfera agressiva
deste planeta… (continua Bellchior) Ele é forte… mas os danos podem ser irre-
versíveis e ele pode nunca mais voltar a ser o mesmo, se é que vocês me enten-
dem… Ajudem-me a empurrá-lo até a sala de tratamentos médicos: lá, com to-
dos os equipamentos disponíveis, farei o possível para reabilitá-lo…
Os três homens saem da sala calados, porém ainda preocupados. Permanecem ainda
por algum tempo observando pela grande janela de vidro que dá para a sala médica, até
Bellchior se sentir mais uma vez incomodado pelos olhares curiosos e acionar o
escurecimento do visor. A verdade é que, além de curiosos com o estado do seu
comandante, tentavam também evitar a situação constrangedora de voltar à sala de
comandos e encarar Hierophantes. Mojjo convida-os para comer alguma coisa e
procurar por mais soldados que porventura possam também ter sobrevivido ao ataque, e
assim rumam os três em direção aos alojamentos…
Ocupados nestas atividades, bom tempo decorre até que os comunicadores são
acionados e os dois soldados são convocados para comparecer à sala de comandos para
ouvir os esclarecimentos de Bellchior sobre o estado de saúde de Tunna Trull. Assim
que adentram pela robusta porta de metal percebem que Bellchior ainda não está na sala
e, inevitavelmente, já visualizam Hierophantes sentado em sua grande poltrona de rei,
esperando-os como se nada especial tivesse ocorrido naquele planeta. Antes que
houvesse qualquer reação por parte dos recém-chegados, Mojjo, acostumado a lidar
com indelicadezas, tenta desmanchar a situação vexatória perguntando à Tristannes pelo
cientista e pelo estado do comandante e, apesar da pouca informação disponível, tenta
prolongar ao máximo a conversa. Percebendo o desconforto palpável por parte dos dois
guerreiros, Tristannes, tentam incrementar a conversa perguntado-os sobre as criaturas
daquele planeta e a sua capacidade destrutiva, e assim aguardam a chegada de Bellchior,
que ainda se demora, mas finalmente chega.
Este momento poderia acirrar ainda mais os ânimos na sala, afinal de contas,
Bellchior não apenas desobedecera uma ordem direta do pretenso rei, mas apontou-lhe
uma arma para realizar o seu intento! E Hierophantes, que aparenta ter esquecido que
ordenara que seus homens fossem abandonados em Tanathos, encara o cientista como se
quisesse deixar bem claro que não esquecera a sua insubordinação. No entanto Bellchior
não parece nada constrangido e entra pela sala como se ele nem ali estivesse.
Mas todos na sala, sem exceção, querem mesmo é saber o destino do comandante:
– Diga-nos Bell, como está o comandante? Está bem? Vai sobreviver? Po-
derá lutar novamente?… (indaga afoito Haggarde)
– Calma, homem, respire ao menos para falar!… Bom, realizei inúmeros testes e
verifiquei lesões nos brônquios, além de contaminação no sangue pelos gases
venenosos que ele respirou. Realizei uma filtragem sanguínea para diminuir a
quantidade desses elementos em seu sistema circulatório, assim como adminis-
trei desinfeccionante diretamente em suas vias respiratórias e catalisador de rea-
ção biológica também por vias intravenosas. Os escâneres não identificaram le-
sões por desoxigenação cerebral aparentes pois, em fato, havia oxigênio para ali-
mentá-lo, e isso pode ser considerado um bom prognóstico. Mas ainda podem
ter sido lesionados os ligamentos e transmissores entre os seus neurônios… E
não sabemos ainda se o ar carregado de elementos nocivos pode gerar descon-
trole celular e multiplicação desordenada e um futuro tumor.
Todos permanecem calados olhando para Bellchior como se não tivessem entendido,
como se ainda esperassem pela sua resposta.
* * *
– Hierophantes…!
Tristannes olha de sobressalto para Jassco, que logo entende o que estava acontecen-
do. Quase que instintivamente a chefe de operações volta-se para o comunicador:
Tunna permanece por alguns segundos ainda tentando se soltar até que vai
diminuindo a força aplicada:
Nesse momento Tunna parece explodir de raiva novamente e tenta se soltar dos
companheiros que ainda o seguravam: e quase consegue.
Demonstrando mais controle sobre si, Tunna pede aos companheiros que o soltem e
retira-se da sala, deixando o pretenso rei caído no chão, humilhado e envergonhado.
Daquele momento em diante, por convicção dos próprios sobreviventes naquela nave,
Tunna assumiu definitivamente a figura de líder daquela fracassada expedição, apesar
de jamais ter se autoproclamado como tal. Todas as decisões importantes eram sempre
levadas à consulta do grande guerreiro, que as tomava de forma natural, como se
tentasse simplesmente ajudar aos companheiros. Quanto a Hierophantes, se já era
calado e reservado, trancou-se ainda mais em seu mundo particular, e quase não falava
com ninguém nem participava de qualquer decisão coletiva, passando a maior parte do
tempo trancado em sua cabine pessoal. Bellchior, e até mesmo Jassco, ainda o tratavam
com algum respeito, mas era completamente ignorado por Tunna Trull, Haggarde e
Tristannes, e ainda recebia olhares ameaçadores do rancoroso Borknaggah e seu amigo
Vyrr Belatthor, que nunca o perdoaram por não ter autorizado aquele resgate.
O único naquela espaçonave que ainda tratava Hierophantes com alguma pompa era
Mojjo Raissin, o “faz-tudo” da nave; e o fazia não por respeitá-lo de fato, mas mais por
uma questão de autopreservação: se algum dia este reconquistasse a sua majestade, não
haveria problemas entre os dois. Mojjo sobrevivera àquela sequência de desventuras
fazendo justamente o que costuma manter os indivíduos vivos e seguros: mantendo
distância de toda e qualquer ameaça ou confusão. Mas Mojjo não era exatamente um
covarde, como Borknaggah recorrentemente gostava de tachá-lo (além dos outros
xingamentos ligados as suas praticas sexuais), ele simplesmente preferia manter-se a
salvo a arriscar as glórias de uma vitória em batalha. E já que não estava naquela nave
para lutar e sim para entreter a tropa ou prestar apoio nas atividades gerais, ateve-se às
suas atividades. Estava entre os amotinados atendendo a um chamado do próprio Tunna
Trull, por quem tinha grande amizade e um forte sentimento de gratidão, por ter sido
salvo por ele de uma emboscada armada por alguns aldeões enfurecidos com as suas
peripécias sexuais junto às suas filhas, filhos e esposas, e onde quase fora morto. Mojjo
era músico e poeta em casas noturnas de baixa categoria em Lunna Canttus, cidade real
de Achyros, e vivia cada dia como se não houvesse amanhã. Após se recuperar da surra
que quase o matara, Tunna o convidou para entreter o seu destacamento. Na espaçonave
vivia cantarolando e exercitando a sua orientação poética, o que irritava bastante
Borknaggah que, vez ou outra, era vítima dos seus versinhos. Já Tristannes apreciava
bastante: principalmente porque boa parte destes versos eram galanteios dirigidos à sua
pessoa, ou eram mesmo ironias e chacotas sobre Borknaggah.
* * *
Com os ânimos abrandados, após a confusão, Bellchior insistira muito para que
Tunna se submetesse a alguns exames a fim de tentar descobrir algum possível dano
causado, não só por ter respirado o ar daquele planeta, mas pelo próprio contato direto
com aquelas criaturas, mas logo aos primeiros procedimentos Tunna Trull, impaciente,
afirma que se sente bem e pede para que “não insista mais com esta bobagem” a pena de
ficar irritado. Muito mais interessado estava em saber o que se passou enquanto estivera
inconsciente e qual a situação da nave. Acessando o computador central, Bellchior tenta
colocá-lo a par de toda a situação:
Um estranho momento de silêncio toma conta da sala, onde cada um parece afundar
em suas próprias lembranças daquele planeta e daquelas criaturas. Um transe da qual
Tunna retorna primeiro:
Ainda não totalmente convencido dos riscos de uma missão de resgate, Tunna
mantêm-se pensativo tentando encontrar alguma saída, uma solução para o problema.
Para tentar conter o raciocínio impávido do guerreiro, o que poderia levar a uma ação
suicida, Bellchior continua falando, roubando-lhe a atenção:
* * *
Após um longo período de apatia, Tunna parece despertar. Levanta-se e, apressado,
logo está na cabine de comandos conversando com Bellchior e pedindo a Tristannes que
convoque a todos para uma reunião urgente.
Tristannes trata de bradar nos altifalantes de toda a espaçonave sobre a convocação e
assim, um a um, vão chegando os remanescentes.
Logo após a chegada do último deles, justamente Hierophantes, que não parece
muito contente em ser chamado para uma reunião da qual sequer fora consultado:
àquela altura ainda não havia entendido plenamente que já não representava uma
autoridade para aqueles tripulantes.
– Soldados, (inicia Tunna) sabemos agora que toda essa jornada foi uma
ilusão maluca, uma grande besteira… e o quanto ela nos custou! Sinto-me
profundamente culpado e envergonhado de ter trazido vocês, e cada homem do
nosso exército, para essa aventura despropositada…
– Comandante, lutar ao seu lado é uma grande honra! Não há motivos para
se lamentar. (interrompe Haggarde de Itheria, enquanto os olhares e cabeças
balançando em sentido afirmativo dos demais soldados indicam se tratar de uma
opinião geral) Todo guerreiro cai de joelhos um dia, mas nem todos morrem ao
lado do maior guerreiro que Achyros já pariu desde o grande Virggo.
– Eu marcharia para morte ao seu lado, comandante! (enfatiza Tristannes
Stavannger sob o olhar de endosso de Jassco Mahatta)
– Não me considero merecedor de tamanha estima, meus amigos, mas eu
sim, me sinto honrado com tamanha consideração… Mas o fato é que essa
jornada talvez tenha sido isso mesmo: uma marcha para morte! O nosso Sealcon
não pôde ser consertado e não podemos mais atingir a hipervelocidade. Ainda
temos muito combustível químico nos nossos tanques, o que nos permite ainda
viajar por um longo tempo. Mas, viajando à velocidade convencional, o tempo
seria justamente o nosso maior carrasco. Mesmo sabendo do perigo que
corremos se formos capturados por Cronnus, talvez até fosse melhor viver como
fugitivos dentro de Aria Galáctica do que vagando no desconhecido como
estamos. Mas já estamos distantes demais até para voltar, e nem isso será
possível sem a hipervelocidade: o nosso tempo de vida acabaria antes mesmo
que pudéssemos voltar aos limites de Aria Galáctica. (em seguida aponta para
Bellchior)
– Temos as câmaras de estase (responde Bellchior Calabbar), que poderiam
manter os nossos corpos por tempo indefinido. Porém os testes realizados já
demonstraram que a utilização da estase por longos períodos preserva o corpo
estruturalmente, mas biologicamente afeta de maneira drástica o seu
funcionamento e, nos mais de 50 anos que precisaríamos ficar em estase para
somente chegar nas bordas longínquas de Aria Galáctica, provavelmente
acordaríamos apenas para sofrer de atrofias metabólicas, choques diversos e
liquefação celular, o que, de qualquer forma, não é uma perspectiva viável.
– Então… Se a gente se congelar por muito tempo, nosso corpo vira bosta
e morreríamos de qualquer jeito quando saíssemos do casulo!
– É isso! Fale claramente, Bell. (enfatiza Tunna com ar de riso e em
seguida apontando para Bellchior indicando para que continue)
– Também não sabemos se conseguiremos chegar a qualquer planeta
habitável, ou que, pelo menos possa nos fornecer suprimentos… Mas existe sim
uma grande possibilidade, já que existem milhares de planetas ainda
desconhecidos fora de Aria Galática. Os suprimentos que temos de comida e ar
não durarão tanto tempo então, o mais viável seria viajar por um tempo
consumindo uma parte estabelecida de nossos estoques de ar e comida,
buscando assim por algum planeta que nos sirva e, se nossa busca não encontrar
nada até consumirmos essa tal parte dos suprimentos, teremos que nos abrigar da
fome e do tempo nas câmaras de estase. A nave continuará a sua busca sem nós
e, se algo for encontrado, ela nos acordará.
– E se não encontrar? (pergunta Jassco Mahatta)
– Se não encontrar, meu amigo… pelo menos estaremos dormindo e não
veremos a morte nos pegar por velhice… (responde Tunna)
Um clima meio dramático toma conta da sala enquanto cada um ali parece mergulhar
em seus próprios pensamentos: talvez pensando em suas próprias vidas e no que
deixaram para trás, ou mesmo no destino nada honroso de morrer dormindo, e
justamente tentando fugir do encontro com a morte…
Tunna olha para Bellchior como se pedisse para que ele responda a pergunta de
Bork. Ele próprio parece cogitar a possibilidade e parece estar interessado na resposta.
Bellchior balança a cabeça em sinal negativo, mas mais como sinal de desdém do
que propriamente como resposta à pergunta:
Todos sentem o peso das palavras de Tunna Trull e sabem o quão difícil é para ele
admiti-las. Quem parece não querer assumir a sua responsabilidade pela situação é
Hierophantes, que sai da sala sem emitir uma única palavra e ainda demonstrando
descontentamento com a recente perda de importância junto aos remanescentes do seu
antigo exército. Aos demais, apesar de todas as perdas, o gosto pela aventura e pelo
desconhecido ainda mantinham uma pequena fagulha pulsando em seus corações.
* * *
Os dias que se seguiram, no entanto, não ajudaram muito a manter essa chama
acessa; os dias se repetiam como iguais: um martírio de espera compartilhado com as
mesmas feições preocupadas; a cada novo planeta avistado e verificado, a esperança
logo dava lugar às decepções: um mar de rochas mortas e estéreis girando na imensidão
do espaço. Várias providências de economia foram tomadas para tentar distanciar o
sono da desesperança, aquele que poderia ser o sono final: os sobreviventes foram todos
alojados nas cabines principais destinadas aos comandantes, e as áreas dos alojamentos
da tripulação e soldados, assim como a casa de máquinas, área de carga, depósito de
armas, área de desembarque e corredores de circulação entre esses setores, foram todos
lacrados eletronicamente para assim diminuir a área de circulação de oxigênio. Para
diminuir o consumo de alimentos e também de oxigênio, as atividades físicas que
exigem grandes esforços, como treinamento pessoal e de desenvolvimento da
musculatura, também foram proibidas, restringindo cada vez mais a vida a bordo ao
contato direto com os companheiros de jornada.
Porém esse contato frequente e involuntário só servia para acirrar os ânimos entre
eles, e as discussões e “quase” brigas se tornavam cada vez mais frequentes; até que
finalmente chegaram às vias de fato! Essas brigas invariavelmente envolviam
Borknaggah e a sua intolerância com os demais; Certa vez derramou em Mojjo a sopa
que este preparara, dizendo que não aguentava mais comer a mesma “porcaria” todos os
dias: acabaram em luta corporal e quase destruíram a cozinha; Noutra vez tentara
invadir a cabine pessoal de Hierophantes para esmurrá-lo gritando que “toda aquela
merda era sua culpa”; Brigara várias vezes com Jassco Mahatta, que revidava com
violência as suas zombarias e, quase sempre, Tunna Trull e Haggarde tinham que
apartá-los. Até que finalmente Bork tentou estuprar Tristannes, alegando que seria “sua
obrigação satisfazer a cada macho naquela espaçonave, já que era a única mulher a
bordo”. Essa sua última agressão fora contida pela própria Tristannes com uma
punhalada em uma de suas coxas. Depois dessa última agressão, cansado de alertá-lo
sobre o seu comportamento, Tunna pediu a Bellchior que o sedasse enquanto tratava do
corte em sua perna. Assim Borknaggah fora o primeiro a ser colocado em estase:
mesmo sem o seu consentimento.
Mas destino semelhante não tardaria para todos naquela espaçonave. Após alguns
meses viajando à máxima velocidade possível, apenas dois sistemas solares vizinhos
haviam sido visitados, e sem encontrar qualquer planeta capaz de manter vida ou capaz
de fornecer-lhes suprimentos. Como o próximo sistema planetário ainda se encontrava
em distância bastante considerável e os recursos a bordo já amargavam níveis
preocupantes, reuniram-se e decidiram que havia chegado o fatídico momento. Um por
um, cada sobrevivente da Suppernova ia sendo entubado e colocado em estase, sendo
anexados aos sistemas da grande nave e entregue finalmente aos seus cuidados, até
restar apenas o cientista Bellchior, o único a bordo capaz de tomar todas as providências
necessárias para deixar a nave em modo autômato, viajando e procurando por algum
planeta viável. Destino irônico os colocara novamente sob a proteção do gatilho que
desencadeara toda aquela sequência de desgraças, a Suppernova; e sob os cuidados do
cientista Bellchior, em verdade o único que não estava naquela espaçonave por uma
escolha própria. E justamente ele, que sempre pautara sua vida na autodeterminação, no
autocontrole e no planejamento, agora se encontra vítima dos acasos, rumando para
destino completamente incerto e responsável pela vida daqueles que arruinaram a sua.
Tamanho fardo se mostrou pesado demais para se carregar; e antes que pudesse
tomar uma iniciativa trágica, vingativa, o cientista também decidiu adormecer. Agora
não havia mais volta, agora não havia outra opção: a expedição Achyrone dispara…
rumo ao silêncio profundo e completo…
* * *