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Seriam os homens modernos apenas a herança evolutiva dos seus primitivos

antepassados?
Seria a humanidade o resultado seletivo do acaso?

Em cada ação: complacência ou desprezo, criação ou destruição, vida ou morte, os


primatas humanos agem como se na sua convicção mais primitiva viesse a certeza
incontestável de que este planeta lhes pertence.

Em algum momento, teriam de fato, os habilis modernos, merecido o seu domínio sobre a
gênesis?
Prólogo

Bem antes dos homo sapiens se espalharem por todo o planeta, quando ainda
viviam em pequenos grupos nômades e eram apenas mais uma, entre tantas espécies
disputando a própria sobrevivência, o planeta Terra explodia em vida e eco sistemas.
Florestas densas e intermináveis, assim como oceanos sem fim, abrigavam uma
infinidade de espécimes e criaturas que dançavam ao som de seus instintos e das leis
variáveis da natureza. A vida selvagem e exuberante, com suas cores vividas e
perigosas, se espalhara incontidamente por todo o planeta, num espetáculo glorioso de
vida e também de morte, onde sobreviver era a única constante.
E assim, a vida se perpetuava vagarosamente neste planeta, à mercê apenas, de
pequenos saltos evolutivos.
A Terra, no entanto, não era o único foco de vida do universo. Existiam inúmeros
outros “planetas-mãe”, assim como a Terra, espalhados pela interminável vastidão do
espaço, e cada um deles com as suas próprias crias. Em muitos desses planetas haviam
apenas seres microscópicos ou de pouca complexidade, enquanto noutros a vida já havia
evoluído para seres de grande porte, de biologia complexa. Na maioria destes planetas a
vida era tão selvagem quanto na própria Terra, porém, numa pequena parte destes, o
milagre inexplicável do raciocínio superior já havia se manifestado, e seres inteligentes
já haviam se destacados dos de raciocínio inferior. Haviam planetas onde já existiam
povos organizados em grupos, sociedades, classes e poderes. Nessa época o planeta
Terra encontrava-se protegido pela distância, e não passava de um ponto inatingível no
universo enxergado por estes povos inteligentes.

* * *

Num ponto ermo na vastidão do universo, onde uma nuvem densa de estrelas gerou
um grande número de sistemas solares não muito distantes entre si, a luz da razão foi
que brilhou mais intensamente. A vida inteligente prosperara abundantemente naquele
conglomerado de estrelas, gerando seres que cumpriram seus ciclos evolutivos em seus
próprios planetas e construíram sociedades complexas e avançadas tecnologicamente,
ao ponto de se lançarem ao espaço em busca de outras civilizações. Algumas dessas
civilizações mais avançadas tentaram por muitos anos manter contato com seres
inteligentes em outros planetas: comunicações morosas eram trocadas entre alguns
destes povos e o sonho de uma viagem interplanetária esbarravam nas grandes
distâncias espaciais e no tempo necessário para uma viagem desse porte. Foi justamente
de um planeta que mantivera-se calado e indiferente às mensagens direcionadas ao seu
sistema solar que revelaram-se, finalmente, os primeiros povos capazes de realizar as
inconcebíveis viagens interplanetárias. Vindos do planeta Lemuria, os Lemurianos
constituíam uma civilização visionária e de inteligência superior. Foram eles os
primeiros a descobrir a Matéria Prima do Universo, como assim a chamaram, e os
primeiros a fissioná-la para utilizar como fonte de alimentação contínua para suas
espaçonaves. Criaram assim, as primeiras naves capazes de atingir a Hipervelocidade
Espacial, avanço incondicional para vencer as longas distâncias espaciais. Foram eles
os responsáveis pelas primeiras visitas interplanetárias e a chamar aquela imensa nuvem
estelar pelo nome de Aria Galáctica. Os Lemurianos eram uma civilização bastante
avançada tecnologicamente, com cérebros complexos e de grande volume, primavam
pelo raciocínio e elevação espiritual, e construíram uma sociedade pacífica e
cooperativa, urbana e altamente mecanizada em seu planeta. Prevendo o fim dos seus
recursos naturais, lançaram-se ao espaço em busca de planetas ermos e desabitados que
pudessem servi-lhes de fontes de matérias-primas. Do estudo do espaço e dos
incontáveis planetas e, ávidos por conhecimento e novas experiências, viram nas demais
civilizações de Aria Galáctica um amplo campo de pesquisa, além de civilizações para
compartilhar conhecimento e descobertas. Assim, munidos de boas intenções, saíram do
isolamento e fizeram contato.
Do encontro desses povos e na euforia das novas descobertas, acabaram por fundar
uma rede de cooperação interplanetária, a Aria Aliança, onde as diversas civilizações
participantes se ajudavam mutuamente tencionando melhorias comuns, assim como
encontrar e engajar outros povos à Aliança, além de buscar por novas fontes de
matérias-primas. Logo os primeiros expedicionários lançaram-se ao espaço explorando
e mapeando planetas e delimitando os limites de Aria Galáctica. Esses limites eram
estabelecidos levando-se em consideração as distâncias seguras (ou seja, que permitiam
ida e volta) que poderiam ser atingidas partindo-se dos planetas civilizados conhecidos.
Desse mapeamento e das possíveis descobertas, planetas distantes poderiam ser
colonizados para ampliar, cada vez mais, a abrangência de Aria Galáctica.
Dentre os povos que faziam parte da Aria Aliança, alguns tinham mais a contribuir
em avanços tecnológicos, outros em matérias-primas, outros em força de trabalho e
alguns, de fato, não tinham muito a oferecer, mas muito a ganhar com os novos aliados.
Logo algumas civilizações sentiram-se prejudicadas por esse sistema de cooperação e
igualdade e, sorrateiramente, começaram a estabelecer os primeiros acordos bilaterais,
que diziam respeito apenas a interesses próprios dos envolvidos. Os pequenos acordos
abriram caminho para negócios de grande magnitude, que não passaram desapercebidos
dos demais povos da Aliança, gerando assim uma onda de desconfiança e animosidade
mútua. A sombra da discórdia logo pairou sobre a Aria Aliança e pequenos conflitos de
interesses começaram a colocar algumas nações em disputa, o que, consequentemente,
levaram aos primeiros ataques armados. Rapidamente esses ataques deram lugar às
primeiras guerras interplanetárias.
Guerras foram travadas durante anos, inúmeros acordos foram estabelecidos e
quebrados, líderes sucumbiram e civilizações inteiras foram subjugadas, até que,
finalmente, após centenas de milhares de mortos em incontáveis batalhas, a paz fora
finalmente costurada e estabelecida sob o domínio totalitário dos mais fortes, dos que
melhor souberam jogar o jogo das intrigas e traições, do povo mais apático e violento,
os Achyronianos. ̶ e pareciam predestinados para tal ̶
Os Achyronianos, habitantes do planeta Achyros, evoluíram de modo a se tornar a
civilização mais capacitada a sobrepujar as demais, pareciam ter nascido para a batalha
e para a vitória. Dentre os povos de Aria Galáctica, eram os que possuíam os corpos
mais fortes e avantajados: ostentavam uma pele grossa, difícil de romper, com uma
tonalidade que assemelhava-se a cor de areia escura com manchas ainda mais escuras
espalhadas por todo o corpo, o que lhes serviam de camuflagem natural em ambientes
de pouca luz. As pernas, fortes e compridas, proporcionavam saltos de quase a própria
altura, que eram amortecidos por pés de sola ainda mais grossa e resistente que a pele
do restante do corpo, tornando o uso de calçados uma escolha e não uma necessidade.
Seus braços, normalmente corpulentos, e mãos robustas, possuíam incrível força, tanto
para agarrar, quanto para golpear. Possuíam ainda a audição bastante apurada,
permitindo-lhes uma ótima localização espacial e, consequentemente, a detecção mais
fácil de um provável inimigo em aproximação. Nenhuma outra civilização da Aliança
reunia condições puramente físicas para derrotá-los. Somados aos fatores físicos,
acrescente-se a paixão pela batalha e a grande astúcia estratégica, decorrentes de toda
uma cultura voltada para a guerra, o que os tornava guerreiros incomparáveis, quase
imbatíveis. Os Lemurianos eram de fato a civilização mais intelectualizada e avançada,
capazes de construir equipamentos superiores para uma guerra, mas eram incapazes de
lutar, tanto pela fragilidade e despreparo de seus corpos, quanto pela sua própria cultura
pacifista. Não demonstravam interesse em reinar sobre Aria Galáctica, mas tinham
interesses no reestabelecimento da Aliança, apoiando assim os que apresentavam
melhores condições físicas para uma guerra, disponibilizando aos Achyronianos apoio
bélico e tecnológico para vencerem as guerras interplanetárias.
Ainda sobre o povo de Achyros, não se sabe ao certo se eles evoluíram para as
batalhas, ou se evoluíram das batalhas, afinal, é fato que, desde os primórdios da sua
ancestralidade, os Achyronianos sempre estiveram em guerra, lutando entre si pelo
domínio de suas tribos ou territórios. Desde criança já são treinados pelos pais e irmãos
para lutar e manter as conquistas dos seus antepassados. Conta a história daquele povo,
em todo o seu curso documentado, que houvera apenas um grande período de paz, que
ficou conhecido como O Predomínio de Ferro, período em que um antigo general
chamado Virggo Fehenna dominou e unificou todo aquele povo, que até então vivera
separado em tribos, clãs ou em pequenos territórios independentes chamados de
províncias. Essas províncias invariavelmente pertenciam a alguma família tradicional e
poderosa e organizavam-se como uma espécie de cidade-estado, onde o patriarca da
família a quem pertencia a província vivia como rei e fazia as suas próprias leis
conforme a sua vontade. Corriqueiramente usavam seus exércitos para invadir e tomar
terras ou a produção de alimentos das tribos que viviam fora da província. Segundo as
velhas lendas, Virggo, que ganhara a alcunha de “Mestre da Guerra”, era um guerreiro
admirável, muito superior aos demais em habilidade e astúcia; Montara o seu primeiro e
pequeno exército entre os amigos e admiradores de sua tribo, com o único intuito de
libertar o seu povo do domínio de uma poderosa família que há muitos anos já os
explorava. Com as primeiras vitórias sobre o exército da província, outros guerreiros
vindos de outras tribos também exploradas se engajaram ao seu exército de insubmissos
e logo a primeira grande família fora derrotada, atraindo mais guerreiros e refugiados
vindos de outras regiões que também sofriam opressão por parte de outras famílias
dominantes, impulsionando-o, assim, a levar a sua luta para outros territórios.
Libertando os que clamavam por sua ajuda, esses, em contrapartida, o acolhiam como
seu líder e passavam a ajudar a manter o seu crescente exército. Diz-se que lutava junto
ao seu exército na linha de frente, expandindo seus domínios com as próprias mãos.
Além de vencer todas as batalhas que empreendeu, sobrepujando os exércitos das
famílias tradicionais e expandindo sua liderança por toda Achyros, Virggo cativara o seu
povo que, apaixonados pelas batalhas e pelos grandes guerreiros, sentiam-se honrados
em serem liderados por um beligerante tão superior e habilidoso. É herança de Fehenna
a designação que este povo mais gosta de usar para os definir, se autodenominando
como “O Povo de Fehenna”, ou como se convencionou:“O Povo de Ferro”.
Foram os Achyronianos os primeiros a serem visitados pelos Lemurianos, ainda no
reinado de Oliffante Fehenna, filho de Earenddel, descendentes genealógicos do próprio
Virggo, cuja a família mantivera-se no poder a custa de muitas lutas no decorrer dos
séculos que sucederam a sua morte. Oliffante ficou conhecido como “O Rei Tolo”, por
ter sido o primeiro rei de Achyros a abdicar do trono, passando o poder ao seu filho
mais novo, Cronnus Fehenna. Contam os boatos que o rei Oliffante teria abdicado do
trono por influência de sua jovem e sedutora esposa, a rainha Sirennia, mãe de Cronnus.
Inconformados com a linha sucessória, o jovem príncipe e sua mãe ̶ que longe aos seus
ouvidos era alcunhada de “Feiticeira Pálida”, por causa do seu conhecido interesse
pelo ocultismo e feitiçaria ̶ , enxergaram na visita dos Lemurianos uma oportunidade de
alavancar o jovem príncipe ao poder, dando um golpe pacífico em Hierophantes
Fehenna, filho mais velho de Oliffante e fruto do seu primeiro casamento, e que, em
caso de morte do rei, seria o herdeiro natural do trono. O rei Oliffante já sentia a pressão
sobre o seu reinado exercida pelos chefes das famílias tradicionais de Achyros que, ora
aliados, ora rivais, fortaleceram-se muito diante das suas fraquezas como administrador,
montando grandes exércitos e ameaçando constantemente destroná-lo.
Engenhosamente, Cronnus conseguira ganhar a confiança dos visitantes interplanetários
e estabelecer uma aliança para explorarem juntos, Lemurianos e Achyronianos, o
restante dos planetas de Aria Galáctica. O ambicioso príncipe entendeu que aquele povo
de inteligência superior, tão avançados tecnologicamente, cheios de boas intenções e
com tão pouca malícia, seriam os aliados providenciais para alavancá-lo ao trono de
Achyros e, quem sabe, expandir seus domínios para lugares até então inimagináveis!
Sonhava ele se tornar maior que própria lenda do seu cultuado antepassado…

* * *
Capítulo I – O gatilho

Neste ponto da história, Cronnus já havia consolidado seu domínio sobre a Aliança
e se autoproclamado Imperador Regente de toda Aria Galáctica, título reconhecido por
todos os povos da Aliança que, derrotados em inúmeras batalhas, reconheciam assim a
incapacidade de vencer o ambicioso rei Achyroniano e o seu povo guerreiro.
Encontrava-se neste momento imerso no cinturão rochoso de Amorphos, planeta
garimpo originalmente desabitado e composto em quase sua totalidade de grande
variedades de metais, utilizado pela Aliança como fonte de matérias-primas. Amorphos
era um planeta de formato irregular, com uma enorme depressão em seu hemisfério
norte, provavelmente o resultado do choque com um grande meteoro ou mesmo com
um outro planeta, o que teria jogado grande quantidade de pedregulhos e poeira em sua
órbita, formando um imenso e denso cinturão de detritos rochosos ao seu redor. Pelo
tamanho, e por possuir grande quantidade de metais raros e elementos radiativos,
Amorphos era considerado um dos planetas garimpo mais importantes para a Aliança. O
jovem imperador estava ali a espera de sua mais recente obsessão, a Suppernova, nave
espacial recém-construída e já bastante comentada por ser considerada a maior e mais
avançada nave de guerra até então construída. Encomendada pelo próprio regente, seria
uma espécie presente dos Lemurianos ao novo imperador. Cronnus sempre mantivera
uma relação de grande respeito e cuidado com os Lemurianos e não houve imposição
em relação ao presente: sabia serem eles os principais responsáveis pela sua grande
vitória, já que, sem o equipamento tecnológico fornecido por eles, os Achyronianos
jamais teriam vencido as guerras interplanetárias. Manipulando-os de forma leviana,
Fehenna conseguira convencer um povo pacífico e bem-intencionado a construir armas
de guerra e a apoiá-lo em seus planos de dominação.
A incumbência de trazer a Suppernova fora designada a alguém da mais alta
confiança do imperador, tamanha era a importância e poder bélico da nave: ninguém
menos que Hierophantes Fehenna, irmão mais velho de Cronnus que, apesar de
primogênito, fora preterido pelo próprio pai na sucessão ao trono Achyroniano.
Hierophantes jurou respeitar a decisão do velho rei e ajudar o irmão a manter o trono na
família. Como prêmio de consolação ganhara o cargo de chefe do Conselho Superior do
Rei e, teoricamente, seria o segundo em comando em Achyros. Mas, chefiar o Conselho
Superior não lhe trouxera grandes responsabilidades, já que o rei Cronnus não escutava
ninguém nem se importava com a opinião de quem quer que fosse, com exceção da
própria mãe, a rainha Sirennia, essa sim a verdadeira conselheira do rei. Apesar da
suposta importância do cargo ocupado em seu planeta, nenhuma função fora delegada a
Hierophantes no comando da “nova” Aliança Interplanetária, exercida por um conselho
composto por representantes de todas as civilizações de Aria Galáctica sob o comando
totalitário de Cronnus.
Ao chegar bem próximo ao local indicado como ponto de encontro pelas
coordenadas recebidas, a Suppernova desacelera até parar completamente, porém, ainda
mantendo uma distância considerável do marco zero. Com os visores frontais abertos,
podia-se enxergar ao longe a Tennebris Tranquilittate, até então a nave real de Cronnus,
em meio ao cinturão de pedregulhos descomunais que orbitam o imenso planeta
avermelhado, e que, assim de perto, já não traziam tanta beleza quanto ao serem vistos
de longe.

̶ Comandante, a Tennebris Tranquilittate está a nossa frente acompanhada por


apenas uma nave de escolta, a Vippera.
̶ Humm… Não é normal o “grande Imperador” andar por aí com apenas uma
nave de escolta… (ressalva, intrigado, o comandante Tunna Trull à sua chefe de
operações, Tristannes Stavannger).
̶ Estranho é sim… Mas leituras não indicam a presença de qualquer outra
espaçonave num perímetro próximo, comandante. Mas, se achar mais seguro,
podemos mandar a Vulcanno averiguar para termos certeza...
̶ Não, não, isso não seria normal… Siga os procedimentos normais e solicite
autorização para aproximação. Mantenha os dois canais de comunicação
independentes e fechados. (Apertando um botão no painel de controles)
Vulcanno, mantenham-se focados na Vippera e aguardem comando… Solittude e
Vorkutta, vocês seguem pelo lado oposto. As demais tentam fazer a volta por trás
sem chamar muita atenção.

Já na Tennebris, o chefe de operações consulta o seu comandante, Malleus Inpherne,


sobre o pedido para aproximação e acoplagem. Malleus direciona o seu olhar para o
Imperador Regente, que a tudo observa calado, com a mão ao queixo e um dos dedos
sobre a boca. O imperador apenas balança a cabeça num gesto sutil, autorizando a
aproximação. A ordem é repassada ao chefe de operações que a transmite à Suppernova,
que também traz consigo a escolta particular do príncipe conselheiro, composta por
cinco espaçonaves fortemente armadas:

̶ Senhor, a ordem já foi repassada à Suppernova, mas apesar da autorização,


eles permanecem lá, parados!
̶ E as outras naves? (indaga Malleus)
̶ Também permanecem distantes, senhor, apesar da formação irregular.

Cronnus, com feições de quem está irritado, olha diretamente nos olhos de Inpherne,
chefe da sua segurança pessoal, finalmente levantando-se de sua poltrona. Pede
diretamente ao chefe de operações que abra um canal de comunicação por vídeo com a
nave onde se encontra seu irmão. Alguns segundos cansativos se passam até que a
Suppernova finalmente responda ao chamado, o que irrita ainda mais o já impaciente
Imperador:
− Suppernova na escuta.
̶ Comunicação estabelecida, sen...

Fehenna mal deixa o chefe de operações concluir a sua fala e toma a frente no
comunicador, encontrando a chefe de operações da Suppernova ainda em seu posto.
(Por conveniência, a engenharia Lemurianas coloca o comunicador principal de suas
espaçonaves em um painel de controles mais recuado dentro da grande sala de
controles, estrategicamente limitando a visão da cabine de comandos, preservando
assim a sua integridade. Esse painel é destinado ao chefe de operações da nave, que
normalmente é o responsável por toda a comunicação com o interior e exterior da
espaçonave)

− Soldado, onde está o meu irmão, está aí na cabine? Quero falar com ele…
(indaga o imperador já demonstrando a impaciência típica dos poderosos)
− Aqui, Cron, estou aqui… (responde Hierophantes aparecendo finalmente em
frente a câmera)
− Phanty, seu velho chacal, porque a demora?!
(alguns segundo se passam em que Hierophantes apenas olha fixamente para o
visor sem esboçar qualquer palavra) Não importa… conte-me logo como se
comportou a minha preciosa máquina. Bellchior fez todos os testes como
recomendei? E você, o acompanhou para ver se estava tudo certo como lhe pedi?

Cronnus muda instantaneamente de humor, e a irritação parece dar lugar ao


entusiasmo num piscar de olhos! A mesma empolgação, no entanto, não aparece no
semblante de Hierophantes que, após uma pequena pausa observando o imperador,
finalmente responde:

− Sim... Cron... ele seguiu todas as suas recomendações... Aliás, tratamos de


segui-las como ordens, assim como me pareceram ser.
− Ora, com mil bichos de fedor, não seja tão mocinha! Apenas pedi que
tomasse alguns cuidados, verificasse com atenção, afinal é uma joia de grandes
proporções e tem que corresponder ao prometido. Mas conte-me, como se portou
a minha espaçonave?
− A máquina portou-se como prometeram os Lemurianos e realmente é uma
joia preciosa. A primeira vista até parece uma nave cruzadora e não uma
máquina de guerra, tamanha é a beleza e o conforto dessa espaçonave. O
Sistema de Alimentação Contínua e os propulsores de hipervelocidade
funcionam como nunca havia visto antes! Até tive dúvidas se realmente
estávamos acelerando para a hipervelocidade! As armas... Ah, as armas merecem
uma nova guerra, de tão poderosas e precisas que são... Os Lemurianos
realmente fizeram um excelente trabalho aqui! Ainda há inúmeros dispositivos
de sobrevivência, navegação, observação, produção de alimentos, que eles
tentaram explicar para mim mas, confesso, não prestei muita atenção… Detesto
o jeito como eles falam... De toda forma, esta é, sem dúvidas, a máquina de
guerra mais perfeita já fabricada! Esta sim, é a nave que um verdadeiro rei
guerreiro merece ter!
− Pelas fêmas de Edenppons! Não me deixe mais esperando, Phanty. Traga-a
para mim imediatamente. Mal posso esperar para descansar meu rabo nesta
preciosa máquina!
− (Hierophantes permanece alguns segundos em silêncio, observando a
empolgação quase juvenil do irmão) ... Falando em “verdadeiro rei”, meu
irmão... porque acha que nosso pai preferiu passar o trono de Achyros para você
em vez de para mim, filho mais velho e herdeiro natural?
− Pelas entranhas de Inffestus, essa conversa inútil novamente, Phanty?! Já
falamos sobre isso muitas vezes!

Cronnus tenta encerrar o assunto, mas o irmão permanece em silêncio, encarando-o,


então percebe que Hierophantes não pretende mudar de assunto:

− Pela espada de Virggo, Phanty! Nosso pai nos conhecia muito bem e sabia
que Achyros precisava não só de um grande guerreiro, que ambos somos, mas
também de um bom estrategista. Precisava de um negociador de pulso firme,
capaz de controlar as famílias rivais e manter o trono nas mãos dos Fehenna,
como assim tem sido desde que Virggo se fez rei. Você é um grande guerreiro,
meu irmão, mas é tranquilo, confia demais nas pessoas... não tem malícia. Você
seria um grande rei em tempos de calmaria, mas não na situação que Achyros se
encontrava. Nosso pai sabia que eu estava mais preparado para assumir o trono e
liderar o nosso povo. Ele sabia que somente alguém como eu poderia aguentar a
pressão das famílias rivais... E eu consegui: eu mantive o poder na nossa família!
Eu fiz todos os chefes das grandes famílias engolirem o orgulho pelo rabo e
jurarem lealdade a mim! E ainda fiz mais: eu fiz do Povo de Ferro a maior raça
do universo... Hoje eu sou mais poderoso que o próprio Virggo um já dia foi…
Hoje, EU sou a lenda (Cronnus bate no próprio peito já demonstrando
exaltação), EU sou o Grande Rei Guerreiro. Hoje eu domino tudo que você pode
enxergar... EU fiz toda Aria Galáctica dobrar os joelhos diante de mim. Nem o
próprio Virggo sonhara ser possível chegar tão longe!
− BESTEIRA! (interrompe Hierophantes enfurecido) Nosso pai é um fraco,
vive humilhado, abatido, de cabeça baixa obedecendo ordens da sua mãe
feiticeira! Foi a pedido dela que o trono me foi negado e entregue a você, que
não passa de um garoto mimado...
Grande guerreiro, você? Grande rei? Maior que Virggo? Não me faça rir! Virggo
era amado pelo povo: você é temido, considerado um louco vingativo,
carniceiro, desleal... Eu estive todo o tempo ao seu lado, nesses anos de guerra,
lhe entregando na mão as estratégias de combate que eram traçadas por Tunna
Trull... lhe dizendo quando e onde atacar. É a mim e a Tunna Trull que você deve
cada vitória. Era Tunna Trull que o nosso exército seguia. Ele sim tem o respeito
do nosso povo e do nosso exército... E agora você se aproveita e senta no trono
do grande imperador?! Você é uma fraude, isso sim!
– Filho da Sabbra Negra! (interrompe Cronnus enfurecido) Que a
febre do vômito te consuma! Que feridas no rabo lhe empesteiem! Retire
agora tudo o que disse ou vai pagar caro por cada palavra invejosa que
saiu dessa sua boca traiçoeira…

Hierophantes consegue despertar a raiva mais febril de Cronnus quando menciona


Tunna Trull, seu desafeto desde muito antes de se tornar rei, com quem já possuía um
histórico antigo de antipatia, disputa e, de fato, inveja, por conta da sua popularidade
junto ao povo e exércitos de Achyros. Enquanto Fehenna grita, xinga e ameaça o irmão,
Malleus, percebe nos radares a movimentação das naves de escolta de Hierophantes em
direção ao ponto onde está a Tennebris e tenta lhe chamar a atenção, o que é totalmente
em vão.

– Pagar caro eu? (continua Hierophantes) Não me faça rir. (voltando-se para sua
tripulação [que também assistia a tudo pelos demais monitores de comunicação
da cabine] com ar de desdém) Vejam agora o grande estrategista, o grande
Imperador Regente em pleno espaço, a mercê de qualquer imbecil com apenas
uma nave de escolta…. UMA NAVE APENAS! (batendo forte no painel)
Bastariam três naves para abater-lhe, grande rei pretensioso. Não.., duas naves com
bons bélicos bastariam para livrar Aria Galáctica de toda a sua empáfia. O que você me
diz, então, das cinco máquinas que agora estão à sua volta, cercando-lhe, prontas para
abrir fogo sobre toda a sua soberba? Hein, o que me diz? Talvez o grande rei e sua
enorme pretensão ache que todos agora o temem e por isso não precise de uma grande
escolta?! Ou talvez ache que estar a bordo da Tennebris Tranquilittate baste para estar
suficientemente protegido?! Mais um grande erro seu, irmão. Aliás, seu último grande
erro!
Veja você mesmo, grande rei guerreiro: você e sua nave escolta estão cercados e com os
nossos canhões mais poderosos armados, apontados e prontos para atirar… Apenas um
comando meu... ou um movimento não autorizado em qualquer uma das duas
espaçonaves e: boom... vocês vão virar poeira estelar!

Hierophantes mira nos olhos de Cronnus pela tela do comunicador, ostentando um


leve sorriso de quem se vinga, sorriso próprio do humilhado que subjuga o seu carrasco.
Quantas vezes não pensara em olhar assim nos olhos do irmão? Quantas vezes não
pensara em dizer tudo que dissera, assim, para que todos pudessem ouvir? De mostrar-
lhes que ele não passa de um garoto que fora mal criado, mimado por uma mãe
aproveitadora e um pai fraco de espírito…

– Eu quero a sua renúncia em um pronunciamento gravado, abrindo mão do trono


de Achyros em favor do verdadeiro sucessor de Oliffante: EU! (continua,
Hierophantes, com ares de quem ordena) Você pode dizer que assumiu o trono
num momento de crise, apenas para resguardar o real herdeiro do trono,
chamando as atenções para si… Mas que, de fato, eu sempre estive no comando,
direcionando os seus passos na grande batalha interplanetária… Que foi como
que realmente aconteceu, convenhamos…
Transmitirei o seu pronunciamento para Achyros e toda Aria Galáctica: que você
também colocará sob meu comando.
Você será mantido em prisão domiciliar no castelo de Dunlluce junto com a sua mãe:
vocês poderão viver tranquilamente e transitar livremente nas dependências e jardins do
castelo, mas não poderão sair de lá! E eu garantirei a vida dos dois…
Se, por acaso se recusar a gravar o pronunciamento... você e sua “lenda” morrerão aqui,
em pleno espaço... e eu assumirei o trono de todo modo, já que você não possui nenhum
herdeiro para assumir o trono…
A escolha é toda sua!

Hierophantes espera a resposta do irmão, enquanto o assiste pela tela do


comunicador cortar o áudio enquanto conversa com seu chefe de segurança e verifica
em seus monitores e radares. Talvez constatando a sua situação, ou buscando alguma
possibilidade de fugir da emboscada em que caíra...
Sem querer dar muito tempo para que o irmão possa pensar em alguma reação à
emboscada, Hierophantes o apressa:

– Então, já lhe dei tempo demais. O que me diz? Quer viver ou


morrer?

Cronnus encara meticulosamente o irmão por alguns segundos pelo comunicador, e


então reestabelece o áudio entre as duas naves:

– Desde garoto que te acho um imbecil, Phanty...


Quando via minha mãe gritar com você e você sair chorando como uma menini-
nha assustada para o seu quarto, sem esboçar qualquer reação, eu pensava: é
esse imbecil que vai ser o rei de Achyros? É esse fraco que vai suceder meu pai?
Eu sabia que, se nosso pai não perdesse o trono de Achyros, você o perderia as-
sim que o assumisse! Eu precisava fazer alguma coisa… E eu fiz!

Mal Cronnus termina a sua fala e um clarão chama a atenção de todos nos imensos
visores de observação da Suppernova e, mesmo à distância que estavam, pôde-se ver a
olho nu um segundo clarão deflagrado, agora sob a atenção de todos, já da segunda es-
paçonave da frota de Hierophantes que explodia. Como que vindas do nada, aparecem
inúmeras outras espaçonaves surpreendendo as que faziam o cerco a nave real. Os pilo-
tos e tripulação, focados em qualquer reação que pudesse vir da Tennebris ou da Vippe-
ra, mal perceberam ou tiveram tempo de se defender das espaçonaves que vieram pela
retaguarda. Em questão de segundos, toda a frota de amotinados estava aniquilada, es-
palhadas em um milhão de pedaços incandescentes pelo espaço.
Catatônico Hierophantes assiste seus planos serem pulverizados à sua frente. Parali-
sado, sem saber como acontecera ou como reagir, é trazido de volta ao mundo dos vivos
pelos escárnios e as longas risadas do irmão:

– Aaahahahha… não, não! Aaahahahha… Vocês estão vendo a cara


dele? Aaahahh Você é mesmo um imbecil, Phanty… Aaahahahahh, um
verdadeiro idiota!

Em um gesto repentino, quase insano, Cronnus Fehenna estanca o escárnio e volta-se


para o monitor, sério, como se estivesse encarando Hierophantes pessoalmente:

 Achou mesmo que eu estaria com apenas UMA espaçonave fazendo a


minha escolta? UMA apenas?! Se você, que não é ninguém, anda por aí com
cinco espaçonaves, EU, que sou odiado por mais de vinte civilizações, que im-
peradores de várias dessas civilizações dariam metade do seu reino pela minha
cabeça, andaria por aí com apenas uma nave na escolta?! A sua burrice deixa de
ser engraçada... cada vez mais você me dá pena, Phanty!
...Esse cinturão de rochas que orbita Amorphos é composto por rochas radiati-
vas, os radares não conseguem atravessá-las... ficar aqui próximo a elas por mui-
to tempo pode até nos contaminar, sabia?.. Mandei que minha pequena frota fi-
casse escondida em meio a estas rochas, onde não poderiam ser detectadas, e
aguardasse pela sua emboscada.
Acreditou de verdade que seu plano suicida não chegaria aos meus ouvidos? Se
você acha que o seu comandante é amado pelos guerreiros de Achyros, muito
mais amado que ele é o poder!
Dois dos seus homens me entregaram os seus planos de traição em troca do car-
go de Comandante ocupado por Tunna Trull. (nesse momento Cronnus deixa es-
capar um sorriso sarcástico)
Quando te mandei buscar a minha nave, mandei, de fato, porque confiava em você... e
porque sabia que era um fraco e não me trairia como outros generais poderiam fazer em
seu lugar. Mas vejo que me enganei…
Quando os seus soldados me reportaram os seus planos de traição, antes mesmo de par-
tirem de Lemuria, confesso que me surpreendi,.. até tive dúvidas! (outro sorriso sar-
cástico. Cada um desses sorrisos equivaliam a uma punhalada no orgulho de Hierophan-
tes)
Queria mesmo que fosse mentira ou que sua covardia o impedisse de levar adiante esse
plano maluco... e esperei aqui para ver se realmente aconteceria…
Eu te dei todo o poder que alguém poderia ter abaixo do rei. Mas a sua inveja cega ain-
da queria mais... queria o MEEU trono!(esmurra violentamente o painel) Você só esque-
ceu que além de respeitado, eu também sou temido! Acha mesmo que seus mercenários
não sabem que se levantar contra mim é abraçar a própria morte?! Seus desertores se-
quer pediram recompensa em dinheiro pela sua cabeça... Os Recompensarei mesmo as-
sim com algumas divisas preciosas para que saibam o quanto é vantajoso ser fiel a
mim...
Já aos traidores... (Cronnus fita os olhos do irmão como se estivessem os dois, de fato,
frente a frente) eu pagarei com a morte! (Repentinamente muda o olhar de direção, res-
pira profundamente e suas feições mudam novamente, como se intencionalmente pre-
tendesse mudar o clima denso da conversa)
Você só está vivo “ainda”, ̶ e vou te deixar viver ̶ , porque é meu irmão... E em consi-
deração ao nosso pai, que não merece ter o seu nome manchado com a traição do pró-
prio filho. Traga minha máquina, entregue-se, e deixarei que viva. Você sim será exilado
e vigiado em algum lugar bem longe de mim... Mas nada lhe faltará, afinal és o irmão
do rei. Mas também, apenas isto lhe restará...

Ainda atordoado Hierophantes entende a emboscada que acabara de cair: o local do


encontro, marcado pelo próprio Cronnus, próximo aos cinturões de meteoros de
Amorphos, onde meteoros gigantes pairam e podem muito bem servir de esconderijo
para naves em vias de um contra-ataque; O fato de seu irmão, sempre tão precavido,
estar sem sua corriqueira escolta pessoal completa, oferecendo uma aproximação
tranquila e fácil a um eventual ataque. Estava tão fácil que a pequena frota do general
acabou se aproximando de forma despreocupada e até desatenta para uma tarefa de
tamanha importância. Percebeu que subestimara o jovem imperador. Sentiu-se um tolo
por não perceber os sinais e sabia que Cronnus, duro e implacável, jamais perdoaria sua
traição. Mais ainda: sabia que o irmão, vingativo e impiedoso, o humilharia à exaustão
antes de matá-lo…

− Como pude ser tão tolo?… Como pude…? (desolado, envergonhado,


Hierophantes mal consegue levantar a cabeça e olhar nos olhos da sua
tripulação)

Tunna se entrepõem entre o comunicador e Hierophantes e, sem esperar pela reação do


seu líder, encerra a comunicação entre as duas espaçonaves. Tenta olhar nos olhos de
Hierophantes que evita o seu olhar.

− Vamos, não há tempo para lamentações… Jassco, prepare-se para a retirada,


precisamos sair daqui imediatamente… Tristannes, emita o alerta para a
tripulação: vamos acelerar!

O comandante Tunna Trull percebe que Hierophantes não está em condições de


tomar qualquer decisão naquele momento e toma a frente no comando da nave.

 Jassco, precisamos fugir, mas se formos a espaço aberto agora, seremos


abatidos facilmente. São muitas naves, precisamos despistá-los... Vamos fazer
justamente o contrário do que eles esperam: vamos nos embrenhar entre as ro-
chas em direção a Amorphos e acelerando o máximo que você conseguir. Eles
vão vir atrás da gente, mas terão que diminuir a velocidade, ou vão acabar se
chocando contra os pedregulhos!
 Eles vão se chocar contras as rochas?!? Nós também vamos! Isso é lou-
cura!(refuta, indignada, a chefe de operações) Isso é uma verdadeira loucura sui-
cida, isso sim! ̶ Tudo bem, não vamos deixar que eles nos fodam… A gente
mesmo vai e se fode sozinho, certo?!

Apesar de Jassco não contestar a ideia, Tunna percebe que ele também não está con-
fiante de que, por entre o emaranhado de rochas gigantes, seja, de fato, uma rota de fuga
viável.

 Precisamos de alguma vantagem, precisamos dificultar a perseguição pra


eles. Você pode… Só você pode! Não te chamam de Alma Voadora sem moti-
vos, meu amigo… Eu te escolhi pra estar aqui pilotando esta espaçonave porque
sei do você é capaz…
Com os armeiros sob sua orientação, abrindo caminho onde você achar que não
vai dar pra passar, a gente pode conseguir dificultar as coisas pra eles…

Jassco não fala nada, apenas olha nos olhos do seu comandante por alguns segundos
e balança a cabeça em sinal positivo, enquanto já vai acionando os primeiros comandos
no imenso painel, empurrando-os de açoite com a parte dorsal dos dedos, como se qui-
sesse dizer simplesmente: foda-se!

 Bando de escrotos suicidas! (retruca Tristannes balançando a cabeça em


sinal negativo, mas com um inegável sorriso de canto de boca)
Deve ser bem por isso que estou aqui também...
*Preparem-se todos, seus porcarias, assumam seus assentos e tratem de se segurar.
Armeiros, assumam seus postos: vamos fugir! Toda velocidade em qualquer dire-
ção… (pela comunicação interna, avisa os tripulantes e soldados nas demais dependên-
cias da grande nave) E podem ficar tranquilos, eles não vão nos pegar: nos vamos
morrer antes disso! Aahahhaha*
Tunna conhece bem os seus soldados, escolheu cada um deles, e sabe que eles não
desistem de lutar enquanto houver alguma possibilidade.

̶ (operando diretamente ao comunicador) Atenção, armeiros! Belatthor e


Jello, mantenha-se focados nas rochas à nossa frente: nos vamos acelerar entre
os pedregulhos e Jassco vai orientá-los para que atirem e destruam as rochas que
estiverem no nosso caminho, abrindo espaço onde ele achar que não é possível
passar; Abennay: sua missão é cuidar da nossa retaguarda; você vai tentar abater
as máquinas que estiverem no nosso encalço, ou fazê-los se chocar contra as pe-
dras.

Mal a Suppernova começa a se mover e na nave real a ação não passa despercebida:

 Meu senhor, a telemetria indica que os propulsores da Suppernova foram


acionados e a nave já está em movimento (Informa Cunnis Sorbbidus, o chefe de
operações da Tennebris) .
 Feridas no rabo os empesteiem! Os malditos vão tentar fugir!
Cunnis, mande algumas Replicantes entrarem em perseguição imediatamente. Eles es-
tão bem mais próximos de saírem da cortina de rochas; precisamos alcançá-los antes
que consigam ganhar distância. Mas preste atenção: mande que tentem cercá-los, abram
fogo... mas não os acertem! Eles devem apenas distraí-los, ou tentar retardá-los. En-
quanto isso, mande a Appex-Predadora e a Jigssore, que são mais velozes e possuem
Canhão de Pulso, aproveitarem a distração para tentar chegar até eles e disparar uma
carga leve, apenas para imobilizar a espaçonave. Nós todos também vamos atrás deles,
mas as outras máquinas mantém a formação de proteção à nave real: acho pouco prová-
vel, mas Tunna pode ter armado uma outra emboscada, pode ter deixado alguma espa-
çonave na espreita. Informe aos pilotos que se os deixarem escapar, eu, pessoalmente,
arranco a cabeça deles.
Esses traidores não podem fugir com a minha máquina! Eles buscaram a guerra, agora
vamos ver se eles realmente não tem medo da guerra!

Hierophantes tinha razão sobre muitas das acusações direcionadas ao irmão:


realmente fora criado sobre o olhar protetor da mãe, era rude, presunçoso e cruel. Mas
errava quando queria acreditar que ele não passava de um garoto mimado preferido
pelos pais. Desde muito cedo Cronnus fora criado, educado e treinado para ser rei,
assim como Hierophantes também fora. Mas no caso do jovem príncipe, também fora
meticulosamente instruído pela própria mãe, a rainha Sirennia, estrategista habilidosa
que conhecia como ninguém a arte da dissimulação e da manipulação; tanto que
conseguira separar o rei Oliffante de sua primeira esposa, mãe de Hierophantes, um
caso raríssimo em Achyros, e ainda assumiu o lugar dela junto ao rei. O fato é que
Cronnus Fehenna merecia os méritos da sua ascensão: comandando o seu povo
guerreiro, aliando-se e manipulando, criando intrigas, assim como tramando estratégias
de combate, o rei Achyroniano conseguira vencer inúmeras batalhas, subjugar
poderosas civilizações e se consagrar Imperador sobre todas elas. De fato, não um
Imperador aclamado e respeitado como seu lendário antepassado, Virggo Fehenna, mas
temido tanto quanto.
E Tunna sabia bem do que o Imperador seria capaz para se vingar: ele mesmo
sofrera na própria pele os desmandos do, à época, ainda jovem príncipe, o que lhes
gerou uma antipatia recíproca e eterna. Agora, Imperador, jamais perdoaria uma traição
arquitetada justamente por ele e por um ente familiar tão próximo. Por isso precisavam
fugir a todo custo, inclusive ao custo de suas próprias vidas. Ele sabia que Cronnus os
perseguiria onde quer que fossem, por isso a atitude drástica de se embrenhar entre as
rochas: “Condições extremas exigem respostas extremas”, era o que sempre dizia.
Não era tão difícil transitar entre os pedregulhos na órbita de Amorphos, desde que
em velocidade reduzida. Mas acelerar ali tornava a jornada, a cada acréscimo de
velocidade, em uma verdadeira viagem suicida. As espaçonaves que entraram em
perseguição direta eram as menores da frota espacial e eram chamadas de Replicantes
por serem praticamente iguais, diferenciadas apenas por uma sigla de identificação.
Replicadas aos milhares por todos os planetas de Aria Galáctica justamente por serem
ágeis e velozes, nenhuma outra espaçonave possuía melhores condições para transitar
em boa velocidade entre aquelas rochas do que as Replicantes. E estas começaram a se
aproximar perigosamente da Suppernova disparando os seus canhões no vazio.
Mas apesar das supostas vantagens, a pilotagem arrojada de Jassco, embrenhando-se
entre as rochas de forma inesperada e acelerando, em tempo que ia indicando aos
armeiros quais as rochas à frente que deveriam ser alvejadas, e ainda o terceiro armeiro
voltado para a retaguarda, ocupando os pilotos também da tarefa de desviar das rajadas
disparadas em sua direção, começavam a fazer os perseguidores sentirem que estava
ficando cada vez mais difícil alcançá-los e manter distância das rochas em volta.

ꟷ Controle, parece loucura mas eles estão mantendo-se entre as ro-


chas, mudando frequentemente de direção e acelerando. (comunica o co-
piloto de uma das replicantes) Tudo indica que estão tentando usar os
pedregulhos em seu favor e estão testando o quanto podemos resistir em
perseguição!
ꟷ Mantenham-se firmes… Não permitam que abram distância de
vocês. (responde Cunnis Sorbbidus)
ꟷ Mas, senhor… é que eles estão explodindo algumas rochas no ca-
minho e causando a movimentação de outras, que muitas vezes acabam
se movimentam em nossa direção! Há ainda um armeiro disparando con-
tra nós… está ficando cada vez mais perigoso continuar nessa persegui-
ção sem atirar para atingi-los… Precisamos tentar danificar ou destruir
logo de uma vez a espaçonave, ou eles vão consegui…
ꟷ Imbecil! (Cronnus toma a frente no comunicador de forma abrup-
ta) Se está difícil pra vocês, imagine pra uma nave daquele tamanho!
Eles querem que desistamos, mas logo, eles é que terão que desistir para
não colidir. Mantenham a perseguição…

Na Replicante não houve tempo sequer para acatar a ordem do obsessivo imperador:
numa fração de segundos ainda foi possível assistir, pelo comunicador, a nave se despe-
daçando antes da comunicação ser interrompida pelo choque com uma das pedras side-
rais. A colisão causou uma reação em cadeia que movimentou vários dos pedregulhos
naquele setor, vitimando logo em seguida também uma outra Replicante que estava logo
atrás e não pode escapar das pedras rolantes que se movimentaram velozmente em sua
direção.
ꟷ Pela ira de Inffestus, Phanty! Eu juro que você vai pagar muito
caro por isso! (grita e braceja violentamente Cronnus, que a essa altura
já tomara à frente do chefe de operações no comunicador) Mantenham a
perseguição! Tentem alcançá-los: 7650, 6600, eles estão conseguindo se
distanciar!
ꟷ Meu senhor, nós estamos tentando nos aproximar, mas eles estão
conseguindo acelerar cada vez mais… Não sei se conseguiremos acom-
panhá-los… (responde o chefe de operações da 7650).
ꟷ Incompetentes! Imbecis! Malditos! (esbraveja Cronnus esmurran-
do o painel) Como uma máquina daquele tamanho consegue passar pelas
rochas e vocês não?!
Atenção, Appex-Predadora e Jigssore: vocês continuarão seguindo-os por fora do
cinturão de pedras. Cedo ou tarde eles terão que tentar fugir para espaço aberto; e
quando eles resolverem sair, vocês tem que estar lá para recebê-los…

Nesse momento mais uma colisão vitimiza uma outra Replicante que tentava acele-
rar seguindo as ordens do imperador Regente. Apesar de não ser considerada uma nave
de grande porte, como as Naves Cruzadoras ou Arcas, a Suppernova é uma espaçonave
bastante grande para aqueles caminhos. Mas o talento de Jassco Mahatta, reconhecido
desde os tempos em que a frota aérea de Achyros resumia-se apenas às aeronaves plane-
tárias, com o auxílio dos armeiros, tem conseguido manter a espaçonave intacta e veloz
em meio aos pedregulhos.
Tunna já previa que Cronnus manteria naves perseguindo-os e esperando-os fora da
área do cinturão rochoso, por isso instrui Jassco a sair da área das pedras e penetrar na
atmosfera de Amorphos, onde poderiam voar próximo ao solo e seria possível utilizar as
gigantescas montanhas e outras formações rochosas do planeta para escondê-los, tor-
nando impossível a localização via radar. Num grande mergulho sinuoso em direção a
Amorphos, ainda conseguem visualizar a última Replicante que ainda os perseguia se
desintegrando e sumindo dos radares em mais uma colisão, o que fora bastante come-
morado na cabine de comandos da Suppernova, já que esta era a única espaçonave da
frota imperial que ainda estava em distância hábil e poderia persegui-los dentro da zona
atmosférica do planeta vermelho antes que conseguissem se camuflar.
Com a Suppernova desaparecida em Amorphos, Cronnus trata de tentar inviabilizar a
saída dos rebeldes do planeta, colocando naves em sentinela, espalhadas em redor do
imenso astro rubro, enquanto entrava em contato com a base terrestre em Amorphos e
desviava de suas funções as espaçonaves de carga em serviço de garimpo no planeta
para que se mobilizassem também para procurá-los.
Mas Tunna também sabia que não poderiam dar tempo para que se organizassem e,
certo de que Cronnus e Malleus esperavam que eles fossem se manter escondidos no
planeta por algum tempo, instrui Jassco que retorne imediatamente ao espaço, dessa vez
sem pressa, utilizando as tais rochas radiativas do cinturão de Amorphos para camuflá-
los visualmente assim como dos radares. De forma hábil Jassco conduz lentamente a
Suppernova entre as grandes rochas, dessa vez em sentido oposto, buscando sempre as
maiores, as que pudessem cobrir-lhes o rastro com a radiação; e antes mesmo que Cron-
nus ponha em prática tudo que havia planejado para a busca, a Suppernova já está de
volta ao espaço aberto.
As sentinelas ainda não estavam preparadas para a vigília em área tão extensa e se-
quer perceberam a fuga; não fossem os satélites a disposição da base planetária além do
cinturão rochoso, que controlam o tráfego intenso de naves de carga chegando e saindo
a todo momento de Amorphos, a fuga nem teria sido percebida pelos desatentos vigilan-
tes. Mas, informados pela base sobre a nave que acabara de deixar o planeta sem pedir
autorização, Cronnus, a essa altura ensandecido pela ira, beirando a histeria, coloca a
sua frota em perseguição novamente, mesmo com a grande distância de vantagem que a
Suppernova já possuía.
Na Suppernova, a informação de que ainda estavam sendo caçados pelo obstinado
imperador não causou surpresa:

ꟷ Jassco, Bartton e armeiros, fiquem alertas, já estamos sendo per-


seguidos novamente pela frota real… (alerta a chefe de operações)
ꟷ Tristannes, veja assinatura da nave, creio que colocaram a Appex-
Predadora em nosso encalço (alerta Bartton Cibell, co-piloto da nave)
ꟷ Está correto, Bartton, é mesmo a Appex. E certamente não vai de-
morar para que nos alcance…
ꟷ Ele não vai desistir, precisamos desaparecer de vez! (conclui, en-
fático, Tunna Trull ao saber que era justamente a Appex-Predadora que
estava em rota de interceptá-los)
Tristannes, trace rota segura para Mabool, precisamos entrar em hipervelocidade.
ꟷ Comandante, você sabe que não se traça uma rota de hiperveloci-
dade assim, de uma hora pra outra: é preciso estudar o trajeto, receber os
dados… E porque raios iríamos justamente para Mabool?! (indaga Tris-
tannes surpresa e com a sua já conhecida irritação e insubordinação com
ordens que considere inadequadas) O planeta é um imenso cemitério
pantanoso! Não há nada lá além dos vermes gigantes que devoram tudo
e muito lixo, carcaças, sucatas e materiais perigosos que jogamos lá…!
Se não morrermos nessa fuga desorientada, certamente morreremos na-
quele planeta estéril!
ꟷ Calma, minha amiga impaciente! Não vamos, de fato, a Mabool.
Apenas vamos fazê-los acreditar que fomos pra lá. Mabool é um planeta
isolado, quando estudarem a nossa rota, vão pensar que esse foi o nosso
destino e irão nos procurarão por lá. Mas, quando estivermos a meio ca-
minho, desaceleramos e traçaremos uma nova rota. Ganharemos tempo
assim...

Enquanto ainda há uma boa distância que lhes garanta alguma segurança, Tristannes
trata de tentar traçar uma rota de fuga segura. As naves menores conseguem ser mais
velozes e podem alcançá-los, apesar da vantagem que conseguiram; a Appex-Predadora,
em particular, é justamente considerada a nave de guerra mais veloz e eficaz em perse-
guição e assalto, e logo conseguirão alcançá-los. Sem tempo para elaborar uma rota per-
feita, o que demandaria consulta e espera por informações externas, a Suppernova co-
meça a acelerar para a hipervelocidade utilizando uma rota bruta traçada às pressas por
Tristannes.
A ação logo foi notada pela telemetria da Appex, que já se encontrava em vias de in-
terceptá-los, e é repassada à Tennebris Tranquilittate:

ꟷ Meu senhor, a Suppernova começa a acelerar fortemente: os ní-


veis de energia indicam que a máquina está entrando em curso de hiper-
velocidade.
ꟷ NÃÃO! Malditos! Covardes! Escória rastejante! Que a Sabbra
Negra os amaldiçoe!
Não podemos deixá-los escapar: precisamos recuperar minha máquina e capturá-
los vivos.
Soldado, comunique aos pilotos que mantenham a perseguição mesmo em hiper-
velocidade. Aliás, (voltando-se para a tripulação da Tennebris) preparem-se to-
dos, nós também entraremos em hipervelocidade!

Ao ouvir tal comando a tripulação se entreolha assustada, revelando que todos


sabiam o perigo de se levar àquela perseguição até as últimas consequências. Malleus
Inpherne, um dos poucos homens de confiança de Cronnus, era o único a bordo capaz
de fazer o obstinado Imperador entender a loucura que acabara de ordenar:

 Meu senhor, preciso lhe falar, essa ordem nos levará a morte (sentenciou
Malleus, olhando fixamente para Cronnus). Me escute, não existe persegui-
ção em hipervelocidade e o senhor sabe bem disso. Podemos nos chocar com
qualquer coisa no espaço, até mesmo com a própria Suppernova, caso desa-
celerem repentinamente. E o mais difícil é conseguir manter o mesmo curso,
afinal, por menor que seja o desvio da nave perseguida, nos colocaria em
dois pontos distintos e distantes no espaço! É um risco inútil. Estará colocan-
do toda a sua frota em perigo desnecessário, além da sua própria vida!
 Pela ira de Inffestus! Preciso recuperar aquela máquina e dar uma lição
nos malditos traidores.
 Calma, meu senhor, eles não tem onde se esconder. Toda Aria Galáctica
está sob seu domínio e a mercê do olhar atento dos nossos informantes. To-
dos temem o peso de sua mão e sabem que vale muito mais a pena entregá-
los do que aliar-se a um inimigo que já está derrotado. Quanto tempo acha
que o pequeno exército que sobrou, ou mesmo a tripulação, permanecerão
engajados e fiéis depois do que aconteceu aqui hoje? Fique tranquilo, os de-
latores continuam lá… terá a sua vingança mais cedo do que Tunna e Hie-
rophantes imaginam.

Cronnus infla-se, respirando profundamente e encarando o seu conselheiro, como se


aquele fosse o silêncio que precede o esporro, e então percebe ao fundo a sua tripulação
temerosa, assustada, esperando pela sua resposta como que condenados esperando pela
sentença. Engole em seco as próprias palavras e resigna-se: não se tornara o Imperador
de Aria Galáctica tomando decisões impensadas ou precipitadas. O astuto rei volta a si e
percebe que Malleus tem toda razão, acordando enfim do transe de ira que o dominou e
dando lugar ao rei calculista e estrategista que se fez imperador.

 Você tem toda razão, Malleus. Ordene a todas as máquinas que abando-
nem a perseguição e reagrupem em torno da nave real.
… Acho que terei mais tempo para pensar no castigo apropriado para os traido-
res…
* * *

Na Suppernova era visível a preocupação e tensão que dominavam as feições da


tripulação: derrotados, fugitivos de um rei implacável, como era sabido por todos, e
ainda numa jornada de fuga em velocidade extrema sem rota pré-definida; As viagens
em hipervelocidade tinham sempre que ser previamente elaboradas por um ou mais
navegadores que estudavam a posição e curso dos astros siderais, assim como recebiam
informações recentes enviadas pelos inúmeros satélites de vigilância espalhados por
toda Aria Galáctica informando as localizações e rotas de cometas e meteoritos de
grande porte que eventualmente possam estar no caminho entre o ponto de partida e o
destino pretendido. O Sistema de Alimentação Contínua desenvolvido pelos
Lemurianos fora criado para consumir, preferencialmente, o que eles chamam de
“Massa Escura” e “Energia Negra”, que são os elementos mais abundantes na
composição do universo, servindo assim como uma fonte inesgotável de combustível
paras as naves Hipervelozes, que consomem uma quantidade descomunal de energia
para atingir hipervelocidade. Mas o Sealcon, na verdade, é capaz de consumir
instantaneamente qualquer tipo de partículas, matéria ou energia que toquem o seu
campo de tração, que é formado por placas energéticas distribuídas por toda a
carenagem das espaçonaves hipervelozes, transformando tudo que tocam em energia
para a nave. Mas, em se tratando de corpos de grandes proporções, e conforme a
velocidade da espaçonave, não há tempo suficiente para consumir toda a matéria do
objeto, causando o choque da nave com a parte não decomposta e, consequentemente, a
destruição e até mesmo a pulverização imediata da espaçonave. Viagens em
hipervelocidade são planejadas para evitar choques com os grandes corpos à deriva no
espaço. As viagens não planejadas quase sempre terminam em colisão e destruição total
da espaçonave e seus tripulantes.
Temendo pela integridade da nave, Tristannes alerta a Tunna Trull sobre o perigo:

 Comandante, já estamos há tempo demais em Hipervelocidade! Se eles


tiverem alguma coisa além de merda dentro da cabeça, já devem ter desistido
dessa perseguição insana! E pra nós já está muito arriscado! Meu plano de
voou foi simplório... estamos aqui contando apenas com a sorte.

Sempre atento, Tunna concorda com a chefe de operações da nave:

 Claro, você está certa, Tristannes. Creio que não há mais razão para per-
manecer em hipervelocidade… (voltando-se para o primeiro piloto) Jassco,
acho que já podemos desacelerar. Precisamos, agora sim, estabelecer o nosso
verdadeiro destino…

Jassco Mahatta, de pronto, inicia os procedimentos de desaceleração. O experiente


piloto sabe dos grandes riscos envolvidos numa viagem em hipervelocidade sem o estu-
do do curso e parece ser o mais interessado em voltar à velocidade convencional.

 E qual seria o nosso “verdadeiro destino”, comandante? (indaga Tristan-


nes)
 Vamos a Alduruna Rediviva! Já estive lá. É um planeta distante… tem
muitos recursos naturais e ainda é pouco habitado. É lá que vamos nos es-
conder e estabelecer uma nova base e remontar nosso exército. Cronnus se
engana muito se pensa que vamos nos render e pedir misericórdia… Se ele
quer as nossas cabeças como troféu, que as arranque em batalha!

Tunna Trull era um guerreiro muito respeitado pelo seu exército e por toda
Achyros; Além de exímio lutador, era um estrategista incomparável: enxergava brechas
onde ninguém as via e traçava planos de combate em frações de segundos, o que o
tornava em um oponente muito difícil de ser superado para quem o desafiasse. Tinha um
certo dom para comandar, do tipo: linha de frente em qualquer lugar. Prezava pelo justo,
correto, pelo combate honesto, mas sem ser idiota: se a sentença se anuncia bruta, sabia
jogar sujo também. Tais características acabaram por causar, no imaginário do povo
Achyroniano, uma associação espontânea com o lendário Virggo Fehenna, que fora
mitificado por aquele povo, e ainda figurava como o herói maior de Achyros. Junte a
tudo isso o fato de ter vencido por três vezes os Grandes Jogos de Guerra, celebração
maior e mais tradicional daquele povo, instituído pelo próprio Virggo para celebrar a
unificação de Achyros, e tinha-se aí todas as características para torná-lo um verdadeiro
culto entre os achyronianos.
Muito além do porte físico invejável, Tunna trazia em si uma altivez, um olhar que,
por mais que não fosse essa a sua intenção, denotava superioridade, e isso incomodava
muito alguns membros da nobreza e de algumas famílias tradicionais de Achyros. E um
dos primeiros a se incomodar com a suposta empáfia do guerreiro fora justamente o
então príncipe, Cronnus Fehenna, ainda quando Tunna vencia pela primeira vez os
Grandes Jogos. Inconformado com a ovação do público para com o jovem guerreiro,
que vencera todos os combates disputados de forma primorosa, inclusive vencendo o
protegido e aposta de Cronnus, este o desafiara a confirmar a sua vitória duelando até a
morte com um dos membros do grupo que ficara conhecido na época como Brigada do
Ódio: quarteto de assassinos que fazia a guarda pessoal do jovem príncipe e, sob vista
grossa de Cronnus, brigavam, matavam, roubavam e até estupravam impunemente.
Impossibilitado de negar-se ao duelo, Tunna acabara vencendo o desafiante que, morto,
tivera as dores tomadas por outro membro do grupo, que quis vingar-se ali mesmo,
porém só conseguira, de fato, encontrar nas mão de Tunna Trull o mesmo destino do
amigo. O ocorrido só acirrou os ânimos entre Tunna e Cronnus, que se viu obrigado a
congratular o aclamado vencedor.
Dali por diante, a animosidade entre os dois só aumentou, inda mais quando
Hierophantes o recrutara para ser o chefe de sua guarda pessoal, dando-lhe certa
imunidade contra os desmandos do príncipe Cronnus. Provavelmente, Hierophantes
reconhecera em Tunna o aliado perfeito para o que idealizava para o seu futuro reinado;
Reinado que nunca acontecera por interferência da Feiticeira Pálida e seu irmão
Cronnus. Foi graças ao respeito e admiração que a tropa tem por Tunna Trull que
Hierophantes conseguira juntar o seu exército insurgente. E àquela altura, Hierophantes
precisaria ainda mais da figura do seu comandante e das suas táticas de guerra para
remontar o seu exército.
Nesse momento a nave já começa a desacelerar e a tripulação começa a se olhar
aliviada. Encontram-se na Suppernova quase 200 embarcados, entre soldados:
guerreiros que vão a campo nas lutas corpo-a-corpo; a guarda pessoal do príncipe
conselheiro: soldados que o acompanham em qualquer situação ou lugar; bélicos:
aqueles que manejam as armas da espaçonave e veículos de guerra; tripulação de
cabine: pilotos, chefe de operações e os responsáveis pelo funcionamento tecnológico
da nave; e ainda o pessoal da manutenção, limpeza e produção de alimentos, além de
Hierophantes, Tunna Trull e o cientista Bellchior de Calabbar. A frota que fora buscar a
Suppernova em Lemuria era composta por cinco naves, incluindo aí a nave oficial de
Hierophantes. Como só contavam com o sucesso da emboscada, Tunna Trull e
Hierophantes transferiram toda a tripulação da antiga nave para a Suppernova,
considerando que esta já seria a nova nave espacial do novo rei, e ratearam quase que
aleatoriamente os soldados de todas as espaçonaves entre as seis que retornaram de
Lemuria, embarcando na Suppernova um número bem maior de guerreiros do que nas
outras naves. Ironicamente, a Suppernova, a tripulação e esses soldados, agora são toda
a força o que lhes resta.
Tristannes, Bellchior e o co-piloto começam então a traçar uma rota segura para
Alduruna Rediviva, um dos planetas mais distantes do núcleo mais populoso da Aria
Aliança. Inclusive, o sistema solar onde se encontra Alduruna é considerado como uma
das fronteiras de Aria Galáctica. Originalmente desabitado por vida inteligente, porém
com bom número de criaturas selvagens e com muitos recursos naturais, Alduruna
passou a ser habitado e cuidado por um grupo de voluntários de diversos planetas e
soldados da Aliança, que lá fundaram uma pequena vila. O planeta vem sendo estudado
e colonizado para se tornar base e ponto de partida para uma futura expansão dos
domínios da Aliança, no entanto, a falta de uma rede de satélites, como em Amorphos, e
a pequena quantidade de moradores que atualmente habita o planeta, são insuficientes
para cobrir e proteger todo o seu território, tornando muito fácil para uma espaçonave
desautorizada pousar e permanecer incógnita no planeta. Poderiam se passar anos sem
que fossem descobertos, se fossem tomados os devidos cuidados, claro.
Traçada a rota pelos navegadores, os processadores da nave são alimentados com os
dados do percurso para que os computadores de bordo guiem a nave ao seu destino,
tarefa impossível de ser executada pelo piloto quando a nave entra em Hipervelocidade.
Rapidamente a Suppernova começa a movimentar-se novamente e vai ganhando
velocidade, enquanto as placas escuras e espelhadas que revestem simetricamente o
casco da nave vão lentamente acendendo-se como uma lâmpada fraca tentando vencer a
noite escura. O sistema de alimentação contínua começa então a tragar e decompor a
escuridão do espaço e das trevas vem a luz que vai acendendo cada vez mais as placas
energéticas até atingir o seu ápice. Com o ascendimento total das placas a nave
transforma-se em luz intensa de um tom escuro, quase roxo, como se fosse uma estrela
negra enganadora, e então dispara e some pelo espaço deixando para trás apenas o seu
estranho rastro de luz negra. Enquanto isso, em seu interior, o campo de energia criado
pelo Sealcon isola a nave do restante do universo. A partir de então, os tripulantes
respondem apenas à gravidade e as leis física mantidas artificialmente pelos
simuladores da espaçonave.

* * *

Nascidos entre uma guerra e outra, criados para a batalha, os Achyronianos já trazem
desde a sua mais tenra infância o gosto pelas disputas. Grandes períodos de calmaria são
incomuns entre este povo. Os Achyronianos tem paixão pela guerra e quando não estão
envolvidos em alguma batalha que lhes dizem respeito, buscam informações e
acompanham os acontecimentos em conflitos que estão acontecendo em lugares
distantes da sua região. Muitos jovens que ainda não constituíram família chegam a
viajar para as regiões onde estão ocorrendo essas disputas e, tomando um dos lados
aleatoriamente, ingressam nas linhas de batalha. Termina-se uma batalha e já se começa
a pensar na próxima. Quando enfim voltam para seus locais de origem, são tratados
como especiais, como se, agora sim, fossem dignos de respeito; suas histórias são
ouvidas atentamente em grandes rodas de conversa e, finalmente, conseguem despertar
a atenção das fêmeas locais e já podem então constituir suas famílias. Talvez seja essa
predisposição à guerra, somados a admiração que todos tem pela figura de Tunna Trull,
que tenham feito aquele pequeno exército acreditar na possibilidade de vitória sobre o
astuto Imperador Regente. Mas o fato é que diante de derrota tão humilhante e cientes
da perseguição implacável que será promovida por Cronnus Fehenna, somente a
admiração pela figura de Tunna ou mesmo a vontade de guerrear talvez não sejam
suficientes para manter os ânimos dos remanescentes. Após a longa e demorada viagem,
quando finalmente chegaram a Alduruna Rediviva, o clima de descontentamento era
visível nas feições de cada um naquela nave.
Após percorrer boa parte do hemisfério oposto ao que está localizada a colônia da
Aliança no planeta procurando por um lugar adequado para pousar, Tunna e Jassco
entendem ser mais seguro esconder a espaçonave em uma espécie de cratera,
provavelmente causado pelo impacto de um meteoro, e que acabara criando uma grande
saliência parecida com uma caverna. Havia um paredão rochoso em volta de todo o
buraco e que, na parte superior, quase cobria a caverna inteira e serviria de barreira
natural, dificultando tanto a entrada de animais selvagens por baixo, quanto a
visualização por cima, caso alguma espaçonave sobrevoasse aquele setor. Encravado em
meio a uma floresta, ainda havia em volta da cratera uma alta e densa cobertura vegetal,
tornando mais escondido o seu interior.
Imaginando o desanimo e falta de perspectivas dos remanescentes, Tunna orienta
Hierophantes para que convoque o seu pequeno exército e a tripulação para uma reunião
no grande salão de desembarque da nave; a essa altura Hierophantes ainda não parecia
estar à vontade com a humilhante derrota, mas entende ser necessário tal conversa. De
pronto todos os embarcados, cansados de esperar e ficar trancafiados naquela
espaçonave, comparecem a reunião, vislumbrando talvez, poder sair o quanto antes para
explorar o planeta. Hierophantes faz-lhes um discurso morno, onde claramente
percebia-se estar abatido e envergonhado. Seguindo orientações de Tunna Trull,
esclarece a todos o fato de que foram traídos e que por isso teria fracassado o levante;
informa-lhes que com extrema brevidade remontará o seu exército com a ajuda de
outros líderes planetários também insatisfeitos com o imperialismo de Cronnus e, por
fim, que transformarão juntos aquele planeta em uma base e ponto de partida para a
derrocada do soberbo imperador. Cientes das grandes dificuldades para concretizar o
prometido, os ouvintes pouco reagem ao discurso de Hierophantes e Tunna Trull trata
logo de tomar a frente do príncipe para que este não prolongue o falatório, evitando
alguma reação vexatória por parte dos impacientes e descrentes Achyronianos;
Estabelece então algumas funções para os presentes, que vão desde o reconhecimento
da própria caverna, até a busca e caça de alimentos na floresta do lado de fora. Assim, a
maior parte dos remanescentes se lança no reconhecimento e exploração do
desconhecido planeta.
Permanecendo na espaçonave, Hierophantes procura imediatamente entrar em
contato com alguns reis e chefes de algumas das civilizações subjugadas por Cronnus:
líderes inconformados com a ascensão do rei Achyroniano, com quem Hierophantes já
havia se acordado anteriormente, e que prometeram-lhe apoio, caso obtivesse sucesso
em sua emboscada e tomada do poder. Utilizando-se de comunicação codificada,
Hierophantes precisa estabelecer, o quanto antes, alianças para remontar o seu exército.
Havia um risco razoável em se estabelecer comunicação externa, ainda que codificada;
é que, mesmo tendo o seu conteúdo protegido, elas podem ser interceptadas e
rastreadas, denunciando não só o destino da mensagem, como também o seu ponto de
partida. Um risco que Hierophantes acredita ser aceitável, dada a sua situação em que se
encontravam. Sem o apoio de outros exércitos, suas pretensões se tornariam
irrealizáveis. Deste modo, enquanto espera pela resposta dos possíveis aliados,
Hierophantes passa o dia calado, praticamente recluso e em prontidão na cabine de
comandos.
Ao entardecer, os grupos de desbravadores começam a retornar, trazendo consigo
caça em abundância: os Achyronianos adoram caçar, principalmente se forem animais
de grande porte, que constituam um desafio de força. Alguns grupos tinham a função de
coletar vegetais, atividade não muito apreciada pelos machos da espécie: consideram
esta uma atividade para as fêmeas. A equipe da cabine de comando, liderados por Tunna
Trull, que saíra apenas com o intuito de analisar o pouco conhecido planeta, também
retornam com material para análise, entre eles alguns vegetais, pequenos animais,
minérios e água. Mas já em alta noite e com o fim do fluxo de retorno, fica claro que
muitos dos que saíram não retornaram. Poderiam ter se perdido ou mesmo ter ido longe
demais para retornar no mesmo dia mas, dado os últimos acontecimentos, era motivo de
preocupação para Tunna e o príncipe rebelde.
No dia seguinte repetem-se os fluxos de saída da tripulação, dessa vez com maior
foco na busca por água, cuja a qualidade fora atestada e liberada para o consumo por
Bellchior. Hierophantes, ainda sem qualquer resposta dos seus possíveis aliados,
mantêm-se recluso na cabine de comando, em prontidão, numa espera interminável.
Tunna, percebendo a preocupação do amigo, encurtara o seu passeio neste dia e tenta
distraí-lo contando as suas poucas descobertas sobre o planeta, assim como ideias para
restruturação do pequeno exército; prefere não comunicar-lhe que os soldados que não
retornaram no dia anterior permaneciam ainda não localizados, o que fazia pouca
diferença, pois Hierophantes sabia que se Tunna os tivesse localizados, teria lhe
comunicado de imediato. Por insistência de Tunna, e já exausto, Hierophantes
finalmente resolve tentar dormir e dirigi-se para sua cabine pessoal. No caminho cruza
com alguns soldados que faziam a guarda noturna da espaçonave, que calam-se
imediatamente ao perceber a sua presença e o cumprimentam de forma bastante
comedida e fria e, reciprocamente, ambos percebem o desânimo estampado em seus
olhares. Hierophantes martiriza-se por ter subestimado o irmão e, a cada hora que se
passa, maior se torna a convicção que não possui mais aliados. Deita-se e tenta dormir
mas, no silêncio da sua cabine, a visão de sua frota sendo surpreendia e explodindo à
sua frente não lhe sai da cabeça. Uma visão repetitiva que não cessa mesmo quando é
vencido pelo cansaço e finalmente chega o sono, e vai permanecendo em sua mente em
forma de sonho. Apesar de ainda estar em ondas leves, o sonho parece-lhe bastante real,
de imagens vivas! Tanto que em um determinado momento pulo fora do entorpecimento
assustado, julgando ter ouvido, de verdade, o barulho das explosões! ( ̶ Explosões?!
Estou ouvindo explosões?!) De repente o barulho do alarme ecoa pela espaçonave e
Hierophantes percebe que o barulho que escutara e ainda escuta é real! ( ̶ Estamos
sendo atacados!) Salta rapidamente da cama e, ainda se vestindo e correndo, retorna à
cabine de comandos ao som dos estampidos. Logo ao entrar se depara com as imagens
de um ataque maciço exibidas pelas grandes telas e Tunna Trull tentando coordenar a
sua tropa encurralada:

 Tunna, o que está acontecendo?!


 Estamos cercados! Chegaram de surpresa! Um verdadeiro exército do
lado de fora e estão utilizando os paredões na entrada da caverna para se
proteger dos nossos disparos, enquanto atiram massivamente nos nossos
homens que tentam sair da espaçonave. Os canhões frontais na parte superior
da máquina já foram destruídos; sobraram apenas os canhões traseiros que
não conseguem alvejá-los e, enquanto nossos soldados atiram de dentro da
nave com a visão limitada pela carenagem, muitos deles vão ultrapassando
os paredões e estão nos cercando.
 E porque ainda não levantamos voou?!
 Estamos cercados por cima também! Uma enorme espaçonave,
provavelmente a Vennom, está sobre nós (mostrando uma das telas)
impedindo que possamos decolar.
 Então vamos derrubá-la. Mande que os bélicos a alvejem com os canhões
traseiros… (virando-se para Tristannes)
 Meu senhor, a Vennom é enorme, e está sobre nós e sobre a borda
superior da cratera; se a derrubarmos, ela cairá sobre a borda e sobre nós.
Seremos soterrados pelas rochas da caverna e pelos destroços da própria
máquina (esclarece a chefe de operações, enquanto Tunna concorda
balançando a cabeça em sinal positivo).
 Então o que faremos agora? Não podemos ser capturados. Ele nos matará
de qualquer forma, mas não antes de nos torturar e humilhar a exaustão…
Tunna Trull permanece calado por um momento, olha para uma das telas
atentamente, volta o olhar novamente para Tristannes e Hierophantes e balança a cabeça
positivamente

̶ Condições extremas exigem respostas extremas!

Sem explicações ou comandos, Tunna corre em direção a uma espécie de


compartimento onde estão várias armas de diferentes calibres e tamanhos, escolhendo
uma das maiores, passa a cinta em volta do pescoço e sai correndo da cabine sem dizer
uma palavra. Hierophantes vai para mais próximo do painel de controles, onde
Tristannes opera as câmeras que devem aparecer nas telas, e vão seguindo o caminho
que percorre o guerreiro até o grande salão de desembarque da nave, que se encontrava
com o portão de acesso, do tipo rampa, a meio caminho do chão: eles sabiam que Tunna
tinha um plano.
Enquanto esperam pela ação do comandante, ainda assistem dois de seus homens
tentando sair da espaçonave portando grandes escudos, protegendo-se dos disparos de
energia que vem pela linha de frente. Porém, agora já há invasores dentro da caverna
também e, antes que Tunna tenha tempo de alertá-los sobre a emboscada, os soldados
são surpreendidos e alvejados por trás, caindo feridos ainda distantes da muralha de
pedras onde tentavam chegar.
Sem a visão completa do salão de desembarque e com o áudio completamente
coberto pelos estampidos, o comando percebe que os disparos vindos da Suppernova
repentinamente cessaram e, como consequência, logo algum tempo depois, o mesmo
acontece com os disparos que ainda vinham de fora. Aguardando a ação dos
encurralados, os invasores ficam então em prontidão, esperando pelo próximo a tentar
sair da espaçonave. Há um momento de silêncio e expectativa que deixam a todos,
dentro e fora da Suppernova, em estado de tensão e angustia. Subitamente, rompendo o
silêncio, Tunna atira alguma coisa grande para fora da espaçonave: os soldados da
Aliança, já em estados alterados da mente, assustam-se e disparam sem ao menos tentar
entender do que se tratava o objeto, causando uma enorme explosão que espalha líquido
em chamas para todos os lados, atingindo vários dos soldados que estavam mais
próximos do entorno da nave, que se debatem e se jogam ao chão agonizando e
tentando apagar o fogo, enquanto alguns poucos tentam socorrê-los.

̶ Voltem a atirar assim que eu desaparecer… (ordena o comandante)

Aproveitando-se do momento de distração que criara, Tunna Trull sai correndo em


direção a saída da espaçonave e, da rampa a meia altura, projeta um único salto e
alcança a trava do portão, uma espécie de borda na parte superior que cobre a parte mais
extrema do portão quando fechado. Ainda aproveitando o impulso inicial, realiza uma
espécie de pêndulo, impulsionando o corpo para frente, depois para trás, e na volta
projeta-se para fora girando o próprio corpo também na horizontal, soltando uma mão e
depois a outra e aterrissando já sobre no casco da nave, quase ao ponto de cair para trás.
Firmado o equilíbrio, escuta os seus homens voltarem aos disparos contra os invasores
e, antes mesmo que os soldados do rei pudessem perceber, Tunna Trull já está
movimentando-se sobre o casco espelhado da Suppernova.
Correndo mais para o centro da espaçonave Tunna visualiza dois soldados que já
haviam escalado a nave real, provavelmente vislumbrando alguma vantagem tática.
Surpreendidos com o repentino aparecimento do seu antigo comandante, um deles saca
a espada e o outro, que trazia uma arma presa numa cinta enganchada ao pescoço, faz
menção de dispará-la contra Tunna, que num ataque preciso arremessa-lhe um punhal
enquanto o soldado ainda tentava ajustar a mira, acertando-lhe próximo ao pescoço. No
mesmo movimento de arremesso, Tunna já saca a sua espada e esquiva-se da primeira
investida do outro oponente, defendendo-se com a espada da segunda tentativa e, antes
que este pudesse tentar uma terceira investida, Tunna já está com sua espada cravada no
estômago do inimigo, num golpe certeiro e mortal.
Com a movimentação, alguns soldados dentro da caverna percebem a presença de
Tunna sobre o casco da nave e tentam acertá-lo disparando uma chuva luminosa que
corta a escuridão da caverna. Tunna então joga-se deslizando sobre o casco da nave até
um ponto que julga mais seguro e então se vira permancendo de joelhos e equipando-se
com a grande arma que trouxera consigo. Faz mira em direção a Vennom e dispara
contra uma das quatro turbinas que mantém a espaçonave plainando sobre a cratera,
atingindo justamente a turbina que estava mais para fora da caverna. Com o
desequilíbrio repentino na propulsão, a turbina sobre o teto da caverna passa a ter mais
relevância e pende a nave de lado e, junto com as turbinas remanescentes, criam um
impulso de movimento que joga a nave para o lado e para baixo, derrubando a nave fora
da área da caverna e justamente sobre o exército real que esperava pelo momento de
entrar em ação.
Dentro da cabine de comando da Suppernova um intervalo de silêncio, surpresa e
olhares cruzados dá lugar a um intenso momento comemoração e euforia. Tunna Trull
mostra novamente porque se tornou uma lenda viva e é tão reverenciado em Achyros.
Enquanto isso na cabine de comandos da Tennebris Tranquilittate, que sobrevoava
bem mais acima, longe e protegida da guerra que se travava na superfície do planeta,
sem ter noção do que teria derrubado a grande nave, o intervalo de silêncio e surpresa só
é finalmente interrompido pelos gritos incontroláveis do Imperador interplanetário
quando finalmente conseguem focalizar em seus monitores o interior da caverna e veem
escorregando e descendo do casco da Suppernova, ainda portando avantajada arma, o
astuto guerreiro que, sozinho, causara a queda da maior espaçonave já construída em
toda Aria Galactica, a lendária arca cruzadora Vennom, construída para transporte dos
exércitos da Aliança e que, agora, sepulta a maior parte do último exército que
transportou.

 Com mil bichos de fedor! Que feridas no rabo o empesteiem, Tunna


Trull! Que a Sabbra Negra o carregue para as profundezas do inferno!!! Eu
vou expor sua cabeça nos quatro cantos do universo! Vou colocá-la como
troféu nalguma parede de banheiro do palácio imperial! A sua e a daquele
maldito roedor de porão, aquela ovis negra que nasceu no meio da minha
família… (esbravejava incontrolável e inconformado Cronnus Fehenna)

Enquanto isso, na Suppernova, antes mesmo que Tunna tivesse adentrado na


espaçonave, Jassco já aciona as turbinas da nave, sabia que não podiam perder o rápido
momento de vantagem causado pela surpresa da queda da grande arca, tirando-a do
chão e selando o grande portão assim que Tunna mergulha por ele. Logo a Suppernova
abandona a caverna e está voando novamente rumo ao espaço.
Ao perceber a manobra de fuga, Cronnus abruptamente toma a frente do chefe de
operações e ordena ao comandante da Appex-Predadora, uma das cinco naves que já
estavam sobrevoando mais acima fazendo a escolta da nave imperial, que entre
novamente em perseguição imediata à Suppernova:

 Travem a maldita nave no seu sistema de busca e, aconteça o que


acontecer, não abandonem a perseguição, mesmo que eles entrem em
hipervelocidade, o que é certo que farão! Acreditem em mim, vocês vão
preferir ter morrido nesta perseguição se retornarem sem a localização deles
ou, ao menos, a confirmação de que foram destruídos. Espero que tenham
me entendido!

Prontamente o comandante da Appex responde levantando o punho fechado


enquanto abaixa a cabeça, um gesto muito comum em Achyros, que significa entregar a
sua força em obediência total ao seu comandante. Todos em Achyros sabem bem do que
o rei Cronnus é capaz quando fustigado ou quando suas ordens são deliberadamente
desobedecidas. As histórias de seus atos punitivos circulam por toda o planeta, e Tunna
Trull conhecia bem de perto os métodos de seu algoz, por isso preferia morrer a ser
capturado por ele. Logo que é avisado por Tristannes de que a Appex-Predadora havia
travado a Suppernova no seu sistema de captura, sabia que dessa vez seriam
perseguidos por onde quer que fossem e até mesmo em hipervelocidade. O Sistema de
Busca e Captura é um sistema bastante eficiente criado pelos Lemurianos e equipado
em algumas naves destinadas à caça de outras naves, onde uma rede de sensores
rastreiam um determinado alvo detectando traços de energia, micropartículas e até
ondas sonoras emitidas pelo perseguido, além de se valer do próprio sonar da nave, que
emite ininterruptamente uma carga de raios de luz emitidos em todas as direções que
viajam pelo espaço e batem em possíveis obstáculos a milhares de quilômetros e
retornam como que refletidos por esses obstáculos, informando assim a sua posição;
tudo isso em uma pequena fração de segundos. O Sonar, por si só, já funcionam tão bem
que, a depender da distância onde se encontra o obstáculo, consegue-se até fazer uma
projeção em três dimensões do objeto detectado. Com o sistema de captura travado, os
processadores de dados da própria nave é que a conduzem em direção ao alvo, tornando
muito difícil para o perseguido despistar o algoz.
Tunna, informado sobre a aproximação iminente da Appex, ordena ao chefe bélico,
Vyrr Belatthor, que solte uma carga de minas espaciais pelo caminho por onde a Appex
passará, se mantiver a rota em direção da Suppernova. Apesar das minas explosivas se
espalharem pelo espaço, cobrindo uma grande área, os eficientes sistemas da Appex
identificam as cargas, oferecendo-lhes rotas alternativas e, considerando-se ainda que
uma perseguição espacial baseada nos sistemas de busca captura permite ao perseguidor
movimentar-se em várias direções sem perder o alvo travado, a predadora desvia-se
facilmente da zona onde as minas foram liberadas sem, sequer, desacelerar.
Sob o olhar atento de Hierophantes, que assiste a tudo sem ser consultado, Tuuna
ordena então que novas cargas sejam liberadas, mas desta vez arremessadas à longas
distâncias e em várias direções, esperando que, mesmo que a Appex desvie, algumas
dessas minas acabe encontrando o alvo desejado.
A nave de caça identifica as minas lançadas e as informa aos seus pilotos e operador,
que diminuem a velocidade antes de serem atingidos. Utilizando-se de canhões de pulso
eletromagnético, os bélicos conseguem inutilizar os artefatos mais próximas a nave e,
desguiando-se da maioria delas, aceleram novamente em direção à Suppernova.
Percebendo a reaproximação da Appex e a ineficácia das minas para detê-los, Tunna
instrui Abennay que tente alvejar a Appex-Predadora, que já se aproxima
perigosamente. A agilidade da predadora se faz superior, inda mais na distância que
mantêm como segurança, desviando-se e, a partir daí, disparando também contra a nave
fugitiva. A Appex mantêm-se no encalço.

 Comandante, os sonares da nave informam que existem duas prováveis


espaçonaves vindo pela frente. Ainda estão distante mas estão vindo ao
nosso encontro! (avisa Tristannes)
 Pela ira de Inffestus! Provavelmente entraram em hipervelocidade e nos
ultrapassaram, agora estão vindo pra nos encurralar (deduz Tunna Trull).
Maldito seja, Cronnus… o infeliz é bem esperto! (…) Agora nós é que teremos
que entrar em hipervelocidade, mesmo sem rota… é a nossa única chance de
fugir. (enfatiza Tunna Trull).
 Mas comandante… (Jassco, com sua conhecida cautela tenta intervir,
mas contem-se, entendendo que agora não existem muitas opções).
 Eu prefiro a incerteza de uma fuga em hipervelocidade, sem rota, Jassco,
do que a certeza que morreremos aqui, se não tentarmos… (sentencia
Tunna).

Jassco balança a cabeça lentamente olhando para o comandante e suas feições


retorcidas indicam que não está nada confortável com a incerta opção que lhos resta.

 Recolham as armas, lacrem as placas e emitam o alerta: vamos entrar em


hipervelocidade imediatamente! (determina Tunna Trull, mais uma vez sem
consultar Hierophantes, que pelos seus olhares, parece não estar nada
satisfeito com tanta autonomia por parte do guerreiro)

As ordens do comandante são postas em prática sem esperar pela confirmação de que
todos estivessem sentados e afivelados dentro da nave. Assim, a as placas energéticas
em volta da Suppernova começam a acender novamente, enquanto a nave vai
aumentando rapidamente a sua velocidade, até restar visível apenas o rastro de luz,
semelhante ao de uma estrela cadente, rasgando o espaço.
A espaçonave que vinha logo a frente tentando encurralá-los é surpreendida pelo
inesperado rastro de luz que passa bem ao lado e, por onde passa, produz uma dobra
energética que mexe com a estrutura da nave, causando-lhe um leve tremor.
Mal haviam entendido do que se tratava o rastro de luz quando são novamente
chacoalhados por outro, que passa no mesmo sentido, logo abaixo da espaçonave, dessa
vez bem mais próximo, quase causando uma colisão: era a Appex-Predadora em sua
perseguição incondicional.
A velocidade atingida pelas naves hipervelozes era tão descomunal, que superava a
própria velocidade da luz! As naves viajavam protegidas por uma espécie de campo
energético gerado pelas placas do Sealcon em volta da nave, que as isolava do resto do
universo, criando dentro da espaçonave um ambiente seguro, porém, onde as regras
físicas convencionais eram distorcidas e até mesmo desaceleradas. O próprio tempo
passa mais devagar em uma nave em hipervelocidade: testes cronometrados
comprovaram que marcadores de tempo iniciados ao mesmo tempo, e onde um deles foi
levado a uma viagem em hipervelocidade, ao fim da jornada, o que foi levado na
espaçonave apresentava pouco mais de sessenta por cento da contagem de tempo
medida pelo marcador que permaneceu imóvel ou em movimento em velocidades
convencionais. É como se houvesse uma viagem no tempo, saltando-se para frente. E
quanto mais tempo se permanece em hipervelocidade, maior é a diferença ou o salto. O
simples ato de se locomover ou apenas movimentar-se em uma espaçonave em
hipervelocidade torna-se mais lento; a queda de um objeto pode ser acompanhada em
toda a sua trajetória pelo olhar e raciocínio porém, é tão difícil de ser impedida quanto
em um ambiente normal, pois, não só o objeto cai mais lento, como o braço que tenta
impedi-lo de cair também. O raciocínio parece ocorrer de modo convencional, no
entanto, em um estado constante de sonolência leve. Toda essas distorções causam dores
de cabeça que podem ser muito fortes, além de elevado estresse muscular e náuseas,
tornando-se recomendável permanecer em hipervelocidade apenas o tempo mínimo
necessário, ou hibernar em cápsulas de estase, se a distância a ser percorrida for muito
longa e demorada. Na Suppernova, no entanto, apesar do tempo decorrido nesta fuga,
nenhum dos tripulantes utilizara as cápsulas de estase; primeiro porque todos estavam
demasiadamente tensos com a possibilidade de uma colisão com qualquer elemento
espacial, o que pulverizaria a nave instantaneamente; e segundo porque todos
precisavam ficar alertas pois a telemetria da nave indicava que a Appex-Predadora
continuava com a nave real travada no seu sistema de captura, e acompanhando-os a
uma distância hábil que pudesse lhes possibilitar uma mudança de trajeto conforme o
destino da nave em fuga. Tuna sabia que assim que desacelerassem, agora longe da
visão de Cronnus, a primeira reação dos tripulantes da Appex seria a de tentar por fim a
esta perseguição insana definitivamente, atacando e destruindo a Suppernova e
retornando para casa com a notícia do desfecho “inevitável”. Até mesmo a
desaceleração poderia resultar em colisão das duas espaçonaves.
Muito tempo já se passara e a essa altura todos na Suppernova sentiam os efeitos da
viagem, mas o príncipe Hierophantes, o único na nave que não recebera o treinamento
apropriado para as viagens em hipervelocidade, era visivelmente o mais atingido pelos
efeitos da situação extrema. Sentia dores de cabeça quase insuportáveis, seu corpo
também doía muito e parecia tomado por um cansaço mortal; tudo que lhe vinha a
cabeça era a vontade de acabar logo com essa jornada agonizante. Afivelado na poltrona
para não cair sobre o painel, olhava fixamente pros controles do sistema de
hipervelocidade e tudo que pensava era em desacelerar… Subitamente, na tela ao lado,
uma frase vermelha começa a piscar e lhe força a desviar a atenção: “Mudança de rota
imediata acionada”! Só houve tempo para um único pensamento: COLISÃO! Nesse
momento sente uma força descomunal sobre seu corpo, forçando-o contra a poltrona e
ao mesmo tempo tentando separar sua cabeça e membros do tronco; uma dor
insuportável invade todo seu corpo e então… apaga…

* * *

 Tunna... Tunna, acorde homem... Sente-se bem? Sou eu, Bellchior…


Pode me ouvir?

Lentamente Tunna Trull vai recobrando os sentidos e a imagem turva que consegue
enxergar vai se transformando na figura de Bellchior, sentado no assento logo ao lado,
gesticulando enquanto aperta o seu pulso, como se estivesse tentando medir a sua
pressão cardíaca. Mal consegue, finalmente, reconhecê-lo e repentinamente tudo fica
escuro novamente. Balança a cabeça assustado, pisca os olhos, no entanto não consegue
de forma alguma enxergar mais nada. Por mais que pisque ou massageie os olhos, a
escuridão não cessa.
 Bellchior, o que houve? Não exergo nada! Será que levei alguma
pancada que me afetou a visão?! Mas estava enxergando ainda a pouco!…
 Calma, meu jovem... espere um pouco, a luz voltará.

Repentinamente, assim como veio a escuridão, a luz invade a cabine de comando


como se o sol tivesse acabado de nascer nos visores frontais da nave. Tunna tenta focar
na fonte da claridade mas a luz é muito forte, impossível de se encarar. Tunna tenta
então enxergar Bellchior mas percebe que a fonte da luz percorre rapidamente as
enormes telas que servem como visores da nave para o mundo externo, e assim
percorrendo a grande janela, como veio, some novamente, jogando a nave outra vez na
escuridão!

 Que raios está acontecendo aqui?!


 Estamos a deriva no espaço, Tunna… girando indefinidamente na
direção do sol desse sistema solar. Estamos sem energia e sem gravidade.
Provavelmente a Appex conseguiu nos alcançar e, dalguma forma, conseguiu
nos alvejar, mas não nos destruir por completo. Espero que os computadores da
nave tenham apenas se autodesligado com o ataque, pois se as baterias da nave
tiverem sido avariadas ou destruídas… aí sim estamos perdidos… Precisamos
tentar reiniciar os computadores. Já tentei reativá-los manualmente mas o painel
não responde. Quando a nave entra neste procedimento de segurança, os
comandos do painel são desabilitados para evitar que objetos ou pessoas soltas
dentro da cabine acionem os botões inadvertidamente.

Apesar de escutar o que o cientista fala, Tunna ainda não se sente nada bem. A
tontura é agravada pelo ofuscamento causado pela luz que entra na cabine e logo vai
embora jogando a nave novamente no breu profundo antes mesmo que os olhos possam
se acostumar à luz. Sente ainda dores por todo o corpo, agravadas por qualquer
movimento que faça.

 E há alguma coisa a fazer, ou vamos ficar aqui girando até eu vomitar?


 Quando a luz voltar, tente localizar uma alavanca próxima aos armários
de equipamentos. Essa alavanca é uma espécie de ignição de emergência dos
sistemas elétricos da nave. Se ainda houverem baterias ou se ainda houver
energia nas baterias, os computadores podem ser religados puxando aquela
alavanca.

Com a volta da claridade à cabine mais uma vez, Tunna vira-se o máximo que pode e
consegue localizar a alavanca que recordava já ter visto anteriormente e, mesmo ainda
se sentindo muito mal, sabia que precisava acionar o dispositivo o quanto antes, para
que Bellchior pudesse tentar parar com a quela rotação infernal.

 Preste atenção… (continua Bellchior de Calabbar, com sua fala


compassada) Antes de soltar os cintos, certifique-se de ainda estar pr… (mal o
cientista começara a lhe passar sua próxima instrução e precipitadamente Tunna
destrava os cintos que o mantinham preso ao assento e inadvertidamente se
empurra sutilmente para longe da poltrona. Logo está flutuando
descontroladamente pela cabine)… ̶ Você é muito afoito, meu jovem. Você
devia ter se mantido preso ao assento para poder se projetar em direção à parede
onde se encontra a alavanca… E agora, como pretende chegar lá?
 Maldição, que loucura é essa?! Mal consigo me manter em uma única
posição! E agora, o que é que eu faço? Não consigo me estabilizar…
 Você precisa encontrar algum ponto de apoio ou encostar em alguma
coisa de onde você possa se projetar…

Tunna tenta a todo custo projetar seu corpo em qualquer direção porém, agora a
mercê da falta de gravidade e da inércia, só a rotação da nave consegue movê-lo
lentamente, e cada vez para mais longe do assento onde estava. Intercalando momentos
de intensa claridade e completa escuridão a nave continua girando sucessivamente,
permanecendo bem mais tempo às escuras. Em um desses mergulhos nas trevas,
sutilmente Tunna sente que algo encostou em suas costas e, instintivamente, vira-se e
agarra o objeto como se achasse ter tocado algum ponto de apoio. Ao tocar o elemento
desconhecido ainda no escuro, as sensações de imediato lhe revelam não se tratar de
alguma parte sólida da nave, mas sim algo úmido, pegajoso… ( ̶ Que raios será isso?!!)
A luz então invade novamente a cabine de comando e revela a macabra situação: Tunna
encontrava-se agarrado e já praticamente envolto ao corpo estraçalhado de um dos seus
companheiros de cabine! ( ̶ Com mil bichos de fedor! Maldição!) Afoito Tunna tenta
escapar das entranhas que o cercam e acaba por se emaranhar ainda mais nas vísceras
flutuantes. A escuridão domina novamente a cabine de comando e Tunna, afoito, só
piora a sua própria situação. Naquele duelo infeliz, de tentar escapar das vísceras de
algum dos seus amigos, Tunna flerta com o desespero, até que, como num despertar da
força, apunhala o drama e para de se debater, e então espera pelo próximo ciclo de luz…
Desde que despertou do impacto, esse é o primeiro momento que Tunna para e se
permite raciocinar sobre toda aquela situação: percebe o quanto estava descontrolado,
fora de si. Sabe que não costuma ser assim e então, como que apreciando o silêncio e a
escuridão, espreguiça-se e estira o máximo que pode o próprio corpo, e então espera
calmamente. Com o retorno da luz à cabine, Tunna consegue se desvencilhar das
entranhas do cadáver mas, antes mesmo de estar completamente livre, percebe, preso à
cinta do pobre infeliz, uma arma de projéteis de grosso calibre. Nesse momento o Tunna
Trull astuto e equilibrado já está no comando dos seus instintos novamente e, antes que
o cadáver estivesse longe de sua mãos, Tunna o agarra novamente e lhe toma a arma
que está presa a sua cintura.

 Não, espere! O que você pretende fazer com esta arma? (pergunta
Bellchior, que até então assistia a tudo calado)
 Você já atirou com uma destas? Já vi pessoas serem jogadas no chão
com o coice desta arma. Vou usá-la como propulsor para chegar até a alavanca…
 Você está louco, meu jovem?! De onde você está, teria que disparar justamente
em direção ao visor externo da nave para conseguir chegar até a alavanca com o
coice. Sei que dizem que o visor é inquebrável mas, de fato, não o é. Dentre as
dezenas de esferas metálicas dentro do cartucho que se espalharão pela cabine
com o disparo, uma única que venha a atingir o visor, já seria suficiente para
causar uma leve fissura ou mesmo uma trinca, o que, devido à diferença de
pressão entre o meio externo e o interior da nave, destruiria completamente o
visor e nós seríamos tragados e jogados ao espaço aberto! Lembre-se que é por
isso que só viajamos com o visor coberto pela carenagem da nave, e ele só está
aberto agora porque faz parte do procedimento de emergência da nave abri-lo
em caso de falta de energia, para deixar entrar a iluminação externa.
 Calma, homem, você fala demais! Sei o que faço, não sou louco…

Antes mesmo que Bellchior pudesse argumentar mais alguma coisa, Tunna Trull
força até dobrar o cadáver do ex-colega ao meio. ( ̶ Bartton, meu amigo, longe de mim
querer desonrar o corpo de um guerreiro de respeito como você, mas é preciso. Você nos
ajudará mais uma vez, e mesmo depois de morto) Coloca então o cano da arma
diretamente no corpo sem vida e encosta a extremidade oposta da arma no centro da
própria barriga e dispara! O forte estampido estoura o corpo moribundo espalhando
sangue e entranhas por toda a cabine de comando e, com o coice, Tunna é arremessado
em direção a uma das paredes da espaçonave. Ao se chocar de costas com os armários
na parede, Tunna ricocheteia, mas vira-se rapidamente e, por muito pouco, quase não
conseguindo agarrar em nada, salvo por uma das portas abertas de um desses armários,
localizados a alguns metros da alavanca onde pretendia agarrar.
Assim que consegue estabilizar-se, Tunna olha para Bellchior e ri, enquanto ele
assiste a tudo estático, boquiaberto e coberto pelos restos mortais do corpo alvejado.

 Acorda homem. Vai me ajudar ou vai ficar só olhando?


 Suas costas… está sangrando…

Tunna tinha um corte nas costas, provavelmente causado pela porta do armário ao
qual se chocara, além de um grande hematoma no local onde havia apoiado a arma. Do
corte saía um filete de sangue que flutuava. Tunna guarda na sua cinta a arma que ainda
estava segurando, cospe na mão e pressiona sobre o corte, olha para a alavanca que
precisa alcançar e, com toda força do braço que mantinha segurando na maçaneta,
arremessa-se em direção ao seu objetivo. Num voou certeiro Tunna finalmente alcança a
alavanca e move-a, porém, nada acontece!

 Pela espada de Virggo, nada aconteceu! Agora estamos mesmo ferrados!


 Calma, meu precipitado amigo. Você mal parou para ouvir as minhas
instruções! Isso não é um botão que precisa ser ativado, é uma alavanca de
acionamento motora da ignição. Precisa ser movida com força e velocidade para
gerar a energia que acionará a ignição. Coloque-a de volta na posição original e
acione novamente, dessa vez com mais força.

Sem gravidade, Tunna mal consegue apoio para levar a rígida alavanca à posição
original. Bellchior, que assiste a tudo, entrega-se às gargalhadas ao ver o grande
guerreiro tentando reverter a posição da alavanca enquanto luta contra a falta de
gravidade.

 Meu jovem, entenda a falta de gravidade. Use-a a seu favor. Você pode
apoiar-se na própria parede para puxar a alavanca.

Tunna olha para todo o cenário e entende a luta boba e desnecessária que disputava
contra a gravidade, e ambos caem no riso. Assim, projetando-se para cima, Tunna apoia
os dois pés na parede e puxa a alavanca de volta. Mal a colocara na posição original e já
usa toda a sua força para acioná-la novamente. Desta vez, ouve-se um barulho e em
seguida um zumbido; logo um dos painéis da nave acende-se e Bellchior, que estava
próximo ao painel, aciona um dos botões. A partir daí, novos zumbidos são ouvidos e as
telas de navegação da nave começam a se acender junto com os computadores e demais
painéis.
( ̶ Ainda temos energia!!!) O entusiasmo de Bellchior é uníssono porém abafado
pelos gritos e murros de Tunna Trull na lataria da nave, e estes interrompidos pelos
informativos automáticos de voz emitidos pelos computadores da nave: “Iniciando
análise de danos após impacto em curso”, … “Danos à integridade física da espaçonave
não impedem o restabelecimento da gravidade artificial”, …

* * *

Restabelecida a gravidade e passado os primeiros momentos de euforia, Bellchior de


Calabbar começa imediatamente a testar os computadores, sistemas e a analisar os
relatórios de danos da nave. Tunna trata de tentar acordar os demais ocupantes da cabine
de comando e analisar os ferimentos que precisem de tratamento.
Hierophantes acorda lentamente, ainda com a cabeça sangrando, e tenta entender o
que acontecera: a cabine de comando aparenta ter sido chacoalhada. Tudo que estava
nos armários agora parece estar espalhado por toda a parte. Manchas que parecem
sangue estão por todo lado e logo descobre o que parecem ser as carcaças retorcidas de
dois dos seus guardas pessoais: seus corpos destroçados aparentam terem sido jogados
diversas vezes contra as paredes da cabine. Ainda atordoado ele tenta recordar mas não
consegue lembrar o que houve:

 O que aconteceu aqui, eles conseguiram nos alcançar? Fomos alvejados?


 Alteza, ao que tudo indica, parece que nos chocamos com alguma coisa a
deriva no espaço. Pelo menos é o que informa a telemetria da nave… um
meteorito talvez… Mas a nave resistiu ao impacto e parece que não houve
descompressão. Os computadores não identificaram nenhuma fissura grave no
casco! Devemos ter nos chocado apenas de raspão, mas parece que algumas
placas externas foram danificadas… (informa Bellchior)
 E a Appex, algum sinal deles?
 Os computadores foram desligados com o impacto. Quando acordei a
nave estava girando à deriva no espaço e estávamos sem energia e sem
gravidade. Quando conseguimos reiniciar os computadores e estabilizar a nave,
já não havia mais sinal deles no radar.
 Talvez nem tenham percebido que nos chocamos e tenham seguido em
hipervelocidade e se distanciado de nós. Dependendo da distância podem até
ter perdido o nosso rastro… (acrescenta Tunna Trull) Mas precisamos voltar
ao local do impacto para saber se não estão por lá nos procurando.
Precisamos acaber com essa perseguição de uma vez por todas ou, pelo
menos, saber se ainda corremos perigo…
 E a tripulação, tivemos muitas baixas? (virando-se para Tristtanes, numa
ação que pareceu uma tentativa de não dar importância à última colocação de
Tunna.)
 Ainda não sabemos, senhor… Mas creio que todos que viajavam sem os
cintos travados foram arremessados contra as paredes da nave e devem estar
mortos. Não acredito que sejam muitos, afinal de contas, estávamos viajando em
Hipervelocidade e quase todos deviam estar afivelados. Já pedi que fosse
informado à cabine de comando todos os mortos e também os feridos graves que
não podem ser tratados… (responde Tristtanes)
 (Bellchior aproxima-se novamente e, dessa vez, o olhar preocupado
denuncia as más notícias) Alteza, alguns sistemas foram comprometidos e não
respondem, inclusive o Sealcon, provavelmente por causa das placas do casco
que foram destruídas. A nave ainda pode viajar mas de forma precária. Para
continuar precisaremos pousar nalgum lugar para reparos. No espaço a
manutenção seria bem mais complexa e levaríamos tempo demais para resolver
todos os problemas. Nossos computadores indicam que estamos em um sistema
solar já catalogados pelos Lemurianos, com vários planetas para tentarmos
pousar. Um deles está bem próximo. Aconselho o pouso neste planeta para
realizarmos, o quanto antes, a manutenção da nave.

Sem dar chances para que o ex-conselheiro real tomasse alguma decisão, Tunna
interrompe a conversa e determina:

 Tudo bem, vamos a este planeta… mas depois! Primeiro precisamos


voltar ao local do impacto. Precisamos saber se Appex ainda é um problema
para nós. Precisamos saber se estamos sujeitos a um outro ataque surpresa…

Todos na cabine surpreendem-se pois entendem que Tunna acabara de chamar, sem
rodeios, o comando da situação para si e ainda esperam alguns segundos por alguma
reação por parte de Hierophantes que, apesar de visivelmente desconfortável, mantêm-
se calado.

 Vamos homens, o que estão esperando? Corram, precisamos o quanto


antes resolver essa situação (determina Tunna, pondo fim àquele momentos
tensão).

De fato, as ações táticas sempre foram determinadas por Tunna Trull, mas sempre
submetidas ao aval de Hierophantes, que as transmitia ao restante da tripulação como
uma ordem sua. Percebe-se um certo ar de contentamento entre os tripulantes da nave
com a atitude de Tunna Trull, já que, este sim, tem o respeito e a admiração da
tripulação e do exército, e por suas conquistas e feitos, e não simplesmente por ser
irmão do imperador. Coloque-se na balança ainda o respeito e atenção que Tunna
dispensa a todos indiscriminadamente, em contrapartida à empáfia e soberba do ex-
conselheiro real, só diminuída se comparada ao do próprio imperador Cronnus, e
entende-se porque todos preferem os comandos diretos do lendário guerreiro.
A equipe científica e de manutenção da nave tratou de começar rapidamente os testes
necessários, verificando todos os componentes indispensáveis para que se pudesse
acionar os propulsores da nave. Todos temiam que a Suppernova não pudesse mais voar
depois do forte impacto e houve comemoração na cabine de comando quando as
turbinas foram finalmente ligadas.
Bellchior, temendo a pane completa do sistema de propulsão, alerta ao comandante
que deveriam esquecer o ponto do impacto e, o quanto antes, se dirigir ao planeta
próximo para efetuar os reparos na nave pois, impossibilitada de produzir sua própria
energia, a Suppernova viajava agora queimando o combustível fóssil estocado em seus
tanques. Destinados para percorrer pequenas distâncias, os combustíveis fósseis
limitavam drasticamente a velocidade da nave e traziam o temor de uma “pane seca”, o
que os jogaria a deriva e os forçaria a tentar realizar os reparos no casco da nave e no
Sealcon em pleno espaço.
Apesar dos argumentos de Bellchior, Tunna também sabia que precisavam afastar de
vez a possibilidade de uma nova perseguição, ou mesmo estarem preparados para um
possível ataque. Assim retornaram ao local indicado pela telemetria como o ponto de
impacto. Surpreenderam-se com a longa distância percorrida pela nave após o impacto,
mas surpresa ainda maior foi causada pela visão do enorme meteoro ao qual haviam se
chocado: uma gigantesca rocha negra, aparentemente orbitando lentamente o grande sol
desse sistema, e onde a Suppernova batera apenas de raspão, e isso graças aos
avançados equipamentos de detecção da espaçonave, que ligeiramente efetuaram uma
leve mudança de direção, evitando o choque direto, e restringindo à colisão a apenas
uma pequena elevação rochosa do meteoro. A mesma sorte não tiveram os tripulantes da
Appex-Predadora, que atingiram em cheio a grande rocha espacial e foram
instantaneamente estraçalhados com o impacto, deixando apenas um emaranhado de
destroços espalhados pelo espaço, além de uma enorme cratera na superfície irregular
do grande meteoro.
Hierophantes, Tunna e toda a sua Armada Insurgente foram, mais uma vez, salvos
pela grande nave, que agora era também tudo o que lhes restava. Perseguidos, correndo
risco de execução e forçados a sair além das fronteiras de Aria Galáctica, agora só lhes
restara mergulhar rumo ao desconhecido; Continuar e ir além…
* * *

Localizaram nos mapas espaciais o tal planeta mais próximo, lá estranhamente


identificado pelo nome de Tanathos, o que causou estranheza aos navegadores da
Suppernova, já que todos os planetas fora de Aria Galactica são identificados apenas por
siglas e números, sendo este o único planeta fora dos domínios da Aliança a ser, de fato,
nomeado! Os mapas espaciais são produzidos pelos Lemurianos que, por interesses
próprios, se dedicam a observação e varredura espacial. São eles que estabelecem as
siglas que denominam os planetas e estas sempre indicam a posição dos planetas em
relação ao seu próprio planeta. São letras seguidos por uma numeração crescente,
conforme vão sendo encontrados/observados em um determinado setor. O motivo pela
qual apenas aquele planeta fora nomeado intrigava a todos, mas a necessidade de pousar
e efetuar os reparos na espaçonave era indiscutível e primordial, e assim, viajando
lentamente, adentraram a atmosfera escurecida do desconhecido planeta.
Tanathos era um planeta grande que orbitava um sol de primeira grandeza em um
sistema solar com mais de uma dezena de planetas. Os outros planetas desse mesmo
sistema solar eram também identificados por siglas, como todos os outros fora de Aria
Galáctica, o que aumentava a estranheza e curiosidade. Além disso, os outros planetas
do sistema estavam à distâncias maiores, o que aumentava o temor de um possível
agravamento dos problemas da nave. O fato deste planeta ter recebido um nome
causava ainda maior curiosidade em Bellchior, que tratou de transmiti-la a
Hierophantes, tendenciosamente cogitando a possibilidade de haver alguma vantagem
específica naquele planeta que poderia ter sido descoberta e não divulgada pelos
Lemurianos, ou até mesmo, quem sabe, abrigasse uma base ou posto avançado daquele
povo, já que eles agiam livremente em suas viagens e pesquisas, sem prestar qualquer
satisfação a quem quer que fosse, nem mesmo ao grande Imperador Regente que,
temendo perder o apoio e o amparo tecnológico de Lemuria, muito pouco interferia no
modo como eles se organizavam ou desenvolviam suas pesquisas pelo universo. Se
houvesse ali uma base Lemuriana, seria sim muita sorte ter encontrado justamente
aquele planeta pelo caminho, já que eles, pacíficos e solícitos, não mediriam esforços
para ajudar-lhes a consertar a nave e até mesmo em fornecer-lhes o que precisassem
para que pudessem seguir viagem.
Mas, para Bellchior em particular, significava muito mais: aquela poderia ser a
última chance de voltar para casa, já que entrara naquela desastrosa aventura por acaso e
completamente contra a sua vontade! E Hierophantes, esperançoso, desconhecia as suas
verdadeiras intenções.
Bellchior de Calabbar, chefe do Conselho Maior das Ciências de Achyros, era
homem da maior credibilidade entre os Achyronianos. Apesar de ser filho de Oddara de
Calabbar, homem que ficara mais conhecido como O Bruxo de Earenddel, renomado
alquimista e místico que fora alçado ao cargo de Conselheiro Real, tanto do rei
Earenddel Fehenna, quanto do seu sucessor, o rei Olifantte, Bellchior não abraçara as
crendices sobrenaturais do pai, escolhendo a luz da ciência como sua crença. E tornara-
se reconhecido por seus próprios méritos, sendo consensualmente aclamado como uma
das mentes mais brilhantes de toda Achyros. Estava para a ciência assim como Tunna
Trull estava para a guerra no imaginário daquele povo, e contribuiu enormemente, não
só para todos os avanços científicos em Achyros nas últimas décadas, como também
para entender e adaptar as tecnologias oferecidas pelos Lemurianos ao seu povo. Apesar
de aceitar a função de chefe das equipes de tecnologia e pesquisa da Suppernova, não
fora conscientemente ou por escolha própria que participara daquela frustrada tentativa
de golpe. Só estava naquela nave, naquela oportunidade, unicamente por ordens do
imperador Cronnus Fehenna que, considerando-o o mais apto para entender os segredos
tecnológicos da sua cobiçada nova espaçonave, não pensara duas vezes para designá-lo
como chefe científico da missão de busca do novo veículo oficial do Imperador. Fato
mesmo é que nenhum interesse havia para ele naquele motim, pois já ocupava o mais
alto posto que alguém na sua área de atuação poderia ocupar, e nada diferente disso lhe
interessava. E, ainda que o motim obtivesse sucesso, ocuparia exatamente a mesma
função junto ao novo rei. Na verdade ficara bastante surpreso com tudo que se sucedeu
e, diante do insucesso da rebelião e daquela fuga sem destino, via sua vida e família se
distanciando cada vez mais conforme adentravam rumo ao desconhecido. Sabia que se
retornasse ao seu planeta e explicasse ao rei Cronnus que não tivera ação consciente na
traição, dado o seu prestígio e importância junto ao imperador, certamente teria
restabelecida as suas funções. Mas sabia que seus companheiros de fuga jamais
poderiam retornar: destino bastante diferente do seu os aguardava em Achyros, caso
retornassem. Bell creditava que, caso encontrassem uma base lemuriana naquele
planeta, seria a chance perfeita para fugir e tentar voltar para casa, deixando os
revoltosos entregues a própria sorte que cultivaram.
Tanathos, no entanto, não mostrava-se um planeta muito acolhedor: a atmosfera era
escurecida, como que esfumaçada, provavelmente decorrente da alta atividade vulcânica
que, ao que parece, era constante por todo o planeta. As nuvens densas e escuras,
carregadas de fumaça e fuligem, dificultavam a passagem da luz solar e, por todo o
lugar que sobrevoaram, havia uma chuva forte que parecia se precipitar
ininterruptamente. Para uma melhor visualização da superfície foi preciso sobrevoar à
baixa altura, por baixo das nuvens mais densas, o que limitava a amplitude do campo de
visão da nave. Sobrevoaram uma boa parte do planeta em busca de qualquer sinal dos
Lemurianos, ou qualquer coisa que pudesse ter despertado o interesse desse povo e,
apesar de terem percorrido uma boa parte do enorme planeta, nada foi visualizado que
pudesse, de fato, interessar ao grupo ou a quem quer fosse. Por onde passaram
identificaram grandes focos de vegetação, porém eram vegetais de cores escuras e
formatos que causavam estranheza. A telemetria detectou a existência de criaturas de
pequeno porte se movendo em terra firme. Diante dos últimos acontecimentos, desta
vez resolveram pousar em campo aberto, em um lugar que lhes garantisse melhor visão
e sem a possibilidade de serem encurralados, como ocorrera em Alduruna. Visualizaram
um imenso planalto rochoso, com a superfície superior incrivelmente plana, cortado por
uma espécie de cânion escuro e coberto por vida vegetal, o que poderia indicar a
existência de um rio ali embaixo, e até mesmo de animais para a caça. Tunna entendeu
ser um bom lugar para pousar. Na verdade era quase perfeito, parecia até uma pista de
pouso…

 Com mil bichos de fedor, esse planeta é uma porcaria! Não pode haver
nada aqui que possa justificar o interesse dos Lemurianos (resmungou
decepcionado Tunna Trull).
 Deve haver fontes de minério ou algum material energético no
subterrâneo. Não acredito que eles nomeariam este planeta a troco de nada.
(ponderou Bellchior) Não é do feitio deles…
 E os computadores da nave, já concluíram a análise da
atmosfera? (pergunta Hierophantes)
 Deixe-me ver… As análises indicam a existência de uma boa quantidade
de oxigênio na atmosfera… O suficiente para ser respirado por nós, inclusive…
O problema é que existem também inúmeros outros gases tóxicos em
abundância nesta atmosfera, como a amônia e o enxofre, o que provavelmente é
decorrente da grande atividade vulcânica do planeta. Até é possível respirar sem
equipamentos, mas por um período muito curto de tempo. Creio eu que uma
exposição acima de cinco minutos poderia causar sufocamento e até sérios danos
aos pulmões e ao cérebro! Essa chuva forte também é rica em enxofre: é o que
poderíamos chamar de chuva ácida, e pode queimar a nossa pele se nos
expormos por muito tempo a ela. Me parece ser uma atmosfera em
transformação e ainda faltam alguns milhares de anos para que venha a se tornar
um planeta adequado à nossa espécie… Precisaremos usar os trajes de proteção
quando desembarcados. As criaturas detectadas até o momento são de pequeno
porte, mas se sobrevivem num planeta como este, melhor tomar muito cuidado
com elas. Os vegetais, pelo mesmo motivo, também precisarão ser estudados,
afinal podem ser venenosos para nós. Se houver um rio ao fundo desse cânion,
com toda essa chuva ácida que cai, provavelmente será ácido também…
 Resumindo, é melhor tomar todo o cuidado ao pisar na porcaria deste
planeta. (sentencia, irritada, Tristtanes).

Os resultados das análises só trouxeram ainda mais dúvidas para Hierophantes e


Bellchior, que ficaram ainda mais curiosos por descobrir o segredo daquele planeta
misterioso. O que teria chamado a atenção dos Lemurianos neste planeta? Porque o
destacaram dentre tantos outros? Logo este planeta tão inóspito!

* * *

Concluído os procedimentos de pouso e orientação da tripulação, um a um os


soldados iam vindo dos alojamentos, já vestindo os trajes especiais, e se agrupavam em
fileiras em frente ao portão de desembarque, esperando pela ordem para desembarcar.
Com suprimento de ar, comunicadores, câmeras e isolamento total do meio externo, os
trajes eram bastante tecnológicos e projetavam no próprio visor frontal uma série de
informações sobre o traje, sobre o próprio usuário e sobre o meio em volta. Apesar de
bastante resistentes e de apresentarem muitas informações úteis, os trajes desagradavam
muito os soldados Achyronianos pois, segundo eles, reduziam bastante a agilidade em
combate.

 Central, eu estou vendo errado ou esses trajes realmente não estão com as
baterias totalmente carregadas?! (pergunta pelo comunicador Haggarde de Ithe-
ria, chefe do Primeiro Pelotão)
 Humm… Pela centelha de Eruddis… confere, Haggarde!… Esses trajes
são fabricados e as baterias recebem a primeira carga para os testes. Os testes
são minuciosos e são verificados o funcionamento de cada item do traje, o que
consome boa parte dessa primeira carga da bateria. As baterias devem ser recar-
regadas posteriormente para que os trajes estejam prontos para o uso. Provavel-
mente, com a pressa inconsequente de Cronnus para receber logo esta nave, não
houve tempo para recarregá-las após os testes. E com toda essa confusão e cor-
reria, ainda não tive tempo e nem oportunidade de verificar esses detalhes. (res-
ponde Bellchior)
 Então é melhor não utilizar, estas porcarias. Se as baterias descarregarem
totalmente, esses trajes só vão fuder com a gente! (interfere Borknaggah, chefe
do Segundo Pelotão, que também aguarda para desembarcar)
 Negativo, Bork. Segundo Bellchior, não é possível permanecer lá fora
sem os trajes… (responde Tunna)
 Então teremos que encurtar essa operação… (observa Haggarde)
 Nesse primeiro momento tentaremos não exigir muito dos trajes, Haggar-
de. A manutenção da nave precisa ser feita e não sabemos quanto tempo vai de-
morar… Depois veremos o que pode ser feito. (acrescenta Tunna)

Desta vez, uma verdadeira operação de defesa e contra-ataque fora montada para o
desembarque. Com os holofotes externos da nave cortando a escuridão do enorme
planalto, o Primeiro Pelotão desembarca: todos vestindo os trajes especiais e
empunhando armas de energia dirigida (armas de raios) que, apesar de mais leves e
versáteis, também não agradava aos Achyronianos, que preferiam as armas de projéteis,
barulhentas e capazes de produzir estrago bem aparente no inimigo. Traziam ainda as
suas inseparáveis espadas presas à cintura, aparato que todo guerreiro de Achyros
carregava por onde quer que fosse e nenhum chefe ou general se opunha ao seu porte. A
espada era considerada a arma primordial para aquele povo guerreiro: consideravam
honrosa a luta e morte pela espada. Estavam ainda todos conectados por comunicadores,
outro aparato que os guerreiros Achyrones pouco apreciavam: preferiam soltar seus
palavrões e zombarias livremente, sem a central de comando escutando e gravando suas
conversas. Com Haggarde a frente, desembarcaram em passo acelerado, mirando tudo e
em todas as direções, posicionando-se um logo após o outro, sempre de costas para a
espaçonave, enquanto iam circundando-a, atentos a qualquer aproximação que pudesse
tentar se valer da pouca visibilidade causada pela chuva forte e pela atmosfera
escurecida do planeta. Permaneceram nesta formação por um bom tempo, até que o
comandante Tunna considerasse seguro o desembarque do Segundo Pelotão. Estes
desembarcam com Borknaggah a frente, que passa esbarrando em Haggarde e abre
caminho além do primeiro círculo formado, e assim, um a um, vão ultrapassando o
limite estabelecido pelo Primeiro Pelotão, espalhando-se por uma área mais ampla do
planalto, levando o perímetro seguro mais adiante. Só com a certeza de que não havia
perigo iminente ou aparente, Tunna finalmente autoriza o desembarque da equipe de
manutenção.
Trazendo o metódico e reservado Bellchior de Calabbar na vanguarda, a equipe de
manutenção da nave era composta pelo chefe operacional, mais dois mecânicos e um
técnico em energia e cabeamento que, sem perder tempo, já começam a analisar o
estrago causado pela colisão.
Logo após as primeiras verificações, Bellchior começa a distribuir à sua equipe as
primeiras ordens e assim, auxiliados por alguns soldados devidamente requisitados por
Bellchior para ajudá-los a carregar o pesado equipamento, começou um incessante entra
e sai em busca do material necessário para a manutenção da espaçonave. Pressionado
pelo seu comandante, Bell não tarda em comunicar ao à cabine de comando que a
manutenção não seria breve e que não seria possível estimar um tempo máximo para
que a nave estivesse pronta:
 Melhor seria começar imediatamente os procedimentos de exploração do
planeta a fim de encontrar recursos ou algum sinal dos Lemurianos. (incita Bell-
chior)

Tunna, apesar de conhecido por seus feitos heroicos e por sua coragem, não é dado
aos riscos desnecessários e acha melhor que toda a tropa mantenha-se unida e em
prontidão:

 Quando a nave estiver pronta para decolar decidimos sobre a exploração


do planeta. Assim como estamos seria muito arriscado… Se encontrarmos hosti-
lidade num planeta como este e tivermos que bater em retirada a Suppernova
ainda não estaria pronta e teríamos que arriscar uma decolagem forçada.

No entanto, passadas algumas horas sem qualquer indício de ameaça externa, os


soldados já haviam a muito tempo baixado a guarda e estavam em clima de
descontração, protegendo-se da chuva embaixo da Suppernova enquanto a equipe de
manutenção trabalhava incessantemente. Conversavam descompromissadamente, já
muito pouco preocupados com as possíveis ameaças do planeta ou mesmo com o
monitoramento da cabine de comando, que aliás já havia desistido de tentar mantê-los
em prontidão. Borknaggah era o que mais conversava, falando alto contava casos
duvidosos e detalhados de seus feitos amorosos e de suas matanças em batalhas, além
de fazer chacotas com os outros soldados, principalmente Haggarde, sempre causando
um estardalhaço de gargalhadas por parte dos demais soldados, o que tornava a
obtenção de notícias sobre o desenrolar da manutenção bastante difícil:

 Bell, Hierophantes quer saber como anda a manutenção, está próximo do


fim? … Bell, está me ouvindo? … Bellchior?!

Insistia Tristannes, quase gritando e, mesmo assim, sem conseguir ser ouvida pelo ci-
entista. A algazarra dos soldados predominava nos comunicadores.

 Calem a boca, seus merdas! (interfere Tristannes) Borknaggah, seu imbe-


cil, estamos tentando nos comunicar com Bellchior e tudo que se ouve pelos co-
municadores é a sua voz e essas besteiras e mentiras que você fala!

Tristannes desabafa gritando e enfurecida, causando um silêncio repentino na comu-


nicação. Silêncio que dura alguns segundos apenas, logo Borknaggah dispara a garga-
lhar, consequentemente despertando o riso em boa parte dos demais soldados.

 Está nervosinha, soldado?! (responde Borknaggah) Viram? Isso é o que a


falta de um bom macho causa numa fêmea! Ahahah Acho que essa sua doença
estranha de pele deve ter afetado o seu cérebro também. Ahahah Acho que você
tá precisando de umas palmadas pra ficar calminha! Talvez eu possa dar um jeito
em você! (as risadas são gerais pelo comunicador)
 É, talvez eu esteja precisando mesmo de um bom macho… Um de ver-
dade! Mas não um porcaria como você. Aliás, a minha doença de pele não pare-
ceu tão estranho pra você na confraternização da tropa, antes da viagem, quando
você me seguiu até o banheiro e se declarou pra mim, bêbado como um mendigo
e quase chorando, dizendo que sempre me desejou como mulher e que casaria
comigo se sobrevivêssemos ao motim… E o infeliz ainda tentou me agarrar e
me beijar a força quando eu disse que não me interessava por ele! Dá pra acredi-
tar?! E você também não pareceu tão machão assim quando eu revidei o seu ata-
que com socos e pontapés! O imbecil só não está num hospital agora graças à
Sonne, que chamou Haggarde e ele me tirou logo de cima desse fanfarrão antes
que eu pudesse machucá-lo de verdade!

Mais uma vez o silêncio toma conta dos comunicadores, enquanto os soldados próxi-
mos a Borknaggah se entreolham e olham para ele esperando pela sua defesa, mas antes
que ele possa reagir, Hagarde interrompe o silêncio:

 Verdade! Eu tive que tirar ela de cima dele porque o pobre coitado apa-
nhava deitado no chão molhado do banheiro e gritava como uma menininha sem
conseguir se levantar!
 AAaHAHAHaAH (gargalhadas ainda mais intensas tomam conta dos co-
municadores: os soldados se refastelam)
 É mentira dessa invertida louca e desse “cara de cicatriz”… Eles devem é
estar se comendo isso sim! E ela é que deve ser o macho da relação… (tentava
se defender Borknaggah, envergonhado, em meio às risadas incessantes) Eu es-
tava muito bêbado, isso sim…

Nascida em Edenppons, um conjunto de ilhas isoladas no meio de um dos maiores


oceanos de Achyros, Tristannes Stavangger, com sua força, inteligência, coragem e be-
leza, deslumbrava a maioria dos soldados que colocavam os olhos sobre ela. Provenien-
te da única civilização realmente diferenciada em toda Achyros, Stavangger trazia forte-
mente em si os traços mais marcantes de seu povo. Todos os habitantes de Edenppons
apresentam uma anomalia na pigmentação da pele que os deixam com a pele e cabelos
bem mais claros que os demais habitantes de Achyros. Não se sabe ao certo se os
Edenppones se exilaram ou foram exilados naquelas ilhas distantes por causa dessa ano-
malia, ou se, estando lá em pequeno número de habitantes, acabaram por compartilhar a
deficiência entre os seus decentes; mas o fato que é que essa característica só se encon-
tra naquele arquipélago. Outro fato interessante é que este gene recessivo só se manifes-
ta através do cruzamento de dois indivíduos afetados pela deficiência, nunca se manifes-
tando quando o cruzamento é entre exemplares diferenciados; por isso existe a teoria do
exílio dos indivíduos que já possuíam a característica, visto que, até nos dias atuais, os
habitantes de Edenppons ainda são hostilizados pela grande maioria dos ditos “nor-
mais”, de pele mais escura.
Mas os Edenppones não se diferenciam apenas fisicamente, mas muito mais ainda,
culturalmente: enquanto em toda Achyros as fêmeas são educadas para serem submissas
aos machos, e assim se comportam, em Edenppons as fêmeas são educadas como
iguais, exigidas física e intelectualmente tanto quanto os machos são, dando origem a
mulheres fortes, guerreiras, inteligentes, líderes, que cobram de suas filhas a mesma
postura que lhes foi cobrada por suas mães.
Também não há em Edenppons o mesmo interesse em batalhas e conflitos, como no
restante de Achyros, tornando as ilhas, naturalmente belas e paradisíacas, também num
lugar bastante agradável para se viver. Contam as lendas que Edenppons foi o único lu-
gar de Achyros que Virggo Fehenna não conquistou: encantado com as belezas naturais
do lugar, com seu povo pacífico, e com as fêmeas pálidas, acabou casando-se com a re-
gente da ilha e estabelecendo por lei irrevogável que Edenppons era o único território
independente de Achyros.
O encantamento causado pela beleza exótica dos habitantes de Edenppons não acon-
teceu apenas com Virrgo, e é uma constante até hoje em dia. Os demais habitantes de
Achyros desejam os Edenppones, tanto quanto criticam hipocritamente a cor de suas pe-
les.

 Sua maldita doente, desbotada, eu vou empurrar garganta a dentro cada


palavra…
 Chega dessa algazarra! Isto está atrapalhando o andamento da manuten-
ção e deixando a nave desprotegida! Calem a boca e voltem aos seus postos! (in-
terrompe firmemente o próprio Hierophantes, já impaciente com toda aquela
conversa)

Tanto quanto Bellchior, Hierophantes também estava bastante curioso sobre aquele
planeta: vislumbrava que houvesse ali alguma vantagem energética ou estratégica des-
coberta pelos Lemurianos que pudesse lhe auxiliar na batalha contra seu irmão. Temia
que Tunna não estivesse assim tão interessado em colocar a tropa em perigo naquele
planeta tão inóspito. Precisava pô-los em ação antes que a espaçonave estivesse pronta
para partir e antes que as baterias dos trajes estivessem completamente descarregadas,
inviabilizando a incursão pelo planeta. Sabendo que Bellchior também compartilhava
do seu interesse na exploração do planeta, e se aproveitando da recente algazarra, em
canal aberto determina:

 Tunna, a tropa está dispersa e desatenta, e isso pode ser ainda mais peri-
goso em caso de um ataque surpresa. Mais até do que a própria exploração desse
planeta. Precisamos descobrir mais sobre este lugar, e antes que as baterias dos
trajes descarreguem por completo…

Bellchior, como esperado por Hierophantes, instiga a saída, sem dar tempo para que
o comandante das tropas acrescente sua opinião:

 De fato, Alteza, seu entendimento está correto. Estamos perdendo tempo


aqui, ouvindo bobagens pelos comunicadores. Precisamos saber mais sobre o
planeta, assim como obter recursos e alimentos…

A partir daí os comunicadores se congestionam novamente pelos diversos


comentários e murmúrios, e até os chefes de pelotão se manifestam em favor da
exploração do planeta. Tunna não tinha outra opção senão concordar:

 Tudo bem, tudo bem, vamos a este planeta, então!


Haggarde, Borknaggah, preparem seus pelotões. Vamos colocar este planeta de
cabeça para baixo!
 (Houve-se uma gritaria ensurdecedora nos comunicadores em comemora-
ção.)

Tunna determina, então, que metade de cada pelotão deveriam ficar e manter a
guarda do lado de fora da nave, enquanto a equipe de manutenção trabalhava; a guarda
pessoal do príncipe não deveria por nada se afastar da cabine de comando, mantendo
assim, tanto a guarda pessoal de Hierophantes, quanto a proteção da cabine. Tristannes e
Jassco deveria permanecer lá também, monitorando e mantendo ativa as comunicações
da nave. Aos demais soldados foi determinado que espalhassem-se pela grande
plataforma procurando um caminho viável para dentro do cânion, mas que não fossem
longe demais, garantindo, se necessário, um retorno não muito demorado caso fossem
atacados ou chamados pelo comando, ou mesmo se precisassem voltar à espaçonave
com alguma descoberta. Cada pelotão responderia ao seu respectivo chefe e Tunna Trull
também estaria em campo chefiando toda a missão de reconhecimento. Estariam todos
em comunicação e sendo monitorados pela cabine de comando: qualquer ameaça ou
descoberta, deveria ser comunicada imediatamente aos demais.
A chuva densa e escurecida não permitia que se enxergasse muito além de poucos
metros. Olhando-se à beira do desfiladeiro, a visão, ou mesmo as fracas lanternas dos
capacetes, não alcançavam o fundo do cânion. Mesmo os mais afoitos, a primeira vista
percebiam que o paredão era bastante íngreme, e que descê-lo já seria difícil, mas
escalá-lo de volta seria praticamente impossível com toda aquela chuva. Em pouco
tempo já se ouvia pelos comunicadores os murmúrios de alguns soldados sobre as
impossibilidades de se ir adiante com a missão de reconhecimento. Indiferente aos
comentários que lhe chegavam aos ouvidos, Tunna já desconsiderara a descida pelo
paredão e já buscava por um caminho alternativo para baixo. Notara que toda aquela
água que se precipitava do céu escoava muito pouco, ou quase nada, pelas bordas do
desfiladeiro. Escorriam, isso sim, em direção ao centro da enorme plataforma rochosa: o
platô parecia ter um sutil desnível da borda para o centro. Comunicou aos soldados o
que percebera e que todos deveriam seguir na mesma direção das águas procurando o
ponto onde toda aquela água descia da plataforma, esse poderia ser um caminho viável
para baixo. Seguindo o caminho das águas silenciosas, percebia-se que uma correnteza
ia se formando e ficando cada vez mais forte ao ponto de formar um forte córrego.
Tunna estava certo: não precisaram caminhar muito tempo para encontrar o ponto em
que toda aquela água, vindo de todas as direções, se encontravam e rompiam a
plataforma em direção ao o fundo do cânion. Uma enorme fenda na rocha aberta pela
força das águas em seu caminho para baixo, formando uma forte e barulhenta corredeira
que a certa altura despencava em cachoeira. A fenda era bastante acidentada e, com a
força das águas, tornava-se bastante perigosa também, porém, melhor caminho para
baixo provavelmente não haveria. Começaram então, um após outro, a descida rumo ao
interior do cânion. Tunna Trull ia a frente passando aos demais as suas orientações pelo
comunicador. Quanto mais fundo chegavam, mais escuro se tornava o cânion e diminuía
a pouca visibilidade. Havia uma espécie de lodo escorregadio ao longo de todo o
córrego, o que deixava ainda mais perigosa e demorada a descida.
Apesar da escuridão do cânion, já se percebia serem bastante estranhas a vegetação
do lugar, assemelhando-se a grandes algas escurecidas. A cachoeira formada pelo
córrego desaguava diretamente sobre um rio que, como previsto, corria bravio lá em
baixo. A primeira vista, parecia ser o único ponto onde o rio tocava as paredes do
cânion: provavelmente, com o tempo, a forte cachoeira e a erosão fizeram com que o rio
encostasse no paredão somente naquele ponto, dividindo aquela margem do rio em
duas. Alguns mais afoitos ameaçavam encurtar a descida se jogando logo dentro do rio,
o que foi repreendido por Bellchior, que da nave escutava tudo que era dito pelos
soldados e assistia, por meio de um receptor especial, algumas imagens selecionadas
por Tristannes; segundo ele, eram águas desconhecidas de um paneta bastante agressivo,
não se sabia que tipo de criaturas poderiam habitar aquelas águas ácidas e misteriosas:

ꟷ É preferível e mais seguro não arriscar… (enfatiza o cientista)

Como a margem do rio estava dividida, existiam duas direções a percorrer; Tunna
determina que Haggarde e o Primeiro Pelotão o acompanhasse seguindo o sentido do
rio, e que o Segundo Pelotão, chefiado por Borknaggah, já desceria do paredão pelo
outro lado da cachoeira, seguindo o sentido contrário à correnteza. Sempre que possível,
Tunna preferia estar acompanhado por Haggarde; dizia ele em tom de brincadeira: “ ̶
Acompanhado do melhor guerreiro de Áchyros, talvez eu consiga sobreviver!”. Por
mais que o consenso geral, e até mesmo o próprio Haggarde, achassem que esse título,
de fato, pertencesse ao próprio Tunna, era inegável as grandes habilidades do guerreiro
de Itheria. Vindo de uma das regiões mais abastadas de Áchyros, o pouco que se julga
conhecer sobre Haggarde de Itheria conta que este seria um membro renegado da
família aristocrática local e, justamente, o filho mais velho e herdeiro preferencial dos
poderes do pai sobre a região. Conta-se que seu pai tentara invadir uma região próxima
a Itheria a fim de dominar a tribo local e tomar posse sobre uma mina rica em um metal
pesado raro, energético, que se tornara muito valioso com a chegada das tecnologias
Lemurianas. Haggarde teria sido contra a invasão e teria se recusado abertamente a
marchar junto as tropas do pai e, por este motivo, fora encarcerado em prisão comum,
junto aos criminosos comuns para que aprendesse a lição e voltasse atrás na sua decisão.
Conta-se que houve uma rebelião entre os condenados e um de seus irmãos tentou
ajudá-lo a fugir: este acabara morto pelos revoltosos e Haggarde conseguira fugir com
um grave ferimento na face, que posteriormente se tornou em uma grande cicatriz de
cima a baixo do lado esquerdo do rosto, em forma de uma linha reta perfeita. Após o
ocorrido, Haggarde nunca mais voltou a Itheria e nunca mais usou o sobrenome da
família; Quando engajou-se nas tropas do rei Cronnus, passou a ser conhecido como
Haggarde de Itheria e ganhara o apelido de Cicatriz Simétrica. Assim que Tunna Trull o
viu em batalha pela primeira vez, manejando com exímia habilidade as duas espadas
que carrega sempre consigo, Tunna pediu que o remanejassem para o seu destacamento,
e assim não demorou para que se tornasse chefe de pelotão e homem de confiança do
grande comandante.
Com todos os soldados já embaixo, logo os dois grupos começaram a se espalhar
pelo interior do cânion, onde a visão era ainda mais restrita e só os pequenos faroletes
nos capacetes entregavam a localização dos colegas: como as baterias dos trajes
estavam com pouca carga, Bellchior aconselhara a usar apenas as lanternas de curta
distância. Cada homem ia reportando aos demais, via comunicador, aquilo que
considerasse importante. Apesar de estarem em um planeta totalmente desconhecido e
do local onde se encontravam, não tardou para que se reestabelecesse o clima de
descontração, característica comum daquele povo destemido; e, mais uma vez,
instigadas principalmente por Borknaggah. Assim, as inevitáveis brincadeiras,
carregadas de ironias, chacotas e desdem, que comumente envolviam os pais, esposas e
familiares dos outros soldados, começaram a se sobrepor sobre os informes nos
comunicadores e eram quase sempre seguidas pelas gargalhadas dos demais…
Mesmo no efusivo estado de descontração, os desbravadores ainda mantinham-se
atentos, e alguns soldados começaram a perceber pequenas movimentações entre a
vegetação; logo as primeiras pequenas criaturas foram avistadas:
 Pessoal, tomem cuidado, acho que vi algo se movendo aqui em baixo!
(avisa Haggarde)
 Também tive a mesma impressão, Hag. Alguma coisa se moveu bem
próximo dos meus pés. (relata Tunna Trull)
 Definitivamente temos pequenas criaturas aqui em baixo senhor. (alertou
um outro soldado do outro lado da margem do rio)
 Hááá! Maldição! Uma dessas criaturas tentou me atacar… Mas agora
está com minha espada enfiada dentro da cabeça! Aahaha… (informa Borknag-
gah) Com mil bichos de fedor, que porcaria é esta?! A minha espada está atra-
vessada na cabeça do monstrinho e a praga continua se mexendo! E que criaturi-
nha mais feia! Parece a sua avó, Jassco! Aahaaha!
 Borknnagah, seu imbecil, minha avó está velha e doente… E você nunca
nem viu a minha avó! (responde Jassco da cabine de comandos)
 Aahahha! Vi sim, quando fomos te buscar na sua casa. A sua irmã veio
nos atender e consegui ver a velha se balançando numa daquelas redes que sua
tribo usa para dormir: nossa que velha feia! Mastigando alguma coisa, baban-
do… parecia com uma dessas criaturas tentando me morder. Ahahah (gargalha-
das gerais nos comunicadores) Aliás, a feiura parece ser de família, a sua irmã
também é quase tão feia quanto a velha! Aahahhah (gargalhadas ensurdecedoras
tomam conta dos comunicadores)
 Feridas no rabo te empesteiem, seu Olho Seco! Vou te enrabar por isso!
Sua sorte é que estamos distantes um do outro… Torça para que alguma criatura
te mate antes de nos reencontrarmos, seu escroto… (mais risos pelo comunica-
dor)
 Por Krigg-Ha, pessoal, calem a boca! Eu sinto alguma coisa muito estra-
nha nesse planeta… É como se a própria morte estivesse à nossa espreita. (inter-
rompeu Haggarde de Itheria, criando um pequeno momento de silêncio que logo
foi quebrado pelas gargalhadas de Borknaggah)
 Haggarde, seu merdinha supersticioso! E você e o seu povo fazem algu-
ma coisa além de sentir que sentiram alguma coisa estranha?! Aahahah (nova-
mente as gargalhadas se espalham pelos comunicadores)
 Você é mesmo um imbecil, Bork. Eu falo sério…

O chefe do Segundo Pelotão não contem suas gargalhadas espalhafatosas, que aca-
bam contaminando a maioria dos soldados porém, suas gargalhadas as vezes parecem
forçadas, impelidas somente para irritar e ridicularizar alguns colegas.

 Borknaggah, preste atenção à sua missão! Tente trazer essa criatura quan-
do voltar para a nave, preciso examiná-la. (interrompe Bellchior com um certo
tom áspero e sério na voz, tentando lembrar a todos que estão em uma missão de
reconhecimento)
 Maldição, essas criaturinhas estão nos atacando mesmo! Nunca vi criatu-
ras pequenas serem tão agressivas! Também acabei de matar uma… Se é que
está mesmo morta… Continua se debatendo! (informa Tunna Trull)
 Tomem muito cuidado, podem ser venenosas. Criaturas pequenas não
costumam atacar oponentes tão maiores que eles, a menos que tenham algum
trunfo escondido. (alerta Bellchior) Ah, não esqueçam: eu sei o quanto está escu-
ro nesse desfiladeiro mas, repito, tentem usar apenas as luzes de iluminação
aproximada. Os faróis de iluminação à longa distância consomem muita carga
das baterias. Evitem ao máximo usá-los…

Espalhando-se pelo desfiladeiro nos dois sentidos do rio, alguns soldados, sob
orientação de Bellchior, começaram a coletar material para levar de volta à nave para
serem analisados. Sem descuidar da manutenção, Bellchior acompanhava atentamente
as imagens que lhe eram retransmitidas, dando instruções de alguns exemplares que
deviam ser coletados. Aos olhos dos soldados Achyronianos nada aparentava ser
comestível naquele lugar, e os equipamentos não reconhecem espécie alguma daquela
vegetação: se os Lemurianos estiveram mesmo naquele planeta, não catalogaram nos
seus bancos de dados nada do que está sendo encontrado até o momento, o que não
condizia com a postura normalmente adotada por aquele povo.
Tunna tem pressa e curiosidade, seguindo à frente do seu pelotão, começa a se
distanciar sem perceber. Apesar da pouca visibilidade, avista nos imensos paredões,
algumas reentrâncias que se aparentavam ser cavernas. Ao aproximar-se de uma a pouca
altura, justamente a que lhe pareceu ser a maior delas, e percebe que há um pequeno
córrego vindo do seu interior, que descia pelo paredão, escorria pelo chão ate desaguar
dentro do rio. Poderia ser água de chuva adentrando por alguma fenda na rocha e
escoando por ali, mas poderia ser uma nascente de água pura, uma descoberta que seria
muito útil àquela altura. Avisou pelo comunicador o que havia encontrado e escalou
com facilidade aquela pouca altura até a entrada da gruta.
Adentrando poucos metros na caverna, já se percebia que a água do veio tinha uma
aparência bastante diferente das águas esbranquiçadas e borbulhantes do rio lá fora;
poderia mesmo ter encontrado água boa para beber! Tentou informar aos demais colegas
as suas novas descobertas mas o silêncio repentino nos comunicadores já denunciava
que ali no interior da gruta os comunicadores não estavam captando bem o sinal da
nave. Continuou se aprofundando dentro da caverna escura utilizando apenas as
lanternas mais fracas do capacete e estranhou o fato de não ver ali dentro as pequenas
criaturas que insistiam em incomodá-los do lado de fora, mesmo sendo o interior da
caverna um lugar protegido contra as chuvas constantes daquele lugar.
Continuou seguindo o veio de água e se aprofundando ainda mais na caverna até
perceber que em um determinado ponto a luz de curta distância que utilizava já não
encontrava as paredes ou mesmo o teto da caverna e, mesmo desviando a sua rota um
pouco para o os lados, já não conseguia encontrar as extremidades. Apesar das
orientações contrárias de Bellchior, sabia que estava em um lugar bem mais amplo e
precisaria utilizar as luzes mais fortes do traje para investigar o lugar.
Um zumbido dispara os faróis de longa distância e, assim que os olhos se acostumam
com a forte claridade, a surpresa os mantêm abertos ao máximo: era um enorme salão
circular, bem maior que poderia ter imaginado. No centro havia um grande reservatório
de água escavado numa rocha de um lado e mantido por uma contenção do outro, e que,
apesar de rústico, não podia ser obra da natureza. Era desse reservatório, fluindo por um
canal esculpido na parede de contenção, que brotava o córrego que o trouxera até ali.
Nas paredes do grande salão haviam símbolos talhados na rocha e, por toda parte,
dezenas de buracos, provavelmente outras cavernas menores. No fundo do salão,
estranhamente, estavam algumas pedras dispostas de uma forma que pareciam feitas
para o repouso de alguma coisa grande: aquilo não estava ali, daquela forma, por
simples ação da natureza: algum povo inteligente preparara aquele lugar, que mais
parecia um altar ou santuário! Mas não parecia obra dos Lemurianos… ( ̶ Então
quem?!) Ao se aproximar da formação rochosa notou que onde deveria estar o encontro
das paredes da caverna com o chão, na verdade havia uma reentrância, algo como uma
passagem para uma espécie de nível inferior que circulava todo aquele salão:

 Central, podem me ouvir? … Acho que encontrei mesmo, água pura nes-
ta caverna. Há uma nascente aqui e não parece haver infiltração de água da chu-
va no local. Mas a caverna, com certeza, foi modificada ou construída por vida
inteligente e creio que não foram os Lemurianos…

No comunicador quase nada se ouvia além de alguns súbitos chiados e murmúrios, e


Tunna sabia que provavelmente também não podiam ouvi-lo do lado de fora.

 (Pelo grande Virggo! Esta caverna nem é tão profunda e a porcaria desse
comunicador já não funciona…) Central, se estiverem me ouvindo, existem vá-
rias outras cavernas aqui dentro e umas formações rochosas dispostas de forma
muito estranha, talvez seja o salão central de alguma espécie de moradia ou altar
de cerimônias, não sei… preciso investigar melhor…

Apesar de empenhado na manutenção da nave, Bellchior de Calabbar permanece


atento a todas as conversas que lhe chegam pelos comunicadores:

 Vocês entenderam alguma coisa do que ele falou? Disse que havia encon-
trado algum sinal dos Lemurianos?
 Daqui também não conseguimos entender nada, Bell. Vamos mandar
o pelotão de apoio entrar na caverna. (responde Tristannes, conforme orien-
tou Hierophantes)
 Haggarde, a comunicação com o comandante Tunna está horrível e
ele pode estar precisando de ajuda. A última vez que conseguimos entender o
que ele dizia, informou que estava prestes a entrar em uma caverna por onde
saía um córrego d'água. Veja se encontra essa caverna. Leve metade do seu
pessoal para dentro da caverna e os demais ficam de guarda do lado de fora
esperando pelo seu retorno ou por novas ordens.
Borknaggah, seu pelotão permanece do outro lado da cachoeira e prosseguem
com o reconhecimento…
Tunna, se estiver ouvindo, o apoio já está a caminho…
 Confirmado, central… (corresponde Haggarde de Itheria) Mas algo mui-
to estranho também está acontecendo aqui fora: as pequenas criaturas que esta-
vam nos atacando e reagindo a nossa presença… Repentinamente fugiram,
como se algo os tivesse afugentando…
 Que bosta, cara! Você é mesmo muito cagão! Fugiram por causa da nossa
presença aqui, imbecil… Aahahha (interrompe indignado Borknnagah)
 Você é muito burro mesmo, Olho Seco! Estamos aqui embaixo já há um
tempão, e só agora que essas criaturas resolveram ficar com medo da gente?!
 Concordo, Haggarde. Esse sujeito é um louco! (responde Jassco, cha-
mando a conversa para si)
 Claro, claro, o maluco tem sempre que defender o cagão… Ahahah! (des-
denha o mofante guerreiro)
 Bom, fiquem todos atentos aí embaixo. (interrompe Tristannes, tentando
por fim àquela falação) Qualquer movimentação estranha reportem imediata-
mente. Se perceberem perigo iminente, recuem. Desde já, planejem a rota de
fuga…

Borknnagah vinha de uma das linhagens mais bárbaras de toda Achyros, os


Varukkers, povo que habitam as terras mais frias do planeta e que, apesar de todo o
progresso e evolução que vem revolucionando Achyros desde a chegada dos
Lemurianos, ainda trazia como forte característica a pouca instrução acadêmica. As
brigas de rua ainda eram constantes e, de certa forma, até incentivada pela vista grossa
das autoridades locais. Antes de Virggo, viviam basicamente de pilhagens em outros
territórios; atualmente vivem das atividades agrícolas e de exportar guerreiros para todo
tipo de guerras e batalhas. Borknaggah era um dos soldados mais zombadores e cheio
de si naquele pequeno exército, além de mal educado, bruto, truculento e cruel. Após
consolidada a vitória de qualquer que fosse o exército que ele fizesse parte, tinha por
diversão voltar aos campos de batalha procurando por sobreviventes feridos do exército
inimigo para torturar-lhes antes de finalmente matá-los: passava horas nesta busca, o
que lhe rendeu o apelido de Olho Seco. Quando repreendido, dizia estar encurtando o
sofrimento dos feridos e irritava-se facilmente com qualquer um que o contrariasse ou
agisse em desacordo com o que ele pensava. Originário de uma cultura cética, via nas
figuras de Jassco e Haggarde, representantes de duas das culturas mais crédulas de
Achyros, estorvos a serem combatidos, e ainda mais por acreditar que o comandante
Tunna Trull demonstrava uma certa predileção pelo chefe do Primeiro Pelotão.
Já Jassco Mahatta vinha de uma das culturas que mais cultuavam deuses e
divindades e acreditavam em forças sobrenaturais em Áchyros, a tribo Samiddarish.
Pautava sua vida no entendimento dos sinais divinos, buscando nestas divindades a
orientação para direcionar a própria vida e suas ações. Jassco levava as crendices e o
misticismo do seu povo muito a sério, e isso irritava bastante o cético Borknaggah, que
não perdia uma oportunidade de provocá-lo ou de contestar as suas habilidades, que
levava em consideração essas crendices.
Mas enquanto Borknaggah, Jassco e Haggarde trocavam “deselogios” pelos
comunicadores, lá na grande caverna, acreditando não ter sido escutado pelo comando e
que não receberia apoio dos colegas, Tunna decide explorar sozinho o subnível do
enigmático salão. Ao se aproximar da depressão, ainda com as luzes mais fortes ligadas,
percebe que a sub câmara não é muito profunda e que não havia mais que sete ou oito
metros de onde está até a parede de fundo desse nível inferior. O subnível parecia se
prolongar de uma ponta a outra do salão, falhando, talvez, apenas na entrada da caverna
por onde chegara e por onde passa o córrego. Não lhe restavam dúvidas de que havia
algum propósito naquele grande salão além de simplesmente a obtenção de água pura.
Observando o nível inferior notou que havia uma massa escura no chão e nas paredes
porém, nas paredes, era como se algo estivesse grudado lá. Depois de direcionar o
holofote em todas as direções em busca de qualquer movimento, sem que nada lhe
parecesse uma ameaça iminente, decide descer para verificar o local. Mal pisa o chão do
lugar e, já nos primeiros passos, um sinal sonoro em forma de bips seguidos dispara!
Tunna olha para o chão, buscando algum sensor de movimento que possa ter acionado,
quando um segundo alerta, dessa vez um bip longo dispara e leva embora as luzes do
seu traje, jogando-o na escuridão completa do lugar… Sentindo a eminência de um
ataque, Tunna transforma o susto em reação e, imediatamente, já está em prontidão com
a arma empunhada, apontando rapidamente em todas as direções e usando a mira
luminosa da arma para tentar enxergar possíveis inimigos em aproximação… Assim
permanece por algum tempo, num trabalho mental angustiante, até ter certeza que nada
se movia ali. Já menos tenso, se pergunta como um lugar tão rústico poderia ter sensor
de movimento, ou algo do tipo, ou mesmo tecnologia capaz de anular o seu traje… e
então percebe que o traje não fora totalmente desligado e que há uma mensagem se
repetindo no visor: “Alerta! Baterias com pouca carga: toda a energia restante será
direcionada aos sistemas primários do traje”. Nesse momento Tunna baixa a guarda e
sorri aliviado: ( ̶ Que idiota!). Notou que o medidor de carga das baterias estava
piscando no visor já há um bom tempo e que não havia prestado atenção a nenhuma das
informações fornecidas pelo traje até então… Como que num estalo relembra que
estava explorando um lugar desconhecido e encerra o seu momento pessoal de
descontração. Religa as luzes de curta distância, que consomem bem menos energia das
baterias do traje, e prossegue com a exploração do local.
Começa então por investigar a massa escura no chão da caverna e estas já estão
ressecadas, quebradiças, como se já estivessem ali a muito tempo. Apresentam-se em
pequenos montinhos de onde a massa aparenta ter escorrido ou se deteriorado e se
espalhado pelo chão do subnível. Algumas desses montinhos ainda preservavam muito
da sua forma original, e se pareciam com recipientes orgânicos, agora já inúteis,
indicando que foram abertos e depois que o conteúdo fora retirado, perderam a sua
utilidade… ( ̶ Seria alguma espécia de encubadora? E o que teria saído destas
porcarias? Seriam aqueles monstrinhos lá fora? … Mas, com certeza, não foram
aquelas criaturinhas que construíram este salão!).
Segue então em direção ao fundo para descobrir o que seria aquele outro tipo de
massa grudada nas paredes, já que usando apenas as luzes mais fracas do traje, precisa
chegar bem perto para poder enxergar direito o material. Quando finalmente se
aproxima o suficiente para conseguir entender do que se tratava, salta para trás como
numa reação repulsiva: ali estavam inúmeros corpos apodrecidos, decompostos e até
mumificados, grudados nas paredes por outro tipo de massa estranha, uma espécie de
cola escura… Os corpos estavam dispostos lado a lado e até empilhados uns sobre os
outros, como se os mais recentes tivessem sido grudados por cima dos mais velhos,
talvez por falta de espaço. As feições que se congelaram nos seus rostos indicam uma
morte dolorosa e instantânea. Todos tem o abdômen rompido, como que estourado de
dentro para fora, um cenário assustador que jamais imaginara ver. Tão terrível era
aquele local, que mesmo um guerreiro como Tunna Trull, acostumado com a guerra e a
constante presença da morte, sente o estômago embrulhar: ( ̶ Que tipo de aberração
cultuaria a morte desta forma?!). Analisando os corpos com mais cuidado, percebe-se
que há em maior quantidade corpos que lembram fisicamente as pequenas criaturas
avistadas lá fora, no cânion, porém estas bem maiores, talvez uma outra espécie deste
planeta. Mas, apesar de quase todos aqueles diferentes corpos serem desconhecidos ao
seu entendimento, muitos estão vestidos com trajes, roupas, mantos, indicando se tratar
de seres inteligentes, civilizados.
Desnorteado continua percorrendo as paredes do subnível até finalmente encontrar
algumas carcaças que lhe parecem familiar! Sim, encontrara ali penduradas o que
parecem ser os restos mortais de Lemurianos! Um grupo inteiro de Lemurianos
empilhados próximos uns dos outros num determinado ponto da sub câmara. ( ̶ Deve
ser por isso que nada foi catalogado pelos cabeçudos sobre este planeta: morreram antes
mesmo que pudessem incluir qualquer informação nos seus malditos mapas e sistemas;
nem mesmo sobre as criaturas que os capturaram. Os cabeçudos são uns fracos… mas
essas criaturas também chacinaram todos esses outros estranhos que por azar chegaram
a esta porcaria de planeta).

 Comando, precisamos ir embora desse lugar o mais rápido possível;


encontrei indícios de alguma civilização hostil aqui na caverna. Podem ser
perigosos, e podem estar por perto. Repito, existe risco de ataque iminente… e
um confronto agora é tudo que não precisamos. Droga, perda de tempo usar esse
comunicador aqui embai…

Inesperadamente Tunna começa a escutar novamente as vozes dos seus


companheiros pelo comunicador do traje! ( ̶ Como pode isso?! O equipamento voltou
a capitar o sinal da nave?! Estou ainda mais fundo na…) As feições de Tunna Trull se
transformam repentinamente com a constatação:

 Maldição, eles estão entrando na caverna!

Com toda velocidade que podia correr, Tunna percorre o caminho de volta ao grande
salão ignorando com um único salto a elevação que separa o subnível do vão central.
Mas, antes mesmo que pudesse visualizar alguma coisa, além de pequenos pontos de luz
na escuridão, um ensurdecedor e eufórico grito impõem-se sobre as conversas nos
comunicadores. Tunna ainda tenta alertá-los para que saiam todos da caverna, mas em
meio a forte balbúrdia, sequer foi percebido. Enquanto corre em direção ao seu pelotão,
mais um grito apavorado cala a todos:

– Ahhhrghh… alguma coisa me pegou, socorr… Urgh!… me ajudem…

Em meio a toda aquela escuridão Tunna não vê outra opção senão acionar as luzes de
longa distância mais uma vez. Emitindo o forte feixe de luz em direção a entrada da
grande caverna, consegue visualizar a tropa ainda próximo a entrada principal e, logo
acima, encontra a fonte do pedido de socorro: um dos soldados sendo arrastado para
dentro de uma das cavernas menores no paredão por uma criatura toda negra, puxando-
o com pela longa cauda enrolada ao seu pescoço.
Todos os soldados, num movimento defensivo, voltam-se então contra a fonte do
foco de luz, esperando por um possível novo ataque, até reconhecerem Tunna correndo
naquela direção e gritando pelo comunicador:

– VOU SUBIR, VOU ATRÁS DELES! PRECISO DE UM CALÇO…

Instintivamente Haggarde entende, corre para mais próximo do paredão e junta as


mãos à frente ao seu corpo em posição de calço: quase que imediatamente, já está
arremessando o comandante rumo à entrada da caverna. Tunna alcança o nível da
entrada e, com mais um impulso das mão na borda da pequena caverna, se projeta para
dentro, onde cai em rolamento e já se levanta com a arma novamente empunhada.
Permanece alguns segundos em prontidão, com a arma pronta para disparar,
aguardando um possível ataque, até ser tirado do foco novamente pelo sinal sonoro do
traje: no visor ainda consegue ler o aviso de que a atual carga das baterias está muito
baixa e que todas as funções do traje serão desativadas para priorizar a função de
manutenção do ar respirável. Em seguida todo as luzes do traje se apagam, e até mesmo
as informações que apareciam no visor do capacete também somem:

– Maldição da Sabbra Negra! Mais essa agora…

Totalmente no escuro, Tunna aciona a mira luminosa da arma, sua única fonte de luz
agora, e decide ir adiante…
O pequeno feixe de luz avermelhado não iluminava quase nada além do ponto onde
tocava, mas produzia uma fraca luminosidade que era apenas suficiente para se localizar
na escuridão total. Aquela estranha caverna mais se parecia com um longo corredor, um
caminho ou passagem para algum lugar, e não era irregular como costumavam ser as
cavernas naturais. Caminhando cuidadosamente, Tunna movimentava o feixe em todas
as direções e, vez ou outra, vira-se para trás cortando a claustrofóbica escuridão da
caverna. A caminhada angustiante prolonga-se por alguns minutos até que, subitamente,
o feixe de luz encontra algo no chão a não mais que dez metros de distância, no que
parece ser uma curvatura na caverna. Aproxima-se lentamente até entender que se
tratava do soldado raptado e que, ao que tudo indica, fora deixado caído no chão pelo
seu raptor em fuga.
Busca em volta por algum sinal da criatura e só então vai ao encontro do corpo caído
de bruços. Coloca a arma no chão de modo que o feixe de luz ilumine o local onde estão
e então tenta reanimá-lo ou mesmo descobrir se ainda está vivo. O seu traje, agora com
quase todas as suas funções desabilitadas, sem a captação de áudio externo, mas ainda
totalmente isolado do meio, mais atrapalha do que ajuda nos sentidos do grande
guerreiro. Ainda assim tem a impressão de ver algo se movendo na escuridão… Seus
olhos movem-se rapidamente tentando desvendar a penumbra do lugar, até focarem em
um certo ponto no teto da caverna onde parecia que a própria escuridão estava se
movendo. Tunna aguça a visão mas, antes mesmo que pudesse entender do que se
tratava, a terrível criatura pula da escuridão sobre o desavisado comandante,
arremessando-o bruscamente contra uma das paredes da caverna, onde bate forte e quica
para o chão e sente, além do impacto na cabeça e costas, o peso da enorme criatura
caindo em seguida sobre si.
Por um breve momento a criatura parece estudá-lo ou talvez procurasse alguma falha
no traje, o que dá a Tunna algum tempo para recobrar os sentidos, mas não o suficiente,
logo a besta entende o que se passa e então abre a boca como se tencionasse devorá-lo
ou pretendesse ao menos assustá-lo com as enormes presas. Com a pouca iluminação do
feixe de luz da arma caída no chão, Tunna vê a salivação exagerada da criatura cobrir o
visor do seu capacete e acontece algo inesperado: a criatura começa a desferir golpes
com a própria cabeça contra o visor do capacete… Mesmo sem enxergar direito o que
se passava, Tunna não espera por mais nenhuma surpresa e desfere um potente soco que
consegue momentaneamente conter a ação da fera. Com a criatura ainda pesando sobre
seu corpo, Tunna continua golpeando a criatura, que sente a força do oponente, mas
continua prendendo-o ao chão com o próprio peso. Subitamente Tunna sente uma
pontada fina e dolorosa na região logo abaixo das costelas, logo mais outra, e outra, e
outra, até se dá conta que a criatura o estava golpeando com a cauda, onde devia haver
alguma espécie de ponta ou ferrão afiado na extremidade, pois os golpes assemelhavam-
se a punhaladas e, apesar da forte dor que causavam, o ataque ainda não havia
atravessado o resistente traje. Mas, com certeza, não demoraria para que a besta
atingisse o seu objetivo. Tunna olha em volta e percebe que a sua arma está a pouca
distância e, caso consiga mover-se um pouco mais para o lado, poderia pegá-la. No
entanto, a criatura o mantém preso e incapaz de alcançá-la… ( ̶ AAAhhh!) Nesse
momento Tunna sente o traje e sua pele serem perfurados de uma só vez pela cauda da
criatura e a dor é muito intensa! Num movimento impulsivo, quase espasmódico em
reação à perfuração, Tunna golpeia a criatura com toda a força que a dor da estocada lhe
impusera e a criatura treme com impacto descomunal deste último soco; Tunna, ainda
gritando, desfere mais dois golpes certeiros que desequilibram a criatura que pende para
o lado. Instintivamente Tunna Trull leva a mão até a cintura e saca a sua espada e, num
golpe único e certeiro, atravessa o crânio da criatura de um lado a outro, de baixo para
cima. Mesmo com a perfuração mortal a criatura permanece sobre Tunna se movendo
descontroladamente com a espada ainda presa ao seu crânio; Tunna segura a cabeça da
criatura com a outra mão para conseguir arrancar a sua espada e, mal consegue soltar a
sua espada e já desfere um segundo golpe que arranca-lhe de vez a enorme cabeça
comprida, que separa-se do corpo esguichando o seu líquido vital sobre o capacete do
guerreiro. Temendo novo ataque de outra destas criaturas, o comandante joga o corpo
ainda em espasmos para longe de si e levanta-se rapidamente, já tentando limpar o visor
do capacete com as mãos; todavia, por mais que esfregue, o visor não limpa e parece
sujar cada vez mais. Percebe então que suas luvas estão esquentando muito, como se
algo fervescente estivesse sobre elas e então entende que a substância expelida pela
criatura é corrosiva e está corroendo o capacete e as luvas! Sentindo as primeiras
queimaduras na mão, Tunna destrava rapidamente as luvas do traje e as arremessa
longe, fazendo logo em seguida o mesmo com o capacete, que já estava com o visor
perfurado. ( ̶ Que espécie de aberração é esta que carrega uma substância tão corrosiva
em suas próprias entranhas?!)
Sem o capacete Tunna prende a respiração o máximo que consegue mas, cansado
pelo combate, não resiste muito tempo e, sufocando, enfim traga o ar do ambiente… A
sensação é quase tão sufocante como o próprio ato de prender a respiração: sente como
se estivesse respirando alguma substância tóxica, carregada, esfumaçada mas, no
entanto, parece-lhe que alguma coisa seu corpo aproveitou daquela tragada e, após mais
alguns segundos prendendo a respiração, repete a ação dolorosa novamente… Lembra
então do que Bellchior alertara sobre respirar o ar daquele planeta e sabe que precisará
correr imediatamente para a Suppernova, se quiser sobreviver.
Sabendo do pouco tempo que lhe resta, Tunna prefere não averiguar a criatura e,
prendendo a respiração o quanto pode, corre para o soldado caído pra verificar se ainda
está vivo, pois a morte daquele soldado pode ser agora a sua única esperança de vida.
Virando-o para cima descobre a causa mortis: estrangulamento! Tão forte foi a força
aplicada pela cauda da criatura em seu pescoço, que o próprio capacete fora danificado,
e justamente onde se trava ao restante do traje. Sem conseguir destravar completamente
o capacete danificado, Tunna arranca-o do traje original e tenta encaixá-lo a todo custo
no seu, deixando uma enorme brecha por onde escapa o oxigênio vindo dos seus
reservatórios de ar. Contenta-se com o fato de, pelo menos por enquanto, poder respirar
novamente. Sem tempo para ponderações, Tunna pega a sua arma no chão e corre
tentando refazer o caminho de volta em direção ao vão central. Ainda usando a mira
luminosa para se guiar na escuridão, a essa altura sequer tinha a certeza de estar indo na
direção correta até começar a enxergar alguma pouca luminosidade no fim do grande
corredor de pedra, e então corre mais apressadamente, até deter-se surpreso à beira do
despenque:
– Pela espada do grande Virggo, que loucura é esta?!

A cena é angustiante: a escuridão do grande salão cortado por dezenas de disparos


luminosos desencontrados, desesperados, rumo a qualquer direção, muitas vezes
atingindo os próprios colegas de tropa. Na busca confusa pelo inimigo, as luzes dos
trajes de alguns soldados conseguem encontrar momentaneamente alguns vultos negros,
que logo somem dos seus campos de visão ou o atacam em bandos numerosos, tragando
para a escuridão aquela pouca luz: o ataque é maciço e rápido: ( ̶ As criaturas agem de
forma coordenada!)
Tunna saca uma pequena pistola sinalizadora que está sempre consigo e dispara em
direção ao teto da caverna, que ilumina todo o local com a cor avermelhada, revelando
finalmente aos seus homens os seus algozes. E haviam, pelo menos, três daquelas
criaturas para cada soldado naquele salão, e a todo instante saiam mais e mais das
cavernas menores nas paredes. Mesmo com a momentânea vantagem visual, só havia
uma chance de sobreviver: fugindo.
Tunna consegue encontrar, ainda bem próximo de onde o deixara, Haggarde de
Itheria, manejando com grande habilidade duas espadas e resistindo bravamente, e
melhor, do que os soldados que ainda tentavam com as armas de energia. Aproveitando
a claridade, ainda de cima, Tunna atira em quantos monstros consegue alvejar antes da
luz do sinalizador se esvair, e até ser descoberto pelas criaturas, que agindo
massivamente como pássaros em revoada, já escalavam o paredão em sua direção. Já no
esvaecer do sinalizador, Tunna Trull despenca próximo a Haggarde, que consegue
reconhecê-lo apontando em direção à saída da caverna e gritando pelos comunicadores
chamando-os para bater em retirada, mas que, a essa altura, quase não se distingue da
gritaria e urros da tropa encurralada.

“…Só existe um tipo comandante que mereça o respeito e a lealdade incondicional


do seu exército: aquele que ariscaria a sua própria vida pela sua tropa…”

São as palavras do próprio Virggo Fehenna, imortalizadas em algum dos seus


escritos. Palavras que se repetem como eco na cabeça de Tunna Trull diante da decisão
que precisa tomar;
Infelizmente, para a maioria dos soldados que se encontram dentro da caverna, não
há mais salvação, e tentar salvá-los poderia condenar todo o exército! Pensando em
salvar os que ainda tem chances de sobreviver, os que estão do lado de fora, desavisados
do perigo iminente, Tunna puxa Haggarde para o túnel que dá para o cânion, mantendo
vivo, pelo menos, o chefe daquele pelotão.
Algum metal muito denso deveria haver na composição daquelas rochas, pois a meio
caminho para a saída já não se escutava mais a algazarra dos soldados no interior da
caverna! ( ̶ Ou já estariam todos mortos àquela altura?!) O grande comandante
esperava avisar aos demais sobre o perigo que corriam, talvez planejar um ataque em
massa contra as criaturas da caverna mas, a medida que se aproximavam do exterior do
grande corredor, as comunicações externas que iam lhes chegando aos comunicadores
revelavam um verdadeiro teatro de tragédia generalizado:

– … Base, repito: estamos sob ataque… Grande número de baixas aqui…


Precisamos de apoio imediatamente ou vamos todos morrer aqui neste buraco
dos infernos!
– Também estamos sendo atacados aqui em cima, Bork. Não há como man-
dar apoio no momento…
– Atenção, soldados, escutem: aqui é o rei Hierophantes; Ordem Prioritá-
ria… Protejam a entrada da nave e garantam a segurança de Bellchior. Prote-
jam-no a todo custo e garantam o seu embarque imediato… Repito, embarquem
Bellchior imediatamente em segurança. Mandei a minha guarda buscá-lo na en-
trada da nave: embarquem Bellchior para que possamos levantar voou e usar a
nave para ajudar na defesa do perímetro!

Tunna sabia agora que não havia mais nada a ser feito além de tentar sobreviver: a
situação era crítica e toda ação para minimizar o ataque das criaturas poderia ser
relevante. De suas cintas de utilitários, que trazia cruzadas sobre o peito, sacou dois
artefatos explosivos (granadas) e pediu as que Haggarde também trazia consigo:

– Preciso das suas também.


– Mas você não pode fazer isso, vai condenar todos lá dentro…
– Condições extremas exigem respostas extremas!

Haggarde encara o seu comandante com o olhar fatídico de quem não quer aceitar a
tragédia que se anuncia…
– Hag, você me conhece bem, eu colocaria a minha própria vida em risco
se achasse que haveria alguma chance de salvar qualquer um lá dentro. Mas não
há. Esse lugar é a verdadeira residência do mal!

O Guerreiro de Itheria pensa por alguns segundos e então saca as suas duas granadas
e ele próprio se dirige a uma das paredes da caverna e as coloca em dois pontos nas
imediações da entrada da gruta, gira um botão com diversos níveis de intensidade até o
máximo, assim como também faz Tunna Trull em outros pontos da parede oposta. Nesse
momento ambos sentem uma pequena vibração crescente sob os pés, como se uma
manada se aproximasse em disparada fazendo o chão temer: ambos sabem que resta
pouco tempo até as criaturas apontarem pela saída da caverna e correm, pulando no
limite do beiral, rumo ao exterior da caverna:

– AGOOORA!

A forte explosão que se procede arremessa-os diretamente dentro do rio esbranquiça-


do, junto a uma chuva de pedras e pedregulhos.
Além de barroar nas pedras que caem dentro do rio e ter que nadar entre elas, a água
entra pela fenda no capacete de Tunna, que em poucos segundos está completamente
inundado. O comandante tenta emergir o mais rápido possível, pois o isolamento entre a
região da cabeça e o restante do traje não é suficiente para impedir que a água que
inunda o capacete desça para o restante do traje e o inunde também.
Quando enfim consegue sair do rio, a água no capacete escorrer pela mesma fenda
por onde entrou, porém o traje permanece cheio de água, pesado, impossibilitando que o
comandante se locomova adequadamente, o que, naquela situação, pode ser a sua
condenação. O sistema de circulação de ar também fora inundado e, além de
funcionando precariamente, espirra a todo momento a água da parte inferior do traje
diretamente no rosto do grande guerreiro. Quando Haggarde finalmente chega até
Tunna, depois de ter sido arrastado pela forte correnteza, já o encontra praticamente
despido do traje especial!

– Que loucura é esta comandante?! Porque tirou o traje? Não conseguirá


sequer chegar a nave se respirar o ar desse lugar. Não lembra o que Bellchior
nos advertiu?!

Tunna interrompe a conversa apenas gesticulando os braços e balançando a cabeça,


dando a entender que há uma razão para o seu ato e aponta em direção ao caminho de
volta… Pausa um momento e traga o ar ambiente com intensidade, como se já estivesse
sem fôlego, abaixa a cabeça apoiando os braços nas pernas, como se sentisse o
desconforto da ação e então levanta-se e segue em frente, recuperando do traje apenas
as armas e as cintas de utilitários, que volta a cruzar sobre o peito.
Correndo em direção ao ponto de subida, Tunna tenta respirar a menor quantidade de
vezes que consegue, mas cada vez que traga o ar local sente tonturas e náusea. Ao se
aproximar da cachoeira por onde desceram, já conseguem visualizar a batalha que se
trava do outro lado da queda-d'água. Alguns dos soldados do pelotão que seguira por
aquele lado de lá da cachoeira ainda tentando se defender da grande quantidade de
criaturas que parecem vir de algum outro ponto que não aquela caverna que fora
explodida, enquanto outros tentam escalar o paredão de volta já com algumas criaturas
nos seus encalços tentando derrubá-los. Protegidos pelas águas que dividem aquela
margem do rio, Tunna e Haggarde começam a alvejar algumas das criaturas que estão
escalando a cachoeira, conseguindo atingir vários deles, que as vezes caem na água e as
vezes resistem, mesmo feridos pelas armas de raio.
Mas a ação não passa despercebida e algumas criaturas pulam diretamente do
paredão para o lado onde se encontram Tunna e Haggarde: em pouco tempo eles já
estão em perigo também. Tunna sabe que seu tempo é curto e sinaliza para Hag que
precisam subir. Atirando juntos nos monstros que vinham interceptá-los, logo alcançam
e já estão escalando o escorregadio paredão.
Lá já estão várias daquelas criaturas perseguindo outros soldados em fuga, agarrando
ou derrubando os que conseguem alcançar. Mesmo em retirada os guerreiros de Achyros
não desistem da luta e também tentam derrubar as criaturas que escalam o paredão.
Quando derrubados, muitos deles ainda tentam se agarrar e levar junto os seus algozes,
que em contrapartida continuam o ataque mesmo em queda. Tunna, Haggarde e o
próprio Borknaggah, que se encontra mais acima, escalam o paredão com a espada em
uma das mãos, impelindo contra as feras que se aproximam.
Com a derrota dos soldados em terra, cada vez mais criaturas voltam suas atenções
aos fugitivos do paredão e o escalam de forma bem mais celerada do que os
Achyronios. Borknagah percebendo a piora de suas chances de sobrevivência, e
percebendo uma enorme rocha praticamente solta no meio da cachoeira, descola-a do
seu lugar e a deixa descer rolando pelo paredão, levando para baixo alguns dos seus
companheiros de pelotão junto com as bestas que vinham em perseguição.

– Booork, seu desgraçado! Você acabou de mandar vários dos nossos ho-
mens para a morte! (grita Tunna desesperado, tragando grande quantidade de ar
tóxico e, numa vertigem mais acentuada, quase caindo também, sendo salvo por
Haggarde que estava logo ao seu lado.)

Borknaggah olha para Tunna com olhar de desdém e, ao vê-lo quase despencando,
ignora-o e continua a sua escalada. Tunna e Haggarde logo mais abaixo e sem mais
criaturas em seu encalço, graças a ação de Borknaggah, dedicam a sua atenção
exclusivamente à escalada e logo estão em cima do planalto novamente. O esforço da
escalada fez com que Tunna respirasse com maior frequência o ar contaminado e, a essa
altura, mal consegue manter-se de pé. Apoiando-se em Haggarde caminham de volta à
nave o mais rápido que conseguem mas, ao chegar ao ponto onde a Suppernova havia
pousado, encontram apenas Borknaggah chutando pedras e plantas e gritando pelo
comunicador em meio a um cenário de horrores: centenas de cadáveres esparramados
pelo chão, onde a grande maioria eram dos soldados que ficaram protegendo a
espaçonave, mas havia muitos das bestas também :

– Voooltem, seus malditos! Nós estamos aqui… Viiivos! Feridas no rabo


lhes empesteiem, que a Sabbra Negra os carregue! Voooltem!

Tunna cai de joelhos no chão e retira da sua cinta um comunicador portátil e,


ofegante, tenta comunicação com a nave:

– Tristannes, Jassco… O que está acontecendo?… Onde está a nave?…


Porque não estão esperando a tripulação? … Estamos em perigo aqui embaixo…

O silêncio permanece nos comunicadores e Tunna continua tentando:

– Droga, Tristannes, aqui é o comandante Tunna, porque não respondem?


… Eu estou respirando o ar… deste lugar… e estou quase morrendo, porque
não respondem?
– Comandante, eu sinto muito, eu morreria aí ao seu lado, mas Hierophan-
tes e seu capanga não me deixam pousar… (responde Jassco. A partir daqui
ouve-se uma discussão ao fundo)
– Seu maldito imbecil, eu disse para não responder! Você desobedeceu uma
ordem direta do seu Rei.
– Hierophantes, são nossos homens lá embaixo (interrompe Tristannes).
Tunna Trull e Haggarde estão lá e estão vivos! … Você mesmo só está vivo ago-
ra por ação direta do comandante! Senão teríamos todos morrido lá em Alduru-
na.
– Ele está respirando o ar deste planeta: quanto mais se demora, mais pode
ser irreversível os danos causados ao cérebro dele. Precisamos resgatá-lo…
(acrescenta Bellchior)
– Por isso mesmo! Talvez nem haja mais salvação para ele. Se pousarmos,
essas criaturas podem invadir a nave e aí seremos nós que estaremos perdidos…
Crudde, atire no primeiro que tentar desobedecer minhas ordens, principalmente
a mocinha: dessa vez não haverá alerta, atire para matar!
– Jassco, (insiste Haggarde) as criaturas já estão sobre o planalto e já estão
chegando aqui onde estamos, precisamos que você venha nos pegar imediata-
mente, meu amigo. Somos nós, seus companheiros de muitas batalhas que esta-
mos aqui agora precisando de você!
– Agora basta! Desliguem a comunicação! (sentencia Hierophantes)

Nesse momento a comunicação é deliberadamente encerrada e Tunna, já sem forças,


cai de vez no solo molhado, parecendo apagar por completo dessa vez. Sem poder
socorrê-lo, Haggarde passa a ajudar Borknaggah, que já a algum tempo começara a
atirar, na difícil tarefa de tentar deter a aproximação das bestas; mas logo fica claro que
já se aproximam em quantidade suficiente para que não possam mais ser detidos apenas
pelos dois.
No calor da luta, com as mãos ocupadas apenas em se defender, quando a sentença já
se anunciava bruta, uma súbita precipitação de raios avermelhados, em meio a chuva,
desaba sobre as criaturas: era a Suppernova que voltara presta para os socorrer.

– Uhuuu, voltamos! (grita Jassco Mahatta pelos comunicadores, que


acabaram de ser reativados e onde ainda se podia ouvir os protestos do ex-
Conselheiro Real)
– Seu parvo idiota, você vai nos matar! Para pousar você precisará cessar
fogo e as criaturas vão invadir a nave quando estiver em solo…

Ouve-se então o zunido característico de quando uma arma de energia é acionada:

– Dane-se, Alteza! (interrompe Bellchior, de arma em mãos, a iniciativa de


Hierophantes de tentar impedir o auxílio aos soldados em terra firme) Se o se-
nhor não voltar a sua poltrona e resignar-se, juro-lhe que vou cometer o meu se-
gundo assassínio no mesmo dia do primeiro: com certeza o senhor já ouviu falar
que há perdão para o tiranicídio, não é? E como já abati o seu cupincha, acho
melhor me levar a sério! Estamos acertados, meu EX-príncipe?

Era visível a ira nas feições de Hierophantes mas, ameaçado pelo mesmo homem que
numa ação totalmente inesperada em se tratando daquele pacato cientista, acabara de
matar o seu fiel escudeiro, acha melhor conter-se e não arriscar outra surpresa do tipo.

– Jassco, tente abrir o portão de embarque antes de pousar para ganharmos


tempo. Vyrr Belatthor, não suspenda o fogo: vamos ver se essa máquina conse-
gue pousar e atacar ao mesmo tempo. (orienta Tristannes)

Mas o que era esperado por Tristannes não se realiza: como medida de segurança,
com a abertura do portão de embarque, o próprio computador da nave desativa e recolhe
algumas armas; Com a aproximação ao solo, os outros canhões da parte inferior
também são desativados automaticamente, assim como os primeiros. Os únicos que
continuam funcionando após a aterrizagem são os canhões laterais, porém, mesmo com
o auxílio dos computadores detectando o movimento inimigo e disparando em modo
automático, esses não parecem ser suficientes para deter a grande quantidade de
criaturas tentando chegar aos soldados que correm para a espaçonave ainda atirando e
carregando o pesado comandante Tunna preso aos ombros.
Prevendo tal possibilidade, ao baixar do portão de embarque, o armeiro Vyrr
Belatthor já estava os aguardando à saída da nave e portando duas armas de projéteis
explosivos de grosso calibre: enquanto os soldados em terra corriam para o embarque,
Belatthor atirava nos alienígenas que tentavam aproximação.
Vyrr Belatthor era um sujeito bastante exótico, mesmo para aquele povo tão
extravagante. Tinha por costume vestir roupas bastante chamativas, normalmente em
couro preto, perfuradas por metais, argolas e até pequenos troféus que arrancava de
algumas vítimas, como presas, garras, ossos… além das características cintas de
projéteis cruzadas sobre o peito. De temperamento efusivo e briguento, falava alto
sempre, e era difícil uma discussão ou peleja em que não tentasse vencer no grito. Mas
era em momentos como aquele, em batalha direta, que Belatthor se refastelava e
mostrava o modo mais estranho da sua personalidade: enquanto atirava nas criaturas
que tentavam se aproximar, ria, gritava, xingava, pulava e até batia as armas contra o
próprio peito vendo os monstros explodirem. Era bastante eficiente de armas em mãos,
mostrando claramente porque o tornaram chefe de armamentos daquele pequeno
exército; Enquanto corriam para a espaçonave, Bork e Hag chagavam a sentir o calor de
algumas explosões próximas a eles, além de pequenas queimaduras nas costas causadas,
ou por fragmentos em fogo, ou talvez pelos respingos do próprio sangue corrosivo das
bestas.
Conseguindo finalmente embarcar os três, a nave começa a levantar voou ainda com
o portão de embarque abaixado, onde Belatthor mantinha-se atirando nas criaturas que,
incessantes no ataque, ainda tentavam invadir a nave se dependurando no portão por
levantar. Uma última delas consegue ainda invadir o grande salão pela parte superior do
portão mas, como golpe final, é surpreendida pelo armeiro, que explode sua cabeça
espalhando corrosão pelo convés e sobre um dos braços da sua jaqueta, que Bellattror
tira rapidamente antes de a corrosão o atingir.

– Porcaria, porcaria! Com mil bichos de fedor! E agora, como vou conse-
guir outra dessa?! (resmunga Belatthor)

Agora, finalmente protegidos, os guerreiros resgatados podem render-se ao cansaço


e deitar-se aliviados no convés: mesmo que alguma daquelas criaturas ainda esteja
dependurada na espaçonave, não há nenhum ponto de entrada que faça a ligação entre o
meio externo e o interior da nave, e assim descansam exauridos… Até Haggarde
lembrar-se de Tunna Trull que, desacordado, necessita de atendimento médico imediato.

– Vamos, vamos, me ajudem a carregar o comandante. Ele precisa de so-


corro, rápido! Aqui o ar ainda não está bom para ele. Vamos levá-lo para o cen-
tro de tratamento agora.

Ao atravessar a segunda porta do corredor de segurança que separa o interior da


nave, com atmosfera controlada, do grande salão de desembarque, ainda tomado pela
atmosfera local, já encontram Bellchior e Mojjo Raissin empurrando uma pesada cama
móvel que já trazia presa a si alguns equipamentos de primeiros socorros, como
respirador artificial e equipamento de ressuscitação. Mal é colocado na cama e Bellchior
vai logo instalando o respirador automático, antes mesmo de saber qual o atual estado
clínico do comandante.

– Ele ainda está vivo, Bell? (pergunta Haggarde bastante preocupado, en-
quanto os demais apenas observam com seus semblantes também denunciando
preocupação).

Imediatamente após o respirador, Bellchior instala pelo tórax e braços alguns


receptores ligados a um pequeno monitor na cabeceira da cama: analisa os primeiros
resultados e injeta um líquido na corrente sanguínea do desfalecido comandante e,
praticamente em transe, ignora a pergunta feita pelo chefe de pelotão.

– Bellchior, seu maldito, responda! (iterrompe Borknaggah empurrando o


cientista por um dos ombros e chamando a sua atenção para si) Nós corremos
com o comandante praticamente nas costas, arriscamos nossos próprios rabos lá
embaixo para trazê-lo até aqui. Ele está vivo, ele vai sobreviver?

Com o empurrão Bellchior parece acordar.

– Sim, sim, ele está vivo! E as leituras indicam que vai sobreviver…

As reações de alívio dos três soldados são claramente visíveis em suas feições e cada
um comemora contidamente ao seu jeito.

– Não dá para saber ainda a extensão dos estragos causados ao pulmão e ao cére-
bro do comandante após ter respirado durante tanto tempo a atmosfera agressiva
deste planeta… (continua Bellchior) Ele é forte… mas os danos podem ser irre-
versíveis e ele pode nunca mais voltar a ser o mesmo, se é que vocês me enten-
dem… Ajudem-me a empurrá-lo até a sala de tratamentos médicos: lá, com to-
dos os equipamentos disponíveis, farei o possível para reabilitá-lo…

Todos entenderam o que o cientista quis dizer e, claramente, suas feições


transtornam-se novamente. Dessa vez seria mais complexo descrever o que indicam
aquelas feições pois percebe-se um misto de desapontamento e, de certa forma, de culpa
também. Para um guerreiro Achyroniano, morrer em batalha é honroso, dignifica e,
dependendo dos seus feitos em batalha, engrandece a imagem do falecido. Por outro
lado, castigo pior não há para aqueles homens que o de tornar-se inválido, incapaz,
dependente. E justamente o grande guerreiro Tunna Trull, de tantos feitos heroicos, não
merecia tal fim: agora sentem-se culpado de não o terem deixado lá, para morrer por
combate.

Ao chegarem a sala de tratamento médico, com o auxílio de tesoura e bisturi,


Bellchior retira-lhe as roupas e em seguida desliga-o dos equipamentos da cama móvel.
Faz sinal para que os soldados coloquem-no em uma maca clínica no centro da sala,
onde o cientista prende-lhe ao rosto uma máscara com um pequeno reservatório de ar,
além de protetores para os olhos. O centro médico da nave era bastante equipado e
tecnológico, os Lemurianos são bastante avançados na busca por tratamentos médicos
eficazes e prolongamento da vida, e a sala médica desta nave era uma das mais
abrangentes que Bellchior já vira em uma espaçonave. A maca central, equipada com
escâneres para análises em diversos níveis de abrangência e braços mecânicos guiados
por inteligência artificial, podem realizar cirurgias apenas com um simples comando do
operador. Sobre a maca há uma espécie de cobertura cilíndrica transparente que, por
automação, desce e se se encontra com uma parte equivalente que fica logo abaixo da
maca, formando uma espécie de capsula isolada de alta pressão, isolando-o
hermeticamente do meio externo. Bellchior começa os procedimentos enchendo a
pequena cápsula com um gás descontaminante (que pode ser letal inclusive ao próprio
paciente se este não for devidamente protegido), enquanto um escâner de luz azulada
começa uma varredura pelo corpo desacordado; um segundo equipamento acompanha-o
emitindo um raio de luz em alguns pontos identificados pelo escâner onde há pequenos
ferimentos, realizando descontaminação e também pequenas cauterizações onde tal
procedimento couber. Após terminar a primeira varredura o escâner recomeça a
percorrer o corpo, e dessa vez o segundo equipamento expele jatos de água e gás para
lavar o paciente. Após a limpeza, os gazes e a água são evacuados totalmente por sucção
e então a tampa se abre. Bellchior pede aos homens que ajudem-no a virá-lo de costas e
assim realiza todo o procedimento novamente. A máquina identifica o grande ferimento
causado pela criatura, por onde Tunna ainda perdia sangue e onde o escâner entendeu
que não deveria cauterizar. Após vasculhar o corte com os dedos para confirmar a
informação do escâner de que não havia estilhaços nem corpos estranhos no ferimento,
o cientista procede a esterilização e fechamento com uma máquina manual que apresilha
os dois lados do ferimento.
Encerrado o fechamento do corte e curativo, Bellchior pede que o ajudem a virá-lo
de frente outra vez e então retira-lhe a máscara de ar e os protetores para os olhos, fecha
novamente a capsula e injeta em seu interior um concentrado de oxigênio puro e eleva a
pressão atmosférica no cilindro para o dobro. Espera por algum tempo para ver se há
alguma reação por parte do comandante, para em seguida aumentar para três vezes a
pressão atmosférica com introdução na cápsula de um composto de gás
anestésico/bactericida a base de xenônio. A partir daí são administrados pequenas
descargas de impulsos elétricos contra todo o corpo de Tunna Trull e principalmente à
cabeça. O xenônio reage com as descargas elétricas, o que vai deixando a pequena
cápsula com um bonito e brilhoso tom roxo azulado, e Tunna vai imergindo,
desaparecendo lentamente no púrpuro profundo.

– Um pouco de poesia em meio a tanta desgraça… (desabafa, Bellchior, as-


sistindo ao belo espetáculo. Permanece assim observando por um bom tempo,
quase que hipnotizado, enquanto os outros na sala o observam, estranhando
aquele transe).
– Bell? (interrompe Haggarde, segurando em seu braço e causando um cer-
to constrangimento ao cientista)
– Ãm? Ah, sim… Por favor, deixem-me a sós com ele… agora são desne-
cessários aqui. Deixem-me continuar o tratamento em paz. A partir de agora vo-
cês só atrapalhariam. (determina Bellchior sem dar chances para protestos)
Qualquer novidade eu os manterei informados.

Os três homens saem da sala calados, porém ainda preocupados. Permanecem ainda
por algum tempo observando pela grande janela de vidro que dá para a sala médica, até
Bellchior se sentir mais uma vez incomodado pelos olhares curiosos e acionar o
escurecimento do visor. A verdade é que, além de curiosos com o estado do seu
comandante, tentavam também evitar a situação constrangedora de voltar à sala de
comandos e encarar Hierophantes. Mojjo convida-os para comer alguma coisa e
procurar por mais soldados que porventura possam também ter sobrevivido ao ataque, e
assim rumam os três em direção aos alojamentos…
Ocupados nestas atividades, bom tempo decorre até que os comunicadores são
acionados e os dois soldados são convocados para comparecer à sala de comandos para
ouvir os esclarecimentos de Bellchior sobre o estado de saúde de Tunna Trull. Assim
que adentram pela robusta porta de metal percebem que Bellchior ainda não está na sala
e, inevitavelmente, já visualizam Hierophantes sentado em sua grande poltrona de rei,
esperando-os como se nada especial tivesse ocorrido naquele planeta. Antes que
houvesse qualquer reação por parte dos recém-chegados, Mojjo, acostumado a lidar
com indelicadezas, tenta desmanchar a situação vexatória perguntando à Tristannes pelo
cientista e pelo estado do comandante e, apesar da pouca informação disponível, tenta
prolongar ao máximo a conversa. Percebendo o desconforto palpável por parte dos dois
guerreiros, Tristannes, tentam incrementar a conversa perguntado-os sobre as criaturas
daquele planeta e a sua capacidade destrutiva, e assim aguardam a chegada de Bellchior,
que ainda se demora, mas finalmente chega.
Este momento poderia acirrar ainda mais os ânimos na sala, afinal de contas,
Bellchior não apenas desobedecera uma ordem direta do pretenso rei, mas apontou-lhe
uma arma para realizar o seu intento! E Hierophantes, que aparenta ter esquecido que
ordenara que seus homens fossem abandonados em Tanathos, encara o cientista como se
quisesse deixar bem claro que não esquecera a sua insubordinação. No entanto Bellchior
não parece nada constrangido e entra pela sala como se ele nem ali estivesse.
Mas todos na sala, sem exceção, querem mesmo é saber o destino do comandante:

– Diga-nos Bell, como está o comandante? Está bem? Vai sobreviver? Po-
derá lutar novamente?… (indaga afoito Haggarde)
– Calma, homem, respire ao menos para falar!… Bom, realizei inúmeros testes e
verifiquei lesões nos brônquios, além de contaminação no sangue pelos gases
venenosos que ele respirou. Realizei uma filtragem sanguínea para diminuir a
quantidade desses elementos em seu sistema circulatório, assim como adminis-
trei desinfeccionante diretamente em suas vias respiratórias e catalisador de rea-
ção biológica também por vias intravenosas. Os escâneres não identificaram le-
sões por desoxigenação cerebral aparentes pois, em fato, havia oxigênio para ali-
mentá-lo, e isso pode ser considerado um bom prognóstico. Mas ainda podem
ter sido lesionados os ligamentos e transmissores entre os seus neurônios… E
não sabemos ainda se o ar carregado de elementos nocivos pode gerar descon-
trole celular e multiplicação desordenada e um futuro tumor.

Todos permanecem calados olhando para Bellchior como se não tivessem entendido,
como se ainda esperassem pela sua resposta.

– Falando claramente… (continua Bellchior, balançando a cabeça com ar


de desdém e ao mesmo tempo decepção) Ele parece estar bem, mas será preciso
que ele acorde para saber se, de fato, houve alguma lesão que o deixará inválido
ou com alguma incapacidade, mesmo que momentânea. Enfim, agora só nos res-
ta esperar…

* * *

E essa espera, a princípio angustiante, transformou-se num tedioso e interminável


passar de dias, que pareciam se arrastar lentamente. A animosidade entre o a tripulação
e Hierophantes era visível, aberta e perigosa para o ex-príncipe: Borknaggah precisou
ser contido numa das recorrentes situações em que Hierophantes reclamava o respeito
que julgava ainda ser merecedor. A fim de evitar que Bork colocasse em prática as suas
ameaças, Haggarde, com o devido tom que a conversa pedia, pede a Hierophantes que
permaneça em sua cabine pessoal o máximo que pudesse e que evitasse circular pela
espaçonave, evitando o risco de encontrar com Borknaggah sem alguém por perto que
pudesse contê-lo.
Dias se passam sem nenhuma grande novidade, até que Tristannes, fiel aos seus
monitores, surpreende a todos na cabine:

– Pela espada de Virggo, pessoal! O comandante Tunna desapareceu, não


está mais na cápsula hiperbárica… Nem sinal dele na sala, ou mesmo no corre-
dor do lado de fora!

Na sala de comandos também estavam Jassco e Bellchior, e todos se entreolham


surpresos. As feições de Jassco já demonstram aparente alegria, enquanto Bellchior
demostra preocupação:

– Pelas sete faces de Krig-Ha, eu sabia!


– Como assim, sumiu, Tristannes?! (interfere Bellchior) Já verificou as câ-
meras do perímetro?… Melhor, verifique logo as gravações, precisamos saber
quando e como ele saiu de lá…

Nesse momento a porta da sala de comandos se abre revelando a figura do gigante


guerreiro, que permanece parado à porta por alguns segundos e, antes mesmo que
alguém pudesse manifestar qualquer reação, Tunna evade-se correndo sem dizer
qualquer palavra. Os que lá estavam, ficam confusos sem saber se tal reação seria algum
tipo de insanidade temporária ou mesmo permanente. Tristannes, continua
acompanhando a sua trajetória pelos monitores até, finalmente, compreender o seu
destino:

– Hierophantes…!

Tristannes olha de sobressalto para Jassco, que logo entende o que estava acontecen-
do. Quase que instintivamente a chefe de operações volta-se para o comunicador:

– Atenção Haggarde, Bork, Mojjo − quem estiver mais perto! Corram


imediatamente para a cabine de Hierophantes: Tunna acordou e está indo enfure-
cido pra lá!

Acompanhando-o pelas câmeras, Tristannes vê quando o comandante finalmente


chega à porta da cabine do ex-príncipe e digita o código de segurança no painel lateral:
como chefe de sua segurança pessoal, Tunna era um dos poucos que detinha essa senha,
além do finado Crudde e o próprio Hierophantes.
Tunna mal espera a porta estar completamente aberta e entra no aposento real veloz-
mente em direção ao príncipe Hierophantes, que já ouvira pelos altifalantes que seria vi-
sitado pelo seu antigo “braço direito”, e já o esperava apavorado. Tunna Trull agarra-o
pelo pescoço, e o remove de sua cama, encarando-o por rápidos segundos e, sem lhe dar
tempo para esboçar qualquer reação além de pavor, desfere-lhe dois socos tão potentes
que o arrancam da sua própria mão. Sem perder tempo, Tunna Trull cata-lhe no chão e
levanta-o acima de sua própria cabeça, arremessando-o contra uma das paredes da sala
onde havia alguns armários, que se abrem em estardalhaço com força do impacto!
Finalmente Haggarde e Belatthor chegam ao quarto e correm para segurá-lo. Mojjo
chega logo em seguida para ajudar na difícil tarefa de tentar conter o gigante enfurecido,
enquanto Borknaggah, o próximo a chegar, permanece à porta apenas observando

– Calma, Comandante! Acalme-se! (interfere Haggarde, tentando frear o


seu comandante que parece não escutar ninguém naquele momento, tentando se
soltar a todo custo numa raiva desenfreada)
– Pare, Tunna, já chega! (interrompe Tristannes, entrando na frente de Hie-
rophantes que, caído no chão de olhos arregalados, mantêm-se catatônico) Agora
somos poucos, precisamos de cada um nessa nave. Agora, mais do que nunca,
precisamos nos unir para sobreviver…

Tunna permanece por alguns segundos ainda tentando se soltar até que vai
diminuindo a força aplicada:

– Seu desgraçado! Eu acreditei em você, eu lutei por você! (desabafa Tun-


na Trull já contendo a força do seu ataque) Se aproveitou da perseguição do seu
irmão contra mim e me fez acreditar que você era diferente dele. Me fez acredi-
tar que era um homem de verdade, que seria um governante melhor pro nosso
povo! Eu queria justiça pelo trono que havia sido usurpado por Cronnus e sua
mãe feiticeira…
Eu acreditei em você! Eu montei esse exército pra você! Eu recrutei cada
homem que embarcou nessa nave! Eu trouxe os melhores pro nosso lado e todos
eles acreditaram em você também… Porque eu os fiz acreditar na minha
ilusão… Agora estamos todos fodidos por sua causa… E você queria
simplesmente nos deixar lá embaixo, como objetos dispensáveis, para sermos
aniquilados por aquelas criaturas?!!
– Você parecia estar morto… Eu pensei que estivesse! (responde, temeroso,
Hierophantes)

Nesse momento Tunna parece explodir de raiva novamente e tenta se soltar dos
companheiros que ainda o seguravam: e quase consegue.

– Desgraçado! Mesmo que eu estivesse morto, haviam dois dos nossos lá


embaixo com chances de serem resgatados, pedindo por ajuda, e você simples-
mente os ignorou, mandou que os deixasse lá embaixo para morrer! E isso te-
mendo pela sua própria segurança! Um líder honrado, um líder de verdade, arris-
ca a própria vida pelo seu exército. Foi o seu antepassado mesmo quem disse
isso!
Você não é líder, você não é rei, você não é honrado… Pra mim você não é nada!
E de hoje em diante, eu não reconheço mais a sua autoridade. Aliás, é melhor
você nem olhar mais na minha cara… Porque por um tantinho assim, assim ó…
(mostrando com os dedos) eu juro que esmago sua cabeça com as minhas
próprias mãos!

Demonstrando mais controle sobre si, Tunna pede aos companheiros que o soltem e
retira-se da sala, deixando o pretenso rei caído no chão, humilhado e envergonhado.
Daquele momento em diante, por convicção dos próprios sobreviventes naquela nave,
Tunna assumiu definitivamente a figura de líder daquela fracassada expedição, apesar
de jamais ter se autoproclamado como tal. Todas as decisões importantes eram sempre
levadas à consulta do grande guerreiro, que as tomava de forma natural, como se
tentasse simplesmente ajudar aos companheiros. Quanto a Hierophantes, se já era
calado e reservado, trancou-se ainda mais em seu mundo particular, e quase não falava
com ninguém nem participava de qualquer decisão coletiva, passando a maior parte do
tempo trancado em sua cabine pessoal. Bellchior, e até mesmo Jassco, ainda o tratavam
com algum respeito, mas era completamente ignorado por Tunna Trull, Haggarde e
Tristannes, e ainda recebia olhares ameaçadores do rancoroso Borknaggah e seu amigo
Vyrr Belatthor, que nunca o perdoaram por não ter autorizado aquele resgate.
O único naquela espaçonave que ainda tratava Hierophantes com alguma pompa era
Mojjo Raissin, o “faz-tudo” da nave; e o fazia não por respeitá-lo de fato, mas mais por
uma questão de autopreservação: se algum dia este reconquistasse a sua majestade, não
haveria problemas entre os dois. Mojjo sobrevivera àquela sequência de desventuras
fazendo justamente o que costuma manter os indivíduos vivos e seguros: mantendo
distância de toda e qualquer ameaça ou confusão. Mas Mojjo não era exatamente um
covarde, como Borknaggah recorrentemente gostava de tachá-lo (além dos outros
xingamentos ligados as suas praticas sexuais), ele simplesmente preferia manter-se a
salvo a arriscar as glórias de uma vitória em batalha. E já que não estava naquela nave
para lutar e sim para entreter a tropa ou prestar apoio nas atividades gerais, ateve-se às
suas atividades. Estava entre os amotinados atendendo a um chamado do próprio Tunna
Trull, por quem tinha grande amizade e um forte sentimento de gratidão, por ter sido
salvo por ele de uma emboscada armada por alguns aldeões enfurecidos com as suas
peripécias sexuais junto às suas filhas, filhos e esposas, e onde quase fora morto. Mojjo
era músico e poeta em casas noturnas de baixa categoria em Lunna Canttus, cidade real
de Achyros, e vivia cada dia como se não houvesse amanhã. Após se recuperar da surra
que quase o matara, Tunna o convidou para entreter o seu destacamento. Na espaçonave
vivia cantarolando e exercitando a sua orientação poética, o que irritava bastante
Borknaggah que, vez ou outra, era vítima dos seus versinhos. Já Tristannes apreciava
bastante: principalmente porque boa parte destes versos eram galanteios dirigidos à sua
pessoa, ou eram mesmo ironias e chacotas sobre Borknaggah.

* * *

Com os ânimos abrandados, após a confusão, Bellchior insistira muito para que
Tunna se submetesse a alguns exames a fim de tentar descobrir algum possível dano
causado, não só por ter respirado o ar daquele planeta, mas pelo próprio contato direto
com aquelas criaturas, mas logo aos primeiros procedimentos Tunna Trull, impaciente,
afirma que se sente bem e pede para que “não insista mais com esta bobagem” a pena de
ficar irritado. Muito mais interessado estava em saber o que se passou enquanto estivera
inconsciente e qual a situação da nave. Acessando o computador central, Bellchior tenta
colocá-lo a par de toda a situação:

– Desde que vocês embarcaram tratei de tentar trazê-lo de volta ao mundo


dos vivos. Enquanto permaneci trancado na sala médica, Jassco continuou
sobrevoando o planeta e conseguiu captar algumas imagens de outras naves que
aterrizaram neste planeta antes de nós. Esta (apontando no visor) é claramente
uma nave lemuriana, um modelo mais primitivo, já em desuso mas, claramente
lemuriana. As outras são completamente desconhecidas por nós: provavelmente
de outras civilizações evoluídas de algum outro lugar longínquo na vastidão do
espaço. Não fora detectado pelos nossos computadores qualquer movimentação
que pudesse indicar sobreviventes em qualquer dessas espaçonaves e, pela
vegetação que crescera em volta e até sobre elas, além dos sedimentos
acumulados sobre algumas delas, provavelmente estão no planeta há muito
tempo! Os Lemurianos não possuem dados sobre este planeta em seus bancos de
dados, mas sabiam do que acontecera à expedição que pousou aqui e do perigo
que representam aquelas criaturas; eles não nomearam este planeta como
pensamos, eles colocaram, isso sim, um aviso em seus mapas intergaláticos!
Tanathos, na cultura e crença dos Lemurianos, é a personificação da própria
morte! Um aviso claro e eu não compreendi… Um lapso intelectual da qual não
consigo me perdoar…
– Esqueça, homem, agora não adianta mais se torture por isso; estamos
todos afetados por tudo que tem acontecido desde aquele fracasso em
Amorphos… E sobre aquelas criaturas? Conseguiu descobrir alguma coisa útil
sobre elas?
– A meu ver, são organismos perfeitos! Seres que conseguiram evoluir
neste planeta tão inóspito, capazes de sobreviver em condições e ambientes
extremos. Pelo que pude perceber, são caçadores perfeitos que se comunicam
entre si de alguma forma ultracerebral, superior, passando telepaticamente
informações em massa sem a utilização de qualquer equipamento tecnológico.
Apesar do seu tamanho e força, conseguem se mover sorrateiramente na
escuridão enquanto estudam suas presas e esperam o momento certo para
atacar… Por fim, um sistema biológico de autodefesa capaz de eliminar
qualquer um que por ventura consiga feri-los, liberando sobre o inimigo aquela
substância corrosiva que corre em suas entranhas.
– Pelo jeito que fala, você até parece admirar aqueles monstros, Bell!
– Eu admiro a sua perfeição estrutural, só comparável a sua eficácia: um
sobrevivente desprovido de consciência, remorso ou noções de moral…

Um estranho momento de silêncio toma conta da sala, onde cada um parece afundar
em suas próprias lembranças daquele planeta e daquelas criaturas. Um transe da qual
Tunna retorna primeiro:

– E a nave, conseguiram consertá-la?


– O trabalho era minucioso e demorado, não houve tempo suficiente: as
criaturas chegaram antes mesmo que pudéssemos concluir metade do serviço. E
pior, todo o material de reparo acabou ficando naquele platô.
– Poderíamos tentar recuperar o equipamento. Precisamos, na verdade!
– Sim, mas tentar reavê-los seria perigoso demais. Oito homens
desembarcaram todo o material em mais de meio ciclo: são placas muito
pesadas, equipamentos de solda e reconstrução, ferramentas, peças de reposição,
fiação, resina… Enfim, em quanto tempo vocês cinco apenas conseguiriam
reembarcá-los? Aliás, retifico, dos cinco, ainda precisaríamos manter alguém de
arma em prontidão. E em quanto tempo aquelas criaturas nos atacariam, agora
que já nos conhecem e que não há mais o que se estudar? Quantos deles nos
atacariam dessa vez? Seria muito arriscado… Até porque, pelas minhas análises,
o chassi na nave fora empenado e talvez não seja possível mesmo consertá-la
para tentar reabilitar o Sealcon…

Ainda não totalmente convencido dos riscos de uma missão de resgate, Tunna
mantêm-se pensativo tentando encontrar alguma saída, uma solução para o problema.
Para tentar conter o raciocínio impávido do guerreiro, o que poderia levar a uma ação
suicida, Bellchior continua falando, roubando-lhe a atenção:

– Como disse: enquanto estivera trancado aqui com você, Jassco


permaneceu sobrevoando e explorando o planeta, consumindo combustível
químico, que é o que nos resta agora, sem o Sealcon. A fim de economizar
combustível, pedi para que ele encerrasse a exploração e subisse ao espaço para
que, então, ficássemos orbitando o planeta sem gastar combustível dos nossos
reservatórios: 7.7 de 10 é tudo que nos resta para procurarmos algum lugar
viável para nós. (há uma pequena pausa fatídica na conversa onde, pela troca de
olhares, Tunna é capaz de deduzir o que Bellchior reluta em dizer)
Mas… pelos mapas Lemurianos, não há dados sobre qualquer planeta próximo
capaz de sustentar vida. Também estamos longe demais para retornar…
– Já entendi: estamos ferrados! Condenados a vagar no espaço até
morrermos de fome…
– Bom, quando acabar a nossa reserva de alimentos, a nave ainda pode
sintetizar durante algum tempo um composto orgânico capaz de nos manter
alimentados. A partir daí só nos resta, de fato, as câmaras de estase!

Tunna levanta-se e sai da sala em silêncio, interrompendo abruptamente enquanto


Bellchior ainda falava. Sai à caminhar sem destino aparente pelos compridos corredores
da grande nave como se quisesse pensar ou achar alguma solução viável para aquela
situação. Enquanto caminha é seguido pelos olhares de Tristannes e Jassco que o
acompanham pelos monitores da cabine de comando. Pela aparente desolação do seu
comandante, sabem que as coisas ainda não estão em vias de melhorar.
Alheio aos seus expectadores, o grande guerreiro caminha até chegar ao fim da linha:
o grande salão de desembarque, por onde entrara quase morto da última vez. No local
há ainda um leve fedor de putrefação no ar, que emana dos restos da carcaça da
criatura, ainda espalhadas pelo saguão. Sem ter mais para onde caminhar, Tunna senta-
se, e ali permanece pensativo por um longo tempo.

* * *
Após um longo período de apatia, Tunna parece despertar. Levanta-se e, apressado,
logo está na cabine de comandos conversando com Bellchior e pedindo a Tristannes que
convoque a todos para uma reunião urgente.
Tristannes trata de bradar nos altifalantes de toda a espaçonave sobre a convocação e
assim, um a um, vão chegando os remanescentes.
Logo após a chegada do último deles, justamente Hierophantes, que não parece
muito contente em ser chamado para uma reunião da qual sequer fora consultado:
àquela altura ainda não havia entendido plenamente que já não representava uma
autoridade para aqueles tripulantes.
– Soldados, (inicia Tunna) sabemos agora que toda essa jornada foi uma
ilusão maluca, uma grande besteira… e o quanto ela nos custou! Sinto-me
profundamente culpado e envergonhado de ter trazido vocês, e cada homem do
nosso exército, para essa aventura despropositada…
– Comandante, lutar ao seu lado é uma grande honra! Não há motivos para
se lamentar. (interrompe Haggarde de Itheria, enquanto os olhares e cabeças
balançando em sentido afirmativo dos demais soldados indicam se tratar de uma
opinião geral) Todo guerreiro cai de joelhos um dia, mas nem todos morrem ao
lado do maior guerreiro que Achyros já pariu desde o grande Virggo.
– Eu marcharia para morte ao seu lado, comandante! (enfatiza Tristannes
Stavannger sob o olhar de endosso de Jassco Mahatta)
– Não me considero merecedor de tamanha estima, meus amigos, mas eu
sim, me sinto honrado com tamanha consideração… Mas o fato é que essa
jornada talvez tenha sido isso mesmo: uma marcha para morte! O nosso Sealcon
não pôde ser consertado e não podemos mais atingir a hipervelocidade. Ainda
temos muito combustível químico nos nossos tanques, o que nos permite ainda
viajar por um longo tempo. Mas, viajando à velocidade convencional, o tempo
seria justamente o nosso maior carrasco. Mesmo sabendo do perigo que
corremos se formos capturados por Cronnus, talvez até fosse melhor viver como
fugitivos dentro de Aria Galáctica do que vagando no desconhecido como
estamos. Mas já estamos distantes demais até para voltar, e nem isso será
possível sem a hipervelocidade: o nosso tempo de vida acabaria antes mesmo
que pudéssemos voltar aos limites de Aria Galáctica. (em seguida aponta para
Bellchior)
– Temos as câmaras de estase (responde Bellchior Calabbar), que poderiam
manter os nossos corpos por tempo indefinido. Porém os testes realizados já
demonstraram que a utilização da estase por longos períodos preserva o corpo
estruturalmente, mas biologicamente afeta de maneira drástica o seu
funcionamento e, nos mais de 50 anos que precisaríamos ficar em estase para
somente chegar nas bordas longínquas de Aria Galáctica, provavelmente
acordaríamos apenas para sofrer de atrofias metabólicas, choques diversos e
liquefação celular, o que, de qualquer forma, não é uma perspectiva viável.

Alguns ali se entreolham, talvez buscando nos companheiros o entendimento do que


explicara Bellchior. Tristannes, demonstrando irritação, tenta explicar de maneira
simples:

– Então… Se a gente se congelar por muito tempo, nosso corpo vira bosta
e morreríamos de qualquer jeito quando saíssemos do casulo!
– É isso! Fale claramente, Bell. (enfatiza Tunna com ar de riso e em
seguida apontando para Bellchior indicando para que continue)
– Também não sabemos se conseguiremos chegar a qualquer planeta
habitável, ou que, pelo menos possa nos fornecer suprimentos… Mas existe sim
uma grande possibilidade, já que existem milhares de planetas ainda
desconhecidos fora de Aria Galática. Os suprimentos que temos de comida e ar
não durarão tanto tempo então, o mais viável seria viajar por um tempo
consumindo uma parte estabelecida de nossos estoques de ar e comida,
buscando assim por algum planeta que nos sirva e, se nossa busca não encontrar
nada até consumirmos essa tal parte dos suprimentos, teremos que nos abrigar da
fome e do tempo nas câmaras de estase. A nave continuará a sua busca sem nós
e, se algo for encontrado, ela nos acordará.
– E se não encontrar? (pergunta Jassco Mahatta)
– Se não encontrar, meu amigo… pelo menos estaremos dormindo e não
veremos a morte nos pegar por velhice… (responde Tunna)

Um clima meio dramático toma conta da sala enquanto cada um ali parece mergulhar
em seus próprios pensamentos: talvez pensando em suas próprias vidas e no que
deixaram para trás, ou mesmo no destino nada honroso de morrer dormindo, e
justamente tentando fugir do encontro com a morte…

– Ora, e por que raios precisamos tanto do sealcon? (interrompe


Borknaggah) Se temos muito combustível, por que não usamos todo o nosso
combustível de uma vez para acelerar até a hipervelocidade e aí sim deixamos a
nave vagar pelo espaço enquanto hibernamos nas malditas cápsulas congelantes.
Quando chegarmos a algum planeta nos infernos escondidos de Aria Galáctica,
ela nos acorda!

Tunna olha para Bellchior como se pedisse para que ele responda a pergunta de
Bork. Ele próprio parece cogitar a possibilidade e parece estar interessado na resposta.

– Meus jovens, vou desconsiderar tamanha ignorância, por saber que o


conhecimento científico é algo alheio as suas atividades! (inicia Bellchior, com
sua conhecida falta de empatia e traquejo com o seu próprio povo, tão mais
interessados em habilidades físicas e lutas corporais do que no desenvolvimento
intelectual)
Vocês entendem que quanto mais se acelera um veículo, quanto mais veloz,
mais combustível ele consome, certo? (Tristannes e Tunna balançam a cabeça
confirmando que compreenderam)
Pois então, a aceleração para atingir a hipervelocidade é tão descomunal,
consome tanta energia [ou combustível, para que vocês entendam melhor], e
cada vez mais e mais enquanto se acelera, que o que temos em nossos
reservatórios não daria nem para chegar perto da aceleração que precisamos para
atingir-la. A hipervelocidade é de uma grandeza tremenda que é capaz de
distorcer o próprio tempo: que passa mais devagar dentro de uma espaçonave
em HV. E quando se atinge tal velocidade, outra porção ainda mais gigantesca
de combustível se faz necessária para mantê-la nessa velocidade: dez tanques
cheios como os nossos ainda não seriam suficientes para tal. Eu mesmo passei
boa parte da minha vida acreditando ser impossível atingir tamanha velocidade,
até ser surpreendido pela tecnologia das naves lemurianas. A grosso modo, o que
essas placas do lado de fora fazem é justamente extrair ou capturar toda e
qualquer forma de matéria ou de energia que dela se aproxime e assim
decompô-las, transformando-as em combustível para os propulsores da nave.
Elas são tão poderosas e abrangentes que decompões, inclusive e
principalmente, a Massa Escura e a Energia Negra, que são os elementos mais
abundantes no universo e que, porém, são invisíveis para nós, pois não emitem
luz nem qualquer radiação. Mas estão lá fora, por toda parte, em grande
quantidade, inclusive no suposto vazio do espaço. A Massa Escura e a Energia
Negra são tragadas pelo Sealcon, decompostas e transformadas em combustível
para a espaçonave, e são a única fonte inesgotável e capaz de suprir a quantidade
de energia que precisamos para atingir a Hipervelocidade. E somente essas
placas conseguem tragá-las e decompô-las.

Borknaggah permanece um tempo olhando para Bellchior, como que digerindo as


informações prestadas e então insiste:

– Se é assim, então porque não ligamos as placas assim mesmo, faltando


algumas? Ainda estão quase todas aí fora!

Bellchior balança a cabeça em sinal negativo, mas mais como sinal de desdém do
que propriamente como resposta à pergunta:

– Essas placas, além de decompositoras de matéria, também funcionam


como um escudo energético que isola a nave do meio externo. E elas ainda tem a
função de conter a ação umas das outras, impedindo que elas devorem a própria
estrutura da nave: por isso as espaçonaves são completamente cobertas por elas
sem brechas entre uma e outra. Se acionássemos as placas assim com um buraco
entre elas, nos condenaríamos duplamente: primeiro que as próprias placas não
isoladas comeriam o casco da nave na região onde há o buraco, e segundo que,
caso conseguíssemos nos aproximar da hipervelocidade, o casco explodiria pela
falha no escudo energético devido a elevadíssima diferença pressão entre o
interior da nave e o meio externo. Por isso não podemos ligar o Sealcon com o
revestimento incompleto assim como está!
– Então é isso, meus amigos! (acrescenta Tunna de modo enfático) E se
rumássemos em velocidade convencional em direção a Aria Galáctica, além de
termos a certeza que ficaríamos décadas em estase, ainda estaríamos
vulneráveis, congelados em sono profundo. Com certeza Cronnus está nos
procurando por toda Aria Galáctica e não descansará enquanto não nos achar:
poderíamos ser facilmente detectados por alguma nave ou posto avançado, antes
mesmo que chegássemos em algum planeta que pudesse nos esconder, e aí
estaríamos ainda mais fodidos. Por isso precisamos nos afastar de Aria
Galáctica, e com a esperança que possamos encontrar, algum dia, algum lugar
para nos abrigar… e bem longe de Achyros e da vingança Haggard. Essa é a
nossa realidade agora: precisamos encontrar um novo lugar pra gente! Perdemos
tudo: nossas casas, nossas famílias e por muito pouco não perdemos as nossas
próprias vidas. E é por nossas vidas que vamos lutar agora: é tudo que nos resta!

Todos sentem o peso das palavras de Tunna Trull e sabem o quão difícil é para ele
admiti-las. Quem parece não querer assumir a sua responsabilidade pela situação é
Hierophantes, que sai da sala sem emitir uma única palavra e ainda demonstrando
descontentamento com a recente perda de importância junto aos remanescentes do seu
antigo exército. Aos demais, apesar de todas as perdas, o gosto pela aventura e pelo
desconhecido ainda mantinham uma pequena fagulha pulsando em seus corações.

* * *

Os dias que se seguiram, no entanto, não ajudaram muito a manter essa chama
acessa; os dias se repetiam como iguais: um martírio de espera compartilhado com as
mesmas feições preocupadas; a cada novo planeta avistado e verificado, a esperança
logo dava lugar às decepções: um mar de rochas mortas e estéreis girando na imensidão
do espaço. Várias providências de economia foram tomadas para tentar distanciar o
sono da desesperança, aquele que poderia ser o sono final: os sobreviventes foram todos
alojados nas cabines principais destinadas aos comandantes, e as áreas dos alojamentos
da tripulação e soldados, assim como a casa de máquinas, área de carga, depósito de
armas, área de desembarque e corredores de circulação entre esses setores, foram todos
lacrados eletronicamente para assim diminuir a área de circulação de oxigênio. Para
diminuir o consumo de alimentos e também de oxigênio, as atividades físicas que
exigem grandes esforços, como treinamento pessoal e de desenvolvimento da
musculatura, também foram proibidas, restringindo cada vez mais a vida a bordo ao
contato direto com os companheiros de jornada.
Porém esse contato frequente e involuntário só servia para acirrar os ânimos entre
eles, e as discussões e “quase” brigas se tornavam cada vez mais frequentes; até que
finalmente chegaram às vias de fato! Essas brigas invariavelmente envolviam
Borknaggah e a sua intolerância com os demais; Certa vez derramou em Mojjo a sopa
que este preparara, dizendo que não aguentava mais comer a mesma “porcaria” todos os
dias: acabaram em luta corporal e quase destruíram a cozinha; Noutra vez tentara
invadir a cabine pessoal de Hierophantes para esmurrá-lo gritando que “toda aquela
merda era sua culpa”; Brigara várias vezes com Jassco Mahatta, que revidava com
violência as suas zombarias e, quase sempre, Tunna Trull e Haggarde tinham que
apartá-los. Até que finalmente Bork tentou estuprar Tristannes, alegando que seria “sua
obrigação satisfazer a cada macho naquela espaçonave, já que era a única mulher a
bordo”. Essa sua última agressão fora contida pela própria Tristannes com uma
punhalada em uma de suas coxas. Depois dessa última agressão, cansado de alertá-lo
sobre o seu comportamento, Tunna pediu a Bellchior que o sedasse enquanto tratava do
corte em sua perna. Assim Borknaggah fora o primeiro a ser colocado em estase:
mesmo sem o seu consentimento.
Mas destino semelhante não tardaria para todos naquela espaçonave. Após alguns
meses viajando à máxima velocidade possível, apenas dois sistemas solares vizinhos
haviam sido visitados, e sem encontrar qualquer planeta capaz de manter vida ou capaz
de fornecer-lhes suprimentos. Como o próximo sistema planetário ainda se encontrava
em distância bastante considerável e os recursos a bordo já amargavam níveis
preocupantes, reuniram-se e decidiram que havia chegado o fatídico momento. Um por
um, cada sobrevivente da Suppernova ia sendo entubado e colocado em estase, sendo
anexados aos sistemas da grande nave e entregue finalmente aos seus cuidados, até
restar apenas o cientista Bellchior, o único a bordo capaz de tomar todas as providências
necessárias para deixar a nave em modo autômato, viajando e procurando por algum
planeta viável. Destino irônico os colocara novamente sob a proteção do gatilho que
desencadeara toda aquela sequência de desgraças, a Suppernova; e sob os cuidados do
cientista Bellchior, em verdade o único que não estava naquela espaçonave por uma
escolha própria. E justamente ele, que sempre pautara sua vida na autodeterminação, no
autocontrole e no planejamento, agora se encontra vítima dos acasos, rumando para
destino completamente incerto e responsável pela vida daqueles que arruinaram a sua.
Tamanho fardo se mostrou pesado demais para se carregar; e antes que pudesse
tomar uma iniciativa trágica, vingativa, o cientista também decidiu adormecer. Agora
não havia mais volta, agora não havia outra opção: a expedição Achyrone dispara…
rumo ao silêncio profundo e completo…

* * *

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