Você está na página 1de 2

Lembro-me de ser um catraio com os seus 6 anos de idade e ter um dia ido, de mão

dada com os meus avós, até aquilo a que hoje tão comunalmente chamamos ‘Rotunda
do Papa’, era estranho não haviam carros na rua mas havia muita gente e muito barulho,
no entanto o que mais me saltava à vista era a quantidade de carros coloridos com as
mais diversas cores, desde o vermelho ao amarelo, do roxo ao azul, passando pelo
invariável branco.
A data seria algo como um 6 de Maio de 1997, uma Terça-feira, um bocado a medo
perguntei à minha avó o que se passava ali e porque razão gritavam tanto aquelas
pessoas mas acima de tudo porque estavam a dar livros de várias cores, latas do que na
altura me parecia sumo (e que hoje sei que muito provavelmente era cerveja) e outras
coisas que tal. Ela riu-se para mim e explicou-me que era algo chamado Queima das
Fitas.
Fiz um ar confuso, que nome tão estranho para descrever o que ali se passava. O meu
avô notando a minha aparente confusão ajoelhou-se e explicou-me que aquilo era
chamado de Cortejo dos Quartanistas e Quintanistas. Os ‘selvagens’ que iam aos saltos
em cima dos carros eram os Quartanistas acompanhados pelos Quintanistas que,
envergando orgulhosamente um Fato e Cartola e munidos de uma bengala,
acompanhavam a pé os seus colegas mais novos. Não percebi muito bem mas achei
bastante piada ao que os ditos Quintanistas faziam uns com os outros, uma vez mais o
meu avô explicou-me que para muitos deles aquele seria o último cortejo enquanto
estudantes e que em breve iriam ter que abandonar essa vida que tantos gostavam e que
para alguns teria sido a melhor parte da sua vida. Fiquei fascinado e perguntei-me se
algum dia iria ser eu ali a brincar com uma Cartola e uma Bengala, não entendia muito
bem porque é que alguns tinham que ir de ambulância (presumi que estivessem
extremamente cansados de tanto brincar) mas isso também não era importante; desde
pequeno que percebi que era aquilo que queria.
Os anos foram passando e para trás ficou essa inocente idade dos seis. Deixei de andar
de mão dada, deixei de todo de ter que andar com pais ou avós atrás para poder andar na
rua, muito mudou é certo, excepto aquele sentimentozinho que havia ganho desde
aquela Terça Feira. Tive vários primos que antes de mim passaram por essa vida e me
falaram dela, a maneira como ma relatavam só me podia deixar ainda mais interessado,
falavam-me de entre outras coisas de uma coisa chamada Praxe, nunca tinha ouvido tal
termo.
Explicaram-me então que para muitos era apenas um amontoado de regras encadernadas
que tinha de ser seguido à risca mas que para alguns era um modo de vida, era como se
fosse um manual de etiqueta mas neste caso para a vida académica, disseram-me que
grosso modo era uma compilação dos saberes e tradições académicas. Não entendi o
que queriam dizer com aquilo mas eles também me tinha prevenido que não conseguiria
entender sem primeiro passar por ela e a sentir. O certo é que fiquei intrigado, o que
seria essa coisa capaz de deixar qualquer um em lágrimas em plena Serenata
Monumental (outra coisa que me deixou curioso quanto ao que realmente seria) e que
quanto partimos fica marcado em nós como se da cicatriz de uma profunda ferida se
tratasse. Uma coisa podia garantir, mais do que nunca, queria descobrir esse novo
mundo que aparentava existir para lá dos Arcos.
E quando esse dia finalmente chegou não podia estar mais feliz. Fazia desde esse
momento em diante parte da Associação Académica de Coimbra, e maior e mais
prestigiante Academia deste País, e quem sabe desde Mundo. Não vou dizer que saí a
correr de casa saltitante a caminho da faculdade para finalmente me inscrever mas posso
dizer que não haveria ninguém mais entusiasmado que eu em ser caloiro.
Claro que todo este entusiasmo virou medo mal apanhei pela frente o primeiro Doutor.
Convenhamos, quantos de nós em caloiros não começámos por ter medo dos Doutores?
A Praxe é assim mesmo, Doutor é Doutor, e caloiro é besta assustada. Admito que a
inicio não percebia a razão do ‘gozo’ e não percebia a razão para aqueles senhores nos
massacrarem durante horas a fio. As semanas foram passando e fui finalmente
percebendo qual a essência desta tão bela tradição. A Praxe entre Caloiros e Doutores
era tão somente uma maneira de dar a entender que nesta academia a idade que conta é
a idade académica, e que acima de tudo há que ter respeito para com quem é mais velho,
pois teoricamente terá mais experiência e vivência académica, restando senão ao caloiro
respeitar e aprender o melhor possível com o doutor para um dia ser ele o doutor que
educa. O conceito agradou-me e durante algum tempo senti que vivia aquilo por que
sempre havia ansiado. Era caloiro, fazia uso do meu único direito, o de ser praxado,
com orgulho e só faltava mesmo a honra de usar aquela magnífica Capa e Batina. Mas
se a ilusão inicial de caloiro me deixou deliciado a realidade enquanto doutor revelou-se
dura e madrasta. Quando se é caloiro tudo é novidade e por muito má que possa ser, aos
nossos olhos vai ser algo de sublime. Mas não chega a ser preciso um ano para tudo
mudar e para a realidade nos cair em cima. E a realidade é tão-somente esta: A
magnífica Praxe, que fez do meu ano de caloiro provavelmente o melhor da minha vida
até este momento, está a morrer. Que é feito de todas aquelas bestas e doutores que
enchem avenidas durante cortejos da Queima e da Latada, que é feito desse espírito que
só se mostra duas semanas por ano se tanto. É um suplício assim tão grande vestir este
nosso belo traje académico e transmitir ano após ano o significado do que significa não
só ser estudante mas, sobretudo, ser estudante em Coimbra
A cada ano que passa mais fundo é a o golpe do afiado punhal que muitos
conscientemente lhe espetam. Mais e mais são aqueles que vêm para Coimbra porque é
a moda, porque é cá que estão, e passo a citar, as ‘gajas’., porque cá é que se
embebedam a valer. Cada vez menos são os que vêm até cá na expectativa de entender a
tradição dum modo mais pessoal, dar valor ao nosso belo Fado de Coimbra, descobrir o
que significa dizer que ‘Coimbra é uma Lição’ ou quanto mais não seja perceber o que é
e onde fica ao certo do Choupal.
Não entendo como é possível não sentir um tremor no peito de cada vez que se ouve a
palavra Coimbra ou de cada vez que uma guitarra coimbrã estrilhaça nesse maduro
Maio pela praça da Sé Velha. Não entendo como é possível haver quem não valorize
uma noite de boémia a rebolar por uma calçada abaixo da Alta até à Baixa e de leve
ânimo a troque por uma noite numa discoteca da moda. Como é possível haver tantas e
tão históricas tascas que antigamente com a luz das suas candeias no interior alumiavam
as ruas noite dentro hoje fechem ás dez da noite porque não há clientela? Será
minimamente justificável toda esta perda que estamos a sofrer?
Como um saudoso poeta, que um dia passou por estas terras do Mondego, disse: É
urgente o amor, é urgente permanecer. Mais do que nunca isso é preciso, é preciso amor
a esta camisola, a tradição é bela e extensa demais para nos darmos ao luxo de a renegar
e para sempre a perder.
È certo que a sociedade no geral mudou muito nestes poucos anos, mas Coimbra,
Coimbra é eterna; sempre foi um universo à parte do resto do país, é quase uma mãe
para muitos de nós, uma mãe que nos recebe de braços abertos enquanto caloiros e que
chorosa nos acena em despedida no momento da partida.

Você também pode gostar