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FACIS
A Sombra
A favela e seus moradores: um estereótipo coletivo
São Paulo
2016
Lidyane Mendes Silva
A Sombra
A favela e seus moradores: um estereótipo coletivo
São Paulo
2016
RESUMO
RESUMO....................................................................................................................................2
SUMÁRIO..................................................................................................................................3
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................4
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CONCLUSÃO..........................................................................................................................29
REFERÊNCIAS........................................................................................................................30
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INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
A estrutura e a dinâmica da psique
A Psicologia Analítica originada a partir das idéias de Carl Gustav Jung traz conceitos
que antecipam os interesses socioculturais da nossa atualidade. Dentre a complexidade da
psicologia analítica e a influência das idéias ousadas de Jung sobre várias disciplinas,
proponho neste capítulo atentar para seus conceitos de consciência, inconsciente pessoal,
inconsciente coletivo, projeção, persona, sombra pessoal e coletiva e individuação. Entendo
que tais conceitos contribuirão para a leitura atual, no que se refere a examinar a questão da
projeção de aspectos da sombra coletiva na favela e em seus moradores sob o prisma da
psicologia analítica. Para tanto, precisamos entender como a psique está constituída e
estruturada e de que forma ocorre a projeção da sombra e suas conseqüências.
Para Jung, a psique é “a totalidade de todos os processos psicológicos, tanto
conscientes quanto inconscientes” (JUNG, 2008, p.388). Para ele tudo que experimentamos é
psíquico, não sendo possível separar a alma do corpo, ou a psicologia de pressupostos básicos
da biologia. A psique é dotada de extrema capacidade de variação e transformação, como
refere em sua obra A Natureza da Psique (JUNG, 2000a, p.144).
A função psicológica resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes, e
com a análise desses conteúdos que Jung refere na obra supracitada faz-se então a distinção
sobre a estrutura básica da psique em três níveis: consciência, inconsciente pessoal e
inconsciente coletivo.
Jung considera a consciência como fenômeno intermitente e afirma que boa parte da
vida acontece em condições inconscientes. A consciência pode apreender poucos dados
simultâneos num dado momento, sendo tudo mais inconsciente. Ou seja, o campo consciente
é limitado e brota do inconsciente; é como se uma lanterna iluminasse uma caverna escura,
sendo a consciência o foco de luz, e a área de tamanho desconhecido que permanece escura, o
inconsciente. (Cf. JUNG, 2001, p.3).
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pois ele contém todo o material que ainda não alcançou o limiar da consciência (JUNG,
2011b, p. 133).
Os processos inconscientes revelam-se apenas através dos seus produtos não sendo
possível uma relação direta com tais processos. Trata-se do inconsciente a fonte obscura que
os produz. Esta por sua vez considerada a terceira fonte de conteúdos conscientes atingem a
superfície da consciência com o auxílio das funções endopsíquicas (memória, processos de
julgamento) citadas anteriormente. (JUNG, 2001, p.1).
Conforme Jung (2001, p.1) embora os elementos inconscientes não possam ser
observados diretamente, podemos classificar seus produtos que chegam à consciência em:
inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. O primeiro contém material reconhecível, sendo
adquiridos durante a existência do indivíduo. Contam com processo instintivo, conteúdos
esquecidos ou reprimidos e dados criativos. Esses elementos podem ser conhecidos e
conscientes em algumas pessoas e ignorados por outras. Em contrapartida, o inconsciente
coletivo tem origem desconhecida ou pelo menos não se pode atribuir seus fatores a
aquisições individuais. Pertence a humanidade em geral e não a psique individual, isso o torna
peculiarmente de caráter mítico. Inicialmente Jung acreditou que sua origem pudesse ser
hereditária, hipótese que foi descartada posteriormente após estudar os sonhos dos negros de
raça não misturada confirmando que tais fatores são próprios do humano e não do indivíduo.
O inconsciente coletivo se compõe de: percepções, pensamentos e sentimentos
subliminais que não são reprimidos devido a sua incompatibilidade pessoal; por restos
subliminais de funções arcaicas e, ainda de combinações subliminais sob forma simbólica.
Seus conteúdos podem ser encontrados em toda parte. As “imagens primordiais” ou ideias
coletivas inconscientes que é uma capacidade hereditária da imaginação humana de ser como
era nos primórdios, e os impulsos vitais, são os conteúdos mais importantes do inconsciente
coletivo (JUNG, 2011b, p. 174).
É importante salientar que para Jung (2000a, p. 102) todos os conteúdos de nosso
inconsciente são projetados o tempo todo no meio ambiente, o que é normal. O que
diferenciará a percepção do indivíduo em relação ao objeto projetado é que quando ele
reconhece o caráter projetivo da qualidade do objeto, deixa de acreditar que tal qualidade
pertence realmente ao objeto, reconhecendo-o em si mesmo. Quando o sujeito toma
consciência do conteúdo projetado reconhecendo o valor simbólico do objeto, ocorre uma
espécie de libertação em relação a este.
Pode-se entender a projeção como o processo em que faz a energia psíquica
armazenada no inconsciente projetar-se para fora sem a participação e permissão do ego.
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Uma distinção que deve ser levantada é de que o fato de projetarmos uma qualidade
num determinado objeto (pessoa) não exclui que esta seja real e inerente ao objeto. Este
(objeto) provoca a projeção quando não está ciente da qualidade projetada sobre ele, atuando
diretamente sobre o inconsciente de quem a projeta. Assim acontece a contratransferência do
analista quando o analisando projeta (transferência) conteúdos que o terapeuta desconheça em
si mesmo. Ainda que o objeto possua a qualidade projetada, o sujeito que a projeta atribui-lhe
um valor exagerado. (JUNG, 2000a, p. 106).
Constituída em grande parte de materiais coletivos, a persona é considerada um dos
fatores psíquicos fundamentais na relação do indivíduo com o meio em que vive e a sua
interação com a sociedade. Pode-se dizer que tem a ver com a necessidade do sujeito em ser
aceito aqui e agora.
A persona, ou a máscara criada pelo primitivo como invólucro que o cerca e exalta a
sua personalidade, destaca o chefe da tribo dos demais pela peculiaridade de sua aparência.
Assim, o sujeito favorecido pela máscara é afastado da esfera da psique coletiva na medida
em que se identifica com a sua persona. Tal afastamento lhe proporciona prestígio e poder,
tendo um público que o aplaude e procure alguém para prestigiar. Devido a essa relação, o
prestígio trata-se de uma questão coletiva e não de uma vontade de poder individual (JUNG,
2011b, p.144).
Jung (2000b, p.128) diz que a persona “é o sistema de adaptação ou estilo de nossa
relação com o mundo”. Sendo assim, é comum termos personas mais atuantes no âmbito
familiar e no do trabalho. O mundo e a sociedade exigem e esperam um certo tipo de
comportamento dos profissionais que tentam corresponder a tais expectativas. No mundo pós-
moderno a profissão do sujeito pode tornar-se sua persona, ficando ele totalmente identificado
com o que faz, esquecendo-se de si mesmo.
A imagem ideal do homem tal como ele quer ser, ou seja, a persona é representada
pelo indivíduo exteriormente através do papel de homem forte e compensada interiormente
pela fraqueza feminina (anima) que se opõe a persona. O íntimo é invisível e a anima que
também permanece no escuro é projetada, sendo ainda mais difícil tornar-se consciente para o
indivíduo que tem dificuldade em reconhecer suas fraquezas por estar identificado com a
persona (JUNG, 2011b, p.85).
A persona para o indivíduo é como a máscara usada pelo ator que representa o papel
que ele irá desempenhar. Nesse caso, Jung considera a palavra persona muito apropriada.
(JUNG, 2011b, p. 46 - 47).
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Quanto mais o sujeito representa um papel mais ele se identifica com a persona,
vivendo um compromisso com a sociedade com maior aparência e distanciando assim de si
mesmo. E a cada vez que se constrói a persona, conteúdos são colocados na sombra.
Quanto mais identificado com a persona o indivíduo está, mais ele acredita ser apenas
aquilo que gostaria de saber a respeito de si mesmo negando ainda mais a sua sombra (JUNG,
2000b,p. 74).
Sendo assim, adentraremos no conceito de sombra o qual enfatizará a problematização
proposta no presente trabalho.
Jung (1980, p.49) diz que “a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por isso é
reprimida; e devido a uma intensa resistência.” E por mais que a reprimamos, ela é uma parte
viva da personalidade, portanto de um jeito ou de outro se fará presente.
A sombra seria o lado escuro da nossa personalidade. É considerado como parte do
inconsciente individual e se desenvolve naturalmente à medida que identificamos com
características aprovadas pelo meio externo e rejeitamos aquelas qualidades que não são
adequadas a nossa autoimagem, sendo desaprovada pelo meio ambiente, assim os esquecemos
e os reprimimos durante a vida. Podemos ainda pensar na sombra individual como nossos
‘defeitos’, aquela parte em nós que desaprovamos por considerarmos ‘feia’ e, que não seria
aceita pelo outro.
Zweig e Abrams (1994, p. 15-16) afirmam que emoções e comportamentos negativos
como a raiva, inveja, cobiça, vergonha, culpa, tendências homicidas, violência entre outros,
ficam mascarados pelo eu mais apropriado às conveniências, ou seja, pela persona. Enquanto
esta última se mantém a luz, o que é aparente, a sombra se mantém no escuro, em local
inexplorado abaixo da superfície.
Jung definiu seus conceitos baseado em observações empíricas e assim pautou nas
suas próprias experiências de vida, como na descrição de um sonho em que viu em si mesmo
a inseparabilidade do ego e da sombra. O ego que separa o que lhe agrada, o que pode ou não
pode (dependendo da cultura e do modelo de família), descartando para a sombra todo o
material rejeitado, inclusive capacidades e talentos. Sendo assim, a sombra pessoal não
contém apenas conteúdos negativos, mas também todos os tipos de potencialidades não-
desenvolvidas e não-expressas. Ela contém características que a personalidade consciente
nega e recusa-se a admitir, e irá reencontrá-las em dolorosos e desagradáveis confrontos com
o outro através da projeção, pois é mais seguro observá-la lá fora. É transferida para o mundo
exterior e reconhecida no objeto externo como se não fizesse parte da própria pessoa.
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Sanford (2007, p. 9) considera que vivemos o mal como uma ameaça constante, pois
este pode nos destruir a qualquer momento, seja através da guerra, doença, crime, violência,
contudo ninguém pode evitá-lo.
Ainda que os sinais da sombra ou do ‘mal’ apareçam, seja através de sonhos ou de
sintomas como a depressão, por exemplo, o homem tende a negá-los. Não ouvindo o chamado
para olhar para as suas profundezas que requer desaceleração do ritmo de vida, o indivíduo
permanece inconsciente e a sua sombra tem mais força.
Na obra A vida simbólica, Jung relata sobre uma paciente que chegou com diagnóstico
de esquizofrenia de caráter depressivo, embora não concordasse com tal diagnóstico. Após
submetê-la ao teste das associações e se deparar com a questão de que a mulher ‘matou a
própria filha’, Jung opta por devolver a paciente sobre o crime como possibilidade de torná-la
consciente do seu ato e como alternativa para a cura da sua doença, o que foi confirmado
posteriormente. Ao finalizar o relato do caso Jung diz que colocou um fardo na consciência da
paciente, mas que a salvou da loucura, e afirma: “quem aceita seu pecado pode viver com ele.
Se não aceitar tem de suportar as inevitáveis conseqüências” (JUNG, 2011a, p. 71).
Em outras palavras, enquanto não reconhecemos os aspectos tenebrosos da nossa
sombra ficaremos reféns a eles e teremos de suportar as suas duras conseqüências.
Assim como a sombra pessoal é considerada como parte do inconsciente pessoal, a
sombra coletiva pode ser entendida como parte do inconsciente coletivo, ou seja, aquela mais
profunda do inconsciente onde o homem perde a sua individualidade e a mente se expande
mergulhando na mente da humanidade, onde todos somos um e iguais (Cf JUNG, 2011a, p.
57).
Nos dias atuais nos deparamos com o lado escuro da natureza humana a cada vez que
abrimos um jornal, internet, ouvimos noticiários, conversamos com amigos ou mesmo
desconhecidos na rua. Os efeitos da sombra coletiva permeiam todos os meios de
comunicação transmitida em massa e o mundo vive hoje um grande palco onde esta é
projetada (Cf ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 18-19).
Os autores ainda destacam que a maldade humana nos afronta em todas as partes
evidenciada de diversas formas através dos veículos de comunicação, como: a corrupção dos
políticos, atuação de criminosos e terroristas, a violência em seus diversos aspectos, desvio de
dinheiro pelo poder, posse ilegal de armamentos, rios e oceanos poluídos, entre tantos outros.
Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente
aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas
pela vida. Quando essas últimas tornam-se objeto de projeções grupais
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Na visão dos autores, através do poder contagioso das fortes emoções em massa que
ficam evidentes na busca por bodes expiatórios, os seres humanos seguem num esforço que
lhes assegurem uma superioridade na medida em que excluem, rejeitam e mata o outro que
justifica ser diferente e inferior a ele.
Conforme Jung (2000a, p. 74) o homem da massa que é aquele comum não toma
consciência de nada e nem precisa fazê-lo, pois acredita que o único responsável pelas faltas é
o anônimo, aquele representado pela “Sociedade”, pelo “Estado”, mas que não o inclui. O
homem da massa também tem o privilégio de não ser responsabilizado pelas grandes
catástrofes sociais, políticas, ambientais e outros em que o mundo está mergulhado. Enquanto
isso ele encontra os culpados “lá fora”, seja na sociedade, no marginalizado, no governo,
exceto dentro de si mesmo.
Sanford fala sobre o lado escuro inevitável em nossa natureza, que se nega a ser
assimilado aos nossos ideais de bondade, moralidade e comportamento ideal esperado para o
ser humano, ou seja, tudo aquilo que o ego se recusa a reconhecer como parte de si. Contudo,
tudo que foi negado voltará na mesma proporção da sua negação. Sendo assim, o homem que
procura ser bom correspondendo apenas à aparência de “bom moço” e negando o seu lado
escuro, em algum momento será pego pelo mal que tanto se esforça para mantê-lo longe de si.
(Cf. SANFORD, 2007, p. 35)
Por fim, o propósito de encontrar a própria sombra é o de reconhecê-la e aceitá-la em
si mesmo como parte legítima e inevitável de sua própria natureza. Integrando os opostos,
aumentando o senso do eu e aproximando o equilíbrio entre a nossa consciência e o
inconsciente. Sabendo-se que manter um relacionamento adequado com o inconsciente não é
tão terrível e monstruoso quanto se pensa. Ao contrário, reconhecê-lo como parte de si e
integrá-lo à consciência pode proporcionar um reencontro com potencialidades enterradas e a
possibilidade de transformar emoções negativas que invadem a nossa vida diária, assim como
a mudança de padrões desadaptados de nossas atitudes (ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 23-24).
O ditado popular, ‘se não pode vencer o inimigo junte-se a ele’, me parece apropriado para tal
referência à sombra.
Os autores referidos acima acrescentam que através do trabalho com a sombra talvez
possamos também contribuir com a retirada de parte da projeção da nossa sombra pessoal que
acrescentamos à sombra coletiva.
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CAPITULO 2
O Surgimento das favelas e seus estereótipos
Para Chauí o nosso mito é o de uma sociedade não violenta, cordial e sem
preconceitos, com episódios violentos, sempre referidos a mecanismos de exclusão social,
onde nós, como agentes, não nos incluímos. (Cf. CHAUÍ, 1980, p.16)
Nesse contexto sócio-histórico, a violência que permeia o mundo contemporâneo,
embora sempre presente na história da humanidade, tem se apresentado a cada dia, mais
temerosa, e principalmente segregadora de uma parte da população: moradores de
comunidades, mais conhecidas como favelas.
A terminologia ‘comunidade’ pode ser utilizada em substituição a ‘favela’. Embora
esta última seja ainda mais conhecida e divulgada, ao adentrarmos pelas ruas onde essa
população habita ouvimos os próprios moradores se referirem à ‘comunidade’ como o local
onde vivem. Talvez na tentativa de minimizar o estereótipo que o termo favela tem carregado
desde o seu surgimento. No presente trabalho usaremos favela devido ao seu maior uso na
literatura pesquisada e privança com o termo.
Valladares (2005) em A invenção da Favela comenta que os dirigentes das associações
de moradores utilizam o termo “comunidade” para qualificar o conjunto de moradores que
eles representam, pois consideram o termo “favela” pejorativo. Contudo a “comunidade” que
traz uma ideia de união mascara a diversidade das situações sociais, ocultando as diferenças e
conflitos existentes no espaço e entre os seus habitantes.
A autora ainda reitera que o termo favelado, usado originalmente para o habitante da
favela (lugar determinado), é usado de forma pejorativa para toda e qualquer pessoa que
ocupe qualquer lugar social marcado pela pobreza ou pela ilegalidade. Dessa forma, a força
da representação social percebe e reconhece a favela apenas de forma singular, descartando a
sua diversidade.
Para tentar compreender os estereótipos e os estigmas relacionados à favela pelo
prisma da sociedade em geral, faz-se necessário um breve histórico do surgimento das
favelas; a compreensão desse lugar espacial bem como suas representações.
Valladares (2005) descreve o fenômeno da favela e as suas primeiras representações
no Rio de Janeiro, que já somam mais de 100 anos.
Ao se iniciar uma preocupação com a pobreza urbana e a necessidade de melhor
gerenciá-la, bem como seus personagens populares, no Rio de Janeiro, os interessados em
detalhar a cena urbana voltaram-se a atenção e olhar para o cortiço. Este, no século XIX, era
local da pobreza, sendo moradia de trabalhadores, vagabundos e malandros que eram
considerados como uma “classe perigosa”, ligados ao crime, sendo uma ameaça à ordem
social e moral, além de lugar propício às epidemias. Considerado o “germe” da favela, com a
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No capítulo 3, vou descrever a parte empírica deste trabalho e buscarei olhar para meu
objeto de estudo, como descrito no capítulo 1, pela ótica junguiana, com o intuito de pensar
essa realidade e refletir sobre alguns preconceitos, de modo que possa contribuir para que os
profissionais de saúde das UBSs possam prestar melhor atendimento aos usuários do serviço.
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CAPÍTULO 3
Como citei na introdução, me mudei para São Paulo há quase três anos. Já trabalhava
anteriormente na saúde pública com população em vulnerabilidade psicossocial, mas foi aqui
em São Paulo que me deparei com grandes e temerosos desafios ao entrar em contato com
uma população não só vulnerável, mas temida pela sociedade da qual eu faço parte.
Ao sair do interior de Minas Gerais e chegar à metrópole, me deparei com a persona
psicóloga que se viu desafiada ao adentrar a favela e exercer o seu papel atendendo os seus
moradores em Unidades Básicas de Saúde. Foi assim que imediatamente coisas que eu
desconhecia em mim começaram a surgir.
Logo, fui buscar informação, apoio e ajuda na tentativa de minimizar os males e
desconfortos causados pelos conteúdos sombrios, conciliando-os e integrando-os à
consciência. Entre análise, supervisão e pós-graduação em psicologia junguiana, o
enfretamento de tais conteúdos culminaram neste trabalho.
Atender a pessoas envolvidas com tráfico, roubo, violência, presidiários, entrando
muitas vezes em suas casas durante intervenções (visitas domiciliares) que fazem parte do
nosso processo de trabalho, enfim, o contato direto com essa população no seu território onde
existem suas próprias leis e regras, me despertou medo.
Diante desses medos e preconceitos, comecei a perceber que eles não eram apenas
pessoais, mas perpassavam também pelo discurso dos meus familiares, amigos e colegas de
trabalho. Pânico, comentários e questionamentos preconceituosos são algumas das reações
das pessoas em relação ao meu local de trabalho.
Depois de muito temer, pude perceber parte da minha sombra pessoal que estava
sendo projetada nas pessoas atendidas por mim com características hostis e histórico de
violência entre outros delitos. Quando esses conteúdos sombrios projetados vieram à minha
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Como citado no capítulo 2, Chauí refere que o mito e a fantasia são de que a nossa
sociedade é uma sociedade não violenta, cordial e pacífica, e quando nos referimos aos
preconceitos e exclusão, não nos incluímos como sujeitos responsáveis por isso. Nós
transferimos ao outro a autoria da violência, do preconceito, da exclusão, como se tudo isso
existisse apenas fora.
A ideia que Chauí retrata como não nos incluirmos nesse processo e atribuirmos ao
outro a responsabilidade pelos preconceitos e exclusão, Jung chamou de projeção.
A sombra do preconceito e da agressividade estava ali camuflada o tempo todo, mas
quando fui atingida por um fato externo (local de trabalho), uma tensão foi gerada causando
em mim, incômodo e medo, assim o inconsciente sentiu necessidade de colocar essa energia
para fora. Nesse caso, no objeto, a favela, e na pessoa dos seus moradores. Essa energia
psíquica que é jogada para fora de forma inconsciente, sem a participação do ego, é
denominada projeção.
Ainda sobre projeção, podemos mencionar o que Caldeira (2000) diz sobre as pessoas
que ao invés de lidarem com estereótipos que discriminam a si mesmas elas tentam afastá-los
de si mesma e associá-los a pessoas próximas, como os vizinhos. Jung refere como projeção,
ou seja, conteúdos inconscientes (reprimidos, negados, .. ) que são incompatíveis com a
consciência são lançados para fora do sujeito que o direciona a outro sujeito ou objeto.
Para o que Valadares diz que não é que não exista violência, pobreza e tráfico nas
favelas, mas que tudo isso existe também fora delas, Jung já dizia (2000a) para nos
atentarmos ao fato de que ao projetarmos uma qualidade num objeto ou pessoa, não exclui a
possibilidade de que tal qualidade exista no objeto que recebeu a projeção. Este objeto,
receptor da projeção, não tendo consciência da qualidade que lhe foi projetada ou atribuída,
provoca tal projeção de modo inconsciente no sujeito.
Ao negar características ou qualidades em si projetando-as fora, há uma necessidade
do ego de se proteger e de se adaptar ao mundo, ou seja, o indivíduo nega ou esconde a sua
verdadeira natureza e constrói impressões de si para se apresentar aos outros. Para o estilo de
se relacionar e se adaptar ao mundo, Jung chamou de persona.(2000b, 128).
Ao iniciar o meu trabalho na comunidade (UBS) fui alertada e orientada pela
coordenação a sair da Unidade apenas acompanhada pelos agentes comunitários de saúde
(ACS), pois eles moram e conhecem a comunidade. Diante a realidade vivenciada na favela,
que considero um mundo “paralelo” ao vivido fora dela, a persona psicóloga não se
sustentava mais pelo medo e preconceito. Para aliviar o temor foi preciso olhar de frente para
os aspectos negativos que eu enxergava nos moradores das favelas, mas que habitam em mim.
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A frase de Jung “quem aceita seu pecado pode viver com ele” parece ecoar no meu despertar
para um ser humano mais consciente. O coletivo pode aliviar a angústia, mas enfrentá-la pode
ser libertador.
Buscar por ajuda, principalmente através da análise e supervisão, para lidar com as
dificuldades encontradas no dia-a-dia de atendimento as pessoas envolvidas em conflitos com
a lei, e com as diversas formas de violência, foi, é e continuará sendo crucial para que eu
possa desempenhar melhor o meu papel como psicóloga, e auxiliar os meus colegas de
trabalho para que possam prestar atendimento a essa população de forma mais humanizada e
acolhedora.
Segundo Jung, o homem, por ser dotado de consciência, tem a capacidade de enfrentar
dificuldades, e assim ele pode tornar-se o que sempre foi. Jung chamou esse processo natural
de individuação.
Podemos chamar o processo de individuação de desenvolvimento psicológico, ou seja,
é um contínuo com potencial infinito.
Para tornar-se um ser único, com todo seu potencial criativo e singular, é necessário
despir-se das máscaras e mergulhar nas profundezas do mar revolto que faz de tudo para que
não se chegue ao fundo. Enfrentar a tempestade em alto mar poderia ser visto como abrir mão
da persona, abandonando as máscaras para deixar o peso mais leve e então mergulhar no
inconsciente ou no oceano. E ao mergulhar, encontrar a sombra que recebe hóspedes
desagradáveis, reprimidos, indesejáveis, mas também pérolas. E só então, começar a
desbravar e a contemplar tudo que existe no fundo do mar, com toda a sua essência, pureza,
leveza e naturalidade.
Como disse Jung, o tornar-se consciente talvez seja o primeiro passo no processo de
individuação. Pensando no desenvolvimento psicológico contínuo que é o processo de
individuação, através do contato com parte da minha sombra pessoal em que aspectos
relacionados à agressividade e violência vieram à consciência, pude perceber que tais aspectos
atribuídos anteriormente aos moradores das favelas, também habitam em mim. Conhecer,
aceitar e integrar tais aspectos do meu ser é fundamental para a ampliação da minha
consciência, logo, para o processo de individuação.
Assim como referido por Zweig e Abrams, quando trabalhamos com a sombra talvez
possamos retirar parte da nossa sombra pessoal que acrescentamos a sombra coletiva. Ao
trabalhar com aspectos da minha sombra pessoal, ligados a ideias estereotipadas sobre a
relação da onda de crimes e violência que assolam o nosso país com as favelas e seus
moradores, contribuo com a retirada de uma porção desses preconceitos da sombra coletiva.
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Com isso, colaboro para atenuar a segregação e o infortúnio de uma população que vive no
limbo de uma sociedade ainda preconceituosa e egoísta.
A construção da favela e de seus moradores que permeiam o imaginário coletivo é de
um lugar perigoso, onde ocorrem crimes e outras cenas de barbárie que abriga os seus
responsáveis. Local onde recebe a projeção dos males e tormentos de uma sociedade que ao
negar todas as suas mazelas, se esconde detrás de uma máscara moldada de sucesso e bem-
aventurança.
Embora eu faça parte dessa projeção coletiva, percebo que me diferencio porque
busquei conhecer o temor à violência e a violência em mim. Diante de todas as questões que
me mobilizaram, poderia me apoiar nas resistências, mas procurei refletir sobre meus medos,
e debruçar sobre os nossos preconceitos.
Como Jung propõe que a sombra seja integrada, busquei colocar luz nessa sombra e
não deixá-la ficar atuando. Essas foram às soluções encontradas para acolher e não reforçar os
preconceitos.
Ter a coragem de olhar para o sombrio, para o que fere e angustia não é tão horroroso
como parece, é apenas uma forma de olhar, e quando se percebe que ele tem outras facetas e
aspectos a tensão diminui e a sensação de libertação aumenta. Logo, com a aceitação de si
mesmo com tudo que o pertence, o bem e o mal, torna-se mais fácil e possível a aceitação do
outro sem a necessidade de exclusão.
O processo de individuação só é possível na relação comum. Preciso do outro para
projetar e descobrir que isso é meu. Reconhecer as nossas fraquezas é um processo doloroso,
mas ser completo não é ser perfeito.
Compreender que a minha sombra pessoal contribui para aumentar a sombra coletiva
me torna mais responsável pelo que acontece no mundo, bem como todo o preconceito que
envolve as favelas e seus moradores. Portanto, o meu compromisso com o meu
desenvolvimento pessoal é um compromisso com a humanidade.
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CONCLUSÃO
Como citado no início, o presente trabalho foi motivado a partir da minha experiência
como psicóloga atuando em Unidade Básica de Saúde localizada na favela e com a seguinte
questão: quando nego a violência que existe em mim, estou contribuindo para o aumento do
preconceito com relação à favela e seus moradores, e não colaboro com meu processo de
individuação e da humanidade como um todo?
Conforme apresentado, verificou-se que a hipótese de que a negação da violência que
existe em mim colabora para o aumento do preconceito com relação à favela e seus moradores
foi confirmada. Estes que são responsabilizados por toda a forma de crime e violência que
assola a sociedade no mundo de hoje, provocando medo na população que sofre com a
insegurança principalmente nas grandes cidades.
Nota-se que a sociedade projeta as suas mazelas nas favelas e nos seus habitantes,
sendo notório através dos noticiários e telejornais, rodas de conversa entre amigos ou mesmo
desconhecidos, e observado na minha experiência e dos meus colegas de trabalho como
prestadores de serviço de saúde pública nas Unidades Básicas de Saúde, localizadas na favela.
Os conteúdos de violência que existem em mim, mas que foram negados e descartados
para a sombra e projetados em moradores das favelas, foi observado através do medo de
sofrer agressão e do preconceito em relação a essa parcela da população, que é sempre vista
como autora das várias formas de violência que acomete a sociedade.
Constatou-se também que o processo de individuação se inicia com a tomada de
consciência, e enquanto os conteúdos de violência são mantidos na sombra individual, este se
une à sombra coletiva aumentando o preconceito com essa população marginalizada e
excluída. Enquanto a sombra se mantém atuante, não há colaboração para o meu processo de
individuação, consequentemente atrasando o processo de individuação da humanidade. Uma
vez que somos todos um, cada indivíduo que busca o autoconhecimento está contribuindo
para que todos busquem também a sua essência.
Para tanto, a minha responsabilidade como ser humano está acima da persona
psicóloga que não pode demonstrar fraqueza, ela está na busca pela minha essência que se
encontra num contínuo com o desenvolvimento e evolução da humanidade.
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REFERÊNCIAS
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