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FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

FACIS

Lidyane Mendes Silva

A Sombra
A favela e seus moradores: um estereótipo coletivo

ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA JUNGUIANA

São Paulo
2016
Lidyane Mendes Silva

A Sombra
A favela e seus moradores: um estereótipo coletivo

Monografia apresentada à FACIS como


requisito parcial para obtenção do título
de especialista em Psicologia
Junguiana.

São Paulo
2016
RESUMO

Este trabalho apresenta na perspectiva da psicologia analítica, de Carl Gustav Jung, o


preconceito e estereótipo coletivo relacionados à favela e seus moradores e o medo da
violência que se faz presente na sociedade contemporânea. Seu objetivo, portanto, foi
compreender por meio da minha própria experiência, a projeção da sombra e o aumento do
preconceito com essa população marginalizada, e a influência deste preconceito com o
processo de individuação pessoal e coletivo. Para tanto, foi realizado por meio empírico a
observação da minha experiência pessoal e, teórico com resumo embasado nos principais
conceitos junguianos sobre o funcionamento psíquico, bem como a respeito da formação das
favelas e dos seus estereótipos.

Palavras-chave: Sombra. Individuação. Favela - Moradores. Preconceito.


SUMÁRIO

RESUMO....................................................................................................................................2

SUMÁRIO..................................................................................................................................3

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................4

CAPÍTULO 1

A estrutura e a dinâmica da psique.............................................................................................8

CAPÍTULO 2

O surgimento das favelas e seus estereótipos...........................................................................18

CAPÍTULO 3

A projeção da sombra coletiva na favela..................................................................................24

CONCLUSÃO..........................................................................................................................29

REFERÊNCIAS........................................................................................................................30
4

INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda um tema crucial tanto no contexto atual da sociedade


quanto da psicologia contemporânea. O tema da sombra, que já foi debatido inúmeras vezes
por autores junguianos e pós-junguianos, percorrerá neste trabalho o caminho do coletivo
perpassando pela psicologia social e a sociologia.
Minha experiência profissional como psicóloga na saúde pública, e a mudança de
Minas Gerais para a cidade de São Paulo há quase três anos para atuar em favelas
(“comunidades”), suscitou em mim o medo da violência e me aproximou de uma visão
estereotipada desta população.
Como expectadora dos telejornais no interior de Minas Gerais, me assustava ao assistir
a crimes e violência nas grandes cidades. Contudo, me contentava, ou, melhor dizendo, me
confortava, com a informação de que tais crimes teriam relação às favelas e seus moradores.
Parecia uma realidade distante de mim. Grandes tragédias pareciam acontecer apenas
nos grandes centros, e envolvendo moradores de favelas, pois nesses locais estariam os
marginais, traficantes e outros autores de crimes. Ficávamos perplexos com o que assistíamos
nos telejornais, e quando viajávamos para cidades maiores, o cuidado era redobrado ao avistar
pedintes com aspectos precários de higiene. Escrevo na primeira pessoa do plural porque me
incluo com as demais pessoas em minha volta (família, amigos, conhecidos).
Ao me mudar para São Paulo, iniciei minhas atividades laborais como psicóloga do
NASF (Núcleo de Apoio a Saúde da Família).
O NASF é constituído por uma equipe na qual profissionais de diferentes áreas de
conhecimento atuam em conjunto com os profissionais da ESF (Estratégia de Saúde da
Família), compartilhando e apoiando as práticas de saúde nos territórios sob sua
responsabilidade. Ambas as equipes atuam nas UBSs (Unidade Básica de Saúde) onde
realizam a atenção básica à saúde de uma população específica que está em um território
definido.
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Atuando em UBS localizada em comunidades (favelas), realizo atendimento


individual, grupos terapêuticos, visitas domiciliares, reuniões com as Equipes de Saúde da
Família (ESF) para discussão de casos e elaboração de projeto terapêutico singular,
(matriciamento), dentre outras atividades de educação em saúde.
Após aproximadamente um ano neste trabalho, comecei a perceber que preconceitos
em mim ficaram mais evidentes.
Acredito que entre os vários fatores a considerar, foi a partir do contato direto com a
violência nas favelas e com seus moradores que fizeram emergir aspectos da minha sombra
pessoal, como a agressividade, que contribuem ainda mais para o meu processo de
desenvolvimento pessoal (processo de individuação) num trabalho árduo e contínuo em
reconhecê-los e aceitá-los.
Além do medo que muitas vezes eu sentia, percebia nos colegas de trabalho certo
repúdio em relação à população atendida. Percebia o preconceito não só dos colegas, mas de
amigos e familiares ao contar-lhes sobre meu local de trabalho.
Ainda demorou até que eu percebesse que o preconceito também estava em mim. Foi
assim que comecei a desbravar novos caminhos de trevas dentro do meu ser.
Compreender os meus medos e preconceitos também seria crucial para assegurar o
bom desempenho do trabalho o qual me propus a realizar.
Com isso, os caminhos que percorri para entrar em contato com parte da minha
sombra foram à psicoterapia, através da qual comecei a me despojar de alguns preconceitos,
entrando em contato com sentimentos de agressividade e onipotência entre outros, que me
afastam da minha essência e, consequentemente, do outro que me desperta tais sentimentos; a
pós-graduação em psicologia junguiana, que com sua teoria facilitou a elucidação do processo
\da sombra e de que forma ela se manifesta coletivamente sobre a comunidade e seus
moradores; a supervisão para melhor atender os pacientes que me despertavam sentimentos
negativos relacionados a violência, e por último, mas não por fim, a escolha do tema desta
monografia.
A discussão do tema sobre a sombra coletiva projetada nas favelas e nos seus
moradores, proposta neste trabalho, perpassa por sérias questões sociais de violência, crimes,
e insegurança vividas pela sociedade contemporânea, e por tentativas frustradas de isolar o
problema, segregando esta pequena parcela da população que tanto sofre com preconceitos,
sendo na maioria das vezes responsabilizada pela violência disseminada no país.
Para falar sobre o preconceito em relação às favelas e seus moradores, usarei
Valladares, entre outros autores, que como socióloga estuda as favelas do Rio de Janeiro
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desde a década de 60 e analisa as múltiplas imagens e representações que a favela


suscita há um século.
Ao entrar em contato com moradores de algumas comunidades (favelas) da zona sul
de São Paulo, atendendo pessoas envolvidas ou não com crimes, me deparei com a persona
psicóloga que não pode demonstrar fraqueza e insegurança. Contudo, eu estava com medo.
Com o tempo, e buscando o caminho do processo da individuação através da psicoterapia,
comecei a reconhecer a persona psicóloga, mas percebia também um ser humano que buscava
por ajuda. E foi assim que comecei a me questionar sobre o quanto eu estava contribuindo
para aumentar o preconceito que acomete esta população.
Após iniciar um longo processo percorrendo o campo da sombra individual, onde
conteúdos mal vistos e negados por mim começaram a ser iluminados pela luz da consciência,
o medo e o preconceito em relação aos crimes e criminosos que moram nas comunidades
foram perdendo força. Foi então que, ao olhar de frente para essas questões em mim, me
interessei por esmiuçar um pouco mais sobre o assunto escolhendo o tema para este trabalho.
Sendo assim, levanto a seguinte questão: quando nego a violência que existe em mim,
estou contribuindo para o aumento do preconceito com relação à favela e seus moradores e
não colaboro com meu processo de individuação e da humanidade como um todo?
Para responder a esta questão, a abordagem principal neste trabalho será feita através
do conceito de sombra coletiva, sendo pesquisado nas obras de Jung e de pós-junguianos, de
forma que possa elucidar o tema proposto. Este visa, sob a ótica junguiana, olhar como a
sombra coletiva de uma sociedade projeta suas mazelas nas favelas e nos seus moradores e
como essa projeção contribui para o aumento do preconceito social e segregação desta parcela
da população, aumentando a violência e, ainda, distanciando-nos do processo de individuação.
Para falar sobre a projeção da sombra nos moradores das comunidades (favelas) que
recebem a autoria de todos os crimes e barbaridades que ocorrem no nosso país, recorro a
Jung que na quinta conferência de Tavistock (Londres,1935) disse que projeção é um
mecanismo inconsciente, um fenômeno psíquico espontâneo e automático. Na projeção, os
conteúdos subjetivos do sujeito são transportados para o objeto, surgindo como se pertencesse
a ele. Projetamos no “outro” conteúdos que são incompatíveis com a consciência e que fazem
nos sentir lesados. Assim, naturalmente projetamos conteúdos inconscientes de agressividade,
violência e outras mazelas numa população marginalizada que acaba sendo receptáculo dessas
projeções. Refiro-me a receptáculo, pois é na favela e nos seus moradores que a sociedade
encontra um gancho para tais projeções.
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Também não há como deixar de pensar no processo de individuação quando se fala em


sombra e na sua projeção. Primeiro que o processo de tornar-se “si mesmo” perpassa a
consciência, ou seja, é necessário uma busca consciente do sujeito para o seu processo de
individuação. Para percorrer esse caminho, o indivíduo precisará olhar para a sua sombra e
fazer as pazes com ela. Se na sombra contém conteúdos inconscientes, estes precisam vir à luz
da consciência para que esta possa se ampliar. A projeção é um meio para o desenvolvimento
e ampliação da consciência. Reconhecemos nossas projeções quando a recolhemos, e quando
a recolhemos integramos o inconsciente e a consciência. Somente encarando a sombra
podemos encontrar o Self, e então o ego pode individuar-se.
Assim como o processo de individuação permeia tanto a sombra pessoal quanto a
sombra coletiva, a situação de violência e o medo que paira a nossa sociedade nos dias de
hoje perpassam pelo inconsciente coletivo.
Para iniciar a explanação proposta neste trabalho optou-se pela apresentação sucinta
dos conceitos básicos de Jung que fundamentam o estudo. Tais conceitos serão apresentados
no capítulo 1, são eles: consciência, inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, projeção,
persona, sombra pessoal e coletiva e individuação. Diante da extrema erudição de Jung, ainda
que de forma sucinta e simplista, os conceitos serão expostos de modo a citá-los como
referencial para a discussão a seguir, mas que está longe de ser esgotada.
Posteriormente, no capítulo 2, será apresentado o meu objeto de estudo que se refere a
toda a violência, miséria e caos que a sociedade em geral atribui às favelas e seus moradores
como projeção da sombra coletiva.
No capítulo 3 será exposta a discussão sobre este imaginário da população, que é
também transmitida por vários meios de comunicação, como construção da sombra coletiva
projetada nas favelas sob a ótica junguiana. Na conclusão, apresento as considerações do
trabalho proposto, bem como lanço outros questionamentos para possíveis investigações
futuras, já que o tema não se esgota aqui.
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CAPÍTULO 1
A estrutura e a dinâmica da psique

A Psicologia Analítica originada a partir das idéias de Carl Gustav Jung traz conceitos
que antecipam os interesses socioculturais da nossa atualidade. Dentre a complexidade da
psicologia analítica e a influência das idéias ousadas de Jung sobre várias disciplinas,
proponho neste capítulo atentar para seus conceitos de consciência, inconsciente pessoal,
inconsciente coletivo, projeção, persona, sombra pessoal e coletiva e individuação. Entendo
que tais conceitos contribuirão para a leitura atual, no que se refere a examinar a questão da
projeção de aspectos da sombra coletiva na favela e em seus moradores sob o prisma da
psicologia analítica. Para tanto, precisamos entender como a psique está constituída e
estruturada e de que forma ocorre a projeção da sombra e suas conseqüências.
Para Jung, a psique é “a totalidade de todos os processos psicológicos, tanto
conscientes quanto inconscientes” (JUNG, 2008, p.388). Para ele tudo que experimentamos é
psíquico, não sendo possível separar a alma do corpo, ou a psicologia de pressupostos básicos
da biologia. A psique é dotada de extrema capacidade de variação e transformação, como
refere em sua obra A Natureza da Psique (JUNG, 2000a, p.144).
A função psicológica resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes, e
com a análise desses conteúdos que Jung refere na obra supracitada faz-se então a distinção
sobre a estrutura básica da psique em três níveis: consciência, inconsciente pessoal e
inconsciente coletivo.
Jung considera a consciência como fenômeno intermitente e afirma que boa parte da
vida acontece em condições inconscientes. A consciência pode apreender poucos dados
simultâneos num dado momento, sendo tudo mais inconsciente. Ou seja, o campo consciente
é limitado e brota do inconsciente; é como se uma lanterna iluminasse uma caverna escura,
sendo a consciência o foco de luz, e a área de tamanho desconhecido que permanece escura, o
inconsciente. (Cf. JUNG, 2001, p.3).
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Uma consideração importante sobre a consciência é que não pode


haver elemento consciente que não tenha o ego como ponto de referência.
Assim, o que não se relacionar com o ego não atingirá a consciência. A
partir desse dado, podemos definir a consciência como a relação dos fatos
psíquicos com o ego. (JUNG, 2001, p.4)

Formado pela percepção de nosso corpo, existência e registros de nossas memórias, o


ego é um complexo sendo o centro de nossas atenções e desejos. (JUNG, 2001,p.4).
É importante que o sujeito saiba o quanto sua psique está funcionando de forma
predominantemente consciente ou inconsciente. A consciência total não é possível, mas saber
se ela atua em maior ou menor grau pode ajudá-lo a identificar a suas possibilidades e
prontidão para transformação no momento. Quando se tem um maior grau de consciência é
possível identificar a predominância da vontade, racionalidade no agir e um estado de
sensibilidade. Ao contrário, quando o grau de consciência é reduzido percebe-se o predomínio
de processos instintivos e compulsivos. (Cf. JUNG, 2000a, p.30).
Na primeira conferência de Tavistock, Jung fala sobre a consciência e suas funções
que a orienta no campo dos fatos ectopsíquicos e endopsíquicos. O primeiro se refere ao
relacionamento dos conteúdos da consciência com os fatos do meio ambiente. Através das
funções sensoriais entramos em contato com fatos do meio externo o qual podemos manipular
através do sistema ectopsíquico. (Cf. JUNG, 2001,p.4).
Dentre as funções ectopsíquicas podemos citar: 1) a sensação que permite a percepção
dos fatos externos por meio dos sentidos e nos diz que “alguma coisa é”, ou seja, julga
quantidade; 2) o pensamento que percebe e julga, exprime o que uma coisa é, ou seja, julga
qualidade, 3) o sentimento nos diz se algo é aceitável, agradável ou desagradável, ou seja,
julga o valor das coisas; 4) a intuição que é um tipo de impressão ou apreensão de dados
subliminares, tendo percepção global e situacional e não passa pelos sentidos (Cf. JUNG,
2001, p.4-5-6).
A função endopsíquica é o sistema de relação entre os conteúdos da consciência, o
lado obscuro do ego e os processos desenrolados no inconsciente. A sua primeira função é a
memória ou reprodução “que nos liga aos fatos enfraquecidos na consciência, aos dados que
se tornaram subliminares ou que foram reprimidos”. A memória é a faculdade de reproduzir
conteúdos inconscientes, sendo a primeira função a distinguir claramente o relacionamento
entre a nossa consciência e os conteúdos que não se encontram visíveis. Por exemplo, no meu
dia-a-dia não estou consciente do número da senha da minha conta bancária, mas quando
preciso utilizá-la recorro a minha memória para trazer à consciência a senha que se
encontrava “invisível” ou inconsciente. (JUNG, 2001, p. 10)
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Na segunda função endopsíquica são considerados os componentes subjetivos, que são


“normalmente uma tendência a reagir de determinada maneira, sendo que ao mesmo tempo a
disposição não lhe é favorável”. Em outras palavras, toda aplicação de uma função consciente
está acompanhada de reações subjetivas quase que injusta, ou imperfeita em relação a
qualquer objeto. Por mais que reconheçamos a presença desses fenômenos inadmissíveis que
se desenrolam em nós, parece vergonhoso admiti-los. Assim preferimos mantê-los na
obscuridade ajudando-nos a pensar que somos inocentes, justos e agradáveis. (JUNG, 2001,
p. 10)
A terceira componente trata-se das emoções e dos afetos, não podendo ser considerada
função, mas como acontecimentos. Quando pensamos em emoção, logo identificamos como
algo que nos “toma” e nos “invade”, muitas vezes justificando atitudes não aceitáveis em nós
mesmos, como “não parecia que era eu” ou “eu estava fora de mim”. Nesse caso, o ego se
anula e o lado oculto do homem o domina perdendo o seu autocontrole.
O quarto fator endopsíquico é denominado por Jung de invasão. Esta ocorre quando o
lado obscuro ou inconsciente invade e tem domínio completo da consciência. Sendo tomado
pelo inconsciente ou por uma influência estranha pode-se esperar do indivíduo coisas que não
lhe são habituais. Contudo, o fato em si não é patológico, pois pertence à fenomenologia
humana mais comum. Por outro lado, poderemos pensar em neurose quando as crises se
tornarem habituais pois essas conduzem à neurose, ou seja, a unilateralidade (JUNG, 2001,
p.11).
Para elucidar sobre talvez à principal função da consciência nas palavras de Jung:
A maior tarefa do homem “deveria ser tomar consciência daquilo
que, provido do inconsciente, urge e se impõe a ele, em vez de ficar
inconsciente ou de com ele se identificar. Porque nos dois casos ele é infiel à
sua vocação, que é criar consciência. À medida que somos capazes de
discernir, o único sentido da existência é acendermos a luz nas trevas do ser
puro e simples.” (JUNG, 1984,p.282)

Contemplando a totalidade dos processos psicológicos, após aclarar sobre o


consciente, trataremos agora do pensamento de Jung a respeito do inconsciente cuja sua
natureza e extensão da psique são completamente desconhecidas.
Na obra O Eu e o Inconsciente, Jung refere ao inconsciente do ponto de vista
freudiano destacando os seus conteúdos como aqueles que se reduzem às tendências infantis
reprimidas, devido à incompatibilidade de seu caráter. Tal repressão que se inicia na primeira
infância tem a influência moral do ambiente perdurando-se ao longo da vida. Contudo, Jung
afirma que não se pode reduzir o inconsciente apenas aos materiais reprimidos da consciência,
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pois ele contém todo o material que ainda não alcançou o limiar da consciência (JUNG,
2011b, p. 133).
Os processos inconscientes revelam-se apenas através dos seus produtos não sendo
possível uma relação direta com tais processos. Trata-se do inconsciente a fonte obscura que
os produz. Esta por sua vez considerada a terceira fonte de conteúdos conscientes atingem a
superfície da consciência com o auxílio das funções endopsíquicas (memória, processos de
julgamento) citadas anteriormente. (JUNG, 2001, p.1).
Conforme Jung (2001, p.1) embora os elementos inconscientes não possam ser
observados diretamente, podemos classificar seus produtos que chegam à consciência em:
inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. O primeiro contém material reconhecível, sendo
adquiridos durante a existência do indivíduo. Contam com processo instintivo, conteúdos
esquecidos ou reprimidos e dados criativos. Esses elementos podem ser conhecidos e
conscientes em algumas pessoas e ignorados por outras. Em contrapartida, o inconsciente
coletivo tem origem desconhecida ou pelo menos não se pode atribuir seus fatores a
aquisições individuais. Pertence a humanidade em geral e não a psique individual, isso o torna
peculiarmente de caráter mítico. Inicialmente Jung acreditou que sua origem pudesse ser
hereditária, hipótese que foi descartada posteriormente após estudar os sonhos dos negros de
raça não misturada confirmando que tais fatores são próprios do humano e não do indivíduo.
O inconsciente coletivo se compõe de: percepções, pensamentos e sentimentos
subliminais que não são reprimidos devido a sua incompatibilidade pessoal; por restos
subliminais de funções arcaicas e, ainda de combinações subliminais sob forma simbólica.
Seus conteúdos podem ser encontrados em toda parte. As “imagens primordiais” ou ideias
coletivas inconscientes que é uma capacidade hereditária da imaginação humana de ser como
era nos primórdios, e os impulsos vitais, são os conteúdos mais importantes do inconsciente
coletivo (JUNG, 2011b, p. 174).
É importante salientar que para Jung (2000a, p. 102) todos os conteúdos de nosso
inconsciente são projetados o tempo todo no meio ambiente, o que é normal. O que
diferenciará a percepção do indivíduo em relação ao objeto projetado é que quando ele
reconhece o caráter projetivo da qualidade do objeto, deixa de acreditar que tal qualidade
pertence realmente ao objeto, reconhecendo-o em si mesmo. Quando o sujeito toma
consciência do conteúdo projetado reconhecendo o valor simbólico do objeto, ocorre uma
espécie de libertação em relação a este.
Pode-se entender a projeção como o processo em que faz a energia psíquica
armazenada no inconsciente projetar-se para fora sem a participação e permissão do ego.
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Uma distinção que deve ser levantada é de que o fato de projetarmos uma qualidade
num determinado objeto (pessoa) não exclui que esta seja real e inerente ao objeto. Este
(objeto) provoca a projeção quando não está ciente da qualidade projetada sobre ele, atuando
diretamente sobre o inconsciente de quem a projeta. Assim acontece a contratransferência do
analista quando o analisando projeta (transferência) conteúdos que o terapeuta desconheça em
si mesmo. Ainda que o objeto possua a qualidade projetada, o sujeito que a projeta atribui-lhe
um valor exagerado. (JUNG, 2000a, p. 106).
Constituída em grande parte de materiais coletivos, a persona é considerada um dos
fatores psíquicos fundamentais na relação do indivíduo com o meio em que vive e a sua
interação com a sociedade. Pode-se dizer que tem a ver com a necessidade do sujeito em ser
aceito aqui e agora.
A persona, ou a máscara criada pelo primitivo como invólucro que o cerca e exalta a
sua personalidade, destaca o chefe da tribo dos demais pela peculiaridade de sua aparência.
Assim, o sujeito favorecido pela máscara é afastado da esfera da psique coletiva na medida
em que se identifica com a sua persona. Tal afastamento lhe proporciona prestígio e poder,
tendo um público que o aplaude e procure alguém para prestigiar. Devido a essa relação, o
prestígio trata-se de uma questão coletiva e não de uma vontade de poder individual (JUNG,
2011b, p.144).
Jung (2000b, p.128) diz que a persona “é o sistema de adaptação ou estilo de nossa
relação com o mundo”. Sendo assim, é comum termos personas mais atuantes no âmbito
familiar e no do trabalho. O mundo e a sociedade exigem e esperam um certo tipo de
comportamento dos profissionais que tentam corresponder a tais expectativas. No mundo pós-
moderno a profissão do sujeito pode tornar-se sua persona, ficando ele totalmente identificado
com o que faz, esquecendo-se de si mesmo.
A imagem ideal do homem tal como ele quer ser, ou seja, a persona é representada
pelo indivíduo exteriormente através do papel de homem forte e compensada interiormente
pela fraqueza feminina (anima) que se opõe a persona. O íntimo é invisível e a anima que
também permanece no escuro é projetada, sendo ainda mais difícil tornar-se consciente para o
indivíduo que tem dificuldade em reconhecer suas fraquezas por estar identificado com a
persona (JUNG, 2011b, p.85).
A persona para o indivíduo é como a máscara usada pelo ator que representa o papel
que ele irá desempenhar. Nesse caso, Jung considera a palavra persona muito apropriada.
(JUNG, 2011b, p. 46 - 47).
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Quanto mais o sujeito representa um papel mais ele se identifica com a persona,
vivendo um compromisso com a sociedade com maior aparência e distanciando assim de si
mesmo. E a cada vez que se constrói a persona, conteúdos são colocados na sombra.
Quanto mais identificado com a persona o indivíduo está, mais ele acredita ser apenas
aquilo que gostaria de saber a respeito de si mesmo negando ainda mais a sua sombra (JUNG,
2000b,p. 74).
Sendo assim, adentraremos no conceito de sombra o qual enfatizará a problematização
proposta no presente trabalho.
Jung (1980, p.49) diz que “a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por isso é
reprimida; e devido a uma intensa resistência.” E por mais que a reprimamos, ela é uma parte
viva da personalidade, portanto de um jeito ou de outro se fará presente.
A sombra seria o lado escuro da nossa personalidade. É considerado como parte do
inconsciente individual e se desenvolve naturalmente à medida que identificamos com
características aprovadas pelo meio externo e rejeitamos aquelas qualidades que não são
adequadas a nossa autoimagem, sendo desaprovada pelo meio ambiente, assim os esquecemos
e os reprimimos durante a vida. Podemos ainda pensar na sombra individual como nossos
‘defeitos’, aquela parte em nós que desaprovamos por considerarmos ‘feia’ e, que não seria
aceita pelo outro.
Zweig e Abrams (1994, p. 15-16) afirmam que emoções e comportamentos negativos
como a raiva, inveja, cobiça, vergonha, culpa, tendências homicidas, violência entre outros,
ficam mascarados pelo eu mais apropriado às conveniências, ou seja, pela persona. Enquanto
esta última se mantém a luz, o que é aparente, a sombra se mantém no escuro, em local
inexplorado abaixo da superfície.
Jung definiu seus conceitos baseado em observações empíricas e assim pautou nas
suas próprias experiências de vida, como na descrição de um sonho em que viu em si mesmo
a inseparabilidade do ego e da sombra. O ego que separa o que lhe agrada, o que pode ou não
pode (dependendo da cultura e do modelo de família), descartando para a sombra todo o
material rejeitado, inclusive capacidades e talentos. Sendo assim, a sombra pessoal não
contém apenas conteúdos negativos, mas também todos os tipos de potencialidades não-
desenvolvidas e não-expressas. Ela contém características que a personalidade consciente
nega e recusa-se a admitir, e irá reencontrá-las em dolorosos e desagradáveis confrontos com
o outro através da projeção, pois é mais seguro observá-la lá fora. É transferida para o mundo
exterior e reconhecida no objeto externo como se não fizesse parte da própria pessoa.
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Sanford (2007, p. 9) considera que vivemos o mal como uma ameaça constante, pois
este pode nos destruir a qualquer momento, seja através da guerra, doença, crime, violência,
contudo ninguém pode evitá-lo.
Ainda que os sinais da sombra ou do ‘mal’ apareçam, seja através de sonhos ou de
sintomas como a depressão, por exemplo, o homem tende a negá-los. Não ouvindo o chamado
para olhar para as suas profundezas que requer desaceleração do ritmo de vida, o indivíduo
permanece inconsciente e a sua sombra tem mais força.
Na obra A vida simbólica, Jung relata sobre uma paciente que chegou com diagnóstico
de esquizofrenia de caráter depressivo, embora não concordasse com tal diagnóstico. Após
submetê-la ao teste das associações e se deparar com a questão de que a mulher ‘matou a
própria filha’, Jung opta por devolver a paciente sobre o crime como possibilidade de torná-la
consciente do seu ato e como alternativa para a cura da sua doença, o que foi confirmado
posteriormente. Ao finalizar o relato do caso Jung diz que colocou um fardo na consciência da
paciente, mas que a salvou da loucura, e afirma: “quem aceita seu pecado pode viver com ele.
Se não aceitar tem de suportar as inevitáveis conseqüências” (JUNG, 2011a, p. 71).
Em outras palavras, enquanto não reconhecemos os aspectos tenebrosos da nossa
sombra ficaremos reféns a eles e teremos de suportar as suas duras conseqüências.
Assim como a sombra pessoal é considerada como parte do inconsciente pessoal, a
sombra coletiva pode ser entendida como parte do inconsciente coletivo, ou seja, aquela mais
profunda do inconsciente onde o homem perde a sua individualidade e a mente se expande
mergulhando na mente da humanidade, onde todos somos um e iguais (Cf JUNG, 2011a, p.
57).
Nos dias atuais nos deparamos com o lado escuro da natureza humana a cada vez que
abrimos um jornal, internet, ouvimos noticiários, conversamos com amigos ou mesmo
desconhecidos na rua. Os efeitos da sombra coletiva permeiam todos os meios de
comunicação transmitida em massa e o mundo vive hoje um grande palco onde esta é
projetada (Cf ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 18-19).
Os autores ainda destacam que a maldade humana nos afronta em todas as partes
evidenciada de diversas formas através dos veículos de comunicação, como: a corrupção dos
políticos, atuação de criminosos e terroristas, a violência em seus diversos aspectos, desvio de
dinheiro pelo poder, posse ilegal de armamentos, rios e oceanos poluídos, entre tantos outros.
Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente
aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas
pela vida. Quando essas últimas tornam-se objeto de projeções grupais
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negativas, a sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de “bode


expiatório” ou de criação do “inimigo”. (ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 19)

Na visão dos autores, através do poder contagioso das fortes emoções em massa que
ficam evidentes na busca por bodes expiatórios, os seres humanos seguem num esforço que
lhes assegurem uma superioridade na medida em que excluem, rejeitam e mata o outro que
justifica ser diferente e inferior a ele.
Conforme Jung (2000a, p. 74) o homem da massa que é aquele comum não toma
consciência de nada e nem precisa fazê-lo, pois acredita que o único responsável pelas faltas é
o anônimo, aquele representado pela “Sociedade”, pelo “Estado”, mas que não o inclui. O
homem da massa também tem o privilégio de não ser responsabilizado pelas grandes
catástrofes sociais, políticas, ambientais e outros em que o mundo está mergulhado. Enquanto
isso ele encontra os culpados “lá fora”, seja na sociedade, no marginalizado, no governo,
exceto dentro de si mesmo.
Sanford fala sobre o lado escuro inevitável em nossa natureza, que se nega a ser
assimilado aos nossos ideais de bondade, moralidade e comportamento ideal esperado para o
ser humano, ou seja, tudo aquilo que o ego se recusa a reconhecer como parte de si. Contudo,
tudo que foi negado voltará na mesma proporção da sua negação. Sendo assim, o homem que
procura ser bom correspondendo apenas à aparência de “bom moço” e negando o seu lado
escuro, em algum momento será pego pelo mal que tanto se esforça para mantê-lo longe de si.
(Cf. SANFORD, 2007, p. 35)
Por fim, o propósito de encontrar a própria sombra é o de reconhecê-la e aceitá-la em
si mesmo como parte legítima e inevitável de sua própria natureza. Integrando os opostos,
aumentando o senso do eu e aproximando o equilíbrio entre a nossa consciência e o
inconsciente. Sabendo-se que manter um relacionamento adequado com o inconsciente não é
tão terrível e monstruoso quanto se pensa. Ao contrário, reconhecê-lo como parte de si e
integrá-lo à consciência pode proporcionar um reencontro com potencialidades enterradas e a
possibilidade de transformar emoções negativas que invadem a nossa vida diária, assim como
a mudança de padrões desadaptados de nossas atitudes (ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 23-24).
O ditado popular, ‘se não pode vencer o inimigo junte-se a ele’, me parece apropriado para tal
referência à sombra.
Os autores referidos acima acrescentam que através do trabalho com a sombra talvez
possamos também contribuir com a retirada de parte da projeção da nossa sombra pessoal que
acrescentamos à sombra coletiva.
16

Quando a psique consegue integrar à consciência conteúdos até então inconscientes, o


ser humano psíquico se torna um todo. Essa experiência se dá somente após o ego passar por
confronto e se perceber como não sendo o detentor de todo o saber, e reconhecendo que ele
não é soberano como acreditava, mas que outras partes da psique sempre estiveram ali
presentes, mesmo sem a sua aprovação. Quando as partes inconscientes da personalidade se
tornam conscientes, ocorre a assimilação destas à personalidade do ego bem como a sua
transformação (Cf. JUNG, 2000a, p.82).
Jung (2000b, p.48) diz que a individuação corresponde a um processo natural da vida
em que o indivíduo se torna o que sempre foi. Esse desenvolvimento ocorre por meio de
enfrentamento de dificuldades sendo possível pelo homem por ser dotado de consciência.
É importante salientar que “tornar-se consciente” talvez seja o primeiro passo no
processo de individuação que não tem fim, mas que é diferente de “realizar-se a si mesmo”. O
Self é muito mais que o ego e engloba o mundo ao invés de excluí-lo como faz o ego ao
identificar-se com o Self resultando em egocentrismo. (Cf JUNG, 2000a, p.83).
Ao percorrer o caminho da individuação, o indivíduo torna-se o ser único que de fato
é, despertando sua singularidade mais pura e íntima, tornando-se o “si mesmo”, o que é
diferente do egoísmo e do individualismo. O ser humano é composto por fatores universais, é
coletivo, e o processo de desenvolvimento psicológico que Jung denomina de processo de
individuação apenas concede a realização das qualidades individuais dadas, o que significa a
realização mais completa das qualidades coletivas do ser humano (JUNG, 2011b, p.63-64).
Podemos inferir que a meta da individuação é a criação e ampliação da consciência.
Com o desenvolvimento psicológico o sujeito aumenta a sua maturidade psíquica com a
integração de aspectos que antes permaneciam na unilateralidade (seja consciente ou
inconsciente), saindo do “eu” para o “nós”, e na individuação expande de “nós” para “todos”.
Para fechar o capítulo retornaremos a obra Ao encontro da sombra de Zweig e Abrams
num excerto de Memories, Dreams, Reflections em que Jung fala sobre o problema do mal no
nosso tempo. Tema este que delimita o presente trabalho no que concerne à projeção da
sombra coletiva nas favelas e seus moradores.
Tocar o mal acarreta o grave perigo de sucumbir a ele. Precisamos,
portanto, deixar de sucumbir a qualquer coisa, inclusive ao bem. Um “bem”
ao qual sucumbimos perde seu caráter ético. Não que ele contenha em si,
qualquer mal, mas porque sucumbir a ele pode trazer conseqüências nocivas.
Qualquer forma de vício é nociva, quer se trate de narcóticos, de álcool, de
morfina ou de idealismo. Precisamos evitar pensar o bem e o mal como
opostos absolutos. (ZWEIG e ABRAMS, 1994, p.193)
17

Na sequência, discorreremos sobre a história das favelas e de seus moradores, os quais


recebem a projeção coletiva das mazelas, caos e violência que vive a sociedade contemporânea, sendo
esta uma das justificativas dos seus males.
18

CAPITULO 2
O Surgimento das favelas e seus estereótipos

Em tempos de violência onde a insegurança paira sobre a população, principalmente


nas grandes cidades do nosso país, a cada dia se torna mais evidente a veiculação de
noticiários relacionando os diversos crimes aos moradores das favelas.
Vivemos hoje uma forte tensão, com medo de caminhar livremente pelas ruas,
sentindo insegurança mesmo em lugares que a priori consideraríamos seguros.
Observamos e assistimos aos noticiários sobre a violência pelo prisma do isolamento,
da exceção, de algo terrível que acontece longe, e quem realiza é um outro pelo qual
tememos. A violência é vista pela sociedade em geral como toda forma de agressão,
transgressão às leis estando relacionada à marginalidade e criminalidade.
Rodrigues, Assmar e Jablonski (2009, p.191) referem que a psicologia social define
agressão “como qualquer comportamento que tem a intenção de causar danos físicos ou
psicológicos, em outro organismo ou objeto”. A agressão e a violência humana é um assunto
que permeia as mais diversas rodas de conversas cotidianas entre as pessoas, seja no ambiente
de trabalho, em casa, em espaços públicos entre outros. Sejam através de relatos da
experiência pessoal por terem sido vítimas de algum tipo de violência ou, ainda comentários
de noticiários exibidos sobre assaltos, seqüestros, crimes, que afinal atrai muitos de nós
mostrando-nos avidamente interessados em ver de perto essas tragédias, como afirmam os
autores.
Ao comentar sobre a violência presenciada ou assistida nos telejornais, é comum que
nos coloquemos no papel de vítimas enquanto os autores condenados pelos crimes são os
algozes que devem ser exterminados e excluídos da sociedade.
19

Para Chauí o nosso mito é o de uma sociedade não violenta, cordial e sem
preconceitos, com episódios violentos, sempre referidos a mecanismos de exclusão social,
onde nós, como agentes, não nos incluímos. (Cf. CHAUÍ, 1980, p.16)
Nesse contexto sócio-histórico, a violência que permeia o mundo contemporâneo,
embora sempre presente na história da humanidade, tem se apresentado a cada dia, mais
temerosa, e principalmente segregadora de uma parte da população: moradores de
comunidades, mais conhecidas como favelas.
A terminologia ‘comunidade’ pode ser utilizada em substituição a ‘favela’. Embora
esta última seja ainda mais conhecida e divulgada, ao adentrarmos pelas ruas onde essa
população habita ouvimos os próprios moradores se referirem à ‘comunidade’ como o local
onde vivem. Talvez na tentativa de minimizar o estereótipo que o termo favela tem carregado
desde o seu surgimento. No presente trabalho usaremos favela devido ao seu maior uso na
literatura pesquisada e privança com o termo.
Valladares (2005) em A invenção da Favela comenta que os dirigentes das associações
de moradores utilizam o termo “comunidade” para qualificar o conjunto de moradores que
eles representam, pois consideram o termo “favela” pejorativo. Contudo a “comunidade” que
traz uma ideia de união mascara a diversidade das situações sociais, ocultando as diferenças e
conflitos existentes no espaço e entre os seus habitantes.
A autora ainda reitera que o termo favelado, usado originalmente para o habitante da
favela (lugar determinado), é usado de forma pejorativa para toda e qualquer pessoa que
ocupe qualquer lugar social marcado pela pobreza ou pela ilegalidade. Dessa forma, a força
da representação social percebe e reconhece a favela apenas de forma singular, descartando a
sua diversidade.
Para tentar compreender os estereótipos e os estigmas relacionados à favela pelo
prisma da sociedade em geral, faz-se necessário um breve histórico do surgimento das
favelas; a compreensão desse lugar espacial bem como suas representações.
Valladares (2005) descreve o fenômeno da favela e as suas primeiras representações
no Rio de Janeiro, que já somam mais de 100 anos.
Ao se iniciar uma preocupação com a pobreza urbana e a necessidade de melhor
gerenciá-la, bem como seus personagens populares, no Rio de Janeiro, os interessados em
detalhar a cena urbana voltaram-se a atenção e olhar para o cortiço. Este, no século XIX, era
local da pobreza, sendo moradia de trabalhadores, vagabundos e malandros que eram
considerados como uma “classe perigosa”, ligados ao crime, sendo uma ameaça à ordem
social e moral, além de lugar propício às epidemias. Considerado o “germe” da favela, com a
20

erradicação de algumas habitações e a destruição do mais importante cortiço, se inicia o


interesse pela favela.
Valladares (2005) coloca que o Morro da Favella, sendo o principal da história, já
existia antes com o nome de Morro da Providência com data de ocupação em 1897. Tem uma
ligação com a guerra de Canudos, pois seus antigos combatentes se instalaram no local para
cobrarem suas remunerações atrasadas ao Ministério da Guerra. Por volta de 1900, o Morro
da Favella era noticiado no Jornal do Brasil como um lugar infestado de vagabundos e
criminosos.
Escritores, jornalistas e reformadores sociais do início do século XX nos deixaram um
legado referente ao processo de construção das representações sociais da favela. As imagens e
escritos permitiram o desenvolvimento de um imaginário coletivo sobre o microcosmo da
favela e seus moradores.
O livro Os Sertões foi lido por todos os intelectuais do Rio de Janeiro da época,
tornando a guerra de Canudos muito presente na memória coletiva, tendo assim grande
influência sobre o olhar que os primeiros observadores da favela vieram a descrever e a
transmitir posteriormente.
O livro de Euclides da Cunha é posterior (1902) ao momento em que o
Morro da Providência foi rebatizado como Morro da Favella (1887), mas tal
acontecimento teria passado despercebido, e essa palavra não teria alcançado a
posteridade que conheceu, sem as imagens fortes e marcantes transmitidas através
de Os Sertões. Imagens capazes de permitir aos intelectuais brasileiros compreender
e interpretar a favela emergente. (VALLADARES, 2005, p.30)

A ideia de comunidade miserável que Euclides da Cunha percebeu e descreveu sobre o


povoado de Canudos foi associada à favela carioca, sendo um modelo para os seus
observadores contarem ao mundo o que percebiam das favelas, com grande repercussão ainda
nos dias atuais.
Ainda no início do século XX a favela era vista como um problema a ser resolvido.
Foi então que médicos e engenheiros (que governavam a capital naquela época), como
divulgados pelos jornalistas, estariam preocupados com o futuro da cidade e seus moradores,
discutiam sobre medidas para resolverem os problemas da cidade do Rio de Janeiro, ou seja,
acabar com as favelas.
Médicos higienistas identificavam as favelas como desencadeadoras de epidemias e
contaminação; as moradias insalubres, com péssimas condições de higiene precisavam ser
combatidas, uma vez que médicos e engenheiros consideravam o meio ambiente como origem
dos diversos males que a população vivenciava (Cf. VALADARES, 2005, p.40).
21

Várias propostas foram desenvolvidas na tentativa de se “controlar” a favela, como


por exemplo, o projeto de substituí-las por conjuntos de prédios que sairia a baixo custo aos
seus moradores. Por volta de 1950 com a expansão da favela, inicia-se um novo período em
que os seus moradores ganharam reconhecimento e promoção ao estatuto de comunidade,
rompendo com a visão exclusivamente negativa do mal a ser combatido pelos higienistas.
Voltando um pouco para a realidade de São Paulo no que concerne à segregação
social, Caldeira (1997) refere que no início do século XX não havia distância entre as
moradias dos diversos grupos sociais, embora com a clara evidência desproporcional dos
arranjos residenciais como se viam casas enormes e luxuosas ao lado dos amontoados nos
cortiços. Entre a década de 40 e 80, essa distância passou a se evidenciar, onde a classe média
e alta ocupava os bairros centrais com excelente infra-estrutura, enquanto os pobres
habitavam a periferia com péssimas condições de infra-estrutura e acessibilidade.
Todo esse processo de mudança urbana na cidade de São Paulo, que perpassa por
outros aspectos que não serão citados, relaciona-se ao crescimento do crime violento e do
medo.
Para Caldeira (1997) a cidade de São Paulo com seus enclaves fortificados para
moradia, trabalho e lazer da classe média e alta, que são isolados fisicamente através de
muros, forte esquema de segurança, entre outros, produzindo segregação espacial, evidenciam
ainda mais a desigualdade social. As interações entre os diversos grupos sociais tornam-se
raras e os encontros públicos, que ocorrem em espaços protegidos, acabam por selecionar
grupos homogêneos.
Essa segregação que fica fortemente evidenciada em São Paulo, como em outras
grandes cidades, é justificada pelo medo da violência. Por outro lado, como refere Caldeira
(1997), falar sobre o crime que é hábito no cotidiano dos habitantes gera estereótipos, cria
diferenças rígidas entre os diferentes grupos sociais, onde as pessoas colocam os opostos, o
bem e o mal em categorias distintas por grupos e classes sociais.
Tal distinção, ou seja, a visão dualista tão comum nos nossos discursos quando nos
referimos ao medo da violência urbana, é reforçada também pela mídia ao relacionar o tráfico
de drogas, a criminalidade, entre outros aspectos considerados como “mal” pela população em
geral à favela e seus moradores.
Com a atenção voltada para as ambiguidades surgidas no discurso dos seus
entrevistados, Caldeira refere que “quando as pessoas têm de lidar com estereótipos que
discriminam a si mesmas e ao invés de questionarem os estereótipos, tentam afastá-los de si
22

mesmas e associá-los a outras pessoas próximas, geralmente vizinhos”. ( CALDEIRA, 2000,


p. 58)
Valladares (2005) comenta que lhe parecia prematura a ideia da favela como território
da violência, pobreza, e de todas as ilegalidades e exclusão social. Contudo, reitera que não
que não exista tudo isso nas favelas, mas que existem violência e tráfico de drogas fora delas.
Caldeira (2000), ao entrevistar moradores de São Paulo de diversas classes sociais que
foram vítimas de crimes, percebe que no relato organizado os criminosos precisam ser não
brancos do nordeste, dos cortiços e das favelas, o lugar próprio aos criminosos.
No relato de uma de suas entrevistadas, a narradora percebe em algum momento o
absurdo de suas opiniões:
...num determinado ponto, ela distancia a si mesma da versão mais
extrema dos preconceitos contra os favelados dizendo que a ideia de queimá-
los todos é de seu marido, não dela. .....”quando estou enfezada posso falar
tão bem quanto um advogado”, observou ela. Um advogado é também um
personagem estereotipado, associado com corrupção, com a manipulação da
lei possível para aqueles que tem o poder e com a maestria no uso das
palavras para ludibriar (CALDEIRA, 2000, p.38).

O relato acima retrata uma parcela do imaginário social em relação ao preconceito da


população em geral (classe média, alta ou não moradores da periferia) sobre a favela e seus moradores,
que são tidos como os representantes da violência e de tudo que ela significa, sendo que a vinculação
que se faz da pobreza com a criminalidade gera cada vez mais atitudes preconceituosas e de exclusão
dessa parcela da população.
Segundo Valladares (2005, p. 163) “se deixarmos de confundir os processos sociais
observados na favela com os processos sociais causados pela favela, será possível compreender
fenômenos que, apesar de se manifestarem de fato nas favelas, também se manifestam em outros
lugares.”
Após um século do período em que a favela era vista como um problema a ser resolvido pelos
higienistas é notório que ela ainda é referência como depositário de problemas relacionados à
violência, ao crime e às mazelas da sociedade. Tais temas são focos das conversas rotineiras em que as
pessoas se envolvem em relatos de violência que vivenciaram ou assistiram pela televisão, mas como
algo exterior a elas. Violência e agressividade que não faz parte do “seu mundo”, do meio em que vive
ou do seu âmbito familiar, de amizades, moradia, etc.
Manter a violência, a agressividade, o crime, a ambição, a preguiça, a vadiagem, a
desonestidade, enfim, os males internos projetados nas favelas, parecem fortalecer o imaginário social
e coletivo de que os não favelados não fazem parte de tudo isso, portanto consideram-se vítimas
incapazes de sentirem ou se envolverem com o mal representado pelas favelas e seus moradores.
23

No capítulo 3, vou descrever a parte empírica deste trabalho e buscarei olhar para meu
objeto de estudo, como descrito no capítulo 1, pela ótica junguiana, com o intuito de pensar
essa realidade e refletir sobre alguns preconceitos, de modo que possa contribuir para que os
profissionais de saúde das UBSs possam prestar melhor atendimento aos usuários do serviço.
24

CAPÍTULO 3

A projeção da sombra coletiva na favela

Como citei na introdução, me mudei para São Paulo há quase três anos. Já trabalhava
anteriormente na saúde pública com população em vulnerabilidade psicossocial, mas foi aqui
em São Paulo que me deparei com grandes e temerosos desafios ao entrar em contato com
uma população não só vulnerável, mas temida pela sociedade da qual eu faço parte.
Ao sair do interior de Minas Gerais e chegar à metrópole, me deparei com a persona
psicóloga que se viu desafiada ao adentrar a favela e exercer o seu papel atendendo os seus
moradores em Unidades Básicas de Saúde. Foi assim que imediatamente coisas que eu
desconhecia em mim começaram a surgir.
Logo, fui buscar informação, apoio e ajuda na tentativa de minimizar os males e
desconfortos causados pelos conteúdos sombrios, conciliando-os e integrando-os à
consciência. Entre análise, supervisão e pós-graduação em psicologia junguiana, o
enfretamento de tais conteúdos culminaram neste trabalho.
Atender a pessoas envolvidas com tráfico, roubo, violência, presidiários, entrando
muitas vezes em suas casas durante intervenções (visitas domiciliares) que fazem parte do
nosso processo de trabalho, enfim, o contato direto com essa população no seu território onde
existem suas próprias leis e regras, me despertou medo.
Diante desses medos e preconceitos, comecei a perceber que eles não eram apenas
pessoais, mas perpassavam também pelo discurso dos meus familiares, amigos e colegas de
trabalho. Pânico, comentários e questionamentos preconceituosos são algumas das reações
das pessoas em relação ao meu local de trabalho.
Depois de muito temer, pude perceber parte da minha sombra pessoal que estava
sendo projetada nas pessoas atendidas por mim com características hostis e histórico de
violência entre outros delitos. Quando esses conteúdos sombrios projetados vieram à minha
25

consciência, uma clareza em relação ao emaranhado de ideias e comentários


preconceituosos em relação aos moradores das favelas feitos por mim, colegas de trabalho,
familiares, e da mídia, vieram à tona.
Enxergar que eu dava a minha contribuição para a construção de uma imagem que a
favela é local de criminosos, traficantes e agressores de todos os tipos, foi crucial para
minimizar o meu preconceito com esse local e seus moradores.
De acordo com Jung, a sombra coletiva é aquela mais profunda do inconsciente, onde
o homem perde a sua individualidade e a sua mente se expande mergulhando na mente da
humanidade.
Nesse encontro somos todos um, e algo maior pode ter um poder avassalador,
destruidor ou curador. Nesse caso, a minha sombra pessoal virou sombra coletiva numa fusão
do inconsciente pessoal com o inconsciente coletivo onde a maldade humana permeia a massa
e todas as suas formas de comunicação, como disseram, Zweig e Abrams. Os efeitos desta
sombra coletiva tem sido destruidora com projeções tão negativas do homem sobre uma
pequena parcela da população.
Como Jung cunhou, os conteúdos mais importantes do inconsciente coletivo são as
“imagens primordiais” ou ideias coletivas inconscientes, que é uma capacidade hereditária da
imaginação humana de ser como era nos primórdios. E como se vê no histórico do surgimento
das favelas, estas sempre foram marcadas pela pobreza e ilegalidade. Logo, desde que
surgiram, as favelas e as pessoas que moram nesses locais sofrem com estigmas e
preconceitos frutos do inconsciente coletivo.
Enquanto existia apenas projeção, o que eu percebia era que toda a violência do
“mundo” estava ali, bem diante dos meus olhos, naquele local e naquelas pessoas, o que
aumentava ainda mais o medo e o preconceito. O discurso dos colegas de trabalho, dos
familiares e dos noticiários era o mesmo. Fazendo parte da massa, eu projetava na favela e
nos seus moradores a responsabilidade por toda a violência que existe no nosso país. Assim,
dizia Jung que o homem da massa é aquele que não toma e nem precisa ter consciência de
nada, já que atribui ao anônimo toda a falta. Dessa forma, o homem da massa se
desresponsabiliza por toda a violência, crime e maldade que vivenciamos atualmente em
nosso país e no mundo.
Considero válido ressaltar, como referido no capítulo 1, que não é que não exista tudo
isso nas favelas. É óbvio que lá encontramos todas as formas da maldade humana, mas
encontramos também formas de bondade e lealdade, assim como encontramos na outra
parcela da população as mesmas formas de maldade e benevolência.
26

Como citado no capítulo 2, Chauí refere que o mito e a fantasia são de que a nossa
sociedade é uma sociedade não violenta, cordial e pacífica, e quando nos referimos aos
preconceitos e exclusão, não nos incluímos como sujeitos responsáveis por isso. Nós
transferimos ao outro a autoria da violência, do preconceito, da exclusão, como se tudo isso
existisse apenas fora.
A ideia que Chauí retrata como não nos incluirmos nesse processo e atribuirmos ao
outro a responsabilidade pelos preconceitos e exclusão, Jung chamou de projeção.
A sombra do preconceito e da agressividade estava ali camuflada o tempo todo, mas
quando fui atingida por um fato externo (local de trabalho), uma tensão foi gerada causando
em mim, incômodo e medo, assim o inconsciente sentiu necessidade de colocar essa energia
para fora. Nesse caso, no objeto, a favela, e na pessoa dos seus moradores. Essa energia
psíquica que é jogada para fora de forma inconsciente, sem a participação do ego, é
denominada projeção.
Ainda sobre projeção, podemos mencionar o que Caldeira (2000) diz sobre as pessoas
que ao invés de lidarem com estereótipos que discriminam a si mesmas elas tentam afastá-los
de si mesma e associá-los a pessoas próximas, como os vizinhos. Jung refere como projeção,
ou seja, conteúdos inconscientes (reprimidos, negados, .. ) que são incompatíveis com a
consciência são lançados para fora do sujeito que o direciona a outro sujeito ou objeto.
Para o que Valadares diz que não é que não exista violência, pobreza e tráfico nas
favelas, mas que tudo isso existe também fora delas, Jung já dizia (2000a) para nos
atentarmos ao fato de que ao projetarmos uma qualidade num objeto ou pessoa, não exclui a
possibilidade de que tal qualidade exista no objeto que recebeu a projeção. Este objeto,
receptor da projeção, não tendo consciência da qualidade que lhe foi projetada ou atribuída,
provoca tal projeção de modo inconsciente no sujeito.
Ao negar características ou qualidades em si projetando-as fora, há uma necessidade
do ego de se proteger e de se adaptar ao mundo, ou seja, o indivíduo nega ou esconde a sua
verdadeira natureza e constrói impressões de si para se apresentar aos outros. Para o estilo de
se relacionar e se adaptar ao mundo, Jung chamou de persona.(2000b, 128).
Ao iniciar o meu trabalho na comunidade (UBS) fui alertada e orientada pela
coordenação a sair da Unidade apenas acompanhada pelos agentes comunitários de saúde
(ACS), pois eles moram e conhecem a comunidade. Diante a realidade vivenciada na favela,
que considero um mundo “paralelo” ao vivido fora dela, a persona psicóloga não se
sustentava mais pelo medo e preconceito. Para aliviar o temor foi preciso olhar de frente para
os aspectos negativos que eu enxergava nos moradores das favelas, mas que habitam em mim.
27

A frase de Jung “quem aceita seu pecado pode viver com ele” parece ecoar no meu despertar
para um ser humano mais consciente. O coletivo pode aliviar a angústia, mas enfrentá-la pode
ser libertador.
Buscar por ajuda, principalmente através da análise e supervisão, para lidar com as
dificuldades encontradas no dia-a-dia de atendimento as pessoas envolvidas em conflitos com
a lei, e com as diversas formas de violência, foi, é e continuará sendo crucial para que eu
possa desempenhar melhor o meu papel como psicóloga, e auxiliar os meus colegas de
trabalho para que possam prestar atendimento a essa população de forma mais humanizada e
acolhedora.
Segundo Jung, o homem, por ser dotado de consciência, tem a capacidade de enfrentar
dificuldades, e assim ele pode tornar-se o que sempre foi. Jung chamou esse processo natural
de individuação.
Podemos chamar o processo de individuação de desenvolvimento psicológico, ou seja,
é um contínuo com potencial infinito.
Para tornar-se um ser único, com todo seu potencial criativo e singular, é necessário
despir-se das máscaras e mergulhar nas profundezas do mar revolto que faz de tudo para que
não se chegue ao fundo. Enfrentar a tempestade em alto mar poderia ser visto como abrir mão
da persona, abandonando as máscaras para deixar o peso mais leve e então mergulhar no
inconsciente ou no oceano. E ao mergulhar, encontrar a sombra que recebe hóspedes
desagradáveis, reprimidos, indesejáveis, mas também pérolas. E só então, começar a
desbravar e a contemplar tudo que existe no fundo do mar, com toda a sua essência, pureza,
leveza e naturalidade.
Como disse Jung, o tornar-se consciente talvez seja o primeiro passo no processo de
individuação. Pensando no desenvolvimento psicológico contínuo que é o processo de
individuação, através do contato com parte da minha sombra pessoal em que aspectos
relacionados à agressividade e violência vieram à consciência, pude perceber que tais aspectos
atribuídos anteriormente aos moradores das favelas, também habitam em mim. Conhecer,
aceitar e integrar tais aspectos do meu ser é fundamental para a ampliação da minha
consciência, logo, para o processo de individuação.
Assim como referido por Zweig e Abrams, quando trabalhamos com a sombra talvez
possamos retirar parte da nossa sombra pessoal que acrescentamos a sombra coletiva. Ao
trabalhar com aspectos da minha sombra pessoal, ligados a ideias estereotipadas sobre a
relação da onda de crimes e violência que assolam o nosso país com as favelas e seus
moradores, contribuo com a retirada de uma porção desses preconceitos da sombra coletiva.
28

Com isso, colaboro para atenuar a segregação e o infortúnio de uma população que vive no
limbo de uma sociedade ainda preconceituosa e egoísta.
A construção da favela e de seus moradores que permeiam o imaginário coletivo é de
um lugar perigoso, onde ocorrem crimes e outras cenas de barbárie que abriga os seus
responsáveis. Local onde recebe a projeção dos males e tormentos de uma sociedade que ao
negar todas as suas mazelas, se esconde detrás de uma máscara moldada de sucesso e bem-
aventurança.
Embora eu faça parte dessa projeção coletiva, percebo que me diferencio porque
busquei conhecer o temor à violência e a violência em mim. Diante de todas as questões que
me mobilizaram, poderia me apoiar nas resistências, mas procurei refletir sobre meus medos,
e debruçar sobre os nossos preconceitos.
Como Jung propõe que a sombra seja integrada, busquei colocar luz nessa sombra e
não deixá-la ficar atuando. Essas foram às soluções encontradas para acolher e não reforçar os
preconceitos.
Ter a coragem de olhar para o sombrio, para o que fere e angustia não é tão horroroso
como parece, é apenas uma forma de olhar, e quando se percebe que ele tem outras facetas e
aspectos a tensão diminui e a sensação de libertação aumenta. Logo, com a aceitação de si
mesmo com tudo que o pertence, o bem e o mal, torna-se mais fácil e possível a aceitação do
outro sem a necessidade de exclusão.
O processo de individuação só é possível na relação comum. Preciso do outro para
projetar e descobrir que isso é meu. Reconhecer as nossas fraquezas é um processo doloroso,
mas ser completo não é ser perfeito.
Compreender que a minha sombra pessoal contribui para aumentar a sombra coletiva
me torna mais responsável pelo que acontece no mundo, bem como todo o preconceito que
envolve as favelas e seus moradores. Portanto, o meu compromisso com o meu
desenvolvimento pessoal é um compromisso com a humanidade.
29

CONCLUSÃO

Como citado no início, o presente trabalho foi motivado a partir da minha experiência
como psicóloga atuando em Unidade Básica de Saúde localizada na favela e com a seguinte
questão: quando nego a violência que existe em mim, estou contribuindo para o aumento do
preconceito com relação à favela e seus moradores, e não colaboro com meu processo de
individuação e da humanidade como um todo?
Conforme apresentado, verificou-se que a hipótese de que a negação da violência que
existe em mim colabora para o aumento do preconceito com relação à favela e seus moradores
foi confirmada. Estes que são responsabilizados por toda a forma de crime e violência que
assola a sociedade no mundo de hoje, provocando medo na população que sofre com a
insegurança principalmente nas grandes cidades.
Nota-se que a sociedade projeta as suas mazelas nas favelas e nos seus habitantes,
sendo notório através dos noticiários e telejornais, rodas de conversa entre amigos ou mesmo
desconhecidos, e observado na minha experiência e dos meus colegas de trabalho como
prestadores de serviço de saúde pública nas Unidades Básicas de Saúde, localizadas na favela.
Os conteúdos de violência que existem em mim, mas que foram negados e descartados
para a sombra e projetados em moradores das favelas, foi observado através do medo de
sofrer agressão e do preconceito em relação a essa parcela da população, que é sempre vista
como autora das várias formas de violência que acomete a sociedade.
Constatou-se também que o processo de individuação se inicia com a tomada de
consciência, e enquanto os conteúdos de violência são mantidos na sombra individual, este se
une à sombra coletiva aumentando o preconceito com essa população marginalizada e
excluída. Enquanto a sombra se mantém atuante, não há colaboração para o meu processo de
individuação, consequentemente atrasando o processo de individuação da humanidade. Uma
vez que somos todos um, cada indivíduo que busca o autoconhecimento está contribuindo
para que todos busquem também a sua essência.
Para tanto, a minha responsabilidade como ser humano está acima da persona
psicóloga que não pode demonstrar fraqueza, ela está na busca pela minha essência que se
encontra num contínuo com o desenvolvimento e evolução da humanidade.
30

REFERÊNCIAS

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de Literatura e Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1980. v. 11, p. 16-24.

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