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ficção

OS ÚLTIMOS DIAS DE MUHAMMAD ATTA


Nenhum indício físico, documental ou analítico oferece explicação convincente
sobre o motivo que levou [Muhammad] Atta e [Abdulaziz al] Omari a ir de
Boston para Portland, no Maine, na manhã do dia 10 de setembro, apenas para
retornar ao aeroporto Logan, em Boston, no vôo 5930, na manhã do dia 11 de
setembro. — RELATÓRIO DA COMISSÃO DO 11/9

Por Martin Amis

Revista Piauí, Edição 2, Novembro 2006

Sul da ilha de Manhattan, Nova York, manhã de 11 de setembro de 2001,


antes e depois
PARTE I

N o dia 11 de setembro de 2001, ele abriu os olhos às 4 da manhã,

em Portland, no Maine; e teve início o último dia de Muhammad Atta.


Qual era o cenário do seu despertar? Um quarto de hotel, do tipo
classificado como “econômico” em seu guia de viagens — um grau acima
do “básico”. Era um alojamento-dormitório que pertencia a uma rede.
Mas não era como os outros alojamentos-dormitório em que já estivera:
hospedarias alegres e higiênicas. Aquele lugar era imponente e
labiríntico, e tão velho quanto a maioria de sua clientela. E barato. Pois é.
O edredom de náilon pesado como uma armadura de chumbo; a grande
televisão cúbica sobre a cômoda em frente; e a geladeira branca amassada
— onde aconteceu de o motivo para Muhammad Atta vir a Portland, no
Maine, estar guardado numa prateleira, gelando… A frugalidade
singular daquelas últimas semanas era parte de uma competição de
fervor em curso entre os membros do grupo de ação de que ele fazia
parte. A exemplo dos outros, fazia suas orações, desembolsava suas
esmolas, lavava-se com freqüência, comia pouco, dormia pouco. (Mas não
era como os outros). Dias antes, o excedente dos fundos operacionais de
seu grupo — cerca de 26 mil dólares — tinha sido abstemicamente
devolvido a seu intermediário em Dubai.
Deslizou para fora da cama e ligou para Abdulaziz, que já se
movimentava, e talvez já estivesse rezando, no quarto ao lado. Depois, o
banheiro: a faina da ablução, a provação da excreção, o tormento da
depilação. Acionou a mangueirinha da ducha e tirou a cueca. Deu um
passo para dentro, submetendo-se à carícia fria e pegajosa da cortina de
plástico na panturrilha e na coxa. Em seguida, consumiu um tempo
inacreditavelmente longo para tentar tirar um cabelo do sabonete. O fio
alheio não parava de mudar de feitio — ponto de interrogação, símbolo
do infinito —, mas continuava agarrado; e o sabonete, não maior do que
uma caixa de fósforos quando ele começara, havia praticamente
desaparecido quando terminou. Depois, como às vezes acontece nesses
hotéis velhos, imponentes, essencialmente bem-intencionados e geridos
com liberalidade, a água deu um soluço e no instante seguinte passou de
fio tépido a jorro escaldante; e quando ele se debatia para sair do
compartimento da ducha, pisou num sachê de xampu furado e caiu
pesadamente, contundentemente sobre o cóccix. Teve de espernear para
sair de dentro da nuvem de vapor e esfolou a cabeça na borda de metal
serrilhada do chuveiro. Passado um tempo, pôs-se de pé lentamente e
ficou parado com as mãos na cintura, os olhos quase fechados, a cabeça
inclinada, esperando recuperar- se. Enxugou-se com uma toalha fina e
branca, arrancando uma pelezinha da unha na superfície brilhante.
Agora, enquanto emitia um suspiro de desgosto indefinido, agachou-se
sobre a privada. Nem se importou com seu rotineiro rosto franzido, sua
tensão e seu estremecimento, em parte porque sua cabeça se sentia
perigosamente empanturrada. De forma mais manifesta, não evacuava
desde maio. No geral, a parte superior de seu corpo era de uma elegância
impressionante, graças às horas que passava na academia de ginástica
com os sauditas marombeiros; mas agora havia um monte solene onde
antes ficava o abdômen, tão retesado e orgulhoso quanto uma gravidez
no quarto mês. Nem era essa a única seqüela. Sentia uma dor febril e
constante, não nas entranhas, mas na parte mais baixa das costas, na raiz
da região pélvica e no escroto. A intervalos de poucos minutos, sempre
precisava esperar num interlúdio de náusea enquanto sucos gástricos em
desuso borbulhavam e subiam até o ralo de sua garganta. Seu hálito
cheirava a rio pestilento.
O pior ainda estava por vir: fazer a barba. Barbear-se era o pior porque
necessariamente o obrigava a contemplar o próprio rosto. Ele olhava para
baixo enquanto ensaboava as faces, mas depois o queixo se erguia e lá
estava, revelado pelo barbeador, em faixas verticais: o rosto de
Muhammad Atta. Um ano antes, depois do Afeganistão, ele dissera adeus
à barba. Emaranhada, retangular, ligeiramente assimétrica, ela produzia o
efeito de atenuar a feição enojada de sua boca e ocultara por completo a
franca hostilidade revelada pelos dentes cerrados, os incisivos inferiores
mais avançados do que os superiores. Seu interior estava contido, mas o
rosto era um tanto incontinente, ou pelo menos assim sentia Muhammad
Atta. A aversão, a aversão a tudo, estava sendo esculpida no rosto de
dentro para fora. Ele se espantava com o fato de ainda o deixarem
caminhar pelas ruas e, mais ainda, entrar num edifício ou embarcar num
avião. Mais um dia, só mais um, e não deixariam mais. Por que ninguém
aponta, por que não se encolhem, por que não fogem? E contudo esse
rosto, àquela altura quase comicamente maligno, dali a pouco receberia
sorrisos e seria observado com um olhar superficial (sua passagem era da
classe executiva) pelas comissárias de bordo condenadas.
Uma hipótese. Se renunciasse à operação dos aviões e o plano fosse
adiante sem ele (ou se de algum modo sobrevivesse no final), nunca mais
conseguiria viajar de avião nos Estados Unidos nem em nenhum outro
lugar — nem de avião, nem de trem, nem de navio, nem de ônibus. O
perfil não precisava ser racial; bastava que fosse facial. Nenhum homem
ou mulher mentalmente são aceitaria ficar confinado nas proximidades
dele. Com aquele rosto a cada dia mais gangrenoso. E aquele nome, o
nome sob o qual viajava, em si mesmo uma promessa de vingança:
Muhammad Atta.
Nos últimos dez anos, um único ser humano havia tido prazer óbvio ao
pôr os olhos sobre ele, e foi o xeique. Aconteceu na reunião em que foram
apresentados, em Candahar — onde, em questão de minutos, o xeique o
designou para liderar a operação. Muhammad Atta sabia que a primeira
coisa que lhe perguntariam era se estava disposto a morrer. Mas o xeique
estava rindo, quase com amor nos olhos, quando disse. “A pergunta não
é necessária”, começou. “Vejo a resposta em seu rosto.”

O vôo de curta distância, da empresa Colgan Air, com destino ao

aeroporto Logan, estava marcado para as seis da manhã. Assim, ele ainda
tinha uma hora. Vestiu-se (a camisa azul-escura, a calça preta) e sentou-se
diante da cômoda, meio de mau jeito, as pernas esticadas para o lado.
Dois documentos estavam à sua frente. Deu um bocejo, depois espirrou.
Enquanto se barbeava, Muhammad Atta, pela primeira vez na vida,
cortou o lábio (o inferior); com rapidez surpreendente, o talho se
consolidou numa convincente imitação de herpes labial. De modo muito
menos incomum, tirou uma lasquinha da aba carnuda da narina direita, o
que liberou um suprimento de sangue aparentemente inesgotável; a todo
momento ele tinha de levantar e pegar mais lenços de papel, deixando
atrás de si uma trilha de papel com as gotas de sangue estancadas. Os
temas da repetição e do prolongamento, ele percebia, já começavam a se
associar ao seu último dia.
O documento número 1 surgiu na tela do laptop. Era o seu testamento,
redigido em abril de 1996, quando os pensamentos do grupo se voltavam
para a Tchetchênia. Dois amigos marroquinos, Mounir e Abdelghani,
ambos devotos, foram as testemunhas, e assim ele incluíra no texto uma
boa dose de fórmulas carolas. Qualquer velharia servia. “Durante o meu
funeral, quero que todos fiquem em silêncio, porque Deus disse que gosta
que se fique em silêncio em três situações: quando se recita o Corão,
durante um enterro e quando se está rastejando.” Rastejando? Seria
algum erro de digitação? Bateu o olho em outra exigência e franziu ainda
mais o cenho: “A pessoa que vai lavar o meu corpo na região próxima à
genitália deve estar de luvas para não tocar na minha genitália.” E isto:
“Não quero que nenhuma mulher grávida ou nenhuma pessoa que não
esteja limpa venha se despedir de mim, porque não aprovo isso.” Bem,
esses cuidados eram agora puramente acadêmicos. Ninguém viria se
despedir dele. Ninguém lavaria seu corpo. Ninguém tocaria sua genitália.
Havia outro documento sobre a cômoda, um folheto de quatro páginas
em árabe, preparadas pelo setor de informações em Candahar (e presas
com uma fita encardida). Cada um deles recebera um igual; os outros
muitas vezes criavam um folheto pessoal e ficavam fazendo reverências
com a cabeça, balançando o corpo e murmurando horas e horas sobre ele.
Mas Muhammad Atta não era como os outros (e pagava um preço por
isso). Mal pusera os olhos no folheto até o momento. “Aperte bem o
cadarço dos sapatos e use meias justas que fiquem aderidas aos sapatos e
não deixe que os sapatos saiam dos pés.” Presumiu que se tratava de um
conselho sensato. “Que cada um de vocês afie bem sua faca e mate seu
animal e crie consolo e alívio com seu sacrifício.” Referência,
supostamente, ao que iria acontecer com os pilotos, os primeiros oficiais,
os comissários de bordo. Alguns dos sauditas disseram que haviam
sacrificado carneiros e camelos em Caldan, o campo de treinamento perto
de Cabul. Muhammad Atta não esperava sentir prazer com essa parte: o
uso exemplar dos estiletes. Imaginava as mulheres de uniforme, com suas
blusas de gola aberta. Não imaginava que fosse apreciar aquilo; não
imaginava que fosse gostar da morte daquela forma.
Ele então se recostou e sentiu que a náusea se aproximava: ela se adensou
à sua volta, depois se esgueirou através dele. Sua mente, na medida em
que era separável do corpo, estava bloqueada para a “completa
tranqüilidade completa” preconizada e recomendada por Candahar.
Algum tipo muito diferente de pessoa de 33 anos de idade talvez sentisse
o mesmo êxtase de convicção no momento em que contemplasse uma
tarde num apartamento emprestado na companhia de seu verdadeiro
amor (e obsessão sexual). Mas a mente e o corpo de Muhammad Atta não
eram separáveis: essa era a dificuldade; esse era o problema mentecorpo
— no seu caso, extremamente agudo. Muhammad Atta não era como os
outros, porque fazia o que estava fazendo pela razão essencial. Os outros
faziam o que estavam fazendo pela razão essencial também, mas haviam
alcançado a sublimação mediante o fervor da jihad; e seus corpos haviam
sido convencidos por aquela estratégia e haviam aderido a ela. Comiam,
bebiam, fumavam, sorriam, roncavam; subiam as escadas galgando dois
degraus de cada vez. O corpo de Muhammad Atta não aderira àquilo.
Fazia o que estava fazendo pela razão essencial e somente pela razão
essencial.
“Purifique o coração e limpe suas manchas. Esqueça-se e aparte-se
daquilo que chamam de Mundo.” Muhammad Atta não era religioso; não
era nem mesmo especialmente político. Unira-se aos militantes porque a
jihad era, em muitos aspectos, a idéia mais carismática da sua geração.
Unir ferocidade e retidão em uma só palavra: nada podia rivalizar com
isso. Adotou a idéia, fez as coisas que impressionavam seus
companheiros; colecionou citações, atos de caridade, peregrinações,
teorias conspiratórias e assim por diante, como outras pessoas colecionam
autógrafos ou bolachas de papelão para o chope. E isso estava em
harmonia com seu temperamento. Se retirássemos toda a conversa fiada
sobre fé, o fundamentalismo se ajustava a seu temperamento, e com uma
precisão quase sinistra.

P or exemplo, a atitude com relação às mulheres: a mistura de

extrema hostilidade e extrema cautela, ele achava altamente adequada.


Além disso, apreciava a idéia da fraternidade, embora, é claro,
desprezasse completamente o contingente atual, em particular seus
companheiros pilotos; Hani (o Pentágono) ele mal conhecia, mas com
Marwan (a outra Torre Gêmea) se enfurecia constantemente e ficava
quase fascinado com o grau da aversão que sentia por Ziad (o
Capitólio)… Adultério castigado com chicotadas, sodomia punida com
sepultamento vivo: isso parecia correto para Muhammad Atta. Aderia
também ao ódio à música. E ao ódio ao riso. “Por que você nunca ri?”, às
vezes lhe perguntavam e aos outros também. Ziad respondia: “Como
vocês conseguem rir com tanta gente morrendo na Palestina?”.
Muhammad Atta nunca ria não porque havia gente morrendo na
Palestina, mas porque não achava nada engraçado. Aquilo que chamam de
Mundo. Isso também o afetava. O mundo sempre parecera uma ilusão —
um arremedo irreal.
“O tempo que separa você de seu casamento no céu é muito curto.” Ah,
sim, as virgens: seis dúzias delas — meia grosa. Lera numa revista de
notícias que a palavra “virgens” no livro sagrado era uma tradução
equivocada do aramaico. Que o certo seria “uvas-passas”. Cogitava
ociosamente se aquele trocadilho podia ter alguma coisa a ver com
“sultana”, que significava (a) pequena passa de uva sem caroço, e (b) a
esposa ou concubina de um sultão. Abdulaziz, Marwan, Ziad e os outros:
eles não ficariam muito satisfeitos, quando chegassem ao Jardim, ao
encontrar uma caixinha vermelha de uvas-passas Sun-Maid (72 unidades
em média). Muhammad Atta, com seus dois diplomas de arquitetura, seu
inglês excelente, seu alemão excelente: Muhammad Atta não acreditava
nas virgens, não acreditava no Jardim. (Como poderia acreditar num
paraíso tão implausível e tão assustadoramente priápico?) Era um
apóstata: eis o que era. Não esperava o paraíso. O que esperava era a
inconsciência. E, é estranho dizer, não encontraria nem uma coisa nem
outra.
Arrumou a mala. Estacou meio curvado diante da geladeira amassada,
depois se aprumou e avançou para a porta.
Na descida, com uma sucessão de suspiros longos e sofridos, o elevador
parou no doze, no onze, no dez, no nove, no oito, no sete, no seis, no
cinco, no quatro, no três e no dois. Velhos de rosto bruxuleante de
desconfiança arrastavam- se para dentro e para fora, enquanto um deles
ficava pressionando o botão de abrir porta com um polegar desafiador e
marfânico. E isso, mesmo àquela hora: ainda estava escuro. Muhammad
Atta se horrorizou brevemente com a idéia de todos eles serem amantes
que agora cedo voltavam para a própria cama. Mas não: devia ser falta de
sono, a insônia da idade — as vigílias do amanhecer da velhice. O esforço
que faziam para permanecer vivos, em todo caso, chocava-o como
essencialmente ignóbil. Tinha sentido a mesma coisa na noite anterior,
quando foi visitar o imã no hospital… Consultando o relógio a cada dez
ou quinze segundos, resolveu que essa viagem para baixo era tempo
morto, tão morto quanto o tempo podia ser morto, como numa fila ou
diante de um sinal eternamente fechado, ou olhando feito um idiota para
as bagagens na esteira giratória do aeroporto. Ficou parado ali, sitiado
pela palidez e pela degenerescência e martirizado por repugnâncias
híbridas.
Abdulaziz o esperava sob a luminosidade fraca e a música sussurrada do
saguão. Sem falar, sem comer nada, entraram na fila para fechar a conta
no hotel. Mais tempo morto se passou. Enquanto desciam a escada e
avançavam entre os restos da noite até o estacionamento, Muhammad
Atta, que nada tinha de espírito generoso, avaliou o colega. Aquele
saudita particularmente musculoso parecia um bezerro claudicante,
assim como Ahmed al Nami — o boa-pinta do pelotão de Ziad. Por outro
lado, Abdulaziz, com seu rosto ligeiramente africano e seus olhos
infantis, era quase ofensivamente fácil de dominar. Tinha esposa e filha
no sudeste da Arábia Saudita. Mas isso era como dizer que possuía um
caminhão de carroceria aberta no sudeste da Arábia Saudita, tão pouco
aquilo parecia afetá-lo. Inacreditavelmente, tinha também desempenhado
certas funções religiosas na mesquita local que freqüentava. E contudo
era Abdulaziz quem levava a faca, era Abdulaziz que estava pronto para
usá-la na carne da comissária de bordo.
Q uando chegaram ao carro, Abdulaziz disse algumas palavras em

louvor a Deus, acrescentando, numa tentativa de fazer pose: “Pois bem.


Vamos começar nossos ‘estudos de arquitetura’.”
Muhammad Atta sentiu o corpo dar um solavanco involuntário. “Quem
te contou?”, perguntou.
“Ziad.”
Puseram as bagagens no carro e depois se acomodaram nos bancos
dianteiros.
Abdulaziz não deveria saber aquilo — o código dos alvos. “Direito” era o
Capitólio. “Política” era a Casa Branca. Nas discussões com o xeique,
tinha havido clara concordância quanto a “arquitetura” (o World Trade
Center) e “arte” (o Pentágono), mas eles divergiram acerca de um tipo de
alvo completamente diferente, a saber, “engenharia elétrica”. Tratava-se
da usina nuclear que Muhammad Atta avistara em um de seus vôos de
treinamento perto de Nova York. Por razões obscuras, o xeique recusou
sua bênção — apesar da possibilidade em princípio atraente de
transformar vastas extensões do solo do litoral leste num cemitério de
plutônio pelos setenta milênios seguintes (ou seja, até o ano 72001). O
xeique apresentou seus motivos (espaço aéreo restrito, nenhum “valor
simbólico”). Mas Muhammad Atta captou algum escrúpulo mais moral,
uma sugestão muda de que aquela ação poderia ser considerada
exorbitante. Foi a primeira e única indicação de que, na guerra cósmica
que travavam contra os inimigos de Deus, existia algum tipo de limite
superior. Muhammad Atta muitas vezes se perguntava: o xeique estaria
preparado para morrer? No curso das conversas, viera à tona que o
xeique, embora plenamente resignado ao eventual martírio (ele teria feito
exatamente o mesmo etc.), sentia pouca atração pessoal pela morte; e em
breve ganharia uma fama adicional, profetizou Muhammad Atta, pelo
empenho com que se esquivava dela.
As reuniões e discussões — com o xeique e depois com seu emissário do
Iêmen, Ramzi bin al-Shih — haviam agora perdido peso e valor na mente
de Muhammad Atta, maculados pela indisciplina de Ziad, pela
promiscuidade de Ziad (e, se Abdulaziz sabia, os sauditas também).
Recordou sua conversa histórica com Ramzi, por telefone, na terceira
semana de agosto.
“Nosso amigo está ansioso para saber quando é que você vai começar o
curso.”
“Seria mais interessante estudar ‘direito’ quando o Congresso estivesse
reunido.”
“Mas não devemos adiar. Com tantos estudantes nossos nos Estados
Unidos…”
“Tudo bem. Dois ramos, uma tacada oblíqua e um pirulito.”
Ramzi telefonou de novo e disse: “Para esclarecer. O décimo primeiro do
nono?”.
“Sim”, confirmou Muhammad Atta.
E foi a primeira pessoa no mundo a dizê-lo, a dizer desta forma: “Onze de
setembro.”
Havia acalentado o segredo até o dia 9 de setembro. Agora, claro, todos
sabiam: tinha chegado o dia. Estava impaciente para dar o telefonema a
Ziad, combinado para as 7 horas da manhã, no Logan. Ziad ainda alegava
que não se decidira entre “direito” e “política”. Parecia melhor “direito”.
Como alvo, a casa do presidente perdera muito de seu atrativo quando se
confirmou, até onde eles podiam saber, que o Presidente não estaria lá.
Naquele momento o Presidente se preparava para uma corrida matinal
em Sarasota, na Flórida, onde Muhammad Atta aprendera a pilotar, na
Jones Aviation, em setembro de 2000.
Foi durante o trajeto para o Aeroporto Internacional de Portland que a
dor de cabeça começou. Nos últimos meses, tornara- se especialista em
dor de cabeça. E no entanto, percebia agora, aquelas primeira vezes não
chegaram a merecer o nome: isto era uma dor de cabeça. De início,
atribuiu a virulência da dor ao acidente no chuveiro; mas a dor deu uma
arrancada pelo topo do crânio e se instalou, como uma enguia elétrica,
esticada primeiro de orelha a orelha e, em seguida, de olho a olho — e
depois as duas coisas juntas. Tinha duas dores de cabeça, não uma só, e
elas pareciam em guerra uma com a outra. O carro, um Nissan Altima,
era novo em folha, saído da fábrica, e em 10 de setembro isso parecera um
bônus extra, mas agora seu hálito embalado a vácuo tinha gosto de enjôo
no mar e cheiro de barco abaixo da linha de flutuação. De repente a visão
de Muhammad Atta se encheu de minúsculos pontos luminosos, com
pequenos borrões cegos. Com isso ele foi obrigado a parar o carro e pedir
a um espantado Abdulaziz que tomasse o volante.
O volume de tráfego parecia totalmente absurdo. Americanos, já
atarefados com os negócios… Atormentando seu passageiro com olhares
constantes de preocupação, Abdulaziz dirigia por sua vez com a habitual
atenção supersticiosa, assediada naquele dia por pequenos temores.
Muhammad Atta tentava não se contorcer no assento; a caminho do
estacionamento, dez minutos antes, tentara não correr; no elevador,
outros dez minutos antes, tentara não gemer nem gritar. Estava sempre
tentando não fazer alguma coisa.
Eram 5h35. E nesse ponto ele começou a se censurar pelo desvio para
Portland: idéia pueril, como via agora. Seu grupo era competitivo não só
em fervor religioso como também em elã niilista, em descaso niilista; e
achou que seria definitivamente elegante caminhar a largas passadas de
uma ponta a outra do aeroporto Logan a menos de uma hora da
decolagem. Depois, também, havia a promessa, que atiçava o coração
mais do que nunca, da conversa com Ziad. Mas seu motivo para ir a
Portland fora basicamente pouco sério. Não teria feito isso se a internet,
em 10 de setembro, não lhe tivesse assegurado tão reiteradamente que a
manhã de 11 de setembro seria perfeita.
E não o reconfortou a idéia de que este, afinal, era o dia 11 de setembro, e
ainda se podia ir aos aeroportos sem muito tempo de antecedência.
“O senhor mesmo fez as malas?”
A mão de Muhammad Atta rastejava pelas sobrancelhas.
“Sim”, respondeu.
“Elas permaneceram o tempo todo com o senhor?”
“Sim.”
“Alguém lhe pediu para transportar alguma coisa?”
“Não. O vôo está no horário?”
“O senhor tem de fazer a conexão.”
“E as malas vão seguir direto?”
“Não, senhor. É preciso redespachá-las no aeroporto Logan.”
“Quer dizer que vou ter de passar por tudo isso de novo?”
Quaisquer que tenham sido as outras façanhas do terrorismo na última
década, ele sem dúvida trouxe um nítido incremento ao tédio mundial.
Não tomava muito tempo formular aquelas três perguntas e em seguida
respondê-las — cerca de quinze segundos. Mas aquelas perguntas e
respostas de tempo morto eram repetidas sem a menor variação centenas
de milhares de vezes por dia. Se a operação dos aviões transcorresse
conforme o planejado, Muhammad Atta deixaria como legado mais
tempo morto, talvez muito mais, em todo o planeta. Era adequado,
talvez, e não paradoxal, que o terror também promovesse intensamente o
seu contrário mais óbvio. O tédio.
Aconteceu então que Muhammad Atta foi selecionado pelo Sistema
Computadorizado de Pré-Seleção de Passageiros (SCPP). Isso significava
que sua bagagem já despachada só seria embarcada depois que ele
mesmo tivesse entrado no avião. Ali era Portland. No Logan, um
aeroporto da “Categoria x”, como o aeroporto internacional de Newark e
o Dulles de Washington, e supostamente mais seguro, três dos seus
sauditas marombeiros seriam selecionados pelo SCPP, com as mesmas
consequências irrelevantes.

M uhammad Atta e Abdulaziz submeteram-se à fiscalização de

embarque. A bagagem deles não foi aberta: eles não foram revistados
nem abençoados pelo detector de metais manual. A mochila infantil de
Abdulaziz, com os estiletes e o cassetete, passou através do túnel do
amor. Quase no momento de embarcar, outro acesso de náusea sitiou
Muhammad Atta, como uma horda de minúsculos mirmídones. Ele
esperou que se movimentassem, mas não se mexeram; em vez disso,
coagularam na sua goela. Muhammad Atta foi ao banheiro masculino e
liberou uma braça de bílis verde. Ainda enxugava a boca imunda ao
caminhar no asfalto e subir os trêmulos degraus metálicos.
Além de estar atrasado, o vôo 5930 da Colgan era um turboélice de
dezenove lugares e estava lotado. Verdadeira tortura, ele teve de se
espremer ao lado de uma loura gorda com uma doença no couro
cabeludo e, como se não bastasse, com um bebê, cujo choro incrédulo (os
ouvidos) ela tentava sem êxito mitigar com repetidas aplicações de peito.
Entre as pancadas do coração, quando conseguiu por uns instantes
concatenar alguns pensamentos, ele imaginou que a loura era a
comissária de bordo condenada.
O avião saltou para o ar com sofreguidão, sem nada da faina tecnológica
que caracterizaria a decolagem do vôo 11 da American Airlines.
Ele fora a Portland, no Maine, para levar sua retribuição ao imã. O
hospital onde ele estava morrendo era um prédio baixo e empolado no
centro da cidade: um negócio a mais, entre todos os outros. Em seu
interior, também, Muhammad Atta não teve a menor sensação de haver
ingressado numa atmosfera de atendimento vocacional — apenas o senso
prático americano, sem nenhuma suavização da voz, dos passos,
nenhuma suavização no sorriso imperceptível das recepcionistas…
Conduzido até a enfermaria, atravessou a calidez úmida das refeições
consumidas pela metade ou intactas e o pesado cheiro difuso de remédio.
O imã estava adormecido na cama, entocado na cama, como se um sulco
do tamanho do imã tivesse sido escavado no leito. Seus lábios,
Muhammad Atta notou, eram cinza-escuros, como os lábios de um cão.
Passou um tempo morto. O imã então acordou diante do olhar sem
expressão de Muhammad Atta. Deu um suspiro, sem moderação. Os dois
retrocederam no tempo: até a mesquita de Falls Church, na Virgínia.
“Você tem uma citação para mim?”, perguntou o imã, inesperadamente
alerta.
“É das tradições. O Profeta disse: ‘Quem se matar com uma lâmina será
atormentado com essa lâmina nas chamas do Inferno… Quem se jogar do
alto de uma montanha e se matar, se jogará nas chamas do Inferno para
sempre… Quem se matar neste mundo, seja de qualquer maneira for, será
atormentado da mesma forma no Inferno’.”
“Há sempre exceções. Lembre-se de que estamos no país da descrença”,
disse o imã e passou a fazer uma lista dos crimes dos americanos.
Eles eram familiares ao visitante, que encarava as queixas como reais.
Segundo a maneira como se contasse, os Estados Unidos eram
responsáveis por esses ou aqueles milhões de mortes. Mas Muhammad
Atta não estava convencido de uma equivalência moral. Certos sistemas
de armas exigiam exatidão; o poder não era exato. O poder era sempre
um monstro. E nunca existira um monstro do tamanho dos Estados
Unidos. Toda vez que se mexia durante o sono, acarretava desgraças que
destruíam aldeias distantes. Houve omissões, maldades, crueldades
calculadas; e não havia nenhum autoconhecimento — nenhum. Contudo,
os Estados Unidos não esbanjavam criatividade em seus esforços para
matar inocentes.
“Trata-se de uma instalação inimiga?”, perguntava o imã, incisivo.
Muhammad Atta não respondeu. Apenas disse: “Está com o senhor?”.
“Sim. E você vai precisar.”

A mão do imã, diante do olhar nada solidário de Muhamad Atta,

lembrava a pinça dianteira da lagosta ao roçar a superfície laminada da


mesinha-de-cabeceira, e fazia o mesmo ruído; o armário se abriu, como
uma ponte-levadiça. A coisa lá dentro parecia exatamente uma garrafa de
plástico de Volvic meio vazia com capacidade para 450 gramas.
“Beba, não quando acordar, mas quando sentir que a hora da provação
está próxima. Pois bem. Você teve a gentileza de dizer que contaria como
foi o seu recrutamento.”
Ali estava a retribuição: ele queria que lhe contassem sobre o xeique. Só
nesse momento o imã se virou de lado num gesto brusco, voltando o
rosto para Muhammad Atta, e por um instante sua posição fez lembrar,
repulsivamente, uma criança que começa a se interessar por histórias de
ninar. Mas aquela guinada era apenas parte de uma ampla manobra do
imã, que logo escorregou para trás e para cima, de modo que uns fios de
cabelo se extraviassem sobre o travesseiro.
Antes, irrefletidamente, Muhammad Atta imaginara que ofereceria ao
imã um retrato tranqüilizador e até idealizado do xeique — o visionário
de dedos longos no topo da montanha que continuava a viver, em sua
humildade e franqueza, como um simples guerreiro de Deus. Agora
mudara de atitude. Nunca em sua vida falara com toda a franqueza. O
cheiro de remédio era especialmente forte perto da bacia amarela, a meio
metro de seu nariz.
“Tive vários encontros com ele”, disse, “no campo de al Faruq, em
Candahar. E também nas fazendas de Tarnak. Ele lança em nós uma
magia de sucesso, é isso o que faz. Quando fala sobre a derrota dos
russos… Segundo conta, não foi o Ocidente que venceu a guerra fria. Foi
o xeique. Mas nós nem precisávamos dessa magia, não é? A magia do
sucesso.”
“Mas os sucessos são reais. E isso é apenas o começo.”
“As esperanças de vitória dele”, disse Muhammad Atta, “dependem da
participação ativa do superpoder.”
“Que superpoder?”
“Deus. Daí a crise atual.”
“O que isso significa?”
“Vem da ferida religiosa, não acha? Durante séculos, Deus abandonou os
fiéis e premiou os infiéis. Como explicar essa indiferença?”
Ou esse antagonismo, pensou, afastando- se do leito e deixando a
enfermaria. Achava também que, subconscientemente, é claro, podia ser o
seguinte: se a prece e a piedade haviam fracassado — e fracassado de
modo tão flagrante —, talvez fosse hora de trocar de lado e invocar outros
poderes.
Em Logan, ele e Abdulaziz eram os únicos passageiros diante da esteira
de bagagens supostamente desembarcadas do vôo de Portland. E a
esteira estava muda e imóvel. Ver uma esteira com malas rodando
pareceu de súbito uma coisa muito estimulante. Enquanto isso, as
enguias ou as arraias-lixa dentro de sua cabeça travavam uma luta de
morte na região logo atrás dos ouvidos. Às vezes, durante momentos
intermináveis, ele conseguia esquivar-se da dor e limitar-se a ouvi-la.
Aquilo era música em sua próxima fase evolucionária, para além do
atonalismo. E ele se deu conta do motivo pelo qual sempre detestara
música; qualquer música, mesmo a melodia mais emoliente do mundo,
entrava em sua cabeça em forma de dor. Recorrendo às suas últimas
reservas, continuou a olhar fixamente por mais trinta segundos, mais um
minuto, as imutáveis placas pretas de borracha, depois girou nos
calcanhares e Abzdulaziz o seguiu.
“O senhor mesmo fez suas malas?”
“Que malas? Como já me dei ao trabalho de explicar…”
“Senhor, suas malas estarão no nosso próximo vôo. Preciso fazer as
perguntas de segurança, senhor.”
Americanos — esse jeito como eles nos chamam de “senhor”. Podiam
muito bem estar nos chamando de “meu chapa”.
“O senhor mesmo fez as malas?”
Ah, a desgraça da repetição, como o elevador do hotel ao fazer sua
arcaica reverência em todos os andares, como o cabelo alheio agarrado no
sabonete que muda de feitio numa sucessão de alfabetos, como o
(forçosamente) monótono bater de gongos dentro de sua cabeça. Ocorreu-
lhe que seu estado, se é que podia chamá-lo assim, era meramente o
estado do tédio, do tédio desenfreado, no qual todo o tempo era tempo
morto. Como se sua vida inteira consistisse em responder àquelas
perguntas, em dizer “Sim” e “Sim” e “Não”.
“E alguém lhe pediu para transportar alguma coisa?”
“Sim”, respondeu Muhammad Atta. “Na noite passada, no restaurante
libanês, um garçom nos pediu para levar um pesado relógio-despertador
para o primo dele em Los Angeles.”
O sorriso dela foi insípido e breve. “Engraçado”, disse.
S eguiram até o portão 32 e se afastaram na direção da área

comercial. Com um peteleco na mão, disse a Abdulaziz que fosse


procurar seus compatriotas. Muhammad Atta sentou-se na área externa
de um café fechado e se preparou para telefonar a Ziad. Ziad: o garoto de
praia de Beirute, o fantasma das discotecas, o beberrão e farrista, agora
com suas exaltações e prostrações, com suas preces cantadas e gemidas,
seus meneios e tremores do corpo… Desconcertar Ziad, enviá-lo para a
morte com o coração cheio de dúvida: esse era o motivo para a delegação
ir ao Maine.
Uma vez, lá na Alemanha, Ziad disse que as noivas no Jardim seriam
“feitas de luz”. Em forte contraste, portanto, com o peso e a escuridão de
suas irmãs terrenas, em particular com o peso e a escuridão de Aysel
Senguen — a turca alemã, ou alemã turca, de Ziad. Muhammad Atta só
viu Aysel uma vez (pernas nuas, braços nus, cabelos nus), na livraria
médica em Hamburgo e não esqueceu o seu rosto. Ziad e Aysel eram a
sua experiência-controle para a vida vivida pelo amor sexual; e durante
muitos meses os dois povoaram suas insônias. Sabia que Aysel viera para
a Flórida em janeiro (e, para seu escândalo, acompanhara Ziad até a
escola de vôo); também se sentiu obscuramente abalado ao saber que o
testamento de Ziad era uma carta para Aysel. E continuava a imaginar
como os corpos deles se uniam, como ela se abria para ele, como todo o
seu peso e a sua escuridão… Muhammad Atta chegou à conclusão de que
o fervor romântico e o fervor religioso provinham de partes contíguas do
ser humano: as partes que ele não tinha. Ziad, porém, na condição de
destruidor da “lei” (e destruidor do vôo 93 da United Airlines), estava
devidamente adaptado para o assassinato em massa.
Apenas aproximadamente contíguas, portanto: Ziad poderia dizer que fazia
aquilo por Deus, e muitos acreditariam nele, mas não poderia dizer que
fazia aquilo por amor. Não estava fazendo aquilo por amor, nem por
Deus. Estava fazendo aquilo pela razão essencial, assim como
Muhammad Atta.
“Tudo bem no Newark?”
“Tudo bem. Estamos na área de embarque. Viu o seu precioso imã?”
“Vi. E ele me deu a água.”
“A água? Que água?”
“A água santa”, respondeu Muhammad Atta com deleite, “do Oásis.”
Houve um silêncio.
“Qual o efeito dessa água?”, perguntou Ziad.
“Ela nos absolve daquilo que o imã chamou de ‘enormidade’, o crime
atroz, Ziad, do auto-homicídio.”
Houve outro silêncio — agora não mais inteiramente verdadeiro.
Muhammad Atta pensou que talvez extraísse mais daquela conversa se
em torno da cadeira onde estava sentado não houvesse um aspirador
mecânico com aspecto de hovercraft com um velho montado sobre ele,
apitando e roncando.
“Estou me preparando para beber a água neste exato momento, enquanto
falo.”
“Vem numa garrafa especial?”
“Um vaso de cristal. Deus disse: ‘Todos aqueles que me odeiam, amam e
cortejam a morte.’ Veja, Ziad, você é o curador do seu corpo, não o seu
proprietário. Deus é o proprietário.”
“E a água?”
“A água está dentro de mim e me preserva para Deus. É uma técnica
nova, começou na Palestina. Seu inferno vai arder em combustível de
motor a jato durante toda a eternidade. E a eternidade jamais termina,
Ziad, e jamais começa. Então talvez haja uma certa demora até você ter
aquelas virgens de luz. Talvez você devesse ficar com a sua nudista
alemã. Adeus, Ziad.”
Desligou, discou novamente, e teve uma conversa quase idêntica com
Marwan, a não ser pelo tópico Aysel. No caso de Marwan (a outra
metade da “arquitetura”, e logo ali do outro lado, agora, na United
Airlines), prevaleciam considerações distintas. A ênfase da sua rivalidade
não estava tanto no fervor da jihad, mas no descaso niilista. Os dois,
portanto, trocavam bravatas bocejantes, em código, sobre como voariam
baixo, em que ângulo acertariam o alvo, e friamente concordavam em
que, se houvesse aviões f-15 sobre Nova York, eles atirariam seus aviões
sobre as ruas… Por fim, obedientemente, ligou para Hani (“artes”), o
único piloto saudita, com quem não partilhava nenhuma história e de
quem não tinha muita raiva. Muhammad Atta esperava não ter abalado
Ziad de forma conclusiva; afinal, ele não era um dos sauditas (como
Ahmed, que tinha pinta de punk, também não era). Não. Acreditava que
quanto a isso podia confiar com segurança na física encarniçada do seu
grupo.
Um grupo de ação fervorosamente competitivo no quesito suicídio,
concluiu ele, constituía uma coisa bastante poderosa, e o Ocidente não
tinha equivalente para isso. Um grupo para o qual a morte não era morte
— e a vida não era vida, também. Mas uma inversão tão drástica, pensou,
depressa ficaria decadente: hospitais, escolas, creches, asilos de idosos.
Transgressão, por natureza, era bagunça, e sempre fadada a aumentar
progressivamente. E a coisa começaria a terminar dali a uma geração,
como todo mundo, aos poucos e incredulamente, intuía: a razão essencial.
Talvez o equivalente mais próximo que o Ocidente podia apresentar eram
os bombeiros. Muhammad Atta estudara arquitetura e engenharia. Não
era possível, sabia, combater o fogo que seria criado por 38 mil litros de
combustível de motor a jato: a estrutura de aço da torre se curvaria; as
paredes, que não tinham sido planejadas para suportar peso, desabariam
umas sobre as outras e tudo viria abaixo. O fogo não poderia ser
combatido — mas os bombeiros viriam. Eram chamados de “os mais
corajosos”, com exatidão, a seu ver; e, na condição de “mais corajosos”,
tinham certa responsabilidade. Os bombeiros estavam dizendo, todos os
dias: Quem vai fazer isso, se não o fizermos? Se os mais corajosos não o
fizerem, quem mais vai pôr a vida em risco para salvar a vida de
estranhos?

E nquanto se deixava ficar por mais alguns momentos numa cadeira

de metal, enquanto observava as lojas acordarem e ingressarem na rotina


comercial, enchendo-se agora de americanos e de propósitos americanos
e de uma automática crença em si mesmo, sentia que havia escolhido a
hora exata para agir. (E seu rosto escolhera a hora exata.) Porque na certa
ele não conseguiria sobreviver nem um dia àquela aversão que abarcava
tudo — o pananátema. Aquele sentimento era familiar para ele desde os
doze ou treze anos de idade; surgira em sua vida como uma doença sem
sintoma. Cairo, Hamburgo e mesmo o crepúsculo de inverno em
Candahar: tudo lhe parecia a mesma coisa. Um escárnio irreal.
Muhammad Atta pegou a garrafa na bagagem de mão. O imã disse que
era de Medina. Encolheu os ombros e bebeu o Volvic sagrado.
O embarque começou pela primeira classe. E, se Muhammad Atta algum
dia tivesse achado graça em alguma, talvez tivesse sorrido disto: Wail e
Waleed, os irmãos, os dois roceiros semi-analfabetos do agreste da
fronteira do Iêmen, caminhando desajeitadamente rumo aos seus tronos
— 2A e 2B. Depois, a executiva. Ele ia na frente. Abdulaziz e Satam
seguiam.
Nem havia chegado a seu assento quando aquilo o atingiu. Veio com uma
grande pureza de atitude, tomando o lugar de tudo o mais em seu
distendido aparato sensorial. Até a dor de cabeça, embora não tivesse ido
embora de fato, na hora deu um passo para o lado, quase com um floreio,
a fim de deixar espaço para o novo convidado. Tratava-se de uma
sensação que o deixara de uma vez por todas, acreditara ele, quatro
meses antes — mas que agora estava de volta. Com presteza faiscante, a
música enlatada jorrava sem cessar: uma balada padrão, uma flauta
floreada com muitos trinados e ornamentos. O refrão resfolegante se unia
ao chiado de aquecimento dos motores, e no entanto nada conseguia
afogar os estouros, a trituração, os rangidos semelhantes aos da porta de
uma masmorra num reduto secreto — a desairosa raiva de suas
entranhas.

P ortanto, agora ele estava sentado, segurando com força os braços

de seu assento 8D enquanto os passageiros tomavam seus lugares. Por


que tinha de haver tantos, o tempo todo mais uma maleta, mais uma
mochila, o tempo todo mais um sujeito de cabeça raspada, mais um de
cabelo branco?… Ele esperou, levantou e, com indiferença fatigada, de
nádegas contraídas, foi dar uma volta. Os três banheiros estavam
ocupados. Não estavam ocupados, sabia. Viajante freqüente e
perguntador nos jatos americanos comerciais, Muhammad Atta sabia que
os banheiros estavam trancados, assim como todos os demais banheiros
(era a praxe nos apressados momentos de embarque ou desembarque), e
continuariam trancados até depois de o avião decolar. Empurrou com a
mão aberta a porta dos três banheiros: de novo, a desgraça da repetição,
da duplicação. Tentou, mas não pôde conter um breve ímpeto de
empurrar, chutar e sacudir com força. Quando voltava para o assento 8D,
viu que Abdulaziz olhava para ele, não mais com compaixão, mas com
frustração desconcertada, chegando a virar-se na poltrona para trocar um
compenetrado franzir de sobrancelhas com Satam.
Preso ao cinto de segurança, Muhammad Atta manejou a série seguinte
de pensamentos. Era preciso haver o sistema de crença, a ideologia, o
fervor. Era preciso ter isso. A razão essencial era boa o bastante para a
mente. Mas não conseguia guiar o corpo. Para os outros, percebeu, ele
representava a pormenorizada personificação de um homem que perdeu
a calma. Mas não perdera a calma. Mesmo antes de o avião dar o
solavanco preliminar (como uma educada tosse de introdução a um
discurso), sentiu a impulsão da aeronave, com alívio, com gratidão: a
velocidade necessária, a velocidade de partida de que precisava para
enviá-lo para sua jornada final.
O vôo 11 da American Airlines afastou-se do portão 32, terminal B, às
7h40. Havia o capitão e o primeiro oficial; havia nove assistentes de vôo e
76 passageiros, sem contar Wail, Waleed, Satam, Abdulaziz e
Muhammad Atta. O vôo 11 da American Airlines estava no ar às 7h59.
Agora ele se obrigou a fazer o que sempre tencionara fazer durante a
decolagem. Tinha uma lembrança pronta e um experimento na cabeça.
Queria se preparar para a abertura da carne feminina; queria se preparar
para o que dali a pouco aconteceria com a garganta da comissária de
bordo — que ele podia ver, em seu assento dobrável, de cabeça abaixada,
caneta na mão e prancheta no colo.
Em 2000, sua passagem de volta do Afeganistão o instalara num vôo da
Ibéria que saíra dos Emirados Árabes Unidos para Madri. O avião
acabava de decolar quando ele percebeu uma discussão no fundo.
Girando na poltrona, viu que talvez quinze ou dezesseis homens, de
turbante e túnica branca, haviam se aglomerado no corredor entre as
poltronas e agora estavam agachados no chão, rezando. Podia-se ouvir a
monótona e derrotada repreensão do comissário de bordo afastando-se.
“Por favor, señores. Es ilegal. Señores, por favor!” Minutos depois, a voz do
capitão soou nos alto-falantes, dizendo em espanhol, inglês e árabe do
Golfo que se os passageiros não voltassem aos seus assentos ele teria de
regressar a Dubai. Foi então que ela apareceu. Mesmo Muhammad Atta
admitiu na hora que ali estava a fêmea escura em sua forma mais
suinamente libidinosa: alta, pescoço comprido, toda ela aerodinâmica
como um avião, cabelos semelhantes a um anúncio de sundae de
chocolate, e toda aquela carne, aquela umidade, e lustrosa como se fosse
de febre ou mesmo de luxúria. Ela parou e fez um giro com os olhos que
levou junto a cabeça dele inteira, depois ondulou para a frente com
amplos movimentos escavatórios das mãos, enquanto berrava: “Vamos
arriba, coño!”. E os homens de joelhos tiveram de observar aquele serafim
dotado de seios, de quadris e de um poder uniforme, e se levantaram,
franziram o cenho e lentamente tatearam em busca de suas poltronas.
Muhammad Atta sentiu apenas desprezo pelos homens recurvados no
tapete estampado, mas jamais se esqueceria do rosto da comissária de
bordo — a fisionomia de autoridade indelével — e de como foi forte a sua
vontade de feri-lo.
E contudo — não, não ia dar certo. Para ele, vista de perto, a combinação
era de todo não administrável: a combinação mulheres mais sangue. Até
aqui, pensou, esse é o pior dia da minha vida — provavelmente, o pior
dia. Dentro de sua cabeça, a luta maçante entre os animais nocivos estava
encerrada; um estava morrendo e agora era nojentamente devorado pelo
outro. E sua virilha, no meio, arquitetava para ele algo muito próximo da
sensação de um estupro anal. Até ali, aquele era o pior dia de sua vida.
Mas afinal todo dia era o pior dia, porque todo dia era o dia mais recente,
e o mais desenvolvido, o mais avançado (com todos aqueles outros dias
atrás dele) rumo ao pan-anátema.
O avião estava nivelando. Ele aguardava a ordem. Seria dada pelo
capitão, quando apagasse o aviso de apertar cintos.
“Temos alguns aviões sob nosso controle”, Muhammad Atta disse com frieza.
“Fiquem quietos e não acontecerá nada com vocês. Vamos voltar para o
aeroporto. Ninguém se mexa. Vai dar tudo certo. Se tentarem fazer qualquer
movimento, vão colocar a si mesmos em risco e ao avião também. Fiquem
quietos.”

E le cruzara a região da sordidez inexprimível e alcançara a cabine

do piloto. Ali, na gruta do relojoeiro maluco, havia mais carne ultrajante e


mais sangue — porém administravelmente masculinos. Então desativou
o computador e se preparou para voar direto rumo à lei.
Eram 8h24. Riu pela primeira vez desde a infância: estava no Atlântico do
céu, no comando da maior arma da história.
Às 8h27 fez uma ampla curva no sentido anti-horário, virando para o sul.
Às 8h44, deu início à descida.
A razão essencial era, claro, todo aquele morticínio — todas aquelas
mortes. Não a tripulação, não os passageiros, não os funcionários que
trabalhavam nas Torres Gêmeas, não os faxineiros e os fornecedores, não
os homens da polícia de Nova York e do corpo de bombeiros de Nova
York. Pensava na guerra, nas guerras, nos ciclos de guerras que se
desencadeariam a partir daquele dia. Não acreditava no Diabo como
força atuante, mas acreditava na morte, isso sim. A morte, em certos
momentos, deixava de se movimentar em seu ritmo regular e irrompia
numa carreira faminta, avassaladora. Ali estava o segredo primordial.
Não mais guardado a sete chaves, não mais oculto. Matar era um prazer
divino. E seu suicídio era apenas parte de sua contribuição — a grande
contribuição para a morte. Todos os seus escrúpulos e futilidades foram
reescritos, incharam de tanta significação. Ali estava o que era possível
quando a pessoa virava a maré da vida ao contrário, quando se corria
com as feras, quando se voava com as moscas.
Primeiro, os totens inferiores de Queens, como uma linha de defesa para
as divindades tutelares da ilha. Quando penetrou com estardalhaço a
zona das vigas e dos tirantes de Manhattan, lá estava, à frente e abaixo
dele — aquilo que chamam de Mundo.
Ruas transversais, quadras, distritos, em disparada por baixo das linhas
cinéticas do avião. Estava feliz por não ter de descer como um arado pela
cidade adentro, e chegava a sentir amor por ela, por todos os seus
esforços, cópulas e desmembramentos. E não sentia o menor ímpeto de
aumentar a velocidade ou de inclinar o avião de lado ou de investir ainda
mais baixo. A cidade o fascinava. Agora até a necessidade de alterar o
curso parecia correta e boa, quando seu destino apareceu e veio na
direção dele.
Há muitas versões, invariavelmente incompletas, sobre o que é morrer
lentamente. Mas não existe nenhuma informação sobre o que é morrer de
repente e com violência. Somos delicados quando descrevemos essas
mortes como um instante. “Os passageiros tiveram morte instantânea.”
Tiveram mesmo? Alguns talvez consigam isso, morrer instantaneamente.
Os muito velhos, porque as forças vitais estão debilitadas; os muito
jovens, porque não existe um grande acúmulo de experiência a dissolver.
Muhammad Atta tinha 33 anos. Para ele (e talvez isso seja verdadeiro
mesmo em casos de evaporação, talvez seja verdade até no caso das
sombras nas paredes em Hiroshima, no Japão), levou bem mais do que
um instante. Na hora em que o último segundo chegou, o primeiro
segundo pareceu tão distante quanto a infância.
O vôo 11 da American Airlines bateu às 8h46m. O corpo de Muhammad
Atta estava além de qualquer cura às 8h46m41, mas sua mente, sua
presença, precisou de tempo para encerrar os trabalhos. O tormento físico
— um ataque de pânico em todos os nervos, um motim dos átomos —
apenas grifou os derradeiros lampejos de seu cérebro. Não eram
pensamentos; eram antes uma série de conclusões impossíveis de ignorar,
impostas de fora. Ali estava o outro mundo, afinal; e ali estava o
resultado. Sua mente gemia e tartamudeava com uma
irreconciliabilidade, uma derrota, uma auto-abolição. Seria ele capaz de
concatenar o argumento? Segue-se — por definição — se e somente se. E
então o argumento se concatenou, completo por si mesmo… A alegria de
matar era proporcional ao valor do que era destruído. Mas esse valor era
uma coisa que assassino nenhum jamais veria e jamais poderia aferir. E
onde estava a alegria que pensava ter sentido — onde estava aquela
alegria, aquele arrepio, aquele mísero formigamento? Sim, como ele
subestimara a vida, tremendamente. A sua própria, ele a odiara e quis se
livrar dela; mas veja como demorava a se ausentar — e com que mágoa
irremediável ele a observava ir embora, imperturbável em sua beleza e
em seu poder.
Mesmo quando sua carne fritava e seu sangue fervia, a vida lhe dava
beijinhos na ponta dos dedos. Então ela se desfez num eco, e terminou.

PARTE II

N o dia 11 de setembro de 2001, ele abriu os olhos às 4 da manhã,

em Portland, no Maine; e teve início o último dia de Muhammad Atta.


Martin Amis
Martin Amis, escritor britânico, publicou no Brasil o romance Trem noturno
e a coletânea Água pesada e outros contos.

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