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aeroporto Logan, estava marcado para as seis da manhã. Assim, ele ainda
tinha uma hora. Vestiu-se (a camisa azul-escura, a calça preta) e sentou-se
diante da cômoda, meio de mau jeito, as pernas esticadas para o lado.
Dois documentos estavam à sua frente. Deu um bocejo, depois espirrou.
Enquanto se barbeava, Muhammad Atta, pela primeira vez na vida,
cortou o lábio (o inferior); com rapidez surpreendente, o talho se
consolidou numa convincente imitação de herpes labial. De modo muito
menos incomum, tirou uma lasquinha da aba carnuda da narina direita, o
que liberou um suprimento de sangue aparentemente inesgotável; a todo
momento ele tinha de levantar e pegar mais lenços de papel, deixando
atrás de si uma trilha de papel com as gotas de sangue estancadas. Os
temas da repetição e do prolongamento, ele percebia, já começavam a se
associar ao seu último dia.
O documento número 1 surgiu na tela do laptop. Era o seu testamento,
redigido em abril de 1996, quando os pensamentos do grupo se voltavam
para a Tchetchênia. Dois amigos marroquinos, Mounir e Abdelghani,
ambos devotos, foram as testemunhas, e assim ele incluíra no texto uma
boa dose de fórmulas carolas. Qualquer velharia servia. “Durante o meu
funeral, quero que todos fiquem em silêncio, porque Deus disse que gosta
que se fique em silêncio em três situações: quando se recita o Corão,
durante um enterro e quando se está rastejando.” Rastejando? Seria
algum erro de digitação? Bateu o olho em outra exigência e franziu ainda
mais o cenho: “A pessoa que vai lavar o meu corpo na região próxima à
genitália deve estar de luvas para não tocar na minha genitália.” E isto:
“Não quero que nenhuma mulher grávida ou nenhuma pessoa que não
esteja limpa venha se despedir de mim, porque não aprovo isso.” Bem,
esses cuidados eram agora puramente acadêmicos. Ninguém viria se
despedir dele. Ninguém lavaria seu corpo. Ninguém tocaria sua genitália.
Havia outro documento sobre a cômoda, um folheto de quatro páginas
em árabe, preparadas pelo setor de informações em Candahar (e presas
com uma fita encardida). Cada um deles recebera um igual; os outros
muitas vezes criavam um folheto pessoal e ficavam fazendo reverências
com a cabeça, balançando o corpo e murmurando horas e horas sobre ele.
Mas Muhammad Atta não era como os outros (e pagava um preço por
isso). Mal pusera os olhos no folheto até o momento. “Aperte bem o
cadarço dos sapatos e use meias justas que fiquem aderidas aos sapatos e
não deixe que os sapatos saiam dos pés.” Presumiu que se tratava de um
conselho sensato. “Que cada um de vocês afie bem sua faca e mate seu
animal e crie consolo e alívio com seu sacrifício.” Referência,
supostamente, ao que iria acontecer com os pilotos, os primeiros oficiais,
os comissários de bordo. Alguns dos sauditas disseram que haviam
sacrificado carneiros e camelos em Caldan, o campo de treinamento perto
de Cabul. Muhammad Atta não esperava sentir prazer com essa parte: o
uso exemplar dos estiletes. Imaginava as mulheres de uniforme, com suas
blusas de gola aberta. Não imaginava que fosse apreciar aquilo; não
imaginava que fosse gostar da morte daquela forma.
Ele então se recostou e sentiu que a náusea se aproximava: ela se adensou
à sua volta, depois se esgueirou através dele. Sua mente, na medida em
que era separável do corpo, estava bloqueada para a “completa
tranqüilidade completa” preconizada e recomendada por Candahar.
Algum tipo muito diferente de pessoa de 33 anos de idade talvez sentisse
o mesmo êxtase de convicção no momento em que contemplasse uma
tarde num apartamento emprestado na companhia de seu verdadeiro
amor (e obsessão sexual). Mas a mente e o corpo de Muhammad Atta não
eram separáveis: essa era a dificuldade; esse era o problema mentecorpo
— no seu caso, extremamente agudo. Muhammad Atta não era como os
outros, porque fazia o que estava fazendo pela razão essencial. Os outros
faziam o que estavam fazendo pela razão essencial também, mas haviam
alcançado a sublimação mediante o fervor da jihad; e seus corpos haviam
sido convencidos por aquela estratégia e haviam aderido a ela. Comiam,
bebiam, fumavam, sorriam, roncavam; subiam as escadas galgando dois
degraus de cada vez. O corpo de Muhammad Atta não aderira àquilo.
Fazia o que estava fazendo pela razão essencial e somente pela razão
essencial.
“Purifique o coração e limpe suas manchas. Esqueça-se e aparte-se
daquilo que chamam de Mundo.” Muhammad Atta não era religioso; não
era nem mesmo especialmente político. Unira-se aos militantes porque a
jihad era, em muitos aspectos, a idéia mais carismática da sua geração.
Unir ferocidade e retidão em uma só palavra: nada podia rivalizar com
isso. Adotou a idéia, fez as coisas que impressionavam seus
companheiros; colecionou citações, atos de caridade, peregrinações,
teorias conspiratórias e assim por diante, como outras pessoas colecionam
autógrafos ou bolachas de papelão para o chope. E isso estava em
harmonia com seu temperamento. Se retirássemos toda a conversa fiada
sobre fé, o fundamentalismo se ajustava a seu temperamento, e com uma
precisão quase sinistra.
embarque. A bagagem deles não foi aberta: eles não foram revistados
nem abençoados pelo detector de metais manual. A mochila infantil de
Abdulaziz, com os estiletes e o cassetete, passou através do túnel do
amor. Quase no momento de embarcar, outro acesso de náusea sitiou
Muhammad Atta, como uma horda de minúsculos mirmídones. Ele
esperou que se movimentassem, mas não se mexeram; em vez disso,
coagularam na sua goela. Muhammad Atta foi ao banheiro masculino e
liberou uma braça de bílis verde. Ainda enxugava a boca imunda ao
caminhar no asfalto e subir os trêmulos degraus metálicos.
Além de estar atrasado, o vôo 5930 da Colgan era um turboélice de
dezenove lugares e estava lotado. Verdadeira tortura, ele teve de se
espremer ao lado de uma loura gorda com uma doença no couro
cabeludo e, como se não bastasse, com um bebê, cujo choro incrédulo (os
ouvidos) ela tentava sem êxito mitigar com repetidas aplicações de peito.
Entre as pancadas do coração, quando conseguiu por uns instantes
concatenar alguns pensamentos, ele imaginou que a loura era a
comissária de bordo condenada.
O avião saltou para o ar com sofreguidão, sem nada da faina tecnológica
que caracterizaria a decolagem do vôo 11 da American Airlines.
Ele fora a Portland, no Maine, para levar sua retribuição ao imã. O
hospital onde ele estava morrendo era um prédio baixo e empolado no
centro da cidade: um negócio a mais, entre todos os outros. Em seu
interior, também, Muhammad Atta não teve a menor sensação de haver
ingressado numa atmosfera de atendimento vocacional — apenas o senso
prático americano, sem nenhuma suavização da voz, dos passos,
nenhuma suavização no sorriso imperceptível das recepcionistas…
Conduzido até a enfermaria, atravessou a calidez úmida das refeições
consumidas pela metade ou intactas e o pesado cheiro difuso de remédio.
O imã estava adormecido na cama, entocado na cama, como se um sulco
do tamanho do imã tivesse sido escavado no leito. Seus lábios,
Muhammad Atta notou, eram cinza-escuros, como os lábios de um cão.
Passou um tempo morto. O imã então acordou diante do olhar sem
expressão de Muhammad Atta. Deu um suspiro, sem moderação. Os dois
retrocederam no tempo: até a mesquita de Falls Church, na Virgínia.
“Você tem uma citação para mim?”, perguntou o imã, inesperadamente
alerta.
“É das tradições. O Profeta disse: ‘Quem se matar com uma lâmina será
atormentado com essa lâmina nas chamas do Inferno… Quem se jogar do
alto de uma montanha e se matar, se jogará nas chamas do Inferno para
sempre… Quem se matar neste mundo, seja de qualquer maneira for, será
atormentado da mesma forma no Inferno’.”
“Há sempre exceções. Lembre-se de que estamos no país da descrença”,
disse o imã e passou a fazer uma lista dos crimes dos americanos.
Eles eram familiares ao visitante, que encarava as queixas como reais.
Segundo a maneira como se contasse, os Estados Unidos eram
responsáveis por esses ou aqueles milhões de mortes. Mas Muhammad
Atta não estava convencido de uma equivalência moral. Certos sistemas
de armas exigiam exatidão; o poder não era exato. O poder era sempre
um monstro. E nunca existira um monstro do tamanho dos Estados
Unidos. Toda vez que se mexia durante o sono, acarretava desgraças que
destruíam aldeias distantes. Houve omissões, maldades, crueldades
calculadas; e não havia nenhum autoconhecimento — nenhum. Contudo,
os Estados Unidos não esbanjavam criatividade em seus esforços para
matar inocentes.
“Trata-se de uma instalação inimiga?”, perguntava o imã, incisivo.
Muhammad Atta não respondeu. Apenas disse: “Está com o senhor?”.
“Sim. E você vai precisar.”
PARTE II