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EDIÇÃO 1 | OUTUBRO_2006
turismo existencial
ILUSTRAÇÕES: JAGUAR
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O aeroporto está vazio e, para mim, novinho em folha. Minhas malas são
as primeiras a surgirem no carrossel. O Rio não costumava me dar esse
tipo de colher de chá. Alfândega, receita, polícia, chamem do que
quiserem, mas são todos muito solícitos, embora com a indiferença que
afeta os pobres que têm de trabalhar no domingo.
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Mas eu estava entre os amigos, surpresa para uns, chatice para outros.
Sim, estou bastante queimado. Sol de Cascais, no Estoril. Londres não dá
para isso. Ninguém diz o que está pensando: “Como estamos acabados,
meu Deus!”
Procuro ser rápido no gatilho, que já o fui. Nada. Não me ocorre uma
observação inteligente ou bon mot , conforme dois ou três ainda diziam,
quando me mandei. Repito e ouço repetida a frase que nem por isso
deixa de ser verdadeira: “Puxa, o tempo passa, hein?” E o coro, “É
verdade, é verdade…”
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decidem que devo ir à praia. Fazem com que eu compre uma sunga azul
grotesca (de lycra, creio) e um par de havaianas, que os brasileiros juram
ser invenção deles (não é). Depois de fuçar duas livrarias
empostadíssimas, vou mudar de roupa na casa de um deles que, como
todo mundo que é gente, mora na Vieira Souto, o metro quadrado mais
caro do mundo, conforme gostam de se gabar os brasileiros (não é).
É biboca após biboca na Visconde de Pirajá. Todas aos urros, aos berros.
Coisas escritas. Em acrílico, nos toldos. Farmácia, drogaria, butique. Não
sabem, mas estão todas liquidando. Papai Noel ficou maluco, é hoje só
amanhã não tem mais, salvados do incêndio. Isso, incêndio. Estão todas
em plena conflagração comercial e não o sabem.
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Há uma técnica para se deixar o país em que se nasceu, não chega a ser
arte. Simples como o quê: seguir em frente e não olhar para trás, feito a
mulher de Lot ou Orfeu. É imprescindível não recorrer nem à Bíblia (tem
uma na gaveta da cabeceira) nem à poesia. Principalmente poesia.
Em prosa, não contam Proust (com exaltado fervor), Fitzgerald, Thomas
Wolfe, retratos de Itabira na parede e até o melhor e menos citado,
Camões, que, em português de seus dias, e nossos ainda, escreveu, “a
grande dor das coisas que passaram”. Via mais com um só olho o
grande vate português do que nós com todos três.
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gente, ou quase gente, entrando e indo. Parece que é a outra parte da vida
deles. Parecem palestinos com sua trabalheira para — inevitável a
construção verbal — irem trabalhar.
Tenho que ter em mente duas ou três coisas que fazem parte deste meu
périplo. Primeiro, que todo suicida volta ao local onde, indigitado e
tresloucado, ateou fogo às próprias vestes. Segundo, que tudo que eu
escrever poderá ser usado contra mim. Ainda, que aqui não reconheço
nada e nada faz questão de me reconhecer ou conhecer.
Qualquer pessoa com seus quarenta anos, não tem nada a ver comigo,
nada terá a ver comigo, nestes dez rápidos dias. Quem tinha doze anos,
ou por aí, quando peguei a Avenida Brasil e segui para o Galeão, é
de uma nacionalidade outra, beira o alienígena. Meu negócio são cabelos
brancos.
Deve ser por isso que paro e olho para trás, ou para o outro lado da rua,
quando vejo alguém de cabelos brancos. Digo alto, sozinho ou para quem
quiser me ouvir:
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E eu que tinha jurado para mim mesmo e meus patrocinadores que não
tentaria em linha nenhuma ser “interessante”. Perdão, patrocinadores.
Perdão, chofer de táxi. Por penitência, resolvo citar, atravessando o sinal
verde do lugar-comum, uns versos do Borges: “Y la ciudad, ahora, es
como un plano de mis humillaciones y fracasos.” E cuidado que ainda
vem Jorgito por aí.
Garoto: Quequiqué?
Garoto: Os dois.
Estou certo ou não estou certo? Certíssimo, claro, tira a paisagem e sobra
aquilo que a gente — que vocês — sabem. De cartão-postal, plano geral e
bandeja feita com asa de borboleta, não vale. Assim até Brixton, aqui em
Londres, é páreo.
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Muita força para achar graça no que me cerca. Eu fui, olhei para trás e me
transformei numa “estáltua” (como dizem os teleatores) de paçoca. Agora
chove, venta, troveja e tanto meu projeto “Aquarius” quanto o do maestro
Isaac Karabtchevsky foram para as picas. Desmilinguo-me no ar
condicionado do quarto de hotel diante das Cagarras, nós dois, que nos
vimos tanto e até hoje não nos cumprimentamos.
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Rimos do susto.
Por sobre as nossas cabeças brancas, duas fadinhas, feito aquela do Peter
Pan, a Sininho, jogam peteca na beira da água do Posto Seis. Riem, em
seus maiôs de duas peças, e aumentam a velocidade do ritmo do jogo,
que é disputado com aquela peteca formada de várias camadas de
borracha redonda, com algumas penas amarelas em cima. E nos
despedimos, os quatro. A gente se vê. Afinal, eu tenho em casa os discos
de Jacob do Bandolim, Jorge Veiga e tudo que pude de Sílvio Caldas.
“Todo mundo chorou de saudade, todo mundo menos eu.” Ah, sim, a
gente se vê. Se vê.
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Não entendo é por que não botam todos eles a cavalo. Afinal, estátua
eqüestre é muito mais respeitada. Vejam só a do Marechal Deodoro.
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Mais uma vez, antes de me mandar, peço para ver os edifícios de nossa
orla marítima. Quero guardar na retina e nos ouvidos o doudo vernáculo
arquitetônico, por trás das grades, deblaterando em suas jaulas, falando
em línguas. O preciso equivalente à menina do Exorcista, quando tomada
pelo demônio Pazuzu. Edifícios que dão uma volta de 360º na cabeça,
viram os olhos para dentro, ficam verdes, e vomitam na cara dos turistas.
Alguém tem de ir e preparar um “coffee-table book” com eles. Sem
esquecer daquele cara do Bar 20.
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No quarto do hotel, o rapaz (do norte, ora se!) veio me deixar o bombom
que, de certo por recato, deixa na mesa de cabeceira e não pousado no
travesseiro. Como em outras oportunidades, despede-se com “um abraço,
‘seu’ Ivan”. Gosto da intimidade, prezo o “seu” em vez de “senhor”.
E que paguem o que é justo a nossas jovens que se fazem passar por
“demaiores”, fazendo-as assim um pouquinho mais felizes do que diante
de, digamos, um ravióli de pato, ou um misto quente travestido de
tramezzino.
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A via dos corredores perto dos quiosques. Devem estar ficando fortes e
saudáveis, formosos é que não. Não mesmo. Aprendem ainda a esquecer,
a deixar para lá. Deve ser bom estar fechado naquele corpo, suando e
ofegando. Depois vem um idiota, escreve que somos hedonistas e tem
todo mundo que ficar rebolando por aí, digitalizado, diante dessas
câmeras. Anda-se na rua e, acima da zoeira dos toldos, luminosos ou não,
lá estão: centro de malhação após centro de malhação. Malhai-vos,
cariocas suleiros, malhai-vos, antes que venha o derradeiro arrastão
para a última malhação.
Mas isso só pode ser mágoa de um caboclo que, como eu, tem de ir com
bengalinha até a esquina.
Faz sentido? Não vem ao caso. O que interessa é que passei, de algum
tempo para cá, a me entender comigo mesmo, que é o que importa. Eu
manjo de perder cidades. De estalo, seria capaz de citar três ou quatro.
Mas isso é muito pessoal e as gentes com a papelada em ordem para
passar pela minha aduana são poucas. Mesmo se levarmos em conta que
eu sou o único brasileiro, vivo ou morto, que não sabe batucar em caixa
de fósforos ou coisa alguma.
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língua, depois sair correndo e, do outro lado da rua, gritar “Fiau!”. Mas
há um preço enorme a ser pago e não aceitam cartão de crédito.
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