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Capítulo 2

0 incorporal na lógica e na teoria dos


"exprimíveis"

D o e x p r i m i v e l e m geral
A realidade lógica, elemento primordial da lógica
aristotélica, é o conceito. Esse elemento é, para os estoi-
cos, algo completamente diferente; não é a representação
(φαντασία 60 ), que é a modificação da alma corporal por
um corpo exterior, nem a noção (έννοια 61 ), que é for-
mada na alma sob a ação de experiências semelhantes. É
algo totalmente novo o que os estoicos denominam um
exprimível (λέκτον 62 ).
Eis, segundo Sexto, uma dificuldade que diz respeito
à teoria dos exprimíveis, e é inverossímil que se saia facil-
mente dela. 63 Um grego e um bárbaro escutam a mesma

60
Fantasia o u ' representação'. (N.T.G.)
61
Étioia ou 'noção'. (N.T.G.)
62
Lekton ou 'exprimível'. (N.T.G.)
63
Sexto, Math. VIII II (S.V. F. II 48, 19). O σημαινόμενον deste texto
retoma ao λέκτον*; cf. I. 23.
Respectivamente, semainómenon ou 'o objeto significado', e lekton ou
'exprimível'. (N.T.G.)

34 FILO 35
palavra: ambos possuem a representação da coisa designada unidade. O fato de ser significado por uma palavra deve
pela palavra; entretanto, o grego a compreenderá, enquanto então ser acrescentado c o m o um atributo incorporai
o bárbaro não. Q u e outra realidade existiria, portanto, além que não o modifica em nada. Essa teoria suprimia toda
do som de um lado e o objeto de outro? N e n h u m a . O relação intrínseca entre a palavra e a coisa: pode-se, sem
objeto, como o som, permanece sendo o mesmo. Mas o dúvida, associá-las à compreensão de Crisipo sobre a
objeto, para o grego, não digo que seria uma proprieda- anfibología. Para ele, com efeito, o laço entre a palavra e
de (visto que sua essência permanece a mesma nos dois o pensamento torna-se muito frágil, de maneira tal que
casos), mas um atributo que não existe para o bárbaro, ou um mesmo n o m e pode designar várias coisas.70
seja, o de ser significado pela palavra. É esse atributo do No entanto, se a teoria dos exprimíveis não tinha
objeto que os estoicos chamam de exprimível. Segundo o outra aplicação, não se compreenderia o papel que ela tem
texto de Sexto, o objeto significado (το ση μαινόμενο v64) na lógica. Todos os elementos que pertencem à lógica, os
difere do objeto (xò χυγχάνον 6 5 ) precisamente porque atributos, os julgamentos, as ligações de julgamentos, tam-
esse atributo é afirmado sem alterar a natureza do obje- bém são exprimíveis. É visível, logo na primeira leitura, que
to. O λέκχον 6 6 foi tão inovador que Amônio, intérprete esses elementos não podem se reduzir às coisas significadas
de Aristóteles, teve grande dificuldade em incluí-lo nas por uma palavra: o atributo (καχηγορήμα 71 ),ροΓ exemplo,
classificações peripatéticas. Para Aristóteles, a coisa signi- indica o que é afirmado de um ser ou de uma propriedade;
ficada pela palavra seria o pensamento (νόημα 67 ), afirma não acharemos em lugar algum a seguinte idéia, à qual,
Amônio, e é através do pensamento que se torna objeto aliás, seria bem difícil dar um sentido plausível: de que o
(πράγμα 68 ). " O s estoicos, acrescenta Amônio, concebiam fato de ser afirmado é idêntico ao fato de ser significado,
um intermediário entre o pensamento e a coisa, que que o καχηγορήμα 7 2 é um σημαινόμενον. 7 3 De m o d o
eles nomeiam como 'exprimível'." 6 9 Amônio não aprova geral, se o "significado" é um "exprimível", não vemos,
essa adição; e, com efeito, a teoria de Aristóteles lhe é de modo algum, que o exprimível seja um "significado".
suficiente, pois o pensamento é o objeto designado. Isso Essa interpretação equivocada do "exprimível" foi muito
não ocorre com os estoicos. Para eles, o pensamento seria difundida, a ponto de Arnim sancioná-la, em sua edição
um corpo, e o som (da palavra) também seria um corpo. dos antigos estoicos, intitulando os fragmentos relativos à
Um corpo tem sua própria natureza independente, sua lógica da seguinte maneira: περί Σεμαινόμενων ή Λεκχών. 74

64
73 semainómenon ou 'o objeto significado'. (N.T.G.) 70
Galeno, de sophism. 4 (S.V. F. II 45, 35).
65
73 tingkhánon ou o 'objeto'. (N.T.G.) 71
Kategórema ou 'atributo', ou 'ser afirmado de'. (N.T.G.)
66
Lekton ou 'exprimível'. (N.T.G.) 72
Kategórema ou 'atributo', ou 'ser afirmado de'. (N.T.G.)
67
Nóema ou 'o pensamento'. (N.T.G.) 73
lo semainómenon ou 'ser significado'. (N.T.G.)
68
Pragma ou 'o objeto'. (N.T.G.) 74
Perí semainómenon kai lekton ou "sobre os significados e [sobre os]
69
A m m . in Ar. de interpr., p. 1 7 , 2 4 (S.V. F. II 48,31). exprimíveis". (N.T.G.)

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Tal erro ocorreu pelo fato, que existe uma fusão O lugar do exprimível, no sistema de objetos re-
íntima entre o exprimível e a linguagem; segundo Sex- presentados ao espírito, é difícil de se determinar. Sexto,
to, todo exprimível deve ser expresso, 75 ou seja, deve o que é confirmado por Diócles, nos diz o que está na
ser enunciado por uma palavra significativa do p e n - representação racional: o exprimível. 83 Enquanto a repre-
samento. 7 6 Mas o fato de ser expresso (Λεγέσθαι 7 7 ), sentação comum se produz pelo contato de um corpo
que é um predicado do exprimível, não deve, de toda que marca sua impressão na parte hegemônica da alma, ao
forma, ser confundido com o fato de ser significado (τό contrário, parece que, na representação racional, há mais
σημαινόμενον 7 8 ), que é um exprimível e um predicado espontaneidade.84 Ε o pensamento que a constrói, reunindo,
de objeto. Assim, conclui-se apressadamente que todo aumentando, diminuindo os objetos sensíveis que a ele são
exprimível seria designado por palavras, que sua natureza dados imediatamente; os objetos, neste caso, não são causa
seria precisamente a de ser designada ou significada por ativa, mas a razão. Diócles enumera os diferentes procedi-
palavras. Um erro inverso, mas de mesma natureza, foi mentos pelos quais a razão age: a semelhança, a analogia,
cometido por um crítico antigo do estoicismo, Amônio, a substituição, a composição, a contradição, a transição,
que identificou os exprimíveis às palavras da linguagem. 79 a privação. 85 Pode-se dizer, com Sexto, que nesse caso a
Esse erro repousa na exposição de Sexto ou em uma alma tem uma representação a respeito dos objetos, e não
exposição muito parecida. "Os pensamentos, diz Amônio, através deles. O λέκτον, 86 portanto, seria idêntico, segundo
p o d e m ser proferidos (έκφορικά 80 ). Mas nós os proferi- o testemunho de Sexto, às noções derivadas da experiência
mos por palavras, e as palavras são exprimíveis." Nesse pela razão. Mas, se considerarmos o conteúdo da lógica,
caso, o exprimível (λέκτον 81 ) foi confundido com o que tal idéia seria muito difícil de se admitir. C o m efeito, de
é expresso e proferido (λεγόμενον, έκφερόμενον 8 2 ), ou modo algum queremos intervir na noção desse gênero,
seja, com a palavra. Dessa forma, analisaremos o que é ainda que o exprimível seja seu elemento próprio. Além
realmente o exprimível. do mais, a série de textos de Sexto e de Diócles contradiz
a interpretação que se poderia, no nosso entender, legiti-
75 mamente concluir dela: "Nos exprimíveis, dizem eles, uns
Cabe observar a importância da teoria da expressão em Gilíes Deleuze,
por exemplo, na obra Lógica do sentido e Spinoza e o problema da expressão
(Spinoza et le problème de l'expression). (N.T.)
83
76 Sexto Math. VIII 70 (S.V. F. II 61, 21). Diócles ap. Diog. La. VII 63 (II
Sexto, Math.Vlll 80 (S.V. F. II 48,27).
77
58,28).
Legésthai ou 'ser dito'. (N.T.G.) 84
78
Para os estoicos, a representação originária é corporal (origina-se no
7o semainómenon ou 'ser significado'. (N.T.G.)
encontro dos corpos), logo, essa representação teria de apresentar mais
79
A m m . in Arist. An. pr., p. 68, 4 (S.V. F. II 77, 7). vitalidade e espontaneidade (por ser ação e corpo) do que a representação
80
Ekphoriká ou 'ser proferido'. (N.T.G.) racional, por meio da qual se expressaria o incorporai. (N.T.)
85
81
Lekton ou 'exprimível'. (N.T.G.) Diog. La. VII 52 (S.V. F. II 29,9). Cícero propõe uma enumeração menos
82
Respectivamente, legómenon ou 'ser exprimido', e ekpherómenon ou completa em de fin. III 33 (III 16,26).
86
'proferido'. (N.T.) Lekton ou 'exprimível'. (N.T.G.)

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são incompletos, outros completos". Os exprimíveis in- característica é aplicável, veremos que não corresponde a
completos são os atributos de juízo, enunciados nos verbos todos os casos. Ela não seria encontrada nem nos exprimí-
sem sujeito:"escreve, fala". Os completos são, para somente veis incompletos, n e m nos juízos simples. Ao contrário, os
considerar agora os mais simples, o verbo acompanhado juízos hipotéticos e os raciocínios contêm uma passagem do
de seu sujeito. Se estes são exprimíveis (e não há nenhuma princípio à conseqüência que, somente ela, pode explicar a
razão de crer o contrário), neste caso, nós não encontrare- palavra"metabase". 90 Segue-se, no exemplo aqui citado, que
mos aí os objetos de representação racional, as noções que Diócles não pretende falar de todos os exprimíveis, n e m
já definimos. Os exprimíveis limitam-se aos atributos, tanto fazer com que todos eles entrem nessa categoria. Em outro
sem sujeito quanto acompanhados de sujeito. Dir-se-á que texto de Sexto, que opõe o "representado" (φανταστόν 91 )
a noção se encontra precisamente no sujeito dos juízos? sensível ao "representado" racional, permanece incerto se os
Nós não diríamos que os estoicos tenham admitido na sua exprimíveis incorporais, que ele cita na segunda definição,
lógica outros juízos senão aqueles que a lógica moderna são indicados como um simples exemplo entre outros, ou
denominou singulares, nos quais o sujeito é um indivíduo. se são indicados como o conjunto de todos os represen-
Na classificação dos juízos simples, segundo Sexto, entre tados. 92 Mas a oposição dos corpos (que são certamente
as três espécies de juízos, existem os juízos definidos, que representações sensíveis) aos incorporais nos faria pender
têm por sujeito um indivíduo que se indica ('este aqui'), e em direção à segunda alternativa.
os indefinidos, por seres que não se indicam (um homem), Malgrado tais dificuldades, existem razões sérias
mas que permanecem sendo um indivíduo. 87 para que não se confunda o exprimível c o m n e n h u m
Propriamente falando, segundo outras fontes, os ex- outro objeto da razão. Diócles divide as representações
primíveis são citados não como idênticos às representações em sensíveis e não sensíveis, distinguindo, na segunda, as
racionais, mas como se fossem uma espécie dentre elas. No que chegam "mediante o pensamento" daquelas que são
primeiro texto, segundo a classificação das noções de Diócles "incorporais e das outras coisas percebidas pela razão". 9 3
já citada acima, o exprimível é citado com o lugar, como C o m o os exprimíveis devem seguramente ser classifi-
um exemplo de noções obtidas "segundo uma transição" cados nos incorporais, existem, então, outros objetos da
(κατά μετάβασιν 88 ). Essa "transição" implica que o objeto
da representação seja composto e que o pensamento vai de da natureza. Por resultar da ação interna dos corpos, devemos pensar
uma parte à outra. 89 Se investigarmos a que exprimíveis tal essas "ações internas", esses encontros, como intensidades, e não como
encontros extensos, como se as ações fossem externas aos corpos. (N.T.)
90
87
Cf. a μεταβατική διανοία (Sexto S.V. F. II 43,21) se refere a ακολουθία.*
Sexto, Math. VIII 96 (S.V F. II 38).
88
Respectivamente, metabatiké dianoía ou 'pensamento transitivo', e
Katá metábasin ou "segundo uma alteração/modificação". (N.T.G.)
akolouthía ou 'conseqüência'. (N.T.G.)
89
Segundo o exemplo dado, o exprimível seria como o lugar (um dos quatros 91
Fantastón ou 'o representado'. (N.T.G.)
incorporais presentes na lista de Sexto Empírico), que seria também efeito
92
da tensão ou ação corporal presente nos corpos. Assim, o lugar é efeito Sexto, Math. VIII 409 (S.V. F. II 29,2).
93
de encontros dos corpos sempre em ação, isto é, passagem ou transição Diog. La. VIII 51 (S.V. F. II 24,18).

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razão que não são incorporais: e, c o m efeito, as noções unicamente dos objetos da lógica, e que esses objetos se
racionais não são, de f o r m a alguma, incorporais. Elas reduzem aos exprimíveis.
têm, p o r o r i g e m e p o r composição, traços reais que os Devemos, primeiramente, indicar as falsas concep-
corpos sensíveis deixam na parte hegemônica da alma. ções do exprimível, possíveis graças à penúria e à obs-
Existe aí u m a fisiología da noção que os estoicos não curidade dos textos, para estabelecer a verdadeira. Fora
distinguem de sua psicologia. 94 Q u a n d o Z e n ã o diz que das substâncias e das propriedades, que são corpos, não
as noções não são n e m substâncias n e m qualidades, 95 ele existiria nada mais na natureza. Mas, c o m o vimos, sua
parece recusar a elas um corpo, pois os corpos se e n - força interna se manifesta na superfície das coisas, e esses
contram unicamente nessas duas categorias [substâncias aspectos exteriores não são n e m corpos, n e m partes dos
e qualidades]; mas a seqüência do texto ressalta que ele corpos, mas atributos (κατηγορήματα 9 7 ) incorporais. O
t e m em m e n t e menos a substância da noção do que sua primeiro gênero de exprimíveis que podemos apontar,
relação c o m o objeto representado, e é nesse sentido o exprimível incompleto, é idêntico a esse atributo dos
que elas são como substâncias e como qualidades, isto é, corpos. É necessário, para b e m compreendê-lo, desfazer-se
semelhantes aos c o r p o s que lhes deixam impressões; da idéia de que o atributo de uma coisa é algo existente
mas isso não impede que elas sejam em si mesmas de fisicamente (o que existe é a coisa mesma), e desfazer-se
natureza corporal. Dessa forma, poder-se-ia dizer que também da idéia de que o atributo, sob seu aspecto ló-
a ciência, que c o n t é m tais objetos da representação, é gico, c o m o parte de uma proposição, é alguma coisa que
um corpo? 9 6 A arte e a ciência repousam sempre sobre existe no pensamento. Nesta condição, pode-se conceber
a manutenção das impressões pela m e m ó r i a . que atributo lógico e atributo real são, na verdade, dois
Compreende-se, neste caso, a distinção existente entre incorporais e inexistentes, coincidindo inteiramente.
o exprimível, que é incorporal, e os outros objetos da razão, Os atributos dos seres são expressos não por epítetos
que são corporais.Vê-se também que Sexto confundiu a que indicam propriedades, mas por verbos que indicam
espécie com o gênero, qualificando de exprimível o objeto atos (ένεργήματα 98 ).
da representação racional em geral. Isto é, aliás, explicável, Se considerarmos agora a natureza da proposição
pois, na passagem em questão, ele tem a intenção de falar (άξίωμα 99 ) na dialética, encontraremos uma solução do
problema da atribuição que faz coincidir inteiramente o
94
Entendemos aqui por noções (έννοια,) não todos os objetos pensados, atributo lógico da proposição c o m o atributo tal c o m o
(νοούμενα) que conteriam também os sensíveis e os exprimíveis, mas o definimos. Esse problema foi uma das maiores preocu-
unicamente as noções gerais c o m o aquelas do bem.*
pações das escolas que sucederam Sócrates, e poderíamos
Respectivamente, énnoia ou 'noção', e nooúmena ou 'objetos pensados'.
(N.T.G.)
95 97
μήτε τίνα μήτε ποία. Stob. Ecl. I, ρ. 136 (S.V. F. I 20).* kategorémata ou 'atributos', ou 'ser afirmado de'. (N.T.G.)
98
Mete tina mete poía ou " n e m substancia nem qualidades". (N.T.G.) Energémata ou 'dos atos'. (N.T.G.)
96 99
Sexto, Math.Vll 38 (S.V. F. 42, 23). Aksíoma ou 'o axioma'. (N.T.G.)

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dizer que é para resolver essas dificuldades que Platão recusavam enunciar os juízos sob sua forma habitual, com
elaborou sua teoria das idéias. Os estoicos, parece que a ajuda da cópula é. Não se deve dizer, pensavam eles: "a
precedidos nesse ponto pelos filósofos da escola megá- árvore é verde", mas "a árvore verdeja". Dessa forma, há,
rica, deram uma solução profunda e genial, que não faz nesse caso, uma solução do problema da predicação, que
nenhum apelo a uma teoria das idéias. Se o sujeito e o os estoicos nos mostram. Quando se negligencia a cópula
predicado em uma proposição são considerados c o n - é e se exprime o sujeito por um verbo, no qual o epíteto
ceitos de mesma natureza e, particularmente, conceitos atributo não está posto em evidência, o atributo, todo ele
indicando classes de objetos, ter-se-ia grande dificuldade reduzido ao verbo, então não exprime mais um conceito
para compreender a natureza da ligação indicada pela (objeto ou classe de objetos), mas somente um fato ou
cópula. Se elas são de classes diferentes, exteriores umas um acontecimento. Uma vez que a proposição não exige
às outras, não podem se articular. Se elas são idênticas, nós mais a penetração recíproca de dois objetos impenetráveis
nos limitaríamos aos juízos de identidade. A ligação de por natureza, ela só expressa certo aspecto de um objeto, à
participação, que Platão havia elaborado, e a de inclusão, medida que ele realiza ou sofre uma ação; esse aspecto não
que Aristóteles utilizava preferencialmente, eram soluções é uma natureza real, um ser que penetra o objeto, mas o
possíveis a tal dificuldade. Mas tais soluções, que, para os ato que é o resultado de sua atividade, ou da atividade de
modernos, somente dizem respeito aos pensamentos, ti- outro objeto sobre ele. O conteúdo da proposição, o que é
nham, para os antigos, um alcance metafísico que não se significado por ela, não é, portanto, jamais um objeto, nem
podia escandir. Os termos do juízo designam, com efeito, uma relação de objetos.
não apenas pensamentos, mas seres reais. Ora, se a realidade Segue-se disso que os estoicos somente aceitarão
se concentra, para os estoicos, no indivíduo, uma teoria proposições contendo um verbo, pois no verbo se con-
semelhante a essa seria inadmissível. C o m efeito, cada fundem para eles predicado e cópula. Veem-se, neste caso,
indivíduo não somente possui, mas é uma idéia particular quais são os juízos que eles excluem, aqueles nos quais os
(ιδίως ποιόν 100 ) irredutível a outra qualquer. Para que essas atributos indicam uma propriedade real do sujeito, e que
realidades participem uma da outra, ou estejam incluídas também indicam relações entre conceitos. O que é ex-
umas na outra, seria necessário que dois indivíduos fossem presso no juízo não é uma propriedade como 'um corpo
indiscerníveis um ao outro, ou que o mesmo indivíduo está quente', mas um acontecimento como 'um corpo se
pudesse ter nele mais de uma qualidade própria, o que é esquenta'. Na classificação dos atributos, eles não distin-
absurdo. 101 Duas realidades não podem coincidir. guirão os juízos, como fez Aristóteles, pelo modo de sua
Restaria a solução de examinar diferentemente a ligação ao sujeito, mais ou menos essenciais ou acidentais.
natureza do predicado. Sabe-se que certos megáricos Eles querem distinguir somente as diversas maneiras pelas
quais pode o acontecimento se exprimir. Sua classificação
m
Idíos poión ou 'idéia particular'. (N.T.G.) também segue de perto e chega a ser idêntica à classifica-
101
Fílon de incorruptib. m. 236, 6b (S.V. F. II 131,6). ção gramatical dos verbos. Classificam-se, primeiramente,

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os συμβάματα, 102 verbos pessoais indicando a ação de um predicado não é nem indivíduo, nem conceito; ele é incor-
sujeito (Sócrates passeia103), e os παρασυμβάματα, 104 ver- porai e existe tão somente no pensamento. Buscar-se-ia em
bos impessoais (Σωκράτει μεταμέλει 105 ). Por outro lado, vão o motivo pelo qual o predicado lógico da proposição
distinguem os predicados diretos, composto, de um verbo poderia diferir dos atributos das coisas, considerados como
com um complemento que sofre a ação; os predicados resultados de sua ação. Todos os dois são designados pela
passivos, que são os verbos passivos; entre eles os predicados mesma palavra, κατηγορήμα, 109 e encontram sua expres-
reflexivos (verbos reflexivos); e, enfim, os que não são nem são nos verbos; ambos são incorporais e irreais. Do ponto
diretos, nem passivos (φρονεί106).107 de vista do real, a realidade da ação foi, por assim dizer,
Não se deve ver uma simples sutileza na substituição atenuada em proveito do ser permanente que o produz;
da forma verbal pela cópula. Os estoicos querem indicar, do ponto de vista da lógica, o atributo foi privado de sua
dessa forma, que eles não aceitam outras proposições que dignidade de objeto conceituai do pensamento, por não
não as proposições de fato. Sem dúvida, o fato pode ser conter senão um fato transitório e acidental. Em sua ir-
necessário ou contingente, verdadeiro ou falso, possível ou realidade e através dela, o atributo lógico e o atributo das
impossível, e, nesse sentido, suas diferentes modalidades são coisas podem, portanto, coincidir. 110
ainda admissíveis. Contudo, como se pode notar, isso se dá As ciências experimentais, assim como as filosofias
num sentido bem diferente da lógica dos conceitos, nas céticas ou críticas, condicionaram-nos a ver no fato, ou no
quais essas modalidades repousam sobre a ligação essencial acontecimento, a verdadeira realidade objetiva, e a consi-
ou acidental do sujeito com o atributo. Neste caso, temos derar um objeto como resultado e síntese de um grande
apenas um único gênero de ligação que, segundo a lógica número de fatos; ao contrário, nos estoicos, ele é objeto de
de Aristóteles, seria acidental (e que os estoicos vão, aliás, atribuição dos fatos. O centro do real é deslocado. Neste
designá-la pela palavra συμβάμα 108 ), ou seja, a do aconte-
particular, a doutrina estoica é muito difícil de se com-
cimento ao seu sujeito.
preender. Os fatos seriam o único objeto da experiência,
O problema da atribuição é resolvido, portanto, supri- e o pensamento, que procura observá-los e descobrir as
mindo-se qualquer realidade verificável nos predicados. O suas ligações, é estranho a eles. Ao contrário, os estoicos,
admitindo que os fatos eram incorporais e existiam apenas
W2
Symbámata ou 'verbos pessoais'. (N.T.G.) no pensamento, fizeram deles não o objeto, mas a matéria
103
No original está escrito "Socrate se promène". O verbo em francês é de sua dialética. No fundo, a característica comum a todas
reflexivo, indicando que o próprio sujeito é responsável pela ação. Passear, as lógicas antigas é a de serem realistas: os antigos nunca
portanto, seria uma atividade. (N.T.G.)
104 acreditaram que poderia existir pensamento de algo que
Parasymbámata ou 'verbos impessoais'. (N.T.G.)
m
Socrátei metamélei ou 'Sócrates contempla'. (N.T.G.)
""'Phroneí ou 'calcula, avalia, pensa'. (N.T.G.) 109
Kategórema, neste caso, é ao m e s m o t e m p o 'predicado lógico da
107
Porphy. ap. A m m o n . inAr. de interpret., p. 4 4 , 1 9 (S.V. F. II 59,25). proposição' e 'atributo das coisas'. (N.T.G.)
ws
Symbama ou 'acidente'. (N.T.G.) no
C f . Ciem. Alex. Strom. VIII (S.V. F. I 263,1).

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não exista. Os estoicos, malgrado as aparências, permane- exemplos mais familiares da dialética estoica, como: é dia,
ceram fiéis a esta tendência: se o pensamento dialético não φως έστι, 119 etc., as proposições exprimem fatos sem ne-
comporta as realidades nas proposições, o atributo pensado nhum sujeito inerente. O exprimível, portanto, não é uma
não é menos idêntico que o atributo objetivo. Não conce- modalidade qualquer de representação racional, mas unica-
dendo ao pensamento a realidade tal qual a conceberam, mente a do fato e do acontecimento. Constitui, como tal, a
eles apenas puderam recusá-la ao seu objeto. matéria de toda lógica; vamos, neste momento, examinar os
Os atributos são apenas uma espécie particular de efeitos dessa concepção na teoria do juízo e do raciocínio.
exprimíveis. 111 São exprimíveis incompletos os que se
transformam em proposições, e são exprimíveis completos Do exprimível na teoria do j u í z o e do raciocínio
os que respondem à questão:"qual é o sujeito da ação?".112
Não vamos aqui refazer uma exposição da lógica
Aí estão as proposições simples: os outros exprimíveis com-
estoica, já analisada, com os desenvolvimentos necessários,
pletos são proposições compostas que se obtêm por uma
nos importantes trabalhos de Brochard 120 e de Hamelin. 121
combinação de proposições simples, um exemplo é o que
Poderíamos talvez, no entanto, tendo por guia a con-
denominamos na atualidade como proposição hipotética
cepção do exprimível incorporai, esclarecer alguns aspectos
(o συνημμένον 113 dos estoicos). Enfim, essas proposições
dessa lógica.
combinam-se em raciocínios que nunca são chamados
Posidônio dá a seguinte definição da dialética: "E a
de exprimíveis, 114 mas são, sobretudo, uma seqüência de
ciência das coisas verdadeiras e falsas, e daquelas que não
exprimíveis. O essencial do λέκτον 115 é o de ser, portanto,
são nem uma nem outra". 122 Essa definição, uma vez que
atributo ou acontecimento, com sujeito ou sem sujeito. É
difere da de Crisipo (é a ciência que concerne às coisas
interessante notar que, na exposição de Porfirio, a própria
significantes e significadas), tem apenas por objeto excluir
proposição é denominada atributo (κατηγορούμενον 116 );
da dialética sua primeira parte, o estudo da linguagem, e,
é, tão somente, um atributo completo (τέλειον 117 ). 118 Toda
ademais, o de precisar, diminuindo sua extensão, o segun-
atenção do dialético volta-se ao atributo-exprimível. Nos
do objeto. Pois o σημαινόμενον, 123 designando tudo que
é significado mediante uma palavra, é mais extenso que o
verdadeiro e o falso, que só podem ser aplicados ao juízo.
' " C i e m . Alex. Strom. VIII 9, 26 (S.V F. I 109, 24). Diocles Magnes Diog.
Mas a dialética, limitada por Posidônio, formava, em Crisipo,
La. Vil 63 (II 59,11).
n2
uma única parte, a teoria do juízo e do raciocínio.
Ibidem. (II 58,30).
113
Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
m
4
" C f . a classificação de Filón: de agrie. 139 (S.V. F. II 58, 38). Phôs esti ou 'é dia",'há luz'. (N.T.G.)
l20
n5
Lekton ou 'exprimível'. (N.T.G.) Archiv f Gesch. Der Phil., t.V., p. 449.
m
116
Kategoroúmenon ou 'atributo'. (N.T.G.) Annéephilos. (1901), p. 13.
122
ul
Téleion ou 'completo'. (N.T.G.) Diog. La. VII 62 (S.V. F. II 3).
123
8
" S.V. F. II 59, 30. Setnainómenon ou 'objeto significado". (N.T.G.)

36
FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 49
A dialética, como virtude e como ciencia, é uma re- pode ser verdadeira, segundo ele, e é possível reconhecê-
alidade, isto é, um corpo; ela parece ser idêntica à verdade -la sem precisar conhecê-la cientificamente, isto é, por
que é definida quase nos mesmos termos que ela, "a ciên- uma demonstração. 128 Os estoicos, por sinal, partem dessa
cia indicadora de todas as coisas verdadeiras". 124 Mas seus observação para mostrar que não é necessário ser sábio
objetos, o verdadeiro e o falso, não têm, de forma alguma, para conhecer o verdadeiro, pois esse conhecimento não
realidade. C o m efeito, apenas o juízo é verdadeiro: ora, é necessariamente o da ciência.129 Por outro lado, eles não
o juízo é um exprimível, e o exprimível é incorporai. 125 poderiam substituir o necessário pelo verdadeiro no sentido
Vemos que, desde o início, estávamos no "não ser". As peripatético, isto é, fundado numa inclusão de conceitos.
coisas verdadeiras e as falsas, por uma analogia evidente, Pois um fato, como tal, somente pode ser verdadeiro ou
ou seja, o juízo simples e o juízo composto, "não são falso, sem jamais ter uma necessidade análoga à necessidade
nada". 126 Dir-se-á que os juízos exprimem alguma coisa, matemática. Eles também definem o necessário como uma
uma realidade, e que essa realidade é, por seu intermediário, espécie do verdadeiro, que sempre é verdadeiro (το άει
o objeto da dialética? Isso seria desconhecer inteiramente o άληθές 130 ). 131 O necessário é, então, a universalidade de um
pensamento dos estoicos. A lógica não vai além do verda- fato, ou, como dizem, de uma atribuição que está presente
deiro e do falso. Mas poderíamos dizer que, se a proposição em todos os seus momentos. Mas o verdadeiro não atinge
não significa uma realidade, ela se reduz às palavras? De sempre o permanente, ele se modifica constantemente, em
maneira alguma; as palavras são algo corporal e a proposição razão da mudança perpétua dos acontecimentos. Ε essa
não. É necessário que o "não ser", estudado pela lógica, natureza da proposição verdadeira que, segundo Alexandre
não seja nem as palavras nem as coisas. O "não ser" é o de Afrodísia, permite aos estoicos conciliar a contingência
atributo das coisas designadas pelo exprimível, e somente dos acontecimentos com a ordem do destino. Eis aqui o
ele, com efeito, pode ser verdadeiro ou falso: verdadeiro, argumento que parece bem singular: a proposição 'existirá
se ele se vincula à coisa, falso, se não tem vinculação. 127 amanhã uma batalha naval' é verdadeira se um aconteci-
Essa definição da dialética ganha seu sentido por mento idêntico for determinado pelo destino. Mas ela não
oposição à de Aristóteles. Aristóteles atribuiu à ciência não é necessária, por exemplo, pois deixará de ser verdadeira
o verdadeiro, mas o geral e o necessário. Uma proposição depois de amanhã.132 A razão profunda dessa sutileza é que o
necessário é concebido apenas como um fato ou um acon-
124
Sext. Math.Vll 38 (S.V. F. II 42,23). tecimento permanente, enquanto o verdadeiro nada mais
12S
Ibidem, linha 21.
126
Plut. de comm. not. 30 (S.V. F. II 117, 40). 128
C f . A n . p o s t . 1 2 3 , í; 1 31,3.
127
Sexto, Math.Vlll 16 (S.V. F. II 63,16). Αίσθητόν e νοητόν são as palavras 129
Sexto, Math. VII 38 (S.V.F. II 42,31).
pouco habituais aos estoicos para exprimir σώμα e άσώώατον. - Cf.
130
ibidem, VIII 100 (II 67,11).* 7o aei alethés ou 'o que é sempre verdadeiro'. (N.T.G.)
131
Respectivamente, aisthetón ou 'sensível', noetóti ou 'inteligível', soma Diog. La. VII 75 (S.V.F. II 64,19).
132
ou 'corpo', e asómaton ou 'incorpóreo'. (N.T.G.) De fato 10 (S.V. F. II 279,30).

36
FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 51
é que um acontecimento passageiro e fugitivo, que pode que marca a causa (διότι140); e aquela que não tem aqui um
se tornar falso. Alguns estoicos parecem estar preocupados nome especial, que indica o mais e o menos. Existem tantas
com tal relação da proposição verdadeira com o tempo. proposições complexas quantas conjunções: a proposição
Admitiam-se passagens (μεταπτώσεις 133 ) de proposições hipotética (συνημμένον 141 ), conjuntiva, causal, marcando o
verdadeiras às falsas. Certas proposições não devem ser mais e o menos. 142 Desde a Antigüidade e sobre esta ques-
admitidas senão com essa restrição, e, ao final de um tempo tão mesmo, Galeno criticava a escola de Crisipo por estar
indeterminado, elas se tornarão falsas.134 Este caso particu- mais presa à linguagem que aos fatos. Em uma proposição
lar, acrescentado à enumeração de diversas modalidades de conjuntiva, por exemplo (vide o exemplo de Galeno), não
uma composição (possível, necessário, racional),135 mostra há nenhum meio de diferenciar, pela simples forma verbal,
claramente que a proposição é tratada e descrita como um se os fatos afirmados, em cada elemento, estão vinculados
acontecimento possível, necessário ou passageiro. ou não por alguma ilação de conseqüência: ao invés de
Assim, o verdadeiro e o falso, objetos da dialética, diferenciar duas espécies de conjunções, os discípulos de
são os juízos simples, idênticos não em sua forma verbal, Crisipo as sintetizam em apenas uma. 143
mas em sua natureza (isto é, no que eles exprimem), aos Se os estoicos se expunham a tal crítica, é porque,
acontecimentos. Mas esses juízos simples são religados desde seu ponto de partida, afirmam a impossibilidade de
entre si nos juízos complexos, por meio de conjunções se proceder diferentemente da análise gramatical. Cada
diversas. A classificação dessas proposições segue passo a termo de uma proposição complexa exprime um fato
passo a análise gramatical e não parece ter, em primeiro (ou: é um exprimível). A causa de cada um desses fatos
lugar, senão um suporte lingüístico. Existem várias espécies é um corpo, ou vários, conhecidos pelos sentidos. Mas
de conjunções, a conjunção de conexão (συναπτικός 136 ), a ligação entre esses fatos não é objeto da sensação. Ela
como εί;137 a conjunção copulativa e (συμπλεκτικός 138 ), a é necessariamente tão irreal quanto os próprios fatos.
conjunção disjuntiva (ήτοι διαζευκτικός 139 ), a conjunção E, também, um exprimível. Quando um estoico fala, a
propósito dos acontecimentos, de conseqüência e ante-
ni
Metaptóseis ou 'queda' (N.T.G.).* cedente, de causa e efeito, não pensa, tal como Hume,
* Neste caso, Bréhier se utiliza da palavra 'queda' (chutes), ou 'passagem', em dar aos próprios fatos, incorporais e inativos, uma
para indicar a idéia de processo, ou movimento, que torna uma força interna que os uniria uns ao outros. O que faz que
sentença verdadeira em uma falsa; a queda designaria o movimento
descendente na hierarquia dos valores de verdade e falsidade. (N.T.)
uns não sejam capazes de produzirem outros. Se se pode
134
Simplic. in Arist.phys, 1299 (S.V. F. II 67,271). empregar, neste caso, as expressões de 'conseqüência' e de
135
Diog. La.VII 75 (S.V F. II 64,25).
136 m
Synaptikós ou 'conexão'. (N.T.G.) Dióti ou 'causa'. (N.T.G.)
137 141
Η ou "se". (N.T.G.) Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
138 142
Symplektikós ou 'copulativa'. (N.T.G.) Acompanhamos a posição de Diócles apud Diog. LaVII71 (S.V F. II 68,12).
n9 U3
Etoi diazeuktikós ou 'disjuntiva'. (N.T.G.) Intr. dial. 4 (S.V. F. II 68,31).

36 FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 53


'causa', é unicamente por analogia, c o m o diversas vezes tema, conforme Cícero, 147 numerosas divergências.As teo-
fomos alertados: " O s estoicos, diz Clemente de Alexan- rias de Filón de Larissa e de Diodoro parecem ressaltar os
dria, dizem que o corpo é causa no sentido próprio, mas dois limites opostos, entre os quais se encontram as outras
o incorporal o é de u m a maneira metafórica, e ao m o d o soluções. Em primeiro lugar, era possível deixar os fatos no
de u m a causa". O incorporal do qual tratamos aqui é, seu estado de dispersão: um fato indicado na proposição
seguramente, o exprimível ou juízo, como mostra o teste- condicional pode estar associado a qualquer fato enunciado
m u n h o de Diócles: na proposição dita causal (αιτιώδες 144 ), na principal (trata-se de um συνημμένον 148 ). O que é muito
'porque faz dia então está claro', o primeiro t e r m o não é próximo da teoria de Fílon. Seja qual for o conteúdo do
considerado causa do segundo, mas " c o m o se fosse causa fato, consideraremos unicamente se ele é verdadeiro ou
do segundo". 1 4 5 Essa espécie de causalidade irreal não falso. Em um συνημμένον, composto de duas proposições,
pode encontrar, de forma alguma, seu p o n t o de apoio e existe unicamente quatro combinações possíveis de propo-
seu objeto no m u n d o exterior, mas é, unicamente, uma sições verdadeiras e falsas; entre essas quatro combinações,
expressão na linguagem. Somente a linguagem, c o m suas Fílon aceita três (I a prop. verdadeira, 2 a verdadeira; I a falsa,
conjunções, permite-nos exprimir os diferentes modos de 2 a falsa; I a falsa, 2 a verdadeira) e rejeita apenas a quarta:
ligação, que não correspondem a nada de real, e deve-se verdadeira e falsa. A razão dessa rejeição não é evidente a
limitar à análise da linguagem. priori; não está conforme ao princípio segundo o qual os
Conclui-se que tal ligação de fato é simplesmente exprimíveis não p o d e m agir ou padecer uns em relação
arbitrária, e que não basta associar os termos por conjunções aos outros: talvez seja necessário ver nisso uma inconse-
para obter um juízo admissível? Aí está, certamente, aos quência devido aos ataques dos acadêmicos que tiveram
olhos dos estoicos, o que constitui a principal dificuldade: a desenvoltura de criticá-los por fazerem o falso decorrer
os quadros da ligação, por um lado, são como categorias do verdadeiro. De maneira totalmente contrária à de Fílon,
vazias, e, por outro lado, os fatos que aí devem entrar são Diodoro procura introduzir uma ligação de necessidade
sem ação, propriamente dita, uns sobre os outros, na con- entre as duas proposições. Deixando de lado a teoria par-
dição atômica e dispersa. Trata-se, entretanto, de distinguir ticular de Diodoro, tentaremos mostrar como os estoicos
o juízo complexo verdadeiro ou são (ύγίές 146 ) do juízo puderam evitar as conseqüências trazidas à luz por Fílon.
falso, o que poderá ser aceito do que não pode sê-lo. De Consideremos este nexo entre cada uma das proposi-
fato, os diversos líderes do estoicismo tiveram sobre este ções complexas. No caso da proposição hipotética e causai,
temos, em primeira mão, o testemunho de Diócles: 149 um
144
Strom.VIII 9 (S.V F. II 119, 41) αίτιωδως.*
U7
* Aitiôdos. Literalmente, c o m a forma (eidos) de causa (aitía). (N.T.G.) Acad. II 47, 143. Cf. para os que retomam Fílon, Diodoro e Crisipo,
145
οίονει αίτιον. Diog. La.VII 71 (S.V. F. II, 68, 24).* nesta teoria, Brochard, loc. cit.
HS
Oionei aition ou ' c o m o causa'. (N.T.G.) Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
149
Hf,
Hygiés ou 'são'. (N.T.G.) Ap. Diog. UNII 73 (S.V F. II 70, 20).

36 54
FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO
συνεμμένον é verdadeiro quando "a oposição da proposição princípio que permitisse reconhecer o que se quer dizer
final contradiz a proposição inicial". A oposição de uma por fatos contraditórios. Sem ele, a exclusão das ilações
proposição (e em geral de um termo) é, segundo Sexto,150 arbitrárias de Fílon estaria situada apenas nas proposições
a proposição acrescentada por uma negação que a comanda idênticas. É esse o princípio que Crisipo se esforça para
inteiramente. A definição do contraditório (το μαχόμενον151) encontrar no que denomina εμφασις 155 : quando a segunda
é bem mais complicada de se definir: "é contraditória uma proposição não é idêntica à primeira, o συνεμμένον 156 pode
coisa que não pode ser admitida (παραληφθήναι 152 ) ao ser são [o verdadeiro],"se ela aí está contida em potência". 157
mesmo tempo que uma outra". A oposição de:'é dia', é A palavra περιέχειν 158 é atribuída ordinariamente à força
'não é dia'; o contraditório é 'é noite'. Se dois termos A e que contém e domina as partes do ser. Não se vê como
Β são opostos, é evidente que não A conterá mais do que a palavra poderia ser aplicada diferentemente, senão por
Β,'ο não vício contém mais que a virtude'. 153 O exemplo metáfora, a um exprimível ou acontecimento. Quando se
dado por Diócles é este: 'se é dia, está claro'. A oposição procura o sentido dessa metáfora, se é levado a confundir
da segunda proposição:'não está claro' contradiz a 'é dia'. mais ou menos a capacidade de conter com a identidade. 159
Contudo, do ponto de vista estoico, haveria neste caso uma Os estoicos não tiveram, portanto, no συνεμμένον, 160 um
evidente dificuldade: se o contraditório tem um sentido princípio rigoroso que os permite sair da identidade sem
num sistema definido de conceitos, não o tem mais quando inconsequência e sem arbitrariedade.
se trata unicamente de fatos. Um fato existe ou não existe; Qual é, portanto, o princípio de ligação dos fatos na
mas como poderia ser contraditório que um fato de uma proposição causal, tal como:'se é dia, está claro'? Ele é, em
natureza determinada (o dia) esteja associado a um fato de aparência, muito diferente: é uma ilação de conseqüência
outra natureza (a noite)? Essa dificuldade conduziu alguns (άκολουθία 161 ).Α proposição é verdadeira na condição de
estoicos a ver nos συνημμένα 1 5 4 apenas as proposições que a segunda (ou o segundo fato) decorra da primeira
idênticas, como 'se é dia, é dia'.Visto que a oposição da (ou do primeiro fato), e não inversamente. 162 Não haveria
segunda [proposição] não é a contradição da primeira, mas
sua oposição. Para irmos mais longe, precisaríamos de um
155
Émphasis ou 'o que está contido na enunciação'. (N.T.G.)
156
Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
l50
Math. VIII 88 (S.V F. II 70, 7).
'"περιέχεται δυνάμει. Sexto, Pyrrh. IIIIII.*
151
To makhómenon ou 'contraditório'. Esta palavra t e m o significado
Periékhetai dynámei ou 'contida em potência'. (N.T.G.)
primordial de "o que está sendo combatido" e é muito mais empregada em 158
guerras do que em discursos. Ε sinônimo de pólemos, donde vem a palavra Periékhein ou 'conter, abarcar'. (N.T.G.)
159
'polêmica', esta, sim, mais freqüente em relação ao discurso. (N.T.G.) Cf.Brochard, loc. aí., p. 458, no qual a ilação da condicional à principal
152
Paralephthênai ou 'ser admitido'. (N.T.G.) é, c o m razão, comparada à de um teorema face a uma definição.
160
153
Simplic. In Arist. Cat. P. 102 Ζ (S.V F. II 50,33). Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
ul
154
Synemména (plural de synemménon). Synemménon ou 'proposição Akolouth(a ou 'conseqüência'. (N.T.G.)
162
hipotética'. (N.T.G.) Diócles, ibidem. (II 70, 29).

36 FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 57


neste caso algo de análogo a nosso princípio de causali- arbitrária, e a de Crisipo, na qual o mesmo n o m e é apli-
dade que articula conjuntos de fatos heterogêneos? N ã o cado. U m a segunda razão é um testemunho de Cícero
há lugar para se crer nisto: a "conseqüência" retoma, de no De fato que nos apresenta c o m o sendo Crisipo, que,
maneira profunda, a ligação que vimos no συνεμμένον. 1 6 3 por motivos que não nos interessa aqui, transformava os
C o m efeito, em uma passagem anterior, Diócles define o συνημμένα 1 6 9 em proposições conjuntivas. 170 Seria pos-
sentido da conjunção se da seguinte maneira: "ela indica sível, observa Cícero, fazer a mesma transformação em
que o segundo termo é conseqüência (άκολουθεΐν 164 ) do todos os casos possíveis. Neste caso, os termos conjugados,
primeiro". 1 6 5 Ora, vimos anteriormente que a negação c o m certeza, são ligados entre si da mesma maneira que
dessa conseqüência levaria a uma impossibilidade lógica. os termos correspondentes dos συνημμένον, 1 7 1 através de
No que diz respeito à condição de verdade da pro- uma identidade lógica.
posição conjuntiva, temos apenas uma observação crítica Enfim, a proposição disjuntiva se reduz facilmente a
de Sexto. 165 Os estoicos se enganaram, segundo ele, ao uma ilação do mesmo gênero. Ela designa que, com efeito,
declarar verdadeira somente a proposição conjuntiva na se uma das proposições é verdadeira, a outra é falsa.
qual todos os termos são verdadeiros: se um t e r m o é fal- Dessa maneira, todas as ilações se reduzem a uma
so, ele somente é falso em parte, sendo verdadeiro para única, a ligação de identidade, que é expressa clara-
os demais casos. O pensamento dos estoicos, criticado m e n t e n o σ υ ν η μ μ έ ν ο ν . 1 7 2 U m a proposição s o m e n t e
neste aspecto, somente pode ter sentido se a conjuntiva pode repetir a outra indefinidamente. Acreditamos ter
indicasse uma ilação entre cada uma das diferentes pro- encontrado nesse aspecto a razão de certa espécie de
posições. A crítica somente não se manteria no caso em inércia da lógica estoica; ela t e m p o r matéria os fatos, e
que houvesse apenas u m a simples enumeração. O que estes fatos, c o m o são exprimíveis incorporais, situados
nos incita a crer que os estoicos a tomavam n u m outro no limite do real, são incapazes de engendrar algo. Porém
sentido é, primeiramente, uma passagem de Galeno, que nós nos encontramos, segundo essa hipótese, diante de
critica os estoicos por terem confundido a ilação c o n - duas dificuldades que devemos resolver: se toda p r o p o -
juntiva simples c o m uma ligação de conseqüências. 167 Tal sição exprime um fato, qual é o sentido da definição
passagem é bastante clara, fazendo a diferenciação entre que deveria exprimir um ser? Além do mais, se não há
o συνημμένον 1 6 8 de Fílon de Larissa, na qual a ilação é ligações lógicas a não ser a ligação de identidade, qual
é o sentido da semiología estoica, para a qual um fato é
163 o signo de outro fato heterogêneo?
Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
1M
Akolouthía ou 'conseqüência'. (N.T.G.)
165 169
Díog. L<¡.VII 71 (S.V. F. II 68,15). Synemmétia (plural de synemménon). (N.T.G.)
170
™Math. VIII 124,128 (S.V. F. II, 69,26). De fato 15 (S.V. F. II 277,1).
167 171
Gal. introd. Dial. 4 (S.V. F. II 69, 5). Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
m 172
Synemménon ou'proposição hipotética'. (N.T.G.) Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)

36
FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 59
A definição e a semiología xandre de Afrodísia,183 essa definição retomaria a de Antipater.
Seria preciso entender por próprio, portanto, não a essência
A definição seria, em Aristóteles, definição da essência
do ser (ίδιως ποιόν184), mas tão somente os fatos específicos
de um ser.173 O estoicismo não poderia pensar nada similar,
que deles resultam, e que entram, somente eles, na definição.
uma vez que o pensamento lógico não diz respeito ao ser,
Aliás, os estoicos, contrariamente a Aristóteles, que en-
mas únicamente a fatos. A definição, neste caso, não será de
tende ser a definição uma proposição categórica, consideram-
natureza totalmente diferente de uma simples descrição. Anti-
-na um juízo hipotético, que afirma, ademais, a coexistência
pater a denomina"um discurso enunciado de modo completo
de fatos, e não de conceitos.185 Eles retiraram do τί ήν είναι186
segundo uma análise".174 A palavra άπαρτιζόντως175 quer dizer
de Aristóteles a palavra είναι,187 querendo sem dúvida indicar
que a definição está tão ajustada ao definido que a proposição
por τί ήν188 o fato estável e permanente. 189 Deste modo, para
se torna passível de conversão.176 Ε necessário tomá-la, sem
eles, a definição é apenas a coleção dos fatos característicos
dúvida, como sendo uma descrição incompleta.177 Este é o
de um ser; mas a razão intrínseca da ligação, [e] a essência
motivo pelo qual Galeno, referindo-se à teoria de Antipater,
escapam às investidas do pensamento lógico.
opõe a definição à descrição (ύτογραφή178), considerada como
A teoria dos signos depende diretamente da concep-
um discurso que apresenta uma forma geral (τυπωδώς179) no
ção do συνημμένον ύγιές 190 em Filón de Larissa. O signo
conhecimento da coisa indicada.180 Entre tais "descrições ou
não é outra coisa senão a proposição antecedente de um
análises", estão as noções comuns, que não podem ser definidas,
συνημμένον, 191 neste caso particular, as duas proposições
mas somente podem ser descritas.181
são verdadeiras, na qual a primeira é capaz de descobrir
Crisipo, é verdade, define diferentemente a definição:
(έκκαλυπτικόν 192 ) a segunda, 193 por exemplo:'se uma mu-
"a explicação do próprio" (ιδίου άπόδοσις182). Segundo Ale-
lher tem leite, teve filho'. Um leitor moderno, para explicar

m
An. post. II, 3 , 1 0 (του τί έστι κ α ι ουσίας).*
183
Tou ti esti kai ousias ou 'o que é essência'. (N.T.G.) Loc. Cit.
m 184
Diog. La.VII 60 (S.V. F. II 75). Idiôs poión ou 'a essência do ser'. (N.T.G.)
m 185
Apartizóntos ou 'precisamente, adequadamente'. (N.T.G.) Sexto, Math. XI, 8 (S.V. F. II 74,371).
m 186
Schol. Vatic. in Dionys. Thrac., p. 107, 5 (S.V. F. II 75,21). Ti ên einai ou 'causa formal'. (N.T.G.)
177 lel
Alexand. in Ai. Top., p. 24 (S.V F. II 75, 35). Denomina-se análise o Einai, infinitivo presente ativo do verbo ser. (N.T.G.)
188
"desenvolvimento do definido por capítulos (κεφαλαιωδως)".* Ti ên ou 'o que era'. (N.T.G.)
189
Kefalaiodôs ou 'sumariamente', ou 'tratada de uma maneira geral'. (N.T.G.) Alex. in. Ar. Top., p. 24 (S.V. F. II 75,30).
m 190
Hypographé ou 'descrição'. (N.T.G.) Synemménon hygiés ou 'proposição hipotética sadia', ou 'perfeita'. No
179
Typodôs ou 'de maneira geral'. (N.T.G.) caso da lógica, pode ser entendida c o m o 'válida'. (N.T.G.)
m
180
Gal. defin. med. I (S.V. F. II 75,28). Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
l92
181
Id. de diff.pulsuum IV 2 (S.V. F. II 75, 38). Ekkalyptikón ou 'ser capaz de descobrir'. (N.T.G.)
193
n2
Idíou apodosis ou 'a explicação do próprio'. (N.T.G.) Sexto, Math.VIII 244 (S.V. F. II 73, 20).

36 FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 61


essa teoria, seria provavelmente levado a pensar na idéia "o signo é um juízo (αξίωμα 198 ), diz ele, e, por esta razão,
de lei no sentido da lógica de Stuart Mill. Se um fato A é é inteligível". 199 O signo, portanto, é inteligível somente
signo de um fato heterogêneo B, uma vez que a idéia de enquanto não é um objeto de representação sensível, mas
Β não está, de forma alguma, contida analíticamente em A, um exprimível, um juízo. Sexto emprega aqui, como em
isto só poderia acontecer através de uma ligação externa outras ocasiões, 200 a palavra νοητόν, 2 0 1 quando a linguagem
aos dois fatos, mais constante e necessária, que se denomina estoica exigiria άσώματον. 202 Portanto, o signo é um expri-
como sendo uma lei. Se fosse este o sentido para os estoi- mível incorporai. Do mesmo modo que é signo, igualmente
cos, deveríamos encontrar neles uma teoria das leis e da é um exprimível. Ε isso o que os estoicos querem dizer
indução que serviria ao futuro. Hamelin 1 9 4 mostrou, pelo ao sustentar a seguinte tese paradoxal: "O signo presente
contrário, que esse problema estava fora das preocupações deve ser sempre signo de uma coisa presente". 203 N u m a
dos estoicos. Aparentemente, é necessário abandonar a idéia proposição deste gênero: 'Se há uma cicatriz, houve uma
de assimilar essa semiología à nossa lógica indutiva. Se o ferida', a ferida é, sem dúvida, uma coisa passada, e não é
primeiro fato é o signo do segundo, não é pela mediação a ferida realmente, mas o fato de ter tido uma ferida que
de uma lei, mas porque ela supõe por si mesma, por assim é significado; deste fato presente, o signo é este outro fato
dizer, outro fato. Mas isso não seria emprestar ao fato certa igualmente presente, o de ter uma cicatriz.
atividade e força (e à proposição, enquanto exprimível, lhe A relação do signo com a coisa significada, dessa ma-
é idêntica) da qual ele não é suscetível por natureza? neira, está entre dois termos incorporais, dois exprimíveis,
Para resolver essa delicada questão, é preciso insistir não entre duas realidades. Contudo, dir-se-á que essa relação
a respeito da natureza do signo. Haveria, neste particular, entre os exprimíveis supõe uma relação entre as coisas (neste
uma controvérsia entre os epicuristas e os estoicos, o que caso, entre a ferida e a cicatriz)? Em sua semiología, pelo
é mencionado por Sexto. 195 Para os epicuristas, o signo de menos, os estoicos se ocupam apenas da primeira relação,
um acontecimento não verificável atualmente é um objeto e jamais da segunda. O problema, ao qual responde esta
sensível; ele é conhecido, portanto, pela sensação. Para os teoria, é o de substituir um fato (ou exprimível) oculto
estoicos, ao contrário, o signo é um "inteligível" (νοητόν 196 ).
Sexto quis indicar neste caso que a ligação do signo à coisa
significada é conhecida senão a priori, ao menos o é por ™Aks(oma ou 'juízo'. (N.T.G.)
199
uma espécie de senso c o m u m , pelo resíduo mental das Math.VIU 244 (S.V. F. II 72,29).
200
Cf. άσώματον νοούμενον (Sext. Math. Χ 218, II, 117,22) e ένέπινοίαις
representações empíricas? 197 A razão que ele dá é diferente:
ψιλάις em Proclo i η Euclid. def. I, ρ. 89, II 159,26. - Cf. ρ. 24, n. 3.*
1
Respectivamente, Asómaton noouménon ou 'o que é pensado c o m o
194
Loc. cit., 23. incorporal', e en epinoiais psilais ou 'pensamentos elevados'. (N.T.G.)
m
"sMath. VIII, 112-117 (S.V. F. II 73, 42). Noetón ou 'inteligível'. (N.T.G.)
196 202
Noetón ou 'inteligível'. (N.T.G.) Asómaton ou 'incorporai'. (N.T.G.)
197 203
Brochard, loc. cit. Sexto, ibidem. (II 73, 24).

36 FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 63


por um fato (exprimível) conhecido. Somos levados a sentido, que, se o antecedente e o conseqüente não são
compreender de um modo novo a natureza dessa ligação. idênticos, ao menos se aproximem da identidade, que eles
Neste caso, como no συνημμένον 204 comum, o segundo sejam apenas a mesma coisa expressa em termos diferentes.
juízo deve ser idêntico ao primeiro para que o signo seja É isso o que acontece quando se considera ambos como
verdadeiro. "Quando se tem a noção de conseqüência, diz ocorrendo no presente. Este acontecimento presente, 'ter
Sexto,205 apreende-se também imediatamente a idéia de uma cicatriz', difere apenas em termos deste outro acon-
signo por meio da conseqüência". A conseqüência da qual tecimento igualmente presente, 'ter tido uma ferida'. Ε
se trata aqui, certamente, não é a ligação da conseqüência inegável que a representação da ferida não está contida na
física entre dois seres, mas o laço de conseqüência lógica representação da cicatriz, e que é necessário consequente-
entre duas proposições: pois se trata da conseqüência que mente a experiência para ir de uma à outra. Contudo, mais
é objeto do pensamento transitivo, como mostra a frase uma vez, a dialética não se ocupa de representações e da
anterior. Ora, vimos que tal conseqüência tinha senti- experiência, e sim unicamente de exprimíveis e de proposi-
do somente quando o oposto da proposição fmal de um ções. A segunda proposição, diferente por sua expressão, no
συνημμένον 206 contradizia a proposição inicial. No caso fundo, é a mesma que a primeira. Se os estoicos viessem a se
particular do signo e no nosso exemplo: 'não ter sido fe- afastar dessa identidade, sua teoria cairia imediatamente sob
rido', ou 'não ter tido filho', é contraditório com 'ter uma a crítica que lhes fizeram os céticos: a proposição suporia
cicatriz', ou 'ter amamentado'. que o signo foi constatado e que ele não é conhecido pela
Os estoicos, a respeito da natureza dessa contradição, coisa significada. Os estoicos, como mostra Brochard, não
mostraram-se necessariamente confusos, tal como na teoria tentaram ou com muito esforço buscaram responder a essa
geral do συνημμένον. 207 Para a lógica indutiva moderna, a dificuldade. Entretanto, isso não teria sido uma dificulda-
contradição estaria entre a negação da ligação e a ligação de para os lógicos indutivos; não é aí que jaz o problema,
pela lei da indução, regularmente verificada pela experiên- pois é precisamente apenas nas relações empíricas que se
cia. Como os estoicos não conheciam semelhantes ligações fundamentam as ligações de lei indutiva.
legais, viam contradição entre os dois fatos mesmos, o Seremos breves quanto a este raciocínio: a demons-
antecedente e o conseqüente. A contradição somente teria tração, como disse Sexto, é tão somente uma espécie de
sentido quando se tratasse de opostos, isto é, juízos nos signo.208 Os fatos ligados nas proposições complexas, por
quais um é negação do outro, sem conter outros termos. meio desse tipo de ilação, vinculam um fato ao outro na
É necessário, portanto, para que a teoria estoica tenha um conclusão. 209 Trata-se sempre de concluir uma ilação (ou
de uma disjunção) dos fatos enunciados na proposição
204
Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.)
2W
Math. VIII 275 (S.V. F. II 74,7). 208
Sexto, Math. VIII 275 (S.V. F, 74,10).
206
Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.) 209
Cf. Brochard, loe. rít. A exposição mais completa dos diversos modos
207
Synemménon ou 'proposição hipotética'. (N.T.G.) encontra-se em Galeno, Introd. dial. 6 (S.V. F. II 82, 20).

FILO
36 ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO 65
maior. A grande simplicidade do aspecto dos quadros do É sedutor, no entanto, vincular as ligações dos fatos,
raciocínio é devida ao fato de a lógica não ter mais vínculo expressos pela proposição hipotética, ao determinismo
com a realidade, mas com os exprimíveis. Ela foi, segundo universal, afirmado na doutrina do destino. Mas a palavra
Galeno, 210 objeto de uma crítica instrutiva: ele observa 'destino' não exprime, de maneira alguma, uma ligação
que nos livros estoicos estão misturadas todas as formas entre os fatos no sentido em que eles formariam séries
de raciocínio que se distinguem por hábito: o raciocínio nas quais cada termo seria efeito do precedente e causa
retórico, ginástico, dialético, científico, sofistico. C o m efeito, do conseqüente. É bem verdade, entretanto, que o destino
era antiga a idéia platónico-aristotélica de que as diferentes assinala a cada fato seu lugar no tempo, mas não está em
espécies de ser, segundo seu valor intrínseco, comportavam relação com outros acontecimentos que se relacionariam a
raciocínios mais ou menos precisos. Por exemplo, porque ele como a condição ao condicionado. Ε suficiente recordar
o raciocínio científico se reporta à substância, única e es- que o acontecimento é um efeito, um incorporal, e que,
tável, ele pode ser preciso. Ora, é a rejeição dessa idéia que como tal, é unicamente efeito, nunca causa, logo, sempre
faz a característica do raciocínio estoico: não se trata de inativo. Ele é determinado por sua relação com uma causa
realidades diferentes, pois [o raciocínio] contém apenas o que é um ser real de natureza totalmente diferente da sua.
irreal e o incorporai. O destino é essa causa real, essa razão corporal pela qual
os acontecimentos são determinados, 211 mas não é uma lei
segundo a qual eles determinariam uns aos outros. Assim
A semiología e o destino
como existe uma multiplicidade de causas, pois a razão
U m a característica própria dessa lógica é se de- do universo reúne as múltiplas razões seminais de todos
senvolver sem n e n h u m contato com o real e, apesar das os seres, o destino é também denominado "a ligação das
aparências, com a representação sensível. A distinção entre causas" (είρμόν αίτιων 212 ), não a da causa e efeito, mas a
o conhecimento que tem por objeto a realidade mesma, das causas entre si, por sua relação com o Deus único que
a representação sensível, e outro tipo de conhecimento abarca todos eles.213 Esta é uma relação de sucessão entre
que se remete aos exprimíveis está no cerne da d o u - as causas que as subordina umas às outras, pois é segundo
trina. Enquanto os gêneros e as espécies em Aristóteles a própria ordenação do mundo que os seres derivam uns
vinculavam-se, numa certa medida, aos seres reais, e o dos outros. 214 Mas se trata ainda da relação entre seres, e
pensamento lógico penetrava nas próprias coisas, por sua não da relação entre acontecimentos.
vez, os exprimíveis não contêm nada da natureza [dos
seres reais] e, consequentemente, não transportam nada
da natureza e do real ao pensamento, dos quais eles [os 2u
Estobeu, Ecl. 179 (S.V. F. II 264,18).
2n
exprimíveis] são produto e efeito. Heirmón aitiôn ou 'a ligação das causas'. (N.T.G.)
213
Aét. Plac. I 28. 4 (S.V. F. II 265, 36). Alexandre, de anima 185,1 (II 266,
10). Cícero, de divin. I 5 5 , 1 2 5 (II 266,13).
2W 214
De Hippocr. e Plat.plac. II 3 (91) (S.V. F. II 76,29). Plotino, Ennead., III, I 2 (S.V. F. II 273, 41).

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FILO ÉMILE BRÉHIER A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ESTOICISMO ANTIGO
Pois os acontecimentos são efeitos dessas causas, e é
certo que eles são, consequentemente, interligados. Por mais
heterogêneos que sejam, eles dependem do destino, que é
único. Mas se o conhecimento do destino, se a participação
através da sabedoria na razão universal, pode conhecer tais
ligações, nada na dialética intervém nesse conhecimento.
Dessa maneira, se a dialética considerava a ligação u n i -
versal, Crisipo poderia distinguir os fatos simples, isto é,
sem condição em outros fatos, e os fatos conexos, isto é,
ligados conjuntamente. 215 Todos, com efeito, deveriam estar
ligados. É precisamente o contrário o que acontece: aos
olhos do puro dialético, que recolhe os acontecimentos
isolados, não existe ligação possível, ou melhor, não há
senão a ligação de identidade. A dialética mantém-se na
superfície do ser. Certamente, os estoicos se esforçaram em
ultrapassar o raciocínio idêntico: Si lucet, lucet; lucet autem;
ergo lucet ("Se brilha, brilha; brilha ainda; logo brilha"). 216
Mas eles só puderam fazer isso ao preço de inconsequên-
cias ou de maneira arbitrária. Malgrado a unidade relativa
da doutrina do destino, nenhuma teoria sólida do vínculo
dialético pôde se impor a eles. A dialética estoica, por mais
paradoxal que pareça ser, está muito próxima dos fatos,
sem jamais ter sido fecunda. Ela não consegue sair do fato
bruto dado, n e m pela idéia geral que recusa, n e m pela lei
que ela ainda não conhece, e que deve se contentar em
repetir indefinidamente.

215
Cic. de fato 30 (S.V. F. II 277,33).
2,6
Entendido como tipo de ligação lógica; Cie. Acad. II 3 0 , 9 6 .

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