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Identidade e Modo de Presença

Norma Discini
Universidade de São Paulo (Professor)

RESUMO: A identidade concebida como efeito de sentido produzido nos textos


articula-se à noção de sujeito, entendido como a imagem de quem diz dada pelo modo
de dizer. Essa imagem, considerada depreensível de uma totalidade de enunciados,
refere-se a um ethos, a um estilo. O efeito de identidade então se oferece à descrição,
não para o olhar analítico que se detém nas ditas expressões estilísticas restritas à
expressão textual, mas para aquele olhar que procura reconstruir o sentido na relação
expressão/conteúdo dos textos. Sob tais parâmetros neste artigo busca-se identificar o
sujeito, como modo próprio de presença pressuposto a um poema de Gregório de Mattos
Guerra.

IDENTIDADE, ENUNCIAÇÃO, ESTILO


Concebemos a identidade como efeito de sentido. Identidade é um efeito de
sujeito apresentado como simulacro discursivo e dado à descrição por meio do exame
dos mecanismos de construção do sentido dos textos, cotejados na relação expressão/
conteúdo. Falar em identidade é remeter ao ator da enunciação pressuposto a uma
totalidade de discursos e dado a ver nos próprios enunciados por meio de um corpo,
uma voz, um tom de voz e um caráter.
Por conseguinte, longe de mirar o sujeito real pretendido como o autor dos
textos, visamos à categoria discursiva de pessoa, relacionada à de tempo e à de espaço.
Juntas, elas delineiam a dêixis enunciativa como o entrecruzamento do eu, aqui, agora,
a partir de cujas diretrizes se dão o ele, o alhures e o então. Lembramos que, assim
relacionadas, tais categorias respaldam estratégias argumentativas e subsidiam, por
meio do modo como são exploradas no narrado, determinado tom de voz e determinado
caráter do sujeito.
Ao pensar em identidade remetemos então à retórica aristotélica, no que diz
respeito à atenção dada ao sujeito enunciador visto como determinado caráter: o caráter
do orador, vinculado não só às disposições criadas no ouvinte, mas também à própria
noção de simulacro ligada à verdade tida como o que parece ser. Falamos em
simulacros discursivos, dos quais decorre o estilo. Focalizamos quem diz por meio do
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exame do modo de dizer: o ethos, tal qual explicado por Aristóteles. “Importa dar ao
estilo um ar estrangeiro, uma vez que os homens admiram o que vem de longe e que a
admiração causa prazer”, disse o filósofo no Livro Terceiro da Arte Retórica (s/d: 208).
O “ar” referido é o que interessa para nossas questões. Trata-se de um “ar” que acaba
por emergir do próprio discurso enunciado e remete ao modo de ser do “orador”, o
sujeito da enunciação. Por meio desse “ar” o orador faz crer em si, como sendo
estrangeiro, sem dizer para a platéia: Sou estrangeiro, notaram? Esse “ar” contribui para
o efeito de identidade, ora tratado como estilo. Estilo é pensado sob a persepctiva de um
sujeito que é construção do próprio discurso; um efeito de sujeito que, apreensível de
uma totalidade de discursos enunciados, apresenta-se como recorrência de traços de
conteúdo e expressão do enunciado dessa totalidade.

ENUNCIADOR, NARRADOR, OBSERVADOR


Para falar em identidade como um modo próprio de ser procuramos o sujeito
que, inscrito no discurso sem dizer eu, está não apenas na recorrência do que é dito, mas
também e principalmente na recorrência das estratégias do dizer. Tais estratégias
também são vistas como desdobramentos de um modo próprio de ver e, portanto, de
perceber o mundo. Visamos à pessoa que enuncia, dado como um sujeito semantizado:
o ator da enunciação.
Para o exame da constituição desse sujeito, atentamos para o narrador, que se
cumpre nas funções de dizer e de relatar. O olhar analítico se volta para o modo próprio
de distribuir atores, de promover debreagens internas, de explorar semanticamente
temas e figuras para que se consolide esse narrador como determinado sistema
subjacente a determinada totalidade. Com Fiorin (1996: 65-66) entendemos o narrador
como um actante da enunciação enunciada, um destinador, cuja voz delegada pelo
sujeito enunciador, organiza todo o enunciado enquanto promove o conjunto de
avaliações próprias à semântica da totalidade. Referimo-nos ao eu-narrador, sempre
implícito; aquele que testemunha “a relação afetiva, moral ou intelectual do narrador
com a história” e aquele que “comenta a ação, avalia-a do ponto de vista de uma visão
de mundo”, segundo o pesquisador. Esse narrador, constitutivo da categoria de pessoa, é
cotejado na sintaxe discursiva. É no nível discursivo do percurso gerativo que são
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criadas a pessoa, o espaço e o tempo da enunciação, enquanto são representadas a


pessoa, o espaço e o tempo do enunciado, por meio das debreagens.
Para a actorialização, assim entendida como um dos componentes da
discursivização, o observador tem sua ação cognitiva relacionada à ação do narrador,
ambos componentes sintáxicos do discurso. Para o ator da enunciação assim concebido
é considerada também a pessoa tematizada e figurativizada. É então observado o sujeito
que constrói de si a imagem que reúne corpo, voz, tom de voz e caráter, garantidos pelas
recorrências de papéis temáticos e figurativos, depreendidos do dito.
O efeito de individualidade advirá então, em princípio, da reconstrução do
sistema subjacente à totalidade discursiva posta em questão. A forma revela a
substância, também em se tratando de estilo. Pensando no sentido como construção,
descrevendo o estilo por meio das estruturas imanentes a uma totalidade, reconstruindo
simulacros que remetem às condições de produção do sentido, ou ao parecer do ser do
sujeito, recolocamos as formas que se fixam no lugar e no tempo de onde vieram: o
discurso.
A semantização do ator da enunciação cobra exame mais atento do ator como
aspecto, para que melhor se entendam perspectivizações da própria presença e para que
melhor se entendam feixes de afetos que subsidiam o modo de presença. O ator da
enunciação examinado como sujeito aspectualizado é entendido tanto sob a ação de um
actante narrador, com as respectivas funções apontadas, como sob a ação de um actante-
observador, sujeito cognitivo e, portanto, sujeito da percepção. Se o narrador só pode
relatar o que o observador sabe e se saber e ver supõem ambos representação
perceptiva, é preciso dar continuidade ao exame do ato de observar como uma das bases
de um modo de presença. Assim, quem sabe, melhor se explicará a relação entre estilo,
ator e aspecto.
A propósito, articular a noção de estilo à aspectualização do ator da enunciação
faz com que o próprio aspecto, noção tradicionalmente ligada à categoria de tempo e
formalizada como ponto de vista sobre a ação, seja relacionado aos processos
discursivos de antropomorfização do sujeito enunciador. Por isso fica enfatizada a
instância do observador, este que é tido como “o sujeito cognitivo delegado pelo
enunciador e por ele instalado no discurso enunciado graças aos procedimentos de
debreagem”, como propugnam Greimas e Courtés (1989: 313).
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A PERCEPÇÃO E O ANDAMENTO
Ao considerar o observador como determinada dimensão cognitiva da narrativa
e ao entender a percepção, que diz respeito a esse actante, como homologada à cognição
e como efeito de sentido, partimos para o exame de uma percepção temporalizada.
Temos então uma percepção mais acelerada, menos acelerada; uma percepção orientada
segundo o tempo controlado pelo andamento. O andamento, dado como medida do
tempo, altera a percepção que o sujeito tem do espaço. Se um passageiro se desloca
entre duas cidades, ora num ônibus lento, ora num trem rápido, não terá a mesma
percepção do espaço ao percorrer a mesma distância. Diferentes velocidades imprimidas
aos veículos medirão diferentemente o tempo, configurarão diferentemente o espaço e
viabilizarão diferentes pontos de vista ligados a diferentes perspectivizações da própria
presença.
Podemos, com apoio nos estudos sobre presença, de Fontanille e Zilberberg
(2001: 123-151), citar dois modos de presença a partir da percepção do observador:
aquele dado segundo a dêixis da indivisão e aquele dado segundo a dêixis da divisão
(idem:136). Na dêixis da indivisão se apresenta, de acordo com as relações
estabelecidas no quadrado semiótico, o termo S1, como o regime compacto, uno e
correlato ao sujeito realizado; em relação de complementaridade a este, o termo S2
linha, como o regime concentrado, massivo e correlato ao sujeito atualizado. Na dêixis
da divisão se apresenta, em relação de contrariedade com S1, S2, sujeito difuso,
numeroso e correlato ao virtualizado; complementar a este, S1 linha, o regime
distribuído, dividido e correlato ao sujeito potencializado.
O sujeito que, dado em consonância com o objeto observado, apresenta-se a si e
ao mundo no modo da indivisão, que supõe compactação/contração, supõe alto grau de
tensão e resultará no ator exaltado, extático (S1) e no seu complementar arrebatado e
mobilizado, segundo a “reformulação ´emocional´ da tipologia dos sujeitos” proposta
pela mesma fonte (idem: 144). Na dêixis da divisão, é bom lembrar, o fracionamento
corresponde de maneira direta à diminuição das tensões e à desaceleração.
Voltando então ao tempo visto como duração, destaca-se que, juntamente com a
desaceleração, temos a percepção de mundo mais estável, em que as diferenças do que é
visto são inevitavelmente mantidas; a percepção em que se ganha em número, mas se
perde em impacto e força. A partir de um ponto de vista desacelerado, perde-se em
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intensidade e se ganha em extensidade. O contrário se dá para uma percepção mais


acelerada. Repetimos que o andamento, desdobrado em aceleração e desaceleração, é
considerado em função da percepção. O aspecto do sujeito, por sua vez, é examinado
como tendência dominante, seja à aceleração, seja à desaceleração.
Ao se tocar em dominâncias, fala-se em gradações: o mais do mais, o menos do
mais; o mais do menos, o menos do menos. As descontinuidades, aplacadas por meio
das gradações, tendo como pressuposto o ato de ver e de perceber o mundo, confirmam
o observador como o itinerário da percepção de determinada totalidade discursiva. O
modo de presença do ator é então cotejado segundo gradações estabelecidas pelo olhar
do observador. Entre uma tonicidade impactante, em que oscilam estados de alma na
intensidade da percepção, e uma extensidade orientada segundo o estado das coisas,
definem-se estilos.
Vale entender que, devido à perspectivação promovida pelo sujeito observador,
temos um campo de presença dado segundo combinações, que remetem a gradientes e
não a recortes. Estamos diante de modulações de modos de presença. A percepção se
apresenta assim por meio de um alcance espácio-temporal, o que significa que é
considerada segundo um espaço tensivo, que se dilui “de x a y”, ou seja, do nível
profundo para todo o percurso gerativo do sentido.

UM ATOR ARREBATADO
“O estilo barroco realiza uma poética da concentração e tende
a ocultar um estado num devir.”
(Zilberberg, 1992: 107)

Zilberberg (1992), em estudo intitulado Présence de Wölfflin discorre sobre a


comparação entre a arte barroca e a clássica, elaborada por Wölfflin. Zilberberg então
atribui à estética clássica um andamento infinitamente lento, uma expansão indefinida e,
em relação ao barroco assim se expressa: “Para o barroco um andamento infinitamente
vivo transforma a expansão em concentração e tolera apenas o infinitamente breve” (p.
108). Tomemos então um poema barroco.

Buscando a Cristo

A vós, correndo vou, braços sagrados,


Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
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E, por castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados


De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,


A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, pra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,


A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

Gregório de Matos Guerra

Veremos como, segundo um modo próprio de “ver” o mundo podemos


depreender, entre outros procedimentos do discurso, um modo próprio de combinar
figuras e temas, o que resulta na utilização de recursos como o paradoxo; um modo
próprio de conotar o signo, o que resulta no uso de metonímias; um modo próprio de
encadear figuras e temas, o que resulta no uso de elipses. Poderemos então depreender
um modo de percepção compatível com o sistema de coerções semânticas da totalidade
discursiva considerada.
A vós, (correndo vou), divinos olhos (v.5); A vós, (correndo vou) pregados pés
(v. 9); A vós, (correndo vou) sangue vertido (v.10); A vós, (correndo vou) cabeça baixa
(v.11). A princípio duas perguntas podem ser feitas: a primeira, sobre o efeito de sentido
resultante da recorrência de elipses; a segunda, sobre a relação entre tal efeito de
sentido e o delineamento do modo de presença do sujeito.
Antes porém verifiquemos que, num plano de expressão aparentemente
disciplinado na forma fixa do soneto, distribuem-se os quatorze decassílabos, em
esquema de rimas consoantes e emparelhadas, que se definem como ricas no par final
unir-me / firme. Com tal rima se encerra a fala do poeta dirigida a Cristo, sendo ambos,
poeta e Cristo, atores instalados no enunciado como eu/tu, por meio do pronome vós,
que, abrindo a primeira estrofe, faz da enunciação enunciada campo propício ao efeito
de explosão de emoções e conflitos. Figurativizam-se interlocutor e interlocutário, poeta
e Cristo, de maneira intensa; aquele se finca no pólo da retensão/contensão (cf.
Zilberberg, in Greimas e Courtés, 1986: 236), já que é tão pequena a distância entre o
sujeito desejante e o objeto desejável e possível: a própria união com Cristo; este se
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respalda na diluição da própria figura, dada segundo um observador que fixa fragmentos
do corpo para misturá-los rápida e impetuosamente. É o que ocorrerá por meio da
metonímia na variação dita sinédoque (parte pelo todo). A inevitável relação de inclusão
entre os termos, do que advém a interdependência entre eles, viabilizará o ator
arrebatado. O corpo de Cristo é então convocado por partes. Misturam-se elas na
dimensão das contigüidades e na implicação de cada parte com o todo: ora Cristo é os
braços sagrados, ora é os divinos olhos, ora é o sangue vertido (v.10), ora é a cabeça
baixa (v.11), ora é o lado patente (v. 12), para finalmente ser os cravos preciosos
(v.13). A conjunção com Cristo, desejada tão mais retensivamente, quanto mais a
enunciação cria descontinuidades e procura aplacá-las, é retomada na última rima unir-
me / firme que, na homofonia do plano da expressão reconstrói a união atada, tida como
maximamente desejável.
Temos um regime que remete a um modo arrebatado de presença. Retomando o
estudo de Fontanille e Zilberberg (2001: 138), lembramos estar na dêixis da indivisão e,
ainda, diante de um sujeito observador e de um objeto observado, dados ambos segundo
um modo de ser “resistente à dispersão” e de “intensidade retomada”. Tal regime se
confirma por meio da seqüência de elipses e de metonímias. Verdadeiramente o olhar
perceptivo somente consegue trazer à luz um Cristo dado segundo partes indissociáveis
de seu corpo. As partes, recortadas em função do todo, não se mantêm como detalhes
captados e fixados, mas como elementos indissociáveis, cujos contornos são destruídos
na vertigem da celeridade. Afirma Zilberberg (1992: 76):

“O detalhe concerne ao andamento, no sentido de que a qualidade e o número dos detalhes


são considerados manifestantes do regime cinético escolhido: a aceleração e a
desaceleração são expressas respectivamente pela representação do detalhe; aqui a
preservação de sua pequenez, lá sua destruição. Para o barroco, a precisão de um detalhe
será um contra-senso.”

Na ânsia de desconsiderar o detalhe reconstitui-se a intensidade, para que o


sujeito, dado como presença atualizada, apresente-se com um corpo diluído. No rastro
do andamento, temos a impaciência como causa e conseqüência da percepção acelerada.
A dêixis da indivisão equivale à da impaciência e a da divisão à da paciência, segundo
Fontanille e Zilberberg (idem: 130). Não à toa reduplicam-se elipses e metonímias.
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Certamente não pode resultar em placidez o olhar célere do observador.


Pensando no narrador vemos que, ao encadear o enunciado na seqüência metonímica,
tal actante, em consonância com o observador, permite que o ato de dizer se instale na
ordem terminatividade, para que possam evoluir narrado e narração sob a paixão da
angústia. De acordo com a cena enunciativa pressuposta ao poema, “apagam-se” figuras
por meio do uso das elipses, implicitam-se conteúdos por meio do uso das metonímias e
tudo visa a certa zona terminal. Define-se o aspecto do ator segundo um itinerário da
percepção. Não custa lembrar Bertrand (2003: 416), que assim exemplifica o aspecto
relacionado à actorialidade:

“Podem-se, por exemplo, analisar as formas culturais do comportamento ao volante de um


carro, sob o ponto de vista do aspecto: o motorista americano se instala no durativo; já o
francês, obcecado desde a partida pelo final da viagem, `vive´ o percurso segundo o
aspecto terminativo.”

Não é apenas por meio da recorrência dos mecanismos considerados que se


confirma a orientação não-fixa e não-linear para esse olhar de ir-e-vir. O ator arrebatado
também se consolida por meio da reunião de figuras contraditórias entre si
representadas nos dois últimos versos da primeira estrofe. Nestes, ao correr em direção
aos braços sagrados e, por implicação, a Cristo, o poeta explicita o porquê do próprio
gesto: os braços estão abertos para recebê-lo numa metáfora do perdão, mas
simultaneamente estão cravados para castigá-lo. Notamos a ênfase dada às forças
opostas que convivem no mesmo sujeito: um ator, cujo corpo se contorce no oxímoro
que evolui para o cruzamento do quiasmo. Curioso é o fato de que o quiasmo lembra a
letra grega em forma de cruz. Nos versos 7 e 8, como recorrência dos procedimentos de
simultaneidades contrárias se discursivizam os divinos olhos, que estão ao mesmo
tempo despertos (v.7) e fechados (v. 8). Firmam-se no enunciado as diretrizes da cena
enunciativa que, avessa à fixidez, caseia-se com as recorrentes implicitações e exige
movimento maior de leitura, acabando por confirmar um modo célere de ocupar o
espaço. Um simulacro de sujeito regido pela emoção subsidia imagens encadeadas e
afins, para que se aspectualize o ator arrebatado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os atos de ver e de perceber o mundo são homologáveis entre si. Ver o mundo
supõe recorte perceptivo, enfeixados ambos num ato cognitivo. O mundo signi-fica,
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porque é conceituado, categorizado e ordenado pelo homem. “Mundo natural é um


´enunciado` construído pelo sujeito humano e decifrável por ele” (Greimas e Courtés,
1979: 291). Confirma-se a percepção como cognição. A consideração do ato de ver
como um ato de perceber e a reunião de ambos como da ordem da cognição não deve
causar estranhamento. Em tais movimentos se destaca o actante observador, como
instância que contribui para a aspectualização do ator, já que o aspecto diz respeito à
maneira pela qual se observa o desenrolar de um processo.
O observador contribui para a construção de um mundo mais acelerado, ou menos,
por meio de determinada configuração perceptiva respaldada no sujeito que observa e
no objeto observado. No poema examinado, pautam-se ambos menos por meio do
inteligível dos números e mais por meio do sensível das emoções, para que tenhamos
esse ator arrebatado. A noção de actante observador salta portanto dos limites da sintaxe
discursiva para inserir-se num espaço tensivo dado nas profundezas do percurso
gerativo do sentido. Viabiliza-se o sujeito como uma presença “que vai de x a y”, como
sugerem Fontanille e Zilberberg (2001: 129).
No encaminhamento dado a estas reflexões, não deslocamos a enunciação do nível
discursivo. Não desestabilizamos o princípio fundante de que e enunciação é instância
que permite a passagem do sistema (invariante) para a variável (fala). Pensamos numa
acepção ampliada da noção de observador, a fim de poder entendê-lo como elemento
determinado pelo “alcance espácio-temporal do ato perceptivo, que pode ser expresso
tanto em termos de extensão dos objetos percebidos, quanto em termos de intensidade
das percepções”, como propugnam Fontanille e Zilberberg (idem: 129).
Ao descrever e explicar o efeito de identidade acoplado ao ator da enunciação e ao
estilo, procuramos repensar a noção de modo de presença. “O `eu´ semiótico habita um
espaço tensivo, ou seja, um espaço em cujo âmago a intensidade e a profundidade estão
associadas”, está na obra recém-citada (idem: 128). O sujeito da percepção, entendido
como um regulador de tensões e examinado por meio dos próprios condicionamentos
segundo a tonicidade e a atonia das percepções, permite que se identifique no poema de
Gregório de Mattos uma presença dada segundo uma “afetividade forte (tônica)”, como
ainda nos autorizam a pensar os mesmos autores (2001: 18). Importa buscar o
observador sensível, relacionado à determinada apropriação perceptiva do mundo e
instalado no cerne da construção do ator.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES (s/d). Arte Retórica e Arte Poética. (trad. Antônio P. de Carvalho). Rio de Janeiro:
Ediouro.
BERTRAN, Denis (2003). Caminhos da semiótica literária. (trad. Ivã Carlos Lopes et al.). Bauru:
EDUCS.
FIORIN, José Luiz (1996). As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática.
FONTANILLE, Jacques e ZILBERBEG, Claude (2001). Tensão e significação (Trad. Ivã Carlos Lopes et
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GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph (1989). Dicionário de semiótica (trad. Alceu Dias
Lima et al.). São Paulo: Cultrix.
_________. (1986). Sémiotique. Dictionnaire raisoné de la théorie du langage. Paris: Hachette, v. II.
ZILBERBERG, Claude (1992). Présence de Wölfflin. Nouveaux Actes Sémiotiques 23-24. Pulim,
Université de Limoges.

meus documentos/ laptop/ USR/ congresso ABES 05

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