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Norma Discini
Universidade de São Paulo (Professor)
exame do modo de dizer: o ethos, tal qual explicado por Aristóteles. “Importa dar ao
estilo um ar estrangeiro, uma vez que os homens admiram o que vem de longe e que a
admiração causa prazer”, disse o filósofo no Livro Terceiro da Arte Retórica (s/d: 208).
O “ar” referido é o que interessa para nossas questões. Trata-se de um “ar” que acaba
por emergir do próprio discurso enunciado e remete ao modo de ser do “orador”, o
sujeito da enunciação. Por meio desse “ar” o orador faz crer em si, como sendo
estrangeiro, sem dizer para a platéia: Sou estrangeiro, notaram? Esse “ar” contribui para
o efeito de identidade, ora tratado como estilo. Estilo é pensado sob a persepctiva de um
sujeito que é construção do próprio discurso; um efeito de sujeito que, apreensível de
uma totalidade de discursos enunciados, apresenta-se como recorrência de traços de
conteúdo e expressão do enunciado dessa totalidade.
A PERCEPÇÃO E O ANDAMENTO
Ao considerar o observador como determinada dimensão cognitiva da narrativa
e ao entender a percepção, que diz respeito a esse actante, como homologada à cognição
e como efeito de sentido, partimos para o exame de uma percepção temporalizada.
Temos então uma percepção mais acelerada, menos acelerada; uma percepção orientada
segundo o tempo controlado pelo andamento. O andamento, dado como medida do
tempo, altera a percepção que o sujeito tem do espaço. Se um passageiro se desloca
entre duas cidades, ora num ônibus lento, ora num trem rápido, não terá a mesma
percepção do espaço ao percorrer a mesma distância. Diferentes velocidades imprimidas
aos veículos medirão diferentemente o tempo, configurarão diferentemente o espaço e
viabilizarão diferentes pontos de vista ligados a diferentes perspectivizações da própria
presença.
Podemos, com apoio nos estudos sobre presença, de Fontanille e Zilberberg
(2001: 123-151), citar dois modos de presença a partir da percepção do observador:
aquele dado segundo a dêixis da indivisão e aquele dado segundo a dêixis da divisão
(idem:136). Na dêixis da indivisão se apresenta, de acordo com as relações
estabelecidas no quadrado semiótico, o termo S1, como o regime compacto, uno e
correlato ao sujeito realizado; em relação de complementaridade a este, o termo S2
linha, como o regime concentrado, massivo e correlato ao sujeito atualizado. Na dêixis
da divisão se apresenta, em relação de contrariedade com S1, S2, sujeito difuso,
numeroso e correlato ao virtualizado; complementar a este, S1 linha, o regime
distribuído, dividido e correlato ao sujeito potencializado.
O sujeito que, dado em consonância com o objeto observado, apresenta-se a si e
ao mundo no modo da indivisão, que supõe compactação/contração, supõe alto grau de
tensão e resultará no ator exaltado, extático (S1) e no seu complementar arrebatado e
mobilizado, segundo a “reformulação ´emocional´ da tipologia dos sujeitos” proposta
pela mesma fonte (idem: 144). Na dêixis da divisão, é bom lembrar, o fracionamento
corresponde de maneira direta à diminuição das tensões e à desaceleração.
Voltando então ao tempo visto como duração, destaca-se que, juntamente com a
desaceleração, temos a percepção de mundo mais estável, em que as diferenças do que é
visto são inevitavelmente mantidas; a percepção em que se ganha em número, mas se
perde em impacto e força. A partir de um ponto de vista desacelerado, perde-se em
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UM ATOR ARREBATADO
“O estilo barroco realiza uma poética da concentração e tende
a ocultar um estado num devir.”
(Zilberberg, 1992: 107)
Buscando a Cristo
respalda na diluição da própria figura, dada segundo um observador que fixa fragmentos
do corpo para misturá-los rápida e impetuosamente. É o que ocorrerá por meio da
metonímia na variação dita sinédoque (parte pelo todo). A inevitável relação de inclusão
entre os termos, do que advém a interdependência entre eles, viabilizará o ator
arrebatado. O corpo de Cristo é então convocado por partes. Misturam-se elas na
dimensão das contigüidades e na implicação de cada parte com o todo: ora Cristo é os
braços sagrados, ora é os divinos olhos, ora é o sangue vertido (v.10), ora é a cabeça
baixa (v.11), ora é o lado patente (v. 12), para finalmente ser os cravos preciosos
(v.13). A conjunção com Cristo, desejada tão mais retensivamente, quanto mais a
enunciação cria descontinuidades e procura aplacá-las, é retomada na última rima unir-
me / firme que, na homofonia do plano da expressão reconstrói a união atada, tida como
maximamente desejável.
Temos um regime que remete a um modo arrebatado de presença. Retomando o
estudo de Fontanille e Zilberberg (2001: 138), lembramos estar na dêixis da indivisão e,
ainda, diante de um sujeito observador e de um objeto observado, dados ambos segundo
um modo de ser “resistente à dispersão” e de “intensidade retomada”. Tal regime se
confirma por meio da seqüência de elipses e de metonímias. Verdadeiramente o olhar
perceptivo somente consegue trazer à luz um Cristo dado segundo partes indissociáveis
de seu corpo. As partes, recortadas em função do todo, não se mantêm como detalhes
captados e fixados, mas como elementos indissociáveis, cujos contornos são destruídos
na vertigem da celeridade. Afirma Zilberberg (1992: 76):
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os atos de ver e de perceber o mundo são homologáveis entre si. Ver o mundo
supõe recorte perceptivo, enfeixados ambos num ato cognitivo. O mundo signi-fica,
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES (s/d). Arte Retórica e Arte Poética. (trad. Antônio P. de Carvalho). Rio de Janeiro:
Ediouro.
BERTRAN, Denis (2003). Caminhos da semiótica literária. (trad. Ivã Carlos Lopes et al.). Bauru:
EDUCS.
FIORIN, José Luiz (1996). As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática.
FONTANILLE, Jacques e ZILBERBEG, Claude (2001). Tensão e significação (Trad. Ivã Carlos Lopes et
al.). São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/FFLCH/USP.
GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÉS, Joseph (1989). Dicionário de semiótica (trad. Alceu Dias
Lima et al.). São Paulo: Cultrix.
_________. (1986). Sémiotique. Dictionnaire raisoné de la théorie du langage. Paris: Hachette, v. II.
ZILBERBERG, Claude (1992). Présence de Wölfflin. Nouveaux Actes Sémiotiques 23-24. Pulim,
Université de Limoges.