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ensaio

BNCC e educação
musical: muito barulho
por nada?
Cecília Cavalieri França
MUS Produção
BNCC and music education: much ado
for nothing?

Abstract
This paper proposes a reflection on the reper-
cussion of the “Base Nacional Comum Curri-
cular” (BNCC / Brasil, 2018) in the contexts of
Resumo basic education owing to some controversial
Este ensaio propõe uma reflexão sobre a re- points regarding the field of music. It is no-
percussão da Base Nacional Comum Cur- teworthy that the Base consists of “a possible
ricular (Brasil, 2018) no contexto da educação arrangement”, as expressed in the document
básica em função de alguns pontos controver- itself; therefore, taking other perspectives into
sos no que tange à área de música. Destaca-se account is opportune and necessary. It is sug-
que a Base consiste de “um arranjo possível”, gested that teachers should engage in dialo-
como expresso no próprio documento; assim gue with the text of the BNCC, underpinned
sendo, o contraponto com outras perspectiv- by the conception of music as a primordial
as faz-se oportuno e necessário. Questiona-se human expression, as it has been consolidated
a construção dos currículos de música a partir in recent debates in the field. One can ques-
das matrizes de Objetivos de Aprendizagem e tion the design of music curricula based on the
Desenvolvimento para Educação Infantil e de matrices of Learning and Development Objec-
Habilidades dos demais segmentos, uma vez tives, for Early Childhood Education, and Skills,
que estas apresentam problemas conceituais in the other segments, since they present con-
e metodológicos que podem vir a fragmentar ceptual and methodological problems that
e limitar a experiência pedagógico-musical. may fragment and limit the pedagogical and
Por meio de uma proposta prática, pretende- musical experience. A practical proposal was
se demonstrar como a experiência musical é formulated to demonstrate that musical expe-
multidimensional e, portanto, percorre e integ- rience is authentic and multidimensional, thus
ra diversos pontos das matrizes propostas na integrating several points of the matrices pro-
BNCC. posed in the BNCC.

Palavras-chave: BNCC. Educação musical. Keywords: BNCC. Music education. Music


Currículo de música. curriculum.

FRANÇA, Cecília Cavalieri. BNCC e educação musical: muito barulho por nada?. Música na Educação Básica,
v. 10, n. 12, 2020.
V. 10 Nº 12 2020

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com o papel, debater em reuniões, negociar
com os colegas, pesquisar recursos e elabo-
rar estratégias.
Finalmente, chega o momento de ater-
rissarmos em sala de aula e, fortuitamente,
recuperarmos a espontaneidade da nossa
prática, com um pouco mais de entendi-
mento a respeito do que estamos fazendo.
O documento curricular que as equipes de
professores preparam nas respectivas esco-
las, por mais bem alinhado que seja à reali-
dade daquele contexto, será ressignificado
no dia a dia. Tudo o que foi pensado, dito e
Panelássom. Arquivo pessoal da autora.
escrito será tonalizado pelas peculiaridades
de cada turma, pelos humores dos alunos e
até pelas efemérides e os noticiários do dia.
De Brasília aos Brasis Ou seja: a Base que saiu de Brasília é uma,
e a que chega a cada canto do país é outra.
É fato que a BNCC está fazendo bastante
barulho. Desde o começo da discussão, vem Então, a boa notícia é que a BNCC não
repercutindo em diversas direções, como é (quase) nada sem você, sem mim, sem
na formação dos alunos nas licenciaturas, cada um de nós! Grande parte do trabalho
na oferta de disciplinas, nas discussões e depende de nossas escolhas pedagógicas
pesquisas de pós-graduação, na forma- e musicais. Sabemos que há incontáveis
ção continuada, na revisão das matrizes de maneiras de se fazer música e inumeráveis
avaliação dos exames oficiais e concursos. tradições e práticas que entendemos como
À parte da academia, tem movimentado o música – sons organizados de maneiras ex-
meio editorial, com a produção de material pressivas da nossa experiência no mundo.
didático, levantado formadores de opinião e Mas, em meio a tão diversas sonoridades
alimentado mídias sociais. e respectivas formas de organização e tão
diversos modos expressivos e seus signifi-
Link para a Base Nacional Comum Curricular cados simbólicos, entre tradição, novidade,
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
cultura e subjetividade, expressão coletiva e
Enquanto isso, a onda segue em direção pessoal, cada um de nós é único. A música,
às escolas regulares, destino principal de to- que nos une como espécie, também nos
dos esses esforços. No trajeto, o documento individualiza como sujeitos. Quem entra
vai sendo modelado pelas disposições esta- em sala de aula, enfim, somos nós, nossos
duais e municipais, pelo projeto político-pe- alunos e a música que nos diz respeito.
dagógico de cada escola, pelo programa do Tenho percorrido debates, reuniões, cur-
ano escolar, pelo planejamento da equipe sos, conversas e também vasculhado a in-
e pelos ajustes de cada professor. Vai sen- ternet em busca de reflexões, propostas e
do filtrado e, dialeticamente, ampliado pela experiências, procurando entender como
experiência, pela formação e pela visão de todo esse movimento está repercutindo.
mundo dos envolvidos. Toda essa “mexida” Afinal, como a BNCC vem impactando os
pode ser considerada positiva, pois nos faz planejamentos e a prática da educação
parar para pensar, quebrar a cabeça, brigar musical? Até que ponto esse impacto tem

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sido produtivo, considerando-se os proble- mudar a embalagem de um produto, mas


mas observados no documento (estes se- não o seu conteúdo.
rão comentados no decorrer do texto)? O
O foco direcionado para os OADs e Ha-
que é relevante incorporarmos à nossa ação
bilidades tem feito proliferarem modelos e
educacional e o que não vamos incorporar,
“receitas” de planejamentos nos quais os
justamente porque não agrega ao que já fa-
professores vão, por assim dizer, “encai-
zíamos?
xando” atividades apressadamente, sem
Neste ensaio proponho uma reflexão a o cuidado de uma leitura mais abrangen-
respeito de uma leitura, a meu ver, equivo- te e crítica tanto sobre as matrizes quan-
cada da BNCC e sobre alguns pontos tam- to sobre as próprias atividades escolhi-
bém equivocados da proposta para a área das. Quando nos atemos às matrizes sem
de música. São ruídos e microfonias, incom- questioná-las e sem as devidas ressalvas,
preensões e simplificações arriscadas sobre endossamos seus aspectos negativos, que
o documento e sobre a própria música, os não são poucos. Os OADs e as Habilidades
quais, somados, têm gerado ações educati- para música, além de repetitivos e restri-
vas, de certa forma, anacrônicas. tivos, apresentam problemas conceituais
e metodológicos importantes, alguns dos
quais representam retrocessos significati-
Entre a natureza vos para a área. Alguns desses problemas
serão comentados adiante.
abstrata das matrizes
e a natureza concreta Listagens de objetivos, habilidades,
competências e outros enunciados dos
das experiências documentos educacionais se prestam a
musicais sintetizar, organizar e padronizar a prática.
Tais matrizes são abstrações de práticas.
O aspecto que tem me chamado mais
Nascem, a princípio, da observação e sis-
atenção é que as matrizes de “Objetivos de
tematização daquilo que fazemos em sala
aprendizagem e desenvolvimento” (OADs),
de aula e – quero crer – para ela retornam,
no caso da educação infantil (p. 48), e as
nela repercutem e com ela se retroalimen-
de Habilidades nos demais segmentos (p.
tam. Mas também são impregnadas pelas
202-203, 208-209) estão sendo superesti-
crenças pessoais e ideologias, sejam elas
madas a ponto de serem tomadas como “a
explícitas ou não. Portanto, não são “a coi-
novidade” a ser implementada. Muitos pro-
sa em si”, a experiência concreta, orgânica
fessores, na ansiedade (ou no desânimo) de
e complexa do nosso fazer musical peda-
terem que lidar com mais uma mudança na
gógico, mas uma estruturação plausível
formatação das propostas curriculares, ou
segundo uma perspectiva específica. As
para irem “direto ao ponto” diante de um
habilidades descritas na BNCC não são
texto de 600 páginas, estão concentran-
“atividades”! A matriz não é uma estrutura
do seus olhares nos códigos das matrizes.
de plano de aula! Já encontrei planejamen-
Será que a reforma almejada por toda essa
tos que espelham as cinco habilidades em
empreitada se resume a etiquetar o fazer
atividades numeradas respectivamente de
pedagógico com códigos de habilidades?
1 a 5, desconexas entre si e pouco musicais.
Colocar um código novo em uma antiga
Quando limitamos nosso olhar para as ma-
abordagem não a torna atual, refletida,
trizes, corremos o risco de tratar atividades
dialógica; tampouco desobriga a reflexão
musicais potentes e multidimensionais de
sobre o que está implicado neles. É como

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maneira artificial e fragmentada e até mes- playlist de música de resistência, ou outra
mo de perder a espontaneidade das intera- na periferia de Rio Branco (AC) anotando
ções com os alunos. cantos indígenas. Mesmo em se tratando de
universos sociais e culturais tão diferentes,
Cada um dos descritores das matrizes
com repertórios, sonoridades, corporeida-
admite um sem-fim de possibilidades musi-
des, tecnologias e modos de fazer, reprodu-
cais dentre metodologias, atividades, reper-
zir e distribuir música que lhe são próprios,
tórios, procedimentos e produtos. Multipli-
com sentidos, significados, níveis de envol-
que-se tal infinidade de possibilidades pelo
vimento emocional individuais e coletivos
universo de professores, turmas, escolas,
distintos, o código que as acompanhará,
cidades, estados e regiões deste país: é aí
segundo a BNCC, será o mesmo. Na práti-
que encontramos “a coisa em si”! Experiên-
ca, nossa escolha vai mobilizar habilidades
cias em música são complexas, contextua-
muito específicas de cada gênero e música
lizadas, interativas, imprevisíveis; portanto,
trabalhados, condicionadas por outras vari-
escapam à escrita de descritores de habi-
áveis, como os recursos disponíveis e a ma-
lidades, por definição, áridos e limitados.
turidade dos alunos.
Se comparada à vida que permeia as aulas
de música, ricas em estímulos multissenso- Nenhuma abstração teórica é capaz de
riais e em fazeres de múltiplas naturezas, a transformar nossa prática de maneira im-
matriz é um fóssil sem vida, sem cor, sem posta e unilateral. A BNCC, ou qualquer ou-
nuances, sem identidade. Diferentes profes- tro documento oficial, tampouco. Ao con-
sores podem desenvolver um OAD ou uma trário, o documento consiste de “um arranjo
Habilidade por meio de propostas diversas possível” como base curricular – e não sou
e, ainda assim, estarão contemplando e de- eu dizendo isso! Esta ressalva aparece no
senvolvendo o mesmo OAD ou a mesma texto da BNCC nada menos do que dez ve-
Habilidade. Vamos considerar, por exemplo, zes (p. 86, 197, 222 etc.)! Isso é muito po-
o seguinte descritor do ensino fundamental sitivo! Assumir que o documento seja “um
- anos iniciais: arranjo possível” implica reconhecer que
haja outras possibilidades de arranjo. Signi-
(EF15AR13) Identificar e apreciar
fica que a proposta não é ideal, infalível e
criticamente diversas formas e gêneros
de expressão musical, reconhecendo e
muito menos definitiva; ao contrário: suas li-
analisando os usos e as funções da música mitações são reconhecidas. Outros olhares,
em diversos contextos de circulação, em perspectivas e concepções são bem-vindas
especial, aqueles da vida cotidiana. (Brasil, nesse diálogo.
2018, p. 203).
Por essas razões, considero mais pro-
O texto dessa habilidade comporta um dutivo pensar o planejamento partindo
cardápio variado de escolhas estéticas, ar- das experiências musicais para a matriz, e
tísticas e culturais, de Bach a Beatles, gospel não na direção contrária. Podemos tomar
a quilombola, Caetano a Lady Gaga, menes- como ponto de partida uma proposta mu-
tréis renascentistas a repentistas nordesti- sical potente, levantando possibilidades e
nos, e assim por diante. Ou seja: uma tur- caminhos possíveis, os quais serão revis-
ma em Diamantina (MG) ouvindo músicas tos e modificados em tempo real na inte-
de banda e escolhendo o repertório para a ração com os alunos. A partir desse leque
festa da cidade estará realizando a Habili- de possibilidades, podemos nos reportar à
dade (EF15AR13) tanto quanto uma tur- matriz e anotar quais OADs e Habilidades
ma em São Paulo, capital, discutindo uma estão sendo contemplados. Dialeticamen-

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te, a matriz também pode contribuir para seu corpo, seus gestos e movimentos no
apontar ausências e, eventualmente, ins- espaço (p. 40-41); a participação em diver-
pirar desdobramentos que não teriam nos sas formas de expressão artística (p. 41), na
ocorrido de outra forma. Mais importante cultura oral e, gradativamente, na escrita,
ainda: nenhum dos descritores expressos nas narrativas pessoais, dos textos e seus
na matriz ocorre isoladamente na prática. usos, suportes, gêneros (p. 42); no mundo
Atividades musicalmente significativas en- físico e sociocultural, com suas proprieda-
volvem Habilidades de maneira integrada e des fenomenológicas e relações espaciais,
musical. Inclusive, costumam avançar além matemáticas etc. (p. 42-43). Vale salientar
daquelas listadas na matriz do respectivo que, apesar de a matriz para a educação
segmento e facilmente traçar percursos in- infantil da BNCC ter alocado à música um
terdisciplinares. espaço restrito no Campo de Experiência
“Traços, sons cores e formas”, ela percorre,
permeia, complementa, enriquece, articula
Interdisciplinaridade, todos os campos da experiência da crian-
ça, simplesmente porque a música é ine-
protagonismo e rente à vida!
cultura: erramos o Mas, infelizmente, essa festa dos senti-
alvo? dos, dos afetos, da imaginação, da experi-
Um preceito central na BNCC, promissor ência íntegra da criança é esvaziada quan-
de avanços relevantes, é a interdisciplinari- do passamos da descrição dos Campos de
dade. Em última análise, a interdisciplinari- experiências (p. 40-43) aos OADs respec-
dade é um esforço de retorno à nossa com- tivos à música, no Campo “Traços, sons,
plexa experiência de ser e estar no mundo, cores e formas” (p. 48). Nestes, o universo
da qual nos afastamos pela organização de experiências musicais da criança é re-
fragmentada do conhecimento em discipli- duzido a dois blocos de três descritores,
nas. Neste sentido, é positiva a abordagem um para cada faixa etária, destacados em
da educação infantil por Campos de Expe- rosa no Quadro 1. Os descritores da segun-
riências (Brasil, 2018, p. 40-52), delineados da linha do quadro referem-se mais espe-
de maneira a acolherem “as situações e as cificamente às artes visuais, embora sejam
experiências concretas da vida cotidiana procedimentos também utilizados na ex-
das crianças e seus saberes, entrelaçando- ploração da notação musical espontânea e
-os aos conhecimentos que fazem parte do analógica pela criança.
patrimônio cultural” (p. 40). Ninguém rea-
liza interdisciplinaridade de maneira mais Foto: Arquivo pessoal da autora.
natural do que a criança pequena, que des-
conhece fronteiras entre cultura, arte, vida
e música. Na primeira infância, ela se coloca
no mundo pela totalidade das experiências
corporal, estética, emocional, interpessoal.
Os Campos de Experiências da educa-
ção infantil abrangem: as relações inter-
pessoais, nas quais a criança reconhece a
si mesma e aos outros “como seres indi-
viduais e sociais” (p. 40); a expressão do

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CAMPO DE EXPERIÊNCIAS “TRAÇOS, SONS, CORES E FORMAS”
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Bebês (zero a 1 ano e 6 meses) Crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses) Crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses)

(EI03TS01) Utilizar sons produzidos por materiais, obje-


(EI01TS01) Explorar sons produzidos com o (EI02TS01) Criar sons com materiais, objetos e instrumentos musi-
tos e instrumentos musicais durante brincadeiras de faz
próprio corpo e com objetos do ambiente. cais, para acompanhar diversos ritmos de música.
de conta, encenações, criações musicais, festas.


'+65 6TCȊCTOCTECUITȄƒECUGO (EI02TS02) Utilizar materiais variados com possibilidades de mani- (EI03TS02) Expressar-se livremente por meio de dese-
diferentes suportes, usando instrumentos pulação (argila, massa de modelar), explorando cores, texturas, su- nho, pintura, colagem, dobradura e escultura, criando
riscantes e tintas. perfícies, planos, formas e volumes ao criar objetos tridimensionais. produções bidimensionais e tridimensionais.

(EI01TS03) Explorar diferentes fontes sonoras e (EI03TS03) Reconhecer as qualidades do som (intensi-
(EI02TS03) Utilizar diferentes fontes sonoras disponíveis no am-
materiais para acompanhar brincadeiras canta- dade, duração, altura e timbre), utilizando-as em suas
biente em brincadeiras cantadas, canções, músicas e melodias.
das, canções, músicas e melodias. produções sonoras e ao ouvir músicas e sons.

Quadro 1: OADs para o Campo de Experiências “Traços, sons, cores e Chama atenção também a confusão
formas”. Fonte: Brasil (2018, p. 48), adaptado pela autora.
conceitual e os equívocos pedagógicos
na enumeração de “brincadeiras cantadas,
São tantos os problemas reunidos nes- canções, músicas e melodias”. “Canções”
sa pequena matriz que um detalhamento não são “músicas”? “Melodias” não são
completo ocuparia um artigo inteiro. Cin- “músicas”? O que se entende por “música”,
co dos seis descritores, à exceção do últi- afinal? Uma “canção” não pode ser uma
mo (EI03TS03), são redundantes. A falta “melodia” e vice-versa? Ainda há que se
de recursos na escrita reflete tanto quanto mencionar o erro conceitual a respeito de
endossa uma prática empobrecida, apática gêneros e tradições musicais, subentendi-
e imitativa de modelos estereotipados. Em dos na frase “acompanhar diversos ritmos
vez de priorizar o fazer musical espontâneo de música” (EI02TS001). Essa expressão
e criativo, o texto enfatiza repetidamente a pode até circular livremente no senso co-
exploração sonora “para acompanhar” re- mum, mas não em um documento curricu-
pertórios escolhidos pelo professor. Tal em- lar oficial dessa importância e abrangência,
pobrecimento revela uma desconexão com destinado a orientar a ação pedagógica de
a natureza do desenvolvimento da criança. milhares de professores.
Isso transparece quando, por exemplo, se-
Outro aspecto que chama atenção é que
para a exploração sonora do próprio fazer
o texto vinha construindo a noção de prota-
musical nas brincadeiras cantadas (a crian-
gonismo, mas esta é esvaziada em direção
ça não os separa!); ou quando minimiza
a um fazer musical que culmina propondo a
a participação do corpo nas Habilidades
utilização de sons em “brincadeiras de faz-
para crianças de um ano e meio a 6 anos (a
-de-conta, encenações, criações musicais,
criança se movimenta à menor sugestão so-
festas” (Brasil, 2018, p. 48). Trata-se de um
nora!); ainda, quando aponta o reconheci-
objetivo de aprendizagem e desenvolvi-
mento das qualidades do som (os parâme-
mento que valida situações estereotipadas
tros intensidade, duração, altura e timbre)
em lugar de expressões legítimas da cultu-
apenas na faixa dos 4 anos, como se o bebê
ra infantil das diferentes localidades. Como
não distinguisse a voz da mãe de outras vo-
esperar que um estudante chegue ao final
zes do ambiente. Além disso, a criança de 18
do ensino médio como sujeito protagonista
meses já é capaz de controlar movimentos,
e autônomo se a ele não é permitido fazê-
coordenar esquemas mentais e experimen-
-lo desde a infância, uma vez que os OADs
tar ativa e intencionalmente diferentes ma-
insistem que ele “acompanhe” as propostas
neiras de extrair sons de fontes sonoras.
do professor? Como pretender que desen-

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volva competências para atuar criticamente rialidades”), processos criativos e formas de


em sociedade (não me refiro à visão neoli- registro. Os objetos de conhecimento tam-
beral de competências, mas à capacidade bém misturam conteúdos musicais propria-
de utilizar o conhecimento adquirido para mente ditos com formas de notação, e ain-
balizar a atuação no próprio contexto)? É da naturaliza a notação convencional como
frustrante que, após tanto empenho da área padrão ao nomear de “não convencional”
em construir a percepção de música como as formas de registro gráfico dos sons que
campo epistemológico inseparável da cultu- não utilizam pentagrama etc. Os descrito-
ra e do contexto, o documento pareça redu- res trazem modalidades de comportamen-
zir o fervilhar criativo da criança dessa ida- to musical (“composição/criação, execução
de ao ensaio do hit emocional do momento e apreciação musical”) misturadas com re-
para apresentação do dia das mães! Graças pertórios e recursos pedagógicos como
a essa concepção, grande parte do que se “jogos, brincadeiras, canções”. Do ponto de
pratica e se consome em educação musi- vista metodológico, a questão mais crítica,
cal, especialmente nos segmentos iniciais, a meu ver, é a separação de procedimentos
tem sido limitado a fórmulas artisticamente como apreciar de perceber, explorar e expe-
vernaculares, de pequeno impacto estético rimentar, que podem implicar planejamen-
e pouca relevância cultural. Observo muitas tos que fragmentam a experiência musical.
práticas onde essa visão é mascarada pela Do ponto de vista conceitual, é espantoso o
aproximação com coloridos do universo da enunciado que lista como “elementos cons-
infância, em salas decoradas com apetre- titutivos da música” os parâmetros do som
chos e recursos diversos. Mas a visão de en- “altura, intensidade, timbre, melodia, ritmo
sino de música permanece bastante tradi- etc.” (p. 203). Ou seja, a concepção de mú-
cional, com ênfase na repetição de modelos sica e de educação musical implícita na ma-
padronizados na qual a progressividade é triz é aquela tradicional, ou conservatorial,
medida pela leitura e discriminação de pa- como aponta Pereira (2013).
drões rítmicos e melódicos ou pelo desen-
volvimento técnico instrumental.
Para saber mais a respeito da disputa
Link para a 2ª versão da BNCC, publicada ideológica nas versões da BNCC:
em 2016: http://basenacionalcomum.mec.
No ensino fundamental
gov.br/images/relatorios-analiticos/bncc-
2versao.revista.pdf DEL-BEN, Luciana; PEREIRA, Marcus V. M.
Música e Educação Básica: sentidos em
As matrizes de Habilidades do ensino disputa. In: SILVA, Fabiany C. T.; XAVIER
fundamental (Brasil, 2018, p. 200-211) tam- FILHA, Constantina (org.). Conhecimentos
bém estão repletas de problemas. A música, em Disputa na Base Nacional Comum
entendida na Base como unidade temática Curricular. Campo Grande: Oeste, 2019. p.
189-209.
do componente curricular Arte, é expressa
em Objetos de conhecimento: Contextos e No ensino médio
práticas, Elementos da linguagem, Materia- SANTOS, Micael Carvalho Dos. A educação
lidades, Notação e registro musical, Proces- musical na Base Nacional Comum
sos de criação (p. 202-203). Tal formatação Curricular (BNCC) - ensino médio: teias da
desconsidera a interconexão entre “gêne- política educacional curricular pós-golpe
2016 no Brasil. Revista da Abem, v. 27, n.
ros de expressão musical” e os respectivos
42, p. 52-70, jan./jun. 2019.
elementos que os constituem, bem como
práticas, repertórios, fontes sonoras (“mate-

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Ainda hoje é possível enxergar esse enfo- É muito importante estarmos conscientes
que conservatorial, herdeiro da tradição mo- de nossas crenças, porque cada um de nós
derna francesa, pela qual parte significativa tenderá a investir naquilo em que acredita e
dos professores mais experientes foi forma- rejeitar o que fere seus princípios.
da. Ele segue enraizado nos cursos superio-
É importante lembrar que, na 3ª versão
res de música organizados nos moldes “per-
da BNCC, a música passou a ser denomi-
cepção, harmonia, repertório predominante
nada “área temática”, perdendo a creden-
de Bach à virada para o século XX”. Outra
cial de linguagem, preceito que havia sido
tendência de educação musical seria a es-
incluído na 2ª versão após amplo debate
tética, menos preocupada com os aspectos
nacional. Enxergar música como linguagem
técnicos, com ênfase nos aspectos senso-
implica sua validação como área de conhe-
riais, na contemplação desinteressada, na
cimento com processos e produtos pró-
expressão criativa, na imersão em sonorida-
prios e, portanto, de formação docente es-
des que repercutem em nós. O foco reside
pecializada (Brasil, 2016, p. 112). Existe uma
no impacto das sonoridades que arrepiam,
distância importante entre considerar músi-
anestesiam, no poder da música que fala di-
ca como linguagem e como uma área te-
reto à nossa estesia. A concepção mais con-
mática. Linguagens são sistemas simbólicos
temporânea seria a cultural, que tem como
pelos quais interagimos, argumentamos,
lócus a prática social mediada pela música.
declaramos visões de mundo; portanto, são
A bem da verdade, não é possível fazer ou
expressões humanas legítimas das práticas
falar de música de maneira desvinculada de
sociais, imantadas pela diversidade cultural.
cultura. Ninguém pode estar fora, imune ou
Mas essa concepção de música como ex-
alheio a ela! Bach é cultura, assim como Be-
pressão humana, presente na 2ª versão, foi
atles, bossa-nova, funk e o pop do momen-
substituída por “expressão artística” na 3ª
to. Mesmo a “musiquinha” da rotina escolar
versão, enfraquecendo sua condição como
é cultura; mas, em sua maioria, uma cultura
linguagem humana. Errado não está: músi-
empobrecida, reduzida de padrões rítmicos
ca é uma expressão artística, naturalmente.
e melódicos convencionais e previsíveis. A
Mas já há algum tempo a educação musi-
concepção cultural, no entanto, funda-se
cal brasileira saiu a campo(quem
e travou conta-
elaborou).
no reconhecimento de saberes diversos
to com a importância da(s) cultura(s), da
como legítimos e no direito de cada um à
diversidade, da identidade, da alteridade.
sua expressão autônoma. Esta se configura
Aquele ensino musical de tradição france-
em contraposição à hegemonia da música
sa, conservatorial, encontrou a música do
ocidental de concerto, um esforço de deco-
morro, do interior, do sertão, dos pampas,
lonização da educação musical.
do Pantanal, das aldeias, dos bares, das ga-
Esses três enfoques, conservatorial, esté- ragens, dos estúdios e aplicativos de celular.
tico e cultural, não são excludentes e podem As questões respectivas ao cotidiano e à
ser combinados com pesos variáveis nos di- cultura passaram a ser vistas como forma-
ferentes contextos. Como mencionei no iní- doras da concepção de música e de edu-
cio do texto, nossas escolhas pedagógicas cação musical. A mudança realizada da 2ª
e musicais são de extrema importância. Elas para a 3ª versão não é simplesmente uma
são impregnadas por pressupostos, crenças substituição de palavras: representa o em-
e nuances ideológicas, portanto, políticas. bate entre a visão da música que ganha
De uma canção despretensiosa ao orça- forma e se constrói no dia a dia da cultura
mento dos instrumentos utilizados, cada e a visão como expressão artística (p. 196),
escolha tem um pedigree epistemológico. sugestiva de uma aptidão diferenciada. No

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primeiro caso, a música é uma prerrogati-


va de todos e para todos e se aproxima da A música como
concepção cultural de educação musical. elemento fundante
No segundo caso, não necessariamente, no da identidade das
que tende à concepção conservatorial. Não
é porque a versão da BNCC que foi homo- culturas
logada enfraquece a concepção de música
como expressão humana que nós, educa-
dores musicais, temos que fazer o mesmo
na nossa prática.
Se não está claro para o professor a qual
concepção ele se alinha, basta um rápido
retrospecto das últimas aulas ministradas
para que ele se localize: como foram as au-
las? Que tipo de atividades, interações, ex-
pectativas foram propostas? Que resultados
foram alcançados e como foram avaliados?
Que repertório foi trabalhado: a tradição
europeia, o hit comercial do momento, cria-
ções dos alunos? O que foi enfatizado: a
Imagem do curta-metragem A primeira flauta.
questão técnica e os parâmetros do som? Fonte: A primeira... (2017).
A experiência estética, sensorial, sensível? O
contexto cultural, social e político? A minha Assista ao curta-metragem de
visão, que impregna minha escrita e minha animação A primeira flauta:
prática, é em grande parte estética; aposto https://www.youtube.com/
watch?v=U98blcScuFI
no poder da experiência com sonoridades
impactantes. É também fortemente cultural,
pela busca de validade e validação simbóli- Nesta proposta, vou me remeter ao texto
ca das singularidades das diversas culturas “A interdisciplinaridade da vida e a multidis-
musicais. Mas não me furto de lançar mão, ciplinaridade da música”, de minha autoria
quando apropriado, de estratégias da abor- (França, 2016, p. 89-94), publicado no volu-
dagem conservatorial para desvendar por me 7 da MEB. Ele se desenrola em torno do
que combinações sonoras soam vigorosa- livro de imagens A primeira flauta (França,
mente em nós, para identificar sonoridades 2013) e do respectivo curta-metragem de
que tornam as expressões culturais diferen- animação (A PRIMEIRA..., 2017). Na história,
tes entre si. Procuro conjugar essas três um menino dos tempos pré-históricos des-
tendências em propostas esteticamente cobre que é possível produzir sons ao so-
impactantes, culturalmente relevantes e prar um osso oco. Grupos vão sendo atraí-
tecnicamente acessíveis, para favorecer a dos pelos sons da flauta e passam a ensaiar
participação ativa dos alunos. Na próxima as primeiras danças, até que “o mundo in-
seção, compartilho uma proposta alinhada teiro” se renda à música. Trata-se de uma
com essa visão e que procura superar limi- leitura poética da universalidade da música
tações da BNCC ao interconectar Habilida- como expressão humana. O tema se abre
des e extrapolar, inclusive, para campos in- generosamente à abordagem interdiscipli-
terdisciplinares. nar, dada a inserção da música na vida e na
cultura que nos faz humanos.

BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 39


A história foi inspirada na descoberta de que surgirem; como se trata de um livro de
fragmentos de flautas de 35 mil anos feitas imagens, o reconto neste caso é uma ativi-
de marfim de mamute, ossos de aves e de dade central. A respeito do campo “Quanti-
urso. Elas possuem orifícios semelhantes
dades, relações e transformações”, podem
aos das flautas modernas, o que sugere
que nossos ancestrais exploravam ser traçadas conexões com a estrutura da
diferentes alturas e, assim, possivelmente história e do curta-metragem, sequências
tocavam melodias. dos eventos e linhas de tempo relaciona-
dos também a eventos da história familiar
das crianças; propriedades dos elementos,
como osso, vento e instrumentos, também
são pertinentes, assim como as combina-
ções de ritmo, andamento, timbres, textu-
ras e outros atributos da trilha sonora. Um
Fragmentos de flautas esculpidas em osso de abutre e de detalhamento de possibilidades ocuparia o
urso, respectivamente, encontrados na caverna Hohle Fels, na
Alemanha. espaço de outro artigo, certamente.
Fonte: Associated Press e Reuters.

Vídeo de réplica da flauta pré-histórica:


https://www.youtube.com/
watch?v=AZCWFcyxUhQ &t=7s

O trabalho com o livro e o curta-metra-


gem pode propiciar inúmeras experiências
de prática musical e discussão nos vários
segmentos escolares, mobilizando diversos
níveis de complexidade musical e profundi-
dade reflexiva. Na educação infantil, a ên-
fase será na leitura e na interpretação oral
da história e no fazer musical espontâneo
com foco no movimento e na exploração de
Apreciação do curta-metragem. Foto: Vinícius Eufrásio.
sonoridades. Podemos contemplar pratica-
mente todos os OADs do Campo de Expe-
riência “O eu, o outro e o nós”, em especial Nos anos iniciais do fundamental, a ên-
o EF03EO006; todos do campo “Corpo, fase se dará na experimentação e na reali-
gestos e movimentos”, exceto o 004 (ain- zação sonora, ressignificando o contexto
da que se aplique, indiretamente). Do cam- da história no cotidiano e em interação com
po “Traços, sons cores e formas”, o 001 e as demais formas de expressão artística e
o 003 são centrais; o 002 será trabalhado cultural, incluindo as diferentes formas de
se houver desdobramento para a notação interação corporal dos personagens com a
musical analógica; ainda, se a proposta in- música. À medida que os alunos vão cons-
cluir a produção de arte parietal e de arte- truindo as noções de tempo e espaço, as
fatos. Todos os OADs do campo “Escuta, dimensões histórica e social da origem e da
fala, pensamento e imaginação” podem ser função da música poderão ser problemati-
mobilizados em maior ou menor grau, de- zadas. Nos anos finais do fundamental, essa
pendendo do enfoque e das oportunidades perspectiva é ampliada em direção à diver-

40 | Cecília Cavalieri França


V. 10 Nº 12 2020

sidade cultural e à maior autonomia crítica vídeo pode envolver a criação de playlists,
e expressiva. A partir desse segmento, não o compartilhamento e a discussão sobre
cabe o trabalho com o livro; focamos no as peças que despertarem mais interesse,
curta-metragem e nos achados musicoló- apontando-lhes semelhanças e diferenças
gicos sobre os instrumentos pré-históricos. sonoras, corporais, emocionais, simbólicas e
Após a improvisação inicial, podemos am- outros aspectos.
pliar a discussão sobre o contexto da his-
Essa proposta tem sido realizada por
tória e elaborar a releitura da mesma com
mim e por vários colegas em escolas pú-
a criação de passos rítmicos. A proposta
blicas e privadas, em projetos sociais e
ganha corpo e pode se estender como um
estúdios particulares.1 No Quadro 2, as ati-
projeto durante várias aulas. Podemos apro-
vidades são cotejadas com os OADs e as
fundar a relação entre a música e o proces-
Habilidades propostas na BNCC para os
so de civilização das sociedades primitivas,
quatro segmentos. Esse exercício permite
trazendo o debate para a atualidade e ex-
visualizar como a vitalidade das experiên-
plorando rupturas e permanências. Essa
cias musicais não encontra contrapartida
discussão contribui para ressignificar a ex-
automática em um ou outro descritor, mas
periência corporal, vocal e instrumental da
abrange e integra diversos destes. Além das
história, abrindo o leque para a apreciação
propostas específicas de música, incluí des-
de áudios e vídeos impactantes de música
critores de outras artes (todos os que estão
e movimento conjugados, seja uma bateria
entre parênteses) e também diálogos in-
de uma escola de samba ou a dança dramá-
terdisciplinares (os que estão sublinhados).
tica Kecak, da Indonésia. Cabe uma aborda-
Para a leitura do quadro, o leitor pode se
gem da escuta mais detalhada que ajude a
reportar às matrizes da BNCC nestes links:
compreender por que uma música é esteti-
camente tão impactante para uns ou outros Educação infantil:
e como culturas musicais podem soar tão http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
abase/#infantil/osobjetivos-de-aprendiza-
diferentes entre si em função dos seus ma-
gem-e-desenvolvimento-para-aeducacao-
tizes situados no tempo e no espaço. -infantil

Link para o vídeo da Kecak Dance, ritual Fundamental – Anos iniciais:


da Ilha de Bali, Indonésia: https://www. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
youtube.com/watch?v=aGXcnWUqV-Y abase/#fundamental/arteno-ensino-funda-
mental-anos-iniciais-unidades-tematicas-
objetos-de-conhecimento-e-habilidades
Com os alunos do ensino médio, pode-
mos avançar o debate e dialogar com as Fundamental – Anos finais:
áreas de antropologia, sociologia, filosofia, http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
política, religião e cultura. O foco se dará abase/#fundamental/arteno-ensino-funda-
na perspectiva histórica e social da músi- mental-anos-finais-unidades-tematicas-ob-
ca como mediadora da formação da iden- jetosde-conhecimento-e-habilidades
tidade dos grupos, além de aproximações
com a contemporaneidade nas implicações Ensino médio:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
simbólicas, ritualísticas, estéticas, sociais e
abase/#medio/linguagense-suas-tecnolo-
políticas da música dentro das diversas cul- gias-no-ensino-medio-competencias-espe-
turas. A pesquisa de repertório em áudio e cificase-habilidades

1. Essas atividades foram realizadas em contextos urbanos da região Sudeste, com perfis socioeconômicos variados.

BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 41


CÓDIGOS DE OADs E HABILIDADES
Ed. Inf. Fund. Fund. Ensino
4-6 anos Iniciais Finais Médio

ATIVIDADES EI03... EF15AR... EF69AR... EM13LGG

Improvisação coletiva: o professor toca na flauta melodias (CG01) (08) (10) 20, 23 603
ou improvisos, ou coloca a gravação de um solo de (CG02) (11) 14,
flauta. Os alunos são estimulados a se comunicarem (CG03) 15,17
musicalmente com o solista improvisando movimentos TS01,
e percussão corporal em pequenos grupos, que depois TS03, (EF2)
podem interagir entre si em uma performance mais
extensa, com entrada e saída de grupos alternadamente,
com simultaneidades e silêncios regidos pelo professor.

Apresentação do livro A primeira flauta; leitura das (EO06) (01) (03)


imagens e reconto da história por um ou mais alunos; (EF01) (04)
comentários, observações, interpretação e discussão (EF03)
sobre opiniões diferentes, visando à construção de (EF04)
UKIPKƒECFQU

Discussão sobre o fazer musical em conjunto, na escola, (EF01) 13 16 (31) (101) 604
em família, com os amigos, em grupos musicais diversos.

Discussão sobre a notação do som do vento e da flauta, TS03 (02) 16


nas páginas 14 a 21 do livro, e realização com voz ou
aerofones.

Criação e realização coletiva de notações analógicas a (TS02) TS03 16


partir da história.

Análise e leitura de obras em notação analógica, como TS03 16 (04) 22 (102)


Snowforms, de M. Schafer, e Fontana Mix, de John Cage.

Interação com Artes visuais: apreciação, criação e releitura TS02 (01) (03) (01) (05)
de arte rupestre de sítios arqueológicos brasileiros e (04) (05) (06) (07)
estrangeiros, incluindo as “mãos em negativo”. (06) (25)

Apreciação do curta-metragem A primeira flauta. (CG01) (04) 13, 14, (03) (05) (101)(103)
Discussão sobre semelhanças e diferenças entre o livro, (CG02) 16 (23 (09) 16, 17, (104)(105)
o curta-metragem e as atividades de improvisação, (CG03) 20, 22 (32) (502) 601
sonorização e notação musical realizadas. TS01, (35)
TS03, EF02,
EF04

Releitura da história, com batimentos corporais, sons (CG01) (11) 14, 15, 20,21, 23 (201)(301)
vocais, instrumentos de percussão e movimentos (CG02) 17 (501)(503)
expressivos espontâneos ou ensaiados. (CF03) TS01 603, 604
TS03 (EF02)
(EF04)

Apreciação de áudios e vídeos que envolvam percussão TS03 13, 14 (24) 16, 18, 19, (102)(502)
instrumental e corporal, como dos grupos Barbatuques, (25) (28) 20 (25)
Stomp, danças indígenas, folclóricas e de outros matizes (34)
estéticos.

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V. 10 Nº 12 2020

Criação de combinações rítmicas e passos dança (CG01) (08) (10) (09) (10) (201)(301)
inspirados nas imagens; prática de batimentos e (CG02) (11) 14, 15, (12) (13) (501)(503)
sonoridades corporais; realização com os grupos (CG03) 17 (19) (20) 20, 23 (25) 603, 604
espalhados pela sala, criando um ambiente estereo- TS01 (21) (22) (29)
fônico. TS03, EF02,
EF04

Apreciação de músicas que exploram o contraste entre (EF04) 13, 14 (24) (09) 16, 18, 601, 602,
elementos percussivos e solo de flauta, como Tomarape- (EF05) (25) 19, 20 (34) 604
ba, de Egberto Gismonti, e Earth, do Uakti e outras.

Criação de audiopartituras, esquemas ou outros tipos de TS03 (02) 16 22 603


notação para as obras apreciadas.

Discussão sobre o contexto da história: como seria a (EF04) 13 16 (31) (101)


música tocada, e em que ocasiões ocorreriam? Qual seria (EF05) (33) (34)
a duração das músicas? Haveria cantos? Danças? Percus-
são corporal? Outros instrumentos além da flauta?

Realização corporal, percussiva e instrumental simultane- (CG01) (08) (10) (03) (09) (503) 601,
amente à exibição do curta. (CG02) (11) 14, (10) (12) 602, 603
(CG03) TS01 15,,17 (13) 20,
(EF02 23 (25) (29

Releitura da história com instrumentos de sopro e/ou TS01, TS03, 14, 15, 17 20, 23 (101)(102)
aerofones construídos pelos alunos, tambores variados EF02, EF04 (302) 601,
e outros; exploração de sonoridades para a realização do 604
som do vento; elaboração do som de soprar o osso.

Discussão sobre o papel da música na coletividade, 13 16 (31) (101)(102)


situações em que ela aproxima as pessoas; que tipo de (33) (34)
música seria tocada? Que sensações e sentimentos teria
despertado?

Interação com Artes visuais, Dança e Teatro: pesqui-sa (01) (02) (01) (02) (103)(104)
sobre outras manifestações artísticas da Pré-história, (03) (08) (03) (05) (105)(202)
notadamente do Paleolítico Superior, imagens e vídeos de (10) (20) (06) (07) (301)(302)
esculturas, da arte parietal, de adornos e outros. Releitura (21) (22) (09) (10) (502) 601,
das expressões artísticas do período, pesquisa de mate- (12) (13) 602, 603,
riais para criação de objetos e instrumentos, ensaio de 16, 22, 23 604
passos de danças primitivas, construção de exposição de (25) (29)
adornos e instalação de murais. (31)
(33) (34)

+PVGTCȊȆQEQOCUGSWKRGUFG)GQITCƒCG*KUVȕTKCUKVWCȊȆQ EF... EF... EM-


FGUUGUCEJCFQUPQGURCȊQIGQITȄƒEQGPQVGORQJKUVȕTKEQ 04HI02 06HI01 13CHS105
por meio da construção de mapas e de uma linha do tempo. 05HI08 06HI02
Discussão: de que materiais teriam sido feitos os primeiros 05HI10 06HI07
instrumentos musicais? Como teriam sido construídos e 04GE01 06HI08
como seriam tocados? Que avanços tecnológicos podem 02CI01 09GE03
ter influenciado o desenvolvimento de novos instrumentos? 02CI02
Por que só foram encontrados instrumentos de osso, 03CI01
dessa época? Ao longo de que escala de tempo esses
instrumentos teriam se desenvolvi-do? Quanto tempo
teria transcorrido entre os primeiros “sopros” e a reunião
de grupos em torno da música? É possível situar essas
informações em uma linha de tempo?

BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 43


Interação com Ciências (acústica): como a música deveria 14, 15, 17 EF06CI12
soar naquelas cavernas? Como os primitivos entenderiam
o eco? Teriam sentido medo? Exploração de efeitos de eco,
pesquisa sobre efeito Doppler, realização com grupos distri-
buídos pelo espaço, criando um ambiente estereofônico.

Discussão: como e por que a música aproximava 13 (08) 16 (101)(202)


pessoas? Que sensações e sentimentos ela teria (31) (33) (302)(303)
despertado? Por que ela teria o poder de fortalecer o (502) 601,
vínculo dentro das sociedades e entre elas? Have-ria 604
diferenças de gênero e de idade nos papéis musicais?
Haveria “plateia”? Serenatas? Danças ao redor do fogo
então descoberto? Será que havia mú-sicas favoritas
entre diferentes pessoas e grupos? Os indivíduos musicais
seriam tratados de maneira especial? Teriam “privilégios”?

Discussão: como a música pode ter contribuído para a (12) 16, (101)(202)
construção da identidade dos grupos sociais? 17, 18 (31) 604
(34)

Discussão: que conexões podemos tecer entre arte, (01) (02) (101)(102)
desenvolvimento humano, sociedade, política e cultura 16, 17 (31) (202)(204)
pré-histórica comparativamente à contemporaneidade? (33) (34) (302)(303)
Que inferências podemos fazer sobre o mundo simbólico, (305)(502)
espiritual, lúdico, estético e artístico das sociedades 601, 604
primitivas? Como esses questionamentos sobre o
papel da música podem se atualizar na educação e na EM...
sociedade contemporâneas visando à preservação de si CHS101
e do entorno, ao bem-estar, à alegria, ao culto, aos rituais, CHS103
à contemplação estética? Como a música compõe o CHS104
tecido da cultura que faz a mediação entre a experiência
individual e a coletiva?

Quadro 2: Atividades musicais e sua relação com códigos da BNCC.

Instalação de caverna sonorizada em mostra cultural. Projeto e


foto de Vinícius Eufrásio.

44 | Cecília Cavalieri França


V. 10 Nº 12 2020

Cueva de las Manos, Santa Cruz, Argentina.


Outras possibilidades e desdobramentos Fonte: Our ancient World.
podem surgir a partir das especificidades
dos contextos. Escolas do campo podem
promover interações com o patrimônio na-
tural e geológico local, experiências acús-
ticas em grutas em parceria com a área
de Ciências, por exemplo (no box há indi-
cações de vídeos incríveis). Estudantes do
Piauí podem visitar o Sítio Arqueológico da
Serra da Capivara, em projetos integrados
de História, Geografia, Artes visuais e Músi-
ca. A pintura das mãos em murais, à seme-
lhança do painel da Cueva de las Manos, na
Patagônia, Argentina, é um projeto de fácil
realização muito apreciado pelos alunos e Elaboração de mural coletivo. Fotos: Ricardo Poeira.

também bastante simbólico da impressão


da identidade e autoria, prerrogativas da
arte. A exploração de sonoridades de ins-
trumentos artesanais feitos de materiais
colhidos na natureza também desperta um
interesse mais perene pela pesquisa sonora.
Escolas com laboratórios de informática ou
estúdios podem utilizar programas de gra-
vação e edição para criação de trilhas so-
noras com esses instrumentos, e assim por
Projeto sobre instrumentos alternativos e pesquisa de materiais da
diante. natureza. Fotos: Vinícius Eufrásio.

BNCC e educação musical: muito barulho por nada? | 45


Vídeos de alguns sítios rente às incontáveis formas de ser e estar no
arqueológicos: mundo e de conhecê-lo. Essa premissa se
desdobra na necessidade de nos expressar-
Serra da Capivara, Piauí: https://globoplay.
mos dentro da nossa própria tradição e na
globo.com/v/6313412/?s=0s
disponibilidade de conhecer as demais – o
Cueva de las Manos, Argentina: https:// conhecimento de si e o reconhecimento do
www.youtube.com/watch?v=rfA9HXitdrc outro, reciprocamente. É improvável que
Sons de água pingando em gruta, com consigamos abordar uma grande varieda-
reverberação: https://www.youtube.com/ de de gêneros e expressões musicais no li-
watch?v=0m2dpBCPivk mitado espaço da nossa ação pedagógica,
Órgão de estalactites, na Virgínia, EUA: mas acredito que seja possível capacitar-
h t t p s : // w w w . y o u t u b e . c o m / mos nossos alunos quanto a essa disponi-
watch?v=paIJFddHS8k bilidade, ou seja, à condição de respeitar e
eventualmente fruir aquela música diversa
da sua e assim se apropriarem todos desse
espaço simbólico compartilhado.
O melhor arranjo Considerando, portanto, que a BNCC é
possível um arranjo possível, que matrizes são abs-
Espero que tenha sido possível observar trações, que currículos adquirem sentidos
como as atividades são fluidas, interconec- diversos nas interações com os alunos, po-
tadas, vívidas, imprevisíveis e estimulan- demos nos sentir encorajados a dialogar
tes, ao passo que os descritores são duros, com o documento e a não nos submeter
abstratos, fragmentados. Ainda que a Base automaticamente e acriticamente a ele. Po-
não tivesse problemas, ela continuaria sen- demos nos apropriar dos pontos positivos,
do uma base; quem constrói o currículo e incorporar às nossas reflexões e práticas
decide a respeito dos fazeres musicais são aspectos que talvez estejamos deixando de
os educadores diretamente envolvidos nas lado, mas não temos que dar passos atrás
respectivas escolas. Em vez de “nos espre- em práticas que já fazíamos bem simples-
mermos” em meia dúzia de descritores, mente para rezar na cartilha do documen-
creio que podemos nos manter fiéis a nós to, um arranjo possível, abstrato, generali-
mesmos, aos nossos alunos e ao estatuto zado, hipotético. O foco do nosso trabalho
intrínseco à música que nos diz respeito. É não são as matrizes de habilidades, não é o
hora de transcendermos a concepção de documento da BNCC, mas, sim, a música,
música anacrônica e fragmentária, ratifica- a relação das crianças e dos jovens com a
da pela BNCC, na qual a música é tida como música e o entendimento dos sentidos en-
uma instância abstrata e independente dos volvidos nessa relação. Naturalmente, cada
sujeitos, em favor de uma abordagem que um dos professores, contextos e alunos
a compreenda como uma ação subjetiva e contará suas próprias histórias.
criativa enraizada na cultura, com significa-
dos múltiplos e conexões potentes.
Dizer que música é expressão humana
implica que ela seja essencialmente cons-
tituinte da nossa natureza; que ela ganhe
forma e sonoridades específicas em cada
contexto; que seja multidimensional e ine-

46 | Cecília Cavalieri França


V. 10 Nº 12 2020

Autora Referências
A PRIMEIRA flauta. Direção: Simon Brethé e Ricardo Po-
eira. Produção: Cecília Cavalieri França e Ricardo Poeira.
Curta-metragem de animação. Belo Horizonte: MUS Pro-
dução e Poeira Estúdio, 2017.

Cecília Cavalieri BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum


França Curricular. Segunda versão revista. Brasília, MEC/Consed/
musproducao@gmail.com Undime, 2016. Disponível em: http://basenacionalcomum.
mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/bncc2versao.re-
vista.pdf. Acesso em: 5 jan. 2021.
Cecília Cavalieri França é educadora musi- BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum
cal, pesquisadora, compositora e escritora. Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília: MEC/
É Ph.D. e Mestre em Educação Musical pela Consed/Undime, 2018. Disponível em: http://basenacio-
Universidade de Londres, Especialista em nalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf.
Educação Musical e Bacharel em Piano pela
UFMG, onde também atuou como professo- FRANÇA, Cecília C. A primeira flauta. Belo Horizonte: Fino
ra. É fundadora e diretora da MUS Produção e Traço, 2013.
Consultoria em Educação Musical, onde atua FRANÇA, Cecília C. A Interdisciplinaridade da vida e a
com formação de professores, editoração e multidimensionalidade da música. Música na Educação
produção de conteúdo pedagógico. Autora Básica, Londrina, v. 7, n. 7/8, p. 86-95, 2016.
de inúmeras obras para educação musical, PEREIRA, Marcus Vinícius M. Traços da história do currí-
incluindo artigos publicados em diversos culo a partir da análise de livros didáticos para a educação
periódicos, CDs infantis autorais, obras para musical escolar. Revista da Abem, Londrina, v. 24, n. 37,
professores, livros didáticos para a esco- p. 17-34, jul./dez., 2016.
la regular, como a coleção Trilha da Música,
livros paradidáticos e de literatura infanto-
-juvenil, para ensino de piano e repertório de
canções, e curtas-metragens de animação.
Atua como consultora, palestrante e profes-
sora, especialmente nas áreas de desenvolvi-
mento musical e planejamento pedagógico.
www.ceciliacavalierifranca.com.br

Acompanhe meu canal no youtube


https://www.youtube.com/channel/UC0ar-
24Bet-W7vcCTIVS6qVw

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