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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:


o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

Silvia Valencich Frota

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,
especialidade de Cultura e Comunicação

2016
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS

O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:


o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

Silvia Valencich Frota

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,
especialidade de Cultura e Comunicação

Júri:
Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e
Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
- Doutor Fernando Ramallo Fernández, Professor Titular, Facultade de Filoloxia e Tradución da
Universidade de Vigo – Espanha:
- Doutora Marta Susana Filipe Alexandre, Professora Adjunta Convidada, Escola Superior de
Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria;
- Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
- Doutora Maria Teresa Barbieri de Ataíde Malafaia, Professora Associada, Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa.
- Doutor Manuel Amador Frias Martins, Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.

2016
Indicação de direitos de cópia

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm


licença não exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu
repositório institucional, esta tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso
mundial. A Faculdade de Letras da Universidade Lisboa e a Universidade de Lisboa estão
autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue para
qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização,
para efeitos de preservação e acesso.

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Aos meus pais

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Resumo
A língua, ainda hoje, figura como um importante e recorrente elemento de
identificação e, em especial, de identificação com uma certa identidade nacional. Neste
estudo, procura-se refletir sobre os diferentes modos como a relação entre língua e identidade
nacional é construída no âmbito do debate sobre a adoção do Acordo Ortográfico de Língua
Portuguesa, de 1990. Tal acordo, assinado por diferentes países, todos membros da CPLP
(Comunidade de Países de Língua Portuguesa), propõe, entre outros objetivos, a promoção da
unificação da grafia do português nos diversos países que o têm como língua oficial. Com
essa preocupação em mente, são analisados artigos de opinião sobre o acordo ortográfico,
publicados pelos jornais portugueses, em 2012.
O enquadramento teórico-metodológico adotado é o da análise do discurso, em sua
vertente crítica, entrelaçado com os princípios da linguística sistêmico-funcional. As
identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas numa perspectiva não essencialista,
que se fundamenta nos diferentes processos de contrução discursiva nos quais a língua
desempenha um papel relevante.
Parte-se de uma breve retrospectiva do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa,
centrada no papel da língua, para, a seguir, identificar-se o contexto português, naquilo que
interessa a este estudo. Passando-se à análise propriamente dita, identifica-se e analisa-se um
conjunto de representações associadas à ideia de pátria, nação, soberania, povo, cultura,
identidade e matriz, que são, neste estudo, caracterizados como “marcadores identitários”.
Também as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e
supranacionais são levadas em conta, num esforço de identificação de simetrias e assimetrias,
de movimentos de aproximação ou afastamento e de afirmação de força ou fraqueza, que, em
alguma medida, representam tentativas de caracterização de um “eu” e de um “outro”, sempre
marcadas por relações de poder.

Palavras-Chave: identidade nacional, cultura nacional, língua nacional, acordo


ortográfico, análise do discurso.

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Abstract
Language today still figures as an important and recurrent identification element and,
in particular, identification of a certain national identity. In this study, we try to realize the
different ways the relationship between language and national identity is built in the debate on
the adoption of the Portuguese spelling agreement (Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa
de 1990). The agreement that is signed by different countries all of them members of the
CPLP (Community of Portuguese speaking countries) aims to promote the unification of
Portuguese spelling among others objectives. Considering this, opinion articles on the spelling
agreement published by the Portuguese newspaper in 2012 are analyzed.
The theoretical and methodological framework adopted is that of discourse analysis, in
its critical perspective, intertwined with the principles of systemic functional linguistics.
National identities, in this context, are understood within a non-essentialist perspective that is
based on different discursive construction processes in which language plays an important
role.
The starting point is a brief review of the development of nationalisms in Europe,
centered on the role of language. Then the Portuguese context is characterized as far as it is
considered relevant to this study. Turning to the analysis itself, a set of representations, which
are characterized as "identity markers" in this study, are identifyied and analyzed. They are
associated with the idea of homeland, nation, sovereignty, people, culture, identity and matrix.
Also the relationship between Portugal and other national and supranational entities are taken
into account in an effort to identify symmetries and asymmetries, approach or distance
movements, strength or weakness positions, which, to some extent, represent attempts to
define an "I" and an "other" and always embody power relations.

Keywords: national identity, national culture, national language, spelling agreement,


discourse analysis.

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Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para que este projeto
chegasse ao fim: ao Manuel Frias Martins, pela primeira conversa sobre língua e identidade,
ainda antes do meu ingresso na FLUL; à Urbana Pereira, pela calorosa presença e pelos
constantes cuidados ao longo deste percurso; à Maria Krebber, pela amizade e cumplicidade,
que muito amenizaram as inseguranças, a solidão e as angústias que acompanham um projeto
como este. Por fim, e sobretudo, agradeço ao Carlos Gouveia pela orientação, pelo apoio e
pela amizade sempre.

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Índice

Introdução………………………………………………………………………. 3

PARTE I

Capítulo 1 – As identidades nacionais na Europa do século XXI ……………… 17

Capítulo 2 – Língua e identidade nacional……………………………………… 47

Capítulo 3 – A construção discursiva das identidades nacionais……………….. 77

PARTE II

Capítulo 4 – Contextualização e apresentação do corpus……………………….. 105

Capítulo 5 – Análise dos marcadores identitários………………………………. 129

Capítulo 6 – Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal 159

Capítulo 7 – Reflexão final……………………………………………………… 189

Conclusão……………………………………………………………………….. 211

Apêndice A……………………………………………………………………… 219

Apêndice B……………………………………………………………………… 223

Apêndice C……………………………………………………………………… 239

Apêndice D……………………………………………………………………… 249

Referências……………………………………………………………………… 263

Obs.: Anexos disponíveis apenas em suporte digital.

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Índice de Quadros

Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado 114


Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor 115
Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano 116
Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90 116
Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos 124
Quadro 5.1 – Marcadores identitários 131
Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências 132
Quadro 5.3 – Pátria 132
Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua 134
Quadro 5.5 – Nação 135
Quadro 5.6 – Acepções de nação 136
Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is 138
Quadro 5.8 – Povo 141
Quadro 5.9 – Classificação de povo 142
Quadro 5.10 – Cultura 145
Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura 145
Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is 147
Quadro 5.13 – Identidade 149
Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia 150
Quadro 5.15 – Relações de identidade 150
Quadro 5.16 – Matriz 152
Quadro 5.17 – Representações de matriz 154
Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo 155
Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas 162
Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas 162
Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação 163
Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria 164
Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria 164
Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao
lado de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas 165
Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:
referências explícitas e implícitas 166
Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único
interveniente 167
Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes 169
Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros
intervenientes 169
Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes 172
Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente 173
Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes 173
Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas 174
Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes 174
Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes 175
Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral 175
Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes 176
Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo 185

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Introdução
No final do século passado, apregoaram seu fim, mas, nesta segunda década do século
XXI, os Estados-Nação – e os nacionalismos que estão em suas respectivas origens – ainda
figuram como intervenientes relevantes neste jogo de azar que cria, desenvolve e regula
mercados globais de consumo de ideias, valores, produtos, capitais e, também, de pessoas, e
que constitui uma arena internacional de atuação social em sentido amplo.
No contexto europeu, aqui equiparado ao contexto da União Europeia, os
nacionalismos se fazem presentes na manutenção da divisão política dos Estados-membros
em unidades nacionais, nos discursos de afirmação e proteção de uma língua ou de uma
cultura nacional, nas plataformas políticas defendidas principalmente pelos partidos de
extrema-direita, nas campanhas de incentivo ao turismo, nas disputas esportivas
internacionais, nos concursos televisivos como o Eurovisão, entre tantos outros casos e
situações.
Os exemplos acima corroboram, em alguma medida, a tese de que os chamados
Estados-Nação ainda são importantes intervenientes no cenário internacional, mas não
implicam afirmar que os papéis desempenhados por eles não se tenham transformado ao
longo das últimas décadas. Como regra geral, parece haver uma maior concorrência entre as
situações em que o Estado-Nação age sozinho e aquelas em que atua em concerto com outros
Estados-Nação, ou seja, cada vez mais, os Estados são chamados a atuar como membros de
uma instituição ou organização internacional, ou nesse contexto, do que a agir em nome
próprio e individual.
Essas transformações do papel dos Estados-Nação, e dos nacionalismos propriamente
ditos, está diretamente relacionada com os diferentes processos de globalização que marcaram
especialmente o século XX e que seguem se desenvolvendo na atualidade. Tais processos
extrapolam as fronteiras nacionais, mas não necessariamente prescindem da ideia de nação.
Pelo contrário, muitas vezes parecem se valer dela, quando, por exemplo, se organizam em
Introdução

torno de acordos comerciais ou tratados internacionais ou, ainda, exploram as especificidades


das diferentes e diversificadas culturas nacionais. Nesses cenários, a unidade de negociação é
a unidade nacional, embora o resultado que se busque alcançar seja, em geral, muito mais
amplo.
Nesse mesmo sentido, mas no âmbito específico das políticas adotadas pela união
europeia, parece haver um esforço recorrente, com vistas a assegurar uma suposta soberania
ou independência nacional – entendidas, neste contexto, como direito à autodeterminação –
que, em geral, surge como um valor a ser protegido e preservado. Com tal afirmação, no
entanto, não se pretende corroborar essa tese nem polemizar em torno dela. Por ora, basta
reconhecer a existência de movimentos em sentidos diversos: os que afirmam que a cautela
adotada na definição das políticas europeias no que diz respeito à proteção das soberanias
nacionais pode ser entendida como desejável e saudável; os que a consideram, não mais
desejável, mas necessária e incontornável; ou, ainda, os que entendem tal cuidado como
excessivo e prejudicial para a construção de uma identidade europeia comum.
Nesse contexto de transformação dos nacionalismos, no entanto, seja essa
transformação conducente ao fim das nações ou não, interessa agora verificar o que acontece
com as chamadas identidades nacionais. Pensando-se especificamente nos critérios
identitários, isto é, nos elementos que, no passado, e em especial, ao longo do século XIX e na
primeira metade do século XX, foram frequentemente associados à construção das
identidades nacionais – como os conceitos de território (e fronteira), soberania, etnia (e raça),
povo, história (e memória) e língua entre outros –, interessa refletir sobre seus respectivos
usos nos dias de hoje.
A noção de território nacional como sendo o espaço físico onde se localiza
espacialmente a nação e que delimita sua área de atuação, associado à ideia de fronteira, ou
seja, de limites físicos e de controlo de acesso ao território nacional, é fortemente impactada
pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação que redefinem, de certo modo, a
própria noção de espaço, que agora se amplia para dar conta do mundo digital e do mundo
virtual.
Além disso, sob pressão dos processos de globalização que conduzem ao
estabelecimento de novos mercados e novas solidariedades, os quais, em muitos casos,
concretizam-se na criação de entidades multi, inter ou transnacionais, essas fronteiras se
deslocam para além dos estados nacionais, muitas vezes instaurando uma zona cinzenta, de
indefinição entre o território de um país e o do país vizinho. Exemplo dessa situação é a
União Europeia e o seu esforço de abertura e de livre circulação interna, levado a cabo pela

4
Introdução

atribuição de maior porosidade às fronteiras, ao ponto de, às vezes, estas se tornarem


transparentes ou mesmo invisíveis.
A ideia de soberania da nação, por sua vez, como direito de autodeterminação e de
livre arbítrio, ou seja, como o reconhecimento da sua capacidade de e da sua autoridade para
tomar decisões no âmbito do seu território, sem sofrer ingerências externas, é relativizada pelo
contexto sócio-econômico global, que instaura um novo jogo de forças e interdependências.
Apenas como exemplo dessas transformações, pode-se citar duas situações recorrentes: a
globalização dos mercados financeiros e a globalização dos meios de comunicação de massas.
Com a mobilidade do capital – que se traduz na internacionalização das unidades de
produção, das instituições financeiras, assim como dos mercados de consumo entre outros – e
a consequente criação de novos e ampliados fluxos que transcendem os limites e o controlo
quer das nações de origem, quer das nações de destino, estabelece-se uma forte relação de
interdependência caracterizada por maior instabilidade e riscos de contaminação entre países.
Nessas condições, se é verdade que uma crise econômica pode ser deflagrada pela ação (ou
omissão) de um único país, dificilmente pode ser contornada sem o consórcio de muitos
outros, ameaçados pelos riscos de contágio.
Na perspectiva da internacionalização dos meios de comunicação, que implica, por
exemplo, a circulação de imagens e mensagens em âmbito global – muitas vezes em tempo
real, desafiando o controlo e a censura locais –, estes concorrem para a construção de
reputação e imagem dos diferentes sujeitos nacionais, interferindo nas relações estabelecidas
entre nações, nas negociações internacionais, no desempenho financeiro e influenciando,
inclusive, decisões de natureza política.
Também o conceito de raça sofre um profundo revés, em parte em função da sua
apropriação pelos regimes totalitários da primeira metade do século XX, com destaque para o
nazismo, e das dramáticas consequências que acarretou. Posto de lado o conceito de raça, com
seu sentido pejorativo e sua carga negativa, é preciso encontrar uma maneira de suprir sua
ausência, corrigir seus defeitos. A ideia de etnia, como indicativo de uma origem comum, é a
que melhor parece corresponder a tais necessidades.
Mas também o conceito de etnia é transformado, como bem ilustra a reflexão de
Fredrik Barth (1998) sobre o tema. O autor apresenta o conceito de etnia, não mais como um
fato consumado, isto é, como uma caraterística inata e irrevogável de um indivíduo ou de um
grupo, mas sim como o resultado de um processo de seleção e descarte de traços avaliados
positiva ou negativamente, ou seja, também como resultado de um processo de construção. O

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Introdução

recurso à etnia, portanto, deixa de ser uma referência estática e eterna e torna-se em algo, em
alguma medida, volátil e passível de transformação ao longo do espaço-tempo.
Nesse mesmo sentido, a noção de povo como os autores, isto é, os criadores originais
de uma nação e, ao mesmo tempo, como os seus legítimos e autênticos herdeiros, também é
reconfigurada à luz dos processos de globalização e da intensificação dos movimentos
migratórios. Multiplicam-se, assim, os deslocamentos, modificando-se os desenhos das
cidades, que, aos poucos, transformam-se em espaços multiculturais.
Pessoas de diferentes nacionalidades convivem num mesmo espaço, interagem,
estranham-se, identificam-se, num constante movimento de atração e repulsa. Os direitos de
cidadania – conquistados pelos antes estrangeiros e agora cidadãos – ampliam a capacidade
de ação do indivíduo, equiparam o que antes era desigual, atenuam ou mesmo apagam as
diferenças. Em muitos países, partidários do jus solis, filhos de pais estrangeiros, nascidos no
país são considerados nacionais ou, ao menos, têm essa possibilidade ao seu dispor,
alimentando em alguma medida o cenário de concorrência entre os conceitos de povo (no viés
de uma partilha étnica) e cidadão (no viés de uma partilha de direitos), que se confundem em
certas situações e constrastam em outras.
A história, com sua forte carga temporal e de continuidade, também é reinventada, ao
lado da ideia de memória. A história deixa de ser o resgate ou o registro de fatos e
acontecimentos do passado e tranforma-se numa narrativa, isto é, numa versão motivada,
parcial e sempre inacabada desse passado. Torna-se, desse modo, objeto de disputa entre
indivíduos, instituições, ideologias, governos – e o mesmo pode-se afirmar da memória, seja
individual, seja coletiva.
As relações de poder entretecidas nessas narrativas de história-memória têm, afinal,
sua existência reconhecida, mesmo que nem sempre seus conteúdos sejam facilmente
identificáveis. Essa história-memória perde seus contornos essencialistas e afirma-se como
invenção. Agora, portanto, não mais se presta com tanta facilidade à comprovação
incontestável da existência secular de uma nação, recurso muito frequente no passado dos
nacionalismos.
Finalmente, resta referir o papel da língua como elemento de identificação, isto é, o
recurso à língua como critério de nacionalidade, que ainda parece estar em vigor. A
associação entre uma língua e uma nação está muitas vezes presente, por exemplo, nos
discursos de proteção à língua, seja ela minoritária ou não, contra o risco de extinção –
ameaçada por línguas mais fortes, como o inglês – ou de ser maculada ou contaminada por
expressões e palavras estrangeiras. Nesse sentido, não são incomuns iniciativas, às vezes no

6
Introdução

campo jurídico, que visam proibir o uso dos chamados estrangeirismos ou mesmo de instituir
multas pecuniárias por erros gramaticais – caracterizados como atentados contra a língua –
em contexto de publicidade ou de circulação pública de informação.
Também reforçam essa relação entre língua e identidade os discursos que atribuem
valor cultural e econômico às línguas, como, por exemplo, as iniciativas que procuram reunir
países que partilham uma mesma língua em busca, entre outras, de vantagens comerciais e
políticas, como a lusofonia ou a francofonia. Nesse contexto, a língua é entendida como
patrimônio ou bem passível de ser possuído e rentabilizado.
A associação entre língua e cultura também contribui para a valorização do papel das
chamadas línguas nacionais como força que une os indivíduos nacionais e os diferencia dos
estrangeiros ao estabelecer uma relação entre a língua e um certo caráter nacional, isto é, um
suposto padrão de comportamento cristalizado em representações, em geral idealizadas e
arquetípicas, que muitas vezes exercem grande influência nos processos de autoidentificação
e também no modo como a nação é percebida pelos outros.
Mas, se o caráter identitário da língua parece persistir na Europa atual, não se pode
negar que o contexto de uso das línguas se tenha transformado, até porque todos os critérios
acima indicados estão ligados e são interdependentes, fazendo com que a transformação de
um afete de algum modo os demais. Com os processos de globalização, o desenvolvimento
das tecnologias de comunicação, o aumento da mobilidade de dados, bens e pessoas e a
multiplicação das migrações, o contato entre línguas também se intensifica. A língua única,
como valor, perde espaço para a diversidade linguística – agora, é esta última que é
valorizada. O indivíduo monolíngue perde potencial competitivo face ao indivíduo plurilingue
tanto nos mercados de trabalho como na sociedade em geral.
No contexto europeu, o multilinguismo é a ideologia linguística adotada, embora não
isenta de contestação, o que significa dizer que a identidade europeia se constrói em torno da
diversidade linguística e não em torno da construção de uma só língua para a Europa (cf. a
Resolução do Conselho da União Europeia de 21 de novembro de 2008, sobre uma estratégia
europeia a favor do multilinguismo). Mas, nesse cenário, as línguas também podem assumir
diferentes papéis. Com o esbatimento das fronteiras físicas e a virtualização e fragmentação
do espaço no interior do continente, as línguas parecem se sobressair como uma espécie de
barreira natural, a separar ingleses, franceses, portugueses ou alemães. Em reforço a tais
discursos, a língua ainda figura como um importante canal de acesso ao exercício pleno da
cidadania, quando não à aquisição primeira dessa cidadania em muitos casos.

7
Introdução

Resta saber qual é o impacto dessas mudanças e transformações na relação entre


língua e nação, ou melhor, no modo como o indivíduo se vale da língua para construir sua
identidade nacional ou a de outrem. O objetivo desta pesquisa é refletir sobre esse tema no
contexto da União Europeia de hoje. Será que o potencial da língua como elemento de
identificação nacional realmente permanece? E, se permanece, mantém-se inalterado ou se
transforma? Nesse contexto, o que se pode dizer sobre a relação entre língua e identidade
nacional no âmbito do projeto europeu: ela surge como um empecilho para a construção de
uma identidade europeia ou consiste numa estratégia relevante para a sua construção?
Com tal objetivo em mente, analisa-se o caso de Portugal, às voltas com um acordo
ortográfico (AO) que visa uniformizar a grafia da língua entre os países lusófonos e que tem
suscitado polêmica no país, parte dela em torno de questões de identidade. Para desenvolver
essa reflexão, estuda-se o caráter identitário das discussões sobre o AO, a partir da análise de
artigos de opinião publicados na mídia impressa em Portugal.
A presente pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira, que reúne os capítulos
de 1 a 3, constrói-se o enquadramento teórico e metodológico que servirá de norte para o
desenvolvimento do estudo do caso português e, ao mesmo tempo, de contraponto para a
análise dos dados obtidos. Na segunda parte, que reúne os capítulos de 4 a 7, desenvolve-se a
análise de caso propriamente dita.
No primeiro capítulo, faz-se um recorte das teorias sobre as identidades a fim de se
delinear aquelas que são objeto deste estudo: as identidades nacionais. Parte-se da perspectiva
dos estudos culturais sobre o tema, explorando-se seu caráter transdisciplinar e,
especialmente, as relações entre identidade e modernidade, marcadas nos tempos atuais pela
ideia de crise, fragmentação e multiplicação, ou seja, discute-se o fim da identidade singular e
inteira, por um lado, e a configuração de um cenário de concorrência entre identidades
diversas, que ora se completam, ora se contradizem ou se anulam.
Dentre as identidades, desenvolve-se o conceito de identidade nacional, traçando-se
uma breve retrospectiva da história dos nacionalismos na Europa especialmente a partir do
século XIX. A ideia de nação como comunidade imaginada, proposta por Anderson (2006), é
o pano de fundo contra o qual se desenha essa identidade, num processo que mobiliza
diferentes critérios como os conceitos de raça, etnia, língua, território, povo, soberania,
cultura, história, memória entre outros.
A seguir, explora-se a relação entre identidade nacional e cultura – conceitos que, em
certos momentos, parecem se sobrepor. A própria definição de Anderson (2006: 4) de
nacionalismo como sendo um tipo especial de artefato cultural já aponta para essa

8
Introdução

interconexão. O recurso a um conjunto de valores, comportamentos, tradições, memórias,


visões de mundo e tantos outros elementos que podem ou não fazer parte dessa ideia de
cultura nacional serve também aos processos de identificação individual e coletiva, de
classificação de si mesmo e de outrem, de reconhecimento da igualdade e da diferença.
Por fim, essa reflexão sobre as identidades em geral e as identidades nacionais
especificamente debruça-se sobre a atualidade dos processos de globalização e seus impactos
sobre o conceito de nação e de identidade nacional. Tal contexto é em muito devedor da ideia
de que os nacionalismos estariam perto do seu fim, isto é, de que já não seriam a grande força
de transformação social que foram ao longo do século XIX e da primeira metade do século
XX, como destaca Hobsbawm (2012).
As identidades nacionais são ainda o foco do segundo capítulo, mas, desta vez, a
ênfase da análise recai especificamente sobre o papel da língua em sua construção. Segundo
Hobsbawm (2012), é nas décadas finais do século XIX que a língua adquire papel de destaque
na construção dos nacionalismos, configurando, assim, uma espécie de nacionalismo
linguístico. A máxima uma língua, uma nação conquista terreno e impulsiona a construção
das chamadas línguas nacionais, às quais é associado um ideário de pureza e superioridade em
relação às demais línguas, ou versões dela, faladas num dado território.
Mas, se a princípio parece ser a qualidade da língua como meio de comunicação e
expressão que se destaca, numa reflexão mais aprofundada sobre as identidades nacionais o
que chama a atenção é a forte carga simbólica que as línguas adquirem. Nesse sentido,
interessa analisar a ideia de língua como símbolo da nação e dos nacionalismos; de língua
como matéria-prima do indivíduo nacional, como edificadora de mundos, ou melhor, de
representações dele, conformando o espaço de ação da nação e do seu povo.
No espaço de interação entre língua e identidade nacional acima delineado, o conceito
de cultura também se faz presente. Aliás, muitas vezes parece difícil delimitar os campos de
ação de cada um desses conceitos – língua, identidade nacional e cultura – dada a forte
correlação estabelecida entre eles. A língua é identificada como elemente essencial da cultura
nacional, contribuindo para sua formação e constituindo-se no interior dessa cultura
simultaneamente. Cabe também à língua a importante função de transmissão dessa cultura
nacional – no bojo da qual se engendram e manifestam as identidades nacionais –, como se a
língua carregasse, isto é, transportasse cultura.
Nesse contexto, e levando-se em conta o projeto europeu, interessa refletir sobre essa
relação entre língua, identidade e cultura no âmbito da diversidade linguística, ou melhor, no
âmbito da ideologia ou política linguística adotada pela Europa: o multilinguismo. Na

9
Introdução

construção de uma identidade europeia, que papel a língua desempenha? Se as línguas


carregam cultura e se as identidades são dependentes desse contexto cultural, é possível
construir uma identidade singular para a Europa? É com essa discussão que se encerra o
segundo capítulo.
O terceiro capítulo é dedicado ao enquadramento teórico-metodológico propriamente
dito, que tem como ponto de partida a noção de discurso. Parte-se da proposta de Foucault
(1997), isto é, da ideia de discurso como modo de organização de significados, para explorar
o seu papel como elemento estruturante de e estruturado por relações sociais, transpassado por
relações de poder e disputas ideológicas.
De entre a amplitude de discursos possíveis, destacam-se aqueles produzidos e
veiculados pela mídia, isto é, os discursos midiáticos, uma vez que são estes os que
constituem o corpus desta pesquisa. Considerando-se as funções desempenhadas pela mídia
nas sociedades modernas e as relações sociais que ela estabelece e inspira, o discurso
midiático parece sobressair como elemento formador de opinião pública, conquistando, assim,
uma certa relevância.
Nesse contexto, as propostas de investigação apresentadas pela análise do discurso
ganham destaque e são elas que orientam esta investigação. A vertente da linguística
sistêmico-funcional é central nesta abordagem e serve como diretriz para o levantamento e
análise dos dados obtidos a partir de uma seleção de artigos de opinião publicados sobre o
acordo ortográfico nos jornais portugueses ao longo de 2012.
Por fim, explicita-se a posição assumida no estudo das identidades nacionais como
sendo a da construção discursiva. Afasta-se, assim, as visões essencialistas das identidades,
em geral produzidas em torno de certas representações recorrentes e resistentes à mudança, e
afirma-se o seu caráter de processo e construção, sempre dinâmico e em constante
transformação. Nesse contexto, as identidades são entendidas como tomadas de posição no
âmbito do discurso, em consonância com Tann (2010).
Com o quarto capítulo, tem início a segunda parte desta pesquisa, voltada
especificamente para a contextualização, a identificação, o tratamento e a análise de dados.
Parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica de Portugal, onde são
identificados alguns episódios potencialmente relevantes para a análise do papel da língua na
construção das identidades nacionais portuguesas, como a fixação das fronteiras do país e a
participação de Portugal na chamada era dos descobrimentos.
A seguir, é o contexto da língua que ganha relevância, mas, desta vez, a ênfase recai
sobre a atualidade. Neste século XXI, interessa observar que discursos se digladiam no debate

10
Introdução

sobre a língua portuguesa e sobre as suas perspectivas – ou não – de desenvolvimento,


valorização econômica, afirmação cultural entre tantas outras. Com essa análise, busca-se
refletir sobre o futuro da língua portuguesa como elemento de construção identitária das
diferentes nações que a adotam.
Em continuidade a essa reflexão, passa-se à apresentação, justificativa e descrição do
conjunto de dados que será analisado, isto é do corpus, que consiste em matérias de opinião
publicadas nos jornais portugueses, ao longo de 2012, sobre o acordo ortográfico, como já
referido anteriormente. Na análise desses textos, são considerados exclusivamente os
discursos de caráter identitário, alguns explícitos, outros não. Com essa afirmação, ficam
excluídos da análise muitos outros discursos sobre o acordo ortográfico, cuja natureza técnica,
jurídica ou política não apresentam, a priori, conotação identitária.
Por fim, encerra-se este capítulo com o delineamento das estratégias de análise, que
serão apresentadas de forma pormenorizada nos capítulos cinco e seis. Tais estratégias estão
divididas em duas partes principais. Na primeira delas, procura-se analisar certos elementos
que, com alguma frequência, surgem nos discursos dos nacionalismos. Na segunda, reflete-se
sobre as diferentes posições contruídas por e para Portugal na relação com outros países
citados nos textos.
No quinto capítulo, parte-se para a análise propriamente dita do corpus, que será
desenvolvida também no capítulo seguinte. Nesta primeira parte da análise, a perspectiva
adotada é a da identificação dos principais elementos – designados como marcadores
identitários – a serem mobilizados na construção de discursos em torno da ideia de identidade
nacional, em geral, e identidade nacional portuguesa em particular.
Pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz são os temas mobilizados
via tais marcadores, definidos em função de suas respectivas frequências ao longo do corpus
– verificada pela contagem de palavras do texto – e da sua relevância para os discursos e
teorias sobre os nacionalismos, elaboradas e desenvolvidas especialmente a partir do século
XIX, na Europa.
Por fim, analisa-se o modo como tais marcadores são utilizados, assim como os
discursos e representações de identidade nacional sinalizados por eles. Nesse processo,
procura-se realçar as relações estabelecidas entre os mesmos e o conceito de língua – aqui
entendido de forma abrangente para incluir a ideia de ortografia. O papel simbólico
desempenhado pela língua na construção das identidades nacionais é, assim, posto em
destaque.

11
Introdução

No sexto capítulo, a estratégia de análise desloca-se dos marcadores identitários para


se concentrar nas relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou
supracionais, com o intuito de se compreender melhor de que forma as identidades são
estabelecidas por via da construção da ideia de um ou vários outros. É dessa tensão entre um
eu e um outro que se pretende inferir o papel da língua como símbolo de uma certa identidade
nacional.
Com tal objetivo, primeiro busca-se identificar os discursos que relacionam Portugal a
outras entidades nacionais e supranacionais, para, a seguir, analisar tais relações em função
das simetrias e assimetrias que são estabelecidas. Nos casos das relações de simetria, isto é, de
equivalência de forças ou posições, estas são classificadas como positivas ou negativas,
dependendo do modo como são valoradas em seus respectivos contextos. Nos casos das
relações de assimetria, busca-se identificar que posição Portugal ocupa: se o pólo forte –
relação assimétrica em que Portugal assume posição de vantagem – ou o pólo fraco – relação
assimétrica em que Portugal ocupa posição de desvantagem.
Por fim, tais relações – simétricas e assimétricas – são analisadas em conjunto, de
forma constrastada, de modo a se construir um panorama alargado das diversas relações
estabelecidas entre Portugal – na perspectiva do eu – e diferentes entidades nacionais ou
supranacionais – na perspectiva do outro. Os principais resultados identificados a partir dessa
ação são reunidos num quadro-resumo.
No sétimo e último capítulo, busca-se relacionar os discursos teóricos desenvolvidos
nos capítulos 1 a 3 às análises de dados desenvolvidas nos capítulos 4 a 6, numa perspectiva
comparada. Considerando-se, portanto, a evolução dos conceitos de identidade e de
identidade nacional, pretende-se compreender melhor que papel a língua, como símbolo,
desempenha hoje na construção dessas identidades no contexto europeu.
Com essa finalidade, retomam-se os conceitos estudados no âmbito dos marcadores
identitários, que são agora novamente analisados à luz do conjunto de resultados obtidos e
dentro do enquadramento teórico-metodológico definido para esta pesquisa. Do mesmo modo,
os diferentes discursos de representação de Portugal, que afloram na perspectiva da
comparação entre o país e outras entidades nacionais e supranacionais, são mais uma vez
avaliados.
Por fim, a partir do conjunto de dados, conceitos, discursos e representações reunidos
e construídos ao longo desta pesquisa, busca-se refletir sobre o conceito de identidade
nacional hoje e o espaço ocupado pelas línguas, numa perspectiva simbólica, em sua
construção. No presente cenário, propõe-se o exercício do questionamento das forças e

12
Introdução

fraquezas que são atribuídas às identidades nacionais, assim como das oportunidades e
ameaças que se lhe apresentam.

13
PARTE I
Capítulo 1
As identidades nacionais na Europa do século XXI

Identidade e modernidade

Identidade nacional

Identidade nacional e cultura

Identidade nacional e globalização


Identidade é uma palavra recorrente nos discursos atuais, tanto na academia, como nos
jornais, na televisão, no cinema, nos videojogos, na internet, nas conversas do dia-a-dia, nos
consultórios médicos. No entanto, tanta insistência em torno do seu uso – às vezes abusivo –
não torna mais fácil a sua definição; pelo contrário. Identidade parece ser mais uma noção do
que um conceito propriamente dito, muitas vezes confundindo-se com subjetividade,
personalidade, imagem, cultura, comunidade entre tantos outros termos. Ainda assim, apesar
desses contornos fluidos e difusos, surge como tema central nas discussões sobre a
modernidade – aqui entendida como os tempos atuais (ou, mais precisamente, como
modernidade tardia ou pós-modernidade).
Este capítulo se inicia precisamente com uma reflexão sobre a ideia de identidade na
modernidade. A partir dos estudos de Hall (2014), entre outros, procura-se explorar os papéis
desempenhados pelas identidades na caracterização da atualidade. Identidades múltiplas ou
identidades fragmentadas? Identidades em crise ou a era das identidades? Identidades
líquidas? Esses são alguns dos temas que orientam a discussão.
Parte-se do princípio de que o debate sobre as identidades é prolífico e pode assumir
contornos distintos a partir das perspectivas que sejam adotadas. Identidades de gênero, etária,
religiosa, étnica, profissional são apenas algumas delas, entre as quais destaca-se as
identidades nacionais, que serão aqui analisadas. Com essa finalidade, parte-se da elaboração
de uma breve retrospectiva histórica dos nacionalismos na Europa, explora-se o tema das
identidades nacionais e alguns dos seus possíveis significados.
Nesse contexto, importa ressaltar que, não raras vezes, as identidades nacionais se
confundem com o conceito de cultura ou identidade cultural. Nesses casos, identidade
nacional e identidade cultural passam a indicar uma mesma coisa, girando em torno da
construção de uma suposta cultura nacional como recurso de identificação individual e
coletiva. Essas relações entre cultura e identidade são analisadas na tentativa de se melhor
compreender os significados possíves das identidades nacionais hoje.
As identidades nacionais na Europa do século XXI

Por fim, na “Europa da Nações”, engajada num processo de integração, em diferentes


níveis, entre nações soberanas e na construção de uma entidade supranacional, interessa
refletir sobre o que acontece com as identidades nacionais. Mais do que isso, na era da
globalização, pode-se ainda falar em identidades nacionais? Essas são algumas das questões
que se pretende discutir ao final deste capítulo.
O objetivo deste capítulo é, portanto, introduzir o tema das identidades e, mais
especificamente, das identidades nacionais, a partir de uma reflexão teórica e de uma breve
retrospectiva do desenvolvimento e transformação da ideia de identidade. Entre tantos
caminhos possíveis, procura-se, aqui, traçar um pequeno recorte que servirá como ponto de
partida para este estudo.

Identidade e Modernidade

O conceito de identidade é historicamente situado. Essa afirmação, que, a princípio,


pode parecer banal e desnecessária, marca uma posição que deve ser explicitada desde já: as
identidades não são inatas nem eternas; não são uma força da natureza ou um fato à espera de
constatação. Na maioria das vezes, quando se fala em identidade, seja na esfera pública, seja
na privada, em geral dá-se como certo o mútuo entendimento; mas convém frisar que tal se dá
menos em função de um conhecimento partilhado e indisputado do seu significado do que
pela operação de um mecanismo de naturalização e essencialização que incorpora as
identidades aos discursos da atualidade.
Para refletir sobre o tema, pode-se partir, por exemplo, acompanhando Hall (2014), da
Europa do iluminismo. O paradigma da racionalidade, que aflora no século das luzes, traz à
tona o sujeito racional, movimento este bem representado pela máxima de Descartes: “Penso,
logo existo”. Uma certa noção de individualidade ganha corpo e se propaga no espaço – em
especial, no espaço urbano, com o desenvolvimento das cidades. É nas cidades que o sujeito
se depara com uma infinidade de outros: rostos, vozes e movimentos que passam, muitas
vezes, sem retorno.
Se, no espaço rural, isto é, no campo, a vida avança entre cores, odores e vozes
conhecidas, o mesmo não acontece nas cidades. A consciência de si e da diferença, no
reconhecimento de um ou muitos outros, está no cerne dessa primeira noção de identidade,
tendo a razão ou a racionalidade como motor e justificativa. Como bem destaca Benjamim

20
As identidades nacionais na Europa do século XXI

(2006: 40), citando Georg Simmel, o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo
constitui um bom exemplo desse estranhamento no contato com o outro e do incômodo que
provoca:

“As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades… caracterizam-se por um
evidente predomínio da actividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste
estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros,
dos comboios dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se
encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem
dizerem uma palavra.” A nova situação não era, como reconhece Simmel, nada
tranquilizadora.

Como descreve Hall (2014: 17-22), o crescimento e a multiplicação das cidades,


associados à crescente complexidade da vida social e do nível de organização necessário para
mantê-la em funcionamento e sustentá-la, implicam o estabelecimento de novas fidelidades.
O indivíduo racional, pouco a pouco, cede seu lugar ao sujeito social, num deslocamento que
parece refletir as novas exigências e capacidades inerentes e necessárias à vida em grupos
alargados e heterogêneos, ou seja, em círculos sociais ampliados.
Os processos de socialização, a formação de e a interação entre grupos e as novas
relações de poder operam sobre aquele indíviduo racional, transformando-o em sujeito social,
que, por sua vez, desempenha novos papéis em sociedade. Esses novos papéis ou identidades
sociais fornecem, em alguma medida, estabilidade e segurança, proporcionando uma sensação
de conforto e de pacificação de conflitos, ao instilarem no sistema um certo grau de
previsibilidade e de expectativas pré-fixadas.
Do indivíduo racional ao sujeito social, chega-se ao século XX, marcado, ao menos na
perspectiva europeia, por duas grandes guerras em sua primeira metade e pelo despoletar de
movimentos de acirramento e multiplicação de contatos entre pessoas, grupos e entidades
(associações, instituições e organismos de natureza diversa), identificados como processos de
globalização, que provocariam um forte impacto no tecido social, promovendo profundas
transformações, especialmente nas últimas décadas do século passado e neste início de século
XXI.
A noção de identidade – em suas diferentes versões – vai tomando forma ao longo
dessas transformações, sem que seja possível (ou mesmo importante) fixar um ponto de
partida. Apenas como referência, vale a pena notar que no vocabulário de termos relevantes
em cultura e sociedade (Keywords: A Vocabulary of Culture and Society), de Raymond
Williams (1981), publicado em 1976, o verbete “identidade” sequer aparece. No entanto, em

21
As identidades nacionais na Europa do século XXI

sua versão revista e ampliada (New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society),
editada por Tony Bennett, Lawrence Grossberg, Meaghan Morris, publicada em 2005, o
verbete “identidade”, elaborado por Kevin Robins (Bennett et al, 2005), não só é incluído
como aparece com algum destaque.
A perspectiva adotada por Robins, em tal verbete, é a da identidade como
identificação, isto é, como uma percepção de igualdade individual ou coletiva, que
supostamente se mantém inalterada ao longo do tempo. Essa ideia de permanência contida na
ideia de continuidade atuaria como uma espécie de estratégia de organização da complexidade
da vida moderna tanto no campo subjetivo (psicológico) como social. Os caráteres de unidade
e continuidade das identidades serviriam de contraponto ao pluralismo, à diversidade e à
transformação tão característicos desta modernidade tardia:

Identity is to do with the imagined sameness of a person or of a social group at all times and
circumstances; about a person or a group being, and being able to continue to be, itself and not
someone or something else. Identity may be regarded as a fiction, intended to put an orderly
pattern and narrative on the actual complexity and multitudinous nature of both psychological
and social worlds. The question of identity centers on the assertion of principles of unity, as
opposed to pluralism and diversity, and of continuity, as opposed to chance and transformation.
(Bennet et al, 2005).

Essa definição de identidade é apenas uma entre tantas possíveis, uma vez que os
estudos de identidade são objeto de disciplinas diversas como a sociologia, a psicologia, a
antropologia e os estudos culturais em meio a outras possibilidades. A abordagem adotada
nesta pesquisa, entretanto, é a dos estudos culturais, que não só reconhece os diferentes vieses
adotados por áreas de conhecimento distintas, como se vale deles para construir sua reflexão –
tarefa que pode ser desenvolvida a partir de estratégias diferentes e que, portanto, deve ser
clarificada. Com tal intutito, propõe-se aqui pensar-se em três categorias distintas,
identificadas como “multidisciplinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”.
Entende-se a multidisciplinaridade como a opção que se vale de diferentes áreas do
conhecimento na análise de um dado objeto ou na reflexão sobre um tema qualquer. Nessa
perspectiva, a divisão do conhecimento em áreas distintas e estanques é assumida à partida e
respeitada. O resultado obtido é uma espécie de soma das diferentes mais-valias oferecidas
por cada área. Ao longo desse processo e segundo seus críticos, faz-se presente o receio de
contaminação entre elas, associado ao risco de perda de rigor científico ou de coerência
teórico-metodológica.

22
As identidades nacionais na Europa do século XXI

Entende-se a interdisciplinaridade como a opção que, embora também opere a partir


das múltiplas disciplinas, não reconhece a existência de limites claros e definidos entre elas.
Pelo contrário, reconhece o contato e a sobreposição, ou seja, a existência de um espaço
liminar, valorado positivamente e explorado nessa perspectiva. No entanto, segue
reconhecendo a divisão do conhecimento em áreas de saber com suas características e
especificidades.
Entende-se a transdisciplinaridade como a opção que rompe com a clássica divisão do
conhecimento em disciplinas independentes, construindo-se a partir de diferentes teorias e
ideias de origens diversas. Não se quer aqui pôr em causa a classificação e divisão do
conhecimento para fins didáticos – esse não é o tema em discussão. O que se reclama é uma
perspectiva de conjunto, que trabalha a partir de ideias e reflexões, recusando-se à
classificação tradicional ou mesmo à ideia da classificação como um fim em si mesma – a
classificação é aqui entendida como um recurso de raciocínio, estratégia de reflexão. Há um
potencial de transformação que é valorizado nessa abordagem, sem que isso signifique
abdicar do rigor científico ou da coerência teórico-metodológica – embora, muito
provavelmente, atribuindo-se a tais termos significados em alguma medida diferentes dos
tradicionais.
A perspectiva da transdisciplinaridade, no enquadramento dos estudos culturais, é
aquela adotada nesta pesquisa, o que não implica desconsideração pelos riscos inerentes à
transposição de um conceito de uma área para outra. Considera-se, no entanto, que um
conceito – ou uma ideia, um pensamento, uma reflexão, uma teoria – é indissociável do seu
contexto, isto é, do contexto no qual é produzido. Desconsiderar tal relação, impossibilita esse
exercício nos moldes propostos. Em outras palavras, o que se defende é que o conhecimento é
construído a partir do diálogo, da relação e do embate entre ideias. Partir de uma ideia
desenvolvida por outro/s, apropriar-se dela e transformá-la é atividade inerente à produção do
conhecimento e não uma ameaça à mesma.
Claro que não se está isento do risco de se construir ideias ou relações inconsistentes
ou incoerentes, que, nesse caso, logo serão constestadas, criticadas, descartadas ou
transformadas. Mas tal movimento é salutar para o desenvolvimento e a produção de
conhecimento. Também é preciso considerar que, muitas vezes, compreender mal significa
simplesmente discordar da corrente dominante, isto é, compreender diferentemente de outros
ou não conseguir convencer seus pares da validade e pertinência de uma perspectiva – isso se
dá em função de vários fatores, que, em geral, envolvem relações de poder, prestígio e
posição de quem fala ou de contra quem se fala.

23
As identidades nacionais na Europa do século XXI

A discussão em torno dos conceitos de multi, inter e transdiciplinaridade, além de


controversa, não é, no entanto, objeto deste estudo. O que se pretende é simplesmente
explicitar a posição aqui adotada. Feito esse alerta e esclarecido tal ponto, retoma-se a
discussão sobre as identidades no contexto atual, caracterizado como pós-modernidade ou
modernidade tardia.
Em A Condição Pós-Moderna (1986), Lyotard reflete sobre os tempos atuais,
marcados pelo aumento da complexidade das relações sociais entre sujeitos e pela
fragmentação e multiplicação dos centros. É o momento que representa o suspiro final das
grandes narrativas que caracterizavam o período que lhe antecede, ou seja, o fim dos
discursos com pretensão de generalidade e universalidade que serviam de justificativa e de
estrutura para uma dada sociedade – não mais a busca por regras gerais, aplicáveis a toda
multiplicidade e complexidade de situações e casos, mas sim o caso específico e particular,
sempre contingente.
Para o autor, esse cenário constitui uma mudança, uma transformação suficientemente
relevante para marcar uma distinção entre a noção de modernidade e de pós-modernidade,
também chamada de modernidade tardia – expressões utilizadas para denominar o período
que se estende da segunda metade do século XX até a atualidade. No âmbito deste trabalho,
como regra geral, as referências à modernidade, contemporaneidade e modernidade tardia
remetem para o tempo presente.
É nesse contexto da modernidade tardia que Stuart Hall (2014: 22-28) afirma que as
identidades perdem seu centro, num processo marcado, principalmente, por cinco
movimentos: o pensamento marxista, o surgimento da psicanálise, a semiologia de Saussure,
as ordens do discurso de Foucault e as teorias feministas. Essa afirmação se assenta num
cenário anterior no qual as identidades teriam adquirido uma certa estabilidade ou fixidez ou,
ao menos, seriam assim percebidas.
Tanto o pensamento marxista, desde o século XIX, como os movimentos feministas, a
partir dos anos 60 do século XX, ao promoverem um novo tipo de identidade ampliada,
colaboram para esse processo de deslocamento do centro (ou descentramento) das
identidades. A promoção de uma identidade da classe trabalhadora assim como a de uma
identidade feminina promovem a ideia de identidade desterritorializada e descontínua, isto é,
estabelecem uma relação identidade/diferença que não depende da vinculação a um território
ou a uma progressão temporal contínua. Pressupõem uma identidade motivada pelo status
social e econômico – pela ideia/condição de trabalhador – ou pelo status social e biológico –
pela ideia/condição de mulher.

24
As identidades nacionais na Europa do século XXI

As teorias psicanalíticas, a partir de Freud e depois com Lacan, promovem a noção de


subjetividade, ao mesmo tempo em que ressaltam o papel do inconsciente no
desenvolvimento humano e na construção do indivíduo. Os discursos em torno da supremacia
da razão e do predomínio do indivíduo racional na construção da identidade são fortemente
influenciados pela noção de inconsciente e da sua relevância na formação do ser humano.
A semiologia de Saussure, ao se debruçar sobre os modos de criação e troca de
significados, ou seja, sobre os processos de comunicação, põe em evidência a complexidade
da interação humana e sua dependência de um sistema de trocas simbólicas. A língua é
afirmada como um sistema social e simbólico, dotado de um repertório de significados –
construídos e reconstruídos ao longo do tempo-espaço – do qual o indivíduo se vale para
viver em sociedade.
A teoria sociológica de Foucault, que posiciona o discurso como elemento estruturante
da sociedade, põe em causa mais uma vez a autonomia do indivíduo racional, suspendendo a
invisibilidade, ou melhor, revelando as redes sociais (poder/saber) que limitam e delimitam a
possibilidade de ação e manifestação humanas. São as ordens do discurso que pré-determinam
o que pode ou não ser dito, de que modo, por quem, em que contexto, com qual valor, numa
espécie de condicionamento da autonomia e do poder de agência do indivíduo.
Em comum, todas elas anunciam o fim da supremacia do indivíduo racional como o
principal – ou mesmo, o único – ator social, dotado de autonomia, capaz de determinar seu
próprio destino, contrariando, de certo modo, a máxima de Descartes (“Penso, logo existo”).
Fazem-no ao trazer à luz uma série de outras perspectivas e forças que interagem e
condicionam em algum grau a vida em sociedade. O indivíduo torna-se sujeito numa dupla
perspectiva: do ser e do estar, ou seja, quer numa perspectiva estática e essencialista, quer
numa perspectiva dinâmica e performativa.
A ideia de fragmentação, recorrente nos discursos da modernidade tardia, parte do
paradigma de uma identidade una e indivisa que se perde ou se parte, ou seja, de identidades
que se fragmentam. Com o fim das grandes narrativas, a narrativa das identidades, em sua
completude, também se perde. A complexidade da vida moderna, a multiplicação das
variáveis que regulam as relações entre sujeitos, as difíceis e confusas equações de
interdependência entre fatores e o consequente aumento da especialização, associado ao
aumento da quantidade de informação e dados a circular, permitiriam no máximo vistas
parciais, fragmentos que poderiam ou não ser combinados.
Essas identidades fragmentadas instauram um estado de tensão permanente, quer em
função de um exercício incessante de combinação e conjugação das partes, nem sempre

25
As identidades nacionais na Europa do século XXI

conseguido, mas muitas vezes desejado – numa busca pela estabilidade ou pelo equilíbrio –,
quer em função da ansiedade gerada pela tentativa de se reconstituir um todo indiviso – meta,
agora, impossível de ser alcançada.
Essas tensões transparecem, muitas vezes, nos discursos de afirmação de uma certa
“crise das identidades” que se teria instalado nas sociedades modernas. A perda de pontos de
referência seguros e estáveis, além da multiplicação das possibilidades de identificação,
provocam insegurança e ansiedade no sujeito social moderno, que vivencia essa situação
como crise.
Ora em paralelo, ora em concorrência com a ideia de fragmentação das identidades –
que pressupõe, como já afirmado, a existência anterior de um todo, de uma totalidade, que se
perde – está a noção de multiplicação: não mais identidades fragmentadas, mas sim
identidades múltiplas. Para dar conta da complexidade do sistema social é preciso se
multiplicar – não mais fragmentar o todo, mas sim multiplicá-lo em sua inteireza. Trata-se, na
verdade, de uma justificativa ou estratégia diferente para dar conta do mesmo resultado: o fim
de uma identidade una e indivisível e o desenvolvimento de novas e diversas identidades.
Essa perspectiva parece inverter a ideia de crise convertendo-a em oportunidade. A
modernidade tardia não é mais caracterizada pela “crise das identidades”, mas sim como a
“era das identidades” – em vez da fragmentação, a multiplicação. Para fazer face à
complexidade da modernidade, o indivíduo se vale de várias identidades distintas e
independentes: de gênero, etária, profissional, nacional, etc.
Nesse sentido, cada indivíduo teria um repertório de identidades à sua disposição, que
poderiam ser utilizadas sempre que necessário, segundo o critério de cada um, para melhor
atender as necessidades da vida em sociedade. Na era das identidades, o indivíduo exercitaria
seu poder de escolha e sua capacidade de compra, como se de um bom consumidor se
tratasse, beneficiando-se de um livre-mercado das identidades (Billig, 1995: 134). A
identidade de consumidor, desse modo, ganharia proeminência, especialmente numa
sociedade caracterizada como sociedade de consumo.
A ideia de livre-mercado das identidades acentua a noção de voluntarismo e a
perspectiva sócio-econômica associadas ao tema ao delinear um cenário em que as
identidades se transformam em mercadoria, passíveis de serem adquiridas ou descartadas em
função do poder aquisitivo do consumidor e da sua vontade. Essa contaminação da lógica de
mercado a tantas outras esferas da vida social é também uma característica dos discursos da
modernidade.

26
As identidades nacionais na Europa do século XXI

A metáfora da liquidez, tão bem explorada por Bauman (2006), parece útil na
caracterização das identidades nesse contexto de modernidade tardia como “identidades
líquidas”. A matéria em estado sólido se transforma. O estado de liquidez acentua o caráter
fluido e de certo modo volátil das identidades, que estão em permanente estado de
transformação e acentua também sua flexibilidade, isto é, a sua capacidade de assumir formas
diferentes em função do seu entorno.
O que as perspectivas da crise e da era das identidades têm em comum, no entanto, é a
valorização do papel desempenhado por elas nas sociedades atuais. Essa afirmação é em parte
corroborada pelo volume de trabalhos produzidos em torno do tema e pela frequência dos
discursos que dela se valem. Apesar da grande variedade de posições e conceitos veiculados,
é possível refletir sobre o tema a partir de duas visões antagônicas que atravessam essas
discussões: as visões essencialistas e as visões não-essencialistas das identidades.
Considerando-se os dois extremos, pode-se caracterizar as visões essencialistas como
aquelas que partem da ideia de identidade como algo dado, algo que nasce com o indivíduo e
o acompanha – mesmo à sua revelia – até a morte. Faz dele o que ele é, regula seus atos,
determina seu comportamento, isto é, constitui sua essência. Sendo assim, não pode ser
modificada ou transformada. Essas perspectivas retiram poder e autonomia do indivíduo, que
passa a estar sujeito a essa identidade, e são compatíveis com os discursos de descoberta, isto
é, da ideia do indivíduo que parte em busca de si mesmo.
Do lado oposto, estão as visões não-essencialistas que negam o caráter inato das
identidades, afirmando seu potencial de criação e transformação. O indivíduo não nasce com
uma identidade, mas sim a constrói na relação com si mesmo e com os outros. As identidades
resultariam, assim, de um processo de construção. No âmbito dessas teorias, esses processos
de construção podem ser descritos e caracterizados de formas bastante distintas, mas, em
geral, em todas elas o indivíduo adquire algum poder de participação – maior ou menor, mais
ou menos ativo, mais ou menos condicionado. O indivíduo, desse modo, pode escapar à
situação de sujeição e passar à posição de sujeito.
A grande maioria das teorias e reflexões sobre as identidades em vigor hoje, no
entanto, parecem se situar entre um extremo e outro, combinando perspectivas essencialistas e
não-essencialistas. Partindo-se dessa premissa, pode-se delinear algumas das concepções mais
frequentes a partir de duas analogias: a do núcleo-duro e a da moda, que serão desenvolvidas
a seguir.
Uma dessas perspectivas de construção identitária pode ser pensada recorrendo-se a
uma analogia com o conceito de “núcleo-duro”, retirado do direito. O sistema jurídico-

27
As identidades nacionais na Europa do século XXI

constitucional é construído a partir de um núcleo-duro, isto é, de um conjunto de regras e


valores fundamentais – estáveis e, praticamente, inalteráveis – aos quais outras normas
jurídicas são associadas e incorporadas, sendo consideradas válidas apenas se e à medida que
forem compatíveis com ele. Do mesmo modo, as identidades seriam constituídas a partir de
um núcleo-duro, de um centro irradiador de controlo, validade e sentido – perspectiva
essencialista – em torno do qual o indivíduo construiria sua identidade ao longo da vida –
perspectiva não-essencialista.
Na segunda perspectiva, recorrendo-se à moda como metáfora, as identidades seriam
como as roupas, um traje que se veste e se despe segundo o livre-arbítrio, a escolha, o humor
do indivíduo – para cada situação, um traje diferente. Nesse modelo, a noção de estilo permite
uma certa ligação entre um traje e outro, criando, em seu conjunto, alguma unidade. Desse
modo, seria possível reconhecer o indivíduo independentemente do traje utilizado ao se
reconhecer o seu estilo. Embora esse modelo se aproxime mais das visões não-essencialistas,
quando comparado com o anterior, ainda é compatível com um viés de essência, presente na
definição de cada traje a ser utilizado, ou seja, na definição de um repertório de identidades
pré-fabricadas à disposição do indivíduo.
A perspectiva adotada nesta pesquisa parte de uma visão não-essencialista das
identidades, em que estas são o resultado de um processo constante de construção. Tal
processo consiste na tomada de posição no âmbito do/a discurso/prática social. Com essa
afirmação, não se pretende fazer qualquer juízo sobre os elementos que condicionam tais
processos – sua validade, possibilidade, credibilidade – mas sim afirmar seu caráter relacional
e sua necessária fluidez, sua eterna incompletude e sua natureza de projeto sempre em
andamento.
A discussão desenvolvida até o momento girou em torno das identidades, consideradas
no presente contexto num alto grau de abstração. Agora, no entanto, o que interessa é fazer
um recorte mais específico de modo a focar naquela que, entre tantas e tão variadas
possibilidades, é o objeto principal desta reflexão: a identidade nacional ou, melhor, as
identidades nacionais.
Como alerta Kuper (1999: 235), as identidades, mesmo na perspectiva individual e
privada, são vividas no mundo, no diálogo com o/s outro/s – e, na perspectiva construtivista,
são aí construídas. No entanto, são vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva
subjetiva, o indivíduo descobre essa identidade em si mesmo, no seu interior. Essa identidade
consiste na identificação com o outro, com o/s grupo/s com o/s qual/is estabelece relação/ões

28
As identidades nacionais na Europa do século XXI

de pertença, encontrando, assim seu lugar no mundo – seja uma nação, uma minoria étnica,
uma classe social ou um movimento político ou religioso, como exemplifica o autor.
Tais recursos à identificação com o outro e ao estabelecimento de relações de
pertença, como referido acima, conduzem ao “mito da nação”, que, como afirma Billig (1995:
137), assim como o mito da tribo ou o da religião, oferece algum conforto ao indivíduo ao
propiciar a possibilidade do resgate de uma certa integridade, de uma certa inteireza, isto é, de
uma noção do todo em meio à fragmentação e à insegurança inerentes à contemporaneidade.

Identidade nacional

Dois eventos são frequentemente indicados como sendo os precursores dos


nacionalismos na Europa: a declaração da independência americana, em 1776, e a revolução
francesa, em 1789. Mas é o século XIX aquele caracterizado como sendo o da “era das
nações”, ou seja, o período em que os nacionalismos – como movimento político, social e
econômico e como ideologia – ganham força e as nações são construídas.
Em sua primeira metade, a Europa passa por grandes transformações, com o início da
era industrial e a incidência (e persistência) de uma crise econômica que se espraia pelos
campos, promovendo insatisfação e conflitos que culminam com uma série de levantes
populares um pouco por toda a Europa, período identificado como sendo o da “primavera dos
povos” ou “primavera das nações” (1848).
O poder dos reis é posto em causa e sua origem divina é questionada pelas novas
teorias liberais, com destaque para os pensamentos de Rousseau e Adam Smith, que se
fundamentam na ideia de que o poder pertence ao povo e só em seu nome pode ser exercido.
Trata-se do período que representa o início do fim dos regimes monárquicos e a ascenção da
democracia.
Fichte, Korais, Rousseau, Herder e Mazzini, cada um na sua época e à sua maneira,
são identificados como os fundadores dos nacionalismos na Europa e, portanto, precursores
do seu estudo. No entanto, embora tais estudos constituam uma referência importante para
esta pesquisa, é importante ressaltar que seu foco são as identidades nacionais e os
nacionalismos como projeto político, meio de mobilização das massas, movimento liberal,
requisito democrático entre tantas outras possibilidades, sendo que, muitos desses temas, não
são aqui explorados. O que se busca identificar nessas teorias são elementos que contribuam

29
As identidades nacionais na Europa do século XXI

para a reflexão sobre o papel simbólico das línguas na construção das identidades nacionais
num contexto bastante específico: a Europa do século XXI.
Todas as transformações acima referidas e as instabilidades que lhe são inerentes
contribuíram para o deflagrar das duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) que
marcaram a primeira metade do século XX na Europa e redefiniram suas fronteiras. Não por
acaso, esse período se confunde com aquele identificado por Hobsbawm (2012) como sendo o
do apogeu dos nacionalismos: de 1918 a 1950.
É no desdobramento desses conflitos, em 1951, que nasce a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço (CECA), que viria a ser o embrião do que é hoje a União Europeia. A CECA
é sucedida pela Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1967, e, finalmente, pela União
Europeia, em 1992. Em seu primeiro momento, trata-se de um acordo comercial estabelecido
entre França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Ao longo dos
anos seguintes, no entanto, passa por vários alargamentos e transformações em natureza,
funções e objetivos, chegando à sua configuração atual como entidade supranacional,
constituída por 28 países soberanos, em busca de integração nos mais variados níveis e
engajada na construção de uma identidade própria.
A ideia de nação como uma espécie de força da natureza, embora dormente, à espera
de irromper constitui o ponto de partida de muitos dos nacionalismos europeus. Nesse
contexto, a nação é concebida como o resultado de séculos de vivência em comum, partilhada
por indivíduos que se assemelham, que possuem uma mesma origem, que ocupam um dado
território, que partilham uma mesma história, uma língua, uma cultura. Todos esses elementos
se mobilizam e conjugam na formação de um Estado-Nação – uma nação politicamente
constituída e reconhecida –, dotado de autodeterminação, estrutura política e jurídica,
instituições públicas, etc.
Nesse sentido, a posição construída por Renan (1994) e defendida num importante
discurso, proferido em 1882, intitulado “Qu’est-ce qu’une nation?” (“O que é uma nação?”)
representa mudança significativa. Para o autor (ibidem:17), a nação seria um “princípio
espiritual”, uma entidade dotada de alma e capaz de inspirar sentimentos de solidariedade e
sacrifício. Nessa concepção de nação, o que faz de uma determinada comunidade nacional
uma nação propriamente dita é o sentimento de solidariedade que ela é capaz de inspirar e que
une todos aqueles que dela fazem parte. Tal sentimento seria suficientemente forte para
justificar sacrifícios – matar e morrer em nome da nação e daqueles que no passado, hoje e
também no futuro, estiveram, estão e estarão dispostos a fazer o mesmo.

30
As identidades nacionais na Europa do século XXI

O principal critério de existência nacional seria o desejo de um povo de permanecer


unido, a vontade de ser uma nação. Nesse mesmo sentido, pertencer a uma nação seria uma
questão de escolha, e não de origem étnica, língua materna, local de nascimento ou de
qualquer outro critério objetivo. Para Renan, a pertença nacional consiste num compromisso
livremente assumido e reafirmado diariamente numa espécie de “plebiscito diário” (Renan,
1994).
O pensamento de Renan rompeu com os modelos clássicos dos nacionalismos em
vigor até àquele momento – que, em geral, se afirmavam a partir de elementos como etnia,
língua, território, povo, religião, história, antiguidade, etc. – e exerceu grande influência nos
estudos sobre o tema. Renan foi, nesse sentido, o precursor de uma série de desenvolvimentos
que levariam a uma guinada no campo teórico a partir dos anos 80 do século XX, como
exemplificam Anderson (2006) e Hobsbawm (2012).
Em geral, as novas teorias nacionalistas se afastam das visões essencialistas da ideia
de nação e assumem o viés da construção. Nesse sentido, as ideias de Gellner são um bom
indicativo da mudança. Para o autor, são os nacionalismos que engendram a nação, e não o
contrário. Gellner (1994: 63) contesta a visão do “despertar da nação”, que enfim toma
consciência de si, da sua história e das suas raízes – discurso corrente nos nacionalismos. Para
o autor, os nacionalismos consistem em novas formas de organização social, baseadas em
sistemas de educação pública organizados, controlados e instituídos pelo Estado.
Gellner contesta o mito da nação como uma força latente, mergulhada num sono
profundo e ininterrupto, apenas à espera de se manifestar ou, ainda, como uma ordem natural
e universal de classificar os homens em grupos distintos. Nesse mesmo sentido, o autor nega a
ideia de nação como destino inexorável, apenas postergado, sempre na expectativa de
emancipação. Para o autor, as nações são fabricadas a partir de um processo seletivo,
arbitrário e inconsciente que se vale de culturas pré-existentes e ora as apaga ora as
transforma radicalmente. Nesse processo, vários elementos são mobilizados, com destaque
para as línguas, as tradições e um sentido de autenticidade e pureza que seriam característicos
da alma da nação (1994: 63-64):

Nationalism sees itself as a natural and universal ordering of the political life of mankind, only
obscured by that long persistent and mysterious somnolence. (…) It´s nationalism which
engenders nations, and not the other way round. Admittedly, nationalism uses the pre-existing,
historically inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very
selectively, and it most often transforms them radically. Dead languages can be revived,
traditions invented, quite fictitious pristine purities restored.

31
As identidades nacionais na Europa do século XXI

A nação seria, portanto, uma “comunidade inventada”, numa perspectiva que põe em
causa a existência de comunidades homogêneas, compostas por indivíduos que partilham uma
mesma origem, traços genéticos, língua, etc. e que parece não se sustentar face a uma análise
detalhada, um olhar perscrutador. Mas a inexistência – e mesmo a impossibilidade – dessa
homogeneidade não impede que uma comunidade seja percebida ou se perceba como tal.
Anderson parte das reflexões de Gellner e constrói sua própria teoria, que ainda hoje
exerce grande influência nos estudos dos nacionalismos. Critica o recurso à “invenção”,
presente no conceito de Gellner, por acreditar que essa expressão remete para o universo da
arbitrariedade, da fabricação de uma mentira, dificultando o seu entendimento. Anderson
(2006: 5-6) propõe, como alternativa, a definição de nação como comunidade “imaginada”,
ressaltando seu caráter “limitado e soberano”, como ilustrado abaixo:

In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of the nation: it is an


imagined political community – and imagined as both inherently limited and sovereign.
It’s imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their
fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of
their communion.

É interessante observar que, embora Anderson defina os nacionalismos como artefatos


culturais, como referido na introdução deste estudo, o autor define nação como comunidade
política – e não cultural, religiosa ou étnica, por exemplo. Esse entendimento de nação e
nacionalismo parece condizer com o ideário do Estado-Nação, que remete para a ideia de
Estado como nação politicamente organizada, ao mesmo tempo em que acentua o papel da
cultura em sua construção.
A substituição de inventada por imaginada pretende ressaltar a dependência do
processo de construção da nação em relação a elementos pré-existentes. As nações não
surgem do nada, nem no vácuo, mas sim da mobilização (ativação/passivação,
afirmação/negação, apagamento/insersão, transformação/cristalização) de certos elementos
que lhe são anteriores ou não, ou seja, o processo de imaginar a nação não é arbitrário, pelo
contrário, há sempre condicionamentos.
Na comunidade imaginada como nação proposta por Anderson, a noção de soberania
que caracteriza os Estados é associada à ideia nação, acentuando o seu direito de se
autodeterminar. A definição de limites pode ser interpretada como o estabelecimento de
fronteiras, de limites territoriais, mas também de uma clara linha divisória a marcar a
diferença, definindo critérios de inclusão e exclusão. Em ambos os casos, a analogia com o

32
As identidades nacionais na Europa do século XXI

modelo de Estado-Nação pode ser retomada – mesmo que apenas como destino, esperado,
desejado ou almejado.
Partilhando a ideia de nação de Anderson, Hobsbawm desenvolve sua análise dos
nacionalismos numa perspectiva histórica. Reconhecendo que o processo de imaginação da
nação é, como já alertavam Gellner e Anderson, em muito dependente do sistema educativo e
da apropriação seletiva de culturas pré-existentes, Hobsbawm debruça-se sobre o papel da
tradição, que, para ele, também é resultado de um processo de construção. Num célebre artigo
sobre a invenção da tradição, Hobsbawm (1994: 77-78) identifica três desenvolvimentos que
considera prioritários para a invenção das tradições: o desenvolvimento de um sistema
nacional de educação primária, a criação de cerimônias públicas e a produção em massa de
monumentos públicos.
Hobsbawm (1994: 76) chama a atenção para o paradoxo que envolve as nações que,
embora se afirmem e percebam como entidades naturais e seculares, muitas vezes à espera de
serem afirmadas e reconhecidas, mas sempre profundamente enraizadas e cujas origens se
perdem no tempo, são, pelo contrário, bastante atuais – são o resultado de um processo de
construção, isto é, são organizações características da modernidade.
Nesse mesmo sentido, Giddens (2002) afirma que os Estados-Nação são a mais
destacada forma social produzida pela modernidade. Assim, o Estado-Nação se distinguiria de
outras entidades sociopolíticas tradicionais pela sua forma particular de territorialidade,
vigilância e controlo, onde se destaca o monopólio do uso legítimo da força, como registrado
abaixo:

Modernity produces certain distinct social forms, of which the most prominent is the nation-
state. As a sociopolitical entity the nation-state contrasts in a fundamental way whith most
types of traditional order. It develops only as part of a wider nation-state system (which today
has become global in character), has very specific forms of territoriality and surveillance
capabilities, and monopolises effective control over the means of violence. (Giddens, 2002:
15).

O papel da tradição também é explorado por Giddens (2000: 60-61), que estabelece
uma relação com o conceito de “memória coletiva” proposto por Hallbwachs (1990). Segundo
este último, a memória não implica a preservação do passado, pois este é continuamente
revisto e reescrito em função do presente. A memória, portanto, seria essa reconstrução, em
parte individual, mas, sobretudo, social e coletiva desse passado.
A tradição, para Giddens, consiste num “meio de organização da memória colectiva”
(2000: 61), envolvendo a ideia de ritual e um caráter de obrigatoriedade, que o autor

33
As identidades nacionais na Europa do século XXI

caracteriza como dotado de conteúdo moral e emocional. Giddens, portanto, também se afasta
de uma abordagem essencialista do tema, explorando outras dimensões da ideia de tradição.
Deslocando-se o foco do conceito de nação para o de povo, Deutsch (1994)
desenvolve sua perspectiva sobre os nacionalismos a partir da ideia de que a participação e a
pertença a um povo implicam a habilidade de comunicação mais eficiente e abrangente entre
seus indivíduos, em comparação com aqueles que não fazem parte do grupo. Funda-se na
possibilidade de comunicação, de compreensão mútua. A nação é uma comunidade de sentido
e a existência de uma língua comum é condição essencial para a sua existência.
Essa perspectiva, que ele identifica como sendo funcional, envolve a partilha de
recursos comunicativos, isto é, da capacidade e habilidade de utilização da informação, por
meio de uma série de ações que incluem a recolha, transmissão, combinação e uso de dados e
que depende, portanto, da partilha de códigos de comunicação comuns, ou seja, da existência
de uma cultura de comunicação partilhada, como afirma Deutsch (1994: 27):

What is proposed here, in short, is a functional definition of nationality. Membership in a


people essentially consists in wide complementarity of social communication. It consists in the
ability to communicate more effectively, and over a wider range of subjects, with members of
one large group than with outsiders. This overall result can be achieved by a variety of
funcionally equivalent arrangements.

A partir das ideias reunidas até aqui, pode-se vislumbrar a variedade e multiplicidade
de narrativas e abordagens que caracterizam as teorias sobre os nacionalismos. Nesse cenário,
destaca-se a iniciativa de Smith (2001: 19-20), que, ao refletir sobre os nacionalismos na
modernidade, identifica cinco perspectivas gerais que, juntas, representam a diversidade de
estudos e teorias sobre o nacionalismo em vigor: (i) as nações como comunidades políticas
territoriais; (ii) as nações como vínculo político primário e principal fonte de lealdade de seus
membros; (iii) as nações como os principais atores políticos na arena internacional; (iv) as
nações como construções dos seus cidadãos, em especial dos seus líderes e grupos de elite; e
(v) a nação como enquadramento, como veículo e como beneficiária do desenvolvimento
político e social.
A perspectiva das (i) nações como comunidades políticas territoriais acomoda as
teorias que refletem sobre a ideia de nação no âmbito dos Estados-Nação, ou seja, como
entidades soberanas, situadas num dado território, com fronteiras claras e definidas, com um
sistema jurídico e político que garanta os direitos-deveres dos seus cidadãos, com uma
comunidade coesa.

34
As identidades nacionais na Europa do século XXI

A seguir, a ideia de (ii) nação como vínculo político primário e principal fonte de
lealdade entre os indivíduos nacionais engloba as teorias que exploram a perspectiva política
da nação/pátria, que demanda lealdade e sacrifício, em sobreposição às demais formas e
recursos de identificação. Os conceitos de dever cívico, cidadania, democracia e participação
são temas recorrentes.
A proposição seguinte consiste na identificação das (iii) nações como sendo os
principais atores políticos na arena internacional e remete, portanto, para as situações de
contato entre Estados, ou seja, para a organização das nações no cenário internacional e os
diferentes papéis que podem desempenhar. Nesse contexto, são recorrentes temas como a
multiplicação e o aumento da influência de entidades supranacionais, com seus reflexos sobre
a ideia de soberania nacional, o aumento da interdependência entre as nações e os efeitos da
globalização.
Uma outra perspectiva identificada pelo autor consiste na concepção das (iv) nações
como o resultado de processos de construção realizados por seus cidadãos, acenando, assim,
para as teorias construcionistas, que afirmam o caráter contingente da ideia de nação como
organização social da modernidade, cuja criação é em muito devedora dos interesses da
liderança e das elites nacionais. As relações de poder, as ideologias, o potencial de
identificação e mobilização em torno da ideia de nação são explorados, ao mesmo tempo em
que se destaca a relação de dependência entre o conceito de nação e outras instituições da
modernidade, seus valores e sua infraestrutura: “transporte, burocracia, língua, educação,
mídia, partidos políticos, etc.” (Smith, 2001: 20).
Por fim, o autor conclui apresentando a definição de (v) nação como o
enquadramento, como o veículo e como a beneficiária do desenvolvimento político e social,
afirmando a nação como “único instrumento para garantir as necessidades de todos os
cidadãos na produção e distribuição de recursos e único meio de assegurar o desenvolvimento
sustentável” (Smith, 2001: 20). Isso porque a ideia de nação seria a única dotada de força
suficiente para sensibilizar indivíduos e mobilizar as massas em termos de “compromisso,
dedicação e auto-sacrifício” (ibidem) inerentes à modernização.
Independentemente da formulação que se adote, no entanto, pode-se afirmar que a
ideia de nação e os nacionalismos ainda desempenham papel relevante nas sociedades
modernas, inspirando e despertando alianças e rivalidades, mobilizando pessoas, consistindo
em ou configurando elementos de identificação e solidariedade, num mundo em constante
transformação que parece, cada vez mais, exigir atores e performances globais.

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

Smith (2001: 1) é taxativo ao afirmar que, na perspectiva das ciências sociais, nações e
nacionalismos são entidades da modernidade, cuja construção se inicia na segunda metade do
século XVIII e que têm seu apogeu na primeira metade do século XX, mas que, a partir daí,
vêm perdendo sua força e importância muito em função da transcendência das fronteiras
nacionais, característica da atual era global.
Essa é também a visão de Hobsbawm, que, secundado por Anderson, defende a ideia
de que os nacionalismos teriam chegado ao fim, no sentido de que não mais seriam a principal
força motriz das transformações sociais experimentadas na atualidade, ao contrário do que
fora durante os dois últimos séculos. Em resumo, a tese do fim dos nacionalismos, mais do
que o fim propriamente dito, assinala uma mudança, quer do conceito de nação, quer dos
movimentos que o informam.
A questão que se põe, portanto, é de se saber se as mudanças acima referidas são
suficientemente drásticas para que os conceitos de nação e nacionalismo, como entendidos até
agora, deixem de dar conta desses novos significados e tenham de ser substituídos; ou, por
outro lado, se tais conceitos seguem operacionais e úteis e, portanto, tais mudanças implicam,
simplesmente, um alargamento dos significados anteriores e novas perspectivas de análise,
num movimento corrente e recorrente em qualquer estudo que se desenvolva ao longo do
tempo-espaço.
De modo geral, não parece haver muitas dúvidas de que o papel dos nacionalismos
tenha mudado ou, pelo menos, de que esteja em fase de transformação, em comparação com o
período do seu apogeu. A questão se torna mais controversa, no entanto, quando se trata de
analisar a natureza de tais mudanças e, especialmente, de se saber se estas implicaram a perda
de relevância dos nacionalismos para as sociedades europeias modernas, como afirma
Hobsbawm (2012), tema que será retomado mais à frente.
Na segunda metade do século XX, o foco de tensão se desloca da Europa para os EUA
e a URSS, no contexto da chamada Guerra Fria. A Europa é dividida pela “cortina de ferro”,
que separa a Europa ocidental da Europa de Leste. A Alemanha, partida em dois desde o final
da 2ª Guerra, só voltaria a se reunificar em 1990, após a queda do muro de Berlim, em 1989, e
um pouco antes da dissolução da URSS, em 1991.
Deparamo-nos, em 2015, na Europa, com um cenário marcado por tensões em que os
discursos nacionalistas ocupam posição de destaque. Apenas como exemplo: na Espanha,
tensões entre catalães, bascos e “espanhois”, sem mencionar os galegos; no Reino Unido, o
referendo pela independência da Escócia, sem esquecer eventuais conflitos com a Irlanda; na
Bélgica, a crise política de 2010-2011 que deixou o país sem governo por 541 dias.

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

O cenário atual também é marcado por uma crise econômica, que tem abalado a
Europa nestes últimos anos, e pela questão das migrações, que neste momento adquire
contornos dramáticos. Em tal contexto, multiplicam-se os discursos nacionalistas, agora não
mais de afirmação nacional, exclusivamente, mas sim de discriminação ou mesmo de
xenofobia, adotados, em geral, mas não só, por partidos de extrema-direita, como a Frente
Nacional, de Marine Le Pen, na França, e o UKIP, de Nigel Farage, no Reino Unido.
Hobsbawm já alertava para esse fenômeno, que, embora possa emergir em associação
aos nacionalismos, não se confunde com eles. Como afirma o autor, a xenofobia, longe de ser
um programa político ou uma ideologia, é simplesmente uma expressão de angústia ou
mesmo de fúria que, segundo Hobsbawm, raramente seduz mesmo os mais ardentes
nacionalistas:

However, xenophobia, readily shading into racism, a more general phenomenon in Europe and
North America in the 1990s even than it was in the days of fascism, provides even less of an
historic programme than Mazzinian nationalism. Indeed, it rarely even pretends to be more
than a cry of anguish or fury. Moreover, even the romantic sympathisers with the sovereign
independence of selected small peoples are rarely found insisting on the Janus-like
characteristics of M. Le Pen’s National Front. It has one face, and most of us would prefer it to
have none. (Hobsbawm, 2012: 170).

Ainda assim, a combinação entre xenofobia e nacionalismos, por mais equivocada que
seja, parece ter, na atualidade, um potencial explosivo e não deixa de ser um sintoma de que,
em algum momento, a construção de uma relação saudável entre um suposto eu e um certo
outro falhou. A xenofobia, como uma visão deturpada dos nacionalismos, em geral alimenta
posições discriminatórias que não raro evoluem para a violência.

Identidade Nacional e Cultura

Assim como identidade, cultura é também um conceito fugidio que, à primeira vista,
parece de fácil apreensão, mas que, numa tentativa de análise mais cuidada, escorrega pelas
mãos. Em alguns casos, o conceito de cultura é definido de forma tão abrangente que passa a
significar quase tudo, pondo em risco sua funcionalidade conceitual. Em outros, sua definição
é tão cerrada que impossibilita uma reflexão minimamente coerente sobre seu uso e
operacionalidade.

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

Toma-se como ponto de partida a definição de cultura, segundo o preâmbulo da


Declaração Universal da Diversidade Cultural da UNESCO, de 2012, como sendo o
“conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que
caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os
modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.
Nessa definição, a cultura é apresentada como um marcador da diferença – “traços
distintivos” – e definida de forma bastante abstrata – modos de vida, valores, tradições,
crenças. Uma vez que a cultura se baseia na distinção, ou seja, na diferença, e partindo-se do
princípio de que identidade e diferença são ideias correlatas, depreende-se da citação acima a
relevância do conceito de cultura para os estudos de identidade. Corrobora essa afirmação, a
constatação presente na declaração da UNESCO (2012: preâmbulo) de que a cultura “se
encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade”.
Ainda sobre o papel da diferença na construção das identidades, destaca-se a posição
de Boaventura de Sousa Santos (2001: 46), que não só realça a participação dos processos de
diferenciação como os identifica como fonte de desiguadade e manifestação de relações
assimétricas de poder. Nesse sentido, as identidades seriam, primordialmente, formas de
dominação, como abaixo referido:

As identidades são o produto de jogos de espelhos entre entidades que, por razões
contingentes, definem as relações entre si como relações de diferença e atribuem relevância a
tais relações. As identidades são sempre relacionais mas raramente são recíprocas. A relação de
diferenciação é uma relação de desigualdade que se oculta na pretensa incomensurabilidade das
diferenças. Quem tem poder para declarar a diferença tem poder para a declarar superior às
outras diferenças em que se espelha. A identidade é originariamente um modo de dominação
assente num modo de produção de poder que designo por diferenciação desigual.

A relação de simbiose entre identidade e diferença é também explorada na perspectiva


dos estudos de cultura. Nesse contexto, vale destacar a teoria desenvolvida por Stuart Hall
(Silva, 2000), centrada no binômio identidade/diferença, que melhor se traduz no estudo das
identidades como processo, sempre em andamento, de identificação, como mencionado
abaixo:

Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveriamos falar de
identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não da plenitude
da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é
‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser
vistos pelos outros.

38
As identidades nacionais na Europa do século XXI

Para o autor, num entendimento alargado da noção de cultura como modo de vida,
valores, crenças, história, memória, costumes, tradições, partilhar uma certa identidade
nacional implicaria partilhar uma certa identidade cultural – o que significa dizer que, em
alguma medida, os conceitos de identidade e cultura estariam, portanto, sobrepostos,
partilhando um certo conteúdo e mesmo algumas características.
Nesse contexto de aproximação entre cultura e identidade, parece importante destacar
que, assim como as identidades nacionais, as identidades culturais também assumem, muitas
vezes, contornos essencialistas. Contestando tais visões, e, especialmente os discursos que
associam cultura à ideia de raça ou etnia, Kuper (1999: 227) afirma que a cultura não é uma
questão de raça, ou seja, que não está inscrita geneticamente nos seres humanos, mas sim que
resulta de um processo de aprendizagem.
Num esforço de afastamento do viés essencialista, entende-se que a ideia de cultura
implica aprendizado e transmissão, embora tais processos nem sempre sejam desenvolvidos
de forma consciente. Em comunidades estáveis e isoladas, a cultura passa despercebida, torna-
se invisível. Mas, num cenário de mobilidade e de comunicação descontextualizada, a cultura
na qual o indivíduo se desenvolve e aprende a comunicar torna-se central para a construção de
um sentido de identidade (Gellner, 1994: 69). É no contexto de contato entre culturas
diferentes, muitas vezes promovido pelo deslocamento ou afastamento do contexto cultural
em que vive o indivíduo, que este se apercebe da sua cultura.
Anderson (2006: 267) também contribui para o debate da relação entre identidade e
cultura ao afirmar que as nações, assim como as pessoas, valem-se da construção de
narrativas para dar sentido às suas identidades. A percepção de continuidade no tempo e no
espaço, o resgate da memória e, sua contrapartida, o abandono ao esquecimento, são
entretecidos para dar corpo a essa estratégia discursiva.
Em sintonia com tal afirmação, a ideia de nação como estratégia narrativa é
desenvolvida por Bhabha, que explora especialmente um espaço de indefinição e
ambivalência onde categorias como “povo”, “minorias” e “diferença cultural” se confundem e
sobrepõem em permanente deslocamento e constante recepção. A noção de limiar é explorada
pelo autor como o espaço onde fronteiras se perdem ou em que nunca estão claramente
fixadas. Bhabha entende nação como sendo a medida da liminaridade da modernidade cultural
(1994: 292).
Nesse sentido, na modernidade tardia, as nações já não são necessariamente o espaço
de homogeneização cultural, onde diferenças são apagadas e suprimidas, mas sim arena onde
diferentes narrativas disputam primazia e afirmam o caráter ambivalente da nação. Essas

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As identidades nacionais na Europa do século XXI

contranarrativas põem em causa as visões essencialistas, características das comunidades


imaginadas como nação, ao evocar e apagar contiuamente suas fronteiras totalitárias (Bhabha,
1994: 300).
Em resumo, o que se depreende da posição do autor é a definição de nação como
estratégia discursiva de identificação cultural e exercício de poder, que se vale de um duplo
movimento narrativo (1994) para constituir a categoria de povo ora como sujeito, ora como
objeto, num movimento contínuo de oscilação. O povo é objeto de uma pedagogia
nacionalista que o institui e constitui como povo, ao mesmo tempo em que é sujeito nos
processos de significação que afirmam ou reafirmam a existência atemporal e contínua desse
mesmo povo, que sempre existiu e sempre existirá. Segundo Bhabha (1994: 296-297), é nessa
partição entre a temporalidade acumulativa e contínua do pedagógico (identidade narrativa) e
a estratégia recursiva e repetitiva do performativo (identidade performativa) que a nação
como narração é produzida.
Afirmar a relevância do conceito de cultura para a construção das identidades
nacionais ou que os conceitos de identidade nacional e cultural são, muitas vezes,
sobrepostos, não significa negar as especificidades de um e de outro. Nesse contexto, a
reflexão de Van Dijk (2005: 79-80) sobre os conceitos de conhecimento nacional e
conhecimento cultural, no contexto da produção de discursos, parece contribuir para realçar
algumas diferenças.
Segundo o autor, o conhecimento nacional é aquele partilhado por todos os cidadãos
de um dado país e adquirido via sistema escolar e meios de comunicação de massas. É sempre
pressuposto, seja nos discursos públicos, seja nas conversas entre membros dessa comunidade
nacional. Já o conhecimento cultural é aquele partilhado pelos membros de uma mesma
cultura e construído a partir da identificação com uma dada língua, religião, história, hábitos,
origem ou aparência (2005). É adquirido primeiro na família e depois na escola, na mídia, na
interação com amigos.
Para o autor, a principal diferança entre eles é que o conhecimento cultural é o pano de
fundo contra o qual operam todos os outros conhecimentos, entre eles, o nacional. Outra
distinção importante reside no fato de o conhecimento cultural ser mais genérico e abstrato,
enquanto o nacional girar em torno de eventos reais/concretos num dado momento histórico e
social.

40
As identidades nacionais na Europa do século XXI

Identidade Nacional e Globalização

Os processos de globalização têm sido apontados como causa de inúmeras mudanças


não só na esfera internacional, como também nas esferas nacional e local. Com a
globalização, transforma-se, entre outras, a relação espaço-tempo – a comunicação global,
desterritorializada e instantânea passa a ser possível. O outro não precisa mais ser imaginado,
deixa de ser um outro distante e inerte, muitas vezes objetificado, para se tornar um outro
presente. Nesse cenário, o contato com o outro passa a ser rotineiro e a possibilidade de
interação e interpelação, ou seja, de “interrogação mútua”, na expressão de Giddens (2000:
93), concretiza-se.
O contato entre diferentes modos de vida e culturas, porém, configura sempre uma
perturbação – benéfica ou não –, ou seja, gera algum tipo de instabilidade e, muitas vezes,
choques. Nesse contexto, o recurso às identidades, entre elas as nacionais, ou o apego a certas
representações e discursos relacionados a elas parecem constituir alguma garantia de
estabilidade e segurança, mesmo que apenas aparente.
No momento atual, de globalização e mobilidade, de migrações em massa, de
porosidade de fronteiras, os limites físicos de um Estado-Nação deixam de ser suficientes –
ou, pelo menos, perdem força – para definir uma comunidade nacional, que agora se alarga e
pulveriza (há mais armênios vivendo na diáspora do que na Armênia, por exemplo). Talvez as
fronteiras de uma cultura possam hoje desempenhar o papel das antigas fronteiras territoriais,
ou talvez as línguas nacionais possam desempenhar esse papel – partindo-se do pressuposto
de que seria possível defini-las com exatidão e clareza. Mas também é possível que a própria
noção de fronteira tenha perdido sua validade e operacionalidade, pelo menos em parte, no
contexto atual.
Segundo Billig (1995: 132-133), a globalização, ao diminuir os espaços e as diferenças
entre as nações, faz com que as identidades nacionais também percam força ou relevância em
detrimento de outras estratégias de identificação. O autor destaca o papel crescente das
identidades construídas em torno da ideia de “estilos de vida”, associadas predominantemente
a padrões de consumo.
Também Hall alerta para uma transformação das identidades no contexto atual, muitas
vezes definido como sendo uma espécie de campo de batalhas entre forças globais e locais
(Hall, 2014: 44 e 45). Essas transformações são, em geral, associadas a um aumento da oferta
de identidades à disposição do indivíduo, numa clara comparação com o setor econômico, e à

41
As identidades nacionais na Europa do século XXI

supervalorização do consumo e do papel do consumidor – muitas vezes identificado como


sendo o novo cidadão moderno – nesta modernidade tardia.

Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribiu para esse
efeito de “supermercado cultural”. No interior do discurso do consumismo global, as
diferenças e as distinições culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a
uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as
tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Esse fenômeno é
conhecido como “homogeneidade cultural”. (Hall, 2014: 43).

Segundo o autor, as sociedades atuais vivem marcadas por um movimento de


oscilação entre a valorização da “tradição” e da “tradução”, onde a tradição sinaliza um apego
às formas essencialistas de cultura e identidade e a tradução remete para o cenário mais
dinâmico de contato, diversidade e transformação. Nos casos em que a balança pende para a
tradição verificam-se, por exemplo, o renascimento dos velhos nacionalismos, como na
Europa Oriental, e os fundamentalismos, nas suas mais variadas formas (Hall, 2014: 52 a 54).
A perda de soberania dos Estados-Nação, que agora precisam se organizar em
instituições supranacionais para exercer poder ou a ele resistir (seja o poder político,
econômico, social, etc.), faz com que as identidades nacionais percam sua força como
principal e mais elementar reduto de identificação coletiva, capaz de sobrepujar tantas outras
identidades.
Para Billig (1995), nesta modernidade tardia, o território nacional perde sua
capacidade de inspirar identidades e vínculos, cedendo lugar a novas formas de identificação,
inspiradas, desta vez, não mais nas línguas nacionais, mas sim na linguagem eletrônica dos
computadores e meios digitais. O espaço delimitado dos Estados-Nação é subtituído pelo
espaço alargado que surge com as novas tecnologias, dando lugar a novas formas de ser, estar,
pensar e sentir neste mundo que se globaliza.

Thus, the thesis of postmodernism proclaims a vision of a future world. In this world, no longer
is the national territory the place from which identities, attachments and patterns of life spring.
The order of the national world gives way to a new mediaevalism. The binary language of
electronics is like a new latin, binding together the knowledgeable across political kingdoms.
In place of the bordered, national state, a multiplicity of terrae are emerging. And those, who
see their identities in terms of gender or sexual orientation, are, like monks before them, bound
by no earthly terra, restricted by no mere sense of place. Thus, a new sensibility  a new
psychology  emerges in global times. (Billig, 1995:134).

Como parte dos processos de globalização, tem-se o estabelecimento, criação ou


valorização de entidades supranacionais, mas também – e, em parte, como reação a eles – o

42
As identidades nacionais na Europa do século XXI

fortalecimento de entidades locais, num duplo movimento de globalização e glocalização. O


termo glocalização (Robertson, 1995: 26) refere-se aos movimentos de resistência às forças
globais e seu potencial de massificação, isto é, de imposição de um padrão único,
supostamente global e homogêneo, destruindo, assim, as especificidades locais e pondo em
risco a diversidade cultural.
A emersão de entidades supranacionais e locais no cenário europeu, no entanto, não
implica necessariamente a dissolução das entidades nacionais ou mesmo uma mudança
drástica do seu papel – implica, sim, um novo equilíbrio de forças, com a entrada de novos
atores sociais. Na discussão atual sobre nações e nacionalismos, o que parece estar em causa é
a definição desses papéis – a natureza da mudança e sua intensidade, assim como a definição
desse novo jogo de forças, com a identificação de pontos fortes e fracos, de estabilidade e
instabilidade, de equilíbrio e desequilíbrio.
No que diz respeito às identidades nacionais, porém, as questões que surgem parecem
ser outras. As identidades nacionais ainda são relevantes, isto é, o recurso à ideia de nação na
construção da identidade (coletiva do indivíduo) ainda é potencialmente interessante, ainda
possui força suficiente para sobrepujar outras formas de identificação, ainda é capaz de
mobilizar pessoas e comunidades em torno de uma causa?
Não parece haver dúvidas de que as identidades nacionais seguem em uso, quer no
âmbito internacional, quer no local. As entidades supracionais revelam grande preocupação e
cuidado em seus discursos e políticas para não ferir sucetibilidades nacionais. No âmbito
dessas mesmas entidades, em geral, as discussões e deliberações ainda são conduzidas entre
nações. Do mesmo modo, mas no sentido inverso, as entidades locais também se constroem
ainda muito em função dos contextos nacionais nos quais se inserem.
Mas, ainda que se reconheça a persistência da ideia de nação, a arena de debates
parece ter-se alargado. As identidades nacionais concorrem agora não só com tantas outras
identidades de natureza diversa, mas também com outros tipos de identidades
territorializadas: identidades supracionais (o cidadão do mundo, o cidadão global),
identidades regionais (o europeu, o africano), identidades locais (o minhoto, o lisboeta).
Corroboram a afirmação acima os discursos de valorização da diversidade, que,
aliados à perspectiva da construção das identidades, ampliam o campo de oportunidades de
identificação. Nesse cenário, o indivíduo ganha liberdade e poder para assumir diferentes
posições e exercer o poder inerente a elas – com ou sem sucesso –, mas, ao mesmo tempo,
corre o risco da perda de segurança e estabilidade.

43
As identidades nacionais na Europa do século XXI

Claro que não se pode esquecer que as identidades nacionais, assim como todas as
outras, podem ter valor negativo ou positivo e podem ser fator de inclusão ou exclusão,
dependendo do contexto. Também é preciso destacar que tais identidades – e certas
representações delas – não são sempre assumidas voluntariamente pelo indivíduo, e sim,
muitas vezes, atribuídas a ele como uma espécie de rótulo que determina seu campo de ação e
movimentação.
Nos cenários em que os indivíduos podem assumir diferentes posições e entrar
conscientemente no jogo das identidades, há sempre a possibilidade de se apropriar e se tirar
proveito delas. Mas, ao contrário, quando ficam presos a determinadas representações,
tornam-se reféns dessas identidades – exemplo de tais situações são os movimentos
fundamentalistas em suas diversas naturezas política, religiosa, econômica, etc.
É nesse contexto que ganham corpo as teorias que apregoam o fim dos nacionalismos.
Pressionados pela globalização – aqui traduzida no desenvolvimento das tecnologias de
comunicação; no aumento da mobilidade de bens, pessoas e dados; e na crescente
interdependência entre Estados – e pela transformação da organização mundial indissociável
dela, os nacionalismos estariam perdendo força.
Mas os acontecimentos desse final de século XX parecem contrariar essa tese. Apenas
como exemplo, vale lembrar a guerra, que novamente varreu os bálcãs entre 1991 e 1995,
dessa vez protagonizada especialmente pela Sérvia, Croácia e Bósnia-Herzegovina, na esteira
da dissolução da Iugoslávia – conflito que, mais uma vez, trouxe à tona as velhas ideologias
nacionalistas.
Contrariando a posição acima esboçada, no entanto, e a favor da tese do fim dos
nacionalismos, defendida por ele, Hobsbawm (2012: 163) afirma que os desmantelamentos da
Iugoslávia e da URSS, no final do século XX, assim como os conflitos deles decorrentes, são
ainda efeito do embate de forças verificado no início do século, e não consequência dos
nacionalismos atuais.
Hoje, em vez de impérios que se fragmentam em nações, são as grandes nações que se
fragmentam – ou ameaçam se fragmentar – em pequenas e médias nações na perspectiva de
um suposto nacionalismo etnolinguístico (Hobsbawm, 2012). Em vez de um embate de
forças, tem-se um jogo de pressões. O foco se desloca da força em si mesma – que incide
sobre uma dada superfície – para o seu efeito – a pressão que exerce sobre essa mesma
superfície, uma vez que tais forças já não são tão claras e identificáveis, mas sim invisíveis e
difusas.

44
As identidades nacionais na Europa do século XXI

Em suma, muitas das disputas alimentadas e fomentadas pelos nacionalismo de hoje


não mais se valem do exercício de poder militar – embora este ainda persista (como, por
exemplo, no caso Ucrânia versus Rússia) – mas sim de um plebiscito, de uma campanha de
valorização de uma certa língua, de uma manifestação a favor de uma minoria ou contra a
discriminação de um grupo, do preconceito contra os imigrantes, dos discursos xenófobos de
uma suposta afirmação nacional de certos partidos políticos.
Billig (1995), ao refletir sobre o tema, chama a atenção para o que ele denomina de
“nacionalismo banal”. Não mais o “morrer pela pátria”, o sacrifício último do cidadão-
patriota (ainda muito valorizado, especialmente nas séries de TV americanas em torno das
figuras dos marines e rangers, por exemplo), mas sim de outras formas de afirmação e
identificação, muitas vezes superficiais, rotineiras, enfim, banais – a bandeira pendurada nas
fachadas dos prédios ou agitadas nas ruas em dias de jogos, ou utilizada como pingente num
colar ou pulseira ou como estampa numa peça de vestuário; a sensação de sucesso partilhada
numa disputa internacional sobre um assunto qualquer (música, gastronomia, comércio,
turismo, etc.); a identificação com uma celebridade nacional que faz sucesso mundo a fora.
De modo geral, parece razoável afirmar que a imagem da nação – suas representações
e discursos – ainda se faz bastante presente, refletindo e influenciando a construção da
identidade de cada um e de todos. As identidades nacionais estão estampadas nos documentos
de identificação individual e são critério de acesso a parte significativa dos direitos e deveres
do indivíduo; estão nas vitrines das lojas, nas telas de cinema, nos concursos de música, na
séries de TV, nas redes sociais; estão nos jornais e noticiários, no centro de debates sobre
igualdades e desigualdades sociais, direitos humanos, conflitos militares e crises
humanitárias, sociais, econômicas, políticas, militares, de saúde pública. As identidades
nacionais constituem, ainda, um importante critério de inclusão/exclusão no mundo
contemporâneo.

Síntese

Neste capítulo, partiu-se do conceito de identidade, em sentido amplo, para então se


analisar as identidades nacionais. Fez-se um recorte teórico – um entre tantos possíveis –
destacando-se o papel das identidades no contexto da modernidade tardia, no qual elas
parecem assumir maior relevância e complexidade. As noções de multiplicação, fragmentação

45
As identidades nacionais na Europa do século XXI

e crise das identidades foram algumas das perspectivas exploradas. Essa reflexão serviu de
fundo para a introdução das identidades nacionais na Europa, apresentadas a partir de uma
breve retrospectiva histórica onde o século XIX e a primeira metade do século XX adquirem
maior relevância. A seguir, explorou-se a relação entre identidade nacional e cultura na
tentativa de melhor compreender os vínculos e interdependências que ligam tais conceitos,
especialmente no contexto europeu atual, marcado pelo projeto de união europeia. Trazendo-
se tal discussão para este início de século XXI, procurou-se desenvolver o tema em
contraponto com os processos de globalização, refletindo-se sobre alguns dos diferentes
significados que assumem e sobre o impacto que exercem sobre a ideia de nação e,
consequentemente, de identidade nacional.

46
Capítulo 2
Língua e identidade nacional

Língua e identidade nacional: perspectiva histórica

Língua e identidade nacional: perspectiva simbólica

Língua, cultura e identidade nacional

Língua, multilinguismo e identidade nacional


De entre os diferentes elementos que são mobilizados na construção das identidades
nacionais está a língua, cuja relevância para esse processo pode ser inferida quer pela
frequência das referências, quer pela intensidade dos discursos de associação entre língua e a
ideia de nação e nacionalismo. O fato de a língua consistir num dos poucos critérios que
podem ser inferidos objetivamente (Hobsbawm, 2012) parece contribuir para o cenário em
que a língua ganha relevância e destaque no processo de construção identitário.
Neste capítulo, parte-se de uma reflexão sobre o papel da língua na construção dos
nacionalismos europeus numa perspectiva histórica. Hobsbawm situa sua importância num
dado período, registrando uma mudança na percepção dos nacionalismos a partir de 1870, que
conduz à afirmação de um nacionalismo linguístico ou etnolinguístico. Anderson (2006), por
sua vez, destaca o papel das línguas de imprensa e a importância do seu desenvolvimento no
contexto do capitalismo industrial que se afirma nos séculos XIX e XX.
A seguir, explora-se a relação entre língua e identidade nacional numa perspectiva
simbólica, isto é, a ideia de língua como símbolo, como ícone de uma nação, como elemento
de referência e de identificação. A língua como símbolo, numa sociedade onde os sistemas
simbólicos adquirem cada vez mais importância, e o papel da mídia na construção,
transmissão e disseminação desses símbolos são alguns dos temas desenvolvidos.
Prosseguindo com a reflexão, analisa-se a relação entre língua e o conceito de cultura,
os quais, muitas vezes, aparecem sobrepostos ou, ao menos, num contexto de
interdependência. A língua como limite do mundo, isto é, como limite da possibilidade de
conhecimento, ou como elemento condicionante e conformador do indivíduo e da sua visão
de mundo são algumas das abordagens discutidas. Em complemento a elas, estuda-se a noção
de língua como portadora e transmissora de cultura, desempenhando papel central na criação,
manutenção e disseminação de uma suposta cultura nacional, no âmbito da qual as
identidades são construídas.
Língua e identidade nacional

Por fim, o papel da língua na construção das identidades europeias é analisado no


contexto do multilinguismo, no qual a moeda corrente deixa de ser a língua em sua unicidade
e passa a ser a língua em sua diversidade – que é, então, valorizada e interpretada como uma
mais-valia para o projeto europeu. Mas, se no contexto da interação entre os diferentes países
que constituem hoje a União Europeia, a diversidade linguística é interpretada como valor, em
outros, como no contexto das migrações, com as tensões e pressões linguísticas que este
encerra, tais discursos de valorização nem sempre prevalecem, promovendo uma certa
confusão e instabilidade no interior do sistema.
O objetivo deste capítulo é identificar e explorar algumas das diferentes perspectivas
de análise da relação entre língua e identidade nacional que possam contribuir para a reflexão
sobre o tema no contexto europeu atual. Pretende-se também, com tal esforço, construir um
pano de fundo contra o qual se possa pensar a posição de Portugal, no que diz respeito às
questões identitárias que afloram das discussões sobre o novo acordo ortográfico, que será
objeto da segunda parte desta pesquisa.

Língua e identidade nacional: perspectiva histórica

Embora a língua como fator de identidade ou de identificação seja um elemento


recorrente em muitos dos discursos sobre os nacionalismos, seu papel pode ser – e tem sido –
questionado. O que se discute não é tanto a existência de uma relação entre língua e nação,
mas sim sua natureza e suas transformações ao longo do tempo. Pensando-se numa relação de
causa-efeito, são as línguas que dão origem às nações ou são as nações que criam as línguas?
Nesse contexto, quando falamos em língua, de que língua falamos: dos vernáculos orais ou
escritos, das línguas administrativas dos antigos impérios coloniais, das línguas de cultura,
línguas de imprensa, línguas nacionais?
Para refletir sobre tais questionamentos, parte-se do pensamento de Anderson (2006:
71-73), que, ao discorrer sobre a importância das línguas para os nacionalismos, ou melhor,
sobre a importância das línguas para a construção de uma consciência nacional, destaca o
papel desempenhado pelas línguas de imprensa. Segundo o autor (ibidem: 42-43), a formação
de uma consciência nacional é indissociável de um contexto bastante específico: a
combinação, que ele caracteriza como “explosiva”, entre o capitalismo (como modo de
produção), a imprensa (como tecnologia de comunicação) e a diversidade linguística.

50
Língua e identidade nacional

O capitalismo, com sua dependência da formação de mercados de consumo e de mão-


de-obra para a produção em massa, promove a concentração de pessoas e torna cada vez mais
necessária a comunicação entre elas. Novas tecnologias de comunicação são desenvolvidas e
a adoção de uma língua comum, num contexto de coexistência de línguas diversas, torna-se
necessária e economicamente vantajosa.
Com o desenvolvimento da imprensa, a língua passa a configurar um espaço ampliado
de comunicação e compreensão mútuas ou, como afirma Anderson (2006: 72), campos de
trocas e comunicação unificados em torno da língua, agora situada abaixo do latim, mas
acima dos vernáculos orais, numa referência à criação daquilo que ele chamou de línguas de
imprensa, já mencionadas acima.
Nesse contexto, e em decorrência dele, a língua ganha uma certa fixidez, característica
do registro escrito e da pretensão de compreensão por um público heterogêneo e alargado. Do
mesmo modo, novas relações de poder atreladas às línguas são construídas, ou seja, as línguas
de imprensa são também configuradas como línguas de poder, concorrendo, em alguma
medida, com as línguas administrativas. Essas novas línguas irradiam sua força pela
sociedade, favorecendo aqueles indivíduos e grupos cujos vernáculos são alçados à categoria
de língua de imprensa ou que dela se aproximam e que, por esse motivo, ganham prestígio
face aos demais.
Como parte desse processo, multiplicam-se as publicações de gramáticas, vocabulários
e estudos comparados, que mobilizam um número cada vez maior de especialistas e
estudiosos, empenhados no desenvolvimento, na classificação e na organização das línguas
em famílias e grupos. Anderson (2006: 71), citando Seton-Watson, identifica o século XIX,
na Europa, como sendo a “era dourada” dos filólogos, gramáticos, lexicógrafos e literatos.
A escolha, definição e padronização de uma língua de imprensa não é indiferente ao
processo de construção das línguas nacionais. Pelo contrário, as línguas de imprensa
contribuem para esse processo ao atribuir prestígio a uma certa língua em detrimento de
outras, que, consequentemente, acabam por ganhar maior estabilidade e conquistar maior
número de falantes – tornam-se, assim, candidatas preferenciais ao posto de língua nacional e,
nesse sentido, as precursoras das mesmas.
Para Hobsbawm, as línguas nacionais são construídas ao longo da constituição das
nações propriamente ditas, num processo de forte cariz político-ideológico que pode envolver
diferentes estratégias – a partir, por exemplo, de uma suposta correção ou padronização de
línguas pré-existentes ou mesmo de sua invenção. Esse pensamento contraria o mito da nação
como força natural e latente, adormecida durante séculos, ou seja, como uma consciência

51
Língua e identidade nacional

coletiva em vias de se emancipar, reafimando seu caráter de artefato cultural e de produto de


um dado contexto social, histórico e situado que aflora a partir do final do século XVIII na
Europa:

The politico-ideological element is evident in the process of language-construction which can


range from the mere ‘correction’ and standardization of existing literary and culture-
languages, through the formation of such languages out of the usual complex of overlapping
dialects, to the resuscitation of dead or almost extinct languages which amounts to virtual
invention of new ones. For, contrary to nationalist myth, a people’s language is not the basis
of national consciousness but, in the phrase of Einar Haugen, a ‘cultural artifact’.
(Hobsbawm, 2012: 111)

Mas a existência de uma língua nacional, de acordo com Hobsbawm, nem sempre foi
essencial para o processo de construção das nações. Para o autor, durante a fase inicial dos
nacionalismos (de 1780 a 1870 aproximadamente), a língua não constitui um fator decisivo de
identificação nacional. Ele cita, entre outros, o exemplo da França à época da Revolução
Francesa, onde 50% dos franceses não falavam francês e apenas 12 ou 13% eram capazes de
falar a língua “corretamente” (2012: 60).
No período subsequente, no entanto, as línguas rapidamente assumem relevância.
Retomando o caso francês, logo após a revolução, tem início um movimento de
uniformização linguística, excepcional para a época, no entender de Hobsbawm. Essa política
de difusão e afirmação da língua francesa é mais uma evidência de que, no princípio dos
nacionalismos, falar a língua nacional não foi um critério relevante para a afirmação de uma
nacionalidade – no caso, a francesa. No entanto, aderir a ela posteriormente, ou seja, falar o
francês, torna-se, progressivamente, pré-requisito obrigatório para o exercício da cidadania e
para a identificação nacional:

The French insistence on linguistic uniformity since the Revolution has indeed been marked,
and at the time it was quite exceptional. (…) But the point to note is, that in theory it was not
the native use of the French language that made a person French – how could it when the
Revolution itself spent so much of its time proving how few people in France actually used
it? – but the willingness to acquire this, among the other liberties, laws and common
characteristics of the free people of France. In a sense acquiring French was one of the
conditions of full French citizenship (and therefore nationality) as acquiring English became
for American citizenship. (Hobsbawm, 2012: 21).

As línguas são, assim, mobilizadas para a causa nacional, num movimento que marca
a transformação dos nacionalismos de uma fase inicial, caracterizada por Hobsbawm (apud
Smith, 2001: 121) como sendo a do nacionalismo das massas, cívico e democrático, que se

52
Língua e identidade nacional

desenvolve no período entre 1830 e 1870, para uma nova forma de nacionalismo: o
nacionalismo etnolinguístico, que se afirma entre 1870 e 1914.
Segundo Hobsbawm (2012), as línguas, cujas origens são difíceis de precisar, mas
que, invariavelmente, remetem para um passado longínquo e incerto, prestam-se na perfeição
às estratégias de enraizamento das nações nesse passado distante: constituem uma espécie de
prova de existência e capacidade de sobrevivência, assim como um atestado do seu direito ao
reconhecimento público como nação com o estatuto de Estado e todos os direitos a ele
inerentes.
Essa afirmação de antiguidade, típica da nação moderna recém-criada, embora
represente um paradoxo e, mais do que isso, um equívoco, como defende Hobsbawm, é
recorrente. Fundamenta-se numa concepção da nação como resultado de um desenvolvimento
natural e progressivo, lento e duradouro, que se desenrola quase que à revelia da indústria
humana. A nação ganha, assim, a força dos fenômenos naturais que há muito tempo e em
larga escala subjugam a vontade do homem:

We should not be misled by a curious, but understandable, paradox: modern nations and all
their impedimenta generally claim to be the opposite of novel, namely rooted in the remotest
antiquity, and the opposite of constructed, namely human communities so ‘natural’ as to
require no definition other than self-assertion. (Hobsbawm, 1994: 76).

A existência de uma língua nacional e os discursos em torno dela tornam-se, assim,


fundamentais para os nacionalismos e a construção das nações, como indica o movimento das
elites locais no sentido de adquirir proficiência em tais línguas. Essas elites, em geral criadas
e educadas nas línguas de prestígio – ou seja, nas línguas administrativas e de cultura – nem
sempre dominavam os vernáculos. No momento em que o domínio da língua local é alçado à
condição de prova de uma nacionalidade, é preciso encontrar uma explicação para tal deficit.
Segundo Anderson (2006), a justificativa para tal falta era o estado de dormência em que
vivia e sobrevivia a nação, uma espécie de sono cujo despertar se dá ao longo do século XIX.
Anderson, no mesmo sentido de Hobsbawm, também identifica uma transformação no
papel da língua para os nacionalismos. Segundo ele, se, num primeiro momento, as línguas
não são percebidas como fator de identificação nacional, atreladas a um dado grupo ocupante
de um território específico, num momento posterior passam a operar como verdadeiras
barreiras naturais, separando comunidades nacionais sob o domínio dos antigos impérios: “os
vernáculos ‘não civilizados’ começaram a ter a mesma função política que o Oceano

53
Língua e identidade nacional

Atlântico desempenhara anteriormente: ou seja, a de “separar” as comunidades nacionais


subjugadas dos antigos reinos dinásticos” (Anderson, 2006: 257).
Outro fator que contribui para a construção das identidades nacionais em torno da
unidade linguística é a realização dos censos. Como afirma Anderson (2006), no final do
século XIX, os censos, que a princípio tinham por objetivo quantificar o número de
indivíduos pagadores de impostos ou aptos para a atividade militar – deixando de fora, assim,
mulheres e crianças, por exemplo –, passam a se organizar em torno de outros critérios de
classificação. Religião, etnia e língua são incluídos ou realçados à medida que o império se
especializa e multiplica suas funções, ampliando, ao mesmo tempo, a máquina administrativa
para dar conta dos novos sistemas de educação, saúde, administração da justiça, policiamento,
etc.
Essas transformações seguem sempre a lógica dos realizadores dos censos que,
segundo Anderson, gira em torno de uma quase obsessão pela completude e pela ausência de
ambiguidade, impossíveis de serem efetivamente aplicadas. Cria-se, assim, uma espécie de
ficção onde as categorias listadas são entendidas como únicas, claras, distintas e isentas de
zonas cinzentas e de indefinições: “(t)he fiction of the census is that everyone is in it, and that
everyone has one – and only one – extremely clear place” (Anderson, 2006: 166).
Nesse novo desenho, a inclusão da língua como categoria de classificação e objeto de
quantificação nos censos é bastante debatida, como afirma Hobsbawm. Segundo o autor, no
congresso internacional de estatística de 1860, sua inclusão é considerada opcional, cabendo a
cada Estado analisar sua relevância e optar ou não por ela. Em 1873, no entanto, passar a ser
expressamente recomendada (Hobsbawm, 2012: 97).
Portanto, se a língua, naquele momento, não era ainda um critério essencial de
identificação nacional para alguns Estados, tal cenário se modifica com sua inclusão no censo,
quando grupos passam a se identificar e diferenciar a partir dela como nunca haviam feito
antes. Desenvolve-se, em torno da língua, uma certa consciência ou percepção da identidade
e da diferença, de pertença a um grupo maioritário ou minoritário, da partilha de uma posição
de vantagem ou desvantagem no interior dos impérios:

What nobody quite appreciated was that asking such a question would in itself generate
linguistic nationalism. (...) In truth, by asking the language question censuses for the first
time forced everyone to choose not only a nationality, but a linguistic nationality. The
technical requirements of the modern administrative state once again helped to foster the
emergence o nationalism (…). (Hobsbawm, 2012: 100).

54
Língua e identidade nacional

Um outro desdobramento da inclusão das línguas como categoria nos censos


relaciona-se com a associação da língua e suas estatísticas a outros critérios de classificação
simultaneamente adotados, como etnia, religião, estatuto sócio-econômico entre outros,
trazendo à tona relações de poder que antes poderiam passar despercebidas e criando novos
pontos de contato e ligação, assim como de conflitos.
Especialmente a partir de 1830 e até o final do século XIX, as línguas paulatinamente
ganham destaque como critério de nacionalidade, configurando uma espécie de nacionalismo
linguístico. Falar a língua torna-se critério de identificação nacional e também de
reconhecimento público como membro integrante de uma nacionalidade específica. O amor à
língua se confunde com o amor à nação. Proteger e afirmar a língua torna-se sinônimo de
proteger e afirmar a nação. A língua é entendida como sendo a alma da nação, e não o
resultado de uma construção historicamente situada e de tradições inventadas:

Yet the ‘national language’ is rarely a pragmatic matter, and still less a dispassionate one, as
is shown by the reluctance to recognize them as constructs, by historicizing, and inventing
traditions for, them. Least of all was it to be pragmatic and dispassionate for the ideologists
of nacionalism as it evolved after 1830 and was transformed towards the end of the century.
For them, language was the soul of a nation, and, as we shall see, increasingly the crucial
criterion of nationality. (Hobsbawm, 2012: 95).

Nesse sentido, vale ainda destacar o papel da língua na construção das chamadas
nações tardias: Alemanha e Itália. Unificadas na segunda metade do século XIX, em ambos os
casos, a língua – ou seja, o alemão e o italiano, respectivamente – desempenha papel crucial
como fator de identidade, embora não fosse, à época, utilizada pela grande maioria das
pessoas quer num caso quer noutro. Mais do que meras línguas administrativas, o alemão e o
italiano eram línguas de cultura e de valor literário, consistindo, segundo Hobsbawm (2012:
103), no único elemento que fazia daqueles indivíduos alemães ou italianos. Essa mesma
ideia é defendida por Blommaert & Verschueren que, ao citarem o exemplo alemão,
identificam a língua como sendo virtualmente o único recurso de identificação nacional
possível:

The German quest for a nation-state was considerably facilitaded by the spread of German
dialects across a large part of Europe. Though only few people actively used a common
language of culture, politically the geographical area in question had been so fragmented that
language was not only a useful, but virtually the only possible, focus for unity. Moreover, by
the time of German unification in the second half of the nineteenth century, European
nationalism was taking a linguistic turn (expressed, i.a., in the insertion of a language
question in national censuses). (Blommaert & Verschueren, 1992: 364).

55
Língua e identidade nacional

Essa centralidade do papel da língua caracteriza os nacionalismos linguísticos, que


giram em torno, não só da língua como símbolo de uma identidade nacional, mas
especialmente da língua de educação e de administração, isto é, da língua adotada pelos
sistemas de educação pública e pelos governos – “linguistic nationalism was and is essentially
about the language of public education and official use” (Hobsbawm, 2012: 96).
Em tal cenário, a transformação do papel da língua está intrinsecamente relacionada
com a construção das chamadas línguas nacionais, ou seja, de uma língua comum a todos os
membros de uma dada nação, que permite a comunicação mas também a identificação
recíproca, a partilha de valores e cultura, o sentimento de pertença e, do mesmo modo, mas
em sentido inverso, a delimitação, a marcação da diferença e a instauração da suspeita face à
imaginação do outro.
Mas, se, na construção das línguas nacionais, prevalecem os discursos de atribuição de
relevância às suas funções comunicativa e cultural, Hobsbawm aponta em direção oposta,
identificando as questões de poder, status, política e ideologia como sendo centrais ao
desenvolvimento dos nacionalismos linguísticos: “(a)t all events problems of power, status,
politics and ideology and not of communication or even culture, lie at the heart of the
nationalism of language” (Hobsbawm, 2012: 110).
Nesse contexto, vale ainda destacar que o processo de construção das línguas
nacionais só se torna possível com o desenvolvimento concomitante da imprensa e dos
sistemas de educação de massas (Hobsbawm, 2012: 10), que simultaneamente promovem e
dependem da literacia numa dada língua, agora de cariz nacional, padronizada e prestigiada.
Mais uma vez, o capitalismo representa a força propulsora desse processo, com sua
dependência de mercados ampliados e meios de comunicação e circulação desenvolvidos e a
consequente demanda cada vez maior por literacia.
A ampliação do papel da literacia em tal cenário também é destacada por Gellner
(1994) em sua reflexão sobre a modernidade, caracterizada, segundo ele, pela transformação
da vida social e econômica, por maior mobilidade e pela emancipação do proletariado
industrial. De acordo com o autor, as instituições da modernidade, com seu aparato
econômico, de governo e educação, requerem novas literacias, favorecendo, assim, a língua
de poder, que passa a representar uma espécie de passaporte para se alcançar a cidadania em
sua plenitude (ibidem: 60).
Em resumo, a modernização das sociedades, marcadas por um maior desenvolvimento
e dependência tecnológica e dos meios de produção em massa, cria novas exigências, entre
elas, uma demanda cada vez maior pela literacia na língua nacional, que precisa ser

56
Língua e identidade nacional

devidamente apropriada, não só no âmbito da oralidade, como no da escrita. Essa nova


situação acentua a relevância dos sistemas de educação secundária desenhados para atender
uma população cada vez maior e mais concentrada, acompanhando o crescimento do chamado
proletariado industrial e promovendo um certo grau de homogeneização e padronização
(Hobsbawm, 2012: 93-94).
Nesse processo, começa a ganhar corpo a ideia de audiência de massas: numerosa,
supostamente homogênea e padronizada, que é acompanhada pelo desenvolvimento de novas
tecnologias de comunicação, ou seja, pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de
massas, com destaque para o rádio, a televisão e o cinema, ainda na primeira metade do
século XX.
Por um lado, os meios de comunicação de massas contribuem para o desenvolvimento
e a valorização da língua nacional, uma vez que dependem dela para distribuir seus produtos e
alcançar seu público. Ao mesmo tempo, o domínio da língua torna-se essencial para a fruição
de tais produtos, que circulam cada vez com mais frequência e conquistam relevância
crescente na estrutura das sociedades modernas.
Por outro lado, como afirma Hobsbawm (2012: 141-142), tais mídias representam a
possibilidade de novas formas de expressão e identificação nacional – para além das questões
envolvendo a definição de fronteiras, de disputas jurídicas ou de língua – e de circulação de
símbolos nacionais, que antes estavam restritos à esfera pública e agora alcançam o espaço
privado:

However, deliberate propaganda was almost certaingly less signficant than the ability of the
mass media to make what were in effect national symbols part of the life of every individual,
and thus to break down the divisions between the private and local spheres in which most
citizens normally lives, and the public and national one. (ibidem: 142).

Essa breve reflexão sobre a relação entre mídia e língua – realizada, aqui, numa
perspectiva histórica – e as funções que tal relação desempenha ao longo do processo de
construção das identidades nacionais pode ser estendida até a atualidade. Nas sociedades
europeias atuais, a língua ainda parece figurar como elemento de identificação nacional e a
mídia segue ocupando lugar de destaque na estruturação dessa sociedade. Tais temas serão
desenvolvidos a seguir, a partir de duas perspectivas distintas – a simbólica e a cultural – e no
contexto do multinguismo: aposta da União Europeia na valorização da diversidade
linguística que caracteriza seu território.

57
Língua e identidade nacional

Língua e Identidade Nacional: perspectiva simbólica

Deutch (1994), em sua reflexão sobre os nacionalismos, já assinalava a dependência


da nação em relação à língua, como referido no capítulo anterior. Para o autor, a possibilidade
de comunhão de uma história comum, do sentimento de pertença e da compreensão mútua
entre os membros da nação era condição sine qua non para sua existência e tal compreensão
só seria possível a partir da partilha de um conjunto de recursos e estruturas comunicativos
desenvolvidos em torno de um sistema comum de símbolos, que seria a língua:

The community which permits a common history to be experienced as common, is a


community of complementary habits and facilities of communication. It requires, so to speak,
equipment for a job. This job consists in the storage, recall, transmission, recombination, and
reapplication of relatively wide ranges of information; and the ‘equipment’ consists in such
learned memories, symbols, habits, operating preferences, and facilities as will in fact be
sufficiently complementary to permit the performance of these funcions. A larger group of
persons linked by such complementary habits and facilities of communication we may call a
people. (...) The communicative facilities of a society include a socially standardized system
of symbols which is a language, and any number of auxiliary codes, such as alphabets
systems of writing, painting, calculating, etc. (Deutsch, 1994: 26).

Nessa sua definição funcionalista dos nacionalismos, a língua é explorada em seu viés
predominantemente comunicativo. A participação num dado grupo, ou seja, o reconhecimento
de alguém como membro integrante dessa comunidade – e, da mesma forma, seu auto-
reconhecimento como membro dessa comunidade – consiste na capacidade de se comunicar
socialmente. Em outras palavras, ser capaz de se comunicar de forma mais eficiente com
integrantes desse grupo do que com aqueles que dele não fazem parte configura um recurso
essencial de identificação e de auto-identificação.
A língua, no entanto, além de um sistema simbólico, é por si só um símbolo – e é esse
o viés que se pretende explorar neste estudo, ou seja, o da língua como símbolo de uma certa
identidade nacional e, nessa condição, dotada de poder econômico, político, sociocultural e
também simbólico, na acepção de Bourdieu (1999). A língua como símbolo de uma origem
comum, a língua como símbolo de uma raiz antiga e profunda, a língua como símbolo de uma
certa visão de mundo, a língua como símbolo de poder, a língua como símbolo de um
temperamento ou comportamento, a língua como símbolo de uma cultura, a língua como
símbolo da nação são apenas alguns exemplos.
Nessa perspectiva, importa não só a construção de representações simbólicas
associadas à língua, mas também o potencial de disseminação e fixação das mesmas. Com o
aumento exponencial da mobilidade e o desenvolvimento dos meios de comunicação,

58
Língua e identidade nacional

característicos da modernidade, o campo de partilha e difusão dessas representações se


expande. Tal movimento se dá primeiro no campo nacional, impulsionado pelo sistema
educativo e pela mídia, pela infra-estrutura e pelas instituições nacionais, e, depois, para além
da arena nacional, com a globalização e os desdobramentos que lhe são inerentes.
O desenvolvimento dos sistemas nacionais de educação, quer no nível primário, quer
no secundário, propicia a fomação de um ambiente ideal para a circulação da informação e
também de ideias, valores e ideologias. Ao mesmo tempo, permite algum grau de controlo por
parte das instituições – de governo, religiosas, políticas, da sociedade civil, etc. – responsáveis
pela definição e aplicação das políticas educativas ou que participam desse processo em
alguma medida.
No que diz respeito à construção das identidades nacionais, a implementação de tais
sistemas educativos faz com que uma certa ideia de nação, com suas diferentes estratégias de
representação, seja criada e partilhada por essa rede, naturalizando-se como sendo a definição
correta, isto é, a única, a verdadeira, a autêntica, cristalizando, assim, uma visão essencialista
dessa identidade nacional e criando, simultaneamente, a ilusão de homogeneidade e
naturalidade comungada pelos membros dessa comunidade.
Também a mídia, como principal meio de difusão de sistemas simbólicos (Thompson,
1995), adquire cada vez mais relevância nos processos de construção identitária. Essa
afirmação se fundamenta no crescente papel desempenhado pela mídia nas sociedades
modernas, impulsionado pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação. Em outras
palavras, para se entender e refletir sobre a natureza desta modernidade tardia, é essencial
analisar o papel desempenhado e o impacto provocado pelos novos meios de comunicação:

The development of communication media was interwoven in complex ways with a number
of other developmental processes which, taken together, were constitutive of what we have
come to call ‘modernity’. Hence, if we wish to understand the nature of modernity – that is,
of the institutional characteristics of modern societies and the life conditions created by them
– then we must give a central role to the development of communication media and their
impact. (Thompson, 1995: 3).

A fim de se ter uma percepção mais clara dessa situação, basta pensar que as
transformações promovidas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massas
incluem a ampliação dos espaços e oportunidades de ação individual e coletiva, o alargamento
dos horizontes de visão, o acesso a uma quantidade exponencial de informação, a
possibilidade de conhecimento e de formação e expressão de opinião (assim como a

59
Língua e identidade nacional

responsabilidade que a acompanha) sobre acontecimentos diversos, a redefinição das esferas


públicas e privadas, entre tantos outros.
Com essas transformações, a necessidade de mediação – seja em função das distâncias
físicas que separam o indivíduo do acontecimento ou do excessivo volume de informação que
se torna possível, por exemplo – também é acrescida, reforçando a importância da mídia,
como instrumento de mediação por excelência, e a dependência do indivíduo em relação a ela,
num movimento circular, ou seja, é o desenvolvimento dos meios e tecnologias de
comunicação que cria novas necessidades de acesso e consumo da informação, necessidades
essas que só podem ser atendidas pelo desenvolvimento desses mesmos meios e tecnologias
de comunicação.
Mas essa situação não é nova nem resulta diretamente do desenvolvimento da internet,
pelo contrário, as transformações associadas ao desenvolvimento da mídia e ao seu impacto
nas sociedades são estudadas há muito tempo. Já nos anos 60, por exemplo, Schiller
(Thompson, 1995) desenvolvia a tese do imperialismo cultural ao analisar o papel dos EUA
na disseminação de informação e entretenimento. Segundo o autor, o imperialismo cultural
americano seria uma das consequências dos processos de globalização, uma nova forma de
manifestação do poder econômico dos EUA, que agora estaria a se manifestar como
aculturação, isto é, como imposição de uma homogeneidade baseada nos padrões americanos,
como destruição das especificidades nacionais e locais, em resumo, como destruição da
diversidade cultural.
A tese do imperialismo cultural americano é questionada por Thompson, que relativiza
os efeitos do poderio americano no campo da comunicação e, consequentemente, da
disseminação de sistemas simbólicos no âmbito global. Parte fundamental da argumentação
de Thompson reside nos processos de recepção dos produtos de comunicação por parte de
suas respectivas audiências e na importância das diferenças culturais na interpretação e leitura
desses produtos.
Segundo Thompson, para se apreender verdadeiramente a amplitude e a intensidade
das transformações operadas pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação,
com suas novas e complexas redes e fluxos de comunicação e informação, é preciso afastar-se
da concepção de comunicação como mera transmissão de dados. As funções da mídia nas
sociedades modernas são muito mais alargadas e incluem o importante papel de instituidora
de novos tipos de relações sociais, de outras formas de interação e de relação com o outro e
consigo mesmo:

60
Língua e identidade nacional

(…) (W)e can understand the social impact of the development of new networks of
communication and information flow only if we put aside the intuitively plausible idea that
communication media serve to transmit information and symbolic content to individuals
whose relations to others remain fundamentally unchanged. We must see, instead, that the
use of communication media involves the creation of new forms of action and interaction in
the social world, new kinds of social relationship and new ways of relating to others and to
oneself. (Thompson, 1995: 4).

No campo da política linguística é possível encontrar outros indícios dessa perspectiva


simbólica. Muitas das políticas que vigoram ainda hoje giram em torno de uma suposta
língua-padrão, de prestígio, poder e qualidade superior, que deve ser protegida e que, não
raras vezes, serve de instrumento para desvalorizar e desprestigiar outras línguas ou mesmo
outras versões dela mesma, ou seja, suas variantes – na verdade, a própria ideia de variação
já parece implicar uma espécie de hierarquia de valores ao pressupor um centro, isto é, uma
referência estável contra a qual essa variação é construída e, muitas vezes, medida e avaliada.
No debate em torno das línguas nacionais, as ideias de valor e de superioridade da
língua, associadas aos discursos de valorização de uma suposta pureza, por exemplo,
manifestam-se em discursos como os que falam sobre os riscos de “contaminação” e a
necessidade de “proteção contra ameaças” de natureza diversa. Em alguns casos, verifica-se
mesmo uma tentativa de imobilizar a língua, fixando seu conteúdo e enrijecendo as regras de
uso, num esforço – destinado ao fracasso, uma vez que toda língua viva se desenvolve e altera
ao longo do tempo e do seu uso – de evitar a mudança a qualquer custo.
Outra linha de argumentação recorrente é aquela que se fundamenta em discursos de
defesa da preservação da língua e da sua imobilidade em favor da garantia do entendimento
mútuo. Não mais se trata de afirmar seu valor e superioridade face às demais, portanto, mas
sim de apelar para a perspectiva da língua em sua função comunicativa. Nesse caso, a
perspectiva simbólica é aparentemente relegada ao pano de fundo, enquanto a perspectiva
utilitária da língua é trazida à cena.
Ainda nesse sentido, o conceito de língua materna parece ser bastante representativo
das relações que são estabelecidas entre língua e identidade. A escolha dessa expressão, que
remete para os laços de famíla, traz à tona uma série de representações bastante fortes para as
sociedades europeias modernas no que diz respeito à figura da mãe como primeira fonte de
vida, origem, alimento, orientação, proteção, afeto. O vínculo materno é referido
frequentemente como sendo um dos mais fortes no que diz respeito à natureza humana.
A relação de filiação também surge como um forte elemento de identificação
individual, constando, por exemplo, de boa parte dos documentos utilizados para identificar o
indivíduo ao longo da sua vida em sociedade. A referência à língua materna – que, em parte,

61
Língua e identidade nacional

por conta desse imaginário e daquilo que ele implica, vem sendo substituída em algumas
áreas por expressões como primeira língua, por exemplo – remete para um universo de
expectativas, posturas e sentimentos face às línguas e ao seu uso que parecem condizer com
os discursos de afirmação nacional construídos em torno das línguas, acentuando seu papel de
ícone da nação.
Como refere Hobsbawm, um exemplo significativo da dimensão simbólica assumida
pelas línguas nacionais e traduzida, em parte, nessa preocupação com a pureza e a
autenticidade das línguas nacionais – exemplo repetidamente narrado, mas com diferentes
países ocupando a posição de protagonismo –, consiste no esforço repetitivo e intensivo de
excluir da língua certas palavras que não são consideradas suficientemente autênticas ou
originárias, ou seja, palavras emprestadas ou tomadas de outras línguas de contato. Tais
vocábulos são, em geral, substituídos por novas versões mais adequadas à ideologia
linguística nacional:

Indeed, languages become more conscious exercises in social engineering in proportion as


their symbolic significance prevails over their actual use, as witness the various movements
to ‘indigenize’ or make more truly ‘national’ their vocabulary, of which the struggle of
French governments against ‘franglais’ is the best-known recent example. (Hobsbawm, 2012:
112).

Nesse contexto, entende-se por ideologia linguística os valores, práticas e crenças


relacionadas com o uso das línguas que vigoram numa dado contexto social, espacial e
temporal. Dizendo-se de outro modo, entende-se por ideologia o conjunto de ideias,
percepções e expectativas sobre a língua, motivadas por um dado contexto sociocultural, que
se manifestam nas diferentes instâncias de uso da mesma (cf. Wodak and Boukala, 2005).
Os discursos de valorização da pureza e da integridade, associados aos temores de
miscigenação e contágio, permeiam a discussão sobre os nacionalismos linguísticos e também
o debate sobre os chamados nacionalismos etnolinguísticos. Embora os conceitos de língua
nacional e nacionalismo se aproximem e sobreponham, há, nessa última referência ao
nacionalismo etnolinguístico, uma associação bastante direta entre língua e origem, ou seja,
prevalece a associação da língua a uma origem comum, ou etnia, que pode se confundir,
inclusive, com a ideia de raça.
Hobsbawm chama a atenção para essa relação, que ele classifica como “óbvia”, entre
racismo e nacionalismo. Segundo o autor, em alguns momentos tais conceitos chegam a se
confundir, embora raça e língua não possam ser inferidas uma a partir da outra. De certo

62
Língua e identidade nacional

modo, as referências ao “nacionalismo linguístico” e ao “nacionalismo etnolinguístico”


parecem corroborar a tese de Hobsbawm:

The links between racism and nationalism are obvious. ‘Race’ and language were easily
confused as in the case of ‘Aryans’ and “Semites’, to the indignation of scrupulous scholars
like Max Muller who pointed out that ‘race’, a genetic concept, could not be inferred from
language, which was not inherited. Moreover, there is an evident analogy between the
insistence of racists on the importance of racial purity and the horrors of miscegenation, and
the insistence of so many – one is tempted to say of most – forms of linguistic nationalism on
the need to purify the national language from foreign elements. (Hobsbawm, 2012: 108).

De qualquer modo, não se pode ignorar a força dos sentimentos que levam os
indivíduos a se identificarem como membros de um grupo, atribuindo-se uma dada identidade
étnica e linguística em contraste com outros, que, em geral, representam uma ameaça contra a
qual aquele grupo precisa de se defender. Esse é o cenário esboçado por Hobsbawm (2012:
170) e que, em alguma medida, fundamenta sua afirmação de que a xenofobia é a ideologia de
massas mais disseminada no mundo, como já comentado no capítulo anterior.

Língua, Cultura e Identidade Nacional

Pelo menos desde a afirmação de Wittgenstein de que a língua de um indivíduo define


os limites do seu mundo (Potter, 1997), no sentido de que a língua constitui um dos mais
importantes meios de apropriação e apreensão de tudo aquilo que o rodeia, a relação entre
língua e visões de mundo tem sido fequentemente debatida. Em outras palavras, o que se
debate é o lugar da língua e seu peso na construção da realidade, no singular e no plural.
Entre os muitos estudos desenvolvidos nessa área, destaca-se o trabalho de Sapir e
Whorf, representado pela hipótese de que a língua de um indivíduo determina ou condiciona
sua visão de mundo. A língua, nesse contexto, seria um elemento estruturante da vida em
sociedade e essencial para a definição de seus contornos; mais do que uma forma de dizer ou
representar algo, a língua seria condição de sua existência.
Um exemplo bastante esquemático, mas também ilustrativo, seria o dos esquimós, que
contariam com um conjunto muito maior e variado de palavras para indicar a cor branca,
recurso que permitiria uma indicação mais precisa para o estado da neve. Essa capacidade de
reconhecimento do seu meio ambiente seria fundamental para sua sobrevivência e
indissociável dela, estando, ao mesmo tempo, dependente da existência e conhecimento desse

63
Língua e identidade nacional

conjunto ampliado de palavras para dizer o estado e a condição da neve. Em outras palavras,
na perspectiva do indivíduo, a condição de existência, no campo da realidade, de um conjunto
ampliado de estados da neve é indissociável da existência simultânea desse vocabulário com
ele compatível.
De modo geral, a existência de alguma relação entre língua e mundo é pouco
contestada, o que, no entanto, é objeto de debate é a natureza e o grau dessa relação. A língua
determina uma visão de mundo ou influencia tal visão? Se influencia, em que medida ou de
que modo? Mais especificamente, e já direcionando o debate para o tema em causa nesta
pesquisa, interessa refletir sobre em que medida a língua que falamos faz de nós quem somos
ou, em outras palavras, em que medida a língua que falamos determina ou influencia nossa
identidade.
A sociolinguística também explora essa relação entre língua, visão de mundo e
identidade ao extrapolar a perspectiva da língua como meio de comunicação, estritamente, e
analisar seus diferentes papéis no contexto social. A língua é, assim, analisada numa
perspectiva mais abrangente, como forma de ação e estratégia de interação em sociedade,
como recurso de identificação e de estabelecimento de relações interpessoais entre outros.
É no âmbito da discussão acima que o conceito de cultura é trazido ao debate,
estabelecendo-se uma relação de interdependência entre língua e cultura. Embora não sejam
sinônimos, não se pode negar a existência de uma forte componente cultural no conceito de
língua ou, em sentido inverso, de uma forte componente linguística no conceito de cultura.
Em comprovação ao acima afirmado, basta observar a frequência de vezes em que um termo é
tomado pelo outro, numa sobreposição nem sempre explícita ou intencional.
Nessa perspectiva, a ideia de que as línguas são dotadas de cultura parece fazer
sentido. Nascer, ser educado, crescer e conviver numa certa língua, portanto, implicaria
partilhar uma certa cultura em toda a sua amplitude – língua e cultura seriam, assim,
indissociáveis. Essa partilha de ou comunhão numa mesma língua e cultura configura um
forte recurso de identificação individual e coletiva, e também de identificação nacional –
muitos dos discursos de afirmação nacional, em geral de caráter essencialista, valem-se dele
para construir uma percepção de homogeneidade e identidade, por exemplo.
Corroborando a posição que associa cultura e identidade, Hall (2014: 29) destaca a
sobreposição existente entre esses dois conceitos no âmbito nacional, descrevendo as culturas
nacionais como “comunidades imaginadas”, numa referência explícita à definição de nação de
Anderson. Para o autor, assim como as nações, as culturas nacionais são construções da
modernidade e fonte de identificação individual e coletiva, como referido a seguir:

64
Língua e identidade nacional

As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação


que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo,
à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura
nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma
subordinada, sob aquilo que Gellner chama de “teto político” do Estado-nação, que se tornou,
assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas. (Hall,
2014: 30).

Uma vez que a relação de interdependência entre língua e cultura já foi aqui destacada,
parece razoável ampliar essa discussão para abranger as relações de interdependência entre
cultura, língua e identidade, que estão aqui em causa. Seguindo tal raciocínio, a língua
definiria os limites, isto é, o campo de atuação dessa cultura – e, se pensarmos nas culturas
nacionais, poderiam, inclusive, atuar como uma espécie de sucedâneo das fronteiras da nação.
Nesse sentido, parece interessante referir a acepção de cultura nacional de Santos
(2001: 25-6), segundo a qual esta seria uma construção dos Estados-Nação, que, ao longo do
século XIX, teriam tomado para si a tarefa de diferenciar a cultura interior às suas fronteiras
daquilo que lhe era exterior, homogeneizando essa cultura no interior do seu território, para
então extrapolar essa noção de território físico que define os limites dessa cultura nacional e
pensar o papel da língua nesse contexto.
Como afirmam Wodak e Boukala (2015: 258), cada vez mais, são a língua nacional, a
ideia de etnia e a cultura que operam como definidores desses limites e fronteiras, figurando
como elementos importantes nos debates sobre as políticas de identidade: “ ‘(b)order politics’
is part of national identity politics and is now increasingly defined by the national language
(“the mother tongue”), ethnicity and culture, thus transcending the political borders of the
nation state”.
Mas, além de portadoras de cultura e em consequência disso, as línguas são também
importantes ferramentas de transmissão e disseminação cultural. Por meio da língua, a cultura
nacional é transmitida de uma geração para outra, numa perspectiva temporal, e também
disseminada para além do espaço – físico ou virtual – que ocupa, num contexto em que os
sistemas de educação e ensino e as novas tecnologias da informação e de comunicação
desempenham papel relevante.
Dessa relação entre língua e cultura resulta uma aproximação entre os discursos que se
aplicam a uma ou outra: os discursos de valorização da diversidade cultural se confundem
com os discursos de valorização da diversidade linguística; os discursos de proteção de uma
dada cultura se confundem com os de proteção de uma dada língua. Aliás, em matéria de
língua e cultura, predominam os discursos de valorização e proteção ao lado da constante
presença de uma ameaça, como se fossem ambas – língua e cultura – cacterizadas por um

65
Língua e identidade nacional

permanente estado de fragilidade ou como se estivessem em situação de risco ou perigo


constante.
É bem verdade que muitas vezes tais questões estão associadas às línguas e culturas
minoritárias, mas nem sempre é assim. Veja-se, por exemplo, o caso dos EUA, onde se pode
encontrar discursos que consideram o castelhano como uma ameaça face à crescente
porcentagem de indivíduos de origem hispânica no total da população americana. Ainda, no
mesmo sentido, considere-se os discursos em tom acusatório sobre o desrespeito à língua-
padrão, entendido como forma de destruição do patrimônio cultural nacional, ou sobre as
tentativas de legislar sobre a língua e seu uso, estipulando multas a “erros” ou determinando a
abolição de “estrangeirismos”, entre outras iniciativas.
Também Hall analisa a relação entre língua, cultura e identidade por meio do discurso.
Segundo o autor, a nação consiste num sistema de representação cultural, no sentido de ser a
nação o enquadramento contra o qual as representações de cultura são construídas ou que
seleciona ou provê um conjunto de representações da cultura que são assim associadas a uma
identidade nacional específica. Com essa definição, o autor afasta as visões essencialistas das
identidades nacionais, como ilustrado abaixo:

(…) na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são
formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser
“inglês” devido ao modo como a “inglesidade” [englishness] veio a ser representada – como
um conjunto de significados – pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é
apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação
cultural (Hall, 2014: 30).

No interior desse sistema de representação, a cultura nacional é um discurso, ou


melhor, um “dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade”
(ibidem: 36), ou seja, um mecanismo de identificação ou de produção da identidade (e da
diferença) que atua apagando as diferenças entre os indivíduos que se imaginam como
membros de uma dada nação e realçando as diferenças entre tais indivíduos e aqueles
identificados como pertencentes a uma outra entidade nacional.
Uma outra perspectiva de análise da relação entre língua, cultura e identidade nacional
é evidenciada na construção de estereótipos, muitos deles presentes nos relatos de uso da
língua por famílias onde pais e filhos têm diferentes nacionalidades. Afirmar que um casal
namora em francês, briga em alemão e fala com seus filhos em inglês, por exemplo, não
parece suscitar grandes surpresas numa sociedade que partilha certos lugares-comuns, como a

66
Língua e identidade nacional

ideia de que o francês é uma língua romântica, o alemão é uma língua agressiva ou dura e o
inglês é uma língua de poder e sucesso internacional.
Nesse contexto, entende-se por estereótipo o conjunto de representações cristalizadas e
repetidas, partilhadas por um número ampliado de pessoas e utilizadas, de modo recorrente,
na construção e caracterização das identidades – seja de forma afirmativa, seja de forma
negativa. Embora nem sempre seja possível definir o conteúdo de tais estereótipos de modo
consensual, tal fato não impede nem restringe o seu uso nos discursos do cotidiano, tampouco
minimiza sua força e importância.
Os estereótipos constituem um forte recurso de construção de identidade e diferença e
desempenham papel de relevância na construção de uma certa imagem pública, tanto no que
diz respeito à autoimagem, como também no que diz respeito à imagem que se atribui ao
outro. Em geral, tais representações se valem de preconceitos de natureza diversa e
incorporam um grande potencial de violência, os quais, muitas vezes, passam despercebidos
em função da adoção, também recorrente, de um certo tom jocoso ou humorístico:

We could go on almost ad infinitum with such more or less serious anecdotal remarks about
nationality or the alleged mentality of nations. While this can be amusing to a certain extent,
we are also aware of how often nationalist attitudes and ethnic stereotypes articulated in
discourse accompany or even determine political decision-making, and we note with concern
the increase in discriminatory acts and exclusionary practices conducted in the name of
natinalism in many parts of Europe (Wodak et al, 1999: 1).

Retomando o exemplo do contexto familiar marcado pela pluralidade de identidades


nacionais, efetivas ou potenciais – cenário que tem vindo a se multiplicar nas sociedades
europeias atuais, onde se verifica um esforço no sentido de promover a mobilidade de
pessoas, ao menos no que diz respeito aos países membros da União Europeia –, pode-se
identificar outras questões referentes à língua, cultura e identidade. Preocupações como a
escolha do nome da criança para que seja facilmente pronunciável em línguas diferentes ou
do debate sobre a língua que será adotada nesse primeiro momento de socialização familiar
são cada vez mais frequentes. Como regra geral, a ideia de que a criança só tem a ganhar com
o aprendizado de línguas diferentes parece prevalecer, ou seja, é interpretada como uma mais-
valia.
Em resumo, nessas discussões sobre língua, identidade e cultura, parece haver um
esforço de acomodação das diferenças. Em outras palavras, procura-se promover a criação de
um espaço comum entre línguas diferentes, que não passa necessariamente pela adoção de

67
Língua e identidade nacional

uma única língua partilhada por todos, como uma espécie de língua franca ou de uso global
generalizado.

Língua, Multilinguismo e Identidade Nacional

Interessa agora refletir sobre o que acontece com a relação entre língua e identidade
nacional na Europa de hoje, ou melhor, sobre o que acontece com a percepção dessa relação.
A rigor, a afirmação peremptória de que a cada nação corresponde uma língua nacional (ou,
em sentido inverso, a existência de uma língua nacional conduzindo ao reconhecimento ou
constituição da nação), que ganhou força ao longo dos séculos XIX e primeira metade do XX,
há muito vem sendo desafiada.
Corroboram a afirmação acima os vários exemplos de nações únicas que se valem de
diferentes línguas nacionais (como a Suíça ou a Bélgica), assim como os exemplos de nações
distintas que partilham uma mesma língua nacional (como Portugal e o Brasil ou o Reino
Unido e os EUA). Tais situações, no entanto, não parecem abalar a fé generalizada na máxima
de uma língua, uma nação, ao menos nos discursos do cotidiano.
No contexto da União Europeia, no entanto, vigora a política ou ideologia do
multilinguismo, que consiste, grosso modo, na valorização da diversidade linguística
característica da Europa, indissociável da promoção do contato e do aprendizado entre as
diferentes línguas oficiais faladas nos países-membros. Traçando um paralelo com as
entidades nacionais tradicionais, interessa pensar qual seria o papel da língua hoje na
construção de uma identidade para a Europa.
Partindo-se, portanto, do pressuposto de que existe alguma afinidade entre o conceito
de identidade nacional e o de identidade europeia – e entendendo-se esta última como sendo
uma espécie de identidade supranacional, ou seja, da mesma natureza das identidades
nacionais, mas de um tipo distinto – importa refletir sobre a viabilidade de um projeto
identitário fundado no multilinguismo, isto é, na diversidade e variedade de línguas, em
contraste com a ideia de unidade linguística.
Seguindo tal raciocínio, a proposta de construção de uma identidade europeia em torno
do conceito do multilinguismo parece, a princípio, representar a negação da afirmação inicial
de uma língua, uma nação, no sentido de tentar promover um tipo de identidade nacional
(nesse caso, supranacional) sem a suposta unidade linguística equivalente. Mas tal leitura

68
Língua e identidade nacional

concorre com outros discursos inerentes ao multilinguismo, nem sempre explícitos, como
aqueles que giram em torno do respeito por e da proteção das diversas línguas nacionais.
Dizendo-se de outro modo, é possível identificar, entre tantos cenários possíveis e
concorrentes, um estado de tensão que se instaura entre os discursos de valorização da
diversidade linguística na Europa e os discursos de proteção da unidade – ou, melhor,
uniformidade – linguística de cada país-membro. Nessa perspectiva, a relação entre língua e
identidade é valorizada, assim com um certo nacionalismo linguístico, que não consegue se
afastar significativamente de visões essencialistas das identidades.
Os discursos construídos em torno da ideia de valorização e proteção da diversidade
linguística e cultural da Europa, assim como da necessidade de desenvolvimento de políticas e
programas de educação, ensino, mobilidade e conhecimento recíprocos a fim de combater
preconceitos e discriminação e promover a integração, estão presentes, por exemplo, no
Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas que, ao descrever as “finalidades e os
objetivos da política linguística do Conselho da Europa” (QECR, 2001: 20), caracteriza a
diversidade como valor, mas também como obstáculo a ser superado, como exemplificado a
seguir:

- (…) o rico património que representa a diversidade linguística e cultural na Europa


constitui uma valiosa fonte comum que convém proteger e desenvolver, sendo necessários
esforços consideráveis no domínio da educação, de modo a que essa diversidade, em vez de
ser um obstáculo à comunicação, se torne numa fonte de enriquecimento e de compreensão
recíprocos (Destaques acrescentados.)

Esse mesmo discurso, porém, que valoriza a diversidade linguística, parece inspirar,
em alguma medida, a proteção – ou um cuidado que parece, muitas vezes, excessivo – das
chamadas línguas nacionais e, mais especificamente, da associação ou mesmo do vínculo
entre língua e nação. É nesse contexto que se fala na convivência entre as línguas ou mesmo
na importância da diversidade, sem se explorar, efetiva e necessariamente, as possibilidades
de construção de uma identidade não linguística ou fundada exatamente na existência de um
repertório ampliado e sempre em movimento de línguas.
Nesse sentido, a tentativa de construção de uma identidade nacional a partir do
multilinguismo parece representar, não a contradição, mas sim o seu contrário, isto é, a
afirmação e validação da relação entre língua e nação, uma vez que nos discursos do
multilinguismo essa relação parece permanecer intocada – mais do que isso, é, na maioria dos
casos, protegida e valorizada.

69
Língua e identidade nacional

Considerando o posicionamento acima, seria interessante refletir sobre os fundamentos


do raciocínio por trás dele – ou seja, analisar se tal respeito pela relação língua/nação resulta
do reconhecimento de sua validade e importância ou se consiste pura e simplesmente em
condição de viabilidade do projeto do multilinguismo na Europa, ao menos no momento atual
– mas tal desenvolvimento não é possível no âmbito desta pesquisa.
Assim, a diversidade linguística – e sua contrapartida: a diversidade cultural – surge
como mais-valia e elemento de identificação e diferenciação de um conceito de Europa, isto é,
de uma identidade europeia, sem promover mudanças significativas na relação língua/nação.
No entanto, muitos dos discursos atuais – do final do século XX até hoje – que relacionam
língua e identidade parecem se valer dos conceitos do passado, mais especificamente da
ideologia associado à ideia do nacionalismo linguístico, posição corroborada por trabalhos
recentes.
Blommaert e Verschueren (1992), por exemplo, em seu estudo sobre o papel
desempenhado pelas línguas no âmbito das ideologias nacionalistas europeias nos anos 90,
realizado a partir da análise de discursos da mídia, concluem que estas seguem sendo
utilizadas como elemento de identificação (e diferença) de um dado grupo, em geral associado
a uma suposta homogeneidade étnica e cultural. Em muitos casos, essas relações (entre língua
e identidade ou etnia e cultura) são tomadas como adquiridas, isto é, prescindem de
justificativas ou explicações.
No contexto acima delineado, o nacionalismo é entendido como sendo o resultado do
desenvolvimento natural das sociedades humanas, fundamentado numa identidade étnica e
linguística (ibidem: 373), no âmbito da qual a língua consiste num traço essencial e
indissociável dessa suposta origem ou identidade comum: “(i)n popular ideology (not to be
confused with public ideology) however, language tends to be much more fundamental, even
natural and inalienable, aspect of ethnicity or group identity in general” (ibidem: 375).
Os autores destacam a importância da homogeneidade, isto é, da ideia de que a vida
em sociedade requer a existência de semelhanças entre as pessoas, sendo que as diferenças
constituem um obstáculo a ser vencido ou mesmo um perigo a ser evitado. Nesse sentido, a
sociedade ideal é aquela que se fundamenta numa só língua, numa só origem, numa só
religião e numa só ideologia, e o nacionalismo é o movimento que promove o
desenvolvimento natural dessas sociedades ideais, onde a semelhança e a homogeneidade
representam o valor da pureza:

70
Língua e identidade nacional

In other words, the ideal model of society is mono-lingual, mono-ethnic, mono-religious,


mono-ideological. Nationalism, interpreted as the struggle to keep groups as ‘pure’ and
homogeneous as possible, is considered to be a positive attitude within the dogma of
homogeneism. Pluri-ethnic or pluri-lingual societies are seen as problem-prone, because they
require forms of state organization that run counter to the ‘natural’ characteristics of
groupings of people. (Blommaert e Verschueren, 1992: 362).

O papel da língua como recurso de construção de identidade e diferença, de união ou


divisão, faz dela uma espécie de “campo de batalha” (ibidem: 370) nos casos, por exemplo,
que envolvem diferentes grupos em meio a conflitos nacionalistas – em torno de identidades
nacionais afirmadas ou sufocadas, reconhecidas ou em busca de reconhecimento – ou
conflitos étnicos, que incluem, em muitos casos, confrontos entre as diferentes minorias que
coexistem no interior de um dado território nacional. A língua como característica distintiva
de grupos naturais torna-se, nesse contexto, objeto de opressão e discriminação, fonte ou
móvel de violência, injustiça e intolerância.
Ao refletir sobre os nacionalismos no período logo após a dissolução da URSS e a
reunificação alemã, Blommaert e Verschueren (1992) destacam a perspectiva da violência
associada aos nacionalismos, delineando um cenário pouco animador. Para os autores, as
transformações dos nacionalismos, longe de representarem uma mudança em sua natureza
violenta e conflituosa a favor da democracia e da pluralidade, representam simplesmente uma
mudança de escala. Agora não é mais o poder de opressão dos impérios contra os povos
dominados que está em causa, mas sim o poder de opressão e o racismo das nações contra os
grupos minoritários que delas fazem parte e que veem negados seus direitos à língua e cultura,
entre outros:

Nationalism has been a notorious cause of conflicts, and has let to dome of the worst events
in history. Also, the ‘liberated’ Moldavians and Kazakhs or Slovaks, as well as the liberated
East-Germans, seem to be building a track record of oppression and racism agains minorities.
Every minority has its own minorities. And for members of minority groups, be they
immigrants in Western-Europe, or Gagauz people in Moldavia, the ‘national’ government
may be as bad as the empire, because in both cases very little attention is given to their
linguistic, cultural or whatereve rights. Only the structural level of the debate has shifted.
Nothing has been achieved to guarantee more democracy in a pluralist sense. (Blommaert e
Verschueren, 1992: 373).

Considerando-se mais explicitamente o contexto do multilinguismo, interessa destacar


um estudo recente, realizado por Wodak e Boukala (2015: 268), que visa analisar a relação da
língua na construção do sentimento de pertença e das identidades nacionais na Europa da
atualidade. Sua principal conclusão é que, na Europa de hoje, embora o multinguismo vigore

71
Língua e identidade nacional

como princípio, implicando, em alguma medida, a valorização da diversidade, a defesa da


liberdade linguística e a promoção do aprendizado das línguas, este parece se restringir ao
conjunto de línguas oficiais da União Europeia, como citado abaixo:

Proficiency in the national languages of EU members is used as a strategy for the exclusion
of “strangers” and the enforcement of a (supra)national identity via border and body politics.
Hence, the multilngualism of the EU is limited to member states’ national languages, in spite
of the wording of official EU multilingualism policies.

O multilinguismo assumiria, assim, uma dupla face, configurando-se como estratégia


de inclusão e integração dentro do espaço territorial delimitado pela União Europeia e como
uma estratégia de exclusão de todos aqueles que não pertencem a tal grupo. Esse
entendimento parece contrariar as diretrizes gerais sobre as quais o conceito se assenta, já
mencionadas anteriormente.
Nesse estudo, Wodak e Boukala refletem sobre a relação de dependência, cada vez
mais acentuada, que é estabelecida entre o domínio de uma língua europeia e o acesso à
Europa, onde as políticas de língua adotadas pelos países membros, em acordo com as
recomendações gerais, configuram elemento relevante no processo de construção das
identidades nacionais individuais e coletivas. Para os autores, interessa perceber em que
medida as ideologias nacionalistas têm participado da configuração das políticas migratórias,
de aquisição de cidadania e da integração linguística por parte dos migrantes, num contexto
em que a língua parece se tornar uma importante barreira de acesso à legalidade (ibidem:
254).
Outra perspectiva que interessa ressaltar na análise dos resultados desse estudo
consiste na identificação de um discurso de contraposição entre o conceito de multilinguismo
e o de língua comum. Embora o multiliguismo seja percebido como um recurso de valor, é a
partilha de uma língua comum que é apontada como catalizador da integração e instrumento
de participação na sociedade: “Multilingualism is defined as a valuable resource; the
“commom language” (…), however, is promoted as the means to be able to participate in
society (Wodak and Boukala, 2015: 264).
A corroborar a afirmação acima, pode retomar-se a referência ao QERC (2001: 20),
citada anteriormente, que identifica a diversidade de línguas como um “obstáculo à
comunicação”, embora o faça no sentido de indicar um modo de vencê-lo, transformando essa
diversidade em “fonte de enriquecimento e de compreensão” mútuos por via do ensino e
aprendizagem das línguas, por exemplo.

72
Língua e identidade nacional

Em resumo, parece haver alguma tensão em torno do conceito do multilinguismo na


Europa de hoje, tensão na qual a questão das identidades nacionais ocupa posição central.
Essa tensão divide os indivíduos que têm como língua materna uma das línguas oficiais da
União Europeia daqueles que têm como língua materna uma língua não-europeia. Tal
afirmação é reveladora de uma distinção – da demarcação de uma diferença – entre os
membros da comunidade europeia: como se houvesse membros autênticos, isto é,
verdadeiramente europeus, e os não-autênticos, ou seja, os migrantes, mesmo que em
situação de legalidade, mesmo que cidadãos europeus.
Tomando de empréstimo a definição de multiculturalismo de Verkuyten para pensar o
multilinguismo num maior grau de abstração, pode-se entendê-lo como um pano de fundo –
uma ideologia, uma teoria, um conjunto de crenças – contra o qual são desenvolvidas
pollíticas e diretrizes para o ensino e a educação: “(m)ulticulturalism is considered, for
example, as an ideology, a lay theory, a set of normative beliefs, a framework for policies,
and a guideline for education and educational activities” (Verkuyten, 2007: 149).
Nesse contexto de coexistência e convivência da diversidade linguística, o indivíduo
pode agora construir sua identidade – individual e coletiva – a partir dessa pluralidade, e não
mais em torno da unidade linguística. Em outras palavras, nesse processo de construção
identitária, o conjunto de línguas que fazem parte do repertório do indivíduo num dado
momento é chamado a colaborar, como destaca Simpson (2008) ao analisar o contexto do
multilinguismo, mas na perspectiva africana. Segundo o autor, tal raciocínio se estende à
construção das identidades nacionais e do sentimento de pertença.

In terms of language-centred identity, it is perhaps natural do expect that the full range of
language(s) which make up an individual’s linguistic inventory has an influence on the
creation of self-image and the way that an individual sees him/herself as relating to others,
including the national population and the construct of the nation-state, and hence that
languages used for formal purposes also form part of speakers’ sense of national identity.
(Simpson, 2008: 24).

Por fim, um último tema que parece interessante explorar para melhor se entender a
relação entre língua, multilinguismo e identidade nacional refere-se ao papel das línguas como
demarcadoras da diferença: no contexto de coexistência de línguas diferentes num dado
espaço físico – neste caso, o da União Europeia – em que as fronteiras nacionais físicas
perdem paulatinamente definição e status, as línguas poderiam servir como sucedâneo destas,
instituindo novas geografias no interior da Europa.

73
Língua e identidade nacional

No desempenho dessa nova função, certas características das línguas são valorizadas:
exatamente aquelas que supostamente fazem das línguas uma nova versão das fronteiras.
Entre elas, destacam-se a sua visibilidade, que permite a identificação da diferença e parece
funcionar bastante bem como critério de inclusão/exclusão numa dada sociedade; sua
mobilidade, que faz com que ela melhor se adapte à fluidez e constante movimentação das
fronteiras; e sua permeabilidade, que responde melhor às necessidades de contato e interação
características do projeto europeu.
Mas o recurso à língua como estratégia de definição das fronteiras nacionais, no
cenário da União Europeia, em que as barreiras territoriais tornam-se cada vez mais
transparentes e líquidas, é posto em causa na análise da Europa contemporânea, num estudo
que parece indicar que a pluralidade e a multidirecionalidade dos fluxos de comunicação
estariam a relativizar o impacto das línguas como delimitadoras de um novo espaço público:
“the idea of serving and participating in creating a public sphere defined by national or
language boundaries has been losing its impact in CEE contexts where communication flows
have become more multidirectional an increasingly pluralistic” (Krzyzanowski and
Galasinska, 2009: 10).
A partir do conjunto de reflexões acima, pode-se afirmar, com alguma segurança, que
as línguas desempenham papel relevante na construção de uma identidade europeia
especialmente na perspectiva simbólica, que é aquela que aqui interessa. Mais do que as
línguas em si, são os discursos de valorização da diversidade linguística que parecem
caracterizar essa identidade e fundamentar as políticas de ensino e difusão de línguas, assim
como iniciativas no campo da cultura entre outros.
Nesse contexto, a valorização da diversidade linguística como fator de identidade não
parece alterar a relação de associação – ou mesmo o vínculo – entre língua e identidade
nacional estabelecido no interior de cada um dos Estados-membros. Essa afirmação é, em
parte, confirmada pelo esforço dos órgãos de administração da União Europeia em acomodar
as diferentes línguas nacionais ou assim reconhecidas em seu território, o que leva ao
reconhecimento de vinte e quatro línguas oficiais e à manutenção de uma estrutura de trabalho
que envolve aproximadamente 1750 linguistas e 3600 intérpretes, entre permanentes e
contaratados, além do pessoal de apoio.

74
Língua e identidade nacional

Síntese

Neste capítulo, procurou-se analisar a relação entre língua e identidade nacional.


Como ponto de partida, foi traçada uma breve retrospectiva histórica do papel desempenhado
pelas línguas na construção das identidades nacionais europeias, onde adquirem especial
relevância a partir da segunda metade do século XIX. A seguir, analisou-se a perspectiva da
língua como símbolo de uma certa identidade e os desdobramentos dessa ideia especialmente
a partir da segunda metade do século XX, entrelaçados com o desenvolvimento e a
popularização dos novos meios de comunicação de massas. Também a associação entre
cultura e língua e seu grande potencial no campo das construções de identidade de diversas
naturezas – neste caso, com destaque para as identidades nacionais – foi explorada nessa etapa
da reflexão. Por fim, considerou-se o impacto do multilinguismo para os nacionalismos
europeus deste início de século XXI.

75
Capítulo 3
A construção discursiva das identidades nacionais

O discurso

O discurso midiático

A análise crítica do discurso e a linguística sistêmico-funcional

A construção discursiva das identidades


Embora os estudos das identidades – entre elas as nacionais – possam ser
desenvolvidos a partir de bases bastante diferentes, a opção adotada nesta pesquisa já foi
explicitada em seu título: assume-se como pressuposto que as identidades resultam de um
processo de construção discursiva. Com essa afirmação, pretende-se afirmar o caráter
processual, dinâmico e em constante transformação das identidades, afastando-se, assim, as
abordagens essencialistas.
Neste capítulo será explicitado o enquadramento metodológico adotado: o da análise
crítica do discurso (ACD). A perspectiva da ACD, no entanto, engloba um amplo e
diversificado espectro de ferramentas e, por isso, precisa ser melhor especificada. Antes de
prosseguir, porém, é preciso ressaltar que esta tese situa-se no campo dos estudos de cultura e
não da análise crítica do discurso, servindo-se desta última, entretanto, para alcançar seus
objetivos.
Como ponto de partida, analisa-se o conceito de discurso, central à presente
abordagem, e seu papel na percepção daquilo que é chamado de realidade. Partindo-se do
pensamento de Foucault (1997), a relação entre discurso (ordens do discurso) e sociedade
(práticas sociais) é explorada na construção de um contexto mais amplo no âmbito do qual
este trabalho se situa.
Após delineada essa perspectiva mais genérica, reflete-se especificamente sobre o
discurso midiático, uma vez que o corpus de análise provém de textos veiculados nos jornais.
As especificidades de tais discursos são realçadas de forma a promover uma melhor
compreensão dos dados analisados. Essa discussão também contribui para uma avaliação da
relevância do corpus selecionado e do papel que tais discursos representam nas sociedades
modernas.
Explorada a ideia de discurso e de discurso midiático, passa-se à análise do discurso
propriamente dita, na vertente crítica. Não se trata aqui de apresentar a diversidade de
vertentes disponíveis – tarefa incompatível com o presente projeto – mas sim de definir os
A construção discursiva das identidades nacionais

contornos da matriz teórico-metodológica a partir da qual a presente análise é definida. A


opção pela ACD fundamenta-se em seu forte cariz transdisciplinar e na sua versatilidade, que
garantem ao pesquisador a flexibilidade necessária para desenvolver sua análise ao mesmo
tempo em que suporta tais escolhas com seu sólido respaldo teórico e aplicado. A seguir,
identifica-se o viés específico que, a partir da matriz teórica, será adotado: o da Linguística
Sistêmico-Funcional (LSF).
Por fim, o conceito de construção discursiva das identidades nacionais, enquanto
objeto particular desta dissertação, é apresentado e analisado à luz das diferentes teorias e
posicionamentos que vêm sendo desenvolvidos nos últimos anos. A abordagem aqui adotada
é em parte devedora dos trabalhos de Wodak (Wodak et al, 1999) e Martin e Wodak (2003),
entre outros, e desenvolve-se a partir de análises quantitativas e qualitativas de dados,
realizadas no âmbito de um estudo de caso.
O objetivo deste capítulo é, portanto, identificar e apresentar os principais elementos
teóricos que guiarão este estudo e, mas especificamente, a análise de dados propriamente dita.
Destina-se, também, a descrever e caracterizar as metodologias adotadas e a justificar certas
escolhas que foram tomadas ao longo desta reflexão e que conduziram ao presente quadro
teórico-metodológico.

O Discurso

Nos anos 60, numerosos estudos e pesquisas no âmbito das ciências sociais viriam a
definir os contornos do movimento que ficou conhecido como “virada discursiva”. O marco
dessa mudança foi a publicação de um livro de ensaios filosóficos, editado por Richard Rorty,
em 1967, com o título The Linguistic Turn, cujo objetivo era promover a reflexão sobre as
drásticas mudanças no campo da filosofia associadas à linguagem, as quais defendiam, a
grosso modo, que as grandes questões filosóficas podiam ser solucionadas por via da
linguagem ou por meio de uma melhor compreensão do seu uso (Rorty, 1970: 3).
Essa ideia se faz presente numa série de teorias que estabelecem uma relação
intrínseca entre a linguagem e a vida em sociedade, entre elas as que se fundamentam na ideia
de construção discursiva da realidade, e que estão na base de muitos dos movimentos que
influenciaram e ainda influenciam o pensamento e a produção de conhecimento na Europa, e

80
A construção discursiva das identidades nacionais

não só, como o pós-estruturalismo, o construtivismo e também o pós-modernismo, por


exemplo.
Adotar a perspectiva da construção da realidade, no entanto, não significa ignorar os
fatos, mas sim enquadrá-los num contexto de disputa por seus significados, assumindo a
existência de diferentes possibilidades; implica, ainda, suspender a ideia de
inequivocabilidade, autenticidade, inteireza, verdade, frequentemente associadas a eles.
Nessa concepção de realidade, nega-se a possibilidade de apreensão da existência
independente e indisputável de um fato, afirmando-se que este existe sempre em relação a
alguma coisa, numa referência à noção de contexto.
Também a teoria estruturalista partilha da ideia de construção. Segundo Potter (1997),
nessa tradição, a construção dos fatos – e, por inferência, da/s realidade/s – é o resultado de
disputas entre diferentes visões e representações de mundo, que atendem a interesses
específicos. Essas disputas são marcadas por relações de poder que se manifestam de diversas
formas. Nesses embates, o conceito de ideologia desempenha papel crucial. Para o autor, é a
ideologia, em suas diferentes estratégias de realização, que, em grande parte, sustenta as
relações de poder ao imprimir a certas relações sociais um caráter de necessidade,
naturalidade e atemporalidade:

(...) many researchers in the structuralist tradition have developed an explicitly critical concern
with fact construction: for them the point of looking at fact construction is to demonstrate the
way particular representations of the world are partial, related to interests, or work to obscure
the operation of power. Often the concern with fact construction comes from a broader concern
with questions of ideology, most prominently: in what ways can a set of social relations be
made to seem necessary, natural and timeless? (Potter, 1997: 69).

Como se depreende de tal afirmação, entende-se por ideologia o conjunto de verdades


partilhadas, isto é, de crenças que estruturam ou sustentam as estruturas da vida em sociedade
sem que as pessoas se apercebam delas. As ideologias moldam – e também toldam –
determinadas visões de mundo, constituindo-se, assim, em importante instrumento de
dominação e poder.
Ainda sobre o conceito de ideologia importa destacar que, embora há muito e
intensamente debatido, ele está longe de alcançar consenso. Para parte da doutrina, ele teria
perdido sua funcionalidade e deveria ser abandonado em função do seu caráter “sumamente
ambíguo e elusivo”, como informa Žižek (2010: 9). Para as teorias críticas e, em especial,
para a análise crítica do discurso, no entanto, a ideologia é uma noção central e essencial para
a compreensão dessa perspectiva crítica.

81
A construção discursiva das identidades nacionais

Considerando-se o exposto até o momento, interessa ainda afirmar que, no âmbito


desta pesquisa, a ideologia é entendida como elemento intrínseco e, por isso mesmo,
indissociável, da vida social, e não como uma visão deturpada da realidade (Gouveia, 2001:
338-339), como defendem alguns, nem como prerrogativa única daqueles que detêm o poder
e o exercem contra os demais.
A noção de representação também é essencial para o entendimento dessa abordagem.
No viés construtivista, representar implica contruir significados (Hall, 2014). Nesse processo,
língua e cultura são conjugados para atribuir, transmitir e também modificar o sentido de
coisas, objetos, pessoas e eventos. Isso significa dizer que os significados não são inerentes às
coisas e, portanto, passíveis de serem descobertos, nem imutáveis ao longo do tempo-espaço.
Pelo contrário, pessoas diferentes, participantes de culturas distintas, vivendo em épocas
diversas constroem significados particulares.
Representar implica, também, seleção e escolha, e revela uma visão de mundo.
Representar implica olhar para algo ou alguém e identificar que elementos são significativos,
que elementos são dele indissociáveis ou que elementos são necessários e suficientes para
invocar novamente o ponto de partida no processo de representação. Representar implica,
portanto, interpretação, julgamento e valoração; implica trazer à tona certas características e
relegar outras ao pano de fundo, ou seja, implica, em alguma medida, transformação.
Nesse processo, as relações de poder se materializam no poder de representar, isto é,
de construir significados, de manter, modificar ou descartar certas representações em
detrimento ou a favor de outras; no poder de atribuir valor positivo a uma representação e
negativo à outra. Tal valor manifesta-se de formas diferentes: uma representação é melhor ou
pior do que outra, mais ou menos fidedigna, credível, natural, mais ou menos importante ou
relevante; é a única possível, não há alternativas a ela, é necessária ou inútil, correta ou
incorreta, completa ou parcial, etc.
Mais uma vez, o conceito de ideologia mostra-se relevante, agora para a compreensão
dos processos de representação ou, como afirma Hall, já mencionado acima, de construção de
significados. O papel da ideologia torna-se ainda mais evidente se considerarmos a definição
de Thompson (1990: 7) de ideologia como sendo a “construção de significados a serviço do
poder”, que opera a partir de estratégias distintas, como a da legitimação, dissimulação,
unificação, fragmentação e reificação (ibidem: 60). Žižek, por sua vez, define ideologia como
sendo a “matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o
inimaginável, bem como as mudanças nessa relação” (Žižek, 2010: 7).

82
A construção discursiva das identidades nacionais

Mas, independentemente da estratégia adotada na construção de diferentes


representações, é no discurso que elas se materializam. Essa ideia consiste num dos
fundamentos da perspectiva da construção social pela via discursiva (Hall, 1997: 15) e,
consequentemente, da construção discursiva das identidades, que será explorada ainda neste
capítulo. Tal posicionamento é em muito devedor da concepção de discurso proposta por
Foucault.
De acordo com Gouveia (2001: 337), o discurso, segundo Foucault, consiste nos
“modos, quase sempre linguísticos, mas não exclusivamente linguísticos, de organizar o
significado”. A partir desse conceito, Foucault (1997) desenvolve a noção de “ordem do
discurso”, estabelecendo forte relação entre discurso e prática social. Segundo o autor, as
instituições sociais estruturam-se – e são estruturadas – a partir de discursos. Não só criam
tais discursos – e são por eles criadas – como estabelecem critérios de aceitabilidade e valor.
O indivíduo, em sociedade, mais do que autor do seu próprio discurso, aprende a se valer
daqueles que correspondem aos seus interesses num dado contexto. É esse sistema de
saber/conhecimento que possibilita ao indivíduo – grupo ou instituição – o exercício do poder.
Retomando a associação entre discurso e representação, pode-se entender o discurso
como recurso de construção e expressão de representações sociais. O discurso, portanto,
constitui uma forma de exercício de poder. Tal poder se manifesta na possibilidade ou
capacidade de instituir discursos dominantes; de atribuir valor a um dado discurso e
desvalorizar outro; credibilizar ou descredibilizar; de oficializar ou marginalizar; de tomar o
discurso individual como coletivo; de sobrepô-lo aos demais; de naturalizar o discurso; de
torná-lo único e necessário, descartando qualquer alternativa como impossível ou inviável.
Há, assim, uma forte carga ideológica nos discursos.
Ainda sobre o conceito de discurso, Foucault destaca sua imbricação com a noção de
poder e o contexto de luta instituído em torno e por causa dele, caracterizando-o como um
bem, ou seja, como um objeto escasso e de valor que estipula e atua segundo regras próprias e
que suscita o interesse e a cobiça dos diferentes atores que transitam pelo tecido social, com
ambições de natureza, inclusive, política:

(…) o discurso (…) aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem as suas
regras de aparecimento, mas também as suas condições de apropriação e de utilização; um bem
que põe por conseguinte, a partir da sua própria existência (e não simplesmente nas suas
“aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, objecto de uma luta, e
de uma luta política. (Foucault, 2005: 163).

83
A construção discursiva das identidades nacionais

A partir da definição de Foucault, mas de forma alargada, entende-se por discurso o


conjunto de recursos linguísticos, mas não só, dos quais o indivíduo se vale para (1) construir
e expressar ideias, conceitos e pensamentos; (2) representar diferentes visões de mundo e de
realidade; (3) assumir posições para si e relacionar-se com os outros; e (4) atuar em
sociedade. Nessa perspectiva, ressalta-se a relevância do papel desempenhado pelo discurso
no processo de construção social e de atribuição de significado à realidade.
Afirmar a relação de interdependência entre discurso e prática social é condição
necessária, se bem que embora não suficiente, para descrever a matriz teórico-metodológica
aqui adotada. A ideia de interdependência, em sentido amplo, pode englobar diferentes
relações. Para melhor explorá-las, pode-se estabelecer um paralelo com as ideias de tradução,
representação e construção apenas como recurso explanatório e, portanto, sem o intuito e a
pretensão de caracterizar uma teoria específica.
É possível pensar a relação entre discurso e prática social como sendo semelhante à
relação de tradução, aqui considerada, em sentido estrito, na perspectiva de transposição de
um texto produzido num idioma para outro. Tal comparação implica uma ideia de paridade,
ou seja, de espelhamento entre discurso e prática social, como se fosse possível traduzir
discurso em prática social e vice-versa. Nesse sentido, discurso e prática seriam
materializações de uma mesma essência, não implicando necessariamente uma real
transformação desta. Essa perspectiva pressupõe também uma relação temporal onde algo
deve ser primeiro criado ou constituído, para, depois, ser traduzido, num processo que se
realizaria ao menos em duas etapas distintas e sucessivas.
A relação de representação, por outro lado, implica maior grau de mudança, quer pelo
processo de seleção e descarte que lhe é inerente, quer pelas demais estratégias de
representação que podem incluir, por exemplo, substituições de elementos e comparações
diversas. Aqui também uma relação temporal se interpõe no sentido de que algo ou alguém
deve existir a priori para então ser representado. Em comparação com a relação de tradução,
portanto, a relação de representação seria caracterizada por um maior grau de transformação
na relação entre prática e discurso, mantendo-se a perspectiva da sucessão ao longo do tempo.
Por fim, a relação de construção implica criação – não incondicionada, uma vez que
toda a criação se dá num certo contexto – e permite, portanto, a transformação. Ao mesmo
tempo, prescinde de uma perspectiva temporal, ou seja, da existência anterior de algo, da ideia
de sucedibilidade. É a que comporta maior abrangência de significados e a que melhor
acomoda a noção de interdependência entre discurso e prática social, na perspectiva adotada

84
A construção discursiva das identidades nacionais

nesta pesquisa, permitindo movimentos simultâneos de construir e ser construído, estruturar e


ser estruturado.
Partindo-se do pressuposto acima apresentado, consistente com o viés do
construtivismo social, pode-se também explorar o seu inverso, isto é, a decomposição desse
processo de construção como estratégia de acesso e possiblidade de reflexão sobre o mesmo.
Assim, se a realidade – ou a apreensão dela – é o resultado de um processo de construção,
desfazer tal processo, ou seja, desconstruí-lo, pode revelar os valores, as crenças, as
ideologias e as relações de poder que o informa. Se os discursos constróem e são construídos
no âmbito de práticas sociais, desconstruí-los revela os elementos que os informam e vice-
versa.
A desconstrução, nesse contexto, consiste no processo de decomposição que revela os
diferentes elementos constituintes de uma dada representação, assim como os diferentes
modos e graus de interrelação entre eles. Mais do que isso, uma vez negada a ideia de verdade
pela afirmação do seu caráter ilusório, segundo afirma Christopher Norris (Potter, 1997: 80), a
desconstrução surge como um importante meio de acesso às diferentes realidades sociais –
visões de mundo partilhadas ou disputadas – que vivenciamos. Dessa ideia deriva a
importância da análise do discurso ou das práticas discursivas.

As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos. Pelo modo como representam a
realidade e posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a reproduzir relações de poder
desiguais. A associação das questões de poder e de ideologia com o discurso é tornada evidente
pelo carácter de princípio estruturante da realidade que a este está associado: enquanto prática
social, o discurso estabelece uma relação dialéctica com a estrutura social, na medida em que
se afirma como um dos seus princípios estruturadores, ao mesmo tempo que é por ela
estruturado e condicionado. (Gouveia, 2001: 340).

Nas sociedades democráticas de hoje, o poder se manifesta, mais do que pelo exercício
da força ou do chamado poder coercitivo do Estado, pela capacidade de produzir consensos.
Dessa constatação, deriva, em parte, o conceito de poder como hegemonia, proposto por
Gramsci, que revela o embate ideológico que atravessa e informa as práticas discursivas,
caracterizadas por disputas “pela instauração, sustentação, universalização de discursos
particulares” (Resende & Ramalho, 2011: 25).
Nesse sentido, analisar e compreender as diversas relações que são construídas entre
poder e discurso afigura-se como essencial para o melhor entendimento das sociedades atuais.
Os discursos, no entanto, não são simplesmente formas de instrumentalização ou operação das

85
A construção discursiva das identidades nacionais

disputas de poder, mas sim configuram-se em objeto dessa disputa e, em última instância, do
poder propriamente dito, conforme destaca Foucault:

Nisto nada há de surpreendente: uma vez que o discurso – como a psicanálise nos mostrou –
não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é objecto
do desejo; e uma vez que – e isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual, e
com o qual se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (Foucault, 1997: 10-11).

Nessa reflexão sobre discurso e poder – e mais precisamente sobre o poder de


construção de realidades – importa ainda destacar o conceito de poder simbólico,
desenvolvido por Bourdieu (1999: 166). Para o autor, o poder simbólico consiste exatamente
nesse poder de construção da realidade, que não se destaca pela estratégia da força, mas sim
pelo seu potencial de naturalização das escolhas, o que não significa que seja menos violento
do que a força bruta. Pelo contrário, tem algo de pervasivo e abstrato, que apaga as suas
origens e o envolve numa névoa que confunde e dificulta a resistência e o combate. Bourdieu
define o poder simbólico como sendo o poder que só pode ser exercido com a cumplicidade
de todos: de quem não quer saber que está sujeito a ele e de quem não quer saber que
efetivamente o exerce (1999: 164).
Como corolário das afirmações acima, pode-se dizer que os discursos particulares
utilizados por grupos sociais detentores de poder – as elites econômicas, sociais e intelectuais,
por exemplo – são também, e não por acaso, discursos de poder. São discursos de poder
porque característicos da classe dominante e são discursos da classe dominante porque
reconhecidos como discursos de poder, num movimento circular que se retroalimenta.
O conjunto de discursos característicos de um certo campo social, simultaneamente
configurados por e configuradores de um dado gênero de poder, em alguma medida,
reafirmam a divisão desigual de bens e recursos, pré-configurando os lugares, isto é, as
posições discursivas que o indivíduo pode ocupar na sociedade e o grau de mobilidade ao
qual ele pode ter acesso.
O discurso jurídico, por exemplo, ao valorizar construções gramaticais rebuscadas,
citações em latim e a utilização de jargões técnicos, entre outros, torna-se incompreensível
para todos aqueles que não tenham aprendido a se movimentar na esfera do direito e que,
portanto, não dominem seus discursos, representando, em muitos casos, obstáculo de acesso à
justiça, como muitas campanhas pela igualdade de direitos têm destacado.
Em resumo, na perspectiva da construção discursiva da realidade, reconhece-se a
existência de uma relação intrínseca entre discurso e prática social, marcada por disputas
86
A construção discursiva das identidades nacionais

ideológicas e de poder entre outras. Tais disputas estruturam e dão forma ao tecido social –
sempre em transformação e renovação – influenciando ou mesmo, em alguns casos,
condicionando diferentes formas de interação social.

O discurso midiático

O papel da mídia nas sociedades modernas tem sido objeto de debate, especialmente a
partir do início do século XX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas.
A popularização da rádio, entre os anos 20 e 30, e da televisão, entre os anos 50 e 60, marca
momentos decisivos nesse processo, com a ampliação das audiências e o desenvolvimento
posterior de uma série de teorias que, em geral, destacam seu poder (McQuail, 2003: 423-
429).
A mídia ocupa também papel de destaque nos estudos sobre a modernidade, muito em
função da relevância do desenvolvimento dos meios de comunicação de massas para os
chamados processos de globalização e sua análise e para a modificação e transformação das
relações econômicas, políticas, sociais e culturais que caracterizam o momento atual. Tais
transformações englobam uma série de mudanças que afetam também, mas não só, o próprio
conceito de Estado-Nação e seus papéis, como, por exemplo, alterações ligadas “ao
desmantelamento das fronteiras; à diminuição da soberania dos Estados nacionais com a
criação das grandes entidades transnacionais; à livre circulação de bens e de capitais; à
descrença nas grandes narrativas”, como ilustra Fiorin (2013: 15).
Para Thompson (1995: 3), como já referido no capítulo anterior, a mídia é um dos
elementos constitutivos da ideia de modernidade, configurando muitas das instituições e dos
modos de vida que lhe são inerentes. Desempenha, portanto, papel estruturante das novas
realidades sociais que se afirmam e são, ao mesmo tempo, estruturadas por elas. Nesse
sentido, a literacia midiática torna-se imprescindível para a vida moderna.
Para o autor, mais do que recurso configurador das intituições da modernidade, a
mídia institui e define novas formas de ação e interação no mundo social e novos modos de
relacionamento intra e interpessoal (Thompson, 1995: 4). Nesse contexto, a perspectiva da
transformação da relação espaço-tempo talvez seja um bom exemplo do alcance de tais
mudanças. Como afirma Giddens (2002), na modernidade, não mais tempo e espaço se

87
A construção discursiva das identidades nacionais

definem reciprocamente, sendo possível pensar num espaço sem tempo e num tempo sem
espaço.
Também a centralidade da comunicação para o capitalismo moderno reforça o papel
da mídia nas sociedades atuais, entrelaçando poder econômico e poder simbólico. A mídia,
como importante recurso de produção e transmissão de sistemas simbólicos, figura, assim,
como fonte de poder, mas também como meio de acesso a ele e, sobretudo, como palco da
luta pelo poder. Essas relações caracterizam as chamadas sociedades da informação (cf.
Hassan, 2011), ou seja, sociedades organizadas em torno de sistemas de produção e circulação
de informação, como esclarecem Resende e Ramalho:

A importância da linguagem, nessas mudanças, está em sua centralidade no novo modo de


produção capitalista, isto é, baseado no conhecimento, na informação, pressupõe uma
economia baseada no discurso. O novo capitalismo depende de tecnologias de comunicação
(…). Como a mídia tem papel fundamental nesse processo, hoje as representações estão, sem
precedentes, cada vez mais associadas aos meios de comunicação. (Resende & Ramalho, 2011:
55)

Na sociedade da informação, como afirma Castells (2009), o poder é o “poder da


comunicação”, ressaltando assim o papel das redes de comunicação na instituição,
configuração e gestão das relações de poder numa sociedade onde os sistemas simbólicos se
multiplicam e ganham cada vez mais relevância. Nessa nova sociedade, agora organizada em
torno de redes e fluxos, o poder se materializa no poder de estabelecer e modificar redes,
atribuir valor a elas, destruí-las, etc.
A mídia – assim como os órgãos políticos, as principais instituições econômicas e as
entidades públicas – têm o poder de definir discursos e de permitir ou não o acesso de outros
interlocutores a esse processo (Krzyzanowski e Galasinska, 2009: 6). Ela atua como produtora
e reprodutora de ideologias, crenças e histórias, e exerce grande influência nas sociedades
modernas em todas as suas dimensões (Martin e Wodak, 2003: 11).
Em outras palavras, o poder da mídia se concretiza em sua capacidade de criar,
influenciar e disseminar crenças, valores, relações sociais e identidades (Fairclough, 1995: 2),
ao veicular determinadas representações em detrimento de outras, definindo e sendo definida
por práticas discursivas (ibidem: 50). Esse posicionamento contraria a ideia de que a mídia
atuaria como uma espécie de espelho da realidade (McQuail, 2003), atuando de forma
imparcial e objetiva, numa busca incessante pela informação fidedigna e pela verdade, que
tem suas origens no século XIX, mas que ainda encontra alguma repercussão – pelo menos
numa perspectiva deontológica, isto é, do “dever ser”. Pelo contrário, a mídia constrói versões

88
A construção discursiva das identidades nacionais

alternativas dessas realidades, sujeitas aos interesses específicos, às relações de poder e aos
objetivos daqueles que participam de sua produção (Fairclough, 1995: 103-104).
Construir versões alternativas da realidade, no entanto, não significa distorcê-la, como
bem alerta Luhmann (2000:7). Para o autor, afirmar que a mídia distorce a realidade com suas
representações seria reconhecer a existência apriorística e essencialista dessa realidade, a qual
ele contesta. Para si, a questão que se coloca, portanto, não é a de se saber se a mídia constrói
a realidade, mas sim como a constrói.
Não se pretende, com essa afirmação, atribuir à mídia superpoderes, uma vez que o
seu papel na produção da notícia não é isento de debate e controvérsias, mas sim destacar sua
relevância como elemento estruturante do e estruturado pelo tecido social. Nesse sentido, vale
a pena relembrar a reflexão de Stuart Hall (2009) e outros sobre a perspectiva social da
produção da notícia, onde se destacam os papéis dos definidores primários e dos definidores
secundários nesse processo.
Segundo os autores, a mídia faria parte do segundo grupo, deixando a posição de
definidor primário para as diferentes fontes de informação e os detentores de poder, sejam
estes pessoas ou instituições. A notícia seria, portanto, produzida como resultado de um
processo em que definidores primários e secundários desempenham seus papéis, não sendo
nem pura e simplesmente uma “criação” da mídia, nem mera afirmação e repetição da
ideologia da “classes dominantes”:

The media, then, do not simply ‘create’ the news; nor do they simply tansmit the ideology of
the ‘ruling class’ in a conspiratorial fashion. Indeed, we have suggested that, in a critical sense,
the media are frequently not the ‘primary definers’ of news events at all; but their structured
relationship to power has the effect of making them play a crucial but secondary role in
reproducing the definitions of those who have privileged access, as of right, to the media as
‘accredited sources’. From this point of view, in the moment of news production, the media
stand in a position of structured subordination to the primary definers. (Hall et al, 2009: 653).

Não é objeto deste estudo, no entanto, aprofundar essa discussão. Importa apenas
destacar que a mídia desempenha papel relevante na construção da realidade e da vida em
sociedade. Segundo Fairclough (1995:52), ela constitui um eficaz instrumento de medida da
mudança sociocultural, uma vez que esta se manifesta na diversidade e na transformação das
práticas discursivas da mídia. Nessa perspectiva, a análise dos discursos midiáticos – e sua
imbricação no campo sociocultural – revela-se importante para a compreensão de diferentes
visões de mundo nesta modernidade tardia.

89
A construção discursiva das identidades nacionais

Também questões relacionadas à cultura ganham cada vez mais destaque no debate
social, sendo seu potencial de transformação reconhecido e valorizado. Tal destaque à cultura
estende-se às noções de língua e discurso, indissociáveis da ideia de cultura. Nesse cenário, o
efetivo acesso à cidadania e ao conjunto de direitos (e deveres) que ele implica passa a ser
mediado por cultura, discurso e língua, configurando um universo que inclui também, como
ressalta Fairclough, o discurso da mídia, numa referência que faz lembrar mais uma vez a
importância da literacia midiática, já mencionada anteriormente:

The media, and media discourse, are clearly a powerful presence in contemporary social life,
particularly since it is a feature of late modernity that cultural facets of society are increasingly
salient in the social order and social change. If culture is becoming more salient, by the same
token so too are language and discourse. It follows that it is becoming essential for effective
citizenship that people should be critically aware of culture, discourse and language, including
the discourse and language of the media. (Fairclough, 1995: 201).

Uma vez que o corpus de análise desta pesquisa consiste em textos publicados em
jornais, interessa destacar duas características centrais dos mesmos: seu caráter público e sua
pretensão de acessibilidade. Tais características, embora distintas, estão interrelacionadas e
orientam parte significativa do processo de produção e consumo de notícias,
independentemente do perfil editorial do veículo de publicação.
O caráter público aplica-se ao seu conteúdo, que deve girar em torno de temas de
interesse público, ou seja, de questões pertinentes à chamada esfera pública em contraposição
ao conceito de espaço privado – distinção que se torna cada vez mais difícil de elaborar no
contexto da modernidade tardia (cf. Innerarity, 2006), mas que não será discutida no âmbito
deste estudo. Também a forma como tal conteúdo é produzido e reproduzido assume o caráter
público, isto é, resulta da participação dos diferentes atores que se movimentam no espaço
público. Daí a relevância do discurso midiático como meio de acesso aos discursos que
circulam e dão forma a esses espaços, discussão já, em parte, desenvolvida no capítulo
anterior.
A questão da acessibilidade refere-se tanto ao registro jornalístico em si mesmo quanto
à disponibilidade material do jornal. O registro jornalístico, no que diz respeito à linguagem, é
– ou, ao menos, pretende ser – acessível à maior parte dos leitores. Valoriza-se, portanto, o
discurso direto e conciso, claro e simples. Ao mesmo tempo, por se tratar de um meio de
comunicação, cuja distribuição é central para seu sucesso, também a questão da acessibilidade
física é contemplada.

90
A construção discursiva das identidades nacionais

Tal caráter público e de acessibilidade contribui para a posição de destaque ocupada


pela mídia no tocante à construção da chamada opinião pública. Os jornais participam
ativamente do processo de formação de opinião, quer ao produzir e divulgar notícias e
informações, quer ao atuar como plataforma e arena de debate, divulgando opiniões – as suas
e as de outras pessoas, grupos ou instituições. Nesse contexto, os artigos opinativos ganham
destaque, não por serem os únicos elementos a cumprirem essa função – certamente não o são
–, mas sim por expressa e explicitamente a assumirem.
Segundo Habermas (Glyn et al, 1999: 32-33), o conceito de opinião pública varia de
uma época para outra, estando sempre entrelaçado, no entanto, com a ideia de “esfera
pública” – é sempre fluido e contingente, variando seus significados em função do uso que lhe
é dado. No âmbito desta discussão, entende-se opinião pública como consenso ou, mais
especificamente, como o conjunto de discursos em torno do qual se obtém algum grau de
concordância, mesmo que esta seja – e em geral é – momentânea, frágil e cambiante. Não
significa a opinião da maioria, mas a posição da maioria que se faz ouvir. A opinião pública
representa, assim, o conjunto de discursos contra os quais os demais serão medidos e
confrontados, ressaltando-se que o seu conteúdo não está isento de disputas nem pode ser
claramente determinado.
Embora não haja consenso sobre a definição do conceito de opinião pública,
dificilmente sua importância é contestada no âmbito da relação de associação entre
democracia, liberdade de imprensa e opinião pública. Nesse sentido, a opinião pública, mais
do que o ato de ouvir e ser ouvido, engloba também o recurso ao fazer-se ouvir, como
garantia fundamental do indivíduo numa sociedade democrática, cabendo à mídia o
importante papel de mediação e de expressão dessa liberdade.
Ainda no que diz respeito a essa discussão, importa destacar a figura dos formadores
de opinião ou influenciadores. Num sentido amplo, são aqueles cuja opinião exerce maior
influência sobre os demais em função de sua posição na sociedade – detém um conhecimento
maior sobre o tema (ou assim é percebido), ocupam uma posição de destaque na comunidade
(o padre, o acadêmico, o líder empresarial, etc.) ou detém espaço privilegiado nos meios de
comunicação (colunista, blogueiro, editorialista, etc.). Em geral, os chamados influenciadores
atuam como se fossem os tradutores ou intérpretes do conteúdo veiculado pela mídia para um
público mais abrangente (Abercrombie e Longhurst, 2007: 184).
Em suma, numa tentativa de sistematizar a discussão desenvolvida até aqui, importa
ressaltar que, embora não faltem alertas para o caráter irremediavelmente subjetivo da notícia,
apesar das inúmeras tentativas de afirmação de sua imparcialidade e objetividade (White,

91
A construção discursiva das identidades nacionais

2001: 61), a opção de análise de textos da mídia, escolhida nesta pesquisa, recaiu
especificamente sobre textos opinativos, nos quais tal subjetividade é assumida logo à partida,
afastando-se, assim, qualquer pretensão de isenção.
Nesse contexto, entende-se que os artigos opinativos veiculam as ideias e posições dos
seus respectivos autores, que são, em geral, identificados como ‘formadores de opinião’, ou
seja, pessoas que, pela sua posição ou status na sociedade – cargos que ocupam, experiência
vivida, conhecimento especializado, imagem pública, etc. –, exercem influência e atuam
como porta-vozes das diferentes correntes que marcam o debate público.
De modo geral, a análise dos discursos veiculados nos artigos de opinião permite a
construção de uma visão aproximada do debate social, das diferentes vertentes e correntes de
pensamento que circulam nos cafés, nas universidades, no governo, nas ruas, etc. Sintetizam e
representam, em alguma medida, diferentes argumentos, ao mesmo tempo em que municiam
– alimentam e se retroalimentam de – atuais e novos intervenientes. Na maioria das vezes,
esses textos se entrelaçam, ora para reforçar uma posição, ora para contradizê-la. É do
conjunto desses fragmentos e recortes que se pretende construir possíveis imagens ou visões
do conjunto.

A análise crítica do discurso e a linguística sistêmico-funcional

A premissa inicial da análise crítica do discurso (ACD) é de que existe uma relação
intrínseca entre discurso e prática social. O discurso constitui um recurso para a apreensão do
mundo e para a ação e interação nele. Nesse sentido, o discurso consiste numa estratégia de
mediação social essencial, embora não única, da qual o indivíduo se vale para viver em
sociedade.
Retomando o conceito de ordem do discurso desenvolvido por Foucault e já
mencionado anteriormente, as instituições sociais instituem (e são instituídas por) um
conjunto de práticas discursivas que informam e conformam sua atuação e sentido. Conhecer
e operar no âmbito de tais práticas – ou ordens do discurso – é condição sine qua non de
acesso e exercício de poder.
Mais do que dois elementos distintos, as ordens do discurso e as práticas sociais são
duas faces de um mesmo objeto, duas perspectivas de abordagem de uma mesma coisa, ou
seja, são indissociáveis. Dizendo de outro modo, o texto, como materialização de uma prática

92
A construção discursiva das identidades nacionais

discursiva, carrega em si mesmo as condições que lhe são exteriores. Como afirma Gouveia
(2009), a partir de um dado contexto pode-se prever os diferentes discursos que serão
mobilizados, assim como, a partir de tais discursos, pode-se apreender o contexto no qual
estes se desenvolvem:

(…) os significados que podemos querer fazer são fortemente dependentes de aspectos
contextuais, para além de que uma parte importante quer da nossa capacidade quer da nossa
habilidade linguísticas é o conhecimento que temos de como as coisas são típica ou
obrigatoriamente ditas em certos contextos. Ou seja, a relação entre a língua e os seus
contextos de uso, ou dito de outra forma, a relação entre um texto e o seu contexto, é de tal
forma motivada que, a partir de um contexto, será possível prever os significados que serão
activados e as características linguísticas potenciais mais previsíveis para as codificar em texto.
Da mesma forma, dado um texto, será possível deduzir o contexto em que o mesmo foi
produzido, porquanto as características linguísticas seleccionadas num texto codificarão
dimensões contextuais, tanto do contexto de produção imediato, situacional – quem diz o quê a
quem, por exemplo -, como do contexto mais geral, cultural – que tarefa está o texto a
desempenhar na cultura. (Gouveia, 2009: 25-26).

As práticas discursivas são, portanto, formas de mediação entre os campos textual e


social, sendo os discursos construídos e constrangidos por um dado contexto social e cultural,
o que não implica negar a natureza cíclica e histórica dos mesmos. Como Krzyzanowski e
Galasinska (2009: 6) afirmam, a apropriação e reapropriação de discursos é recorrente na
prática discursiva, alcançando tanto discursos anteriores como posteriores, num esforço
constante de recontextualização.
Também Fairclough afirma a interdependência entre as práticas discursivas e o
contexto sociocultural. Para o autor, tais práticas atuam como mediadoras entre texto e
contexto, estabelecendo entre ambos um vínculo. O contexto sociocultural, ao condicionar o
modo como os textos são produzidos e consumidos, atua também sobre as práticas discursivas
no interior das quais os textos são concretizados:

(…): I see discourse practice as mediating between the textual and the social and cultural,
between text and sociocultural practice, in the sense that the link between the sociocultural and
the textual is an indirect one, made by way of discourse practice: properties of sociocultural
practice shape texts, but by way of shaping the nature of the discourse practice, i.e. the ways in
which texts are produced and consumed, which is realized in features of texts. (Fairclough,
1995: 59-60).

Esse entendimento amplia o universo de significação do texto, extrapolando a noção


de autoria – isto é, a ideia de que o texto é essencialmente o resultado de um processo criativo
original e independente, levado a cabo pelo autor – e de intencionalidade – isto é, a noção de

93
A construção discursiva das identidades nacionais

que os efeitos produzidos pelo texto resultam exclusivamente da intenção do autor ou, ao
menos, da sua ação (mesmo que não intencional).
Em parte, a perspectiva crítica da análise do discurso – que está longe de alcançar
consenso entre seus diversos praticantes – implica a ideia acima. Martin e Wodak (2003: 6),
por exemplo, entendem o conteúdo crítico da análise do discurso como recurso de
afastamento em relação aos dados, de reinserção (recuperação ou ligação) do campo textual
no social, de desmascaramento das operações ideológicas e de posições políticas e de
autorreflexão do analista em relação ao seu papel e ao objeto de análise. Para eles, o texto, via
de regra, não é unicamente obra do seu autor, mas sim local de disputa de diferentes
discursos, ideologias e posições, onde são negociadas as diferenças.
Uma vez reconhecida a controvérsia, importa esclarecer o entendimento que foi aqui
adotado. No âmbito desta pesquisa, atribui-se dois significados preponderantes ao conteúdo
crítico da análise do discurso: um deles está associado explicitamente a questões de poder,
enquanto o outro é dirigido à produção de significados – ambas as perspectivas serão
explicitadas a seguir.
Na primeira abordagem, a análise crítica do discurso busca revelar as relações de
poder que regulam as práticas discursivas/sociais, promovendo a mudança, ou seja, busca
trazer à tona as relações de poder e, assim, criar a possibilidade de mudança. Não se trata de
um poder único, nem de uma divisão dicotômica entre opressores e oprimidos, mas sim de um
poder difuso, que se manifesta das mais diversas formas.
Esse potencial de mudança é também destacado por Krzyzanowski e Galasinska
(2009: 12), que entendem os discursos como recursos de produção e reprodução da sociedade
e da cultura, atuando, portanto, necessariamente em sua contínua transformação e na
promoção da mudança, quer no âmbito cultural, quer no da política, sendo tais atividades
interdependentes.
Na segunda abordagem, a análise crítica do discurso pretende revelar o conteúdo
implícito, invisível, escondido no texto de forma intencional e não intencional. Todo texto é
composto por aquilo que diz, aquilo que pressupõe, aquilo que carrega e transmite sem o
saber e aquilo que deixa de fora, ou seja, como afirma Fairclough (1995: 108), citado a seguir,
pelo não dito, pelo dito e pelo pressuposto:

Any text is a combination of explicit meanings – what is actually ‘said’ – and implicit
meanings – what is left ‘unsaid’ but taken as given, as presupposed. Presuppositions anchor the
new in the old, the unknown in the known, the contentious in the commonsensical. A text’s
pressupositions are important in the way in which it positions its readers or viewers or

94
A construção discursiva das identidades nacionais

listeners: how a text positions you is very much a matter of the common-sense assumptions it
atributes to you. (Fairclough, 1995: 106-107).

Para o autor, a ACD deve operar em três dimensões: na dimensão do texto, na


dimensão da prática discursiva e na dimensão sociocultural (Fairclough, 1997: 9). Em outras
palavras, a análise do discurso deve abarcar tanto forma como conteúdo, pois são ambos
indissociáveis, ou seja, além das características linguísticas do texto, importa analisar seus
modos de produção, consumo e distribuição, assim como o contexto sociocultural de fundo.
Tal análise não prescinde da reflexão sobre as relações de poder que se estabelecem
em torno das práticas discursivas. Nessa perspectiva, a noção de poder é ampliada, passando a
indicar não só as assimetrias entre os participantes no discurso como suas respectivas
capacidades para exercer controlo sobre os modos de produção, consumo e distribuição do
mesmo, num dado contexto (Fairclough, 1997: 1).
O posicionamento de Fairclough acomoda um grande número de possibilidades de
análise – bem exemplificadas por Ramalho & Resende (2011), na citação abaixo –
relacionadas com a materialização de discursos em textos. Essa abertura proposta por
Fairclough e a amplitude e liberdade de escolha a ela associada informam, em algum grau, as
análises que serão apresentadas nesta pesquisa.

(…) a representação de grupos específicos de atores sociais em textos de ampla circulação; a


recontextualização de discursos de um campo a outro; as influências de discursos específicos
sobre construções identitárias e sobre modos de ação; a representação de aspectos específicos
do mundo por meio de discursos particulares; os modos como grupos específicos de atores
sociais atualizam discursos particulares na representaça de suas experiências, etc. (Ramalho &
Resende, 2011: 58).

A análise crítica do discurso engloba numerosas e diversificadas perspectivas de


análise, as quais nem sempre podem ser conciliadas (Martin e Wodak, 2003: 5). Essa grande
versatilidade da ACD representa uma vantagem e, ao mesmo tempo, um desafio. Por um lado,
representa uma vantagem ao permitir diferentes abordagens e, assim, um certo refinamento na
adequação do meio de análise ao corpus específico, associado à persecução de um conjunto
de objetivos. Por outro lado, representa um desafio pelo risco desse ecletismo induzir o
analista a uma “contradição epistemológica”. Para evitar tal risco, como alertam Weiss e
Wodak (2005: 124), é preciso justificar e fundamentar cada escolha de análise adotada.
Entre as ferramentas disponíveis, a opção de pesquisa adotada neste trabalho é a da
linguística sistêmico-funcional (LSF), entendida, em sua dupla faceta teórica e metodológica,
como “teoria geral do funcionamento da linguagem humana” e “modelo de análise textual”

95
A construção discursiva das identidades nacionais

(Gouveia, 2009: 14). Neste estudo, essa segunda abordagem é aquela que mais interessa e que
será, portanto, explorada.
Segundo Halliday (1994), pode-se identificar três macrofunções principais, atribuídas
à língua, que ele chama de “metafunções” – são elas a metafunção ideacional, a metafunção
interpessoal e a metafunção textual. A metafunção ideacional relaciona-se com o papel da
língua na construção de representações de mundo; a metafunção interpessoal relaciona-se com
o papel da língua na construção de relações subjetivas, ou seja, entre sujeitos; e a metafunção
textual relaciona-se com o papel da língua na construção e organização de sentido, como
explica Gouveia, ao referir-se às funções ideacional, interpessoal e textual respectivamente:

(…) Na sua essência (…), a linguagem desempenha três funções fundamentais, para além da
função comunicativa, equacionada como primordial e básica por um aparelho teórico que
encara a troca e a negociação do significado como a razão da existência da linguagem.
Concretizando, a linguagem serve para expressarmos conteúdo, para darmos conta da nossa
experiência do mundo, seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da nossa própria
consciência, interno a nós próprios; mas a linguagem serve também para estabelecermos e
mantermos relações sociais uns com os outros, para desempenharmos papéis sociais, incluindo
os comunicativos, como ouvinte e falante; e, por fim, a linguagem providencia-nos a
possibilidade de estabelecermos relações entre partes de uma mesma instância de uso da fala,
entre essas partes e a situação particular de uso da linguagem, tornando-as, entre outras
possibilidades, situacionalmente relevantes. (Gouveia, 2009: 15).

É importante esclarecer que a língua desempenha essas diferentes funções de forma


simultânea, ou seja, elas estão sempre presentes no texto, embora em diferentes graus. Na
análise de cada uma delas, a linguística sistêmico-funcional oferece um conjunto distinto de
ferramentas, que, em geral, aplicam-se à oração, considerada a unidade de análise mínima de
preferência da LSF, embora não única.
No âmbito desta pesquisa, será explorada preferencialmente a metafunção ideacional,
com o objetivo de analisar as diferentes representações de caráter identitário construídas ao
longo do corpus, uma vez que tal metafunção é aquela que se relaciona por excelência com as
questões de representação (Gouveia, 2009: 16). A análise da metafunção ideacional, com sua
vocação para a identificação de diferentes visões de mundo, permite a reflexão sobre os
discursos e recursos mobilizados no processo de construção identitário.
Embora a LSF ofereça uma série de ferramentas de análise textual que permitem, a
partir do estudo da escolhas gramaticais realizadas (perspectiva micro), identificar os
discursos e as práticas sociais que as informam (perspectiva macro), nesta pesquisa tais
ferramentas não serão utilizadas em sentido estrito. No atual contexto, a contribuição da LSF

96
A construção discursiva das identidades nacionais

consiste na apropriação dos seus princípios teórico-metodológicos e da sua abordagem


funcional sobre a língua e suas instâncias de uso.
Numa primeira etapa – o estudo dos marcadores identitários, que será desenvolvido no
capítulo cinco –, como regra geral, a ferramenta de análise escolhida foi o estudo dos grupos
nominais num esforço de delineamento dos diferentes campos de significação construídos em
torno de cada um desses marcadores. Com esse objetivo em mente, no entanto, outros
recursos de análise foram mobilizados em complemento ou concorrência, isto é, de forma
independente, com essa primeira perspectiva.
Numa segunda etapa – o estudo das posições assumidas por ou atribuídas a Portugal
em relação a outras entidades nacionais ou supranacionais, que será desenvolvido no capítulo
seis –, a análise concentrou-se na interpretação dos processos e na identificação dos múltiplos
e variados recursos de comparação utilizados pelos diferentes autores para construir posições
de simetria ou assimetria entre as entidades envolvidas.
Resta ainda esclarecer que o enquadramento metodológico adotado nesta pesquisa
combina análises quantitativas e qualitativas, com a predominância destas últimas. A análise
quantitativa resume-se à contabilização de palavras no texto, de modo a identificar a
incidência de um certo vocabulário associado aos discursos sobre identidades nacionais, que
será explicitada no capítulo cinco. Uma vez identificado tal vocabulário, passa-se à análise
qualitativa, que não integra análise gramatical, em particular, mas tão somente categorização
de significados veiculados e parametrização desses significados.
Tais análises quantativa e qualitativa são desenvolvidas como parte de uma
metodologia – ou estratégia – de investigação identificada como sendo um estudo de caso,
isto é, um estudo detalhado de algo claramente definido – neste caso, dos argumentos de
natureza identitária identificados nos artigos de opinião sobre o AO publicados em 2012 na
imprensa portuguesa. Neste estudo, procura-se analisar de que modo a língua, em sua
dimensão simbólica, é utilizada na construção de determinadas identidades nacionais
portuguesas.
A partir da recolha de dados de diferentes jornais portugueses no período delimitado
acima, que são, a seguir, descritos pormenorizadamente, procura-se identificar, descrever e
analisar os argumentos que remetem para o tema da identidade nacional com o objetivo de se
construir um estudo de caso capaz de contribuir para um melhor entendimento do papel da
língua na construção das identidades nacionais na Europa de hoje. Nesse sentido, tal estudo
pode ser caracterizado como “instrumental” de acordo com a proposta de classificação de
Coutinho e Chaves (2002: 226), derivada de Stake, segundo a qual um caso pode ser

97
A construção discursiva das identidades nacionais

classificado como instrumental quando “é examinado para fornecer introspecção sobre um


assunto, para refinar uma teoria, para proprocionar conhecimento sobre algo que não é
exclusivamente o caso em si”, ou seja, “o estudo do caso funciona como um instrumento para
compreender outro(s) fenómeno(s)”.
Não se trata, no entanto, de se afirmar que o presente caso de estudo configuraria um
exemplo recorrente do contexto europeu ou, em algum sentido, emblemático, nem tão pouco
que a partir do seu estudo seria possível compreender a/s realidade/s da Europa, em toda sua
diversidade e complexidade. Longe disso, entende-se que a presente análise representa um
dos possíveis discursos sobre língua e identidade nacional na Europa de hoje, ou mesmo um
entre os muitos discursos possíveis sobre língua e identidade nacional em Portugal, ou, ainda,
um entre os muitos discursos possíveis sobre língua e identidade nacional em Portugal no
âmbito da discussão sobre o acordo ortográfico.
No entanto, ainda assim, com todas as suas limitações e a impossibilidade de
generalizações, este estudo de caso representa um contributo para se pensar questões relativas
à língua e à identidade nacional. Também não se pode esquecer que boa parte do seu valor
advém muito provavelmente mais das questões que levanta do que daquelas que responde.
Como bem alerta Ponte (2006: 16), embora referindo-se à investigação no campo da
educação, não se deve “menosprezar o facto que muito do valor dos estudos de caso deriva
das questões que ajudam a levantar”.

A construção discursiva das identidades

Potter (1997: 86), ao refletir sobre a afirmação de Foucault (1997) de que os discursos
não só produzem objetos mas também sujeitos, estabelece uma relação entre o modo como se
fala sobre um objeto e uma identidade específica, ou seja, entre os discursos construídos em
torno de um dado objeto e a construção da identidade de quem fala sobre ele. Essa posição é
partilhada neste trabalho, que se fundamenta no processo de construção discursiva das
identidades.
Como já explorado anteriormente, a relação de simbiose entre prática discursiva e
prática social configura espaço produtivo para a análise cultural. As práticas discursivas, sua
unidade, os discursos de resistência, sua tranformação, os elementos que figuram de forma
recorrente nessas construções, os elementos que são excluídos, as relações estabelecidas e

98
A construção discursiva das identidades nacionais

desafiadas, em conjunto, concorrem para o entendimento do modo como as identidades são


apreendidas e representadas no contexto europeu atual, mais especificamente, neste caso, o
português.
Nesse mesmo sentido, Gouveia (2013: 1063) alerta para a relação de interdependência
entre práticas discursivas e identidade, ao afirmar que é da articulação entre essas práticas –
que gozam de certa durabilidade e estabilidade – na produção de significados, sejam eles
sociais, institucionais ou organizacionais, que as identidades são, em grande parte,
construídas. Sempre abertas e mutáveis, essas identidades são, ao mesmo tempo, motivadas
por tais práticas e elemento de transformação das mesmas.
Como destacam Martin e Wodak (2003: 8), a história das nações e dos povos nunca
termina de ser contada, nunca está completa. Está sempre em construção e transformação,
sendo suscetível ao jogo de forças, sempre cambiante, daqueles que em nome individual ou
coletivo participam do processo. Concorrem nesse embate o sistema educativo, os discursos
políticos, a mídia, as organizações da sociedade civil, assim como narrativas individuais e
testemunhos que entrelaçam a história de um à história de todos. O poder, nesse contexto,
manifesta-se na escolha de uma dada narrativa, em detrimento de outras, que então é
naturalizada como sendo o passado, ou seja, como aquilo que realmente aconteceu.
Nesse processo, os recursos de representação da nação vêm à tona, colaborando para a
construção e transformação das narrativas nacionais. Anderson e Hobsbawm, entre outros, já
haviam alertado para a relevância dos sistemas nacionais e unificados de educação, a
invenção da tradição, a construção de monumentos e a instituição de cerimônias e ritos
nacionais na elaboração e disseminação dessas narrativas. Mais recentemente e, de certo
modo, em decorrência desses estudos, juntam-se a eles os discursos de revisão do passado (cf.
Martin e Wodak, 2003, por exemplo) e de valorização da cultura em exibição, concretizados
na promoção dos museus e nas ações de proteção e divulgação do patrimônio (cf. Boswell e
Evans, 1999, por exemplo), entre tantas outras possibilidades.
Wodak e de Cillia (Wodak et al, 1999) oferecem exemplo bastante ilustrativo ao
analisarem os eventos comemorativos do pós-guerra na Áustria. Como estratégia de
superação do passado nazista, a declaração de independência da Áustria é caracterizada como
uma espécie de “renascimento”. A partir dessa metáfora, é possível deixar para trás um
passado marcado pela “fatalidade” da guerra e suas consequências e começar outra vez, como
um recém-nascido: puro, inocente, sem máculas.
Essa nova relação com o passado é destacada por Giddens (2002: 2 e 3) em sua
caracterização da modernidade tardia como marcada pela superação da tradição e,

99
A construção discursiva das identidades nacionais

especialmente, pela instauração do princípio da “dúvida radical”. Em outras palavras, nos


tempos atuais, nesta era pós-tradicional, as certezas do passado teriam sido substituídas pela
dúvida, isto é, por hipóteses que poderiam ou não ser confirmadas e cujo status de afirmação
ou negação poderia sempre ser revisto e alterado.
Essa possibilidade de revisão incessante estende-se à construção das identidades,
configurando aquilo que o autor identifica como o “projeto reflexivo” da identidade, como
citado a seguir. Nesse contexto, o indivíduo busca manter alguma coerência em suas
narrativas biográficas, que estão em constante processo de revisão, a partir das escolhas que
tem à sua disposição num ambiente marcado pelo predomínio dos sistemas abstratos,
entendidos, nesse contexto, como sendo os recursos simbólicos que consistem em meios de
troca dotados de um valor-padrão e de uso generalizado.

The reflexivity of modernity extends into the core of the self. Put in another way, in the context
of a post-traditional order, the self becomes a reflexive project. Transitions in individuals’ lives
have always demanded psychic reorganization, something which was often ritualised in
traditional cultures in the shape of rites de passage. But in such cultures, where things stayed
more or less the same from generation to generation on the level of the collectiviy, the changed
identity was clearly staked out –as when an individual moved from adolescence into adulthood.
In the settings of modernity, by contrast, the altered self has to be explored and constructed as
part of a reflexive process of connecting personal and social change. (Giddens, 2002: 33-34).

Embora Giddens, em sua reflexão, refira-se especialmente à identidade individual ou


autoidentidade, é importante destacar que as identidades coletivas – dentre elas as identidades
nacionais – são indissociáveis das identidades individuais, lembrando, mais uma vez, o alerta
de Kuper (já citado no primeiro capítulo) de que, assim como as identidades individuais são
vivenciadas no mundo, isto é, no contato com os outros, as identidades coletivas são sempre,
ao final, vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva subjetiva.
Retomando-se a perspectiva da identidade/diferença, na construção das identidades, e,
em especial, das identidades nacionais, ganha destaque o mecanismo de criação de um eu e de
um outro, que funciona, a grosso modo, pela afirmação das semelhanças e supressão das
diferenças no interior do grupo e, simultaneamente, pela afirmação das diferenças e supressão
das semelhanças na relação entre o grupo e aquilo/aquele que lhe é exterior.
Nesse processo de construção de identidades e diferenças, uma série de recursos são
mobilizados. Como afirma Wodak, a ideia de pertença a uma comunidade imaginada como
nação é construída a partir de práticas sociais e discursivas de inclusão e exclusão, criadas e
vivenciadas pelos diferentes atores sociais que interagem num dado contexto sociocultural e
histórico:

100
A construção discursiva das identidades nacionais

In summary, we will assume the following theses: The national identity of individuals who
perceive themselves as belonging to a national collectivity is manifested inter alia, in their
social practices, one of which is discursive practice. The respective national identity is shaped
by state, political, institutional, media and everyday social practices, and the material and
social conditions which emerge as their results, to which the individual is subjected. The
discursive practice as a special form of social practice plays a central part both in the formation
and in the expression of national identity. (Wodak, 1999: 29).

Síntese

Neste capítulo, foram apresentados e discutidos os conceitos nos quais se fundamenta


o enquadramento teórico-metodológico adotado analiticamente nesta pesquisa, em particular
no que se refere às estratégias de análise textual. Partiu-se da noção de discurso, na acepção
de Foucault, que foi, a seguir, desenvolvida para se explorar a relação de simbiose entre texto
e contexto, ou discurso e prática social. O papel operado pelas ideologias e o discurso como
instrumento de representação foram alguns dos temas destacados, sempre tendo-se em vista a
perspectiva sociocultural e histórica. A mídia e os discursos produzidos e/ou veiculados por
ela também foram objeto de atenção e reflexão, dada a natureza do corpus de pesquisa. Do
entrelaçamento e desenvolvimento desses conceitos, chegou-se à análise do discurso,
apresentada aqui em sua perspectiva crítica, apontada como a principal diretriz de análise e
cujos contornos foram delineados. Ao lado da ACD, a linguística sistêmico-funcional foi
identificada como a abordagem que informa a análise propriamente dita, a ser desenvolvida
nos próximos capítulos. Por fim, a opção pela construção discursiva das identidades nacionais
foi explicitada.

101
PARTE II
Capítulo 4
Contextualização e apresentação do corpus
Portugal: contexto histórico-cultural

O acordo ortográfico e os artigos de opinião

Mapeamento geral dos argumentos

Perspectivas de análise
O Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), que vigora hoje em Portugal, tem suscitado
polêmica, como se depreende da frequência e do calor dos debates veiculados pelos meios de
comunicação portugueses nos anos subsequentes à sua entrada em vigor. Entre a diversidade
de temas que alimentam a discussão, interessa destacar aqueles que giram em torno de
questões de identidade nacional; afinal, são eles o objeto deste estudo.
Neste capítulo, parte-se de uma breve e fragmentada retrospectiva de determinados
momentos da história de Portugal, em especial a partir do século XIX, que contribuíram para
a construção da identidade do país. Pretende-se, assim, construir um dado contexto histórico-
cultural que servirá de enquadramento geral para a análise propriamente dita. Nesse processo,
procura-se destacar o papel da língua portuguesa como elemento intrínseco à construção de
certas versões de identidade para Portugal.
A seguir, são apresentados os contornos do atual acordo ortográfico, firmado por meio
de um tratado internacional e que conta com a adesão de vários países de língua oficial
portuguesa, entre eles Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. Assinado em 1990, o acordo
entrou em vigor no país em 2009, sendo adotado no âmbito do sistema nacional de educação
apenas no ano letivo 2011/2012.
A assinatura do acordo e, mais especificamente, as disputas que se instauram em torno
da legalidade e aplicação do mesmo foram – e ainda são – objeto de debate, sendo a mídia
uma das suas principais arenas. É nessa fonte que se vai buscar os artigos de opinião
publicados sobre o tema em 2012, nos jornais portugueses, e que constituem o corpus desta
análise. Passa-se, então, à apresentação e descrição detalhada do mesmo.
Uma vez explicitado o corpus, promove-se a identificação e o mapeamento dos
principais argumentos de caráter identitário trazidos ao debate público. Deixam-se de lado,
portanto, as discussões sobre a legalidade e viabilidade técnica e jurídica do acordo para se
destacar as questões relativas à identidade e, em especial, ao papel da língua na construção
dessas identidades.
Contextualização e apresentação do corpus

Por fim, são identificadas as duas principais perspectivas de estudo que conduzirão a
análise das diferentes representações identitárias construídas para Portugal ao longo do
corpus. A primeira delas consiste em refletir sobre (1) o modo como diferentes elementos são
articulados nesse processo de construção de uma ou múltiplas identidade/s para Portugal; já a
segunda procura entender (2) como essas identidades são construídas a partir do contraste
com outras entidades nacionais ou supranacionais.
O objetivo deste capítulo é, portanto, delinear um contexto histórico-cultural alargado
que servirá de base para a reflexão sobre as identidades nacionais portuguesas, tendo sempre
como ponto de partida a questão da língua, e suas diferentes estratégias de construção, que
será desenvolvida nos capítulos seguintes. Ao mesmo tempo, visa apresentar, justificar a
escolha e descrever em detalhes o corpus já identificado.

Portugal: contexto histórico-cultural

Portugal, localizado a Sul na Europa Ocidental, faz divisa com um único país, a
Espanha, que se espalha a Leste e Norte do seu território. A Oeste e Sul, está o oceano
Atlântico. Desde a criação do Condado Portucalense, em 1096, e da estabilização das
fronteiras portuguesas – processo que transcorre especialmente entre 1128 e 1297, não
obstante as disputas travadas ao longo do tempo e eventuais instabilidades – até ao Portugal
de hoje, o país passou por uma série de experiências que marcaram sua história, como não
poderia deixar de ser.
Embora o período que aqui nos interessa seja o do século XIX em diante, em função
do seu relevo para o desenvolvimento dos nacionalismos europeus, importa ressaltar um
momento histórico anterior, que desempenhou e ainda desempenha papel de destaque na
construção da identidade portuguesa: os ‘descobrimentos’ ou, em outras palavras, as grandes
navegações.
Os descobrimentos portugueses têm início com a conquista de Ceuta, na África, em
1415, e prosseguem ao longo dos séculos XV e XVI. Um dos países pioneiros nas
navegações, Portugal realiza uma série de conquistas, estabelecendo novas rotas comerciais e
dando início a um império colonial que ampliaria seu domínio para Ásia, África e América do
Sul e só chegaria ao fim no final do século XX.

108
Contextualização e apresentação do corpus

Esse período é relevante para a construção da identidade portuguesa, quer pela


circunstância material que encerra – a multiplicação de contatos com um outro, a construção
da ideia desse outro e, de forma interdependente, da noção do eu – quer pela perspectiva
simbólica, que será explorada mais à frente.
Feita essa ressalva, avançamos no tempo para encontrarmos Portugal no início do
século XIX, envolvido em tensões com a França, que acabariam levando à transferência da
família real portuguesa e sua corte para o Brasil, então colônia de Portugal, em 1808, numa
tentativa de escapar às invasões napoleônicas e salvaguardar a soberania do país. Os franceses
acabariam por ser vencidos com a ajuda dos aliados ingleses, permitindo o retorno do rei à
Portugal em 1820.
Em 1822, o país perde sua maior colônia, com a declaração de independência do
Brasil, embora este siga sob o domínio do filho do monarca português, D. Pedro, que se torna
seu primeiro imperador. Este é também o ano da primeira constituição portuguesa, em cujos
dispositivos já se encontram referências aos conceitos de nação e pátria. Enquanto a nação
figura como fonte de soberania, a exaltação da pátria se materializa num dever constitucional
– “amar a pátria” – e na valorização e celebração do seu passado, da sua história, da sua
cultura, da sua existência propriamente dita (Sobral, 2012: 60-61).
Ao longo das décadas seguintes, a Inglaterra passa a exercer cada vez mais poder
sobre o agora enfraquecido império português, culminando no incidente de 1890 – o ultimato
inglês – que põe fim às pretensões expansionistas de Portugal na África. Portugal é obrigado a
abdicar do chamado “mapa cor-de-rosa”, pelo qual reivindicava o território que se estendia
entre Angola e Moçambique, colônias portuguesas à época. Esse episódio põe em evidência a
situação de Portugal que, embora potência colonial, há muito tinha perdido força face aos
impérios coloniais da época. Essa debilidade transparece em alguma medida na caracterização
feita por Boaventura de Sousa Santos (2001: 26-29) do colonialismo português como um
“colonialismo subalterno”. Com tal expressão, o autor afirma o papel de Portugal como país
colonizador e simultaneamente relativiza seu poder em função da fragilidade da posição
portuguesa no cenário europeu, marcada, sobretudo, pela dependência de Portugal em relação
à Inglaterra.
O século XIX é apontado como sendo o do apogeu dos nacionalismos na Europa,
como já referido no primeiro capítulo. Em Portugal, é também o momento em que o poeta
Camões é alçado à posição de herói nacional, três séculos após sua morte. Camões,
frequentemente considerado o “pai da língua portuguesa”, é o autor de uma das mais
poderosas representações literárias da identidade portuguesa. Trata-se do poema épico Os

109
Contextualização e apresentação do corpus

Lusíadas, publicado em 1572, onde o poeta narra as peripécias portuguesas durante as


grandes navegações, exaltando Portugal e os portugueses.
Ao longo do século XIX e em paralelo à criação, na esfera política, dos chamados
Estados-Nação, ganham também destaque as chamadas culturas nacionais. O papel dos
Estados, nesse processo de construção, consiste em diferenciar a chamada cultura nacional em
relação àquilo que lhe é exterior, ou seja, além-fronteiras, e homogeneizar essa cultura em seu
interior, ou seja, no interior do território nacional (Santos, 2001: 25-26).
A construção das chamadas línguas nacionais também marca o século XIX, pois estas
são elementos integrantes, ou melhor, ferramentas poderosas na construção de Estados
nacionais, à medida que diferenciam e essencializam seus falantes, como afirma Lopes (2013:
22), a partir de Blommaert e Rampton. Tal processo de construção promove a associação – de
cariz político, social, ideológico e também econômico – entre uma língua e uma nação, que
depois será exportada para fora da Europa com o colonialismo.
Importa também observar que tal processo, em alguma medida, atua como elemento
conformador de ideologias linguísticas que são utilizadas na construção de identidades
culturais e nacionais ainda hoje, “naturalizando” diferenças (Lopes, 2013: 27) e colaborando
para o exercício de um mecanismo de inclusão/exclusão fundado na percepção da identidade e
da diferença, como discutido no capítulo dois.
Em Portugal, a língua portuguesa é alçada à posição de língua oficial do reino ainda no
final do século XIII, por D. Dinis, à época da estabilização das fronteiras físicas. O idioma
português conforma, assim, pouco a pouco, mais um fator de diferenciação entre Portugal e
seu entorno. No século XVI, surgem as primeiras gramáticas de língua portuguesa – a de
Fernando de Oliveira (1536) e a de João de Barros (1540) –, que já reconhecem a ligação
entre língua e identidade (Sobral, 2012: 51).
Com os descobrimentos, Portugal difunde o português pelo seu império colonial,
levando-o a três continentes: América do Sul, África e Ásia. A expansão da língua nas
colônias leva a um aumento exponencial do número de falantes, que sobrevive ao império e
permanece nos dias de hoje. Segundo dados divulgados em 2013 pelo Observatório da Língua
Portuguesa, há mais de 240 milhões de falantes de Português espalhados pelo mundo, sendo
língua oficial em oito países: Angola (19,8 milhões de habitantes), Brasil (194,9 milhões),
Cabo Verde (496 mil), Guiné-Bissau (1,5 milhões), Moçambique (23,3 milhões), Portugal
(10,6 milhões), São Tomé e Príncipe (165 mil) e Timor-Leste (1,1 milhões).
Retomando a retrospectiva histórica, em Portugal, o início do século XX não é menos
turbulento: em 1908, o rei D. Carlos e seu filho e herdeiro são assassinados em plena praça

110
Contextualização e apresentação do corpus

pública, pondo fim à monarquia portuguesa. Segue-se um breve período de República (1910-
1926), que será interrompido por um golpe militar, e, em 1933, a instituição do chamado
Estado Novo, que dá início a uma das mais longas ditaduras da Europa.
Durante esse período, a identidade nacional portuguesa é construída em torno do
discurso oficial de valorização do passado e das glórias do império, que, em alguma medida,
assume os contornos de uma espécie de culto à nação. É o Portugal singular que se afirma,
bem representado pelo slogan oficial “orgulhosamente sós” (Sobral, 2012: 79), em discursos
tão frequentemente veiculados pelos meios de comunicação de massas, então sob controlo
estatal.
Mas não só em Portugal a mídia desempenha papel relevante na construção dos
nacionalismos. Em toda a Europa, com a popularização dos meios de comunicação de massas
– em especial a rádio, a televisão e o cinema –, novas formas de mobilização e envolvimento
são desenvolvidas. Esses processos permitem, de algum modo, que o nacionalismo se
popularize por meio da difusão dos seus ideais – antes partilhados apenas por uma elite ou
grupo – por toda a sociedade. A criação, fortalecimento e centralização de instituições
públicas, como o exército e a escola, aliadas aos movimentos de valorização de uma suposta
tradição nacional – com a construção de monumentos e a organização de eventos públicos,
por exemplo – são alguns dos recursos utilizados nesse processo (Sobral, 2012: 76-77;
Hobsbawm, 1994)
A primeira metade do século XX é também lembrada pelas duas grandes guerras que
marcaram a história da Europa e do mundo, e que servem de substrato para o projeto da União
Europeia, que, por sua vez, começa a se desenvolver a partir do seu fim. Embora Portugal
tenha participado do primeiro conflito (1914-1918) ao lado dos Aliados, mantém-se
oficialmente neutro em relação ao segundo (1939-1945).
Nas décadas seguintes, Portugal mergulha na guerra colonial – a chamada Guerra do
Ultramar, iniciada em 1961, envolvendo Angola, Guiné-Bissau e Moçambique – numa
tentativa de manter suas colônias na África, no momento em que o colonialismo parecia ter
chegado ao fim – ou, numa outra perspectiva, no momento em que este se transformava em
uma nova forma de exploração: o neocolonialismo.
A guerra colonial marca os extertores do regime ditatorial português, que chega ao fim
em 1974, com a Revolução dos Cravos, depois de 41 anos de existência. Representa, também,
o fim do império português com as independências de Angola e de Moçambique, em 1975, e
também do Timor, que, no entanto, é invadido e violentamente ocupado pela Indonésia nesse
mesmo ano, só alcançando sua independência em 2002.

111
Contextualização e apresentação do corpus

Com o fim do império, cerca de 500 mil portugueses precisam ser repatriados, após
abandonarem às pressas as antigas colônias – são os chamados “retornados”. Muitos nascidos
e criados nas colônias, com outras vivências e culturas, outros modos de falar, outras
expectativas e crenças, nunca haviam pisado em solo português. Mais uma vez, uma certa
ideia de identidade nacional vem a tona, agora na construção de um eu verdadeiramente
português e de um outro, retornado. O país passa por profundas transformações em todas as
esferas da vida em sociedade.
O início dos anos 80 representa um forte abalo na identidade portuguesa: por um lado,
o encolhimento do território com a dissolução do império português e do papel colonial; por
outro, o processo de integração na União Europeia (Magalhães, 2001: 310). Após cinco
séculos voltado para o Atlântico, Portugal vira-se para o continente, numa rotação de 180º.
Embora ainda não saiba que papel desempenhará nesse contexto, parece evidente que este
será diametralmente distinto do de Portugal imperial; novas relações de poder serão e deverão
ser estabelecidas.
A mudança do Portugal imperial para o Portugal europeu é uma mudança de
paradigma. Segundo Sobral (2012: 79), tais mudanças afetam profundamente a noção de
identidade portuguesa. A glorificação do passado imperial, da “singularidade portuguesa” e
da “vocação atlântica” dá lugar ao Portugal europeu, cuja nova identidade ainda precisa ser
forjada.
Nesse contexto de inserção de Portugal na Europa, vigora uma sensação generalizada
de fragilidade, de perda de soberania e, em última instância, de perda de poder em relação ao
seu entorno. Segundo Sobral (2012:91), isso advém da percepção da fragilidade da posição do
país na tomada de decisões no âmbito da União Europeia, derivada da multiplicação dos
contatos via circulação de pessoas, dados, informações.
A adesão de Portugal à União Europeia – à época ainda Comunidade Econômica
Europeia (CEE) – só acontecerá em 1986. Passado o período de euforia, marcado pelo afluxo
de capitais europeus, pela modernização da infraestrutura nacional e pelo desenvolvimento
social e econômico, Portugal imerge na crise financeira que se alastrou pela Europa neste
início de século, entre planos de austeridade, reduções de salários, cortes de benefícios,
aumento de desemprego, entre tantas outras medidas.
Depois de passar pela mais longa ditadura da Europa ocidental, vivenciar o fim do
império colonial e a chegada dos retornados, aderir à União Europeia e ao euro, Portugal
atravessa o século XX e aterra no século XXI para se digladiar com uma crise econômico-

112
Contextualização e apresentação do corpus

financeira que ainda não chegou ao fim e cujos desdobramentos, no que diz respeito ao futuro
do projeto europeu, ainda não se pode precisar.
Chegamos, assim, ao Portugal de hoje, que, segundo Eduardo Lourenço (1988), ainda
vive de glórias passadas, do sucesso da sua empreitada marítima. Num texto de grande
repercussão – O Labirinto da Saudade, publicado em 1978 – o autor explora essa construção,
que, de certo modo, ainda parece atual. Segundo Lourenço, a identidade portuguesa é em
muito devedora do “ter sido”, ou seja, daquilo que já foi, numa referência ao passado
imperial, construindo para si uma imagem irreal e mitificada, incapaz de refletir sobre o
presente e marcada por um sentimento de ausência de sua “própria realidade”, que se arrasta
desde o século XIX (1988: 65).
Por sua vez, José Gil (2008), ao refletir sobre a identidade portuguesa, destaca o
impacto da vivência da ditadura que, segundo o autor, ainda se faz presente num país que
resiste a se “inscrever” e vive ainda numa atmosfera de “medo”. Inscrever-se, na perspectiva
do autor, implica atuar sobre e transformar as relações sociais e também nós mesmos, ou seja,
atuar sobre o mundo ao redor e os espaços que ocupamos nele. Já a atmosfera de medo é
entendida como um sentimento difuso e impreciso, um medo ao qual não se consegue atribuir
verdadeiro sentido ou sequer identificar sua fonte, o que torna impossível resistir-lhe.
Para Boaventura de Sousa Santos (2001), Portugal ocupa hoje na Europa uma posição
intermediária – a mesma que já ocupava durante o período colonial. Não se enquadra no
grupo dos países em desenvolvimento, tão pouco no dos países desenvolvidos, ocupando uma
posição caracterizada pelo autor como “semiperiférica”. Esse deslocamento em relação ao
centro implica perda de poder, caracterizada pela relação de dependência em relação ao
cenário internacional, enfraquecimento da autonomia ou soberania nacional e pouca
capacidade de influência no cenário europeu.
Independentemente das diferentes perspectivas adotadas, é possível encontrar
elementos que mostram certa consistência em suas respectivas representações da identidade
portuguesa: a valorização do passado ou mesmo uma espécie de fixação por ele; boa dose de
imobilidade ou incapacidade de ação que poderia se traduzir num espécie de desligamento do
presente; e uma debilidade generalizada ou fragilidade da posição no cenário internacional,
onde Portugal parece estar sempre a meio do caminho – nem um coisa, nem outra, sempre um
quase que não se resolve, mas que, por outro lado, pode também indicar uma tentativa de
alcançar esse presente fugidio.
Quanto à língua portuguesa, a sua importância hoje pode ser inferida pela criação da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, que, em sua formação

113
Contextualização e apresentação do corpus

inicial, reuniu Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé
e Príncipe. Em 2012, Timor-Leste viria se juntar ao grupo e, em 2014, seria a vez da Guiné
Equatorial aderir à CPLP.
Mas, se o universo de falantes da língua portuguesa alcança cifras tão altas, colocando
o português entre as dez línguas mais faladas do mundo, sua posição na Europa parece ser
diferente. Apenas a título de exemplo, vale referir esta passagem do livro do jornalista inglês,
radicado em Portugal, Barry Hatton, sobre o país e sua história, que destaca o estranhamento
provocado pelo contato do português no espaço europeu:

A língua singular é outra desvantagem para um conhecimento mais íntimo de Portugal. Se


viajarem pela Europa, as pessoas não conseguem identificar a língua que estão a falar e muito
menos o que estão a dizer. Os sobrolhos erguem-se quando ouvem falar português, como se
estivessem a tentar localizar um raro odor ou paladar. (Hatton, 2011: 28).

Se, no entanto, a língua portuguesa pode provocar certo estranhamento no espaço


internacional, a relação de Portugal, e dos portugueses, com sua língua parece inspirar um
sentimento de forte ligação e proximidade. O aniversário da morte de Camões, dia 10 de
junho, é também o dia de Portugal e da comunidade portuguesa. Camões, aliás, dá nome a
ruas e praças um pouco por todo o país. Na capital, Lisboa, uma estátua do poeta ocupa o
largo que leva o seu nome, na região do Chiado, um dos pontos turísticos da cidade, onde
também se encontra a estátua de António Ribeiro Chiado, poeta do século XVI,
contemporâneo de Camões. Outros escritores lhes fazem companhia: uma estátua de
Fernando Pessoa, que, ao lado de Camões, é uma das grandes referências literárias
portuguesas, fica em frente ao café “A Brasileira”, numa das esquinas da rua Almeida Garrett
(1799-1854), e, próximo dali, econtramos uma estátua de Eça de Queirós (1845-1900). E,
assim como Garrett e Eça, há muitas outras referências literárias na cidade, como, por
exemplo, a Fundação Saramago, que leva o nome do único escritor português vencedor do
prêmio Nobel até esta data.
Nesse sentido, os célebres versos de Pessoa, tão frequentemente relembrados, parecem
bem representar o sentimento de boa parte dos portugueses em relação à língua: “Não tenho
sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento
patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa” (1982, I: 17). Mais do que a associação entre
língua e identidade nacional, ocorre aqui uma equiparação ou mesmo uma sobreposição
desses dois conceitos.

114
Contextualização e apresentação do corpus

O acordo ortográfico e os artigos de opinião

O acordo ortográfico, objeto dos textos que serão analisados a seguir, foi aprovado em
12 de outubro de 1990 pela República Popular de Angola, República Federativa do Brasil,
República de Cabo Verde, República da Guiné-Bissau, República de Moçambique, República
Portuguesa e República Democrática de São Tomé e Príncipe, no âmbito da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP). Intervieram no processo a Academia das Ciências de
Lisboa, a Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a adesão de uma delegação de observadores da
Galiza.
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO90) visa à unificação da grafia do
português nos diferentes países onde este é língua oficial. Entre os objetivos principais
destacam-se a “defesa da unidade essencial da língua portuguesa” e do “seu prestígio
internacional”, como explicitado no texto do acordo, publicado no website da CPLP.
Concebido como tratado internacional, o AO90, à época da publicação dos artigos de
opinião aqui analisados (de 01 de janeiro a 31 de dezembro de 2012), havia sido ratificado por
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor. Em Moçambique,
embora o acordo tenha sido ratificado pelo governo em junho de 2012, sua ratificação pelo
parlamento seguia pendente em maio de 2015. Até essa mesma data, Angola não havia
ratificado o acordo. O AO90 entrou em vigor em Portugal em 2009 e foi introduzido no
sistema educativo português no ano letivo de 2011/2012, passando a ser obrigatório a partir
de maio de 2015.
Para este estudo de caso, foram analisados os artigos de opinião publicados em jornais
de notícias portugueses sobre o acordo ortográfico ao longo do ano 2012, como já referido. A
seleção dos jornais pesquisados baseou-se nos critérios de (i) maior tiragem e (ii) maior
amplitude de cobertura (vide anexo 1) com o intuito de identificar textos com potencial de
repercussão ampliada, quer em função de sua disponibilidade em número de exemplares quer
em diferentes geografias.
Por artigo de opinião entende-se os textos assinados individualmente, que consistem
na manifestação explícita do pensamento e da opinião de um determinado autor. Dessa forma,
portanto, excluem-se os textos predominantemente noticiosos e os editoriais, que, embora
sejam de natureza opinativa, representam a opinião de uma dada instituição (nesse caso, do
respectivo jornal) e não de seu autor.

115
Contextualização e apresentação do corpus

Segundo os critérios acima indicados (tiragem e cobertura), foram identificados


sessenta e três artigos de opinião, publicados em cinco jornais: Público (55,5%), Diário de
Notícias (27,0%), Expresso (9,5%), Sol (4,8%) e Correio da Manhã (3,2%). Verificou-se,
portanto, a predominância incontestável do Público em número de artigos publicados, seguido
pelo Diário de Notícias, com pouco menos de metade do primeiro. Para fins de comparação
entre jornais diários, segue-se, ao Público e ao Diário de Notícias, o Correio da Manhã, com
apenas dois artigos publicados – número inferior, inclusive, ao dos dois jornais semanais
também contemplados no gráfico abaixo, Expresso e Sol:

Público 35
Expresso 6
Sol 3
Série1
Correio da Manhã 2
Diário de Notícias 17

0 10 20 30 40

Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado

Quanto aos jornais com periodicidade semanal, a liderança coube ao Expresso, que
publicou seis artigos, ou seja, o dobro dos artigos publicados pelo Sol. Uma vez que não se
considerou a extensão dos textos, quer em função do número de caracteres, quer em função da
mancha gráfica (espaço físico que o texto ocupa no jornal, incluindo fotos, ilustrações, etc.),
não parece razoável fazer aqui quaisquer outras inferências a partir de tais números.
Entre os sessenta e três artigos publicados, foram identificados quarenta e três autores
diferentes, dentre os quais 83,7% publicaram um único artigo e 16,3% publicaram dois ou
mais. Nesse último grupo, destacam-se Nuno Pacheco, com nove artigos; Francisco Miguel
Valada, com cinco artigos; Vasco Graça Moura, também com cinco artigos; e Alberto
Gonçalves, Ferreira Fernandes, Octávio dos Santos e Rui Miguel Ventura Duarte, com dois
artigos cada, como indicado no Quadro 4.2.
Da análise desses dados, depreende-se facilmente a proeminência de Nuno Pacheco,
ocupando a liderança absoluta do ranking, com nove artigos publicados sobre o AO, seguido
por Francisco Miguel Valada e Vasco Graça Moura, empatados em segundo lugar, com cinco
artigos cada, sendo os autores contrários à aplicação do acordo. À época da publicação dos

116
Contextualização e apresentação do corpus

artigos analisados, Pacheco ocupava o cargo de editor do jornal Público e Graça Moura
respondia pela presidência da Fundação Centro Cultural Belém (FCCB).

Vasco Graça Moura 5


Rui Miguel Ventura Duarte 2
Octávio dos Santos 2
Nuno Pacheco 9
Franciso Miguel Valada 5 Série1

Ferreira Fernandes 2
Alberto Gonçalves 2
Outros(*) 36

0 10 20 30 40

Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor

Considerando-se a dispersão dos artigos ao longo do ano, verificamos uma


concentração de matérias em fevereiro (31,7%), em boa parte justificada pela repercussão de
uma decisão tomada por Vasco Graça Moura, que determinou a não utilização do acordo
ortográfico no Centro Cultural de Belem, instituição a que presidia, como já referido. Essa
decisão foi divulgada a partir de 3 de fevereiro de 2012.
Excluindo-se o mês de fevereiro, pode-se identificar alguma paridade no total de
artigos publicados em janeiro, março, abril e agosto, que gira entre seis e sete, representando,
portanto, bem menos da metade do total de artigos publicados em fevereiro, o que atesta a sua
atipicidade. Por fim, nos demais meses (maio, junho, julho, setembro, outubro, novembro e
dezembro) registrou-se dois ou três artigos cada – com exceção de outubro, com apenas um
texto publicado, como indicado no Quadro 4.3.
Embora não seja objeto desta pesquisa analisar a posição dos respectivos autores sobre
o acordo ortográfico, o mapeamentos de tais posições pode ser útil na caracterização do
contexto de análise. Por esse motivo, os artigos de opinião foram classificados em favoráveis
(A Favor) ou contrários (Contra) ao AO90. Nos casos em que o autor não assume uma
posição ou, pelo menos, não o faz com clareza, os artigos foram classificados com “N.D.”,
numa referência à não determinação de uma posição, como registrado no Quadro 4.4.

117
Contextualização e apresentação do corpus

DEZ 3
NOV 3
OUT 1
SET 3
AGO 7
JUL 2
JUN 2 Série1
MAI 2
ABR 7
MAR 6
FEV 20
JAN 7
0 5 10 15 20 25

Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano

N.D. 6

A Favor 8
Série1

Contra 49

0 10 20 30 40 50 60

Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90

Na grande maioria dos artigos, portanto – 77,5% de um total de sessenta e três textos –
, os respectivos autores assumiram posição contrária ao AO. Apenas em 12,7% das
ocorrências os autores adotaram postura favorável ao acordo. Nos casos restantes (9,5%), os
autores propositadamente não assumiram uma posição ou não foi possível identificá-la com
clareza.
Uma vez concluída a apresentação do corpus numa perspectiva quantitativa, importa
agora justificar sua escolha. A opção por artigos cujo tema central é o AO visa garantir, em
alguma medida, a existência de uma relação entre língua e identidade nacional, ou seja, se for
possível encontrar argumentos de natureza identitária em artigos sobre o acordo, já teremos aí

118
Contextualização e apresentação do corpus

a garantia de existência de alguma relação entre língua e identidade, direta ou indireta,


explícita ou implícita, consciente ou inconsciente, deliberada ou não.
Por sua vez, a opção pela análise do discurso midiático – e, neste caso, estritamente do
discurso produzido e reproduzido pela mídia impressa e publicado também em meio digital –
deveu-se, prioritariamente, ao seu caráter público e à questão da acessibilidade. Ambos os
critérios são, a princípio, inerentes ao discurso jornalístico, embora nem sempre se
manifestem da forma esperada, como já discutido no capítulo anterior.
Como alerta Hobsbawm (1990: 11), identificar a visão da sociedade em sua base, ou
melhor, das pessoas comuns – e não dos governantes ou dos líderes de grupos engajados na
atividade pública – é sempre difícil. A opção pela análise dos discursos da mídia representa
uma tentativa de enfrentar essa dificuldade. Embora os artigos de opinião reflitam, a
princípio, opiniões individuais, elas refletem pensamentos correntes e recorrentes na
sociedade.
Por esse motivo, a perspectiva de divulgação e abertura ao debate, característica da
mídia e, em maior intensidade, dos artigos de opinião, dificulta o isolamento e permite uma
visão mais alargada das percepções e ideais que configuram um certo contexto sociocultural.
Em alguma medida, atuam como canal de acesso à pluralidade de discursos e representações
que circulam numa dada sociedade, num período específico.
Uma vez adotado o entendimento acima sobre o papel da mídia e dos artigos de
opinião, busca-se, na análise do discurso, os recursos necessários para revelar e avaliar o
potencial de significação que tais discursos realizam, seja de forma explícita ou implícita,
intencional ou não. Nesse sentido, Blommaert e Verschueren (1992: 357) destacam a
relevância do caráter implícito dos discursos ao afirmar que estes consistem em construções
coletivas partilhadas, que impregnam o discurso individual sem que o autor nescessariamente
se aperceba, adquirindo, assim, maior importância no contexto da análise:

“(…) more weitght is attached to the implicit frame of reference, the supposedly common
world of beliefs in which the reports (or the editorial comments) are anchored, than to the
explicit statements made by the reporters (or commentators). This approach is crucial for the
investigation of widely shared ideologies”.

Com a análise dos artigos de opinião publicados em 2012, pretende-se identificar de


que modos diferentes elementos são articulados nas representações da identidade nacional
portuguesa construída e disseminada nesse período. Tais elementos funcionariam como
espécies de marcadores identitários, quer pela frequência do seu uso nos discursos sobre
119
Contextualização e apresentação do corpus

identidade nacional em geral, quer pela sua relevância no contexto específico da identidade
portuguesa, revelando as representações partilhadas e disputadas. Busca-se, também, analisar
as diferentes posições assumidas por e ou atribuídas a Portugal na relação com outros países e
entidades nacionais e supranacionais.
Nesse contexto, o discurso jornalístico atuaria como uma espécie de discurso
intermediário entre as esferas pública e privada – assim como entre instituições e pessoas ou
entre especialistas e leigos, por exemplo – permitindo, dessa forma, alguma aproximação
entre diferentes concepções e entendimentos que circulam num dado momento, numa certa
sociedade, isto é, atuando no papel de mediador ou negociador.
Muito se tem discutido sobre o papel da mídia na sociedade moderna. Em geral, esses
discursos giram em torno da ideia de que a mídia, em algum grau, exerce papel estruturante
da realidade e decisivo na formação da chamada opinião pública, como discutido no capítulo
anterior. Sem nos alongarmos mais sobre o tema, que não é objeto desta pesquisa, parece
razoável assumir que, em alguma medida, a mídia consiste numa plataforma interessante e
relevante para se entender os valores e discursos recorrentes num dado momento, numa certa
sociedade sobre uma questão específica: neste caso, a identidade nacional portuguesa e o
papel da língua em seu processo de construção.

Mapeamento geral dos argumentos

A partir de uma primeira análise do corpus, procurou-se delinear os principais


argumentos trazidos ao debate sobre o acordo ortográfico, tanto na perspectiva dos seus
defensores como na dos seus opositores, na tentativa de melhor caracterizar esse corpus e de
construir um enquadramento geral que servirá de base para as reflexões que serão
desenvolvidas nos próximos capítulos.
Para facilitar a identificação dos artigos que compõem o corpus, a cada um foi
atribuído um código composto por duas letras – em referência ao jornal onde foi publicado – e
dois números – em referência à sequência temporal da publicação. O artigo identificado como
DN02, por exemplo, foi o segundo artigo, em ordem cronológica, publicado no jornal Diário
de Notícias e selecionado para compor o presente corpus. Seguindo esse mesmo raciocínio, a
sigla PB remete para o jornal Público, EX para o jornal Expresso, SL para o jornal Sol e CM

120
Contextualização e apresentação do corpus

para o jornal Correio da Manhã. O quadro completo com toda a identificação dos artigos está
disponível no apêndice A.
Na discussão sobre o AO, alguns temas se destacam por sua frequência e relevância
para os estudos de identidade. Para melhor entendê-los e analisá-los, tais temas foram
divididos em três grupos, de acordo com sua natureza e com o enfoque que adotam:
argumentos de caráter material (i), argumentos de caráter funcional (ii) e argumentos de
caráter simbólico (iii). Estes últimos são os que mais interessam no âmbito deste estudo.
Na perspectiva material (i), busca-se analisar o acordo em si mesmo, isto é, os
argumentos que incidem sobre o texto do acordo – seu conteúdo, as regras que institui, etc. –
e sobre o processo de elaboração, tramitação e aprovação. Em geral, os argumentos dessa
natureza caracterizam-se pela tecnicidade – real ou aparente – do debate, marcado pela
intervenção de juristas, linguistas e outros especialistas.
Em relação ao seu conteúdo, sobressaem as questões sobre aspectos técnico-
linguísticos, concretizadas, em geral, no debate sobre etimologia, que apontam, sobretudo,
para os riscos de eventual perda de relações de origem entre as palavras, com impacto
negativo para a educação e a aprendizagem do português europeu pelas gerações futuras,
entre outros problemas.
Nessa classe de argumentação, destaca-se o uso de um vocabulário muitas vezes
afetivo, que remete para o contexto das relações de família. Considerando-se o contexto
sociocultural português e o papel de destaque que a instituição da família ocupa dentro dele,
tal recurso pode ser bastante interessante na análise das representações de identidade também
na perspectiva simbólica. Afeto, responsabilidade, necessidade de proteção são alguns dos
temas correlatos que surgem nessas construções, como se pode ver nos seguintes exemplos:

 Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de
famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e
as escrevem pensam. (…) A simplificação destrói laços de família. [PB25, destaques
acrescentados]
 A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um p em ótimo, agora
lhe dizerem que afinal esse p (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem
argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem
o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! [EX04,
destaques acrescentados]

Nesse quesito, opositores e defensores do acordo assumem posições relativamente


claras: os defensores denunciam a perda da relação etimológica, que é identificada como
negativa, com implicações para o ensino e o aprendizado da língua, entre outros. Os

121
Contextualização e apresentação do corpus

defensores, por sua vez, relativizam e minimizam a importância dessas alterações, apontando
a reincidência das mesmas ao longo do desenvolvimento das línguas, evidente em acordos
anteriores.
Em relação ao processo de discussão e aprovação do acordo, o debate se divide entre a
análise da tramitação do AO, concebido como tratado internacional, onde as questões técnico-
jurídicas ganham corpo, e o tema da legitimidade democrática, que questiona a participação
de diferentes agentes sociais ao longo de todo o processo de elaboração, discussão, aprovação
e implementação do mesmo.
Seus críticos apontam falhas e irregularidades na tramitação do tratado internacional,
concluindo pela ilegalidade da entrada em vigor do AO, ao mesmo tempo em que acusam um
déficit de legitimidade democrática, apresentando o acordo como uma imposição, uma
abusiva demonstração de força por parte de uma minoria contra a maioria da população
portuguesa, resultado de um processo desenvolvido sem a devida publicidade. Já os
defensores do acordo defendem a legalidade de todo o processo e destacam o envolvimento
de diferentes atores sociais ao longo de sua gestação, assim como o longo período de
desenvolvimento que representaria a possibilidade de intervenção de todos e a devida
publicidade.
Ainda nessa perspectiva de análise, vale a pena observar o embate entre especialistas e
leigos, que levanta uma outra questão: quem pode – no duplo sentido de ter o poder de e estar
capacitado para – opinar sobre o ocordo? De certa forma, o pêndulo da balança parece
inclinar para o lado dos especialistas – sejam do campo da linguística, sejam do campo do
direito –, que são percebidos como dotados de maior autoridade para falar sobre o tema em
função do conhecimento que detêm. Não significa dizer que eles estejam em maioria entre os
autores dos artigos de opinião analisados, mas sim que as representações que associam saber e
poder prevalecem. Tal afirmação é corroborada, por exemplo, pela incidência dos casos em
que o autor se esforça por justificar a sua intervenção, uma vez que não se reconhece como
integrante do grupo de especialistas.
Essa discussão parece refletir uma certa tensão que se estabelece em torno do acordo e
da sua natureza técnica ou política, sem deixar de lado todas as posições intermediárias entre
um campo e outro. Como regra geral, é possível estabelecer uma relação afirmativa entre a
percepção do acordo como estando situado no campo técnico e a valorização do papel do
especialista nesse debate ou mesmo a sua identificação como o principal interlocutor nesse
processo.

122
Contextualização e apresentação do corpus

Na perspectiva funcional (ii), a argumentação em torno dos objetivos do acordo


centra-se na questão da unificação da grafia, na valorização da posição do português como
língua internacional e na ampliação e fortalecimento do mercado editorial de língua
portuguesa. É importante observar que tais argumentos são interdependentes, entendendo-se a
unificação da grafia do português como uma estratégia ou meio de acesso dos outros dois
objetivos.
Em relação à uniformização da grafia, opositores e defensores do acordo ocupam
posição antagônica. Para seus partidários, em geral, o acordo promove a unificação da grafia
do português e esta, por sua vez, reforça a posição da língua nos contextos acima indicados
(internacionalização e fortalecimento/ampliação do mercado editorial). Para seus opositores,
os argumentos se dividem basicamente em dois: aqueles que reconhecem o papel do acordo
na unificação da grafia, mas entendem que tal unificação não trará vantagens para Portugal, e
aqueles que afirmam ser o acordo incapaz de promover a unificação ao prever numerosas
exceções.
Em relação à valorização do papel do português como língua internacional, as
posições se dividem entre aqueles que reconhecem o potencial do acordo como elemento
positivo nesse processo e aqueles que o negam – nesse segundo pólo, predominam os
opositores do AO. Entre os que reconhecem o potencial, uma nova divisão se verifica: alguns
veem essa valorização como benéfica, entendendo que ela se estende à língua portuguesa em
sua integridade, enquanto outros veem-na com desconfiança, entendendo que a variedade
brasileira é que será privilegiada nesse processo, em detrimento do português europeu.
Em relação à ampliação e ao fortalecimento do mercado editorial, como regra geral, a
grande maioria dos autores reconhece a implicação do acordo nesse campo, mas nem todos
veem vantagem nessa relação. Entre os defensores do acordo, predomina a ideia de que o
mercado editorial em língua portuguesa sairá valorizado, com benefìcio para todos os países
de língua portuguesa. Entre os opositores, no entanto, tal valorização é entendida como
vantagem – muitas vezes desleal ou indevida – para o Brasil, em função do peso/tamanho do
seu mercado, em prejuízo para Portugal.
Na perspectiva simbólica (iii), a argumentação em torno dos significados do acordo
diz respeito ao seu conteúdo simbólico, isto é, ao papel que desempenha ou pode
desempenhar no processo de construção identitário. Os argumentos que se destacam nesse
quesito giram em torno da ideia da língua como fator de identidade individual e coletiva, mas
também em torno dos conceitos de correção da grafia, de valorização ou supressão da
diversidade linguística e de vinculação e afeto, como será explicitado a seguir.

123
Contextualização e apresentação do corpus

Em relação à associação entre língua e identidade, essa concepção é quase sempre


afirmada – quer pelos partidários do acordo, quer pelos seus opositores. A divergência entre
eles surge no que diz respeito à relação entre língua e ortografia. Para os que são contra o
acordo, muitas vezes ortografia e língua são tomadas como sinônimos ou, ao menos, como
conceitos fortemente interdependentes, e, portanto, a alteração ortográfica promovida pelo
AO implicaria alteração da língua propriamente dita. Retomando a relação inicial de
afirmação entre língua e identidade, essa linha de raciocínio leva à conclusão de que o AO
afetaria a identidade associada àquela, sendo essa percepção sempre valorada negativamente.
Para os que são a favor, em geral, os conceitos de ortografia e língua são entendidos
como tendo naturezas distintas. As alterações ortográficas promovidas pelo acordo, portanto,
não implicariam mudanças na língua propriamente dita. Nesse caso, o AO não afetaria a
identidade, isto é, não repercutiria sobre as representações de identidade nacional prevalentes
e recorrentes no Portugal de hoje.
Em relação à noção de correção ortográfica, os argumentos que se destacam, em geral
adotados pelos opositores do acordo, associam as mudanças ortográficas a erros, ou seja,
escrever de acordo com a nova ortografia significaria escrever “com erros”. Sustentam tal
argumento a ideia de que a norma-padrão adotada em Portugal, anterior ao acordo, é a melhor
e a mais correta, o que, em sentido contrário, implica dizer que as demais seriam piores e
menos corretas. Em alguns casos, são construídos discursos de aproximação ou mesmo de
equiparação entre a nova norma – pós-acordo – e o português falado no Brasil. O português
de Portugal, nesse caso, seria melhor ou mais correto do que o português do Brasil.
Em relação à questão da diversidade linguística, essa via de argumentação é marcada
por um consenso: a princípio, todos defendem a valorização da diversidade, ou seja, a
deiversidade como uma mais-valia. As divergências partem daí, com o questionamento da
influência do acordo sobre essa diversidade. Para alguns, ele a protege e respeita, pois,
embora unifique as grafias, dá espaço para as diferenças concretizadas nas várias exceções
que prevê. Para outros, especialmente para os opositores do acordo, ele suprime essa
diversidade, isto é, representa uma ameaça a essa diversidade linguística e também cultural,
associada aos países de língua portuguesa, ao promover uma espécie de apagamento das
diferenças ou tentativa de homogeneização em sua busca pela unificação gráfica, como
registrado no exemplo seguinte:

 Eu não vou aderir nunca ao acordo ortográfico. Vou escrever sempre como aprendi e me
ensinaram. Acho este acordo um embuste, feito de uma forma apressada e imposto, mas não

124
Contextualização e apresentação do corpus

aceite. A diversidade numa língua é uma mais-valia cultural, todos os países lusófonos se
entenderam na linguagem e escrita, as suas divergências sempre foram políticas ou de outra
índole. [PB07]

É interessante destacar aqui uma dualidade que marca os argumentos contrários ao


acordo no que diz respeito ao tema da unificação das grafias e das exceções previstas. Por um
lado, há os que defendem que tais exceções são excessivas e comprometem o objetivo de
unificação ortográfica e há os ignoram o tema destacando e afirmando essa unificação. No
primeiro caso, no entanto, a unificação ortográfica parece ser vista de forma positiva, pois o
seu não alcance seria justificativa para o descarte do AO. No segundo caso, a unificação
ortográfica é vista de forma negativa, pois é exatamente o seu alcance que põe em risco a
diversidade que se quer defender.
Há, ainda, uma outra construção recorrente que pode ser classificada nesta categoria
de argumentos simbólicos: é a noção de língua como patrimônio, bem ou propriedade. Nessas
construções, a língua portuguesa é identificada como patrimônio de Portugal – concepção que
deriva, ao menos em parte, e que se confunde com a perspectiva de Portugal como sendo a
matriz da língua, tema que será melhor elaborado nos capítulos seguintes.
Retomando, nesse contexto, o argumento de que o AO90 representaria uma
aproximação entre o português europeu e o português do Brasil, com prejuízo para o primeiro,
Portugal seria, portanto, usurpado do seu patrimônio, prejudicado em seus direitos de
proprietário, desrespeitado em seu papel de matriz. São esses alguns dos argumentos
apresentados pelos opositores do AO. Os partidários, em geral, ou recusam a ideia de
propriedade ou a afirmam – mas, nesse caso, atribuindo direitos a todos aqueles que adotam o
português como língua, e não exclusivamente a Portugal.
Entre uns e outros – defensores e opositores –, trocam-se acusações: para os que são a
favor, os que são contrários se considerariam os “donos da língua”; para os opositores, são os
defensores do AO que se arvoram nesse papel ao quererem impingir o acordo aos demais. Em
ambos os casos, no entanto, o argumento de fundo permanece, ou seja, a língua é representada
como um bem.
A afirmação acima, porém, não implica dizer que todos os autores que se valem dessa
representação acreditam nela. Muitas vezes, um autor traz certo argumento à tona não para
defendê-lo, mas sim para recusá-lo, num exercício de antecipação às possíveis críticas ou
argumentos contrários que hipoteticamente lhe pudessem ser impingidos.
Em linhas bastante gerais, são esses os argumentos mais frequentes (cf. Quadro 4.5),
embora seja possível identificar muitos outros. Vale ainda a ressalva de que essas ideias e

125
Contextualização e apresentação do corpus

posições são quase sempre entrelaçadas e confundidas ao longo do debate, nem sempre sendo
fácil – ou mesmo útil – identificá-las ou isolá-las sem comprometer sua interpretação. Daí a
opção por se trabalhar a partir de perspectivas de análise e não a partir de uma divisão e
classificação rígida de cada argumento.

Perspectivas Temáticas
Etimologia (questões técnico-
linguísticas)
Material
Tramitação e legitimidade do AO
(questões técnico-jurídicas)

Uniformização da grafia

Internacionalização da língua portuguesa


Funcional
Fortalecimento e ampliação do mercado
editorial

Língua como fator de identidade

Valorização do português europeu face


aos demais (correção ortográfica)
Simbólica
Diversidade linguística como valor

Língua como bem ou patrimônio


Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos

Perspectivas de Análise

Ao longo do corpus é possível identificar referências expressas e veladas a uma


suposta identidade portuguesa, embora sempre variável. Algumas delas destacam o papel da
língua, outras não. Essas identidades são construídas a partir de estratégias variadas e distintas
dentre as quais se destacam a (1) articulação de determinados elementos – identificados no
âmbito deste estudo como marcadores identitários, tema que será desenvolvido a seguir – na
construção de identidades para Portugal e (2) a contraposição entre Portugal e outras
entidades nacionais e supranacionais, elaborada por via da construção de posições de simetria
e assimetria, caracterizadas por uma relação de convergência/divergência ou de
vantagem/desvantagem, respectivamente.

126
Contextualização e apresentação do corpus

Na primeira perspectiva de análise (1), o ponto de partida foi a seleção de elementos


que permitissem a identificação de discursos de identidade nacional em geral e da identidade
nacional portuguesa em especial. Tal tarefa foi cumprida a partir da intersecção de duas ações:
por um lado, a contagem de palavras do corpus a fim de identificar termos recorrentes; por
outro, a elaboração de um vocabulário dos nacionalismos, isto é, de uma relação de termos
mobilizados de forma recorrente na construção das identidades nacionais, como povo, nação,
língua, cultura, etc.
Como resultado desse procedimento, foram identificados sete grupos de palavras, cada
um deles composto por uma palavra central e suas derivações, incluindo diferentes categorias
morfossintáticas e declinações, assim nomeados: nação, pátria, povo, língua, cultura,
identidade e matriz. Vale a pena, ainda, observar que a inclusão de matriz entre os elementos
mobilizados na construção dos discursos de identidade nacional, neste contexto, está
diretamente relacionada com o histórico colonial português, do qual o atual cenário de
dispersão da língua portuguesa é profundamente dependente. Essa discussão será retomada no
próximo capítulo.
Nesta etapa da análise, não foi feita distinção entre os artigos favoráveis e
desfavoráveis à adoção do artigo ortográfico, pois não é esse o tema que interessa a este
estudo. Entende-se que, a partir da análise de textos que se posicionam sobre a questão da
língua, a presença de elementos identitários por si só indica uma relação entre língua e
identidade, como já referido. Esta será a análise desenvolvida no capítulo a seguir.
Uma vez identificados os elementos mobilizados na construção de identidade, que, a
partir de agora, serão referidos como marcadores identitários, estes foram devidamente
identificados ao longo do corpus e, em seguida, analisados em seus respectivos contextos a
partir das diferentes estratégias suportadas pela análise crítica do discurso e pela linguística
sistêmico-funcional, como já identificado no capítulo anterior.
Na segunda perspectiva de análise (2), parte-se da identificação de relações de
contraste entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais no intuito de se refletir
sobre os diferentes modos como os discursos e as representações da identidade nacional
portuguesa são elaborados a partir da ativação de um mecanismo de construção de identidade
e diferença, que é posto em causa no contato com o outro e, especialmente, com a imaginação
desse outro.
Com esse objetivo e, mais uma vez, valendo-se da contagem de palavras do corpus,
foram primeiro identificadas as demais entidades nacionais ou supranacionais mencionadas,
entre países, regiões, instituições, etc. A seguir, tais referências foram contextualizadas a fim

127
Contextualização e apresentação do corpus

de se identificar a existência ou não de uma relação de comparação entre elas e Portugal.


Apenas os casos em que tal relação se afirmava foram selecionados. Essa perspectiva de
análise será desenvolvida no capítulo seis.

Síntese

Neste capítulo, foi elaborada uma breve retrospectiva histórico-cultural, tendo


Portugal como tema, na tentativa de se delinear um contexto bastante geral e abrangente que
servirá de base para as análises a serem desenvolvidas nos capítulos seguintes. A seguir,
possou-se à identificação do corpus de pesquisa: artigos de opinião sobre o AO90, publicados
em jornais portugueses, em 2012. Este foi descrito, a princípio, numa perspectiva quantitativa:
foram considerados o número de artigos publicados, seus autores, os veículos em que
circularam, sua dispersão ao longo do tempo. Tal descrição foi então complementada com
uma análise qualitativa, com foco no mapeamento dos principais argumentos trazidos à
discussão sobre o acordo ortográfico. Tais argumentos foram divididos em três categorias em
função de sua natureza e enfoque: argumentos de caráter material, argumentos de caráter
funcional e argumentos de caráter simbólico. Ao final, procurou-se identificar as duas
principais perspectivas de análise que serão desenvolvidas nos capítulos cinco e seis
respectivamente: a articulação de marcadores identitários na construção de identidades para
Portugal e a construção de posições de simetria e assimetria elaboradas por ou atribuídas a
Portugal num contexto de contato e comparação com outras entidades nacionais e
supranacionais.

128
Capítulo 5
Análise dos marcadores identitários
Representações de identidade nacional: marcadores identitários

Pátria e nação

Soberania

Povo

Cultura e identidade

Matriz

Consolidação da análise
Embora as teorias sobre os nacionalismos sejam bastante diversas, é possível
identificar alguns elementos que são recorrentemente trazidos ao debate, consistindo numa
espécie de vocabulário dos nacionalismos. Tais elementos funcionam aqui como marcadores
identitários, ou seja, como indicadores de que o tema identidade nacional, em alguma
medida, é trazido ao debate, contribuindo para a argumentação em torno da discussão sobre o
acordo ortográfico.
Este capítulo se inicia com a identificação de tais marcadores identitários, resultante,
num primeiro momento, da contabilização de palavras do corpus dentre as quais são
selecionadas aquelas compatíveis com a noção acima apresentada. O conjunto de palavras
obtido, dividido em sete grupos, gira em torno dos conceitos de pátria, nação, soberania,
povo, cultura, identidade e matriz, como já referido no capítulo anterior.
A seguir, cada um desses grupos é analisado em função dos seus respectivos contextos
e usos. Além da análise individual dos grupos, alguns deles são também analisados de forma
contrastada em função da sobreposição de seu potencial de significação que, muitas vezes, faz
com que sejam utilizados como se fossem expressões equivalentes ou mesmo sinônimos: é o
caso de pátria e nação e também de cultura e identidade.
Conclui-se a etapa de análise desenvolvida neste capítulo com a elaboração de um
quadro-resumo dos principais resultados, tendo sempre em vista a relevância dos mesmos
para a reflexão sobre os diferentes papéis desempenhados pela língua, em sua perspectiva
simbólica, na construção das identidades nacionais na Europa de hoje, em geral, e de
Portugal, em particular.
O objetivo deste capítulo é identificar os diferentes discursos e representações
construídos para as identidades nacionais, sejam elas genéricas ou específicas de/para
Portugal, a partir da articulação de elementos que marcam a discussão sobre os
Análise dos marcadores identitários

nacionalismos, especialmente no contexto europeu, mas que são elaborados no contexto


específico de uma discussão sobre língua e ortografia.

Representações de Identidade Nacional: Marcadores Identitários

Como já explicitado, a fim de se identificar as diferentes representações identitárias


construídas ao longo do corpus, foram selecionados determinados elementos indicativos da
presença de argumentos relativos à identidade nacional no âmbito do debate: os marcadores
identitários. Nesse quesito, identificou-se sete conjuntos temáticos nomeados como pátria,
nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz.
Dentre os marcadores identitários acima identificados, a inserção da ideia de matriz é a
que parece merecer maior atenção e necessitar de alguma justificativa quanto ao seu potencial
na construção dos discursos de identidade. Antes de mais nada, tal expressão mostrou-se
recorrente na contagem de palavras do texto, o que levou a uma maior reflexão sobre os
possíveis significados que ela assume na argumentação sobre o acordo e especificamente no
contexto português.
Por um lado, a noção de matriz, como origem, parece remeter para o passado colonial
de Portugal e, consequentemente, para o movimento de difusão – e também de imposição – da
língua portuguesa a partir da metrópole para as colônias, ou seja, para os diferentes países que
fizeram parte do chamado império colonial português e onde hoje a língua portuguesa ainda
ocupa posição de prestígio como língua oficial. Essa referência parece importante no presente
contexto; afinal, o acordo ortográfico – tema dos artigos de opinião em análise – consiste num
acordo internacional sobre a ortografia do português firmado pelos diferentes países de língua
oficial portuguesa, todos ex-colônias de Portugal.
Por outro lado, mas de forma interdependente à reflexão anterior, matriz também
remete para a ideia de molde ou modelo a partir do qual algo é copiado ou reproduzido. Nesse
contexto, a matriz ganha em autenticidade, originalidade e correção, em comparação às cópias
ou reproduções que são obtidas a partir dela. Existe uma relação de poder que se estabelece
entre a matriz e seus derivados, com valorização do primeiro em relação aos demais.
Além da ideia de matriz como origem e de matriz como molde ou modelo, podem se
fazer presentes também as perspectivas da matriz como forma de controlo (matriz versus
subsidiárias) ou como forma de exercício de direitos ou prerrogativa de autoridade (matriz

132
Análise dos marcadores identitários

como detentora de pleno direito sobre a autoria do produto). Em todos esses casos, no entanto,
a ideia de matriz surge sempre caracterizada de forma positiva.
Retomando os conjuntos temáticos, ou seja, os grupos de palavras (e seus derivados e
flexionados) nomeados em função do tema ao qual remetem, embora cada um deles tenha
sido analisado separadamente, optou-se por organizá-los em pares nos casos em que uma
reflexão comparada mostrou-se interessante. Isso se deu com os grupos Pátria e Nação e
também com os grupos Cultura e Identidade – conceitos, que muitas vezes, são sobrepostos
ou mesmo tomados um pelo outro em certas situações. Tem-se, portanto, os seguintes
conjuntos: (i) Pátria e Nação, (ii) Soberania, (iii) Povo, (iv) Cultura e Identidade e,
finalmente, (v) Matriz, como indicado no Quadro 5.1, onde também se registra o total de
ocorrências de cada marcador ao longo do corpus.

Ocorrências
Grupo
Identificadas
Matriz 9
Identidade 11
Povo 23
Cultura 55
Soberania 5
Nação 34
Pátria 15
Total 152
Quadro 5.1 – Marcadores identitários

Neste momento inicial da análise, vale observar o predomínio das ocorrências dos
marcadores de Cultura, que representam 36% do total, seguidas dos marcadores de Nação,
com aproximadamente 23%, e dos marcadores de Povo, com 14,3%. Houve um maior
equilíbrio entre as ocorrências de Pátria e Identidade, que reprentaram 9,3% e 8,1% do total,
respectivamente. Neste primeiro recorte, portanto, a associação entre língua – aqui
representada pela temática geral dos artigos analisados: o acordo ortográfico – e cultura é a
que se sobressai.
Por fim, resta ainda esclarecer que nem todas as ocorrências identificadas foram
consideradas relevantes para este estudo e, portanto, devidamente analisadas. Para cada
marcador, foram adotados critérios de exclusão específicos, que são identificados no início da
análise de cada grupo. A partir de agora, portanto, serão consideradas apenas as ocorrências

133
Análise dos marcadores identitários

que serão efetivamente analisadas. Para identificar o número de ocorrências que resistiram a
essa primeira triagem, consulte-se o Quadro 5.2.

Grupo Ocorrências
Analisadas
Matriz 9
Identidade 9
Povo 20
Cultura 43
Soberania 5
Nação 21
Pátria 13
Total 120
Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências

Pátria e Nação

No grupo de palavras pertencente ao marcador Pátria, foram analisadas treze


ocorrências, do total de quinze identificadas – foram excluídas as incidências em que a
palavra pátria surgia como exemplo de vocábulo, não em seu sentido próprio. Fazem parte
desse grupo as categorias morfossintáticas: pátria/s (61,5%), patriota/s (7,7%), patriótico
(7,7%), patriotismo/s (15,4%) e patriotísticas (7,7%), como indicado no Quadro 5.3.

Vocábulo Ocorrências (%)


Patriótico 1 (7,7%)
Patriotísticas 1 (7,7%)
Patriotismo/s 2 (15,4%)
Patriota/s 1 (7,7%)
Pátria/s 8 (61,5%)
Total 13 (100%)
Quadro 5.3 – Pátria

Verificou-se o predomínio de referências à palavra pátria, no singular ou no plural,


representando 61,5% do total, como acima indicado. Em relação às demais palavras, cada
uma delas foi mencionada apenas uma vez, com exceção de patriotismo, que foi referido duas
vezes. Nota-se, portanto, uma certa diversidade de vocábulos associados ao tema da pátria e,
com exceção de “pátria”, algum equilíbrio entre as respectivas frequências no corpus.

134
Análise dos marcadores identitários

No que diz respeito à identificação de uma relação entre pátria e língua, com exceção
de dois casos, esta se verifica em todas as demais ocorrências (84,6% do total), seja para
afirmar uma interdependência entre tais conceitos, seja para negá-la, como indicado no
Quadro 5.4. Nesse sentido, considerou-se como referência à língua tanto a menção expressa
da palavra língua como da palavra ortografia – esta última referida tanto de forma direta
(menção à “ortografia”) ou indireta (recurso à expressão “modo como se escreve”). Na
maioria dos casos, essa interdependência é negada ou contestada, como exemplificado abaixo:

 a minha pátria não é a língua portuguesa [DN02]


 a língua mudou e a pátria, obviamente, não acabou [SL01]
 Portugal continua a mesma pátria, apesar de já não se escrever como no tempo do… [SL01]
 diz a leitora, "a ortografia nada tem a ver com patriotismo (...)” [DN03]

Há apenas duas ocorrências em que a relação entre pátria e língua é afirmada, que são
identificadas a seguir:

 a língua é algo inegociável e patriótico [PB07]


 existe um profundo desacordo face a esta imposição convencional de renegar de um trago a
forma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana” [PB16]

O recurso à ironia também se faz presente para criticar a associação entre língua e
pátria, segundo a qual, apoiar as mudanças ortográficas estabelecidas pelo AO90 seria um ato
antipatriótico, de traição à pátria, como se deduz da expressão “vende-pátrias”, utilizada,
inclusive, como título de um dos artigos (DN03). Em outras palavras, defender a manutenção
da ortografia do português anterior ao AO90 implicaria um ato de defesa da pátria, ou seja, de
patriotismo. Essa expressão é ainda qualificada de forma pejorativa pelo qualificador
“desavergonhados”, como explicitado a seguir:
 (…) esta questão está entrelaçada com conceções quase “patriotísticas”, permita-se-me esta
“desfiguração”: parece existir um núcleo rebelde resistente, uma espécie de "maquisards" da
ortografia, oposto aos desavergonhados "vende-pátrias" que aceitam submissamente o império
do Acordo Ortográfico. [DN03]

Nessa representação, a crítica à posição assumida por aqueles que defendem tal
argumento é reforçada pelo uso de um neologismo – a palavra “patriotísticas” –, destacado
pelo uso de aspas, para caracterizar aqueles que defendem essa relação, associado ao recurso a
um vocabulário que remete para um cenário de violência e conflito, ao período das grandes
guerras – “maquisards” e “império”.

135
Análise dos marcadores identitários

Considerando-se as duas ocorrências em que a palavra pátria não é relacionada com a


língua, numa delas a pátria é personificada e transformada em agente, embora sua ação seja
marcada pela irrelevância ou desperdício, como exemplificado abaixo:

 escândalos fátuos com que a pátria sazonalmente se entretém [DN02]

Na outra, a palavra pátria é utilizada como modificador na locução “expressão pátria”,


numa passagem, marcada pela ironia, em que a aprovação do acordo ortográfico é
“equiparada” à instauração de uma ditadura, como aqui registrado:

 Não teria bem esse nome [ditadura], claro, por causa da carga negativa que arrasta, mas seria
uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política
comum, que esta coisa de ter tantos partidos a dizer-se e desdizer-se a todo o momento
(garantiam) é realmente uma canseira. [PB14, referência e destaques acrescentados]

Independentemente de se afirmar ou negar a relação entre pátria e língua, no entanto, o


que realmente importa é o fato de tal relação se ter verificado. Por esse motivo, não se levou
em conta o fato de tais relações serem construídas no âmbito de artigos que se posicionavam a
favor ou contra o acordo – mais ainda, não se fez distinção entre as situações em que tais
relações eram afirmadas e defendidas pelos respectivos autores e aquelas em que eram
identificadas para, a seguir, serem contestadas, num exercício de argumentação. A opção por
essa perspectiva de análise se justifica pelo fato de, neste estudo, buscar-se analisar as
diferentes representações, construídas em torno da língua, de identidade nacional, e não o
conteúdo do acordo ortográfico ou mesmo seu impacto, como já discutido anteriormente.

afirmativa 2 (18,2%)
Estabelece relação 11 (84,6%)
negativa 9 (81,8%)
Não estabelece relação 2 (15,4%)
Total 13
Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua

Retomando-se, agora, a análise do conjunto de ocorrências, apenas em dois momentos


os autores estabelecem uma relação de proximidade e/ou posse com a pátria – uma particular
(singular) e outra coletiva – ao se valerem dos pronomes possessivos “minha” e “nossa”
respectivamente. É curioso notar que, em ambos os casos, já parcialmente citados acima, os

136
Análise dos marcadores identitários

autores fazem referência ao poeta Fernando Pessoa, importante ícone da cultura portuguesa,
como abaixo citado:

 À revelia da proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua


portuguesa. Mas a minha língua é [DN02]
 Pelo contrário, (…) não será despiciendo afirmar-se que existe um profundo desacordo face a
esta imposição convencional de renegar de um trago a forma como aprendemos a escrever e a
falar a nossa pátria “pessoana” [PB16]

Em resumo, as representações identitárias analisadas nesse grupo remetem


predominantemente para a associação entre língua e pátria, que mais frequentemente é negada
do que afirmada, mas também para a possibilidade de identificação singular ou coletiva entre
o indivíduo e a sua pátria e/ou seus compatriotas.
Passando-se à análise do marcador Nação, foram analisadas vinte e uma ocorrências
de um total de trinta e sete identificadas – foram excluídas as incidências em que a nacional/is
surgia como parte integrante da nomenclatura de um órgão, instituição, cargo público ou
entidade diretamente relacionada com a discussão sobre o acordo ortográfico. Fazem parte
desse grupo as categorias morfossintáticas nação (28,6%) e nacional/is (71,4%), como
indicado no Quadro 5.5.

Vocábulo Ocorrências
Nacional/is 15
Nação 6
Total 21
Quadro 5.5 – Nação

Predominam, portanto, as referências ao modificador nacional, no singular ou no


plural, em comparação com o substantivo nação, ao contrário do verificado para o marcador
Pátria, por exemplo, no qual o uso do substantivo é que prevalece.
Considerando-se a relação estabelecida entre língua e nação, esta se verifica em três
(50%) do total de seis ocorrências de nação. Em duas delas, dá-se de forma explícita, em
representações construídas de forma a intensificar o papel da língua na representação da
nação, como demonstrado a seguir:

 Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocacionais dos
Estados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação. [DN07, destaques
acrescentados]

137
Análise dos marcadores identitários

 Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e


económicos de integração e, consequentemente, de esbatimento das mais lídimas marcas
identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos redutos do seu
específico modo de ser e, por isso, um instrumento privilegiado da sua afirmação neste
"admirável mundo novo" de "constelações pós-estaduais". [DN06, destaques acrescentados]

Na terceira ocorrência, tal relação é construída de forma implícita por meio da


reprovação do comportamento de Portugal, referido no texto como “uma nação do Velho
continente”, de permitir a “alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na
actividade de um país como o é a ortografia” (PB35, citação incluída mais à frente).
Ainda considerando-se apenas a palavra nação, esta é utilizada em sua acepção mais
genérica nas duas citações acima (DN07 e DN06). Nas demais ocorrências, a palavra nação
ora representa Portugal ora representa o Brasil, como indicado no Quadro 5.6. Quando
representa Portugal, num caso, fá-lo para criticar a ingerência de um economista estrangeiro
nos assuntos do país – repercutindo o teor de uma coluna assinada por Paul Krugman,
identificado logo no início do texto, em função da sua nacionalidade, como “o americano Paul
Krugman”, e publicada no jornal americano The New York Times –, comentários esses
caracterizados como sendo uma interferência indevida do estrangeiro sobre o destino
nacional:

 É verdade que o sr. Krugman chegou a trabalhar no Banco de Portugal, mas um estágio de três
meses em 1976 não habilita ninguem a conduzir a nação através de uma coluna no New York
Times [DN11]

Nesse sentido, o uso da palavra nação (ou da expressão “dirigir a nação” em vez de
“dirigir o país”, por exemplo) parece aumentar a distância entre o estrangeiro e Portugal, uma
vez que o estrangeiro é exatamente aquele que não é nacional, ou seja, que não faz parte da
nação. Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, a caracterização do outro como estrangeiro
parece automaticamente afirmar a sua falta de legitimidade para se manifestar sobre os
desígnios da nação portuguesa, como se a atitude do economista, mais do que representar uma
afronta à soberania nacional, configurasse uma situação absurda, consistisse quase numa
impossibilidade fática.

Em sentido genérico 2
Em referência a Portugal 2
Em referência ao Brasil 2
Total 6
Quadro 5.6 – Acepções de nação

138
Análise dos marcadores identitários

No outro caso, já referido acima, Portugal é caracterizado como uma “nação do Velho
Continente”, numa passagem em que o autor parece atribuir valor positivo à pertença de
Portugal à Europa (o “Velho Continente”) ao repreender o país pela posição assumida face ao
acordo ortográfico:

 (…) indigna de uma nação do Velho Continente a alteração leviana de algo tão básico na
identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é a o ortografia, alteração essa que se
traduz num autêntico “Processo Retro-ortográfico Sem Curso”. [PB35]

No exemplo acima, o decurso do tempo, ou seja, a antiguidade do país, parece assumir


contornos positivos no discurso de afirmação de uma identidade nacional – representação
suportada por muitas das teorias nacionalistas da maior parte dos séculos XIX e XX. Outra
leitura possível da referência acima citada relaciona-se com a ideia de uma suposta
superioridade europeia em relação aos demais continentes; afinal, a atitude de Portugal não é
necessariamente indigna de uma nação qualquer, mas sim de uma nação “do Velho
Continente”.
Nas duas ocorrências restantes, a palavra nação representa o Brasil, ora como sendo a
“nação com mais falantes de português”, ora como a “nação mais populosa”. Em ambas as
referências, mencionadas num mesmo artigo (PB03), a superioridade numérica brasileira
parece confundir-se com uma manifestação e/ou expressão de força. Tais referências surgem
em situação de contraste entre Portugal e Brasil, em que este último aparece em posição de
vantagem.
Concluída a análise das ocorrências de nação, passa-se agora às ocorrências da palavra
nacional, no singular ou plural, que é utilizada como modificador. Para melhor entender o seu
uso, optou-se por classificar os substantivos modificados por ela em três grandes grupos assim
denominados: (i) político-institucional, (ii) cultural e (iii) espacial, como referido no Quadro
5.7.
Caracteriza-se o âmbito político-institucional como sendo o da infraestrutura pública,
da atuação governamental, das esferas legal, social e econômica, do campo institucional e
regulado. Nesse contexto, predomina a ideia de nação como instituição, como pessoa jurídica
dotada de direitos e deveres, assim como a perspectiva da organização e também da
burocracia, em geral associadas à figura do governo. Tal classificação destaca-se também por
um maior grau de concretude, ou seja, é possível delimitar o conteúdo de expressões como
legislação nacional, por mais vasta que esta seja, ou mesmo identificar a estrutura do sistema
educativo nacional. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer das expressões como

139
Análise dos marcadores identitários

“interesse nacional” e “dificuldades nacionais”, cujos conteúdos são difíceis de precisar de


forma genérica, mas que ganham concretude em contextos específicos.

Classificação Referências Nº Parcial Total


Político- classe política nacional 1
Institucional legislação nacional 1
sistema educativo nacional 1
3 9
interesse nacional
(60%)
dificuldades nacionais 1
ordens jurídicas nacionais 1
1 15
órgãos nacionais
(100%)
Cultural cultura nacional 1
1 3
atitude nacional (20%)
artistas nacionais 1
Espacial vida nacional 1
1 3
espaço nacional (20%)
âmbito nacional 1
Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is

Caracteriza-se o âmbito cultural como sendo o das manifestações culturais


propriamente ditas, das artes, tradições, costumes e comportamentos. Nesse contexto,
predomina a ideia de nação como lugar de pertença e fonte de identidade. Parece haver
também um maior grau de abstração envolvendo as expressões classificadas nesta categoria,
sendo, à partida, impossível definir ou delimitar o conteúdo de cultura nacional ou atitude
nacional típica, ou mesmo identificar quem poderia ser classificado como sendo um artista
nacional.
Caracteriza-se o âmbito espacial como sendo o da abrangência física, da ocupação de
determinado território em seu sentido mais literal. Nesse contexto, predomina uma
perspectiva física da nação, ao mesmo tempo delimitadora – da vida e de uma dada
perspectiva (âmbito), por exemplo – e delimitada, isto é, confinada num espaço.
Houve uma predominância de ocorrências classificadas na categoria político-
institucional (60%), em comparação com as categorias cultural (20%) e espacial (20%), as
quais registraram o mesmo número de ocorrências. Uma vez que os artigos analisados têm
como tema um tratado internacional firmado, no âmbito da CPLP, sobre a ortografia da língua
portuguesa, partilhada por todos, essa predominância não é surpreendente. Talvez também por
isso mesmo a única expressão recorrente seja “interesse nacional” – representando 33% (três

140
Análise dos marcadores identitários

de nove) do total das ocorrências no âmbito político-institucional e 20% (três de quinze) do


total geral de ocorrências –, pois, em última instância, é isso que está em jogo num tratado
internacional.
No entanto, também podemos analisar esses dados como uma forma de ampliação da
esfera da língua – afinal, é ela que motiva a discussão – isto é, como um indicador de que seu
papel extrapola a questão da cultura, abarcando áreas como infraestrutura, organizaçãos
políticas, etc. Ainda nesse sentido, vale a pena notar uma ausência: não há uma única
ocorrência de nacional (ou nacionais) direta e explicitamente relacionada à língua – língua
nacional ou ortografia nacional.
Em resumo, as representações identitárias analisadas nesse grupo não remetem de
forma significativa para uma relação direta entre nação e língua – mas, nos poucos casos em
que o fazem, merece destaque a intensidade das representações construídas. Por outro lado, as
ocorrências classificadas nesse grupo estendem-se por amplos e variados domínios da vida em
sociedade, com detaque para o âmbito político-institucional.
Contrastando os marcadores Pátria e Nação, verifica-se significativas diferenças no
uso de ambos. Se, para pátria, a relação com a língua é construída de forma direta e
recorrente, o mesmo não se dá com nação. O recurso aos possessivos como estratégia de
apropriação e/ou identificação surge apenas associado à pátria, nunca à nação. Em pátria,
predominam os usos como substantivo, enquanto, em nação, prevalecem os usos como
modificador.

Soberania

No grupo de palavras identificadas como marcadores de Soberania, foram analisadas


cinco ocorrências. Em três delas, o conceito de soberania aparece num contexto negativo,
marcado pela ideia de enfraquecimento ou falta (“perda de soberania”, em PB03, e “soberania
diluída”, em DN06) ou de limitação ou dificuldade de atuação (“jogos sinuosos de soberania”,
em PB33).
O tema da perda de soberania é bastante comum na atualidade, sendo, com frequência,
relacionado com os processos de globalização e com o atual cenário geopolítico e econômico,
marcado pela formação e fortalecimento de entidades e instituições supranacionais como a
própria União Europeia. Nesse contexto, o poder de decisão da entidade nacional sofreria

141
Análise dos marcadores identitários

grandes perdas, uma vez que os resultados e as consequências de suas decisões já não
poderiam ser confinados ao território nacional. Do mesmo modo, mas em sentido inverso,
também não seria possível blindar o território nacional contra decisões tomadas por entidades
estrangeiras.
Do mesmo modo, a limitação ou dificuldade de exercício da soberania está associada à
questão da perda ou limitação acima referida. Num cenário marcado concomitantemente pela
acentuada interdependência entre países e pelo aumento da complexidade das relações de
força entre eles, o modo de ação e realização desse poder soberano também é transformado.
Perda de transparência, instabilidade de posições e menor previsibilidade dos efeitos e
impactos decorrentes do exercício da soberania são alguns dos temas em destaque nesse
processo de mudança.
Além da ideia de perda ou enfraquecimento, a palavra soberania também é utilizada
para caracterizar certos órgãos públicos (“órgãos de soberania”, em PB03). Nesse contexto,
pode ser identificada como função e responsabilidade de certos órgãos de governo,
identificados como sendo os tomadores de decisão no âmbito do AO. Nesse sentido, a
expressão “órgãos de soberania” parece surgir como alternativa a “órgãos de governo”, no
sentido da administração pública. A relação entre soberania e governo mais uma vez remete
para o cenário dos Estados-Nação, aos quais cabe a função, a responsabilidade, o direito e a
prerrogativa do exercício da soberania.
Por fim, na última ocorrência analisada, a ideia de soberania extravasa o âmbito
político-administrativo, sendo associada ao conceito de cultura na expressão “soberania
cultural e não só” (PB35). Verifica-se, portanto, um alargamento do uso do conceito de
soberania para a esfera da cultura nessa construção, em que soberania surge como equivalente
a independência ou liberdade. Soberania cultural, portanto, poderia ser interpretada como a
liberdade da qual goza um país para construir, definir, proteger a sua própria cultura, sem
interferências externas indevidas.
Nesse contexto, mais uma vez o processo de globalização poderia ser invocado como
ameaça em função do potencial de homogeneização cultural que seria concretizado por via da
imposição de uma cultura ou padrão-cultural dominante e pela destruição das culturas locais
ou autóctones – tese desenvolvida e expressa no conceito de imperialismo cultural, já
abordado no segundo capítulo.
Simultaneamente ao alargamento acima mencionado, a ideia de soberania cultural
parece implicar também uma aproximação, mesmo que indireta, entre a ideia de Estado-
Nação e cultura, à medida que ambos passam a partilhar essa mesma característica ou poder: a

142
Análise dos marcadores identitários

soberania. Essa aproximação condiz com o crescente papel da cultura na construção das
identidades nacionais, tema que será retomado no desenvolvimento deste capítulo.
Em resumo, as representações identitárias analisadas neste grupo remetem para a
perda ou enfraquecimento da soberania estatal, afirmação recorrente em tempos de
globalização e no contexto europeu. Também atribuem responsabilidade aos órgãos públicos,
caracterizados como órgãos de soberania. Por fim, ao alargar o conceito de soberania para o
campo da cultura, chamam a atenção para uma perspectiva crítica da globalização, que é aqui
relacionada com o conceito de imperialismo cultural.

Povo

No grupo de palavras que constituem o marcador Povo, foram analisadas vinte


ocorrências das vinte e três identificadas – foram excluídas as incidências nas quais
popular/es e popularmente faziam parte do nome de um país ou remetiam à ideia de
frequência de uso ou popularidade/apreço, e não especificamente ao conceito de povo. Fazem
parte desse grupo as categorias morfossintáticas povo/s (80%) e popular/es (20%), como
referido no Quadro 5.8.

Vocábulo Ocorrências (%)


Popular/es 4 (20%)
Povo/s 16 (80%)
Total 20 (100%)
Quadro 5.8 – Povo

Verificou-se a predominância das representações construídas em torno do substantivo


povo – quatro vezes superior a incidência de popular/es. Nas dezesseis ocorrências de povo,
destacam-se as construções em que algo é atribuído ao povo (43,75%), seguida das
referências a povo como agente ativo/passivo (37,5%) e, por fim, pelas referências em que
algo é endereçado/direcionado ao povo (18,75%), como indicado no Quadro 5.9.
Destacaram-se as relações de atribuição (43,75%), seguidas de perto pelas relações de
agência (37,50%). As relações de endereçamento, por outro lado, representam metade, ou
menos, das ocorrências classificadas nas categorias anteriores (18,75%).

143
Análise dos marcadores identitários

Tipo de Parcial Total


Referências Nº
relação
Atribuição de (um) povo 2
do/s povo/s 3 7
de (outros) povos 1 (43,75%)
de cada povo 1
Agência o/s povo/s 3 16
o (próprio) povo 1 6 (100%)
os (outros) povos 1 (37,50%)
“de” (pelo) povo 1
Endereçamento ao povo 2 3
para (todos os) povos 1 (18,75%)
Quadro 5.9 – Classificação de povo

Nas ocorrências em que algo é atribuído ao povo, este é representado como portador
de vontade (em PB07), idiossincrasias, mundividências (ambas em PB25) e identidade (em
DN06 e EX04). O povo é também o detentor de vida (em DN10) e língua (em PB26), e essa
mesma língua é identificada como sendo sua propriedade e matriz (ambas em EX04). Por fim,
o povo é personificado – ganha “costas” (em DN07) – sendo então atraiçoado, enganado,
quando algo é feito às escondidas, sem que lhe seja permitida a participação, numa referência
ao processo de aprovação do AO.
Nas ocorrências em que o povo é agente, ora este é objeto de uma definição ou
caracterização – sendo equiparado a uma comunidade (em DN07) ou considerado incapaz
(DN10) – ora assume o papel de sujeito, desempenhando as funções de pensar (em PB25),
acordar/concordar (em DN10), dar uso, utilizar (ambos em PB29) e cercar (DN08).
No entanto, com exceção do verbo cercar, os demais processos parecem remeter para
uma certa passividade, aqui entendida como ausência de iniciativa e, talvez, de mobilidade,
isto é, de ação propriamente dita. Quanto a referência a cercar, parece também importante
ressaltar a opção do autor pela expressão “cercado de povo” em vez da alternativa “cercado
pelo povo”. A opção da preposição de em detrimento de por parece indicar uma espécie de
despersonalização ou de coisificação do povo. Nesse contexto, o povo que cerca não parece
representar uma ameaça, pelo contrário, é quase a matéria que cerca o orador, que também
poderia estar cercado por árvores, cadeiras ou problemas. Mais uma vez, portanto, a
possibilidade de ação parece esvaziada.
Por fim, o povo como destinatário de algo, isto é, em situações em que algo é a ele
endereçado, aparece sempre em posição desfavorável, caracterizada pela perda de poder ou
capacidade. Nessas relações de endereçamento, o povo é invariavelmente subestimado, seja
144
Análise dos marcadores identitários

na perspectiva em que é obrigado a ceder – algo é imposto ao povo (em PB03) –, seja na
perspectiva em que é incapaz de entender – algo é explicado ao povo (em PB11) – ou seja na
perspectiva em que lhe é retirada a iniciativa da decisão – algo é considerado adequado ao
povo (em DN06).
Das quatro ocorrências de popular, em metade delas este é definido em oposição a
erudito (em PB06 e PB33) e, na outra metade, é utilizado como modificador das massas (em
PB01) e de dinâmicas (em DN10). O povo organiza-se em massas simultaneamente “dotadas
de vigor e liberdade”, mas “ignorantes”, e que, por isso, precisam ser instruídas e iluminadas.
É bem verdade que essa última afirmação é feita em tom de ironia, deixando claro que o autor
não partilha dessa ideia, mas tal recurso, em vez de negar a suposta ignorância das massas,
pressupõe, em alguma medida, que essa percepção é recorrente ou mesmo generalizada.
Passando-se agora à análise do papel da língua nas representações construídas em
torno do conceito de povo, pode-se identificar três linhas principais de argumentação, que
giram em torno da concepção de língua como (i) elemento constituinte ou formador dos
povos, (ii) manifestação ou expressão do modo viver e pensar ou (iii) bem, recurso ou
propriedade dos povos. Em geral, tais noções são de alguma forma sobrepostas, não sendo
possível estabelecer linhas divisórias claramente demarcadas. Ainda assim, no entanto, e
apesar de todas as nuances e interdependências entre tais argumentos, essa divisão pode ser
útil para se refletir sobre as relações estabelecidas entre língua e povo.
São exemplos da perspectiva da língua como elemento constituinte ou formador dos
povos os seguintes excertos:

 Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e


económicos de integração e, consequentemente, de esbatimento das mais lídimas marcas
identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos redutos do seu [Estado-
Nação/povos] específico modo de ser e, por isso, um instrumento privilegiado da sua
afirmação neste "admirável mundo novo" de "constelações pós-estaduais". [DN06, referências
e destaques acrescentados]
 Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocasionais
dos Estados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação [DN07, destaques
acrescentados]

São exemplos da perspectiva da língua como manifestação ou expressão do modo


viver e pensar as representações abaixo:

 A ideia espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser


negociada por academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata,
hoje como na Primeira República. [DN10, destaques acresentados]

145
Análise dos marcadores identitários

 Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de
famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e
as escrevem pensam. [PB25, destaques acresentados]
 A minha experiência de classicista, de passagem pela gramática comparativa (…), abriu-me à
percepção das constantes e das volubilidades da semântica e dos étimos e, com isto, das
idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta
grande família. [PB25, destaques acresentados]

São exemplos da perspectiva da língua como bem ou propriedade dos povos as


passagens a seguir:

 Para o acordista, mesmo sendo um leigo ou exactamente por ser um leigo, o linguista é uma
espécie que vai contra um século democrático em que a língua é do povo. [PB26, destaques
acresentados]
 -, a entrada em vigor do AO deverá ser diferida para o momento em que, precisamente, a
existência de um vocabulário comum, contendo as grafias consideradas adequadas para todos
os povos da lusofonia, torne finalmente exequível o clausulado do Tratado. [DN06, destaques
acresentados]

E, ainda, num último exemplo que parece ilustrar bastante bem o modo como os
argumentos acima são entrelaçados:

 Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo, pela
primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz
e identidade de outros povos e de outras latitudes. [EX04, destaques acresentados]

Em resumo, as representações identitárias analisadas neste grupo remetem para uma


ideia de povo em posição de subalternidade ou passividade. Na maioria das vezes, surge como
objeto, não como sujeito/ator. A relação entre língua e povo também é explicitada, sendo
construída, em geral, de forma a valorizar o papel da língua na constituição e nos modos de
ser e viver de um povo, que é representado como seu proprietário ou usuário privilegiado.

Cultura e identidade

Nos marcadores de Cultura, foram analisadas quarenta e três ocorrências das


cinquenta e cinco encontradas – foram excluídas as incidências em que as palavras cultura e
cultural surgiam como parte integrante da nomenclatura de um órgão, instituição, cargo
público ou entidade. Fazem parte desse grupo as categorias morfossintáticas cultura (30,2%),
cultural/is (60,5%) e culturalmente (9,3%), como indicado no Quadro 5.10.

146
Análise dos marcadores identitários

Vocábulo Ocorrências (%)


Cultural/is 26 (60,5%)
Cultura 13 (30,2%)
Culturalmente 4 (9,3%)
Total 43 (100%)
Quadro 5.10 – Grupo cultura

Verificou-se, portanto, o predomínio do modificador cultural/is (60,5%), seguido por


cultura (30,2%), com metade das ocorrências do primeiro. As referências a culturalmente, por
sua vez, representam pouco mais de 9% do total de referências.
Considerando-se apenas cultura, em oito ocorrências de um total de treze, a palavra
ora modifica ora é modificada. Analisando-se esses oito casos, quando modifica (25%, ou
seja, em dois entre oito casos), recai sobre os conceitos de homem e comunidade – “homem
de cultura”, em DN04, e “comunidade de cultura”, em DN07. Quando é modificada (75%, ou
seja, em seis de um total de oito casos), recebe os atributos de “abertura e fair play” (em
DN10), “nacional” (em DN10), “portuguesa” (em PB03 e PB29) ou ainda os pronomes
possessivos minha (em PB29) e nossa (em DN10), como se verifica no Quadro 5.11.

Modifica ou é É modificada Possessivos 2


modificada Portuguesa/Nacional 3 6
8
Abertura e ‘fair play’ 1
Modifica 2
Outros 5
Total 13
Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura

Considerando-se o grupo de ocorrências em que cultura é modificada (seis casos),


registra-se o uso do pronome possessivo (33,3% dos casos) tanto para indicar uma relação de
identidade entre o autor e a cultura à qual se refere (“minha cultura”), quanto para indicar
maior proximidade entre o autor e os portugueses em geral (“nossa cultura”), condição que,
neste contexto específico (jornal português de circulação nacional), poderia ser atribuída à
grande parte dos leitores.
Ainda no que se refere ao uso de possessivos, parece interessante destacar que a
referência à “minha cultura” é feita por uma autora de nacionalidade espanhola, que afirma
ser a língua portuguesa parte da sua cultura. Este é um dos argumentos dos quais a autora se
vale para justificar sua manifestação sobre o AO, como se o seu texto consistisse em uma

147
Análise dos marcadores identitários

intromissão indevida pelo fato de ela não ser portuguesa ou, ao menos, de não ser falante
nativa do português e, portanto, tal justificativa fosse necessária.
Em três ocorrências (50%), a cultura é identificada como portuguesa, duas vezes de
forma direta (“cultura portuguesa”), e uma vez de forma indireta (“cultura nacional”). Ainda,
se nós considerarmos que a referência à “nossa cultura” foi feita por um autor português,
teríamos de adicionar mais uma ocorrência à forma indireta, considerando, portanto, que do
total de seis casos em que a palavra cultura é modificada, esse modificador remete para
Portugal em 66,7% dos casos.
É a partir da relação acima que são construídas as representações em que a cultura
aparece em situação de risco ou perigo iminente, sendo tal risco manifestado expressamente
ou assumindo os contornos de um alerta ou, ainda, de uma falta – é o que acontece em 30,8%
das ocorrências (ou seja, em quatro de treze casos). A ideia central é a de que o AO, ao
modificar a ortografia – e, por inferência, a língua –, modificaria também a cultura a ela
associada.
Essa ideia de risco é manifestada expressamente – “descaracterizar a cultura através da
‘linguagem’ escrita” (em DN07) e “os que tomam o novo acordo como atentado à cultura
nacional” (em DN10) –, mas também pode assumir os contornos de um alerta – “a cultura não
pode nem deve ser colonizada” (em PB07). Ainda nessa ideia de risco está a não afirmação da
cultura no âmbito internacional, numa passagem em que se criticam os esforços (ou a falta
deles) de divulgação da língua, destacada a seguir:

 A fraca implantação e afirmação, no mundo, do português escrito e falado em Portugal,


podendo ter raízes fonológicas, não iliba os responsáveis políticos que desistiram de afirmar a
cultura portuguesa fora de portas. Veja-se o miserável papel que o Instituto Camões tem
desempenhado ao optar pela redução do apoio ao ensino do Português no estrangeiro, junto das
nossas comunidades de emigrantes que poderiam ser um dos veículos mais importantes da
difusão da cultura e da língua portuguesa [PB03]

No que se refere explicitamente à relação entre língua e cultura, do total de treze


ocorrências, em três delas (23,1%), a ideia de cultura é diretamente relacionada à língua.
Nesse contexto, a língua surge como um elemento formador e conformador da cultura, como
indicam os seguintes exemplos:

 A etimologia é configuradora de memória e cultura [PB25]


 (…) as diversas línguas formam cultura [PB25]
 (…) o Português faz parte da minha cultura [PB29]

148
Análise dos marcadores identitários

O discurso de associação de uma língua – em sentido amplo – a uma cultura é


recorrente nas teorias dos nacionalismos. Nesse sentido, a língua que se fala representaria um
elemento essencial da cultura partilhada, como se a língua carregasse em seu bojo valores,
afetos, anseios, habilidades, impulsos, forças, fraquezas, vivências, histórias, memórias e
gostos.
Concluída a reflexão sobre as referências à cultura, passa-se à análise das vinte e seis
ocorrências em que se verifica a menção a cultural/is. Para melhor entender sua utilização,
optou-se pela classificação dos elementos modificados por ela em quatro grupos: (i)
patrimônio, (ii) contato ou partilha, (iii) identidade e (iv) campo, como detalhado no Quadro
5.12.

Tipo Referência Nº Parcial


bens culturais 1
custos culturais 1
patrimônio cultural 3
10
Patrimônio empobrecimento cultural 1
(38,5%)
mais-valia cultural 1
valor cultural 2
riqueza cultural 1
contexto de voragem cultural global 1
relações culturais 1
autonomia cultural 1 6
Contato
influência cultural 1 (23,1%)
epopeia cultural 1
soberania cultural 1
assunto cultural 1
questão cultural 1
5
Campo plano cultural 1
(19,2%)
fundamento cultural 1
responsabilidade cultural 1
atitude cultural 1
traço cultural básico 1
5
Identidade identidade cultural 1
(19,2%)
memória cultural 1
contextualização histórico-cultural 1
Total 26
Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is

149
Análise dos marcadores identitários

Em Patrimônio (i), foram classificadas as representações em que o conceito de cultura


é, em alguma medida, equiparado a um bem dotado de valor, inclusive econômico, e passível
de ser possuído. Tais representações, portanto, reforçam uma perspectiva patrimonial de
cultura.
Em Contato ou Partilha (ii), foram classificadas as representações em que o conceito
de cultura surge circunscrito ou limitado, em alguma medida, por outras culturas – quer em
situação explícita de contato com culturas diversas, quer em situação implícita, onde se afirma
sua soberania ou autonomia (afinal, só faz sentido afirmá-lo em face de um outro). Em outras
palavras, foram assim classificadas as representações que remetiam para um cenário de
diversidade cultural, de contato e partilha entre culturas.
Em Identidade (iii), foram classificadas as representações nas quais a ideia de cultura é
associada a elementos formadores e conformadores de identidade, em sentido mais estrito, o
que inclui referências a memória, história, comportamentos entre outros. Em Campo (iv),
foram classificadas as representações nas quais a cultura configura uma área temática ou de
ação, isto é, um campo de atuação ou enquadramento temático.
Houve uma predominância de referências na categoria Patrimônio, que representou
38,5% do total, seguido por Contato, com 23,1%. As categorias Campo e Identidade, por sua
vez, reuniram o mesmo número de referências, respondendo, cada uma, por 19,2% do total.
No que diz respeito a essas três últimas categorias, no entanto, apesar da diferença
significativa em pontos percentuais, vale observar que estes refletem uma diferença bastante
pequena em números absolutos: seis casos na categoria Contato contra cinco casos,
respectivamente, nas categorias Campo e Identidade. Esse relativo equilíbrio nas categorias
mencionadas, de certo modo, coloca em destaque a predominância da categoria Patrimônio.
A atribuição de valor patrimonial à cultura é uma tendência cada vez mais forte, haja
vista a Declaração Universal da Diversidade Cultural, da UNESCO, de 2002, que, embora
não o afirme expressamente, caracteriza a diversidade cultural como “patrimônio” e fonte,
entre outros, de crescimento econômico, além de definir bens e serviços culturais como
“mercadorias”, embora distintas das demais.
De certa forma, esse tema também está relacionado à ideia de contato ou partilha, que
pode ser ampliada para a esfera da diversidade cultural e da interculturalidade. Considerando-
se que o valor de um bem depende do mercado e de relações muitas vezes complexas de
oferta e demanda. É nesse contexto de interculturalidade, isto é, de contraste e contato que a
ideia de cultura como bem dotado de valor em boa parte se assenta.

150
Análise dos marcadores identitários

A cultura como fator de identidade também é um tema central nas discussões sobre os
nacionalismos, onde conceitos como nacionalismo cultural, identidade cultural e identidade
nacional se confundem e sobrepõem. No contexto atual, de porosidade de fronteiras e intensa
atividade migratória, parece ganhar cada vez mais relevância o recurso à cultura como fator
de identidade e recurso de identificação.
Considerando-se, agora, as ocorrências de culturalmente, verifica-se 4 (quatro) outras
ocorrências em que a cultura surge como um modo de ser – “culturalmente interessante” (em
PB03) e “culturalmente empinantes” (em PB25) – ou mais especificamente como um modo
de ser português, como exemplificado a seguir:

 Portugal é um país culturalmente aristocrata [DN10]


 Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês [DN10]

Por fim, uma última observação: a palavra cultura sempre aparece no singular, o que,
de algum modo, acentua sua unidade, isto é, a ideia de inteireza. Mais ainda, parece refletir
uma concepção essencialista da ideia de cultura, atribuindo ou reconhecendo uma certa
homogeneidade em seu interior.
Em resumo, as representações identitárias que se destacam na análise desse marcador
estabelecem uma relação entre língua e cultura, ao mesmo tempo em que caracterizam uma
alteração à língua (neste caso, a alteração ortográfica instituída pelo AO90) como risco ou
ameaça à cultura. Também equiparam cultura a patrimônio, num cenário marcado pela
competição entre culturas (interculturalidade) e pela utilização recorrente da cultura no
processo de construção de identidades.
Passando-se, agora, ao estudo dos marcadores de Identidade, foram analisadas nove
ocorrências das onze identificadas – foram excluídas as incidências em que identidade era
sinônimo de semelhança ou de autoria. Fazem parte desse grupo as categorias
morfossintáticas identitário/as (22,2%) e identidade (77,8%), como referido no Quadro 5.13.

Vocábulo Ocorrências (%)


Identitário/as 2 (22,2%)
Identidade 7 (77,8%)
Total 9 (100%)
Quadro 5.13 – Identidade

151
Análise dos marcadores identitários

Houve significativo predomínio das referências à identidade, que representam 77,8%


do total, em comparação com identitário e identitárias, com 22,2%.
Considerando-se as ocorrências de identidade, em todas elas é construída alguma
relação com a ideia de língua ou de ortografia. Ora se reconhece língua/ortografia como
elementos determinantes na configuração da identidade de uma dada comunidade ou país, ora
se nega. Do total de sete ocorrências analisadas, em quatro delas (57,1%) a relação que se
constrói é entre identidade e ortografia; nas outras três (42,9%), por outro lado, constrói-se
uma relação entre identidade e língua, como indicado no Quadro 5.14.

Relação Nº
Identidade/Ortografia 4 (57,1%)
Identidade/Língua 3 (42,9%)
Total 7
Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia

Nas ocorrências em que se constrói uma relação entre língua e identidade, essa é
afirmada em todos os três casos, ou seja, nunca é negada. Nas ocorrências em que se constrói
a relação entre ortografia e identidade, essa é negada em 75% dos casos e afirmada nos
restantes 25%, que, em números absolutos, correspondem a um único caso, como destacado
no Quadro 5.15.

Relação Negada Afirmada Nº


Identidade/Ortografia 3 1 4
Identidade/Língua 0 3 3
Total 3 4 7
Quadro 5.15 – Relações de identidade

É importante destacar que as representações construídas em torno do conceito de


língua não necessariamente excluem o conceito de ortografia. De todo modo, sempre que a
escolha do autor recai sobre a referência à língua, a relação de interdependência entre esta e o
conceito de cultura é afirmada. Já as representações construídas em torno do conceito de
ortografia parecem assumir sentido mais restritivo, instituindo ou afirmando, em alguma
medida, uma diferença ou distinção entre língua e ortografia. Em tais casos, a situação se

152
Análise dos marcadores identitários

inverte, ou seja, a relação de interdependência entre ortografia e cultura é predominantemente


negada (em 75% dos casos, isto é, em três de quatro ocorrências).
Considerando-se novamente o conjunto das ocorrências de identidade, a relação de
interdependência entre identidade e língua/ortografia é afirmada em 57,1% dos casos, negada
em 42,9%, ou seja, mesmo que não se faça distinção entre as referências à língua e à
ortografia, ainda assim prevalecem as representações que estabelecem relação de
interdependência com o conceito de identidade.
Nas ocorrências de identitário e identitárias, as palavras modificadas são
respectivamente valor e marcas – “valor histórico, cultural e identitário”, em PB27, e “marcas
identitárias”, em DN06 (já citado nas páginas 138 e 145). Em ambos os casos, no entanto, a
relação entre língua/ortografia e identidade é afirmada, como exemplificado:

 Sob a égide da utópica unificação linguística o AO90 mutila e desfigura a ortografia da L.P e,
juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. [PB27]

Para esta análise, importa observar sobretudo que em nenhum momento a relação
entre a língua, propriamente dita, e a noção de identidade é negada. Pode-se pôr em causa a
sua exclusividade ou propriedade, isto é, a afirmação de que a uma dada língua corresponde
uma nação, mas não o seu valor como elemento identitário.
Em resumo, as representações identitárias reunidas e analisadas neste grupo remetem
predominantemente para a associação entre língua e identidade, em geral, para afirmá-la.
Entretanto, nos casos em que língua e ortografia são representados a partir da diferença, a
relação entre identidade e ortografia é mais frequentemente negada.
Contrastando os marcadores Cultura e Identidade, verifica-se que a língua é utilizada
como elemento relevante marcadamente nas representações de identidade, sendo as
representações de cultura muito mais variadas. A perspectiva patrimonial só se aplica à ideia
de cultura, embora seja possível estabeler uma relação entre língua e cultura, língua e
identidade e, desse modo, entre cultura e identidade.
É ainda importante destacar que, assim como as ocorrências de cultura, as de
identidade estão sempre no singular – não há exceções. De certa forma, parece haver o
entendimento corrente de unidade, isto é, a ideia de um todo ou de completude: uma cultura
e/ou uma identidade. Essa percepção, mais uma vez, revela, de certo modo, uma perspectiva
essencialista que ainda parece marcar muitos dos discursos sobre as identidades – e também
sobre as culturas.

153
Análise dos marcadores identitários

Matriz

Nos marcadores de Matriz, foram analisadas nove ocorrências. Em quase todas


(88,9%), a palavra matriz remete para a ideia de origem, realçando relações de dependência
entre línguas. A única exceção parece ser a representação construída em torno da associação
de matriz com identidade e cultura. Exemplo desse último caso é a citação abaixo:

 Nós [portugueses] temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudarem
algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui [SL01]

Embora a interpretação acima pareça ser a mais razoável, também podemos construir
uma interpretação concorrente, que implicaria entender que a expressão “essa matriz” refere-
se a “regras ortográficas”, que, por sua vez, remeteriam para a ideia de língua. Nesse caso, a
palavra matriz estaria mais uma vez ligada ao contexto da língua e teríamos que todas as nove
ocorrências estariam ligadas a esse universo, sem exceção.
As referências à matriz, em resumo, remetem para uma associação com o contexto da
língua em oito ocorrências e para o contexto de identidade e cultura em um único caso, como
indicado no Quadro 5.16.

Contexto Nº
Língua 8 (88,9%)
Identidade e Cultura 1 (11,1%)
Total 9
Quadro 5.16 – Matriz

Retomando o grupo de ocorrências em que matriz é associada ao contexto da língua,


quatro delas (50%) consistem em citações de um editorial do Jornal de Angola, publicado em
9 de fevereiro de 2012, intitulado “Património em risco”. Numa dessas citações (em PB06), o
latim figura explicitamente como matriz da língua portuguesa. Nas outras três, idênticas, a
palavra matriz parece remeter, não mais para o latim, mas sim para o português europeu:

 Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes de mais,
respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras. [DN15, EX03,
PB06]

154
Análise dos marcadores identitários

A interpretação acima baseia-se no fato de que, em suas três ocorrências, a citação


analisada é precedida por outra – uma vez integralmente, duas vezes apenas o trecho que
aparece abaixo em destaque – do mesmo editorial:

 Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não tivesse acentos ou
consoantes mudas. O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a
mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso
acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula [PB06]

Na passagem acima, a referência às consoantes mudas e à ideia de herança parecem


remeter ao português europeu, que é então caracterizado como sendo uma “preciosidade” e
como uma língua “interia e sem mácula”, num contexto em que o AO é representado como
ameaça ou risco. De modo geral, ao longo do editorial do Jornal de Angola, os significados
de matriz parecem oscilar entre o Latim e o português europeu, sendo, em alguns casos, difícil
discernir qual deles está em causa.
Prossenguindo-se com a análise dos diferentes significados atribuídos à matriz, esta
ainda remete para o português europeu em outras duas ocorrências:

 em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia [PB13]
 no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas
variantes) [PB24]

Em uma outra ocorrência, a matriz não mais parece ser exclusivamente o português
europeu, mas sim a língua portuguesa em toda a sua diversidade:

 Idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de
outras latitudes [EX04]

Por fim, numa última ocorrência a matriz passa a ser a Inglaterra, num contexto de
comparação entre a “matriz inglesa” e a “variante americana” (em PB24), como resumido no
Quadro 5.17.
De modo geral, parece subsistir a ideia de matriz como algo valorado positivamente,
como já discutido no início deste capítulo. A matriz como origem deve ser preservada e
respeitada. A relação entre a matriz e suas variantes traduz, em alguma medida, uma relação
de poder em que matriz é o pólo mais forte. A ideia de pureza e integridade atribuída à matriz
concorre para essa construção de significado.

155
Análise dos marcadores identitários

Referência Ocorrências (%)


Português europeu 5 (62,5%)
Língua portuguesa 1 (12,5%)
Latim 1(12,5%)
Língua inglesa (Inglaterra) 1(12,5%)
Total 8 (100%)
Quadro 5.17 – Representações de matriz

Por fim, vale ainda destacar que, se na maioria das representações de língua como
matriz, esta é apresentada como matriz de outras línguas, há um único caso em que ela é
apontada como matriz dos povos que a falam, embora a distinção entre o português europeu
como matriz e os demais como variantes ainda esteja presente.
Em resumo, as representações identitárias identificadas nesse grupo remetem para a
ideia da língua como matriz, quer de outros povos, quer de outras línguas, prevalecendo a
identificação de Portugal como matriz da língua portuguesa.

Consolidação da análise

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Pátria


frequentemente se valem da relação com a língua para, em seguida, negá-la. Não importa
aqui, no entanto, contabilizar quantas ocorrências afirmam e quantas negam tal relação – uma
vez que, no contexto do debate sobre o AO90, tais declarações se confundem com as
diferentes estratégias de argumentação a favor ou contra –, mas sim destacar a tensão
estabelecida no âmago da relação pátria/língua.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Nação, ao
contrário, não se destacam por estabelecerem relação com a noção de língua. Na maioria das
vezes, a palavra nação remete para um país específico. Considerando-se a totalidade das
ocorrências do grupo, com o predomínio dos registros de nação como modificador – ou seja,
com o uso de nacional/is – sua esfera de ação é ampliada especialmente para o campo
político-institucional e, a seguir, para os campos cultural e espacial.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Soberania
giram em torno da ideia de perda, risco ou ameaça à autonomia estatal, mas também ampliam
seu espaço de ação para a esfera da cultura. Partindo-se do pressuposto de que a noção de
soberania estatal açambarca a de soberania cultural, pode-se estender a ideia de perda, risco

156
Análise dos marcadores identitários

ou ameaça da primeira para a segunda. Tal cenário remete para o debate sobre um suposto
“imperialismo cultural” – que seria uma espécie de sucedâneo dos impérios do passado, ou
seja, uma nova forma de exploração e expropriação.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Povo
estabelecem relação com a noção de língua a partir de três perspectivas: a língua como
elemento constituinte ou formador dos povos, a língua como manifestação ou expressão do
modo viver e pensar ou a língua como bem, recurso ou propriedade dos povos. Em geral, o
povo é representado em situação de passividade, no pólo mais fraco de uma relação, como
atores secundários de sua própria história.

Grupo Representações
Estabelecem relação direta entre pátria e língua para, a seguir,
Pátria
negá-la.
Salvo exceções, não estabelecem relação direta entre nação e
língua.
Nação
Alcançam variados domínios da vida em sociedade, com detaque
para o âmbito político-institucional.
Não estabelecem relação direta entre soberania e língua.
Soberania
Remetem para o contexto de perda ou enfraquecimento.
Estabelecem relação direta entre povo e língua.
Povo Representam o povo em posição de subalternidade ou
passividade.
Estabelecem relação direta entre cultura e língua, caracterizada
pela interdependência.
Cultura
Equiparam cultura a bem ou patrimônio.
Acentuam o papel da cultura na construção de identidades.
Estabelecem relação direta entre identidade e língua, em geral
Identidade
para afirmá-la.
Matriz Estabelecem relação direta entre matriz e língua.
Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo

As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Cultura


estabelecem relação com a língua, em geral, de interdependência. Nesse sentido, alterações à
língua implicariam alteração à cultura – em outras palavras, uma eventual situação de risco ou
ameaça à língua é considerada também um risco ou uma ameaça à cultura. Também são
recorrentes as representações em que se entende a cultura como um bem, ao qual se atribui
um dado valor, inclusive econômico. Nesse contexto, também se verifica a referência a

157
Análise dos marcadores identitários

cenários marcados pelo contato (interculturalidade) e competição entre culturas, assim como
pela utilização recorrente da cultura no processo de construção de identidades.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Identidade
remetem predominantemente para a associação com a língua. Na maioria das vezes, essa
relação é de afirmação, ou seja, a uma dada língua corresponde uma certa identidade ou,
ainda, reconhece-se à língua um papel decisivo – ou, ao menos, bastante importante – no
processo de construção dessas identidades.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Matriz, na
maioria das vezes, atribuem às línguas esse papel. Prevalecem as referências à Língua
Portuguesa e, mais especificamente, o português europeu. As línguas são representadas como
matriz de outras línguas ou mesmo de povos.

Síntese

Neste capítulo, procurou-se identificar e analisar as diferentes representações


identitárias construídas a partir da articulação de determinados elementos – identificados
como marcadores identitários –, selecionados em função de sua frequência ao longo do
corpus e da importância a eles atribuída pelas teorias sobre os nacionalismos na Europa. Os
grupos de palavras analisados foram intitulados de Pátria, Nação, Soberania, Povo, Cultura,
Identidade e Matriz. Primeiro foram contabilizadas as diversas ocorrências desses elementos
para a seguir, serem analisadas em seu contexto de uso, procurando-se destacar as situações
em que a língua era também mobilizada na construção de discursos e representação de
identidade nacional. Por fim, procurou-se reunir os principais resultados da análise num
quadro-resumo, que encerra essa etapa da reflexão.

158
Capítulo 6
Análise das relações de simetria e assimetria
envolvendo Portugal
Portugal numa perspectiva comparada: relações de simetria e assimetria

Análise das relações comparativas simétricas

Análise das relações comparativas assimétricas

Consolidação da análise
Para se refletir sobre os processos de construção das identidades nacionais,
interessa analisar as diferentes relações estabelecidas entre países, ou melhor, entre
diferentes entidades nacionais e/ou supranacionais. Aproximação e afastamento,
identificação e diferenciação, manifestação de força ou de fragilidade, afirmação de
vantagem ou desvantagem são algumas das estratégias adotadas na construção de um eu
nacional e de um ou vários outros estrangeiros.
A perspectiva de análise desenvolvida neste capítulo centra-se no processo acima
referido. Primeiro busca-se identificar a presença de outros países ao longo do corpus num
contexto de contato e/ou comparação com Portugal. Tais relações são identificadas como
simétricas ou assimétricas em função de estabelecerem, respectivamente, posição de
igualdade (nivelamento ou equilíbrio de forças) ou diferença (desnivelamento ou
desequilíbrio de forças) entre Portugal e as demais entidades nacionais ou supranacionais.
A seguir, passa-se à análise de tais relações. As simétricas são classificadas como
convergentes ou divergentes, segundo a direção do movimento a elas atribuídos nos
diferentes contextos em que surgem: aproximação (convergência, portanto) ou afastamento
(divergência). Nas assimétricas, por sua vez, busca-se identificar qual é a posição assumida
por ou atribuída a Portugal no campo do embate de forças entre as diversas entidades
nacionais ou supracionais referidas – se o pólo forte ou o pólo fraco.
Conclui-se este capítulo com a consolidação da análise das relações simétricas e
assimétricas mapeadas no corpus. Os discursos de aproximação ou afastamento, por via da
análise das relações de simetria, são contrastados com os discursos construídos em torno de
relações de força, aqui concretizados, na maioria das vezes, na afirmação de posições de
vantagem ou desvantagem. No final, elabora-se um quadro-resumo com os principais
resultados da análise realizada nesta etapa da pesquisa.
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

O objetivo deste capítulo é identificar e analisar os diferentes discursos de


construção do eu nacional por via da comparação ou contraste com a ideia de um ou vários
outros estrangeiros. Busca-se, em outras palavras, analisar o mecanismo de construção de
identidade e diferença que é posto em movimento no processo de construção das
identidades em geral e das identidades nacionais especificamente.

Portugal numa perspectiva comparada: relações de simetria e assimetria

O ponto de partida da presente análise consiste na identificação das situações – um


total de oitenta e quatro – em que Portugal é representado numa relação de comparação
e/ou contato com outros países. Com o intuito de facilitar a identificação de tais situações
ao longo do corpus, manteve-se a notação inicial, que consistiu na atribuição de um código
composto por duas letras e dois algarismos a cada artigo, como já indicado na página 120.
No entanto, como é possível ocorrer mais de uma situação de comparação num mesmo
artigo, optou-se pelo acréscimo de um algarismo ao código inicial, dele separado por um
hifen.
Retomando-se a análise das situações de comparação, é importante esclarecer que,
com o objetivo de identificá-las ao longo do corpus, foram consideradas tanto as situações
em que Portugal é efetivamente nomeado, como aquelas em que sua presença pode ser
facilmente inferida, sendo o mesmo critério aplicado aos demais países, como
exemplificado abaixo:

 Do lado de cá do Atlântico [CM01-2]


 Africanos e asiáticos… portugueses e brasileiros [CM02-1]
 (…) é do mais alto interesse nacional que… toda a comunidade que se exprime
oficialmente em português [SL01-3]

A análise que se segue é realizada em duas etapas: na primeira, procura-se


identificar qual é a posição assumida por ou atribuída a Portugal face aos outros países
(simétrica ou assimétrica); na segunda, busca-se caracterizar essas relações (em
convergente ou divergente, no caso das relações simétricas, ou em posição de vantagem ou
desvantagem, no caso das relações assimétricas).
Quando a relação de comparação entre Portugal e outras entidades nacionais ou
supranacionais indica, portanto, paridade de posições, ela é classificada como simétrica.
162
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Quando, no entanto, essa relação é marcada pela disparidade de posições – seja pela
valorização ou desvalorização de uma das partes ou pela simultânea valorização de uma
das partes e desvalorização da outra – ela é classificada como assimétrica.
Uma primeira análise das situações de comparação identificadas levou ao
desdobramento dos oitenta e quatro casos iniciais em noventa e quatro relações de
comparação. A razão desse desdobramento foi a constatação de que nove das situações
identificadas foram construídas a partir de duas ou três relações de comparação
simultâneas ou interdependentes, como, a seguir, exemplificado:

 Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90
vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e
outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas
dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a
menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola,
Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... [PB20-1]

Neste exemplo, o autor constrói, num primeiro momento, uma situação de paridade
entre Portugal e Brasil, embora marcada pela diferença, para, a seguir, construir uma
relação de disparidade, onde Portugal (assim como o Brasil) ocupa o pólo da força e/ou
vantagem face aos demais países da CPLP. Verifica-se, portanto, duas relações de
comparação entretecidas, o que leva à classificação da passagem acima na categoria de
situação de comparação complexa.
Em resumo, as situações de comparação constituídas por uma única relação
comparativa foram classificadas como simples, as demais foram classificadas como
complexas. Do mesmo modo, as relações comparativas que constituem situações de
comparação complexas foram classificadas, cada uma delas, como relação comparativa
complexa, enquanto as demais relações comparativas foram classificados como simples,
como indicado no Quadro 6.1.
Para facilitar a identificação dessas relações comparativas complexas no corpus,
optou-se pelo acréscimo das letras A e B ao código já apresentado acima. Portanto,
considerando-se essa última citação (PB20-1), a relação comparativa estabelecida entre
Portugal e Brasil é identificada como PB20-1A, enquanto a relação comparativa
estabelecida entre Portugal e os “restantes” países da CPLP é identificada como PB20-1B.
(Para uma visão geral do quadro de notações adotado nesta etapa da pesquisa, consulte os
apêndices C e D.)

163
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Houve, portanto, um predomínio das situações de comparação simples, que


responderam por 89,3% do total de situações. Do mesmo modo, e em consequência disso,
verificou-se também o predomínio das relações comparativas simples, que responderam
por 79,8% do total, contra 20,2% de relações comparativas complexas.

Tipo Situação de Relação


comparação comparativa
Simples 75 (89,3%) 75 (79,8%)
Complexas 9 (10,7%) 19 (20,2%)
Total 84 (100%) 94 (100%)
Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas

Concluída essa primeira etapa, passou-se à análise das relações comparativas, que
contabilizaram um total de noventa e quatro, como já referido. Ao final dessa nova
classificação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de assimetria (51,1%) face às
de simetria (48,9%), como explicitado no Quadro 6.2.

Relações de Quantificação (%)


Assimetria 48 (51,1%)
Simetria 46 (48,9%)
Total 94 (100%)
Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas

Em outras palavras, em pouco mais da metade das relações de comparação


identificadas, registrou-se uma diferença de posição entre Portugal e outras entidades
nacionais ou supranacionais. Essas diferenças de posição implicam desequilíbrio de forças
entre Portugal e os demais intervenientes, sem, contudo, ser possível afirmar nesse
momento quais partes foram representadas nos pólos da força/vantagem.
Um exemplo de relação comparativa simétrica, na qual Portugal é representado pela
Academia das Ciências de Lisboa e o Brasil – o interveniente em causa – é representado
pela Academia Brasileira de Letras, é a passagem abaixo citada. Nesta referência, a
simetria se consubstancia na formação de um acordo, valorado como positivo para ambas
as partes:

164
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

 (…) depois de cem anos de divergências ortográficas (…) e depois de várias tentativas
goradas de acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências
de Lisboa (…) foi finalmente encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um
acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que
é positivo e que importa, portanto, enfatizar. [DN13-1]

Em sentido contrário, o extrato seguinte exemplifica uma relação comparativa


assimétrica na qual Portugal ocupa o pólo fraco enquanto Angola e Moçambique ocupam o
pólo forte. Nesta referência, a assimetria se concretiza na atribuição de uma desvantagem a
Portugal – ou seja, na imposição do AO aos portugueses – e, simultaneamente, na situação
de vantagem reconhecida a Angola e a Moçambique, por não terem ratificado o AO, como
segue:

 O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom


pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça
Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da
forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de
língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado.
Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada. [PB05-1]

Considerando-se as entidades nacionais e supranacionas que tomam parte nas


relações de comparação envolvendo Portugal, o Brasil se destaca como o interveniente
mais frequente, surgindo em 83% do total, seja de forma isolada, isto é, como único país
envolvido, seja ao lado de outros países ou entidade, como indicado no Quadro 6.3.

Intervenientes Quantificação (%)


Brasil 78 (83%)
Outros países 16 (17%)
(excluído o
Brasil)
Total 94 (100%)
Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação

Concluída essa primeira fase de classificação das relações comparativas construídas


em torno de Portugal e de outras entidades nacionais ou supranacionais, passa-se à análise
das relações comparativas de simetria.

165
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Análise das relações comparativas simétricas

Entre as relações de simetria, o interveniente mais frequente é o Brasil, que surge


em quarenta e duas de um total de quarenta e seis ocorrências, ou seja, em 93,4% das
relações assim classificadas. Nas quatro ocorrências em o que o Brasil não é mencionado, a
comparação se dá entre Portugal, Inglaterra e França (DN10-1); entre Portugal e Angola
(SL02-4); entre Portugal, Angola e Moçambique (PB03-2A) e, por fim, entre Portugal e
outros países lusófonos, excluído o Brasil (EX05-1A).
Nesses dois últimos casos, vale a ressalva de que se trata de situações de
comparação complexas das quais o Brasil também participa, figurando na relação
complementar a essas (PB03-2B e EX05-1B, respectivamente). A situação de comparação
estabelecida entre Portugal, Inglaterra e França é a única, entre as simétricas, que não
envolve países que não têm o português como língua oficial, como destacado no Quadro
6.4:

Intervenientes Quantificação
(%)
Brasil entre outros 42 (91,3%)
Angola e Moçambique apenas 1 (2,2%)
Angola apenas 1 (2,2%)
Países lusófonos (excluído o Brasil) 1 (2,2%)
Inglaterra e França 1 (2,2%)
Total 46 (~100%)
Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria

Considerando-se, agora, somente as relações de simetria em que o Brasil figura


como uma das entidades nacionais ou supranacionais contrastadas com Portugal, em vinte
e seis delas, ele é o único interveniente, correspondendo a 61,9% do total. Nas demais
dezesseis relações assim identificadas, ou seja, em 38,1% do total, o Brasil divide as
atenções com outros países de língua portuguesa, como ilustrado no Quadro 6.5:

Intervenientes Quantificação (%)


Brasil apenas 26 (61,9%)
Brasil e outros países de língua portuguesa 16 (38,1%)
Total 42 (100%)
Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria

166
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Da leitura do quadro acima se depreende, portanto, que, em todas as situações em


que o Brasil é identificado como um dos intervenientes na relação comparativa simétrica,
mas não o único, ele partilha sua posição com outros países de língua portuguesa, sem
exceções. Num único caso, o Brasil é citado ao lado de Moçambique (DN02-1) e, em
outro, ao lado de Angola e Moçambique (SL02-1). Nas demais ocorrências, no entanto, o
Brasil surge entre vários outros países de língua portuguesa, ou seja, entre os demais países
lusófonos.
Considerando-se, agora, o total de dezesseis ocorrências em que o Brasil é referido
ao lado de outros países lusófonos, interessa observar como variam as referências ao Brasil
e aos demais países de língua oficial portuguesa, ou seja, de que forma tais referências são
construídas. Em seis casos, ou seja, em 37,5% do total, as referências ao Brasil são
construídas de forma explícita. Nos dez restantes, que representam 62,5%, sua presença é
inferida, como detalhado no Quadro 6.6:

Tipo de referência Detalhamento Nº Parcial


Brasil Angola e Moçambique 1
Brasil e África lusófona 1
Explícita Brasil, Angola, Moçambique, São 3
6 (37,5%)
Tomé e Príncipe, Cabo Verde,
Guiné e Timor
Brasil e outros países lusófonos 1
Brasileiros 2
Salvador 1
Aqueles que aprenderam a falar a 1
partir da matriz europeia
Outros povos (falantes de 1
Implícita 10 (62,5%)
português)
Países de Língua Portuguesa 1
Países lusófonos / família lusófona 3
Lusofonia (português africano, 1
americano e asiático)
Total 16 (100%)
Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao lado
de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas

Verifica-se, portanto, o predomínio das referências implícitas ao Brasil no contexto


das relações comparativas simétricas que envolvem este e outros países, contrapondo-os a
Portugal. Nos casos em que o Brasil é o único interveniente, em dez ocorrências, ou seja,
em 38,5% do total, a menção ao país é concretizada na referência explícita ao Brasil; nas

167
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

demais dezesseis, ou seja, nos restantes 61,5% dos casos, de forma implícita, como
indicado no Quadro 6.7.
Comparando-se os quadros 6.6 e 6.7, pode-se perceber que não houve diferença
significativa entre as referências explícitas e implícitas ao Brasil nos casos em que este
surge como único interveniente e nos casos em que surge como um dos intervenientes:
38,5% contra 37,5%, para as referências explícitas, e 61,5% contra 62,5%, para as
referências implícitas, respectivamente.

Tipo de
Detalhamento Nº
referência
Explícita Brasil 10 (38,5%)
Brasileiros 9
Público brasileiro 1
Ortografia brasileira 1
Academia Brasileira de Letras 1
Implícita 16 (61,5%)
Luso-brasileiro 1
Discípulos de Malaca & Bechara 1
Dos dois lados do Atlântico 1
Duas ortografias 1
Total 26 (100%)
Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:
referências explícitas e implícitas

Nas relações em que o Brasil surge como único interveniente, sendo representado
de forma implícita, tais representações são concretizadas via referência aos cidadãos
brasileiros (56,25%), via utilização de brasileiro/a como modificador de público, ortografia
e academia de letras (18,75%) ou, ainda via utilização de expressões que remetem
simultaneamente para Portugal e para o Brasil (25%), como registrado no Quadro 6.8.
É interessante observar que, do total de referências implícitas ao Brasil, nas
relações em que este figura como único interveniente, em um quarto delas são utilizadas
expressões que associam Portugal e Brasil. Veja-se, abaixo, um exemplo de relação
comparativa simétrica em que o Brasil encontra-se representado pelo modificador
“brasileiro” na expressão “neocolonialismo luso-brasileiro”:

 O significado profundo desta coisa traduz provavelmente a confissão envergonhada, por


parte do neocolonialismo luso-brasileiro, de que o AO não dispõe absolutamente nada
para a grafia de vocábulos das línguas nativas que tenham sido incorporados no português.
[DN14-1, destaques acrescentados]

168
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

A expressão “neocolonialismo luso-brasileiro” coloca Portugal e Brasil em


paridade (lado a lado), ao mesmo tempo em que subverte a relação histórica metrópole-
colônia que caracterizou a relação entre ambos os países num período histórico específico.
Na passagem acima, no entanto, num contexto em que o passado colonial se transforma em
mácula e a figura do poder colonial carrega sentido negativo, o Brasil é alçado a parceiro
de Portugal – agora, juntos, subjugam os demais.

Representação Classificação Nº
Referências aos cidadãos
Brasileiros 9 (56,25%)
brasileiros
Público, ortografia ou ortografia Referência a brasileiro/a
3 (18,75%)
brasileira como modificador
Luso-brasileiro (*), Discípulos
de Malaca & Bechara, Dos dois Associação entre Portugal
4 (25%)
lados do Atlântico, Duas e Brasil
ortografias
Total 16 (100%)
(*) Neste caso, ‘brasileiro’ também é utilizado como modificador, permitindo, assim, ser classificado no item anterior.
Preferiu-se, no entanto, destacar as estratégias de associação entre Portugal e Brasil.
Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único interveniente

Uma vez analisadas as relações comparativas simétricas como um todo, passa-se à


classificação das mesmas em função do critério convergência/divergência. As relações de
simetria remetem para uma situação de paridade de forças e/ou de posição no discurso, ou
seja, para o campo da equivalência, que pode se dar tanto pela convergência – perspectiva
positiva, de aproximação e igualdade – como pela divergência – perspectiva negativa, de
afastamento e diferença. Em outras palavras, uma vez estabelecida a equiparação de
posições, as entidades representadas são caracterizadas por algo que têm em comum – e
que, portanto, aproxima – ou por algo que as diferencia – e que, portanto, afasta.
Considerando-se as relações comparativas simétricas marcadas pela convergência,
esta, em geral, concretiza-se nos discursos de afirmação e valorização do português como
língua comum, isto é, de partilha entre diferentes países e povos e, portanto, dotada de um
potencial de aproximação. Ainda nesse sentido, a perspectiva da obtenção de um acordo
em torno de sua ortografia também é avaliada de forma positiva. Apenas como exemplo,
seguem citações de algumas das relações que foram assim classificadas:

169
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

 Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem
diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné,
Cabo Verde, São Tomé e Timor. [EX04-3]
 (…) depois de cem anos de divergências ortográficas (desde o acordo de 1911 que não foi
extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de acordos envolvendo a
Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa (…) foi finalmente
encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um
acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa,
portanto, enfatizar. [DN13-1]
 O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com
Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é
decisivo para nós. [SL02-1]

No que diz respeito às relações comparativas simétricas marcadas pela divergência,


por outro lado, esta, em geral, é representada pela valorização de uma perspectiva
individualista, em que se desvaloriza a ideia de aproximação entre os diferentes países de
língua portuguesa e sua suposta mais-valia, mas também, e principalmente, em sentido
contrário: valoriza-se a partilha de uma língua comum, mas na perspectiva da diferença.
Nesse caso, é a diferença, ou seja, a diversidade da língua partilhada que ganha destaque e
valor, sendo o acordo ortográfico, no seu papel de unificação das diferentes grafias da
língua, identificado como ameaça. Apenas como exemplo, seguem algumas passagens que
foram assim classificadas:

 Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os
censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e,
não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. [DN02-1]
 (…) a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um
português europeu, africano, americano e asiático. [EX01-3]
 A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da
diferença, não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias. [PB13-2]

Considerando-se, agora, a frequência dos discursos de convergência, assim como os


de divergência, no contexto das relações comparativas simétricas, verificou-se que em
vinte e dois de um total de quarenta e seis, a perspectiva adotada foi a primeira, ou seja a
da convergência. Nas demais vinte e quatro, prevaleceu a perspectiva da divergência, como
sintetizado no Quadro 6.9.
Houve, portanto, um ligeiro predomínio das relações comparativas divergentes, que
representaram 52,2% do total, contra 47,8% classificadas como relações comparativas
convergentes. Notou-se, no entanto, uma diferença significativa entre os vinte e seis casos
em que o Brasil aparece como único interveniente – 61,5% foram classificadas como
divergentes (dezesseis de um total de vinte e seis casos) e 38,5% como convergentes (dez

170
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

de um total de vinte e seis casos) – e aqueles dezesseis casos em que aparece ao lado de
outros países lusófonos – 56,25% convergentes, 43,75% divergentes, como indicado no
Quadro 6.10.

Tipo de relação simétrica Convergência


Convergência 22 (47,8%)
Divergência 24 (52,2%)
Total 46 (100%)
Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes

Intervenientes Convergência Divergência Totais


Brasil 10 (38,5%) 16 (61,5%) 26 (100%)
Brasil e outros países lusófonos 9 (59,25%) 7 (43,75%) 16 (100%)
Angola 1 (100%) 0 1 (100%)
Angola e Moçambique 0 1 (100%) 1 (100%)
Países lusófonos (Brasil excluído) 1 (100%) 1 (100%)
Inglaterra e França 1 (100%) 0 1 (100%)
Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros intervenientes

Nas relações de comparação simétricas em que o Brasil é o único interveniente,


prevalece a divergência, ou seja, o movimento de afastamento e/ou de instituição de uma
diferença entre o país e Portugal. Refletindo-se sobre tal resultado no âmbito do acordo
ortográfico, este parece confirmar a percepção de que Portugal e Brasil ocupam pólos
opostos ou, ao menos, distintos, mesmo que em igualdade de forças.
Por outro lado, nas relações simétricas em que o Brasil surge ao lado de outros
intervenientes, todos eles falantes do português, prevalece a convergência, isto é, o
movimento de aproximação e/ou instituição de semelhanças entre tais países e Portugal.
No contexto do debate sobre o AO, tal dado parece remeter, por exemplo, para
representações contruídas em torno da ideia de cultura partilhada associada à língua
comum, à lusofonia, entre outras.
Por fim, nas restantes quatro situações em que o Brasil não figura como
interveniente, três delas foram classificadas como convergentes (75%) e uma como
divergente (25%). Em três delas, as relações que são construídas envolvem outros países
de língua portuguesa: Angola, Moçambique e outros países lusófonos, excluído o Brasil.
Na única situação em que a relação de comparação, classificada como convergente, é
estabelecida entre Portugal e países que não têm o português como língua, Inglaterra e

171
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

França são trazidos ao debate. Em relação à Inglaterra, afirma-se a aliança política com
Portugal; em relação à França, afirma-se uma identificação cultural, como exposto abaixo:

 Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês [DN10-1]

É bem verdade que tais identificações são construídas em torno de uma polaridade,
evidenciada pelo recurso ao vocábulo “apesar”, mas esta não nega o conteúdo afirmativo
das relações de comparação acima identificadas, até porque em toda a relação de igualdade
há sempre uma relação de diferença pressuposta. Em outras palavras, os conceitos de
igualdade e diferença são interdependentes, embora a escolha que se faça – ao se adotar a
perspectiva de uma ou de outra na análise – implique significados distintos.
Concluída a classificação das relações comparativas simétricas em relações
convergentes ou divergentes, resta ainda avaliar o papel da língua na construção das
identidades nesse contexto. Com exceção da relação em que Inglaterra e França aparecem
como intervenientes, nas demais, o acordo ortográfico ou a perspectiva mais específica da
língua estão presentes. Dizendo de outra forma, em todas as construções que envolveram a
participação de países de língua protuguesa, o AO e/ou a língua ocuparam posição de
destaque nessas discussões.
Nos casos em que o Brasil é o único interveniente, predominam as referências
construídas com foco no acordo mais especificamente. Nos demais casos, o conceito de
língua parece disputar as atenções com o acordo propriamente dito. Nessas construções, a
língua surge, em geral, como fator de identidade, como um bem ou patrimônio ou, ainda,
como manifestação de cultura. É interessante também observar que tais argumentos são,
muitas vezes, entrelaçados a ponto de não ser possível individualizá-los. Além disso,
muitos desses argumentos são apropriados tanto por autores contrários como por autores
que defendem o acordo.
No exemplo abaixo, pode-se comparar a perspectiva da língua como fator de
identidade e cultura e também como recurso de construção da diferença. O autor se vale da
referência à língua para construir uma certa identidade nacional portuguesa, associada com
a formação e o desenvolvimento do indivíduo (“na língua em que cresci”) e, indiretamente,
com a ideia de cultura, mas também, simultaneamente, para marcar a diferença com outros
perfis nacionais (“não sou brasileiro nem moçambicano”). Essa comparação também
remete, em alguma medida, para uma perspectiva de posse ou patrimônio aqui traduzida
pela indiferença do autor – na condição de português – em relação à língua falada por

172
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

brasileiros e moçambicanos, associada à afirmação categórica de que sua língua é a língua


portuguesa, sem deixar espaço para a partilha ou para a aproximação com outros países
que também tem o português como língua nacional, como referido a seguir:

 Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os
censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e, não
fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da proclamação
gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é.
[DN02-1]

Na argumentação em torno da ideia de língua como patrimônio, pode-se realçar a


perspectiva da partilha de uma língua comum como fator de identificação e aproximação
entre os diferentes países de língua portuguesa, num contexto de mútuo benefício, e, com
isso, defender-se a aprovação do acordo. No entanto, a partir do mesmo argumento, pode-
se construir uma relação em sentido contrário, ou seja, pode-se destacar a noção de língua
como patrimônio, identidade e cultura, mas, nesse contexto, atribuir valor, não àquilo que
há de comum, mas, sim, às diferenças que caracterizam os distintos modos de falar e
escrever a língua nos diferentes países, isto é, valorizar a diversidade. Nesse cenário, o
acordo representaria uma ameaça a essa diversidade e, portanto, não deveria ser adotado.
Essas duas perspectivas são, respectivamente, exemplificadas nos seguintes extratos:

 O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com
Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é
decisivo para nós. [SL02-1]
 A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a
escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil,
Angola, Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural.
[PB07-1]

Especificamente nas discussões em torno do acordo ortográfico propriamente dito,


a questão acima é retomada: o AO, em sua pretensão de unificação de grafias, é criticado
em contextos que, em geral, realçam as diferenças que subsistem ou mesmo que afloram
após o acordo, assim como a impossibilidade de superar as diferenças intrínsecas a cada
país por meio da língua, ou melhor, da unificação da grafia. Em sentido inverso, mas
visando ao mesmo objetivo, ou seja, à não adoção do acordo, são desenvolvidos
argumentos que caracterizam o AO, mais uma vez em sua pretensão unificadora, como
uma ameaça à riqueza cultural concretizada na diversidade. Entre os autores favoráveis ao

173
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

AO, por outro lado, privilegia-se a ideia de acordo e o potencial positivo da unificação. São
exemplos dessas linhas de argumentação as citações que seguem:

 Além disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e
Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países
interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se
pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de
enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a
desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro. [DN17-3]
 O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos
ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo
Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo. [SL02-5]

Análise das relações comparativas assimétricas

Completada essa primeira etapa, passa-se à análise das relações comparativas


assimétricas, num total de quarenta e oito, que representam 51,1% do total das relações de
comparação, como já destacado no Quadro 6.2. Nessa categoria, foram classificadas as
relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais nas
quais os diferentes intervenientes assumem posições desiguais, sendo possível identificar
um pólo forte e outro fraco, ou seja, uma posição de vantagem e uma posição de
desvantagem, como já referido.
Assim como nas relações comparativas simétricas, aqui também se verifica a
incidência do Brasil como principal interveniente. Nessas relações comparativas
assimétricas, o país surge em trinta e seis ocorrências, o que representa 75% do total, como
registrado no Quadro 6.11:

Intervenientes Quantificação (%)


Brasil 36 (75%)
Outros 12 (25%)
Total 48 (100%)
Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes

Considerando-se apenas os casos em que o Brasil figura como interveniente, em


trinta e três deles, ou seja, em 89,2% do total, ele aparece sozinho, como registrado no
Quadro 6.12. O Brasil é, portanto, e isoladamente, o principal interveniente nas

174
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

representações que estabelecem algum tipo de contraste ou comparação, marcada pela


desigualdade, entre Portugal e outras entidades de cariz nacional ou supranacional.

Brasil Quantificação (%)


Como único interveniente 33 (91,7%)
Como um dos intervenientes 3 (8,3%)
Total 36 (100%)
Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente

Há, portanto, apenas três situações em que o Brasil não é o único interveniente,
surgindo ao lado de Angola (PB06-5) ou dos demais países de língua portuguesa, nas
referências a “espaço lusófono” (PB20-2B) e “outros países lusófonos” (PB26-3).
Considerando-se, agora, os restantes doze casos em que o Brasil não surge entre os
intervenientes, as relações comparativas assimétricas são estabelecidas entre Portugal e
outros países de língua portuguesa predominantemente – em nove ocorrências, o que
representa, portanto, 75% do total. Os únicos países não falantes do português que figuram
nessas relações comparativas são a Espanha e a Inglaterra, como evidenciado no Quadro
6.13:

Intervenientes Detalhamento Quantificação


Angola 1
Angola e Moçambique 2
Países de língua
África, africanos 4 9 (75%)
portuguesa
Africanos e asiáticos 1
Restantes países da CPLP (exceto Brasil) 1
Outros Espanha, Inglaterra 3 (25%)
Total 12 (100%)
Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes

Uma vez analisadas as relações comparativas assimétricas como um todo, passa-se


à classificação das mesmas em função das posições assumidas por ou atribuídas a Portugal,
no âmbito das relações de força que elas delimitam e a partir das quais são construídas.
Nessas relações assimétricas, predominam as ocorrências em que Portugal ocupa o pólo
fraco, isto é, o da desvantagem ou da perda. Tais situações verificam-se em trinta e nove
do total de quarenta e oito relações de comparação analisadas, representando 81,25% das
ocorrências, como indicado no Quadro 6.14.

175
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Pólo Portugal
Pólo Forte 9 (18,75%)
Pólo Fraco 39 (81,25%)
Total 48 (100%)
Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas

Nas nove ocorrências em que se dá o inverso, ou seja, nos 18,75% dos casos em
que Portugal ocupa o pólo da força, os intervenientes mais frequentes são os países
africanos de língua portuguesa (PALOP), com sete ocorrências de um total de nove, o que
representa 77,8% dos casos. Em três das ocorrências, que representam 42,9%, os PALOP
são os únicos intervenientes, enquanto nas demais quatro, que representam 57,1%, surgem
ao lado de outros países ou entidades, como registrado no Quadro 6.15.

Intervenientes Detalhamento Quantificação


África
Africanos
Únicos
Angola, Moçambique, 3 (42,9%)
intervenientes
Guiné / países africanos de
língua portuguesa
PALOP Africanos e asiáticos 7 (77,8%)
Espaço lusófono (excluído
Entre outros o Brasil)
4 (57,1%)
intervenientes Países lusófonos
Restantes países da CPLP
(excluído o Brasil)
Outros 2 (22,2%)
Total 9 (100%)
Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes

A seguir, em segundo lugar, surge Timor, com quatro ocorrências de um total de


nove, o que representa 44,4% dos casos – embora nenhuma explícita nem individual.
Depois, aparecem o Brasil, com duas ocorrências (22,2%) e, por fim, a Espanha, com
apenas uma (11,1%), como se depreende do Quadro 6.16.
Retomando-se a relação das entidades nacionais e supranacionais que intervêm nas
relações comparativas assimétricas e, analisando, em cada uma delas que pólo ocupam
nessa relação, tem-se o Quadro 6.17.

176
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Como único Entre outros


País Detalhamento Ocorrências
interveniente intervenientes
Africanos e asiáticos
Espaço lusófono
Timor Países lusófonos 0 4 4 (44,4%)
Restantes países da CPLP
(excluído o Brasil)
Aqueles que só sabem escrever
de acordo com o som, ou
Brasil 1 1 2 (22,2%)
melhor, com a melodia da voz
Países lusófonos
Espanha Espanhola 1 0 1 (11,1%)
Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes

Intervenientes Pólo Forte/ Pólo Fraco/


Total
Vantagem Desvantagem
Brasil 32 1
Brasil e Angola 1
Angola 1
Angola e Moçambique 2
Países africanos de língua portuguesa 1 3
Africanos e asiáticos 1
Restantes países da CPLP (exceto Brasil) 1
Espaço lusófono, outros países lusófonos 2
Espanha 1 1
Inglaterra 1
Total 39 9 48
Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral

Analisando as relações de assimetria em que Portugal é posicionado no pólo fraco,


ou seja, em desvantagem, temos, mais uma vez, o Brasil como interlocutor recorrente,
figurando em trinta e três de um total de trinta e nove casos, ou seja, em 84,6% do total,
como referido no Quadro 6.18. Com uma única exceção em que o Brasil surge ao lado de
Angola, nos demais casos ele aparece como único interveniente. Angola, por sua vez,
figura em cinco relações (12,8%), sendo o único interveniente em uma delas. Moçambique
aparece em três casos, mas sempre acompanhado de Angola ou dos demais países
africanos de língua portuguesa. Os únicos que não pertencem ao grupo de países de língua
portuguesa a figurarem como intervenientes numa relação comparativa assimétrica em que
Portugal ocupa o pólo fraco são a Espanha e a Inglaterra, como já mencionado.

177
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Como único Entre outros


País Ocorrências
interveniente intervenientes
Brasil 32 1 33 (84,6%)
Angola 1 4 5 (12,8%)
Moçambique 0 3 3 (7,7%)
Espanha 1 0 1 (2,6%)
Inglaterra 1 0 1 (2,6%)
Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes

Na relação de comparação que envolve a Espanha, o desequilíbrio das posições


ocupadas, com prejuízo para Portugal, é construído em torno de uma suposta indiferença
espanhola em relação ao país vizinho, que, em alguma medida, traduz-se numa percepção
de irrelevância ou na desvalorização do papel de Portugal, como abaixo exemplificado:

 Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles
ficam admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui.
Não percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam
muito às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase
sempre me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso?
Fosse aqui e eu…” Mas não é aqui, é aí . [PB29]

A relação de comparação estabelecida com a Inglaterra, por sua vez, é marcada pela
ironia. Nela, atribui-se à Inglaterra uma habilidade no desempenho de uma atividade
específica – neste caso, a jardinagem – que, segundo o autor, Portugal não partilha. Nesse
quesito, a Inglaterra seria mais capaz que Portugal, ocupando, assim, o pólo da
força/vantagem face a ele.
As construções de comparação com Angola e Moçambique nas quais tais países
surgem no pólo forte da relação são marcadas, de modo geral, pela avaliação positiva do
comportamento de ambos no que se refere à não adoção da grafia definida pelo AO em
função do fato de ambos os países não terem, à época da publicação dos artigos, ratificado
o acordo. Estariam, portanto, em posição de vantagem, pois manteriam a correção da
grafia das palavras. Tal correção decorre do fato de Angola e Moçambique seguirem
escrevendo de acordo com as regras ortográficas em vigor antes do acordo, mantendo
assim a ortografia antiga, seguindo o modelo do português europeu.
Considerando-se, agora, apenas as representações de assimetria em que o Brasil
ocupa, sozinho, o pólo da força, verifica-se que as estratégias adotadas são bastante
diversas: num momento, promove-se a valorização do Brasil, noutro, desvaloriza-se
Portugal, como exemplificado abaixo. Em alguns casos, ainda, tais estratégias são

178
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

combinadas. De todo modo, o objetivo é sempre o mesmo, posicionar Portugal no pólo


fraco da relação.

 Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma
questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser
aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como
Angola e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que
outras paragens). [DN17-2]

Aprofundando essa análise, pode-se separar os argumentos utilizados nas


estratégias de valorização ou desvalorização de Portugal e do Brasil em quatro grupos em
função do conteúdo dos argumentos dos quais se valem: (i) argumentos de cedência de
Portugal face ao Brasil, (ii) argumentos de maior força econômica do Brasil em relação a
Portugal, (iii) argumentos de proteção do português europeu e correção da língua e (iv)
argumentos de valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem.
É bem verdade que os argumentos acima mencionados surgem, com frequência,
entrelaçados e sobrepostos, como se pode facilmente notar nos exemplos que serão dados a
seguir – questão já tratada em oportunidades anteriores. Por esse motivo, é importante
ressaltar que a segmentação aqui proposta visa apenas facilitar a análise dos dados e não
estabelecer critérios rígidos de classificação ou categorização.
Os argumentos de cedência (i) giram em torno da ideia de que o AO implicaria
uma concessão de Portugal em relação ao Brasil, uma espécie de abdicação de poder ou
mesmo de submissão: o acordo estaria mais inclinado para o Brasil, isto é, configuraria um
indevido alinhamento do português de Portugal pelo português do Brasil. Também figuram
nesse conjunto os argumentos que consistem em demonstração de força: o acordo foi
impingido, os portugueses foram obrigados. São exemplos de tais argumentos os seguintes
extratos:

 Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo se argumenta, até com o


"matriotismo" obstinado do "foi assim que me ensinou a minha santa professora da escola
primária" [DN03-1, destaques acrescentados]
 Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu
pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”.
Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para
“gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros
portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos
impingir o dito “acordo”. [PB05-2, destaques acrescentados]
 Do que gosto no novo Acordo Ortográfico, tão inclinado para o Brasil, é do seu lado
português, como eu: um bocado feito em cima do joelho. [PB11-1, destaques
acrescentados]

179
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Os argumentos de força econômica (ii) destacam a superioridade numérica


brasileira em número de falantes e também em tamanho de mercado, assim como a sua
posição econômica no cenário internacional. Fala-se em internacionalização do português
do Brasil e da sua força no mercado editorial, como, por exemplo, no mercado das
traduções de manuais técnicos. São exemplos de tais argumentos os seguintes extratos:

 Porque é que os decisores políticos adoptaram um comportamento parolo, adequando,


como dizem, a língua portuguesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais
populosa não o fez da mesma maneira (…)? [PB03-1, destaques acrescentados]
 A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as
traduções brasileiras em Portugal. [PB31-2, destaques acrescentados]

Os argumentos de proteção e correção da língua (iii) muitas vezes caracterizam o


AO90 como ameaça ao português europeu, ao seu futuro e à sua aprendizagem.
Apresentam as alterações ortográficas como erro e desrespeito a regras etimológicas,
assumindo, de forma explícita ou velada, que a versão correta do português é aquela
praticada em Portugal antes do acordo. Nessas representações, a assimetria de posições é,
às vezes, construída por meio da crítica da ratificação do acordo por parte de Portugal,
como exemplificado abaixo:

 E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro de uma geração ninguém conseguirá
pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como ela é falada deste lado do Atlântico.
[DN17-1]

Em outros momentos, ao contrário, afirma-se situação de vantagem para o Brasil


pelo fato de, após o AO90, a grafia de uma certa palavra ter-se mantido fiel à versão
europeia, enquanto, simultaneamente, ter sido modificada em Portugal em função das
diferenças de pronúncia, como ilustra o exemplo a seguir:

 (…) palavras que todos escreviam da mesma maneira, tantas, passam a escrever-se, por
imposição do AO, de modo diferente em Portugal, mantendo no Brasil grafia certa:
recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc. [PB34-3, destaques acrescentados]

Também a contabilização do número de alterações demandadas pelo acordo no


Brasil e em Portugal é objeto de comparação, em geral para afirmar, mais uma vez,
vantagem para o primeiro. O quadro geral, portanto, é de que o Brasil estaria em vantagem

180
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

por contar simultaneamente com um maior número de exceções e um menor número de


alterações no âmbito de aplicação do AO90, como já mencionado anteriormente.
Os argumentos de valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem
(iv), em geral, valorizam o comportamento brasileiro e/ou criticam o comportamento
português em questões relacionadas à língua, além de atribuir imagem negativa a Portugal.
São exemplos de tais argumentos os seguintes extratos:

 Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema
foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)? [PB05-5, destaques
acrescentados]
 Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do
que aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da
omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão. [PB30-1, destaques
acrescentados]

Passa-se, agora, à análise dos nove casos em que Portugal ocupa o pólo da força
numa relação assimétrica. Como já referido nos Quadros 6.13 e 6.14, os países africanos de
língua portuguesa (PALOP) são os intervenientes mais frequentes, seguidos de Timor,
Brasil e Espanha. Nas relações envolvendo os países africanos, a posição de vantagem
atribuída a Portugal é construída a partir da ideia de que o AO representaria os interesses
de Portugal – e também do Brasil – com total desconsideração pelos PALOP. Nesse
contexto, tais países seriam considerados como irrelevantes, ou mesmo incapazes, no
debate sobre o AO, controlado por Portugal e Brasil.
Tais relações são, de modo geral, marcadas por um suposto protagonismo
português na definição dos termos do acordo ortográfico face aos demais países de língua
portuguesa, excetuado o Brasil. Vale ainda ressaltar que essas relações são construídas
sempre na perspectiva da crítica, isto é, caracterizando essa manifestação de força como
indevida, constituindo-se, assim, em mais uma estratégia de resistência ao AO.
Timor, por sua vez, figura sempre ao lado dos PALOP e dos países lusófonos como
um todo, nunca sendo nomeado expressamente, como indicado no Quadro 6.14. Sendo
assim, todas as observações feitas acima para os PALOP também se aplicam a esse país.
Mais uma vez, a posição de força/vantagem atribuída a Portugal é construída via afirmação
da irrelevância e fraqueza de Timor, em função de seu papel secundário – ou mesmo da
quase total ausência de participação – no debate sobre o acordo ortográfico.
Em relação ao Brasil, o país é posicionado no pólo fraco da relação de comparação
em duas ocasiões: em DN07-1, onde surge como único interveniente, e em PB26-3, onde

181
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

sua presença é inferida a partir da referência aos demais países lusófonos. Ambos os casos
serão analisados a seguir; este é o primeiro deles:

 É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial
e facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou
melhor, com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no
meio intelectual a forma antiga. [DN07-1, destaques acrescentados]

Na referência acima, Portugal surge imbuído de uma certa superioridade, apesar do


tom irônico, associado ao seu passado histórico de país colonial. Essa mesma
demonstração de força pode ser derivada da expressão “querer abdicar”, que remete para o
cenário em que Portugal detém o poder, embora decida “abdicar” dele por sua própria
vontade, ou seja, por seu próprio “querer”. A posição de força para Portugal também é
construída a partir da desvalorização do seu oponente. Aqui, embora este não seja
expressamente indicado, a identificação do Brasil como “(a)queles que só sabem escrever
de acordo com o som ou com a melodia da voz”, nesse contexto, é significativamente forte.
O Brasil também se faz presente na referência a Portugal como ex-potência colonial, a
qual, a contrario sensu, traz para a discussão as ex-colônias portuguesas, entre elas o
Brasil. Ainda assim, trata-se de uma construção complexa e com uma boa dose de
ambiguidade, pois também carrega a perspectiva da perda.
Em PB26-3, por sua vez, a posição de vantagem portuguesa é construída a partir da
ideia de imposição da ortografia europeia aos demais países lusófonos. Essa hipótese é
elaborada de forma a ressaltar sua inverossimilhança, numa estratégia de combate à
acusação de que os opositores ao AO se consideram “donos da língua”. De acordo com o
autor, tal argumentação só seria sustentável se o acordo ortográfico representasse a
imposição da ortografia europeia aos demais, como mencionado. Isso significa dizer que,
embora nessa relação Portugal ocupe o pólo da força/vantagem, ela é construída como
falsa.
Por fim, naquele único caso em que a Espanha (PB29-1) surge como interveniente,
figurando no pólo mais fraco, essa desvantagem é construída a partir da ideia de
ilegitimidade, assumida pela autora, para participar do debate sobre o AO. Essa
ilegitimidade se fundamenta no fato de a autora ser espanhola, e não portuguesa, como já
anteriormente referido. Portanto, nessa condição, sua intervenção teria de ser justificada
sob o risco de ser considerada uma intromissão indevida num debate que supostamente não

182
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

lhe diz respeito. Em outras palavras, no debate sobre o AO, em relação aos espanhóis, os
portugueses são os interlocutores privilegiados.
Excluídos os dois casos em que o Brasil figura entre os intervenientes (DN07-1 e
PB26-3) numa relação assimétrica em que Portugal ocupa o pólo da força/vantagem e o
caso em que a Espanha participa (PB29-1), nos demais casos – ou seja, em seis de nove
comparações (66,7%) – Portugal não está sozinho, partilhando a posição de vantagem com
o Brasil. Isso ocorre porque tais relações de assimetria ora analisadas fazem parte de
situações comparativas complexas, compostas por diferentes relações entrelaçadas, ou
seja, situações em que, muitas vezes, relações de comparação simétricas e assimétricas
convivem entre si.
Embora, neste momento, o foco desta análise incida exclusivamente sobre as
relações assimétricas nas quais Portugal ocupa o pólo da força/vantagem, a informação
acima parece relevante para uma reflexão mais apurada. Portanto, fica aqui a ressalva de
que seis das nove relações de comparação ora analisadas são precedidas ou entrelaçadas
por outras relações de simetria entre Portugal e Brasil, como exemplificado abaixo:

 Em 1990, ilustres detentores de uma certa Ortografia da Língua Portuguesa babaram-se de


prazer e glória ao verem no papel o ‘Novo Acordo’. Africanos e asiáticos falantes e
escrevedores da Língua, conhecidos por ‘falarem à preto’ foram obrigados a ver
passar o comboio ortográfico de portugueses e brasileiros. [CM02-1, destaques
acrescentados]

Há, aqui, um duplo rebaixamento da posição de “africanos e asiáticos”. Primeiro,


explícito, pois são obrigados a alguma coisa, ou seja, submetidos à força. Depois, implícito
na limitação do seu modo de falar a uma certa cor da pele, “raça” ou etnia e também na sua
classificação como “escrevedores” da língua, e não simplesmente “os que escrevem”, por
exemplo. Essa sucessão de generalizações – “africanos e asiáticos” que falam “à preto” –
associada à presunção de verdade partilhada – “conhecidos por” falarem assim –
evidenciam e reforçam uma visão preconcebida e distorcida do outro. Nesse mesmo
sentido, vale referir a citação abaixo:

 Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90
vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e
outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades
ortográficas dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma,
ou a outra - a menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de
Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... (PB20-1B,
destaques acrescentados)

183
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

No extrato acima, após a construção de uma relação comparativa simétrica entre


Portugal e Brasil, passa-se para uma segunda relação, dessa vez assimétrica, entre Portugal
(e Brasil) e demais países de língua portuguesa (Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde,
São Tomé e Príncipe e Timor). A assimetria de posições é evidenciada pela expressão
“singular menoscabo” e pela obrigatoriedade expressa em “terão de aderir”. Esse último
caso é também exemplo de situações de comparação complexas em que primeiro se
desenha uma relação de paridade ou equivalência entre Portugal e Brasil para, a seguir,
estabelecer relação de força face aos demais países de língua portuguesa.
Para concluir a análise das relações comparativas assimétricas, importa ainda
analisar três outros extratos – identificados como DN09-1, DN17-4 e PB33-1 – que
parecem ter sido construídos de forma a dificultar ou mascarar a identificação das relações
de força que estabelecem. Em todos eles, embora Portugal seja posicionado no pólo fraco
da relação, persiste a ideia velada de uma certa superioridade portuguesa em relação aos
seus pares, como referido abaixo:

 Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser
praticada em Portugal! [DN09-1, destaques acrescentados]

Embora essa construção posicione o Brasil no pólo de força face a Portugal, ela
traduz uma visão de mundo compatível com a ideia de superioridade portuguesa. Essa
interpretação baseia-se no uso da expressão “nem mesmo o Brasil”, que traduz surpresa,
isto é, contrariedade de expectativas. Os critérios de aceitação brasileiros seriam – ou
deviam ser, era esperado que fossem – mais baixos do que os dos portugueses. O uso da
expressão “carnavalização” também contribui para essa identificação, pois, embora possa
assumir diferentes significados, não deixa de invocar o Carnaval – festa popular fortemente
associada à imagem pública do Brasil – que ainda poderia remeter para uma espécie de
licenciosidade, um ambiente onde tudo é possível e nada deve ser levado a sério.
Passando-se à análise do extrato seguinte, é a vez de Angola e Moçambique se
juntarem ao Brasil como intervenientes, conforme a seguinte citação:

 Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em


Angola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de
agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já
não somos capazes. [DN17-4, destaques acrescentados]

184
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Nessa construção de assimetria, embora Angola seja posicionada no pólo da força,


pois surge como protetora da língua, mais capaz do que Portugal na realização dessa tarefa,
novamente está implícita a ideia de superioridade portuguesa. Ela transparece na expressão
“não será de estranhar”, que, embora pela negação, pressupõe haver uma contrariedade de
expectativas, e pelo reforço do papel de Portugal como detentor da correção da língua. Esta
última afirmação decorre de se classificar a grafia do português em Angola e Moçambique
como sendo a “correta” – à medida que preserva a grafia portuguesa pré-acordo – e,
simultaneamente, de negar essa condição à grafia brasileira.
Finalmente, no último extrato a ser analisado, o Brasil retorna à posição de único
interveniente, como se depreende da seguinte citação:

 Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e
de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma
morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”,
“recepção”, etc., coisa esquecida por cá). (PB33-1, destaques acrescentados)

No exemplo acima, constrói-se uma relação de assimetria, marcada pela vantagem


do Brasil. No entanto, a expressão “ainda mais absurda” parece fazer transparecer uma
relação de forças diferente. Embora o absurdo da situação possa estar relacionado com o
fato de haver diferenças, é possível interpretar esse aumento de intensidade “ainda mais”
como associado ao fato de ser o Brasil a preservar “alguma morfologia etimológica”,
quando tal papel deveria ser atribuído a Portugal. Essa interpretação é compatível com a
ideia de Portugal como matriz e do português europeu como sendo o mais correto e,
portanto, o padrão a ser seguido.

Consolidação da análise

Na análise das posições de força assumidas pelos ou atribuídas aos diferentes países
em situações de contato e comparação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de
assimetria (51,1%), ou seja, de situações em que são estabelecidas forças diferentes entre
os diversos interlocutores. Portugal, na grande maioria das vezes, ocupa o pólo fraco
dessas relações.
Embora diferentes países tomem parte nessas caracterizações, especialmente
aqueles envolvidos na discussão do tratado internacional sobre o acordo ortográfico, o

185
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Brasil se destaca como interveniente recorrente. Tal insistência é compatível com o


contexto de análise dos artigos sobre o AO: afinal, embora seja razoável esperar que a
língua portuguesa assuma contornos específicos em cada um dos países que a falam, em
geral são identificadas duas versões majoritárias entre os quatro países que reúnem o
maior número de falantes do Português – a versão brasileira (praticada no Brasil) e a
versão europeia (praticada em Portugal, Angola e Moçambique).
Nesse sentido, parece haver uma polarização maior entre Portugal e Brasil, que
decorre, pelo menos em parte, das maiores diferenças registradas entre o português falado
num e noutro país. Soma-se a isso o fato de Angola e Moçambique, à época da publicação
dos artigos, ainda não terem ratificado o AO, como já mencionado.
Essa análise corrobora, em alguma medida, a prevalência da ideia de que o AO90
seria mais benéfico para o Brasil do que para Portugal, partilhada por boa parte dos autores
que se opõem ao acordo – os quais respondem, em conjunto, por 77,8% do total de
sessenta e três artigos analisados.
Nas situações de simetria, ou seja, de equivalência de forças, houve um certo
equilíbrio entre as estratégias de construção de movimentos de divergência e convergência,
com relativa vantagem para a primeira – 52,2% contra 47,8% respectivamente. Mais uma
vez, o Brasil é o interveniente mais frequente, figurando em 91,3% das relações de simetria
– porcentagem superior, portanto, àquela verificada nas relações assimétricas, em que o
Brasil participa de 75% do total.
Deixando de lado a distinção entre relações comparativas simétricas e assimétricas
e considerando-se, assim, o total de noventa e quatro relações identificadas, o Brasil
aparece entre os intervenientes em 83% delas, ou seja, em setenta e oito do total de casos,
como indicado no Quadro 6.3.
Na perspectiva da construção das identidades nacionais, a valorização das
diferenças entre países – em simultâneo ao apagamento das mesmas no interior do espaço
nacional – configura um dos mecanismos mais básicos desse processo. No contexto
específico do AO90, porém, a aplicação dessa perspectiva identitária parece instituir uma
dualidade: por um lado, quer-se valorizar a identidade da língua, isto é, a noção de partilha
de algo comum entre os diferentes países de Língua Portuguesa, por outro, as diferenças
também precisam ser trazidas à tona – e valorizadas – num cenário em que um grupo de
países interage e negocia.
Além disso, no contexto de contato e negociação entre Estados nacionais, não
parece possível nem exequível manter-se o caráter nacional fora do debate. No entanto, tal

186
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

carácter, ao mesmo tempo em que atua como um importante elemento de valorização da


diversidade, também fomenta conflitos, os quais, a rigor, devem ser resolvidos num
contexto de paridade de forças, como requer o ambiente democrático.
Conclui-se, desse modo, a análise das relações de comparação estabelecidas entre
Portugal e outras entidades nacionais ou supranacionais no âmbito do debate sobre o
acordo ortográfico. Os principais resultados encontrados foram sintetizados no Quadro
6.19 e serão retomados no capítulo seguinte, em que toda análise de dados realizada nesta
segunda parte da presente pesquisa será contrastada com o desenvolvimento teórico
elaborado na primeira parte.

Relações Principais resultados


Simétricas ∙Ligeiramente menos frequentes (48,9%) do
que as relações assimétricas
∙Brasil como interveniente frequente (91,3%)
∙Quando o Brasil é o único interveniente,
prevalece a divergência (61,5%)
∙ Quando o Brasil é um dos intervenientes,
prevalece a convergência (59,25%)
∙Quando o Brasil não figura entre os
intervenientes, prevalece a convergência
(75%)
Assimétricas ∙Ligeiramente mais frequentes (51, 1%) do
que as relações simétricas
∙Brasil como interveniente frequente (75%)
∙Portugal ocupa, predominantemente, o pólo
fraco da relação de comparação (81,25%)
∙Em 66,7% dos casos em que Portugal ocupa
o pólo da força, divide essa posição com o
Brasil
∙AO como cedência de Portugal face ao
Brasil
∙Maior força econômica do Brasil em relação
a Portugal
∙AO como ameaça/risco ao português
europeu
∙Português europeu como o mais correto
Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo

187
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal

Síntese

Uma vez identificada a perspectiva de análise desenvolvida neste capítulo – o


estudo comparativo das posições ocupadas por Portugal em relação a outros países e
entidades nacionais e supranacionais –, passou-se à classificação de tais situações em
simples ou complexas. As relações identificadas foram separadas em duas categorias: uma
indicativa da paridade de forças entre os intervenientes – relações simétricas – e a outra
indicativa de um déficit ou de uma diferença de forças – relações assimétricas. As relações
simétricas foram ainda analisadas em função dos movimentos de aproximação e
afastamento construídos entre os intervenientes, sendo classificadas como convergentes e
divergentes respectivamente. Nas relações assimétricas, foram identificados os países que
ocupavam quer o pólo forte quer o pólo fraco. Considerando-se Portugal como o país de
referência, tais relações foram classificadas como de força/vantagem quando Portugal
ocupava tal posição e como de fraqueza/desvantagem quando tal não ocorria. Por fim, os
principais resultados foram sintetizados num quadro-resumo.

188
Capítulo 7
Reflexão final
A perspectiva dos marcadores identitários

A perspectiva das relações de comparação

Repercussões e desdobramentos
O recurso à língua como fator de identidade consistiu numa estratégia recorrente ao
longo do século XIX, especialmente a partir de sua segunda metade, na construção das
identidades nacionais na Europa. No entanto, neste início de século XXI, marcado pelos
processos de globalização e por profundas transformações do tecido social, no contexto da
modernidade tardia, resta saber se a relação entre língua e identidade nacional permanece – e,
se permanece, em que termos.
Neste capítulo, retoma-se os resultados da análise do corpus, desenvolvida na segunda
parte da pesquisa, especialmente nos dois capítulos anteriores, para, numa perspectiva
comparada e interessada, reavaliá-los a luz do enquadramento teórico-metodológico
elaborado na primeira parte. As teorias sobre os nacionalismos e sobre as identidades são
assim mobilizadas para dar sentido a – ou, ao contrário, para pôr em causa – os discursos e
representações identificados no exame dos artigos de opinião sobre o acordo ortográfico.
Como ponto de partida, traz-se novamente ao debate o conjunto de temas que
informam os chamados marcadores identitários, ou seja, elementos utilizados de modo
recorrente no processo de construção das identidades nacionais. Pátria, nação, soberania,
povo, cultura, identidade e matriz foram os conceitos assim identificados e que agora
retornam ao centro do debate sobre a relação entre língua e identidade nacional na Europa.
A seguir, retoma-se a análise das diferentes posições assumidas por e construídas para
Portugal nas situações de contato e contraste com outras entidades nacionais ou
supranacionais, realizada no capítulo seis. Procura-se, agora, constituir uma visão de
conjunto, que dê conta das perspectivas teóricas e das análises práticas e que revele os
diferentes discursos elaborados em torno da ideia de língua e identidade.
Por fim, concluída a análise comparada do recorte teórico-metodológico adotado e dos
resultados do estudo de caso, passa-se às reflexões finais sobre o tema central desta
investigação, ou seja, sobre o papel simbólico da língua na construção discursiva das
identidades nacionais. Esse esforço final implica a tentativa de se recontextualizar os
Reflexão final

discursos sobre língua e identidade num dado contexto espaço-temporal – a Europa deste
início de século – e de se refletir sobre possíveis ou potenciais repercussões e
desdobramentos.
O objetivo deste capítulo é sistematizar as reflexões e análises realizadas no decorrer
desta pesquisa, de modo a reunir e identificar as principais representações construídas em
torno da ideia de língua e de identidade nacional. Procura-se, assim, promover uma espécie de
mapeamento que – espera-se – possa contribuir para uma reflexão crítica e uma melhor
compreensão do tema.

A perspectiva dos marcadores identitários

Os primeiros elementos identificados como pertencentes à categoria de marcadores


identitários analisados neste estudo foram pátria e nação. Partindo-se do conceito de pátria,
em geral, os discursos construídos em torno dele estabelecem uma relação direta com a ideia
de língua. Na maior parte dos casos, entretanto, nega-se a interdependência entre um e outro,
ou seja, a associação entre língua e pátria é invocada para, logo a seguir, ser negada ou
contestada.
Considerando-se o viés argumentativo dos artigos de opinião, a insistência nesses
discursos de associação parece indicar a existência de uma crença ou, ao menos, de uma
expectativa partilhada de que a língua é indicadora ou reveladora da existência de uma pátria
a ela relacionada. Numa associação ainda mais elementar, tem-se a língua como constituidora
da ideia de pátria e definidora dos seus limites. Se tal não fosse verdade, não seria razoável
recorrer a esses discursos com tanta frequência apenas para negá-los. Por outro lado, essa
negação carrega em si mesma um indicativo ou uma tentativa de mudança; afinal, reconhece-
se a força do discurso, mas persiste a estratégia de resistência ou desafio a ele.
Assim como pátria, o conceito de nação também foi considerado nesta análise.
Embora ambos os termos, em determinados contextos, possam assumir significados bastante
próximos, parece interessante tentar delinear aqui possíveis diferenças entre eles. No contexto
da pátria, temos os cidadãos; no contexto da nação, temos o povo. Com tal associação
pretende-se reconhecer a existência de um acentuado viés político e de organização social
associado à ideia de pátria, onde a perspectiva da participação ou pertença é regulada por lei e
opcional, isto é, resulta de uma escolha, embora condicionada. Por outro lado, em relação à

192
Reflexão final

nação (em sentido estrito, excluindo-se, portanto, o conceito de Estado-Nação), a referência a


povo implica a noção de pertença, que decorre do nascimento, da ideia de etnia e origem e
que, por tal motivo, já não trata de questões de escolha ou opção, mas, sim, de
predeterminação.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, no contexto da pátria, a língua nacional
confunde-se com a noção de língua oficial; no contexto da nação, a língua nacional confunde-
se com a noção de língua materna. Mantém-se, assim, as mesmas distinções: pátria como
espaço marcado pela organização política e social, pela perspectiva da escolha e, sobretudo,
pela regulação da lei, e nação como espaço marcado pelas raízes, pelas relações familiares e
afetivas, pela predeterminação.
Se o esforço, acima esboçado, de caracterização e distinção entre pátria e nação fizer
algum sentido, pode-se pensar o conceito de pátria como estando interligado à ideia de
mobilização social e de ação política – talvez, por isso, tenha se verificado uma apropriação
mais direta do conceito de pátria (“minha pátria”, “nossa pátria”) do que de nação. Além
disso, na discussão sobre o acordo ortográfico, onde predominam artigos de oposição ao
mesmo, prevalece a incitação à ação: os opositores incitam à ação de resistência, à
mobilização de todos os descontentes com o acordo – haja vista a proposta da ILC-AO,
Iniciativa Legislativa de Cidadãos, contra a entrada em vigor do Acordo Ortográfico. Por esse
motivo, mais uma vez, a relação de associação direta entre língua e pátria parece mais
interessante do que com nação.
Nesse mesmo sentido e no que diz respeito à nação, em geral, a relação com a língua
não predomina, embora haja, excepcionalmente, algumas afirmações bastante fortes de
associação entre nação e língua, como referido no capítulo cinco. Parece haver também um
maior grau de abstração associado à nação em comparação com pátria, o que implicaria um
campo de significação maior para a primeira. Um indicativo dessa amplitude é a condição do
modificador nacional/is, cuja utilização é bastante alargada, o que explica, em boa parte, sua
frequência e a diversidade de associações (classificadas, nesta análise, em três campos
distintos: político-institucional, cultural e espacial, com predomínio do primeiro). De qualquer
modo, esse exercício de distinção entre pátria e nação serve apenas como estratégia de
reflexão, uma vez que, no âmbito deste trabalho, não se pode estabelecer com clareza as
linhas divisórias entre um e outro conceito.
Retomando a perspectiva histórica do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa,
especialmente o século XIX, destaca-se, agora, o processo concomitante e interdependente de
desenvolvimento das chamadas línguas nacionais e de definição das fronteiras, que parece

193
Reflexão final

alcançar alguma estabilidade – embora precária e relativa – na segunda metade do século XX,
após as duas grandes guerras. Esse é também o período de construção e afirmação das
culturas nacionais, que conduzem, na chegada do novo milênio, a uma comunidade europeia
de países com línguas e fronteiras definidas.
Mas, no exato momento em que essa fixidez e essa estabilidade parecem se tornar
realidade, elas começam a se desmoronar; afinal, o mundo segue em movimento. Agora são
as novas tecnologias de comunicação, os novos recursos de mobilidade, as novas relações de
força, as novas interdependências, os novos aliados e inimigos, novos valores e princípios e
uma nova organização geopolítica que emergem a partir dos diferentes processos de
globalização, no contexto desta modernidade tardia.
As fronteiras nacionais são postas em causa e transformadas, especialmente no âmbito
da União Europeia, assim como a noção de pureza e homogeneidade das línguas nacionais e a
valorização das línguas-padrão em detrimento de quaisquer outras. Num cenário de
mobilidade que se traduz, entre as várias formas possíveis, em acirramento dos movimentos
migratórios e de multiplicação das situações de contato e contaminação entre línguas, novas
políticas e novas teorias são desenvolvidas, muitas delas a favor da pluralidade e da
diversidade.
Nesse mesmo cenário, mas agora resgatando-se a associação entre língua e nação, que
se fez marcadamente presente nos nacionalismos europeus, alcança-se a perspectiva do
direito: o direito à língua confunde-se com o direito à nação. O recurso à língua como fator de
identidade e estratégia de homogeneização, que tanto beneficiaram o processo de construção
das nações, agora, se mantido, transforma-se em ameaça à integridade nacional, uma vez que,
no interior do território da nação, a diversidade linguística, sempre presente, ganha
notoriedade.
Consequentemente, num contexto marcado pela diversidade e pluralidade de línguas
convivendo num mesmo espaço nacional, o conceito de uma língua, uma nação precisa ser
revisto e transformado, o que implica a necessidade de tranformação da própria ideia de
língua nacional como sendo a língua materna de um determinado povo. Os discursos de
associação entre pátria, nação e língua começam a mudar – mas mudar leva tempo e há
sempre resistência. Os resultados do estudo de caso – com seus discursos de afirmação e
resistência à associação entre língua e pátria, por exemplo – parecem apontar nessa direção.
Outro tema que também se relaciona com os conceitos de pátria e nação e que foi aqui
analisado foi soberania. O conceito de soberania, tão caro aos discursos de afirmação dos
chamados Estados-Nação, tem sido rediscutido à luz do atual cenário social, político e

194
Reflexão final

econômico, caracterizado por uma crescente interdependência entre os Estados, associada aos
processos de globalização.
Em geral, não há representações que estabeleçam relação direta entre soberania e
língua; ela surge, por outro lado, associada à ideia de Estado ou governo, num contexto que
remete para perda ou enfraquecimento do poder estatal. Tais construções corroboram os
discursos atuais sobre a perda de soberania dos Estados no cenário internacional, e não só,
face a interdependência política, econômica e social associada à globalização, como acima
apontado.
Como ponto de partida, podemos entender soberania como sendo o poder de um país
de decidir o seu próprio destino, pelo menos teoricamente, sem intervenções externas ou
condicionamentos. É o livre arbítrio aplicado ao Estado-Nação. Na prática, no entanto,
sempre houve condicionamentos de natureza diversa – sejam eles diretos ou indiretos,
explícitos ou não. Nas sociedades ocidentais atuais, marcadas por uma intensa mobilidade,
pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e pela crescente interdependência
entre Estados, entre outros fatores, tais condicionamentos assumiram proporções de grande
vulto a ponto, talvez, de pôrem em causa a ideia de soberania em seus contornos originais.
Ainda no que diz respeito ao conceito de soberania, parece relevante fazer aqui uma
distinção entre duas perspectivas distintas. Por um lado, pode-se pensar a soberania no
contexto de perda ou enfraquecimento do poder ou da capacidade de um país decidir sobre um
certo tema por ter delegado tal poder, de forma voluntária e consciente, para os órgãos de
decisão colegiada da união europeia. Por outro, pode-se pensar a soberania no contexto de
perda ou enfraquecimento, porque um país, mesmo mantendo seu poder ou sua capacidade de
decidir, já não pode controlar ou conter a aplicação e/ou os resultados dessa decisão em
função de fatores externos a ele, mais uma vez associados aos processos de globalização e ao
desenvolvimento de novas tecnologias.
A questão da soberania perpassa a discussão do próprio projeto europeu, assim como
suas possibilidades de organização interna e sua imagem ou identidade no campo
internacional. Na condição de união entre países soberanos e distintos, é preciso definir de
quanto dessa soberania cada país deve abdicar a favor da unidade e como fazê-lo. Ainda hoje,
essa discussão vem sendo travada. No caso de Portugal, a pertença a uma entidade
supracional, como a União Europeia, parece tornar ainda mais evidente esse embate de forças
marcado pelos discursos de ameaça à ou perda de soberania.
Giddens (2014: 11), ao refletir sobre tais questões, ou seja, sobre os discursos de
perigo ou ameaça de perda de soberania, no âmbito da UE, alerta para o fato, difícil de

195
Reflexão final

contestar, de que não se pode falar em perda daquilo que já não se tem: “Não se pode entregar
aquilo que já está perdido. É escasso o poder que as nações detêm individualmente na cena
mundial”.
No contexto desta pesquisa, no entanto, não parece fazer sentido aprofundar essa
discussão. A rigor, o que importa ressaltar é que o AO90 representa um acordo entre
diferentes países, concretizado na forma de um tratado internacional, o que necessariamente
implica um jogo de forças e negociação de interesses entre países, remetendo para a questão
da soberania. O fato de o tema da soberania vir à tona no âmbito de um acordo internacional
sobre ortografia parece, ainda, reforçar, por si só, a imbricação entre língua, nação e
identidade nacional, mesmo que de forma indireta. Uma vez que o que interessa aqui é pensar,
como sempre, o papel simbólico da língua em sua relação com as identidades nacionais, a
perspectiva da perda da soberania ajuda a construir um cenário caracterizado pelo perigo e
pela ameaça, que agora pairam também sobre o conceito de língua, trazendo a discussão sobre
o AO para o campo da política e da afirmação nacional.
Por fim, a referência, embora única, à soberania cultural concorre para explicitar essa
relação com a língua, desdobrando-se na associação entre língua e cultura e, por sua vez, entre
cultura e identidade, temas que serão analisados mais à frente. Aqui, a relação que interessa é
aquela estabelecida entre soberania e identidade nacional, tendo a cultura como elo. Nesse
sentido, a ideia de soberania se estende para outros campos além da política, em outras
palavras, um país soberano deve assim o ser em todas as suas esferas de atuação.
Do mesmo modo que soberania, outro tema considerado na identificação dos
marcadores identitários foi o conceito de povo. Na análise das referências a povo, interessa
destacar principalmente os discursos de associação com a língua. Nessas representações, a
língua surge como elemento constituidor do povo ou revelador de uma certa etnia/origem. A
língua é também associada a um particular modo de viver e pensar, retomando a perspectiva
da língua como condicionadora de uma visão de mundo na esteira do pensamento de
Wittgenstein ou de Sappir e Whorf, como referido no capítulo três, ou da própria linguística
sistêmico-funcional, no seu princípio de que as línguas são estruturadas pelo uso e pelas
necessidades dos seus falantes.
Nesse contexto, parece haver uma espécie de fusão dos conceitos de povo, língua e
identidade, criando-se um amálgama onde já não é possível separar cada um desses elementos
com facilidade. Ampliando-se o conceito de identidade individual para o de identidade
nacional, a nação passa a figurar nessas relações, onde povo, língua e identidade conduzem ao
reconhecimento de uma nação, com tudo o mais que isso implica.

196
Reflexão final

A perspectiva patrimonial também é revelada em discursos que identificam o povo


como sendo o legítimo proprietário da língua e da nação e, portanto, aquele que detém
direitos sobre ela e sobre o seu destino. É bem verdade que as representações construídas em
torno de povo revelam relações de poder em que este ocupa, na maioria das vezes, o pólo
mais fraco. No entanto, tal situação não impede nem afeta o reconhecimento de que cabe a
esse mesmo povo o direito à língua/nação – afirmação que consiste, inclusive, num dos
fundamentos do discurso democrático.
Em resumo, retomando-se a relação entre povo, língua e identidade, os discursos e
representações construídos em torno dela envolvem questões de controlo, poder e
interdependência, num contexto em que, embora se atribua ao povo um conjunto de direitos
sobre a língua e a nação, tais direitos lhe são usurpados, ou seja, o povo, em permanente
situação de fraqueza ou debilidade, não pode, não sabe ou não é capaz de exercer os seus
direitos.
Partindo-se, outra vez, da perspectiva das teorias dos nacionalismos, pode-se pensar as
representações de povo face à importância atribuída à mobilização das massas nos
movimentos nacionalistas, para a qual concorre a criação e multiplicação dos símbolos
nacionais. Nesse contexto, a língua, como símbolo da nação, ganha destaque e importância,
sendo tal associação utilizada como recurso de sensibilização para o caráter identitário das
discussões sobre o AO90. Não se trata, portanto, de discutir apenas questões de ortografia,
mas sim de proteger uma certa identidade nacional.
A ideia de um povo fragilizado, sem vontade ou iniciativa, que alimenta boa parte das
representações construídas em torno dele, é, em alguma medida, consistente com a ainda
recente experiência ditatorial portuguesa e compatível com as reflexões e os cenários
delineados a partir de Gil (2008), Lourenço (1988) ou Sousa Santos (2001), discutidos no
capítulo quatro. Nesse sentido, os dados obtidos a partir do estudo de caso parecem confirmar
tais posições.
Vale também referir que, à luz dos atuais desenvolvimentos dos meios de
comunicação e das transformações sociais que são tanto origem como consequência dos
mesmos, essas relações de força são afetadas. Novas formas de manifestação e expressão são
colocadas à disposição das pessoas em geral – ou seja, do povo – num movimento que ainda
não se sabe se conduzirá a mudanças efetivas. De qualquer modo, o cenário desenhado a
partir do estudo de caso parece datado de alguma forma. No entanto, a partir dos dados
obtidos neste momento, não se pode especular mais do que isso.

197
Reflexão final

Passando-se à análise do conceito de cultura, como regra geral, persiste a associação


entre esta e a língua, que é, em geral, afirmada ou mesmo dada como certa logo à partida.
Língua e cultura são assim posicionadas numa relação direta, caracterizada pela
interdependência. Essa perspectiva parece condizer com as atuais teorias que exploram as
funções e capacidades da língua para além da comunicação ou da função comunicativa.
Os conceitos de língua e cultura são, assim, entretecidos a partir da ideia de que a
língua carrega em si mesma valores, princípios, visões de mundo, pensamentos e sentimentos
– em outras palavras, a língua implicaria um modo de ser e estar no mundo. Nesse sentido,
pode-se dizer que a língua carrega cultura – produz e é produzida por uma cultura, ou seja, é,
simultaneamente, criadora dessa cultura e sua criatura.
Levando-se em conta a afirmação acima, não surpreende o fato de, muitas vezes,
identidade e cultura serem utilizadas como sinônimos. Com a ampliação do conceito de
cultura – que encontra na definição da UNESCO, citada no primeiro capítulo, um bom
exemplo – e sua valorização, ela passa a ser um recurso frequente e cada vez mais relevante
no processo de construção de identidades.
Além disso, essa abertura ou ampliação do conceito de cultura também promove um
maior grau de abstração, alargando seu campo de significação e uso. Desse modo, atribui-se à
ideia de cultura maior elasticidade e flexibilidade, permitindo que ela seja utilizada em
contextos bastante diversos, com significados distintos. A cultura torna-se assim uma espécie
de vale-tudo, sendo mobilizada em discursos de natureza social, política, econômica, etc.,
como exemplificam as expressões cultura econômica, cultura política, soberania cultural,
cultura literária, cultura nacional entre tantas outras.
Nesse contexto de associação entre língua e cultura, uma eventual alteração da língua
provocaria uma alteração da cultura a ela relacionada, sendo tal mudança, em geral,
identificada como ameaça ou perigo. Levando-se em conta o contexto do AO, há várias
perspectivas a analisar aqui. Em geral, para os autores que se opõem ao acordo, a alteração
ortográfica prevista por ele implica alteração à língua e, portanto, configura ameaça à cultura
nacional. Para os que são favoráveis, no entanto, tal alteração, sendo meramente ortográfica,
não afetaria a língua propriamente dita e, muito menos, a cultura a ela associada.
Há, ainda, uma terceira via de argumentação que é construída a partir de
representações onde se afirma o caráter evolutivo da língua e sua constante transformação,
sem que tais mudanças sejam caracterizadas como negativas ou como uma ameaça. Afastam-
se, assim, ou relegam a um segundo plano, a questão da associação entre ortografia e língua e,

198
Reflexão final

consequentemente, a perspectiva de alteração da língua – assim como os supostos riscos e


perigos associados a ela – em decorrência da implementação do acordo ortográfico.
Se a associação entre língua e cultura é, regra geral, afirmada, não parece haver o
mesmo grau de concordância em relação à natureza dessa relação. A questão que permanece
aberta é, partindo-se da afirmação de que uma língua implica uma certa cultura, o que se pode
afirmar no contexto em que essa mesma língua é adotada por países diferentes, ou seja, em
contextos culturais ou nacionais distintos? De certa forma, o que se quer entender é se, e em
que medida, partilhar uma língua implica partilhar uma cultura. Tais questões estão
estreitamente relacionadas com a perspectiva da dispersão das línguas característica do
passado colonial europeu e são o ponto de partida de conceitos como lusofonia. No entanto,
como esta pesquisa tem seu foco no contexto europeu, importa analisar esses temas
unicamente na perspectiva de Portugal.
Em torno dessas questões, encontram-se representações concorrentes, que importa
destacar. Por um lado, há discursos que associam o português à cultura portuguesa e
explicitamente ignoram ou afirmam a irrelevância dos demais contextos. Trata-se de uma
visão que procura singularizar a relação entre língua e cultura, resolvendo a questão ao
delimitar seu campo espacial de ação unicamente a Portugal – portanto, não mais no contexto
internacional no qual opera o AO.
Por outro lado, há discursos construídos em sentido oposto, nos quais se afirma a
multiplicidade e a diversidade da relação entre língua e cultura. Nesse sentido, ganham
destaque e valor as diversas culturas que têm na língua portuguesa um ponto de contato, assim
como a variedade dos modos de apropriação da língua característicos de cada cultura ou país
que faz do português sua língua.
Focando-se na relação entre cultura e identidade nacional, em muitas das
representações construídas a partir da ideia de cultura, eventuais alterações a ela são
identificadas como risco, incitando ações de proteção e defesa dessa cultura, como já
mencionado acima. A noção que subjaz a esse entendimento é a percepção da cultura como
algo estanque, imóvel, bem definido e delimitado, como algo herdado do passado e dos
antepassados e que precisa ser preservado em sua integridade e pureza. Essa cultura é, assim,
fonte e matriz da identidade atual partilhada por um povo e digna de proteção.
A caracterização acima assenta, em geral, numa visão essencialista de cultura, que
entende o contato como contaminação e a mudança como perda ou deterioração. Trata-se de
uma cultura não apenas singularizada, mas também no singular, que não dá espaço para a
alteridade, não acomoda diferenças e não contempla a negociação. De certo modo, essa é a

199
Reflexão final

visão de cultura que se destaca – ideia reforçada pelo uso da palavra cultura sempre no
singular.
Assim como verificado na análise da relação entre povo e língua, a associação entre
cultura e língua também contempla a perspectiva patrimonial. Em tais discursos, a língua é
representada como um patrimônio ou bem cultural, muitas vezes dotado de valor econômico.
Em geral, verifica-se uma certa materialização dos conceitos de língua e cultura, em contraste
com a abstração que caracteriza tantos outros discursos, como estratégia de atribuição de
valor.
No contexto acima, quando a diversidade é realçada em tais construções,
invariavelmente surge como recurso de agregação de valor. É interessante observar também a
grande maleabilidade do argumento da diversidade, que se presta igualmente aos opositores e
aos defensores do acordo, como já referido no capítulo quatro. Em comum, todos afirmam seu
valor e, consequentemente, a importância e a relevância de se preservar tal diversidade.
Por fim, a relação entre língua e cultura também é utilizada como um valioso recurso
de construção das identidades nacionais, por todos os motivos já indicados acima. Mas, neste
momento, é a perspectiva da identidade, nas representações em que esta é explicitamente
nomeada, que interessa investigar e, mais especificamente, o papel simbólico desempenhado
pela língua nesse contexto.
Sobre o conceito de identidade, o primeiro ponto a destacar é que este surge
fortemente associado à ideia de língua. De modo geral, é em função dela que ele é articulado.
Se a cultura, como esperado, dada a amplitude de significados que incorpora, alcança maior
variedade de temas e contextos, entre os quais os da língua, o conceito de identidade é quase
que univocamente associado à língua no âmbito dos artigos de opinião sobre o AO.
Os discursos construídos em torno da ideia de identidade estabelecem relação direta
entre esta e a língua, em geral para afirmá-la. Entretanto, assim como na análise das
representações de cultura, verifica-se aqui uma tentativa de distinção entre língua e ortografia.
Em geral, quando tal distinção é feita, busca-se negar a relação entre identidade e ortografia,
ao contrário do que se verifica com a relação entre identidade e língua.
Como recurso de construção de identidades nacionais, a língua figura em posição de
relevo, constituindo por si só um fator de identidade. A língua é, assim, produtora, isto é,
geradora de identidades. Apenas como exemplo, considere-se a expressão língua materna,
que muitas vezes é utilizada como sinônimo da língua nacional em contextos onde a ideia de
homogeneidade e partilha de uma mesma origem ou etnia é reforçada no interior de uma
comunidade nacional – ou que se pretende nacional.

200
Reflexão final

A relação de filiação mobilizada pela referência à figura da mãe é bastante ilustrativa


das relações que se deseja invocar – não só de origem física, biológica e, portanto, natural,
como também afetiva. A língua, nesse sentido, é percebida como um elemento ou símbolo de
reconhecimento individual e coletivo, numa reafirmação do seu papel na construção de
identidades. Língua e identidade, associadas, contribuem para a percepção e partilha do
sentimento de pertença a uma dada comunidade ou grupo.
Novamente, assim como para cultura, também na relação entre língua e identidade
verifica-se uma tensão entre o singular e o plural, o individual e o coletivo. Na perspectiva
singular, uma identidade é associada a uma língua; na perspectiva plural, uma língua é
associada a várias identidades – e o inverso também poderia ser explorado, ou seja, a
construção de uma identidade singular a partir da pluralidade de línguas, mas essa hipótese
não é aqui aventada. Também a língua como recurso de construção de uma identidade
singular – a minha identidade – ou de uma identidade coletiva – a nossa identidade – é
articulada ao longo da argumentação em torno do AO.
De modo geral, no entanto, o que mais uma vez se afirma é uma visão essencialista
das identidades, que se faz presente na noção de risco associada a eventuais transformações
desse conteúdo identitário ocasionadas por mudanças à língua ou, mais precisamente, à
ortografia. Assim como no caso de cultura, também as referências à identidade aparecem
sempre no singular.
Retomando-se, em parte, os temas desenvolvidos no primeiro capítulo em torno do
conceito de modernidade tardia e da caracterização dos tempos atuais como sendo marcados
pela fragmentação e pelo fim das grandes narrativas com pretensão de universalidade,
interessa pensar sobre os valores e possíveis significados das perspectivas essencialistas
associadas, nesse contexto, especialmente à ideia de cultura e de identidade.
Talvez, nesse sentido, o apego aos essencialismos seja uma reação, uma tentativa de
se identificar pontos de apoio – supostamente fixos, imóveis e estáveis – em meio a tantas
transformações e mudanças, ou seja, uma estratégia de enfrentamento do medo da mudança
ou uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, parte desse processo gradual que não pode
ser contido ou imobilizado e que segue um ritmo próprio.
As representações marcadas pelo viés essencialista parecem reproduzir versões e
imagens cristalizadas do passado, sem que seja possível, no entanto, afirmar de forma
categórica se os seus autores defendem conscientemente tais perspectivas ou se repetem
fórmulas concebidas num contexto já bastante distinto daquele no qual são aplicadas. Em
outras palavras, não é possível dizer se o recurso à essência representa uma estratégia

201
Reflexão final

consciente de construção do presente ou o resgate de referências agora descontextualizadas,


isto é, resquícios de uma época que chega ao fim – e o mesmo se pode dizer dos
nacionalismos, tema que será abordado logo mais. O certo é que parece haver um embate de
forças entre discursos concorrentes, independentemente da posição dos respectivos autores
sobre o AO.
Em resumo, não se pode afirmar que os essencialismos sejam algo do passado e que
estejam condenados a serem superados ou substituídos por versões menos rígidas, isto é, por
conceitos com campos de significação mais amplos e maleáveis e, portanto, com maior
potencial de adaptação nas sociedades modernas, marcadas pela percepção de um movimento
constante, aceleração contínua e incremento e valorização da diversidade. Mas é possível, no
entanto, identificar em tais discursos semelhanças e continuidades com esse passado – resta
saber se isso faz parte do processo de mudança ou se é um fim em si mesmo.
Por fim, o último tema tratado sob a perspectiva dos marcadores identitários foi o
conceito de matriz, em relação ao qual verifica-se o predomínio das associações com a ideia
de língua. Nesse contexto, as representações construídas em torno de matriz identificam, na
maioria das vezes, a língua como sendo o elemento que primordialmente exerce tal função e,
portanto, como recurso privilegiado no processo de construção de identidades.
Partindo-se da relação estabelecida acima, pode-se pensar em perspectivas diversas
para as representações de matriz: matriz como origem, isto é, como ponto de partida, como
elemento a partir do qual outro se origina; matriz como molde ou modelo, isto é, como forma
ou estrutura utilizada para se reproduzir o objeto original ou produzir cópias dele; ou matriz
como controlo, isto é, como sede, como centro definidor dos fluxos de poder, controlo e
organização, como já brevemente referido no capítulo cinco.
Tais perspectivas parecem condizer com a ideia de língua como fator de identidade,
estendendo-se essa mesma analogia: identidade como origem, ou seja, como etnia, raiz,
história, memória; identidade como modelo, ou seja, como prescrição de um modo de ser e
agir, pensar ou mesmo sentir; identidade como controlo de acesso e exercício de poder, ou
seja, como pertença a um certo grupo, como estratégia de definição de critérios de
inclusão/exclusão, isto é, de definição de barreiras e linhas divisórias entre um eu e um outro.
A atribuição da função de matriz à língua, no contexto específico da língua portuguesa
e de Portugal, parece ser, em alguma medida, devedora do passado colonial, no qual se deu a
expansão da língua portuguesa: de Portugal para os países colonizados. Do mesmo modo, está
também associada a determinadas ideologias linguísticas, e não só, que entendem a pureza
como valor e a hibridez ou mestiçagem como desvalor. Nessa perspectiva, existe uma língua-

202
Reflexão final

matriz a partir da qual variações são derivadas, num processo que implica perda do valor
original de pureza, autenticidade, correção e rigor, distinguindo entre matriz (centro) e
variantes (periferia), por exemplo.
Adotando-se, no entanto, concepções alternativas ao conceito matriz/variantes, pode-
se entender as línguas como em permanente processo de transformação e mudança, motivadas
por outros contatos, vivências e contextos histórico-sociais. Nessa perspectiva, perde sentido a
tentativa de se definir claramente um ponto de partida e um ponto de chegada no processo de
evolução contínua das línguas, assim como de se estipular um ideal de pureza e correção a ser
seguido.
Apenas como exemplo, vale a pena retomar o seguinte excerto da citação já referida
no capítulo seis: “em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz
europeia” (em PB13-1). A opção pela locução verbal “aprender a falar”, independentemente
da intenção pretendida pelo autor do artigo, permite a construção de significados distintos:
transfigura o contexto colonial de imposição da língua portuguesa aos países colonizados ao
evocar o campo da educação e do aprendizado; parece pressupor uma certa incapacidade de
fala anterior ao contato com a língua portuguesa, promovendo, de certo modo, o apagamento
das línguas nativas; e, ainda, estabelece uma relação implícita de poder onde Portugal assume
o papel de quem ensina, ou seja, é identificado como o detentor de um saber/poder. Essa
interpretação – uma entre tantas possíveis – é, de certa forma, coerente com uma específica
imagem do colonizador, construída por e para Portugal, que parece ainda vigorar na
atualidade, apesar dos discursos em sentido contrário: a do bom colonizador empenhado numa
suposta missão civilizadora.
Embora o conceito de matriz não configure um elemento recorrente nos discursos
sobre os nacionalismos na Europa – muito possivelmente em função da associação de tal
conceito com o contexto colonial e, mais especificamente, com a relação entre colonizador e
colonizados, extrapolando, portanto, o espaço europeu –, as representações construídas em
torno de matriz e sua associação com a língua são compatíveis com as teorias sobre os
nacionalismos. A noção de língua como símbolo e matriz de identidade e cultura, destacada
no âmbito desta análise, é um bom exemplo disso.

203
Reflexão final

A perspectiva das relações de comparação

De modo geral, o recurso à comparação e ao contraste entre países é característico dos


processos de construção das identidades nacionais, como indicam as teorias analisadas nos
primeiros capítulos deste estudo – o contato com o outro e o esforço de se estabelecer e
afirmar diferenças entre países caracteriza os mecanismos de construção de um eu e de um
outro, tantas vezes referido. Nesse processo, como regra, as diferenças entre os diversos
grupos são realçadas, enquanto as diferenças internas ao grupo são sublimadas.
Identificação e diferenciação são, assim, movimentos distintos de um mesmo
processo. Nele, os valores atribuídos à identidade e à diferença podem variar em função das
representações que se pretende construir ou realçar: a diferença pode ser valorada como
positiva ou negativa, por exemplo, em função do contexto e das intenções de quem institui o
discurso, esboçando um jogo de forças que nem sempre se revela claramente.
No campo da argumentação, e especificamente em relação aos artigos de opinião aqui
analisados, a construção de identidade e diferença entre países distintos e a atribuição de valor
positivo ou negativo às mesmas configuram estratégias de persuasão e convencimento. Por
meio delas, são estabelecidas relações, muitas vezes complexas e quase sempre voláteis, de
forças e fraquezas, alianças e antagonismos.
Nesse sentido, não são raras as situações em que as diferentes possibilidades de
significação inerentes a certos discursos revelam equilíbrios de força distintos. Em tais casos,
o que, à primeira vista, parece indicar uma posição de fragilidade para Portugal, numa outra
leitura revela certa presunção de superioridade. Aliás, tal presunção, em certos momentos,
figura como elemento de construção da fragilidade inicialmente identificada, como já
analisado ao final do capítulo seis, nos comentários sobre DN09-1, DN17-4 e PB33-1.
Nas situações de comparação estabelecidas entre Portugal e outros países, o Brasil se
destaca como o interveniente mais frequente. Essa situação parece refletir a crença de que
Portugal e Brasil representam dois lados antagônicos no âmbito da discussão sobre o acordo
ortográfico, que seria, afinal, o resultado da vontade de ambos, com pouca ou nenhuma
participação dos demais países envolvidos. Em outras palavras, os tomadores de decisão, no
que diz respeito ao AO, seriam, portanto, Portugal e Brasil.
Seguindo o raciocínio acima, o predomínio das relações de assimeria traduzem a
disparidade de posições entre Portugal e Brasil, sendo o Brasil representado, quase sempre,
como detentor de vantagens. O acordo ortográfico supostamente seria mais benéfico para o

204
Reflexão final

Brasil do que para Portugal, pois implicaria uma aproximação indevida entre o português
europeu e o português falado e escrito no Brasil. A versão europeia da língua sairia
descaracterizada desse acordo ao sofrer um número maior de alterações ou, pelo menos, de
alterações mais significativas, em comparação com o Brasil.
Considerando-se o fato de que, em boa parte dos artigos analisados (77,5%), os
posicionamentos assumidos são contrários ao AO, a maior frequência das relações
comparativas assimétricas, onde Portugal ocupa o pólo fraco, não parece surpreender. Tal
conclusão decorre de a caracterização explicitada acima ser adotada preferencialmente pelos
autores que resistem ao acordo. Talvez por esse mesmo motivo, os cenários de ameaça, risco
e perigo, associados à língua portuguesa (especificamente ao português europeu) e às
identidades e culturas, sejam recorrentes.
Também nos casos em que Portugal ocupa o pólo da força, as representações acima
são mantidas. Em seis dos nove casos verificados, Portugal não aparece sozinho, mas sim
divide sua posição com o Brasil, como já discutido no capítulo anterior. Portanto, também
nesses casos, embora Portugal ocupe o pólo forte da relação de comparação, não consegue se
sobrepor ao Brasil, que, de modo geral, surge como o principal oponente de Portugal no
contexto do AO.
Retomando-se os principais argumentos mobilizados na construção de relações
comparativas assimétricas entre Portugal e o Brasil, temos: argumentos de cedência de
Portugal face ao Brasil, argumentos de maior força econômica do Brasil em relação a
Portugal, argumentos de proteção do português europeu e correção da língua e argumentos de
valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem.
Os dois primeiros argumentos reforçam a caracterização de vantagem para o Brasil e
desvantagem para Portugal, apontando para o suposto favorecimento do Brasil no âmbito do
AO. O terceiro argumento, ao contrário, coloca Portugal em posição de vantagem, embora
cercado por ameaças e perigo. Essa vantagem é configurada como superioridade ao se atribuir
ao Português europeu a primazia da correção da língua, que agora se vê ameaçada pelo AO.
Por fim, o quarto argumento critica a posição de Portugal, por ter ratificado o acordo, e
simultaneamente valoriza as posições de Angola e Moçambique, especialmente, por ainda não
o terem feito.
Nas relações simétricas, houve um relativo equilíbrio entre convergência (47,8%) e
divergência (52,2%), com ligeira vantagem para a segunda. Mais uma vez, o Brasil figura
como o principal interveniente. Também outros países de língua portuguesa são chamados ao

205
Reflexão final

debate e apenas excepcionalmente países que não têm o português como língua oficial são
identificados – neste caso, especificamente a Inglaterra e a França.
A incidência do Brasil como interveniente nas relações de simetria (91,3%) é
significativamente superior à verificada nas relações de assimetria (75%). No entanto, deve-se
levar em conta que algumas das relações de assimetria são construídas lado a lado com
relações de simetria que envolvem o Brasil ou mesmo no âmbito de situações comparativas
complexas nas quais o Brasil muitas vezes figura. Isso significa dizer que, mesmo estando
ausente de 25% das relações de assimetria, ainda assim se faz presente em parte delas quando
se olha para a situação comparativa como um todo.
Considerando-se apenas a relação entre Portugal e o Brasil nas relações simétricas, é
interessante destacar a diferença das estratégias adotadas quando o Brasil figura como único
interveniente ou como um dos intervenientes, como já referido no capítulo anterior. No
primeiro caso, prevalece a divergência, ou seja, Portugal e Brasil são representados em
paridade de forças, porém com destaque para aquilo que os difere e distingue. No segundo
caso, ao contrário, prevalece a convergência, ou seja, destaca-se agora o que Portugal e o
Brasil têm em comum, mas dessa vez no âmbito da interação e concorrência com os demais
intervenientes envolvidos na relação de comparação.
Mais uma vez, os dados confirmam a análise anterior, que indica a polaridade de
posições assumidas ou atribuídas entre Portugal e o Brasil, por um lado, e, por outro, a
igualdade de forças e posições entre diferentes entidades nacionais e supranacionais que
remetem para o ambiente democrático e para os discursos de valorização da lusofonia, isto é
daquilo que une e aproxima os diferentes países de língua portuguesa.
A questão da polaridade também é reforçada pelo fato de prevalecer a convergência
nos casos em que as relações de comparação simétricas são estabelecidas entre Portugal e
outros intervenientes, excetuado o Brasil. Mas também parece relevante o fato de essa
convergência, no cenário em que o Brasil surge ao lado de outros países e entidades, tirar o
foco da relação Brasil e Portugal. Em outras palavras, embora se estabeleça, em tais casos,
uma relação simétrica convergente entre Portugal e Brasil, essa é diluída pela multiplicação
dos intervenientes ou mesmo pelo recurso a representações em que o Brasil surge de forma
implícita, como nas expressões “países lusófonos” (PB26-04) ou “países onde a língua oficial
é o português” (SL02-2), por exemplo.

206
Reflexão final

Repercussões e Desdobramentos

Os argumentos de natureza identitária articulados nos artigos de opinião sobre o


acordo ortográfico e identificados nesta pesquisa permitem, à partida, uma associação entre
língua e identidade. Em alguns casos, essa associação é estabelecida de forma direta –
destacam-se, aqui, as representações que envolvem os conceitos de cultura e identidade –,
enquanto, em outros, a associação é indireta.
De modo geral, não parece haver dúvidas de que existe uma relação entre língua e
identidade, aqui entendidas em sua amplitude. A língua figura em diversas representações
como recurso de construção, afirmação, visibilidade, comprovação e valorização de uma certa
identidade nacional, fruída de modo individual ou coletivo. Mas será que se trata dos mesmos
discursos do século XIX?
Mesmo que se conclua pela afirmação das semelhanças entre os discursos que
relacionam língua e identidade nacional no passsado e hoje, não parece razoável afirmar que
não houve mudança, uma vez que os conceitos de língua e identidade foram, por sua parte,
transformados. Nesse sentido, por mais que a associação se mantenha, seu potencial de
significação é, necessariamente, alterado.
Essa alteração se faz presente, entre outras situações, na concorrência entre os
discursos resgatados do passado e os discursos da modernidade, ambos trazidos à arena de
debates no contexto atual. A perspectiva da língua como símbolo de identidade é um bom
exemplo de discurso resgatado do passado que ainda se mantém atual e, a princípio, parece
mesmo inabalável. O que muda é a percepção das identidades, que cada vez mais,
apresentam-se no plural, sendo representadas como múltiplas ou fragmentadas, num contexto
de concorrência e competição. O mesmo se dá com o conceito de língua, que também ganha
flexibilidade e se multiplica em língua materna, língua nacional, língua culta, norma padrão,
língua minoritária, língua franca, segunda língua, etc.
O que parece resultar disso? Se a associação entre língua e uma certa identidade
permanece, essa “certa identidade” é que parece perder, em parte, sua força ao ter de
concorrer com uma série de outras identidades que podem ou não se sobrepor a ela em
contextos diversos. Mais ainda, de qual língua se trata?
A partir de Castells (2007), em sua reflexão sobre o poder da identidade, se construir e
atribuir valor a certas representações de identidade implica exercício de poder e se o poder, na
atualidade, é o poder da comunicação, este parece adquirir novas formas e inspirar novos

207
Reflexão final

problemas. O foco do debate parece se deslocar de questões de redistribuição de poder para


questões de fluidez e mobilidade nesta sociedade em rede.
Em certa medida, os discursos configuram quadros de referência, isto é,
enquadramentos, e assim estruturam pensamentos e modos de pensar de tal forma que,
mesmo quando tais discursos passam a ser excluídos ou recusados (ou quando o contexto ao
qual tal discurso está imbricado deixa de existir) esse enquadramento, como referência, ainda
persiste. É preciso tempo para a transformação, mas esse tempo passa em velocidades
diferentes. Vivemos vários tempos ao mesmo tempo, em simultâneo – e o mesmo pode ser
dito em relação ao espaço, como bem exemplificam Krzyzanowski e Galasinska:

(…) although long-rejected as a political system, communism still persists as a dominant


intellectual ideology evidenced in these personal accounts. Thus, it is argued that, despite being
eradicated in the public domain, communism still provides the ideological framework within
which the private/semi-private discourses of new realities are constructed. (Krzyzanowski e
Galasinska, 2009: 16).

Se é verdade que ainda repetimos os discursos de afirmação nacional do século XIX,


também é verdade que há muitos outros discursos que concorrem com eles: alguns em
contestação, outros em relativização. Cada vez mais, esses discursos tornam-se plurais, até
porque, nas sociedades de hoje, sobretudo nas democráticas, mais vozes se fazem ouvir, em
parte em função da multiplicação do acesso à educação e do desenvolvimento de novos meios
e formas de comunicação.
Em resumo, apesar da declaração do seu fim, a ideia de nação e as fidelidades que ela
desperta ainda parecem muito presentes, mesmo neste cenário de acentuada e abrangente
transformação. Tampouco se pode esquecer que as nações, como ainda as conhecemos, foram
construídas ao longo de mais de dois séculos – não parece razoável, portanto, esperar que
desapareçam em três ou quatro décadas.
Ao refletir sobre as nações e os nacionalismos neste início de século, Castells (2007:
32) afasta a sentença de morte decretada para afirmar que a globalização, longe de levar os
Estados-Nação à morte, promove o seu ressurgimento. É bem verdade que já não se trata mais
dos antigos Estados-Nação, nascidos na era Moderna – estes, sim, entraram em crise –, mas
de uma nova forma de Estado: o Estado em rede. As nações de hoje, embora não detenham o
mesmo poder que detinham nos moldes do passado, seguem exercendo influência (idem:
357).

208
Reflexão final

O Estado em rede, ainda segundo Castells (2007: XXI), seria caracterizado por fazer
parte e atuar numa abrangente rede de interações com outros Estados, governos, instituições,
entidades e organizações em diversos âmbitos: locais, internacionais, regionais, globais.
Nesse contexto, a sociedade civil, organizada local e globalmente, também desempenharia
papel relevante, assumindo posições distintas no embate de forças que marca o tecido social:
ora atuando em parceria ora em resistência às posições assumidas e defendidas pelo Estado.
Nesse contexto, o Estado regressa à cena global assumindo novas formas de
organização, de produção e exercício de poder e, também, novos princípios e estratégias de
legitimação (Castells, 2007: 358). No que diz respeito aos nacionalismos, portanto, não se
trata de apregoar o seu fim – afinal, não é necessário ou mandatório que acabe –, mas sim de
estabelecer e/ou reconhecer, em alguma medida, novas relações de forças, que parecem ainda
não se ter estabilizado.
Aceita a premissa de que o conceito de nação, longe de se ter exaurido, segue vivo,
embora em transformação, parece razoável assumir que a própria noção de identidade
nacional – seu possível conteúdo, mas também seu prestígio e relevância – é também
transformada. No campo das identidades nacionais, instaura-se uma concorrência maior de
identidades e identificações, onde diferentes elementos são mobilizados e/ou descartados ao
longo de processos de construção de identidades cada vez mais complexos, instáveis e
temporários, mas, nem por isso, menos intensos.
Essa mesma situação se verifica no contexto do nacionalismo linguístico, por
exemplo, num cenário em que línguas se multiplicam e já não podem ser contidas em espaços
físicos pré-determinados, como o dos antigos territórios nacionais, com suas fronteiras e
controlos rígidos.
O poder das redes globais e, especialmente, da mídia global, que demanda o
desenvolvimento e a circulação de uma língua comum, representa um desafio para as
identidades singulares, como defende Castells (2007), e o mesmo parece se dar com as
identidades nacionais. A língua, cada vez mais, aproxima-se do conceito de cultura,
assumindo o papel de expressão da mesma e atuando, muitas vezes, como o “reduto do
significado identificável”, nas palavras do autor (idem: 65).
Habermas (2004: 80), ao refletir sobre os nacionalismos hoje e, mais especificamente,
sobre as tensões e transformações da relação entre Estados no âmbito da União Europeia,
também destaca a perda da estabilidade das identidades coletivas, que, ainda segundo o autor,
ocorre juntamente com a perda de capacidade de ação dos Estados, pressionados por uma
sociedade mundial cada vez mais dirigida por parâmetros econômicos.

209
Reflexão final

Em resumo, nesse cenário de transformações acirradas e rápidas, a língua segue


representando um porto seguro, isto é, uma referência cultural importante e um excelente
substrato para a construção das identidades. Mas, por outro lado, perde parte de sua primazia
ao passar a atuar num ambiente de forte concorrência com outros elementos de identificação –
e, de forma significativa, com outras línguas. A associação entre uma língua e uma nação
parece perder sua rigidez com a valorização, não mais de uma única língua, mas sim de um
repertório linguístico, que representa – e também propicia – um espaço ampliado de atuação e
interação nas sociedades de hoje.

Síntese

Neste capítulo, resgatou-se os principais conceitos teóricos apresentados e discutidos


na primeira parte desta pesquisa para, em função deles, refletir sobre os dados obtidos na
análise realizada na segunda parte. Em primeiro lugar, foram discutidos os temas
identificados no âmbito dos marcadores identitários: pátria, nação, povo, soberania, cultura,
identidade e matriz. A seguir, passou-se à reflexão sobre as relações de simetria ou assimetria
estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e/ou supranacionais. Por fim, num
esforço final de sistematização da análise, procurou-se identificar algumas das principais
representações construídas em torno da ideia de língua, em sua perspectiva simbólica, e de
identidade nacional na Europa de hoje.

210
Conclusão
Os conflitos e tensões que marcaram esses últimos anos envolvendo Ucrânia, Crimeia
e Rússia, a crise dos refugiados sírios e a polêmica em torno da construção de novos muros na
Europa, a entrada em cena do autoproclamado estado islâmico e, mais recentemente, as
disputas entre Rússia e Turquia parecem indicar que as nações e os nacionalismos continuam
em voga nesse início de século XXI e que ainda são capazes de mobilizar e inspirar pessoas e
jusitificar ações e decisões, se não drásticas, no mínimo, polêmicas.
No âmbito desta pesquisa, procurou-se refletir sobre os nacionalismos na Europa de
hoje, mas numa perspectiva bastante estrita: a do papel simbólico da língua na construção das
identidades nacionais, com foco num caso particular – o de Portugal – e num contexto
específico – o da discussão em torno do acordo ortográfico de 1990, concretizado num tratado
internacional assinado pelos diferentes países de Língua Portuguesa.
Como ponto de partida, foram trazidas à discussão algumas das atuais teorias sobre as
identidades em geral e as identidades nacionais em particular, especialmente no âmbito da
modernidade tardia, com todas as transformações a ela associadas. Entre outros temas,
procurou-se destacar os contrastes entre visões essencialistas e não essencialistas das
identidades, aqui entendidas como resultantes de processos, incessantes e sempre inacabados,
de construção.
A seguir, buscou-se identificar o papel da língua na construção das identidades
nacionais no contexto das teorias do nacionalismo ou, mais especificamente, no campo do
nacionalismo linguístico. Deu-se destaque ao potencial simbólico da língua nesse processo. A
relação entre língua e cultura também foi explorada. Por fim, o contexto europeu do
multilinguismo foi resgatado num esforço de reflexão sobre a possibilidade de construção de
identidade no cenário de multiplicidade de línguas.
Para concluir essa primeira parte da pesquisa, foram expostos os fundamentos teórico-
metodológicos que serviram de base e justificativa para a análise de dados. O conceito de
Conclusão

discurso, na acepção do Foucault, atuou como uma importante diretriz para se delinear a via
da construção discursiva, adotada neste trabalho. A análise crítica do discurso foi apresentada
e discutida em linhas gerais, uma vez ser essa a perspectiva que rege este estudo, na
abordagem da linguística sistêmico-funcional.
Uma vez delimitado o campo teórico e esclarecida a metodologia, passou-se à análise
de dados, que dá início à segunda parte deste trabalho. Uma breve contextualização da
história de Portugal e alguma reflexão sobre a situação atual serviram de introdução. A seguir,
a escolha do corpus – artigos de opinião sobre o AO90 publicados nos jornais portugueses –
foi explicitada e justificada. Os principais argumentos mobilizados foram identificados e
mapeados e as perspectivas de análise escolhidas foram indicadas.
A seguir, passou-se à análise propriamente dita, com a identificação e análise dos
marcadores identitários. Pátria, nação, povo, soberania, cultura, identidade e matriz foram os
temas explorados. A segunda etapa da pesquisa concentrou-se na identificação das diferentes
posições assumidas por ou atribuídas a Portugal no contato com outras entidades nacionais ou
supranacionais.
No final, promoveu-se uma reflexão sobre o caráter identitário da argumentação em
torno do AO90 em Portugal a partir da contraposição da parte teórica e da parte analítica
desenvolvidas até aqui. O objetivo dessa sistematização final foi explorar algumas das
perspectivas e possibilidades da língua, em seu viés simbólico, na construção dos
nacionalismos europeus hoje e na construção de uma certa identidade europeia.
Entre os resultados mais determinantes, destacam-se a persistência da associação entre
língua e identidade (onde a perspectiva da cultura desempenha papel relevante e onde
parecem ainda persistir e resistir certas visões essencialistas), mas num contexto marcado pela
multiplicação de discursos concorrentes que indicam, de certo modo, um forte potencial de
mudança e transformação. Tambem as relações de poder, entrelaçadas com a ideia de posse,
propriedade e correção da língua, concretizam-se em estratégias de inclusão e exclusão,
aproximação e afastamento, construção de posições de força e fraqueza ou, ainda, na
caracterização de cenários de risco e ameaça.
Em resumo, o papel simbólico da língua como recurso de construção de identidades
nacionais permanece, mas não se mantém inalterado; pelo contrário, pressionado e contestado
por discursos concorrentes e por visões não essencialistas da relação entre língua e identidade,
esse papel se transforma para se adaptar às novas realidades, marcadas pela multiplicação das
identidades, que, em geral, perdem gradualmente sua rigidez e fixidez, e pela multiplicação
das línguas, agora engajadas em novas relações de poder e prestígio.

214
Conclusão

Nesse contexto, o projeto europeu, com sua aposta no multilinguismo e seu esforço de
construção de uma ou várias identidades para a Europa, parece representar uma espécie de
posto privilegiado de observação – privilegiado não por ocupar uma posição de relevo ou
singular importância, mas sim por ter oficialmente assumido e colocado em prática o
multilinguismo – como política e como princípio – na construção de um organismo que se
pretende, de algum modo, supranacional.
Partilhando a posição de Wodak (Wodak et al, 1999: 9), em seu esforço por lançar
alguma luz sobre o caráter dogmático e essencialista do conceito de nação, que dificulta ou
até mesmo impede a coexistência – em paridade e igualdade – entre pessoas de origens,
religiões e línguas diferentes, neste estudo procurou-se destacar o caráter dogmático e
essencialista das identidades nacionais, em especial no que diz respeito ao recurso à lingua em
seu processo de construção.

215
Apêndices
Apêndice A

Artigos de opinião sobre o Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa de 1990

Código Jornal Título Autor Data Posição


DN01 Diário de Notícias Em defesa dos espetadores Ferreira Fernandes 02.01.12 AFAVOR
DN02 Diário de Notícias A grande loja irregular / "Adeus, português" Alberto Gonçalves 08.01.12 CONTRA
(Des)Acordo Ortográfico separa os "marquisards" dos
DN03 Diário de Notícias Oscar Mascarenhas 21.01.12 AFAVOR
"vende-pátrias"?
DN04 Diário de Notícias O Acordo Ortográfico é inconstitucional? Jorge Bacelar Gouveia 08.02.12 AFAVOR
DN05 Diário de Notícias Intimação ao Professor Malaca Vasco Graça Moura 08.02.12 CONTRA
O chamado 'novo acordo ortográfico': um descaso José de Faria Costa e Francisco
DN06 Diário de Notícias 13.02.12 CONTRA
político e jurídico Ferreira de Almeida
DN07 Diário de Notícias A língua e a sua escrita Mário Bacelar Begonha 15.02.12 CONTRA
DN08 Diário de Notícias Vocês sabem o que é o 'modus operandi'? Ferreira Fernandes 20.02.12 ND
DN09 Diário de Notícias Questões do Estado de Direito Vasco Graça Moura 22.02.12 CONTRA
DN10 Diário de Notícias Aristocracia ortográfica João Cesar das Neves 27.02.12 ND
DN11 Diário de Notícias O caso Krugman Alberto Gonçalves 04.03.12 CONTRA
DN12 Diário de Notícias A opção Vasco Graça Moura 07.03.12 CONTRA
DN13 Diário de Notícias Afirmar o português no mundo Acácio Pinto 19.03.12 AFAVOR
DN14 Diário de Notícias A suspensão Vasco Graça Moura 11.04.12 CONTRA
DN15 Diário de Notícias O Acordo Ortográfico: inútil e prejudicial Anselmo Borges 14.04.12 CONTRA
DN16 Diário de Notícias Bloco de notas Joel Neto 10.07.12 CONTRA
DN17 Diário de Notícias O Acordo, outra vez Vasco Graça Moura 21.11.12 CONTRA
EX01 Expresso Antiga Ortografia Pedro Mexia 10.01.12 CONTRA
EX02 Expresso O cantinho de Vasco Graça Moura Daniel Oliveira 06.02.12 ND
EX03 Expresso A coerência, a coragem e a dignidade Miguel Sousa Tavares 11.02.12 CONTRA
EX04 Expresso O Acordo 20 anos depois Henrique Monteiro 22.02.12 AFAVOR
Apêndice A

Código Jornal Título Autor Data Posição


EX05 Expresso O impossível acordo António Guerreiro 01.03.12 CONTRA
EX06 Expresso Acordo ortográfico e bocejo… José Alberto Quaresma 05.04.12 CONTRA
Não é aceitável dar-se ordem para desrespeitar o
SL01 Sol Pedro Santana Lopes 13.02.12 AFAVOR
Acordo Ortográfico
SL02 Sol Acordo ortographico José António Saraiva 20.02.12 AFAVOR
SL03 Sol O pior ataque à língua portuguesa José Cabrita Saraiva 20.11.12 AFAVOR
CM01 Correio da Manhã Paradoxo ortográfico Rui Pereira 26.01.12 ND
CM02 Correio da Manhã E as crianças, senhores? Victor Bandarra 19.02.12 CONTRA
PB01 Público Velho do Restelo', e com muito orgulho! Octávio dos Santos 15.01.12 CONTRA
PB02 Público Onde para o acento? Nuno Pacheco 23.01.12 CONTRA
PB03 Público Um acto político de empobrecimento cultural Luís Lobo 03.02.12 CONTRA
PB04 Público Grande Vasco Miguel Esteves Cardoso 06.02.12 CONTRA
PB05 Público Consoantes mudas ou colunistas surdos? Manuel Villaverde Cabral 10.02.12 CONTRA
PB06 Público Uma lança de África Nuno Pacheco 14.02.12 CONTRA
PB07 Público (Des)acordo ortográfico Joaquim Jorge 22.02.12 CONTRA
PB08 Público O AO90 está em vigor? Onde? Paulo Jorge Assunção 26.02.12 CONTRA
PB09 Público Dermatologia e resistência silenciosa Franciso Miguel Valada 29.02.12 CONTRA
PB10 Público Eterno desacordo Pedro Lomba 01.03.12 ND
PB11 Público Cor-de-rosa laranja Rui Cardoso Martins 04.03.12 ND
PB12 Público Pois é: antes fosse mentira Nuno Pacheco 01.04.12 CONTRA
PB13 Público A desmontagem do 'facto consumado' Teresa Cadete 08.04.12 CONTRA
PB14 Público abril com caixa baixa Nuno Pacheco 22.04.12 CONTRA
PB15 Público Os nomes dos meses: Abril na CPLP Franciso Miguel Valada 30.04.12 CONTRA
PB16 Público A acta do cidadão Mendes Bota 03.05.12 CONTRA
PB17 Público É agora que nos vamos ver livres da receção? Nuno Pacheco 13.05.12 CONTRA
PB18 Público Aventuras herbáceas e erros de podar Nuno Pacheco 03.06.12 CONTRA
PB19 Público A persistência do caos ortográfico Franciso Miguel Valada 26.06.12 CONTRA
Apêndice A

Código Jornal Título Autor Data Posição


Carta Aberta aos Governos de Angola e de
PB20 Público António de Macedo 16.07.12 CONTRA
Moçambique
PB21 Público Ortografia no verão Hermínio Castro 05.08.12 CONTRA
PB22 Público Malefícios do ensino do Português Maria do Carmo Vieira 08.08.12 CONTRA
PB23 Público Um pouco mais de rigor, sff Franciso Miguel Valada 11.08.12 CONTRA
PB24 Público Eurofonia' e lusofonia, a mesma farsa Nuno Pacheco 12.08.12 CONTRA
PB25 Público A razão das raízes Rui Miguel Ventura Duarte 17.08.12 CONTRA
PB26 Público Esquisso do acordista António Fernando Nabais 18.08.12 CONTRA
PB27 Público Evolução artificial imposta por decreto Pedro Afonso 23.08.12 CONTRA
PB28 Público O petróleo desta nossa relação Nuno Pacheco 02.09.12 CONTRA
PB29 Público Sou espanhola e sou contra o AO90 Rocío Ramos 07.09.12 CONTRA
PB30 Público A recepção da recessão Rui Miguel Duarte 29.09.12 CONTRA
PB31 Público O Acordo Ortográfico e a tradução para português Paula Blank 28.10.12 CONTRA
PB32 Público Contra fatos: os argumentos Franciso Miguel Valada 13.11.12 CONTRA
PB33 Público Foi você que pediu o acordo ortográfico? Jacinto Pascoal 10.12.12 CONTRA
PB34 Público Alegria breve ou a língua de Pandora Nuno Pacheco 16.12.12 CONTRA
PB35 Público Processo Retro-ortográfico Sem curso Octávio dos Santos 26.12.12 CONTRA
Apêndice B

Análise dos Marcadores Identitários

Quadro Geral – Total de ocorrências por grupo:

Matriz 9

Identidade 9

Povo 20

Cultura 43

Soberania 5

Nação 21

Pátria 13

0 10 20 30 40 50
Apêndice B

Grupo Pátria

Palavras pesquisadas: Pátria/s - Patriotismo - Patriotística/s - Patriota/s - Patriótico/a/s

Relação Pátria x Língua


Nº Clipping Recorte Não Estabelece
Estabelece Afirma Nega
1 escândalos fátuos com que a pátria sazonalmente se entretém. Eu também me confesso e 1
proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a
2 minha língua é. 1
que se escrevia no século xix. a língua mudou e a pátria, obviamente, não acabou. o meu nome
3 de família es 1
não cabem neste espaço. portugal continua a mesma pátria, apesar de já não se escrever como
4 no tempo do de 1
s seria uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma
5 política comum, 1
orma como aprendemos a escrever e a falar a nossa pátria “pessoana”. As sondagens à opinião
6 pública parece 1
7 (Des)Acordo Ortográfico separa os "maquisards" dos "vende-pátrias"? 1
"maquisards" da ortografia, oposto aos desavergonhados "vende-pátrias" que aceitam
8 submissamente o império 1
h', porque assim lhes ensinaram - e não eram mais patriotas que eu, nem eu mais do que
9 eles...". Remata a lei 1
, diz a leitora, "a ortografia nada tem a ver com patriotismo (...): a minha mãe sempre escreveu
10 mãe com 'i'; o 1
ncesismo. Também tenho direito ao meu quinhão de "patriotismo" e sempre aproveito para
11 homenagear o primeiro do 1
sta questão está entrelaçada com conceções quase "patriotísticas", permita-se-me esta
12 "desfiguração": parece exist 1
Apêndice B

A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força . Eu vou continuar a escrever
13 como antigamente. 1
2 3 8
Relação Pátria x Língua Nº 2 11
Não estabelece relação
2 13
Estabelece relação Afirmativa 3
11
Negativa 8
Total 13

Grupo Pátria – Total de ocorrências:

Patriótico 1

Patriotísticas 1

Patriotismo 2

Patriotas 1

Pátria/s 8

0 2 4 6 8 10
Apêndice B

Grupo Nação

Palavras pesquisadas: Nação/ões - Nacional/is - Nacionalmente

Nº Clipping Recorte Sentido-Significado


ítico e jurídico Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços
1 Abstrato
políticos e econ
ados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação. A democracia moderna baseia-se na
2 Abstrato
representaçã
s meses em 1976 não habilita ninguém a conduzir a nação através de uma coluna no New York
3 Portugal
Times. É verdad
uesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa não o fez da mesma
4 Brasil
maneira e quando
al tem tantas excepções no Brasil, precisamente a nação com mais falantes de português. A
5 Brasil
fraca implantaç
Portuguesa" ou qualquer outra - e indigna de uma nação do Velho Continente a alteração
6 Portugal
leviana de algo t
Nº Clipping Recorte Classificação
ou três evidências, a saber: 1) a classe política nacional é, salvo escassas excepções, um
7 Político-Institucional
entreposto de maç
tuições ou indivíduos não aderir a uma legislação nacional se esta não lhes agrada? Eu posso
8 Político-Institucional
não aderir ao I
s que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa escrita
9 Cultural
não é a de Gil Vicen
al é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional típica é de confiança em elites,
10 Cultural
especialistas, l
de acautelar as implicações no sistema educativo nacional. O AO continua a ser avaliado, para
11 Político-Institucional
que “no caso
essa coisa sem nome em todos os sectores da vida nacional, em especial no escolar. Também é
12 Político-Institucional
possível que o
Apêndice B

stil. acordo ortográfico é do mais alto interesse nacional não tenho qualquer hesitação em
13 Espacial
afirmar que é do
hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este acordo seja assumido por
14 Político-Institucional
toda a comunida
nte oportunidade de vincar o sentido do interesse nacional e de demonstrar a sua
15 Político-Institucional
solidariedade com o governo
to de passar a haver "no interior do mesmo espaço nacional duas grafias, conforme a oscilação
16 Espacial
da pronúncia.
ransformação tão profunda e fundamental de âmbito nacional? Não fui eu, de certeza, nem a
17 Espacial
generalidade dos p
xcelente para ocultar as verdadeiras dificuldades nacionais. O caso Krugman A cada dia, nos
18 Político-Institucional
vários cantos da
internacional e muito menos nas ordens jurídicas nacionais… Agora ficou claro que este
19 Político-Institucional
entendimento é pacífi
e a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição
20 Político-Institucional
ortográfica vigente
ultimamente, esta arte. Os mais ousados artistas nacionais, aliás, até a fazem de venda nos
21 Cultural
olhos, como nos

Grupo Nação – Total de ocorrências:

Nacional/is 15

Nação 6

0 5 10 15 20
Apêndice B

Grupo Soberania

Palavras pesquisadas: Soberania/s - Soberano/a/s

Nº Clipping Recorte Caracterização


rídico Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e
1 DN06 Contexto de risco ou perda
económicos de inte
a defesa de que a decisão tomada pelos órgãos de soberania, mais do que científica,
2 PB03 Contexto político
socialmente relevante ou
onómico que prevalece e, mais uma vez, a perda de soberania que sobressai. O que pode
3 PB03 Contexto de risco ou perda
justificar que a impos
dos monopólios editoriais, sem jogos sinuosos de soberania ou de limitação de actuação. É
4 PB33 Contexto de risco ou perda
essencial não se j
ão alteráveis e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países
5 PB35 Contexto cultural
africanos de lín
Apêndice B

Grupo Povo

Palavras pesquisadas: Povo/s - Popular/es - Popularmente

Nº Clipping Recorte Tipo de relação


, linguagem conceptual e a lógica abstracta. Um povo é uma comunidade de língua e de
1 DN07 Agência
cultura, independ
a do novo acordo ortográfico, feito nas costas do povo, ou pelo menos de todos os letrados do
2 DN07 Atribuição
País, já q
vem oficial miliciano subiu ao Unimog, cercado de povo, e falou como sabia, oco: "Vocês sabem
3 DN08 Agência
o que é o
elite progressista do partido. Ambas consideram o povo incapaz, necessitando de orientação. O
4 DN10 Agência
próprio po
vo incapaz, necessitando de orientação. O próprio povo está de acordo, ansiando por chefes
5 DN10 Agência
salvadores ou
scrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por academias e imposta
6 DN10 Atribuição
por lei só
das nos últimos seis anos no direito de impor, ao Povo que as elegeu, regras que dois terços dos
7 PB03 Endereçamento
portugu
da uma língua por decreto, contra a vontade de um povo e contra a maioria de pareceres
8 PB07 Atribuição
técnico-científic
is universais da luz e dos prismas, explicados ao povo na base da amizade… “suponho que o
9 PB11 Endereçamento
meu amigo já v
isto, das idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta
10 PB25 Atribuição
grande fa
contra um século democrático em que a língua é do povo. Não será estranho, amanhã,
11 PB26 Atribuição
encontrar o acordista
atimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos
12 DN06 Atribuição
últimos r
Apêndice B

o as grafias consideradas adequadas para todos os povos da lusofonia, torne finalmente


13 DN06 exequível o clausu Endereçamento
também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Cedemos?
14 EX04 Não sei, nem me i Atribuição
as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as escrevem pensam.
15 PB25 As línguas e a Agência
uas devem evoluir ao ritmo do uso que lhes dão os povos que as utilizam para a sua
16 PB29 comunicação e nunca se Agência
Nº Clipping Recorte Caracterização
Contexto do saber:
17 PB06 istiu a via erudita e a via popular. Do ‘português tabeliónico’ aos nossos dias, milh popular x erudito
omo rutura (ruptura)/rotura (formado este por via popular)? Ora, se tudo isto é em nome de Contexto do saber:
18 PB33 um vocabulário o popular x erudito
iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França, pelo contrário, afirmando- Contexto do agente:
21 DN10 se democráti o povo
missão a sua vida instruir, “iluminar” as massas populares ignorantes; por outro lado, a Contexto do agente:
22 PB01 esmagadora maioria o povo

Grupo Povo – Total de ocorrências:

Popular/es 4

Povo/s 16

0 5 10 15 20
Apêndice B

Grupo Cultura

Palavras pesquisadas: Cultura/s - Cultural/is - Culturalmente

Cultura
Nº Clipping Recorte Modifica ou é
Especificação
modificada
ao iniciar funções no CCB - indiscutível homem de cultura que sempre admirei - teve o mérito
1 DN04 SIM Modifica
inesperado de
tracta. Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras
2 DN07 SIM Modifica
ocasionais dos Estad
o intelectual a forma antiga. Descaracterizar a cultura através da "linguagem" escrita que
3 DN07 NÃO Nomeia
passa a ser di
lados. Os que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa
4 DN10 SIM Modificada
escrita não é a de
anifestação de um dos traços mais fortes da nossa cultura. Não seríamos portugueses se não
5 DN10 SIM Modificada
gastássemos temp
dura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura e fair play, apostada
6 DN10 SIM Modificada
na iniciativa,
esponsáveis políticos que desistiram de afirmar a cultura portuguesa fora de portas. Veja-se o
12 PB03 SIM Modificada
miserável pa
er um dos veículos mais importantes da difusão da cultura e da língua portuguesa. E porque
13 PB03 NÃO Nomeia
não há justifica
r de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pode nem deve ser colonizada. A
14 PB07 NÃO Nomeia
história ensi
gica”. A etimologia é configuradora de memória e cultura. Línguas que mantêm na escrita a
19 PB25 NÃO Nomeia
memória etimológ
e famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as
20 PB25 NÃO Nomeia
escrevem pe
Apêndice B

ora com o fim de aprofundar o meu conhecimento da cultura portuguesa, se visito cada dia o
21 PB29 SIM Modificada
site do PÚBLICO
al, determinei que o Português faz parte da minha cultura e até da minha vida e que sim, tenho
22 PB29 SIM Modificada
alguma coisa
Cultural/is
Nº Clipping Recorte
Classificação
ientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e
23 Patrimônio
comunicações, sejam interno
aprendizagem. Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também
24 Patrimônio
consideráveis custos econ
elações diplomáticas, equitativamente económicas, culturais, norteadas pela rectidão, essas
25 Contato/Partilha
sim, são prioritá
razão da liberdade de opinião e da sua autonomia cultural. E será a nova ortografia
27 Contato/Partilha
inconstitucional por a
ho, de quase nove séculos -património histórico e cultural. Surpreendentemente, contudo,
28 Patrimônio
não é apenas a di
ou acusando os líderes de todo o mal. A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura
29 Identidade
social. A Ing
ido nas nossas cartas e recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude
30 Identidade
estatizante que nos t
uma plenamente a grave responsabilidade política, cultural e social, correspondente a uma
31 Campo
escolha dessa natu
lização absurda da Língua num contexto de voragem cultural global. Mas, se neste caso estou
33 Contato/Partilha
convicto de que
o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma questão política
34 Campo
assaz bizarra. E
irmãos para as respectivas esferas de influência cultural. estadistas e governantes de formação
35 Contato/Partilha
e ideologia
r em polémicas estéreis. nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por
36 Identidade
mudarem algumas
assa mão-cheia de milhões na origem dessa epopeia cultural. cavaco silva tem aqui uma
37 Contato/Partilha
excelente oportunidade
Apêndice B

e política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os legisladores impuseram aos


38 Campo
falantes uma “orto
onética mas que se liga a uma memória histórica e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos
39 Identidade
a forma gráfica
ão de expressões de cariz ideológico a um assunto cultural pode-se e deve-se recordar o que o
42 Campo
«secretário-ge
mento cultural Um acto político de empobrecimento cultural A imposição do novo Acordo
43 Patrimônio
Ortográfico (AO), à ma
ceite. A diversidade numa língua é uma mais-valia cultural, todos os países lusófonos se
45 Patrimônio
entenderam na lingu
a portuguesa é um factor de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pode nem
46 Patrimônio
deve ser colon
rde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural. Para muitos portugueses que vão
47 Patrimônio
iniciar a escola
da a argumentação exposta nos planos linguístico, cultural e jurídico, já se tornou público e
48 Campo
notório que ni
pura perda de tempo” a contextualização histórico-cultural de um autor, inclusive com a
50 Identidade
indicação do lugar o
fia da L.P e, juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra.
51 Patrimônio
Admitind
promover a língua mirandesa, enquanto património cultural, instrumento de comunicação e
52 Patrimônio
de reforço de ident
mas, pelo contrário, enriquece o nosso património cultural. Quando falo com colegas, amigos
53 Patrimônio
ou familiares so
s e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países africanos de
54 Contato/Partilha
língua oficial
Nº Clipping Recorte Culturalmente
a origem da crise económica. Portugal é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional
55 DN10 Modo de ser/estar
típica é de confi
gal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia espantosa de a
56 DN10 Modo de ser/estar
escrita, manifest
Apêndice B

mais do que científica, socialmente relevante ou culturalmente interessante, é meramente


57 PB03 Modo de ser/estar
política. É o interesse
iedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e culturalmente empinantes? E cuja escrita se
58 PB25 Modo de ser/estar
reduza a um troglod

Grupo Cultura – Total de ocorrências:

Culturalmente 4

Cultural/is 26

Cultura 13

0 5 10 15 20 25 30
Apêndice B

Grupo Identidade

Palavras pesquisadas: Identidade/s - Identitário/a/s

Relaciona Identidade com...

Estabelece relação com (Afirma/Nega)


Nº Clipping Recorte Língua Ortografia
se envolver em polémicas estéreis. nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e
3
não é por mudare NEGA
a da palavra optimus. A palavra sem o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que
4
lhes matamos o po NEGA
, pharmacia ou phleugma também terão perdido essa identidade (para filosofia, farmácia e
5
fleuma)? Ora, o facto NEGA
, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras
6
latitudes. Cedemos? N AFIRMA
rdo é um erro, a língua portuguesa é um factor de identidade e de valor cultural inequívoco. A
7
cultura não pod AFIRMA
tural, instrumento de comunicação e de reforço de identidade da terra de Miranda”,
10
reconhecendo-se ainda “o di AFIRMA
tinente a alteração leviana de algo tão básico na identidade, na estrutura, na actividade de um
11
país como o é AFIRMA
Nº Clipping Recorte Classificação
e, juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. Admitindo Modificador
12 PB27
uma pluralid
entemente, de esbatimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, Modificador
13 DN06
sem dúvida, um dos
Apêndice B

Grupo Identidade – Total de ocorrências:

Identitário/as 2

Identidade 7

0 1 2 3 4 5 6 7 8
Apêndice B

Grupo Matriz

Palavras pesquisadas: Matriz

Nº Clipping Recorte Contexto Representações


o na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil
1 DN15
comércio das pal Língua Português europeu
por mudarem algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui. temos de estar orgulhosos
2 SL01
por falarmos Identidade Identidade cultural
o na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil
3 EX03
comércio das pal Língua Português europeu
dioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de
4 EX04
outras latitude Língua Língua Portuguesa
somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via
5 PB06
erudita e a vi Língua Latim
o na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil
6 PB06
comércio das pal Língua Português europeu
outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das
7 PB13
Letras digna Língua Português europeu
o que pyjamas” ou “pajamas, pyjamas = pijamas”. A matriz inglesa e a variante americana
8 PB24
válidas, na escrit Língua Inglês britânico
ste, no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas
9 PB24
variantes), é a Língua Português europeu
Apêndice C

Situações de Comparação e Relações Comparativas Sigla País


AN Angola
BR Brasil
Quadro Geral
CV Cabo Verde
ES Espanha
GU Guiné
MO Moçambique
PL Países Lusófonos
PT Portugal
ST São Tomé e Príncipe
TI Timor

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo


1 CM01-1 PT BR e qualquer outro PL Simetria Convergente
2 CM01-2 do lado de cá do Atlântico público brasileiro Simetria Divergente
CM02-
portugueses africanos e asiáticos Assimetria Vantagem
1A
3
CM02-
portugueses brasileiros Simetria Convergente
1B
4 DN02-1 (sou) português brasileiros e moçambicanos Simetria Divergente
5 DN03-1 Tenho assistido brasilês Assimetria Desvantagem
aqueles que só sabem escrever de acordo com o som,
DN07-1 ex-potência colonial Assimetria Vantagem
6 ou melhor, com a melodia da voz
7 DN09-1 PT BR Assimetria Desvantagem
8 DN10-1 PT britânica, francês Simetria Convergente
9 DN13-1 Academia das Ciências de Lisboa Academia Brasileira de Letras Simetria Convergente
10 DN14-1 luso(-brasileiro) (luso-)brasileiro Simetria Convergente
11 DN17-1 deste lado do Atlântico (do outro lado do Atlântico) Assimetria Desvantagem
Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo


DN17-
PT AN e MO Assimetria Desvantagem
2A
12
DN17-
PT BR Assimetria Desvantagem
2B
13 DN17-3 PT BR Assimetria Desvantagem
14 DN17-4 PT AN Assimetria Desvantagem
15 SL01-1 PT BR Assimetria Desvantagem
16 SL01-2 entre os que já o fizeram (ratificaram o AO) BR Simetria Divergente
17 SL01-3 interesse nacional BR Simetria Convergente
18 SL02-1 nosso BR, AN, MO Simetria Convergente
19 SL02-2 portugueses países onde a língua oficial é o português Simetria Convergente
20 SL02-3 PT BR Assimetria Desvantagem
21 SL02-4 nosso AN Simetria Convergente
22 SL02-5 PT BR, AN, MO, ST, CV GU, TI Simetria Convergente
23 SL03-1 PT BR Assimetria Desvantagem
24 EX01-1 PT BR Assimetria Desvantagem
25 EX01-2 português brasileiro Simetria Divergente
26 EX01-3 lusofonia/português europeu lusofonia/português africano, americano e asiático Simetria Divergente
27 EX01-4 portugueses brasileiros Simetria Divergente
EX01-5A português brasileiro Simetria Divergente
28 iluministas ("sábios"=defensores do AO? OU
EX01-5B África Assimetria Vantagem
portugueses defensores do AO?)
29 EX04-1 português outros povos e outras latitudes Simetria Convergente
30 EX04-2 Cedemos? (Portugal) Cedemos? (para o Brasil) Assimetria Desvantagem
31 EX04-3 Não quero (eu, português) BR, AN, MO, GU, CV, ST, TI Simetria Convergente
EX05-1A PT noutros países lusófonos Simetria Convergente
32
EX05-1B PT BR Assimetria Desvantagem
33 EX06-1 vamos/leitores irmãos BR Assimetria Desvantagem
Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo


34 PB03-1 decisores políticos BR Assimetria Desvantagem
PB03-2A PT AN e MO Simetria Divergente
35
PB03-2B PT BR Assimetria Desvantagem
36 PB05-1 portugueses AN, MO Assimetria Desvantagem
37 PB05-2 Português europeu Português do Brasil Assimetria Desvantagem
38 PB05-3 portugueses brasileiros Simetria Convergente
39 PB05-4 portugueses ortografia brasileira Assimetria Desvantagem
40 PB05-5 PT BR Assimetria Desvantagem
41 PB05-6 portugueses, pqno retângulo brasileiros Simetria Convergente
42 PB05-7 de cá BR Assimetria Desvantagem
43 PB06-1 "lançador" África Assimetria Desvantagem
44 PB06-2 Alentejo AN, angolanos, Salvador da Baía, Inhambane, CPLP Simetria Divergente
PB06-3A discípulos de Malaca (portuqueses) discípulos de Bechara (brasileiros) Simetria Convergente
45 PB06-3B Discípulos de Malaca (&Bechara) africanos Assimetria Vantagem
PB06-3C Discípulos de Malaca (&Bechara) brasileiro Assimetria Desvantagem
46 PB06-4 a (ortografia) portuguesa ortografia brasileira, cada um dos países Simetria Divergente
47 PB06-5 você angolanos, brasileiros Assimetria Desvantagem
48 PB07-1 PT BR, AN, CV, ST e outros Simetria Divergente
49 PB10-1 PT BR Simetria Divergente
50 PB10-2 nós (portugueses) brasileiros Simetria Divergente
51 PB10-3 PT BR e África lusófona Simetria Divergente
52 PB11-1 lado português BR Assimetria Desvantagem
outros países que aprenderam a falar a partir da
PB13-1 PT Simetria Convergente
53 matriz europeia
54 PB13-2 família lusófona família lusófona Simetria Divergente
55 PB17-1 PT brasileiros Assimetria Desvantagem
56 PB17-2 portugueses brasileiros Simetria Convergente
57 PB17-3 PT brasileiros Assimetria Desvantagem
Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo


58 PB17-4 dos dois lados do Atlântico dos dois lados do Atlântico Simetria Divergente
59 PB18-1 Portugal ingleses Assimetria Desvantagem
PB20-1A PT BR Simetria Divergente
60
PB20-1B PT (e Brasil) Restantes países CPLP Assimetria Vantagem
PB20-2A PT BR Simetria Divergente
61
PB20-2B PT (e Brasil) espaço lusófono Assimetria Vantagem
62 PB20-3 PT BR Simetria Divergente
timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-
63 PB21-1 alentejanos verdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, Simetria Divergente
açorianos, angolanos, etc.
64 PB22-1 curvados, passemos brasileiros Assimetria Desvantagem
65 PB22-2 fecham-se, dificultam-se, nós (portugueses) BR Assimetria Desvantagem
66 PB25-1 PT BR Simetria Convergente
67 PB26-1 português europeu BR Assimetria Desvantagem
68 PB26-2 país lusófono país lusófono Simetria Convergente
69 PB26-3 ortografia europeia outros países lusófonos Assimetria Vantagem
70 PB26-4 países lusófonos países lusófonos Simetria Convergente
71 PB27-1 edição portuguesa mercado brasileiro Assimetria Desvantagem
72 PB29-1 portugueses espanhola Assimetria Vantagem
73 PB29-2 PT espanhóis Assimetria Desvantagem
74 PB30-1 PT brasileiros Assimetria Desvantagem
75 PB31-1 PT BR Simetria Divergente
78 PB31-2 distribuidores portugueses traduções brasileiras Assimetria Desvantagem
77 PB31-3 versão Pt-Pt BR Assimetria Desvantagem
78 PB33-1 se faça, por cá (em PT) BR (lá) Assimetria Desvantagem
79 PB34-1 PT brasileiro Simetria Convergente
80 PB34-2 todos os países de língua oficial portuguesa BR Assimetria Desvantagem
81 PB34-3 PT BR Assimetria Desvantagem
Apêndice C

Nº Clipping Portugal (país de referência) Intervenientes Relação Tipo


82 PB34-4 por cá BR Simetria Divergente
83 PB34-5 PT BR Simetria Divergente
PB35-1A duas ortografias (PT e BR) duas ortografias (BR e PT) Simetria Divergente
84 países africanos de língua oficial portuguesa / AN, MO,
PB35-1B duas ortografias (PT e BR) Assimetria Vantagem
GU
Apêndice C

Relações Comparativas Simétricas

Quadro Geral
Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo
10 DN14-1 (luso-)brasileiro Simetria Convergente
9 DN13-1 Academia Brasileira de Letras Simetria Convergente
21 SL02-4 AN Simetria Convergente
17 SL01-3 BR Simetria Convergente
66 PB25-1 BR Simetria Convergente
1 CM01-1 BR e qualquer outro PL Simetria Convergente
18 SL02-1 BR, AN, MO Simetria Convergente
31 EX04-3 BR, AN, MO, GU, CV, ST, TI Simetria Convergente
22 SL02-5 BR, AN, MO, ST, CV GU, TI Simetria Convergente
79 PB34-1 brasileiro Simetria Convergente
3 CM02-1B brasileiros Simetria Convergente
38 PB05-3 brasileiros Simetria Convergente
41 PB05-6 brasileiros Simetria Convergente
56 PB17-2 brasileiros Simetria Convergente
8 DN10-1 britânica, francês Simetria Convergente
45 PB06-3A discípulos de Bechara (brasileiros) Simetria Convergente
32 EX05-1A noutros países lusófonos Simetria Convergente
53 PB13-1 outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia Simetria Convergente
29 EX04-1 outros povos e outras latitudes Simetria Convergente
68 PB26-2 país lusófono Simetria Convergente
70 PB26-4 países lusófonos Simetria Convergente
19 SL02-2 países onde a língua oficial é o português Simetria Convergente
35 PB03-2A AN e MO Simetria Divergente
Apêndice C

Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo


44 PB06-2 AN, angolanos, Salvador da Baía, Inhambane, CPLP Simetria Divergente
16 SL01-2 BR Simetria Divergente
49 PB10-1 BR Simetria Divergente
60 PB20-1A BR Simetria Divergente
61 PB20-2A BR Simetria Divergente
62 PB20-3 BR Simetria Divergente
75 PB31-1 BR Simetria Divergente
82 PB34-4 BR Simetria Divergente
83 PB34-5 BR Simetria Divergente
51 PB10-3 BR e África lusófona Simetria Divergente
48 PB07-1 BR, AN, CV, ST e outros Simetria Divergente
25 EX01-2 brasileiro Simetria Divergente
28 EX01-5A brasileiro Simetria Divergente
27 EX01-4 brasileiros Simetria Divergente
50 PB10-2 brasileiros Simetria Divergente
4 DN02-1 brasileiros e moçambicanos Simetria Divergente
58 PB17-4 dos dois lados do Atlântico Simetria Divergente
84 PB35-1A duas ortografias (BR e PT) Simetria Divergente
54 PB13-2 família lusófona Simetria Divergente
26 EX01-3 lusofonia/português africano, americano e asiático Simetria Divergente
46 PB06-4 ortografia brasileira, cada um dos países Simetria Divergente
2 CM01-2 público brasileiro Simetria Divergente
timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-verdianos, minhotos,
63 PB21-1 Simetria Divergente
guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc.
Apêndice C

Relações Comparativas Assimétricas

Quadro Geral
Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo
30 EX04-2 (Cedemos?) Assimetria Desvantagem
11 DN17-1 (do outro lado do Atlântico) Assimetria Desvantagem
43 PB06-1 África Assimetria Desvantagem
14 DN17-4 AN Assimetria Desvantagem
12 DN17-2A AN e MO Assimetria Desvantagem
36 PB05-1 AN, MO Assimetria Desvantagem
47 PB06-5 angolanos, brasileiros Assimetria Desvantagem
7 DN09-1 BR Assimetria Desvantagem
12 DN17-2B BR Assimetria Desvantagem
13 DN17-3 BR Assimetria Desvantagem
15 SL01-1 BR Assimetria Desvantagem
20 SL02-3 BR Assimetria Desvantagem
23 SL03-1 BR Assimetria Desvantagem
24 EX01-1 BR Assimetria Desvantagem
32 EX05-1B BR Assimetria Desvantagem
33 EX06-1 BR Assimetria Desvantagem
34 PB03-1 BR Assimetria Desvantagem
35 PB03-2B BR Assimetria Desvantagem
40 PB05-5 BR Assimetria Desvantagem
42 PB05-7 BR Assimetria Desvantagem
52 PB11-1 BR Assimetria Desvantagem
65 PB22-2 BR Assimetria Desvantagem
67 PB26-1 BR Assimetria Desvantagem
Apêndice C

Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo


77 PB31-3 BR Assimetria Desvantagem
80 PB34-2 BR Assimetria Desvantagem
81 PB34-3 BR Assimetria Desvantagem
78 PB33-1 BR (lá) Assimetria Desvantagem
45 PB06-3C brasileiro Assimetria Desvantagem
55 PB17-1 brasileiros Assimetria Desvantagem
57 PB17-3 brasileiros Assimetria Desvantagem
64 PB22-1 brasileiros Assimetria Desvantagem
74 PB30-1 brasileiros Assimetria Desvantagem
5 DN03-1 brasilês Assimetria Desvantagem
73 PB29-2 espanhóis Assimetria Desvantagem
59 PB18-1 ingleses Assimetria Desvantagem
71 PB27-1 mercado brasileiro Assimetria Desvantagem
39 PB05-4 ortografia brasileira Assimetria Desvantagem
37 PB05-2 Português do Brasil Assimetria Desvantagem
78 PB31-2 traduções brasileiras Assimetria Desvantagem
28 EX01-5B África Assimetria Vantagem
45 PB06-3B africanos Assimetria Vantagem
3 CM02-1A africanos e asiáticos Assimetria Vantagem
aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor,
6 DN07-1 Assimetria Vantagem
com a melodia da voz
61 PB20-2B espaço lusófono Assimetria Vantagem
72 PB29-1 espanhola Assimetria Vantagem
69 PB26-3 outros países lusófonos Assimetria Vantagem
84 PB35-1B países africanos de língua oficial portuguesa / AN, MO, GU Assimetria Vantagem
60 PB20-1B Restantes países CPLP (excluído BR) Assimetria Vantagem
Apêndice D

Situações de comparação construídas entre Portugal


e outras entidades nacionais ou supranacionais

CM01-1
Do acordo ortográfico de 1990 (não tão novo como isso), pode dizer-se uma coisa que vale
para a generalidade das pessoas: é pior do que o pintam os seus pais e amigos, mas melhor do
que querem fazer crer os seus inimigos jurados. Para o bem e para o mal, o acordo não irá
alterar o modo de falar e escrever português em Portugal, no Brasil ou em qualquer outro
país lusófono. Todos sabemos que as especificidades do uso de uma língua excedem
largamente a grafia.

CM01-2
Estou certo de que o público brasileiro continuará a preferir, em geral, obras e textos escritos
em português do Brasil, bem como tradutores e intérpretes que usem esse português na
construção frásica, na escolha de vocábulos e, claro está, na pronúncia. Do lado de cá do
Atlântico acontecerá, seguramente, o inverso. Nada disso retira uma certa utilidade à
unificação da grafia, sobretudo para as editoras e em documentos oficiais. Mas essa
unificação é imperfeita, visto que o acordo admite que muitas palavras se escrevam de duas
maneiras diferentes.

CM02-1
Em 1990, ilustres detentores de uma certa Ortografia da Língua Portuguesa babaram-se de
prazer e glória ao verem no papel o ‘Novo Acordo’. Africanos e asiáticos falantes e
escrevedores da Língua, conhecidos por ‘falarem à preto’ foram obrigados a ver passar o
comboio ortográfico de portugueses e brasileiros. Depois, pediram-lhes batatinhas para
rubricarem o dito. Acordo que se preze deve levar assinaturas de todos.

DN02-1
Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os
censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e,
não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da
proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a
minha língua é.
Obs.: Embora a relação de comparação acima tenha sido construída de forma simétrica (divergente),
considerando-se o contexto mais geral de discussão do AO, a ideia de assimetria também se faz presente, uma
vez que o autor representa o acordo como uma forma de privação da sua língua e, portanto, como uma
desvantagem.

DN03-1
Tenho assistido - sem grande vibração, diga-se - à troca de opiniões, mais ou menos
acaloradas, mais ou menos profundas sobre a questão do Acordo Ortográfico.
Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo se argumenta, até com o
"matriotismo" obstinado do "foi assim que me ensinou a minha santa professora da escola
primária".
Obs.: Embora não haja menção expressa, Portugal é trazido à representação a partir de duas inferências: pela
expressão “tenho assistido”, que, de certa forma, remete para o caso português e para Portugal, uma vez que o
autor deste artigo ocupa o cargo de “provedor do leitor” no jornal português Diário de Notícias, e pela
expressão “submissão ao brasilês”, que invoca a parte que supostamente se submete (neste caso, Portugal).

249
Apêndice D

DN07-1
É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial e
facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor,
com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no meio
intelectual a forma antiga.
Obs.: Embora não haja menção expressa a Portugal, este é representado pela expressão “ex-potência
colonial”. O Brasil, por sua vez, é trazido à representação acima por meio da referência implícita aos
brasileiros, contida na expressão “aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a
melodia da voz”.

DN09-01
De resto, há muitas outras questões que têm sido levantadas, mas que as mesmas
individualidades se dispensam de considerar, mostrando uma suficiência assaz discutível em
relação a assuntos que não estudaram e de que, pelos vistos, percebem pouco. Não as
abordaremos para já, mas elas não perdem pela demora. Diga-se apenas que nem mesmo o
Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal!

DN10-01
A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Inglaterra é uma sociedade
aristocrata, onde perdura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura
e fair play, apostada na iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França,
pelo contrário, afirmando-se democrática e abominando tirania e desigualdade, prefere
planeamento e regras impostas de cima, desconfia visceralmente de liberais e movimentos
espontâneos e confia em intelectuais e especialistas.
Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia
espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por
academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata, hoje como na
Primeira República. A simples concepção de um Estado intrometido nas nossas cartas e
recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos trouxe à
emergência financeira.

DN13-1
Em quarto lugar gostaria de dizer que depois de cem anos de divergências ortográficas (desde
o acordo de 1911 que não foi extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de
acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de
Lisboa (1931, 1943, 1945, 1971/ /1973, 1975 e 1986) foi finalmente encontrado um texto
comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um
facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, portanto, enfatizar.

DN14-1
O significado profundo desta coisa traduz provavelmente a confissão envergonhada, por parte
do neocolonialismo luso-brasileiro, de que o AO não dispõe absolutamente nada para a
grafia de vocábulos das línguas nativas que tenham sido incorporados no português. Se é este
o sentido útil desse ponto, isto significa o reconhecimento, por todos os governos, de que,
também por esta razão, o AO não pode ser aplicado enquanto não for alterado!

DN17-1
Os partidos políticos com assento parlamentar têm vindo a pactuar, sem excepção, com esse
estado de coisas. Ninguém lucra absolutamente nada com ele. Mas tudo isso redundaria
apenas num simples exercício de humor de gosto discutível, se não se traduzisse numa
violência quotidiana contra a língua. E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro

250
Apêndice D

de uma geração ninguém conseguirá pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como
ela é falada deste lado do Atlântico.
Obs.: Embora o Brasil não tenha sido expressamente referido, sua participação na construção desta relação
comparativa é inferida pela expressão “desde lado do Atlântico”, que pressupõe o “lado de lá” ou o “outro
lado” do Atlântico (nesse caso, o Brasil).

DN17-2
Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma
questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser
aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como Angola
e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que outras
paragens).

DN17-3
Alem disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e
Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países
interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se
pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de
enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a
desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro.

DN17-4
Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em
Angola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de
agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já
não somos capazes.

SL01-1
A este propósito, Cavaco silva foi peremptório: em seu entender, o acordo ortográfico era
essencial para que, no século XXI, o português falado em Portugal não ficasse com um
estatuto equivalente ao do Latim. Cavaco Silva fez-me notar que, nos leitorados das
universidades um pouco por todo o mundo, nas traduções em organizações internacionais e
em várias outras instâncias, era cada vez mais utilizado o português conforme escrito e falado
no Brasil.

SL01-2
Nem todos os estados-membros da CPLP ratificaram ainda o acordo? Pois não. Mas entre os
que já o fizeram encontra-se o país que se previa viesse a ter mais resistências: exactamente
o Brasil.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação na condição de um dos países que já ratificaram o acordo.

SL01-3
Fiz, tempos depois, uma visita oficial ao Brasil, e falei no congresso e na academia brasileira
de letras. E recordo-me bem de como o ambiente era reservado ou até hostil.
Não tenho qualquer hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este
acordo seja assumido por toda a comunidade que se exprime oficialmente em português.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio da expressão “interesse nacional”, que, nesse contexto,
remete para o interesse de Portugal.

251
Apêndice D

SL02-1
- a oposição ao acordo ortográfico é um enorme disparate. O nosso grande património é
termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com Moçambique… Tudo o que
pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é decisivo para nós. Perante isso,
não tem qualquer interesse discutir chinesices, como a escrita desta ou daquela palavra.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso
grande património”, que, nesse contexto, remete para o patrimônio de Portugal.

SL02-2
É óbvio que não entrarei em discussões técnicas sobre este assunto com Vasco Graça Moura
ou qualquer outro especialista. Eles saberão certamente muito mais do que eu. Só que a
questão essencial não é essa. O essencial não é discutir o resultado – é admitir que são úteis
todos os esforços que se façam no sentido de os países onde a língua oficial é o português
aproximarem as suas grafias. E são especialmente importantes para nós, portugueses.

SL02-3
Portugal tem 10 milhões de habitantes – mas o Brasil tem 200 milhões. Só por arrogância ou
por capricho se pode defender que devemos ficar ad aeternum agarrados às nossas regras.

SL02-4
O nosso papel deverá, mesmo, ser o oposto: levar os países que ainda não adoptaram o
acordo, como Angola, a fazê-lo rapidamente.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso
papel”, que, nesse contexto, remete para o papel de Portugal.

SL02-5
O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos
ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo
Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo.

SL03-1
Goste-se ou não se goste dele, há que admitir que, se o acordo existe, é precisamente porque
alguém se preocupou com estas questões e tentou delinear uma estratégia para a língua. Num
momento em que o português adoptado a nível internacional era mais o do Brasil do que
aquele que se falava a escrevia em Portugal, impunha-se a tomada de medidas. A solução
encontrada foi aproximar os dois ramos da língua.

EX01-1
Os legisladores impuseram aos falantes uma “ortografia unificada”, que, dizem, garante a
“expansão da língua” e o seu “prestígio internacional”. Mas a expansão da língua passa por
uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em
fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas
escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos
currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio
internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a “língua de Camões”,
que transformou o Brasil numa potência.

EX01-2
Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal,
diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do

252
Apêndice D

Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a
perguntar “oi?”, pois não percebeu metade.

EX01-3
E isso não tem problema algum, a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade,
pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático.
Obs.: Na relação de comparação acima, os diferentes países de língua oficial portuguesa, entre os quais
Portugal, são chamados a participar por meio das referências ao português, em sua diversidade.

EX01-4
E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por
andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram “bué”
e “guterrismo”.

EX01-5
É significativo que o próprio “acordo” reconheça o fracasso do projecto de “unificação a
língua”. Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são
obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes
iluministas, é paisagem].
Obs.: Na segunda parte da relação de comparação acima, em que África aparece como interveniente, Portugal
se faz presente por meio da referência aos “iluministas” (também interligada aos “sábios” da primeira parte da
relação), que remete para os defensores do acordo e, nesse contexto (jornais portugueses), mais especificamente
aos defensores do acordo em Portugal.

EX04-1
Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo,
pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade,
matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes.
Obs.: Na relação acima, entende-se “outros povos” como uma referência aos demais países de língua
portuguesa.

EX04-2
Cedemos? Não sei, nem me importa.
Obs.: Nesta relação de comparação, entende-se que Portugal e Brasil são trazidos à discussão por meio da
escolha de “Cedemos?” – quem cede, cede a alguém e, no presente contexto, as representações de cedências
giram em torno de ambos os países, ou seja, Portugal, ao ratificar o AO, supostamente ‘cede’ ao Brasil.

EX04-3
Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E
quem diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique,
Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Timor.
Obs.: Na relação acima, Portugal se faz presente por meio da manifestação do autor, na condição de
representante português, evidenciada pelo flexão do verbo ‘querer’ na primeira pessoa do singular.

EX05-1
Mas como é que nós sabemos que há facultatividade, que podemos em alguns casos manter o
c e o p que são mudos em Portugal e noutros países lusófonos? Sabendo qual é a "norma
culta" no Brasil. Acontece que nós não sabemos nem temos meios de saber tal coisa. E
acontece que aquilo que o AO chama "norma culta" da pronúncia não está definida em lado
nenhum.

253
Apêndice D

EX06-1
O Brasil, um enorme e apetecível mercado editorial já se marimbou para o acordo
ortográfico, assumindo sozinho o seu "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa". Lá
vamos de ter de vender um livrito ou outro numa grafia bizarra acordada. Os leitores irmãos
que se amanhem.
Obs.: Embora não haja menção direta a Portugal, o país é trazido a esta representação por via de uma
referência implícita aos portugueses, realizada por meio do verbo ir, flexionado na primeira pessoa do plural.

PB03-1
Porque é que os decisores políticos adoptaram um comportamento parolo, adequando, como
dizem, a língua portuguesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa
não o fez da mesma maneira e quando a uniformização da escrita foi a razão mais invocada
para que este acordo ortográfico se efectivasse, apesar de ter sido o Brasil o primeiro a
denunciar a uniformização operada com a revisão de 1945?
Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir da expressão “decisores políticos”, que
remete para os decisores políticos portugueses e, desse modo, para Portugal.
PB03-2
Uma língua é tão mais rica quanto maior for a diversidade que apresenta. Esta decisão ilegal
dos políticos que assumem o poder desde 1990 é tanto mais incompreensível quando uma
pretensa unidade linguística dos países de língua portuguesa é comprometida com a não
adesão de Angola e Moçambique ou quando o que se transformou numa regra para Portugal
tem tantas excepções no Brasil, precisamente a nação com mais falantes de português.

PB05-1
O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom
pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça
Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da
forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de
língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado.
Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada.

PB05-2
Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela
do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”.

PB05-3
Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para
“gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros
portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos
impingir o dito “acordo”.
Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “dezenas de milhares” e “alguns”, entende-se que a representação
de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.

PB05-4
A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente
prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa,
que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente
“acordo” na ortografia portuguesa não são equivalentes à substituição do “ph” de “pharmácia”
por “f ”, pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do “c” mudo
afectará a pronúncia dos compostos do étimo “afecto” se este “acordo” for por diante.

254
Apêndice D

PB05-5
Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema
foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)?

PB05-6
O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas
de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguístas portugueses e muitos
brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografia, da
fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno
rectângulo do Sudoeste europeu.
Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “a grande maioria” e “muitos”, entende-se que a representação
de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.

PB05-7
Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a
sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um “acordo”
artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá!

PB06-1
Diz-se “meter uma lança em África” como sinónimo de vencer uma grande dificuldade. Pois
bem: há dias, a lança virou-se, directamente de África, contra o “lançador”.
Obs.: Nesta relação de comparação, os intervenientes em destaque são os países africanos de língua portuguesa
– mais especificamente Angola, dado o contexto (referência a um dos editoriais do Jornal de Angola) –
representados por “África” – e Portugal, aqui entendido como o “lançador”.

PB06-2
E a findar: “O português falado em Angola tem características específicas e varia de
província para de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável
para os angolanos mas também para todos os falantes. Tal como o português que é falado no
Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos
devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP.

PB06-3
Ouviram, discípulos de Malaca & Bechara? Se lhes parece mal, por vir de africanos, então
ouçam lá um brasileiro: “O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito,
politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi
conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve
participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá
da tarde na Academia Brasileira de Letras)”.
Obs.: Nesta situação de comparação, Portugal e Brasil se fazem presentes, respectivamente, como “discípulos”
de Malaca, personalidade portuguesa, e “discípulos” de Bechara, personalidade brasileira – ambos a favor do
acordo. A perspectiva da assimetria é concretizada pela valorização da declaração de um brasileiro contra o
acordo, que deveria ser ouvida pelos portugueses (não por todos os portugueses, só por aqueles que são
favoráveis ao acordo, e não só pelos portugueses, também pelos brasileiros que o apóiam).

PB06-4
Mais: “A ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a ortografia
em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de grafias duplas permite inclusive
a construção de híbridos.”

255
Apêndice D

PB06-5
Foi você que pediu um acordo ortográfico? Não? Então descubra quem o encomendou. Os
angolanos e os brasileiros já sabem. Daí estas lanças, tão hábeis e certeiras.
Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir de uma interpelação (“você”), dirigida
aos leitores do jornal; portanto, aos portugueses.

PB07-1
A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a
escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil, Angola,
Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural.

PB10-1
Pois em 1973 Ruy Castro chegou a Lisboa para trabalhar numa revista brasileira cá editada.
No primeiro dia de trabalho houve um problema na casa de banho e ele pediu à secretária:
“Isabel, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada”.
Isabel apenas percebeu o nome próprio e o “por favor”. Mas um colega do lado, brasileiro-
português, já acostumado aos labirintos da língua entre Portugal e Brasil, traduziu o pedido:
“Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete”. E então sim, Isabel
percebeu.

PB10-2
Como foi que surgiram entre nós os vocábulos ‘autoclismo’ e ‘retrete’, enquanto os
brasileiros escolheram os termos ‘bombeiro’ e ‘privada’? Eu sei que a troika não trata destas
coisas. Etimologicamente, aprendo no Houiass, “autós” significa em grego “por si mesmo” e
“klusmós” “acção de lavar”. Privada entrou mais tarde e sem este amparo clássico. É produto
duma outra civilização.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome pessoal de primeira pessoa do plural “nós”,
que, no contexto de um jornal português dirigido a leitores portugueses, remete para o país.

PB10-3
Nunca alinhei especialmente nas brigadas pró ou contra a unificação da ortografia. Por falta
de competência não iria acrescentar nada ao debate. O que posso dizer é que nenhum acordo
de escrita entre Brasil, Portugal e a África lusófona irá erradicar estas diferenças de
vocabulário. E muitas outras existem, como toda a gente sabe.

PB11-1
Do que gosto no novo Acordo Ortográfico, tão inclinado para o Brasil, é do seu lado
português, como eu: um bocado feito em cima do joelho. Matou a paz da língua (e nisso está
de acordo com o espírito económico e político do seu tempo, aspecto importante… espera,
aspeto).

PB13-1
E a esta [irmandade lusófona] bastaria que, em Portugal e nos outros países que aprenderam
a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das Letras digna desse nome (ou
de uma equipa competente plurinacional) que elaborasse um léxico contemplando todas as
variantes do português, em plena igualdade plural. Isto a montante de todos os remendos
pontuais e casuísticos que se queira fazer ao que nasceu torto e tarde ou nunca poderá
endireitar-se.

256
Apêndice D

PB13-1
A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da diferença,
não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias.
Obs.: Nesta comparação, todos os intervenientes são representados por uma só expressão “família lusófona”,
que reúne Portugal e todo os demais países de língua portuguesa.

PB17-1
“Segundo o AO90, os Brasileiros podem continuar a escrever (como sempre escreveram pela
reforma ortográfica brasileira de 1943), por exemplo: acepção, aspecto, conjectura,
perspectiva, decepção, detectar, excepcional, tactear, retrospectiva, percepção, intersectar,
concepção, imperceptível, respectivo, recepção, susceptível, táctico…
Em Portugal, com o mesmo AO90, seremos obrigados a escrever: aceção, aspeto, conjetura,
perspetiva, deceção, detetar, excecional, tatear, retrospetiva, perceção, intersetar, conceção,
impercetível, respetivo, receção, suscetível, tático…
Ora, a ideia não era uniformizar? Será que os Brasileiros não se vão rir quando virem, em
escritos de Portugal, aberrações como deceção, recetivo, perceção…?”

PB17-2
“No fundo eu estava perguntando, por outras palavras, o que é que lucrámos com isto,
Portugueses e Brasileiros, perguntando também, implicitamente, se não seria mais simples
deixar tudo na mesma — ao menos, já estávamos familiarizados com as igualizações e as
desigualizações, em vez de termos de aprender outras novas sem nenhuma vantagem óbvia.”
Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“igualizações”) como
às diferenças (“desigualizações”) entre o português de portugueses e brasileiros, entende-se que nessa
representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica
convergente (o mesmo se dá em PB26-3).

PB17-3
Seguindo o raciocínio de António de Macedo, peguemos num, dois, três, quatro, uma dúzia de
livros brasileiros recentes. Não é difícil ler, a par de ato ou fato (que cá se mantém facto, já
agora, numa deliciosa “ortografia comum”), palavras como aspecto, perspectiva, caracterizou,
facção, respectivamente, etc. Essas mesmas que o unificador acordo quer que, só em
Portugal, se escrevam aspeto, perspetiva, caraterizou, fação (é verdade, fação!) e
respetivamente.

PB17-4
É isto um acordo para unificar a ortografia? Onde está o empregado que serviu o bife, hã?
Não vêem que está mal passado? Não, não vêem. Vão “adotar” a coisa e não vêem. Mas
comem-no, regalados, apesar do truque baixo do bife apenas virado na cozinha, sem ver outra
vez a frigideira, para que todos se deliciem com a ilusão de uma ortografia unificada. Mas há
vozes atentas, vejam lá, que percebem a impossibilidade de tais mudanças. Leiam-nas: “Há
diferenças intransponíveis dos dois lados do Atlântico, as quais foram acentuadas pelo
tempo.” Autor? João Malaca Casteleiro, o pai do aborto, perdão, do acordo ortográfico (pág. 6
do opúsculo Atual: o que vai mudar na grafia do português, ed. Texto, 2007).
Obs.: Nesta relação, Portugal e Brasil são representados simultaneamente pela expressão “dos dois lados do
Atlântico”.

PB18-1
O defeito deve ser da gesta marítima, mas a verdade é que Portugal decididamente não se dá
bem com aventuras herbáceas. Os ingleses, sim. Jardinagem é com eles. Qualquer coisa onde
se mencione garden ou grass tem de ser bem feita. Eles sabem e dão muita importância ao
assunto.
257
Apêndice D

PB20-1
Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90 vem
consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e outra para
o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas dos restantes
países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a menos que
surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola, Moçambique,
Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor...

PB20-2
Chamo a atenção para as semelhanças e diferenças: são de facto dois modelos bastante
distintos do AO90, a pensar exclusivamente no Brasil e em Portugal, como se mais nada
existisse no espaço lusófono. Dois modelos perfeitamente enquadrados: um delineado para o
Brasil, outro delineado para Portugal. E já nem discuto nem repiso a falácia da tão apregoada
"uniformização" ortográfica.

PB20-3
Quando José Eduardo Agualusa (angolano) e Mia Couto (moçambicano) declaram a sua
adesão ao AO90, será que sabem ao que é que estão a aderir? Ao modelo do AO90 para
Portugal, ou ao modelo do AO90 para o Brasil?
Obs.: Apesar das referências aos gentílicos “angolano” e “moçambicano”, estes não parecem trazer para a
representação efetivamente Angola e Moçambique, mas sim duas personalidades de renome no campo da
literatura de língua portuguesa.

PB21-1
Temos o irresistível argumento de aproximar a escrita da oralidade. Com pronúncias tão
distintas como as dos alentejanos, timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-
verdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc., nada mais
lógico senão dizer-lhes a todos que escrevam como pronunciam…? Quando estamos ao
mesmo tempo a “unificar”, claro! Isto só como anedota. Será possível que haja quem ainda
não tenha visto a contradição gritante deste disparate?

PB22-1
Falta só que, curvados perante o número de falantes brasileiros e em nome da pretensa
“unidade da língua”, passemos a usar “presidenta ou estudanta”, entre outras similares,
obedecendo à lei n.º 12.605, de 3/4/2012, sobre o “Emprego obrigatório da flexão de género
para nomear profissão”, recente inovação da “Presidenta” do Brasil.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do verbo “passar”, flexionado na primeira pessoa do
plural, que, nesse contexto, remete para os portugueses e, portanto, para Portugal.

PB22-2
Em 2011, o Conselho de Ministros afirmou que o AO visava “reforçar o papel da língua
portuguesa como língua de comunicação internacional”, mas, entretanto, fecham-se
leitorados, dificultam-se as aulas de Português para os filhos dos emigrantes, continuando nós
também a desconhecer o quanto tem custado e continua a custar este AO. O Brasil,
entretanto, promove congressos com o objectivo de “discutir políticas linguísticas
relacionadas à internacionalização do Português brasileiro”. E assim se fazem as cousas, diria
Gil Vicente.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio de diferentes estratégias: via representação do governo
Português – concretizada na referência ao “Conselho de Ministros” e também nos verbos “fecham-se” e
“dificultam-se”, que, embora configurem orações com sujeito indeterminado, remetem para situações de

258
Apêndice D

responsabilização do governo – e via menção aos portugueses – concretizada na utilização do pronome pessoa
“nós”.

PB25-1
Dizem que é para facilitar… O Brasil fê-lo com as suas reformas. Portugal prepara-se para o
mesmo. Mas produziu e produzirá sociedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e
culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um trogloditismo, à mera transcrição de
grunhidos? Repudiamo-lo!

PB26-1
A importância do Acordo, aliás, é defendida por se considerar que é a tábua de salvação da
língua. Sem o Acordo, e, portanto, sem o peso do Brasil, o português europeu passaria a ser
uma língua rapidamente extinta.

PB26-2
O acordista sabe que o Acordo Ortográfico não trouxe acordo ortográfico, mas finge, ainda,
ignorar que, para além da ortografia, não existem outras diferenças insanáveis, que só
poderiam desaparecer se, para além de um acordo ortográfico, se realizassem, ainda, um
acordo sintáctico, um acordo fonético e um acordo semântico. Nada disso impede o acordista
de afirmar, por exemplo, que “qualquer livro editado em português possa ser impresso em
qualquer país lusófono”.
Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado pelos portugueses que defendem o acordo,
referidos na expressão “acordista”, mas também na expressão “qualquer país lusófono” – embora, neste último
caso, seja representado lado a lado com demais países de língua portuguesa.

PB26-3
É, ainda, vulgar, ouvir o acordista criticar os críticos do Acordo Ortográfico por se julgarem
“donos da língua”. Tal crítica faria sentido se esses mesmos críticos defendessem a imposição
da ortografia europeia a todos os outros países lusófonos.
Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado pela expressão “ortografia europeia”.

PB26-4
A língua pertence, evidentemente, a quem a usa, o que quer dizer que o português pertence a
todos os países lusófonos e é, portanto, enriquecedor que esse facto provoque todo o género
de aproximações e admita as inevitáveis diferenças, que podem ser fonéticas, semânticas ou
ortográficas.
Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“aproximações”) como
às diferenças (“inevitáveis diferenças”) entre o português dos diferentes países lusófonos, entende-se que nessa
representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica
convergente (a exemplo da classificação de PB17-2).

PB27-1
Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também consideráveis custos
económicos: substituição de milhões de livros, ferramentas informáticas, documentos, etc.,
que assim ficam obsoletos, e perda de posição das exportações de edição portuguesa para o
mercado brasileiro.
Este acordo foi forjado nas costas dos portugueses, à revelia dos seus interesses.

PB29-1
Devo começar por dizer que duvidei na hora de enviar este texto. No fim de contas, sou
espanhola e alguns portugueses poderiam levar a mal uma estrangeira vir cá opinar sobre
aquilo que não lhe diz respeito.

259
Apêndice D

Obs.: A relação de comparação acima caracteriza-se como assimétrica com vantagem para Portugal por
atribuir aos portugueses o “direito” de opinar sobre o AO – em outras palavras, por privilegiar o papel dos
portugueses (nacionais) em detrimento dos espanhóis (estrangeiros) nesse contexto.

PB29-2
Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles ficam
admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui. Não
percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam muito
às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase sempre
me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso? Fosse aqui e
eu…” Mas não é aqui, é aí.

PB30-1
Podem até ensinar às crianças de hoje que a receção se pronuncia como recéção. Dentro de
uns 30 anos, se o AO vier a prevalecer, poderá esta pronúncia vingar, graças à frequente
exposição à palavra (embora proferida com a vogal átona fechada, quando palavra isolada?).
Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do que
aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da
omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão.

PB31-1
Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença
ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de
uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão
escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei,
nem discuto. Mas em Portugal não.
PB31-2
A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as
traduções brasileiras em Portugal.

PB31-3
Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que
o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir
custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior,
portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final.

PB33-1
Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e
de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma
morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”,
“recepção”, etc., coisa esquecida por cá).
Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado em contraposição ao Brasil nas referências a
“lá” (Brasil) e “cá” (Portugal), mas sua presença também pode ser inferida pela construção verbal “se faça”, a
partir da presunção de que é Portugal quem faz “rasura da etimologia” ao ratificar o AO.

PB34-1
Resulta [o adiamento da entrada em vigor do AO no Brasil] de uma pressão que vem de
longe, como nos lembra o professor Ivo Manuel Barroso (que em Portugal entregou na
Procuradoria uma queixa, fundamentada, para que Portugal se desvincule do AO90) e tem por
base uma acção judicial intentada pelo professor brasileiro Ernani Pimentel.

260
Apêndice D

PB34-2
Porquê? Porque o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), editado
unilateralmente no Brasil em 2009 (o que é já de si um absurdo, porque o AO90 prometeu,
sem nunca cumprir, um “vocabulário unificado” comum a todos os países de língua oficial
portuguesa), contradiz o acordo de 90 em vários pontos.

PB34-3
Felizes, com a perspectiva? Ainda não viram nada. Se o AO90 já é uma fraude, fingindo
unidade onde foi criada confusão e divisão (palavras que todos escreviam da mesma maneira,
tantas, passam a escrever-se, por imposição do AO, de modo diferente em Portugal,
mantendo no Brasil grafia certa: recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc.), as
propostas “simplificadoras” de Pimentel vão apimentar ainda mais o debate em torno da já tão
massacrada grafia da língua portuguesa.

PB34-4
Mas o que move Pimentel? O facto (que por cá se mantém com c, permanecendo “fato” no
Brasil) de “70 por cento dos candidatos chumbarem por causa da língua portuguesa” nos
exames brasileiros de acesso ao Superior.

PB34-5
Pobre Brasil, pobre Portugal, pobre língua. Deixa de ser portuguesa, rica em variantes, para
ser língua de Pandora, aberta não ao mundo mas todos os disparates caseiros. Quem a salva de
tais tormentos? Quem “desacorda” de vez o seu futuro?

PB35-1
Quem tem dúvidas pode dissipá-las ouvindo Fernando Cristóvão numa entrevista concedida
em 2008, que esclarece o que pensam os "acordistas" sobre o processo legislativo num regime
democrático - em que, supostamente, as leis não são dogmas nem mandamentos, e, logo, são
alteráveis e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países
africanos de língua oficial portuguesa: "(...) Porque é que Angola também não há de ter uma
ortografia diferente? E porque é que Moçambique qualquer dia não...? E a Guiné, lá por ser
pequenina, não há de ter uma ortografia? Onde é que nós vamos parar? (...) O acordo tem de
se fazer porque nós temos duas ortografias, não podemos continuar assim, e a continuar
assim qualquer dia temos cinco ou seis. Qual é a língua que resiste a tanta ortografia? [O
Francês, que tem 15, e o Inglês, que tem 18!] (...) Confesso que, perante a urgência de haver
uma ortografia unificada, eu não entendo como é que há tanta teimosia em querer emendar
uma coisa que ainda por cima é uma lei. (...)"
Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal se faz presente na expressão “duas ortografias”, que remete
para a ortografia de Portugal e para a ortografia do Brasil, simultaneamente.

261
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