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FACULDADE DE LETRAS
Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,
especialidade de Cultura e Comunicação
2016
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,
especialidade de Cultura e Comunicação
Júri:
Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e
Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
- Doutor Fernando Ramallo Fernández, Professor Titular, Facultade de Filoloxia e Tradución da
Universidade de Vigo – Espanha:
- Doutora Marta Susana Filipe Alexandre, Professora Adjunta Convidada, Escola Superior de
Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria;
- Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
- Doutora Maria Teresa Barbieri de Ataíde Malafaia, Professora Associada, Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa.
- Doutor Manuel Amador Frias Martins, Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
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Indicação de direitos de cópia
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Aos meus pais
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Resumo
A língua, ainda hoje, figura como um importante e recorrente elemento de
identificação e, em especial, de identificação com uma certa identidade nacional. Neste
estudo, procura-se refletir sobre os diferentes modos como a relação entre língua e identidade
nacional é construída no âmbito do debate sobre a adoção do Acordo Ortográfico de Língua
Portuguesa, de 1990. Tal acordo, assinado por diferentes países, todos membros da CPLP
(Comunidade de Países de Língua Portuguesa), propõe, entre outros objetivos, a promoção da
unificação da grafia do português nos diversos países que o têm como língua oficial. Com
essa preocupação em mente, são analisados artigos de opinião sobre o acordo ortográfico,
publicados pelos jornais portugueses, em 2012.
O enquadramento teórico-metodológico adotado é o da análise do discurso, em sua
vertente crítica, entrelaçado com os princípios da linguística sistêmico-funcional. As
identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas numa perspectiva não essencialista,
que se fundamenta nos diferentes processos de contrução discursiva nos quais a língua
desempenha um papel relevante.
Parte-se de uma breve retrospectiva do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa,
centrada no papel da língua, para, a seguir, identificar-se o contexto português, naquilo que
interessa a este estudo. Passando-se à análise propriamente dita, identifica-se e analisa-se um
conjunto de representações associadas à ideia de pátria, nação, soberania, povo, cultura,
identidade e matriz, que são, neste estudo, caracterizados como “marcadores identitários”.
Também as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e
supranacionais são levadas em conta, num esforço de identificação de simetrias e assimetrias,
de movimentos de aproximação ou afastamento e de afirmação de força ou fraqueza, que, em
alguma medida, representam tentativas de caracterização de um “eu” e de um “outro”, sempre
marcadas por relações de poder.
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Abstract
Language today still figures as an important and recurrent identification element and,
in particular, identification of a certain national identity. In this study, we try to realize the
different ways the relationship between language and national identity is built in the debate on
the adoption of the Portuguese spelling agreement (Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa
de 1990). The agreement that is signed by different countries all of them members of the
CPLP (Community of Portuguese speaking countries) aims to promote the unification of
Portuguese spelling among others objectives. Considering this, opinion articles on the spelling
agreement published by the Portuguese newspaper in 2012 are analyzed.
The theoretical and methodological framework adopted is that of discourse analysis, in
its critical perspective, intertwined with the principles of systemic functional linguistics.
National identities, in this context, are understood within a non-essentialist perspective that is
based on different discursive construction processes in which language plays an important
role.
The starting point is a brief review of the development of nationalisms in Europe,
centered on the role of language. Then the Portuguese context is characterized as far as it is
considered relevant to this study. Turning to the analysis itself, a set of representations, which
are characterized as "identity markers" in this study, are identifyied and analyzed. They are
associated with the idea of homeland, nation, sovereignty, people, culture, identity and matrix.
Also the relationship between Portugal and other national and supranational entities are taken
into account in an effort to identify symmetries and asymmetries, approach or distance
movements, strength or weakness positions, which, to some extent, represent attempts to
define an "I" and an "other" and always embody power relations.
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Agradecimentos
Agradeço a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para que este projeto
chegasse ao fim: ao Manuel Frias Martins, pela primeira conversa sobre língua e identidade,
ainda antes do meu ingresso na FLUL; à Urbana Pereira, pela calorosa presença e pelos
constantes cuidados ao longo deste percurso; à Maria Krebber, pela amizade e cumplicidade,
que muito amenizaram as inseguranças, a solidão e as angústias que acompanham um projeto
como este. Por fim, e sobretudo, agradeço ao Carlos Gouveia pela orientação, pelo apoio e
pela amizade sempre.
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Índice
Introdução………………………………………………………………………. 3
PARTE I
PARTE II
Conclusão……………………………………………………………………….. 211
Referências……………………………………………………………………… 263
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Índice de Quadros
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Introdução
No final do século passado, apregoaram seu fim, mas, nesta segunda década do século
XXI, os Estados-Nação – e os nacionalismos que estão em suas respectivas origens – ainda
figuram como intervenientes relevantes neste jogo de azar que cria, desenvolve e regula
mercados globais de consumo de ideias, valores, produtos, capitais e, também, de pessoas, e
que constitui uma arena internacional de atuação social em sentido amplo.
No contexto europeu, aqui equiparado ao contexto da União Europeia, os
nacionalismos se fazem presentes na manutenção da divisão política dos Estados-membros
em unidades nacionais, nos discursos de afirmação e proteção de uma língua ou de uma
cultura nacional, nas plataformas políticas defendidas principalmente pelos partidos de
extrema-direita, nas campanhas de incentivo ao turismo, nas disputas esportivas
internacionais, nos concursos televisivos como o Eurovisão, entre tantos outros casos e
situações.
Os exemplos acima corroboram, em alguma medida, a tese de que os chamados
Estados-Nação ainda são importantes intervenientes no cenário internacional, mas não
implicam afirmar que os papéis desempenhados por eles não se tenham transformado ao
longo das últimas décadas. Como regra geral, parece haver uma maior concorrência entre as
situações em que o Estado-Nação age sozinho e aquelas em que atua em concerto com outros
Estados-Nação, ou seja, cada vez mais, os Estados são chamados a atuar como membros de
uma instituição ou organização internacional, ou nesse contexto, do que a agir em nome
próprio e individual.
Essas transformações do papel dos Estados-Nação, e dos nacionalismos propriamente
ditos, está diretamente relacionada com os diferentes processos de globalização que marcaram
especialmente o século XX e que seguem se desenvolvendo na atualidade. Tais processos
extrapolam as fronteiras nacionais, mas não necessariamente prescindem da ideia de nação.
Pelo contrário, muitas vezes parecem se valer dela, quando, por exemplo, se organizam em
Introdução
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recurso à etnia, portanto, deixa de ser uma referência estática e eterna e torna-se em algo, em
alguma medida, volátil e passível de transformação ao longo do espaço-tempo.
Nesse mesmo sentido, a noção de povo como os autores, isto é, os criadores originais
de uma nação e, ao mesmo tempo, como os seus legítimos e autênticos herdeiros, também é
reconfigurada à luz dos processos de globalização e da intensificação dos movimentos
migratórios. Multiplicam-se, assim, os deslocamentos, modificando-se os desenhos das
cidades, que, aos poucos, transformam-se em espaços multiculturais.
Pessoas de diferentes nacionalidades convivem num mesmo espaço, interagem,
estranham-se, identificam-se, num constante movimento de atração e repulsa. Os direitos de
cidadania – conquistados pelos antes estrangeiros e agora cidadãos – ampliam a capacidade
de ação do indivíduo, equiparam o que antes era desigual, atenuam ou mesmo apagam as
diferenças. Em muitos países, partidários do jus solis, filhos de pais estrangeiros, nascidos no
país são considerados nacionais ou, ao menos, têm essa possibilidade ao seu dispor,
alimentando em alguma medida o cenário de concorrência entre os conceitos de povo (no viés
de uma partilha étnica) e cidadão (no viés de uma partilha de direitos), que se confundem em
certas situações e constrastam em outras.
A história, com sua forte carga temporal e de continuidade, também é reinventada, ao
lado da ideia de memória. A história deixa de ser o resgate ou o registro de fatos e
acontecimentos do passado e tranforma-se numa narrativa, isto é, numa versão motivada,
parcial e sempre inacabada desse passado. Torna-se, desse modo, objeto de disputa entre
indivíduos, instituições, ideologias, governos – e o mesmo pode-se afirmar da memória, seja
individual, seja coletiva.
As relações de poder entretecidas nessas narrativas de história-memória têm, afinal,
sua existência reconhecida, mesmo que nem sempre seus conteúdos sejam facilmente
identificáveis. Essa história-memória perde seus contornos essencialistas e afirma-se como
invenção. Agora, portanto, não mais se presta com tanta facilidade à comprovação
incontestável da existência secular de uma nação, recurso muito frequente no passado dos
nacionalismos.
Finalmente, resta referir o papel da língua como elemento de identificação, isto é, o
recurso à língua como critério de nacionalidade, que ainda parece estar em vigor. A
associação entre uma língua e uma nação está muitas vezes presente, por exemplo, nos
discursos de proteção à língua, seja ela minoritária ou não, contra o risco de extinção –
ameaçada por línguas mais fortes, como o inglês – ou de ser maculada ou contaminada por
expressões e palavras estrangeiras. Nesse sentido, não são incomuns iniciativas, às vezes no
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campo jurídico, que visam proibir o uso dos chamados estrangeirismos ou mesmo de instituir
multas pecuniárias por erros gramaticais – caracterizados como atentados contra a língua –
em contexto de publicidade ou de circulação pública de informação.
Também reforçam essa relação entre língua e identidade os discursos que atribuem
valor cultural e econômico às línguas, como, por exemplo, as iniciativas que procuram reunir
países que partilham uma mesma língua em busca, entre outras, de vantagens comerciais e
políticas, como a lusofonia ou a francofonia. Nesse contexto, a língua é entendida como
patrimônio ou bem passível de ser possuído e rentabilizado.
A associação entre língua e cultura também contribui para a valorização do papel das
chamadas línguas nacionais como força que une os indivíduos nacionais e os diferencia dos
estrangeiros ao estabelecer uma relação entre a língua e um certo caráter nacional, isto é, um
suposto padrão de comportamento cristalizado em representações, em geral idealizadas e
arquetípicas, que muitas vezes exercem grande influência nos processos de autoidentificação
e também no modo como a nação é percebida pelos outros.
Mas, se o caráter identitário da língua parece persistir na Europa atual, não se pode
negar que o contexto de uso das línguas se tenha transformado, até porque todos os critérios
acima indicados estão ligados e são interdependentes, fazendo com que a transformação de
um afete de algum modo os demais. Com os processos de globalização, o desenvolvimento
das tecnologias de comunicação, o aumento da mobilidade de dados, bens e pessoas e a
multiplicação das migrações, o contato entre línguas também se intensifica. A língua única,
como valor, perde espaço para a diversidade linguística – agora, é esta última que é
valorizada. O indivíduo monolíngue perde potencial competitivo face ao indivíduo plurilingue
tanto nos mercados de trabalho como na sociedade em geral.
No contexto europeu, o multilinguismo é a ideologia linguística adotada, embora não
isenta de contestação, o que significa dizer que a identidade europeia se constrói em torno da
diversidade linguística e não em torno da construção de uma só língua para a Europa (cf. a
Resolução do Conselho da União Europeia de 21 de novembro de 2008, sobre uma estratégia
europeia a favor do multilinguismo). Mas, nesse cenário, as línguas também podem assumir
diferentes papéis. Com o esbatimento das fronteiras físicas e a virtualização e fragmentação
do espaço no interior do continente, as línguas parecem se sobressair como uma espécie de
barreira natural, a separar ingleses, franceses, portugueses ou alemães. Em reforço a tais
discursos, a língua ainda figura como um importante canal de acesso ao exercício pleno da
cidadania, quando não à aquisição primeira dessa cidadania em muitos casos.
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fraquezas que são atribuídas às identidades nacionais, assim como das oportunidades e
ameaças que se lhe apresentam.
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PARTE I
Capítulo 1
As identidades nacionais na Europa do século XXI
Identidade e modernidade
Identidade nacional
Identidade e Modernidade
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
(2006: 40), citando Georg Simmel, o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo
constitui um bom exemplo desse estranhamento no contato com o outro e do incômodo que
provoca:
“As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades… caracterizam-se por um
evidente predomínio da actividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste
estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros,
dos comboios dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se
encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem
dizerem uma palavra.” A nova situação não era, como reconhece Simmel, nada
tranquilizadora.
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sua versão revista e ampliada (New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society),
editada por Tony Bennett, Lawrence Grossberg, Meaghan Morris, publicada em 2005, o
verbete “identidade”, elaborado por Kevin Robins (Bennett et al, 2005), não só é incluído
como aparece com algum destaque.
A perspectiva adotada por Robins, em tal verbete, é a da identidade como
identificação, isto é, como uma percepção de igualdade individual ou coletiva, que
supostamente se mantém inalterada ao longo do tempo. Essa ideia de permanência contida na
ideia de continuidade atuaria como uma espécie de estratégia de organização da complexidade
da vida moderna tanto no campo subjetivo (psicológico) como social. Os caráteres de unidade
e continuidade das identidades serviriam de contraponto ao pluralismo, à diversidade e à
transformação tão característicos desta modernidade tardia:
Identity is to do with the imagined sameness of a person or of a social group at all times and
circumstances; about a person or a group being, and being able to continue to be, itself and not
someone or something else. Identity may be regarded as a fiction, intended to put an orderly
pattern and narrative on the actual complexity and multitudinous nature of both psychological
and social worlds. The question of identity centers on the assertion of principles of unity, as
opposed to pluralism and diversity, and of continuity, as opposed to chance and transformation.
(Bennet et al, 2005).
Essa definição de identidade é apenas uma entre tantas possíveis, uma vez que os
estudos de identidade são objeto de disciplinas diversas como a sociologia, a psicologia, a
antropologia e os estudos culturais em meio a outras possibilidades. A abordagem adotada
nesta pesquisa, entretanto, é a dos estudos culturais, que não só reconhece os diferentes vieses
adotados por áreas de conhecimento distintas, como se vale deles para construir sua reflexão –
tarefa que pode ser desenvolvida a partir de estratégias diferentes e que, portanto, deve ser
clarificada. Com tal intutito, propõe-se aqui pensar-se em três categorias distintas,
identificadas como “multidisciplinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”.
Entende-se a multidisciplinaridade como a opção que se vale de diferentes áreas do
conhecimento na análise de um dado objeto ou na reflexão sobre um tema qualquer. Nessa
perspectiva, a divisão do conhecimento em áreas distintas e estanques é assumida à partida e
respeitada. O resultado obtido é uma espécie de soma das diferentes mais-valias oferecidas
por cada área. Ao longo desse processo e segundo seus críticos, faz-se presente o receio de
contaminação entre elas, associado ao risco de perda de rigor científico ou de coerência
teórico-metodológica.
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conseguido, mas muitas vezes desejado – numa busca pela estabilidade ou pelo equilíbrio –,
quer em função da ansiedade gerada pela tentativa de se reconstituir um todo indiviso – meta,
agora, impossível de ser alcançada.
Essas tensões transparecem, muitas vezes, nos discursos de afirmação de uma certa
“crise das identidades” que se teria instalado nas sociedades modernas. A perda de pontos de
referência seguros e estáveis, além da multiplicação das possibilidades de identificação,
provocam insegurança e ansiedade no sujeito social moderno, que vivencia essa situação
como crise.
Ora em paralelo, ora em concorrência com a ideia de fragmentação das identidades –
que pressupõe, como já afirmado, a existência anterior de um todo, de uma totalidade, que se
perde – está a noção de multiplicação: não mais identidades fragmentadas, mas sim
identidades múltiplas. Para dar conta da complexidade do sistema social é preciso se
multiplicar – não mais fragmentar o todo, mas sim multiplicá-lo em sua inteireza. Trata-se, na
verdade, de uma justificativa ou estratégia diferente para dar conta do mesmo resultado: o fim
de uma identidade una e indivisível e o desenvolvimento de novas e diversas identidades.
Essa perspectiva parece inverter a ideia de crise convertendo-a em oportunidade. A
modernidade tardia não é mais caracterizada pela “crise das identidades”, mas sim como a
“era das identidades” – em vez da fragmentação, a multiplicação. Para fazer face à
complexidade da modernidade, o indivíduo se vale de várias identidades distintas e
independentes: de gênero, etária, profissional, nacional, etc.
Nesse sentido, cada indivíduo teria um repertório de identidades à sua disposição, que
poderiam ser utilizadas sempre que necessário, segundo o critério de cada um, para melhor
atender as necessidades da vida em sociedade. Na era das identidades, o indivíduo exercitaria
seu poder de escolha e sua capacidade de compra, como se de um bom consumidor se
tratasse, beneficiando-se de um livre-mercado das identidades (Billig, 1995: 134). A
identidade de consumidor, desse modo, ganharia proeminência, especialmente numa
sociedade caracterizada como sociedade de consumo.
A ideia de livre-mercado das identidades acentua a noção de voluntarismo e a
perspectiva sócio-econômica associadas ao tema ao delinear um cenário em que as
identidades se transformam em mercadoria, passíveis de serem adquiridas ou descartadas em
função do poder aquisitivo do consumidor e da sua vontade. Essa contaminação da lógica de
mercado a tantas outras esferas da vida social é também uma característica dos discursos da
modernidade.
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A metáfora da liquidez, tão bem explorada por Bauman (2006), parece útil na
caracterização das identidades nesse contexto de modernidade tardia como “identidades
líquidas”. A matéria em estado sólido se transforma. O estado de liquidez acentua o caráter
fluido e de certo modo volátil das identidades, que estão em permanente estado de
transformação e acentua também sua flexibilidade, isto é, a sua capacidade de assumir formas
diferentes em função do seu entorno.
O que as perspectivas da crise e da era das identidades têm em comum, no entanto, é a
valorização do papel desempenhado por elas nas sociedades atuais. Essa afirmação é em parte
corroborada pelo volume de trabalhos produzidos em torno do tema e pela frequência dos
discursos que dela se valem. Apesar da grande variedade de posições e conceitos veiculados,
é possível refletir sobre o tema a partir de duas visões antagônicas que atravessam essas
discussões: as visões essencialistas e as visões não-essencialistas das identidades.
Considerando-se os dois extremos, pode-se caracterizar as visões essencialistas como
aquelas que partem da ideia de identidade como algo dado, algo que nasce com o indivíduo e
o acompanha – mesmo à sua revelia – até a morte. Faz dele o que ele é, regula seus atos,
determina seu comportamento, isto é, constitui sua essência. Sendo assim, não pode ser
modificada ou transformada. Essas perspectivas retiram poder e autonomia do indivíduo, que
passa a estar sujeito a essa identidade, e são compatíveis com os discursos de descoberta, isto
é, da ideia do indivíduo que parte em busca de si mesmo.
Do lado oposto, estão as visões não-essencialistas que negam o caráter inato das
identidades, afirmando seu potencial de criação e transformação. O indivíduo não nasce com
uma identidade, mas sim a constrói na relação com si mesmo e com os outros. As identidades
resultariam, assim, de um processo de construção. No âmbito dessas teorias, esses processos
de construção podem ser descritos e caracterizados de formas bastante distintas, mas, em
geral, em todas elas o indivíduo adquire algum poder de participação – maior ou menor, mais
ou menos ativo, mais ou menos condicionado. O indivíduo, desse modo, pode escapar à
situação de sujeição e passar à posição de sujeito.
A grande maioria das teorias e reflexões sobre as identidades em vigor hoje, no
entanto, parecem se situar entre um extremo e outro, combinando perspectivas essencialistas e
não-essencialistas. Partindo-se dessa premissa, pode-se delinear algumas das concepções mais
frequentes a partir de duas analogias: a do núcleo-duro e a da moda, que serão desenvolvidas
a seguir.
Uma dessas perspectivas de construção identitária pode ser pensada recorrendo-se a
uma analogia com o conceito de “núcleo-duro”, retirado do direito. O sistema jurídico-
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de pertença, encontrando, assim seu lugar no mundo – seja uma nação, uma minoria étnica,
uma classe social ou um movimento político ou religioso, como exemplifica o autor.
Tais recursos à identificação com o outro e ao estabelecimento de relações de
pertença, como referido acima, conduzem ao “mito da nação”, que, como afirma Billig (1995:
137), assim como o mito da tribo ou o da religião, oferece algum conforto ao indivíduo ao
propiciar a possibilidade do resgate de uma certa integridade, de uma certa inteireza, isto é, de
uma noção do todo em meio à fragmentação e à insegurança inerentes à contemporaneidade.
Identidade nacional
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
para a reflexão sobre o papel simbólico das línguas na construção das identidades nacionais
num contexto bastante específico: a Europa do século XXI.
Todas as transformações acima referidas e as instabilidades que lhe são inerentes
contribuíram para o deflagrar das duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) que
marcaram a primeira metade do século XX na Europa e redefiniram suas fronteiras. Não por
acaso, esse período se confunde com aquele identificado por Hobsbawm (2012) como sendo o
do apogeu dos nacionalismos: de 1918 a 1950.
É no desdobramento desses conflitos, em 1951, que nasce a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço (CECA), que viria a ser o embrião do que é hoje a União Europeia. A CECA
é sucedida pela Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1967, e, finalmente, pela União
Europeia, em 1992. Em seu primeiro momento, trata-se de um acordo comercial estabelecido
entre França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Ao longo dos
anos seguintes, no entanto, passa por vários alargamentos e transformações em natureza,
funções e objetivos, chegando à sua configuração atual como entidade supranacional,
constituída por 28 países soberanos, em busca de integração nos mais variados níveis e
engajada na construção de uma identidade própria.
A ideia de nação como uma espécie de força da natureza, embora dormente, à espera
de irromper constitui o ponto de partida de muitos dos nacionalismos europeus. Nesse
contexto, a nação é concebida como o resultado de séculos de vivência em comum, partilhada
por indivíduos que se assemelham, que possuem uma mesma origem, que ocupam um dado
território, que partilham uma mesma história, uma língua, uma cultura. Todos esses elementos
se mobilizam e conjugam na formação de um Estado-Nação – uma nação politicamente
constituída e reconhecida –, dotado de autodeterminação, estrutura política e jurídica,
instituições públicas, etc.
Nesse sentido, a posição construída por Renan (1994) e defendida num importante
discurso, proferido em 1882, intitulado “Qu’est-ce qu’une nation?” (“O que é uma nação?”)
representa mudança significativa. Para o autor (ibidem:17), a nação seria um “princípio
espiritual”, uma entidade dotada de alma e capaz de inspirar sentimentos de solidariedade e
sacrifício. Nessa concepção de nação, o que faz de uma determinada comunidade nacional
uma nação propriamente dita é o sentimento de solidariedade que ela é capaz de inspirar e que
une todos aqueles que dela fazem parte. Tal sentimento seria suficientemente forte para
justificar sacrifícios – matar e morrer em nome da nação e daqueles que no passado, hoje e
também no futuro, estiveram, estão e estarão dispostos a fazer o mesmo.
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
Nationalism sees itself as a natural and universal ordering of the political life of mankind, only
obscured by that long persistent and mysterious somnolence. (…) It´s nationalism which
engenders nations, and not the other way round. Admittedly, nationalism uses the pre-existing,
historically inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very
selectively, and it most often transforms them radically. Dead languages can be revived,
traditions invented, quite fictitious pristine purities restored.
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
A nação seria, portanto, uma “comunidade inventada”, numa perspectiva que põe em
causa a existência de comunidades homogêneas, compostas por indivíduos que partilham uma
mesma origem, traços genéticos, língua, etc. e que parece não se sustentar face a uma análise
detalhada, um olhar perscrutador. Mas a inexistência – e mesmo a impossibilidade – dessa
homogeneidade não impede que uma comunidade seja percebida ou se perceba como tal.
Anderson parte das reflexões de Gellner e constrói sua própria teoria, que ainda hoje
exerce grande influência nos estudos dos nacionalismos. Critica o recurso à “invenção”,
presente no conceito de Gellner, por acreditar que essa expressão remete para o universo da
arbitrariedade, da fabricação de uma mentira, dificultando o seu entendimento. Anderson
(2006: 5-6) propõe, como alternativa, a definição de nação como comunidade “imaginada”,
ressaltando seu caráter “limitado e soberano”, como ilustrado abaixo:
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
modelo de Estado-Nação pode ser retomada – mesmo que apenas como destino, esperado,
desejado ou almejado.
Partilhando a ideia de nação de Anderson, Hobsbawm desenvolve sua análise dos
nacionalismos numa perspectiva histórica. Reconhecendo que o processo de imaginação da
nação é, como já alertavam Gellner e Anderson, em muito dependente do sistema educativo e
da apropriação seletiva de culturas pré-existentes, Hobsbawm debruça-se sobre o papel da
tradição, que, para ele, também é resultado de um processo de construção. Num célebre artigo
sobre a invenção da tradição, Hobsbawm (1994: 77-78) identifica três desenvolvimentos que
considera prioritários para a invenção das tradições: o desenvolvimento de um sistema
nacional de educação primária, a criação de cerimônias públicas e a produção em massa de
monumentos públicos.
Hobsbawm (1994: 76) chama a atenção para o paradoxo que envolve as nações que,
embora se afirmem e percebam como entidades naturais e seculares, muitas vezes à espera de
serem afirmadas e reconhecidas, mas sempre profundamente enraizadas e cujas origens se
perdem no tempo, são, pelo contrário, bastante atuais – são o resultado de um processo de
construção, isto é, são organizações características da modernidade.
Nesse mesmo sentido, Giddens (2002) afirma que os Estados-Nação são a mais
destacada forma social produzida pela modernidade. Assim, o Estado-Nação se distinguiria de
outras entidades sociopolíticas tradicionais pela sua forma particular de territorialidade,
vigilância e controlo, onde se destaca o monopólio do uso legítimo da força, como registrado
abaixo:
Modernity produces certain distinct social forms, of which the most prominent is the nation-
state. As a sociopolitical entity the nation-state contrasts in a fundamental way whith most
types of traditional order. It develops only as part of a wider nation-state system (which today
has become global in character), has very specific forms of territoriality and surveillance
capabilities, and monopolises effective control over the means of violence. (Giddens, 2002:
15).
O papel da tradição também é explorado por Giddens (2000: 60-61), que estabelece
uma relação com o conceito de “memória coletiva” proposto por Hallbwachs (1990). Segundo
este último, a memória não implica a preservação do passado, pois este é continuamente
revisto e reescrito em função do presente. A memória, portanto, seria essa reconstrução, em
parte individual, mas, sobretudo, social e coletiva desse passado.
A tradição, para Giddens, consiste num “meio de organização da memória colectiva”
(2000: 61), envolvendo a ideia de ritual e um caráter de obrigatoriedade, que o autor
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
caracteriza como dotado de conteúdo moral e emocional. Giddens, portanto, também se afasta
de uma abordagem essencialista do tema, explorando outras dimensões da ideia de tradição.
Deslocando-se o foco do conceito de nação para o de povo, Deutsch (1994)
desenvolve sua perspectiva sobre os nacionalismos a partir da ideia de que a participação e a
pertença a um povo implicam a habilidade de comunicação mais eficiente e abrangente entre
seus indivíduos, em comparação com aqueles que não fazem parte do grupo. Funda-se na
possibilidade de comunicação, de compreensão mútua. A nação é uma comunidade de sentido
e a existência de uma língua comum é condição essencial para a sua existência.
Essa perspectiva, que ele identifica como sendo funcional, envolve a partilha de
recursos comunicativos, isto é, da capacidade e habilidade de utilização da informação, por
meio de uma série de ações que incluem a recolha, transmissão, combinação e uso de dados e
que depende, portanto, da partilha de códigos de comunicação comuns, ou seja, da existência
de uma cultura de comunicação partilhada, como afirma Deutsch (1994: 27):
A partir das ideias reunidas até aqui, pode-se vislumbrar a variedade e multiplicidade
de narrativas e abordagens que caracterizam as teorias sobre os nacionalismos. Nesse cenário,
destaca-se a iniciativa de Smith (2001: 19-20), que, ao refletir sobre os nacionalismos na
modernidade, identifica cinco perspectivas gerais que, juntas, representam a diversidade de
estudos e teorias sobre o nacionalismo em vigor: (i) as nações como comunidades políticas
territoriais; (ii) as nações como vínculo político primário e principal fonte de lealdade de seus
membros; (iii) as nações como os principais atores políticos na arena internacional; (iv) as
nações como construções dos seus cidadãos, em especial dos seus líderes e grupos de elite; e
(v) a nação como enquadramento, como veículo e como beneficiária do desenvolvimento
político e social.
A perspectiva das (i) nações como comunidades políticas territoriais acomoda as
teorias que refletem sobre a ideia de nação no âmbito dos Estados-Nação, ou seja, como
entidades soberanas, situadas num dado território, com fronteiras claras e definidas, com um
sistema jurídico e político que garanta os direitos-deveres dos seus cidadãos, com uma
comunidade coesa.
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
A seguir, a ideia de (ii) nação como vínculo político primário e principal fonte de
lealdade entre os indivíduos nacionais engloba as teorias que exploram a perspectiva política
da nação/pátria, que demanda lealdade e sacrifício, em sobreposição às demais formas e
recursos de identificação. Os conceitos de dever cívico, cidadania, democracia e participação
são temas recorrentes.
A proposição seguinte consiste na identificação das (iii) nações como sendo os
principais atores políticos na arena internacional e remete, portanto, para as situações de
contato entre Estados, ou seja, para a organização das nações no cenário internacional e os
diferentes papéis que podem desempenhar. Nesse contexto, são recorrentes temas como a
multiplicação e o aumento da influência de entidades supranacionais, com seus reflexos sobre
a ideia de soberania nacional, o aumento da interdependência entre as nações e os efeitos da
globalização.
Uma outra perspectiva identificada pelo autor consiste na concepção das (iv) nações
como o resultado de processos de construção realizados por seus cidadãos, acenando, assim,
para as teorias construcionistas, que afirmam o caráter contingente da ideia de nação como
organização social da modernidade, cuja criação é em muito devedora dos interesses da
liderança e das elites nacionais. As relações de poder, as ideologias, o potencial de
identificação e mobilização em torno da ideia de nação são explorados, ao mesmo tempo em
que se destaca a relação de dependência entre o conceito de nação e outras instituições da
modernidade, seus valores e sua infraestrutura: “transporte, burocracia, língua, educação,
mídia, partidos políticos, etc.” (Smith, 2001: 20).
Por fim, o autor conclui apresentando a definição de (v) nação como o
enquadramento, como o veículo e como a beneficiária do desenvolvimento político e social,
afirmando a nação como “único instrumento para garantir as necessidades de todos os
cidadãos na produção e distribuição de recursos e único meio de assegurar o desenvolvimento
sustentável” (Smith, 2001: 20). Isso porque a ideia de nação seria a única dotada de força
suficiente para sensibilizar indivíduos e mobilizar as massas em termos de “compromisso,
dedicação e auto-sacrifício” (ibidem) inerentes à modernização.
Independentemente da formulação que se adote, no entanto, pode-se afirmar que a
ideia de nação e os nacionalismos ainda desempenham papel relevante nas sociedades
modernas, inspirando e despertando alianças e rivalidades, mobilizando pessoas, consistindo
em ou configurando elementos de identificação e solidariedade, num mundo em constante
transformação que parece, cada vez mais, exigir atores e performances globais.
35
As identidades nacionais na Europa do século XXI
Smith (2001: 1) é taxativo ao afirmar que, na perspectiva das ciências sociais, nações e
nacionalismos são entidades da modernidade, cuja construção se inicia na segunda metade do
século XVIII e que têm seu apogeu na primeira metade do século XX, mas que, a partir daí,
vêm perdendo sua força e importância muito em função da transcendência das fronteiras
nacionais, característica da atual era global.
Essa é também a visão de Hobsbawm, que, secundado por Anderson, defende a ideia
de que os nacionalismos teriam chegado ao fim, no sentido de que não mais seriam a principal
força motriz das transformações sociais experimentadas na atualidade, ao contrário do que
fora durante os dois últimos séculos. Em resumo, a tese do fim dos nacionalismos, mais do
que o fim propriamente dito, assinala uma mudança, quer do conceito de nação, quer dos
movimentos que o informam.
A questão que se põe, portanto, é de se saber se as mudanças acima referidas são
suficientemente drásticas para que os conceitos de nação e nacionalismo, como entendidos até
agora, deixem de dar conta desses novos significados e tenham de ser substituídos; ou, por
outro lado, se tais conceitos seguem operacionais e úteis e, portanto, tais mudanças implicam,
simplesmente, um alargamento dos significados anteriores e novas perspectivas de análise,
num movimento corrente e recorrente em qualquer estudo que se desenvolva ao longo do
tempo-espaço.
De modo geral, não parece haver muitas dúvidas de que o papel dos nacionalismos
tenha mudado ou, pelo menos, de que esteja em fase de transformação, em comparação com o
período do seu apogeu. A questão se torna mais controversa, no entanto, quando se trata de
analisar a natureza de tais mudanças e, especialmente, de se saber se estas implicaram a perda
de relevância dos nacionalismos para as sociedades europeias modernas, como afirma
Hobsbawm (2012), tema que será retomado mais à frente.
Na segunda metade do século XX, o foco de tensão se desloca da Europa para os EUA
e a URSS, no contexto da chamada Guerra Fria. A Europa é dividida pela “cortina de ferro”,
que separa a Europa ocidental da Europa de Leste. A Alemanha, partida em dois desde o final
da 2ª Guerra, só voltaria a se reunificar em 1990, após a queda do muro de Berlim, em 1989, e
um pouco antes da dissolução da URSS, em 1991.
Deparamo-nos, em 2015, na Europa, com um cenário marcado por tensões em que os
discursos nacionalistas ocupam posição de destaque. Apenas como exemplo: na Espanha,
tensões entre catalães, bascos e “espanhois”, sem mencionar os galegos; no Reino Unido, o
referendo pela independência da Escócia, sem esquecer eventuais conflitos com a Irlanda; na
Bélgica, a crise política de 2010-2011 que deixou o país sem governo por 541 dias.
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
O cenário atual também é marcado por uma crise econômica, que tem abalado a
Europa nestes últimos anos, e pela questão das migrações, que neste momento adquire
contornos dramáticos. Em tal contexto, multiplicam-se os discursos nacionalistas, agora não
mais de afirmação nacional, exclusivamente, mas sim de discriminação ou mesmo de
xenofobia, adotados, em geral, mas não só, por partidos de extrema-direita, como a Frente
Nacional, de Marine Le Pen, na França, e o UKIP, de Nigel Farage, no Reino Unido.
Hobsbawm já alertava para esse fenômeno, que, embora possa emergir em associação
aos nacionalismos, não se confunde com eles. Como afirma o autor, a xenofobia, longe de ser
um programa político ou uma ideologia, é simplesmente uma expressão de angústia ou
mesmo de fúria que, segundo Hobsbawm, raramente seduz mesmo os mais ardentes
nacionalistas:
However, xenophobia, readily shading into racism, a more general phenomenon in Europe and
North America in the 1990s even than it was in the days of fascism, provides even less of an
historic programme than Mazzinian nationalism. Indeed, it rarely even pretends to be more
than a cry of anguish or fury. Moreover, even the romantic sympathisers with the sovereign
independence of selected small peoples are rarely found insisting on the Janus-like
characteristics of M. Le Pen’s National Front. It has one face, and most of us would prefer it to
have none. (Hobsbawm, 2012: 170).
Ainda assim, a combinação entre xenofobia e nacionalismos, por mais equivocada que
seja, parece ter, na atualidade, um potencial explosivo e não deixa de ser um sintoma de que,
em algum momento, a construção de uma relação saudável entre um suposto eu e um certo
outro falhou. A xenofobia, como uma visão deturpada dos nacionalismos, em geral alimenta
posições discriminatórias que não raro evoluem para a violência.
Assim como identidade, cultura é também um conceito fugidio que, à primeira vista,
parece de fácil apreensão, mas que, numa tentativa de análise mais cuidada, escorrega pelas
mãos. Em alguns casos, o conceito de cultura é definido de forma tão abrangente que passa a
significar quase tudo, pondo em risco sua funcionalidade conceitual. Em outros, sua definição
é tão cerrada que impossibilita uma reflexão minimamente coerente sobre seu uso e
operacionalidade.
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
As identidades são o produto de jogos de espelhos entre entidades que, por razões
contingentes, definem as relações entre si como relações de diferença e atribuem relevância a
tais relações. As identidades são sempre relacionais mas raramente são recíprocas. A relação de
diferenciação é uma relação de desigualdade que se oculta na pretensa incomensurabilidade das
diferenças. Quem tem poder para declarar a diferença tem poder para a declarar superior às
outras diferenças em que se espelha. A identidade é originariamente um modo de dominação
assente num modo de produção de poder que designo por diferenciação desigual.
Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveriamos falar de
identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não da plenitude
da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é
‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser
vistos pelos outros.
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
Para o autor, num entendimento alargado da noção de cultura como modo de vida,
valores, crenças, história, memória, costumes, tradições, partilhar uma certa identidade
nacional implicaria partilhar uma certa identidade cultural – o que significa dizer que, em
alguma medida, os conceitos de identidade e cultura estariam, portanto, sobrepostos,
partilhando um certo conteúdo e mesmo algumas características.
Nesse contexto de aproximação entre cultura e identidade, parece importante destacar
que, assim como as identidades nacionais, as identidades culturais também assumem, muitas
vezes, contornos essencialistas. Contestando tais visões, e, especialmente os discursos que
associam cultura à ideia de raça ou etnia, Kuper (1999: 227) afirma que a cultura não é uma
questão de raça, ou seja, que não está inscrita geneticamente nos seres humanos, mas sim que
resulta de um processo de aprendizagem.
Num esforço de afastamento do viés essencialista, entende-se que a ideia de cultura
implica aprendizado e transmissão, embora tais processos nem sempre sejam desenvolvidos
de forma consciente. Em comunidades estáveis e isoladas, a cultura passa despercebida, torna-
se invisível. Mas, num cenário de mobilidade e de comunicação descontextualizada, a cultura
na qual o indivíduo se desenvolve e aprende a comunicar torna-se central para a construção de
um sentido de identidade (Gellner, 1994: 69). É no contexto de contato entre culturas
diferentes, muitas vezes promovido pelo deslocamento ou afastamento do contexto cultural
em que vive o indivíduo, que este se apercebe da sua cultura.
Anderson (2006: 267) também contribui para o debate da relação entre identidade e
cultura ao afirmar que as nações, assim como as pessoas, valem-se da construção de
narrativas para dar sentido às suas identidades. A percepção de continuidade no tempo e no
espaço, o resgate da memória e, sua contrapartida, o abandono ao esquecimento, são
entretecidos para dar corpo a essa estratégia discursiva.
Em sintonia com tal afirmação, a ideia de nação como estratégia narrativa é
desenvolvida por Bhabha, que explora especialmente um espaço de indefinição e
ambivalência onde categorias como “povo”, “minorias” e “diferença cultural” se confundem e
sobrepõem em permanente deslocamento e constante recepção. A noção de limiar é explorada
pelo autor como o espaço onde fronteiras se perdem ou em que nunca estão claramente
fixadas. Bhabha entende nação como sendo a medida da liminaridade da modernidade cultural
(1994: 292).
Nesse sentido, na modernidade tardia, as nações já não são necessariamente o espaço
de homogeneização cultural, onde diferenças são apagadas e suprimidas, mas sim arena onde
diferentes narrativas disputam primazia e afirmam o caráter ambivalente da nação. Essas
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Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribiu para esse
efeito de “supermercado cultural”. No interior do discurso do consumismo global, as
diferenças e as distinições culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a
uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as
tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Esse fenômeno é
conhecido como “homogeneidade cultural”. (Hall, 2014: 43).
Thus, the thesis of postmodernism proclaims a vision of a future world. In this world, no longer
is the national territory the place from which identities, attachments and patterns of life spring.
The order of the national world gives way to a new mediaevalism. The binary language of
electronics is like a new latin, binding together the knowledgeable across political kingdoms.
In place of the bordered, national state, a multiplicity of terrae are emerging. And those, who
see their identities in terms of gender or sexual orientation, are, like monks before them, bound
by no earthly terra, restricted by no mere sense of place. Thus, a new sensibility a new
psychology emerges in global times. (Billig, 1995:134).
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As identidades nacionais na Europa do século XXI
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Claro que não se pode esquecer que as identidades nacionais, assim como todas as
outras, podem ter valor negativo ou positivo e podem ser fator de inclusão ou exclusão,
dependendo do contexto. Também é preciso destacar que tais identidades – e certas
representações delas – não são sempre assumidas voluntariamente pelo indivíduo, e sim,
muitas vezes, atribuídas a ele como uma espécie de rótulo que determina seu campo de ação e
movimentação.
Nos cenários em que os indivíduos podem assumir diferentes posições e entrar
conscientemente no jogo das identidades, há sempre a possibilidade de se apropriar e se tirar
proveito delas. Mas, ao contrário, quando ficam presos a determinadas representações,
tornam-se reféns dessas identidades – exemplo de tais situações são os movimentos
fundamentalistas em suas diversas naturezas política, religiosa, econômica, etc.
É nesse contexto que ganham corpo as teorias que apregoam o fim dos nacionalismos.
Pressionados pela globalização – aqui traduzida no desenvolvimento das tecnologias de
comunicação; no aumento da mobilidade de bens, pessoas e dados; e na crescente
interdependência entre Estados – e pela transformação da organização mundial indissociável
dela, os nacionalismos estariam perdendo força.
Mas os acontecimentos desse final de século XX parecem contrariar essa tese. Apenas
como exemplo, vale lembrar a guerra, que novamente varreu os bálcãs entre 1991 e 1995,
dessa vez protagonizada especialmente pela Sérvia, Croácia e Bósnia-Herzegovina, na esteira
da dissolução da Iugoslávia – conflito que, mais uma vez, trouxe à tona as velhas ideologias
nacionalistas.
Contrariando a posição acima esboçada, no entanto, e a favor da tese do fim dos
nacionalismos, defendida por ele, Hobsbawm (2012: 163) afirma que os desmantelamentos da
Iugoslávia e da URSS, no final do século XX, assim como os conflitos deles decorrentes, são
ainda efeito do embate de forças verificado no início do século, e não consequência dos
nacionalismos atuais.
Hoje, em vez de impérios que se fragmentam em nações, são as grandes nações que se
fragmentam – ou ameaçam se fragmentar – em pequenas e médias nações na perspectiva de
um suposto nacionalismo etnolinguístico (Hobsbawm, 2012). Em vez de um embate de
forças, tem-se um jogo de pressões. O foco se desloca da força em si mesma – que incide
sobre uma dada superfície – para o seu efeito – a pressão que exerce sobre essa mesma
superfície, uma vez que tais forças já não são tão claras e identificáveis, mas sim invisíveis e
difusas.
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Síntese
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e crise das identidades foram algumas das perspectivas exploradas. Essa reflexão serviu de
fundo para a introdução das identidades nacionais na Europa, apresentadas a partir de uma
breve retrospectiva histórica onde o século XIX e a primeira metade do século XX adquirem
maior relevância. A seguir, explorou-se a relação entre identidade nacional e cultura na
tentativa de melhor compreender os vínculos e interdependências que ligam tais conceitos,
especialmente no contexto europeu atual, marcado pelo projeto de união europeia. Trazendo-
se tal discussão para este início de século XXI, procurou-se desenvolver o tema em
contraponto com os processos de globalização, refletindo-se sobre alguns dos diferentes
significados que assumem e sobre o impacto que exercem sobre a ideia de nação e,
consequentemente, de identidade nacional.
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Capítulo 2
Língua e identidade nacional
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Língua e identidade nacional
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Língua e identidade nacional
Mas a existência de uma língua nacional, de acordo com Hobsbawm, nem sempre foi
essencial para o processo de construção das nações. Para o autor, durante a fase inicial dos
nacionalismos (de 1780 a 1870 aproximadamente), a língua não constitui um fator decisivo de
identificação nacional. Ele cita, entre outros, o exemplo da França à época da Revolução
Francesa, onde 50% dos franceses não falavam francês e apenas 12 ou 13% eram capazes de
falar a língua “corretamente” (2012: 60).
No período subsequente, no entanto, as línguas rapidamente assumem relevância.
Retomando o caso francês, logo após a revolução, tem início um movimento de
uniformização linguística, excepcional para a época, no entender de Hobsbawm. Essa política
de difusão e afirmação da língua francesa é mais uma evidência de que, no princípio dos
nacionalismos, falar a língua nacional não foi um critério relevante para a afirmação de uma
nacionalidade – no caso, a francesa. No entanto, aderir a ela posteriormente, ou seja, falar o
francês, torna-se, progressivamente, pré-requisito obrigatório para o exercício da cidadania e
para a identificação nacional:
The French insistence on linguistic uniformity since the Revolution has indeed been marked,
and at the time it was quite exceptional. (…) But the point to note is, that in theory it was not
the native use of the French language that made a person French – how could it when the
Revolution itself spent so much of its time proving how few people in France actually used
it? – but the willingness to acquire this, among the other liberties, laws and common
characteristics of the free people of France. In a sense acquiring French was one of the
conditions of full French citizenship (and therefore nationality) as acquiring English became
for American citizenship. (Hobsbawm, 2012: 21).
As línguas são, assim, mobilizadas para a causa nacional, num movimento que marca
a transformação dos nacionalismos de uma fase inicial, caracterizada por Hobsbawm (apud
Smith, 2001: 121) como sendo a do nacionalismo das massas, cívico e democrático, que se
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Língua e identidade nacional
desenvolve no período entre 1830 e 1870, para uma nova forma de nacionalismo: o
nacionalismo etnolinguístico, que se afirma entre 1870 e 1914.
Segundo Hobsbawm (2012), as línguas, cujas origens são difíceis de precisar, mas
que, invariavelmente, remetem para um passado longínquo e incerto, prestam-se na perfeição
às estratégias de enraizamento das nações nesse passado distante: constituem uma espécie de
prova de existência e capacidade de sobrevivência, assim como um atestado do seu direito ao
reconhecimento público como nação com o estatuto de Estado e todos os direitos a ele
inerentes.
Essa afirmação de antiguidade, típica da nação moderna recém-criada, embora
represente um paradoxo e, mais do que isso, um equívoco, como defende Hobsbawm, é
recorrente. Fundamenta-se numa concepção da nação como resultado de um desenvolvimento
natural e progressivo, lento e duradouro, que se desenrola quase que à revelia da indústria
humana. A nação ganha, assim, a força dos fenômenos naturais que há muito tempo e em
larga escala subjugam a vontade do homem:
We should not be misled by a curious, but understandable, paradox: modern nations and all
their impedimenta generally claim to be the opposite of novel, namely rooted in the remotest
antiquity, and the opposite of constructed, namely human communities so ‘natural’ as to
require no definition other than self-assertion. (Hobsbawm, 1994: 76).
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Língua e identidade nacional
What nobody quite appreciated was that asking such a question would in itself generate
linguistic nationalism. (...) In truth, by asking the language question censuses for the first
time forced everyone to choose not only a nationality, but a linguistic nationality. The
technical requirements of the modern administrative state once again helped to foster the
emergence o nationalism (…). (Hobsbawm, 2012: 100).
54
Língua e identidade nacional
Yet the ‘national language’ is rarely a pragmatic matter, and still less a dispassionate one, as
is shown by the reluctance to recognize them as constructs, by historicizing, and inventing
traditions for, them. Least of all was it to be pragmatic and dispassionate for the ideologists
of nacionalism as it evolved after 1830 and was transformed towards the end of the century.
For them, language was the soul of a nation, and, as we shall see, increasingly the crucial
criterion of nationality. (Hobsbawm, 2012: 95).
Nesse sentido, vale ainda destacar o papel da língua na construção das chamadas
nações tardias: Alemanha e Itália. Unificadas na segunda metade do século XIX, em ambos os
casos, a língua – ou seja, o alemão e o italiano, respectivamente – desempenha papel crucial
como fator de identidade, embora não fosse, à época, utilizada pela grande maioria das
pessoas quer num caso quer noutro. Mais do que meras línguas administrativas, o alemão e o
italiano eram línguas de cultura e de valor literário, consistindo, segundo Hobsbawm (2012:
103), no único elemento que fazia daqueles indivíduos alemães ou italianos. Essa mesma
ideia é defendida por Blommaert & Verschueren que, ao citarem o exemplo alemão,
identificam a língua como sendo virtualmente o único recurso de identificação nacional
possível:
The German quest for a nation-state was considerably facilitaded by the spread of German
dialects across a large part of Europe. Though only few people actively used a common
language of culture, politically the geographical area in question had been so fragmented that
language was not only a useful, but virtually the only possible, focus for unity. Moreover, by
the time of German unification in the second half of the nineteenth century, European
nationalism was taking a linguistic turn (expressed, i.a., in the insertion of a language
question in national censuses). (Blommaert & Verschueren, 1992: 364).
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Língua e identidade nacional
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Língua e identidade nacional
However, deliberate propaganda was almost certaingly less signficant than the ability of the
mass media to make what were in effect national symbols part of the life of every individual,
and thus to break down the divisions between the private and local spheres in which most
citizens normally lives, and the public and national one. (ibidem: 142).
Essa breve reflexão sobre a relação entre mídia e língua – realizada, aqui, numa
perspectiva histórica – e as funções que tal relação desempenha ao longo do processo de
construção das identidades nacionais pode ser estendida até a atualidade. Nas sociedades
europeias atuais, a língua ainda parece figurar como elemento de identificação nacional e a
mídia segue ocupando lugar de destaque na estruturação dessa sociedade. Tais temas serão
desenvolvidos a seguir, a partir de duas perspectivas distintas – a simbólica e a cultural – e no
contexto do multinguismo: aposta da União Europeia na valorização da diversidade
linguística que caracteriza seu território.
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Língua e identidade nacional
Nessa sua definição funcionalista dos nacionalismos, a língua é explorada em seu viés
predominantemente comunicativo. A participação num dado grupo, ou seja, o reconhecimento
de alguém como membro integrante dessa comunidade – e, da mesma forma, seu auto-
reconhecimento como membro dessa comunidade – consiste na capacidade de se comunicar
socialmente. Em outras palavras, ser capaz de se comunicar de forma mais eficiente com
integrantes desse grupo do que com aqueles que dele não fazem parte configura um recurso
essencial de identificação e de auto-identificação.
A língua, no entanto, além de um sistema simbólico, é por si só um símbolo – e é esse
o viés que se pretende explorar neste estudo, ou seja, o da língua como símbolo de uma certa
identidade nacional e, nessa condição, dotada de poder econômico, político, sociocultural e
também simbólico, na acepção de Bourdieu (1999). A língua como símbolo de uma origem
comum, a língua como símbolo de uma raiz antiga e profunda, a língua como símbolo de uma
certa visão de mundo, a língua como símbolo de poder, a língua como símbolo de um
temperamento ou comportamento, a língua como símbolo de uma cultura, a língua como
símbolo da nação são apenas alguns exemplos.
Nessa perspectiva, importa não só a construção de representações simbólicas
associadas à língua, mas também o potencial de disseminação e fixação das mesmas. Com o
aumento exponencial da mobilidade e o desenvolvimento dos meios de comunicação,
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Língua e identidade nacional
The development of communication media was interwoven in complex ways with a number
of other developmental processes which, taken together, were constitutive of what we have
come to call ‘modernity’. Hence, if we wish to understand the nature of modernity – that is,
of the institutional characteristics of modern societies and the life conditions created by them
– then we must give a central role to the development of communication media and their
impact. (Thompson, 1995: 3).
A fim de se ter uma percepção mais clara dessa situação, basta pensar que as
transformações promovidas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massas
incluem a ampliação dos espaços e oportunidades de ação individual e coletiva, o alargamento
dos horizontes de visão, o acesso a uma quantidade exponencial de informação, a
possibilidade de conhecimento e de formação e expressão de opinião (assim como a
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Língua e identidade nacional
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Língua e identidade nacional
(…) (W)e can understand the social impact of the development of new networks of
communication and information flow only if we put aside the intuitively plausible idea that
communication media serve to transmit information and symbolic content to individuals
whose relations to others remain fundamentally unchanged. We must see, instead, that the
use of communication media involves the creation of new forms of action and interaction in
the social world, new kinds of social relationship and new ways of relating to others and to
oneself. (Thompson, 1995: 4).
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Língua e identidade nacional
por conta desse imaginário e daquilo que ele implica, vem sendo substituída em algumas
áreas por expressões como primeira língua, por exemplo – remete para um universo de
expectativas, posturas e sentimentos face às línguas e ao seu uso que parecem condizer com
os discursos de afirmação nacional construídos em torno das línguas, acentuando seu papel de
ícone da nação.
Como refere Hobsbawm, um exemplo significativo da dimensão simbólica assumida
pelas línguas nacionais e traduzida, em parte, nessa preocupação com a pureza e a
autenticidade das línguas nacionais – exemplo repetidamente narrado, mas com diferentes
países ocupando a posição de protagonismo –, consiste no esforço repetitivo e intensivo de
excluir da língua certas palavras que não são consideradas suficientemente autênticas ou
originárias, ou seja, palavras emprestadas ou tomadas de outras línguas de contato. Tais
vocábulos são, em geral, substituídos por novas versões mais adequadas à ideologia
linguística nacional:
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Língua e identidade nacional
The links between racism and nationalism are obvious. ‘Race’ and language were easily
confused as in the case of ‘Aryans’ and “Semites’, to the indignation of scrupulous scholars
like Max Muller who pointed out that ‘race’, a genetic concept, could not be inferred from
language, which was not inherited. Moreover, there is an evident analogy between the
insistence of racists on the importance of racial purity and the horrors of miscegenation, and
the insistence of so many – one is tempted to say of most – forms of linguistic nationalism on
the need to purify the national language from foreign elements. (Hobsbawm, 2012: 108).
De qualquer modo, não se pode ignorar a força dos sentimentos que levam os
indivíduos a se identificarem como membros de um grupo, atribuindo-se uma dada identidade
étnica e linguística em contraste com outros, que, em geral, representam uma ameaça contra a
qual aquele grupo precisa de se defender. Esse é o cenário esboçado por Hobsbawm (2012:
170) e que, em alguma medida, fundamenta sua afirmação de que a xenofobia é a ideologia de
massas mais disseminada no mundo, como já comentado no capítulo anterior.
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Língua e identidade nacional
conjunto ampliado de palavras para dizer o estado e a condição da neve. Em outras palavras,
na perspectiva do indivíduo, a condição de existência, no campo da realidade, de um conjunto
ampliado de estados da neve é indissociável da existência simultânea desse vocabulário com
ele compatível.
De modo geral, a existência de alguma relação entre língua e mundo é pouco
contestada, o que, no entanto, é objeto de debate é a natureza e o grau dessa relação. A língua
determina uma visão de mundo ou influencia tal visão? Se influencia, em que medida ou de
que modo? Mais especificamente, e já direcionando o debate para o tema em causa nesta
pesquisa, interessa refletir sobre em que medida a língua que falamos faz de nós quem somos
ou, em outras palavras, em que medida a língua que falamos determina ou influencia nossa
identidade.
A sociolinguística também explora essa relação entre língua, visão de mundo e
identidade ao extrapolar a perspectiva da língua como meio de comunicação, estritamente, e
analisar seus diferentes papéis no contexto social. A língua é, assim, analisada numa
perspectiva mais abrangente, como forma de ação e estratégia de interação em sociedade,
como recurso de identificação e de estabelecimento de relações interpessoais entre outros.
É no âmbito da discussão acima que o conceito de cultura é trazido ao debate,
estabelecendo-se uma relação de interdependência entre língua e cultura. Embora não sejam
sinônimos, não se pode negar a existência de uma forte componente cultural no conceito de
língua ou, em sentido inverso, de uma forte componente linguística no conceito de cultura.
Em comprovação ao acima afirmado, basta observar a frequência de vezes em que um termo é
tomado pelo outro, numa sobreposição nem sempre explícita ou intencional.
Nessa perspectiva, a ideia de que as línguas são dotadas de cultura parece fazer
sentido. Nascer, ser educado, crescer e conviver numa certa língua, portanto, implicaria
partilhar uma certa cultura em toda a sua amplitude – língua e cultura seriam, assim,
indissociáveis. Essa partilha de ou comunhão numa mesma língua e cultura configura um
forte recurso de identificação individual e coletiva, e também de identificação nacional –
muitos dos discursos de afirmação nacional, em geral de caráter essencialista, valem-se dele
para construir uma percepção de homogeneidade e identidade, por exemplo.
Corroborando a posição que associa cultura e identidade, Hall (2014: 29) destaca a
sobreposição existente entre esses dois conceitos no âmbito nacional, descrevendo as culturas
nacionais como “comunidades imaginadas”, numa referência explícita à definição de nação de
Anderson. Para o autor, assim como as nações, as culturas nacionais são construções da
modernidade e fonte de identificação individual e coletiva, como referido a seguir:
64
Língua e identidade nacional
Uma vez que a relação de interdependência entre língua e cultura já foi aqui destacada,
parece razoável ampliar essa discussão para abranger as relações de interdependência entre
cultura, língua e identidade, que estão aqui em causa. Seguindo tal raciocínio, a língua
definiria os limites, isto é, o campo de atuação dessa cultura – e, se pensarmos nas culturas
nacionais, poderiam, inclusive, atuar como uma espécie de sucedâneo das fronteiras da nação.
Nesse sentido, parece interessante referir a acepção de cultura nacional de Santos
(2001: 25-6), segundo a qual esta seria uma construção dos Estados-Nação, que, ao longo do
século XIX, teriam tomado para si a tarefa de diferenciar a cultura interior às suas fronteiras
daquilo que lhe era exterior, homogeneizando essa cultura no interior do seu território, para
então extrapolar essa noção de território físico que define os limites dessa cultura nacional e
pensar o papel da língua nesse contexto.
Como afirmam Wodak e Boukala (2015: 258), cada vez mais, são a língua nacional, a
ideia de etnia e a cultura que operam como definidores desses limites e fronteiras, figurando
como elementos importantes nos debates sobre as políticas de identidade: “ ‘(b)order politics’
is part of national identity politics and is now increasingly defined by the national language
(“the mother tongue”), ethnicity and culture, thus transcending the political borders of the
nation state”.
Mas, além de portadoras de cultura e em consequência disso, as línguas são também
importantes ferramentas de transmissão e disseminação cultural. Por meio da língua, a cultura
nacional é transmitida de uma geração para outra, numa perspectiva temporal, e também
disseminada para além do espaço – físico ou virtual – que ocupa, num contexto em que os
sistemas de educação e ensino e as novas tecnologias da informação e de comunicação
desempenham papel relevante.
Dessa relação entre língua e cultura resulta uma aproximação entre os discursos que se
aplicam a uma ou outra: os discursos de valorização da diversidade cultural se confundem
com os discursos de valorização da diversidade linguística; os discursos de proteção de uma
dada cultura se confundem com os de proteção de uma dada língua. Aliás, em matéria de
língua e cultura, predominam os discursos de valorização e proteção ao lado da constante
presença de uma ameaça, como se fossem ambas – língua e cultura – cacterizadas por um
65
Língua e identidade nacional
(…) na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são
formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser
“inglês” devido ao modo como a “inglesidade” [englishness] veio a ser representada – como
um conjunto de significados – pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é
apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação
cultural (Hall, 2014: 30).
66
Língua e identidade nacional
ideia de que o francês é uma língua romântica, o alemão é uma língua agressiva ou dura e o
inglês é uma língua de poder e sucesso internacional.
Nesse contexto, entende-se por estereótipo o conjunto de representações cristalizadas e
repetidas, partilhadas por um número ampliado de pessoas e utilizadas, de modo recorrente,
na construção e caracterização das identidades – seja de forma afirmativa, seja de forma
negativa. Embora nem sempre seja possível definir o conteúdo de tais estereótipos de modo
consensual, tal fato não impede nem restringe o seu uso nos discursos do cotidiano, tampouco
minimiza sua força e importância.
Os estereótipos constituem um forte recurso de construção de identidade e diferença e
desempenham papel de relevância na construção de uma certa imagem pública, tanto no que
diz respeito à autoimagem, como também no que diz respeito à imagem que se atribui ao
outro. Em geral, tais representações se valem de preconceitos de natureza diversa e
incorporam um grande potencial de violência, os quais, muitas vezes, passam despercebidos
em função da adoção, também recorrente, de um certo tom jocoso ou humorístico:
We could go on almost ad infinitum with such more or less serious anecdotal remarks about
nationality or the alleged mentality of nations. While this can be amusing to a certain extent,
we are also aware of how often nationalist attitudes and ethnic stereotypes articulated in
discourse accompany or even determine political decision-making, and we note with concern
the increase in discriminatory acts and exclusionary practices conducted in the name of
natinalism in many parts of Europe (Wodak et al, 1999: 1).
67
Língua e identidade nacional
uma única língua partilhada por todos, como uma espécie de língua franca ou de uso global
generalizado.
Interessa agora refletir sobre o que acontece com a relação entre língua e identidade
nacional na Europa de hoje, ou melhor, sobre o que acontece com a percepção dessa relação.
A rigor, a afirmação peremptória de que a cada nação corresponde uma língua nacional (ou,
em sentido inverso, a existência de uma língua nacional conduzindo ao reconhecimento ou
constituição da nação), que ganhou força ao longo dos séculos XIX e primeira metade do XX,
há muito vem sendo desafiada.
Corroboram a afirmação acima os vários exemplos de nações únicas que se valem de
diferentes línguas nacionais (como a Suíça ou a Bélgica), assim como os exemplos de nações
distintas que partilham uma mesma língua nacional (como Portugal e o Brasil ou o Reino
Unido e os EUA). Tais situações, no entanto, não parecem abalar a fé generalizada na máxima
de uma língua, uma nação, ao menos nos discursos do cotidiano.
No contexto da União Europeia, no entanto, vigora a política ou ideologia do
multilinguismo, que consiste, grosso modo, na valorização da diversidade linguística
característica da Europa, indissociável da promoção do contato e do aprendizado entre as
diferentes línguas oficiais faladas nos países-membros. Traçando um paralelo com as
entidades nacionais tradicionais, interessa pensar qual seria o papel da língua hoje na
construção de uma identidade para a Europa.
Partindo-se, portanto, do pressuposto de que existe alguma afinidade entre o conceito
de identidade nacional e o de identidade europeia – e entendendo-se esta última como sendo
uma espécie de identidade supranacional, ou seja, da mesma natureza das identidades
nacionais, mas de um tipo distinto – importa refletir sobre a viabilidade de um projeto
identitário fundado no multilinguismo, isto é, na diversidade e variedade de línguas, em
contraste com a ideia de unidade linguística.
Seguindo tal raciocínio, a proposta de construção de uma identidade europeia em torno
do conceito do multilinguismo parece, a princípio, representar a negação da afirmação inicial
de uma língua, uma nação, no sentido de tentar promover um tipo de identidade nacional
(nesse caso, supranacional) sem a suposta unidade linguística equivalente. Mas tal leitura
68
Língua e identidade nacional
concorre com outros discursos inerentes ao multilinguismo, nem sempre explícitos, como
aqueles que giram em torno do respeito por e da proteção das diversas línguas nacionais.
Dizendo-se de outro modo, é possível identificar, entre tantos cenários possíveis e
concorrentes, um estado de tensão que se instaura entre os discursos de valorização da
diversidade linguística na Europa e os discursos de proteção da unidade – ou, melhor,
uniformidade – linguística de cada país-membro. Nessa perspectiva, a relação entre língua e
identidade é valorizada, assim com um certo nacionalismo linguístico, que não consegue se
afastar significativamente de visões essencialistas das identidades.
Os discursos construídos em torno da ideia de valorização e proteção da diversidade
linguística e cultural da Europa, assim como da necessidade de desenvolvimento de políticas e
programas de educação, ensino, mobilidade e conhecimento recíprocos a fim de combater
preconceitos e discriminação e promover a integração, estão presentes, por exemplo, no
Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas que, ao descrever as “finalidades e os
objetivos da política linguística do Conselho da Europa” (QECR, 2001: 20), caracteriza a
diversidade como valor, mas também como obstáculo a ser superado, como exemplificado a
seguir:
Esse mesmo discurso, porém, que valoriza a diversidade linguística, parece inspirar,
em alguma medida, a proteção – ou um cuidado que parece, muitas vezes, excessivo – das
chamadas línguas nacionais e, mais especificamente, da associação ou mesmo do vínculo
entre língua e nação. É nesse contexto que se fala na convivência entre as línguas ou mesmo
na importância da diversidade, sem se explorar, efetiva e necessariamente, as possibilidades
de construção de uma identidade não linguística ou fundada exatamente na existência de um
repertório ampliado e sempre em movimento de línguas.
Nesse sentido, a tentativa de construção de uma identidade nacional a partir do
multilinguismo parece representar, não a contradição, mas sim o seu contrário, isto é, a
afirmação e validação da relação entre língua e nação, uma vez que nos discursos do
multilinguismo essa relação parece permanecer intocada – mais do que isso, é, na maioria dos
casos, protegida e valorizada.
69
Língua e identidade nacional
70
Língua e identidade nacional
Nationalism has been a notorious cause of conflicts, and has let to dome of the worst events
in history. Also, the ‘liberated’ Moldavians and Kazakhs or Slovaks, as well as the liberated
East-Germans, seem to be building a track record of oppression and racism agains minorities.
Every minority has its own minorities. And for members of minority groups, be they
immigrants in Western-Europe, or Gagauz people in Moldavia, the ‘national’ government
may be as bad as the empire, because in both cases very little attention is given to their
linguistic, cultural or whatereve rights. Only the structural level of the debate has shifted.
Nothing has been achieved to guarantee more democracy in a pluralist sense. (Blommaert e
Verschueren, 1992: 373).
71
Língua e identidade nacional
Proficiency in the national languages of EU members is used as a strategy for the exclusion
of “strangers” and the enforcement of a (supra)national identity via border and body politics.
Hence, the multilngualism of the EU is limited to member states’ national languages, in spite
of the wording of official EU multilingualism policies.
72
Língua e identidade nacional
In terms of language-centred identity, it is perhaps natural do expect that the full range of
language(s) which make up an individual’s linguistic inventory has an influence on the
creation of self-image and the way that an individual sees him/herself as relating to others,
including the national population and the construct of the nation-state, and hence that
languages used for formal purposes also form part of speakers’ sense of national identity.
(Simpson, 2008: 24).
Por fim, um último tema que parece interessante explorar para melhor se entender a
relação entre língua, multilinguismo e identidade nacional refere-se ao papel das línguas como
demarcadoras da diferença: no contexto de coexistência de línguas diferentes num dado
espaço físico – neste caso, o da União Europeia – em que as fronteiras nacionais físicas
perdem paulatinamente definição e status, as línguas poderiam servir como sucedâneo destas,
instituindo novas geografias no interior da Europa.
73
Língua e identidade nacional
No desempenho dessa nova função, certas características das línguas são valorizadas:
exatamente aquelas que supostamente fazem das línguas uma nova versão das fronteiras.
Entre elas, destacam-se a sua visibilidade, que permite a identificação da diferença e parece
funcionar bastante bem como critério de inclusão/exclusão numa dada sociedade; sua
mobilidade, que faz com que ela melhor se adapte à fluidez e constante movimentação das
fronteiras; e sua permeabilidade, que responde melhor às necessidades de contato e interação
características do projeto europeu.
Mas o recurso à língua como estratégia de definição das fronteiras nacionais, no
cenário da União Europeia, em que as barreiras territoriais tornam-se cada vez mais
transparentes e líquidas, é posto em causa na análise da Europa contemporânea, num estudo
que parece indicar que a pluralidade e a multidirecionalidade dos fluxos de comunicação
estariam a relativizar o impacto das línguas como delimitadoras de um novo espaço público:
“the idea of serving and participating in creating a public sphere defined by national or
language boundaries has been losing its impact in CEE contexts where communication flows
have become more multidirectional an increasingly pluralistic” (Krzyzanowski and
Galasinska, 2009: 10).
A partir do conjunto de reflexões acima, pode-se afirmar, com alguma segurança, que
as línguas desempenham papel relevante na construção de uma identidade europeia
especialmente na perspectiva simbólica, que é aquela que aqui interessa. Mais do que as
línguas em si, são os discursos de valorização da diversidade linguística que parecem
caracterizar essa identidade e fundamentar as políticas de ensino e difusão de línguas, assim
como iniciativas no campo da cultura entre outros.
Nesse contexto, a valorização da diversidade linguística como fator de identidade não
parece alterar a relação de associação – ou mesmo o vínculo – entre língua e identidade
nacional estabelecido no interior de cada um dos Estados-membros. Essa afirmação é, em
parte, confirmada pelo esforço dos órgãos de administração da União Europeia em acomodar
as diferentes línguas nacionais ou assim reconhecidas em seu território, o que leva ao
reconhecimento de vinte e quatro línguas oficiais e à manutenção de uma estrutura de trabalho
que envolve aproximadamente 1750 linguistas e 3600 intérpretes, entre permanentes e
contaratados, além do pessoal de apoio.
74
Língua e identidade nacional
Síntese
75
Capítulo 3
A construção discursiva das identidades nacionais
O discurso
O discurso midiático
O Discurso
Nos anos 60, numerosos estudos e pesquisas no âmbito das ciências sociais viriam a
definir os contornos do movimento que ficou conhecido como “virada discursiva”. O marco
dessa mudança foi a publicação de um livro de ensaios filosóficos, editado por Richard Rorty,
em 1967, com o título The Linguistic Turn, cujo objetivo era promover a reflexão sobre as
drásticas mudanças no campo da filosofia associadas à linguagem, as quais defendiam, a
grosso modo, que as grandes questões filosóficas podiam ser solucionadas por via da
linguagem ou por meio de uma melhor compreensão do seu uso (Rorty, 1970: 3).
Essa ideia se faz presente numa série de teorias que estabelecem uma relação
intrínseca entre a linguagem e a vida em sociedade, entre elas as que se fundamentam na ideia
de construção discursiva da realidade, e que estão na base de muitos dos movimentos que
influenciaram e ainda influenciam o pensamento e a produção de conhecimento na Europa, e
80
A construção discursiva das identidades nacionais
(...) many researchers in the structuralist tradition have developed an explicitly critical concern
with fact construction: for them the point of looking at fact construction is to demonstrate the
way particular representations of the world are partial, related to interests, or work to obscure
the operation of power. Often the concern with fact construction comes from a broader concern
with questions of ideology, most prominently: in what ways can a set of social relations be
made to seem necessary, natural and timeless? (Potter, 1997: 69).
81
A construção discursiva das identidades nacionais
82
A construção discursiva das identidades nacionais
(…) o discurso (…) aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem as suas
regras de aparecimento, mas também as suas condições de apropriação e de utilização; um bem
que põe por conseguinte, a partir da sua própria existência (e não simplesmente nas suas
“aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, objecto de uma luta, e
de uma luta política. (Foucault, 2005: 163).
83
A construção discursiva das identidades nacionais
84
A construção discursiva das identidades nacionais
As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos. Pelo modo como representam a
realidade e posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a reproduzir relações de poder
desiguais. A associação das questões de poder e de ideologia com o discurso é tornada evidente
pelo carácter de princípio estruturante da realidade que a este está associado: enquanto prática
social, o discurso estabelece uma relação dialéctica com a estrutura social, na medida em que
se afirma como um dos seus princípios estruturadores, ao mesmo tempo que é por ela
estruturado e condicionado. (Gouveia, 2001: 340).
Nas sociedades democráticas de hoje, o poder se manifesta, mais do que pelo exercício
da força ou do chamado poder coercitivo do Estado, pela capacidade de produzir consensos.
Dessa constatação, deriva, em parte, o conceito de poder como hegemonia, proposto por
Gramsci, que revela o embate ideológico que atravessa e informa as práticas discursivas,
caracterizadas por disputas “pela instauração, sustentação, universalização de discursos
particulares” (Resende & Ramalho, 2011: 25).
Nesse sentido, analisar e compreender as diversas relações que são construídas entre
poder e discurso afigura-se como essencial para o melhor entendimento das sociedades atuais.
Os discursos, no entanto, não são simplesmente formas de instrumentalização ou operação das
85
A construção discursiva das identidades nacionais
disputas de poder, mas sim configuram-se em objeto dessa disputa e, em última instância, do
poder propriamente dito, conforme destaca Foucault:
Nisto nada há de surpreendente: uma vez que o discurso – como a psicanálise nos mostrou –
não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é objecto
do desejo; e uma vez que – e isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual, e
com o qual se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (Foucault, 1997: 10-11).
ideológicas e de poder entre outras. Tais disputas estruturam e dão forma ao tecido social –
sempre em transformação e renovação – influenciando ou mesmo, em alguns casos,
condicionando diferentes formas de interação social.
O discurso midiático
O papel da mídia nas sociedades modernas tem sido objeto de debate, especialmente a
partir do início do século XX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas.
A popularização da rádio, entre os anos 20 e 30, e da televisão, entre os anos 50 e 60, marca
momentos decisivos nesse processo, com a ampliação das audiências e o desenvolvimento
posterior de uma série de teorias que, em geral, destacam seu poder (McQuail, 2003: 423-
429).
A mídia ocupa também papel de destaque nos estudos sobre a modernidade, muito em
função da relevância do desenvolvimento dos meios de comunicação de massas para os
chamados processos de globalização e sua análise e para a modificação e transformação das
relações econômicas, políticas, sociais e culturais que caracterizam o momento atual. Tais
transformações englobam uma série de mudanças que afetam também, mas não só, o próprio
conceito de Estado-Nação e seus papéis, como, por exemplo, alterações ligadas “ao
desmantelamento das fronteiras; à diminuição da soberania dos Estados nacionais com a
criação das grandes entidades transnacionais; à livre circulação de bens e de capitais; à
descrença nas grandes narrativas”, como ilustra Fiorin (2013: 15).
Para Thompson (1995: 3), como já referido no capítulo anterior, a mídia é um dos
elementos constitutivos da ideia de modernidade, configurando muitas das instituições e dos
modos de vida que lhe são inerentes. Desempenha, portanto, papel estruturante das novas
realidades sociais que se afirmam e são, ao mesmo tempo, estruturadas por elas. Nesse
sentido, a literacia midiática torna-se imprescindível para a vida moderna.
Para o autor, mais do que recurso configurador das intituições da modernidade, a
mídia institui e define novas formas de ação e interação no mundo social e novos modos de
relacionamento intra e interpessoal (Thompson, 1995: 4). Nesse contexto, a perspectiva da
transformação da relação espaço-tempo talvez seja um bom exemplo do alcance de tais
mudanças. Como afirma Giddens (2002), na modernidade, não mais tempo e espaço se
87
A construção discursiva das identidades nacionais
definem reciprocamente, sendo possível pensar num espaço sem tempo e num tempo sem
espaço.
Também a centralidade da comunicação para o capitalismo moderno reforça o papel
da mídia nas sociedades atuais, entrelaçando poder econômico e poder simbólico. A mídia,
como importante recurso de produção e transmissão de sistemas simbólicos, figura, assim,
como fonte de poder, mas também como meio de acesso a ele e, sobretudo, como palco da
luta pelo poder. Essas relações caracterizam as chamadas sociedades da informação (cf.
Hassan, 2011), ou seja, sociedades organizadas em torno de sistemas de produção e circulação
de informação, como esclarecem Resende e Ramalho:
88
A construção discursiva das identidades nacionais
alternativas dessas realidades, sujeitas aos interesses específicos, às relações de poder e aos
objetivos daqueles que participam de sua produção (Fairclough, 1995: 103-104).
Construir versões alternativas da realidade, no entanto, não significa distorcê-la, como
bem alerta Luhmann (2000:7). Para o autor, afirmar que a mídia distorce a realidade com suas
representações seria reconhecer a existência apriorística e essencialista dessa realidade, a qual
ele contesta. Para si, a questão que se coloca, portanto, não é a de se saber se a mídia constrói
a realidade, mas sim como a constrói.
Não se pretende, com essa afirmação, atribuir à mídia superpoderes, uma vez que o
seu papel na produção da notícia não é isento de debate e controvérsias, mas sim destacar sua
relevância como elemento estruturante do e estruturado pelo tecido social. Nesse sentido, vale
a pena relembrar a reflexão de Stuart Hall (2009) e outros sobre a perspectiva social da
produção da notícia, onde se destacam os papéis dos definidores primários e dos definidores
secundários nesse processo.
Segundo os autores, a mídia faria parte do segundo grupo, deixando a posição de
definidor primário para as diferentes fontes de informação e os detentores de poder, sejam
estes pessoas ou instituições. A notícia seria, portanto, produzida como resultado de um
processo em que definidores primários e secundários desempenham seus papéis, não sendo
nem pura e simplesmente uma “criação” da mídia, nem mera afirmação e repetição da
ideologia da “classes dominantes”:
The media, then, do not simply ‘create’ the news; nor do they simply tansmit the ideology of
the ‘ruling class’ in a conspiratorial fashion. Indeed, we have suggested that, in a critical sense,
the media are frequently not the ‘primary definers’ of news events at all; but their structured
relationship to power has the effect of making them play a crucial but secondary role in
reproducing the definitions of those who have privileged access, as of right, to the media as
‘accredited sources’. From this point of view, in the moment of news production, the media
stand in a position of structured subordination to the primary definers. (Hall et al, 2009: 653).
Não é objeto deste estudo, no entanto, aprofundar essa discussão. Importa apenas
destacar que a mídia desempenha papel relevante na construção da realidade e da vida em
sociedade. Segundo Fairclough (1995:52), ela constitui um eficaz instrumento de medida da
mudança sociocultural, uma vez que esta se manifesta na diversidade e na transformação das
práticas discursivas da mídia. Nessa perspectiva, a análise dos discursos midiáticos – e sua
imbricação no campo sociocultural – revela-se importante para a compreensão de diferentes
visões de mundo nesta modernidade tardia.
89
A construção discursiva das identidades nacionais
Também questões relacionadas à cultura ganham cada vez mais destaque no debate
social, sendo seu potencial de transformação reconhecido e valorizado. Tal destaque à cultura
estende-se às noções de língua e discurso, indissociáveis da ideia de cultura. Nesse cenário, o
efetivo acesso à cidadania e ao conjunto de direitos (e deveres) que ele implica passa a ser
mediado por cultura, discurso e língua, configurando um universo que inclui também, como
ressalta Fairclough, o discurso da mídia, numa referência que faz lembrar mais uma vez a
importância da literacia midiática, já mencionada anteriormente:
The media, and media discourse, are clearly a powerful presence in contemporary social life,
particularly since it is a feature of late modernity that cultural facets of society are increasingly
salient in the social order and social change. If culture is becoming more salient, by the same
token so too are language and discourse. It follows that it is becoming essential for effective
citizenship that people should be critically aware of culture, discourse and language, including
the discourse and language of the media. (Fairclough, 1995: 201).
Uma vez que o corpus de análise desta pesquisa consiste em textos publicados em
jornais, interessa destacar duas características centrais dos mesmos: seu caráter público e sua
pretensão de acessibilidade. Tais características, embora distintas, estão interrelacionadas e
orientam parte significativa do processo de produção e consumo de notícias,
independentemente do perfil editorial do veículo de publicação.
O caráter público aplica-se ao seu conteúdo, que deve girar em torno de temas de
interesse público, ou seja, de questões pertinentes à chamada esfera pública em contraposição
ao conceito de espaço privado – distinção que se torna cada vez mais difícil de elaborar no
contexto da modernidade tardia (cf. Innerarity, 2006), mas que não será discutida no âmbito
deste estudo. Também a forma como tal conteúdo é produzido e reproduzido assume o caráter
público, isto é, resulta da participação dos diferentes atores que se movimentam no espaço
público. Daí a relevância do discurso midiático como meio de acesso aos discursos que
circulam e dão forma a esses espaços, discussão já, em parte, desenvolvida no capítulo
anterior.
A questão da acessibilidade refere-se tanto ao registro jornalístico em si mesmo quanto
à disponibilidade material do jornal. O registro jornalístico, no que diz respeito à linguagem, é
– ou, ao menos, pretende ser – acessível à maior parte dos leitores. Valoriza-se, portanto, o
discurso direto e conciso, claro e simples. Ao mesmo tempo, por se tratar de um meio de
comunicação, cuja distribuição é central para seu sucesso, também a questão da acessibilidade
física é contemplada.
90
A construção discursiva das identidades nacionais
91
A construção discursiva das identidades nacionais
2001: 61), a opção de análise de textos da mídia, escolhida nesta pesquisa, recaiu
especificamente sobre textos opinativos, nos quais tal subjetividade é assumida logo à partida,
afastando-se, assim, qualquer pretensão de isenção.
Nesse contexto, entende-se que os artigos opinativos veiculam as ideias e posições dos
seus respectivos autores, que são, em geral, identificados como ‘formadores de opinião’, ou
seja, pessoas que, pela sua posição ou status na sociedade – cargos que ocupam, experiência
vivida, conhecimento especializado, imagem pública, etc. –, exercem influência e atuam
como porta-vozes das diferentes correntes que marcam o debate público.
De modo geral, a análise dos discursos veiculados nos artigos de opinião permite a
construção de uma visão aproximada do debate social, das diferentes vertentes e correntes de
pensamento que circulam nos cafés, nas universidades, no governo, nas ruas, etc. Sintetizam e
representam, em alguma medida, diferentes argumentos, ao mesmo tempo em que municiam
– alimentam e se retroalimentam de – atuais e novos intervenientes. Na maioria das vezes,
esses textos se entrelaçam, ora para reforçar uma posição, ora para contradizê-la. É do
conjunto desses fragmentos e recortes que se pretende construir possíveis imagens ou visões
do conjunto.
A premissa inicial da análise crítica do discurso (ACD) é de que existe uma relação
intrínseca entre discurso e prática social. O discurso constitui um recurso para a apreensão do
mundo e para a ação e interação nele. Nesse sentido, o discurso consiste numa estratégia de
mediação social essencial, embora não única, da qual o indivíduo se vale para viver em
sociedade.
Retomando o conceito de ordem do discurso desenvolvido por Foucault e já
mencionado anteriormente, as instituições sociais instituem (e são instituídas por) um
conjunto de práticas discursivas que informam e conformam sua atuação e sentido. Conhecer
e operar no âmbito de tais práticas – ou ordens do discurso – é condição sine qua non de
acesso e exercício de poder.
Mais do que dois elementos distintos, as ordens do discurso e as práticas sociais são
duas faces de um mesmo objeto, duas perspectivas de abordagem de uma mesma coisa, ou
seja, são indissociáveis. Dizendo de outro modo, o texto, como materialização de uma prática
92
A construção discursiva das identidades nacionais
discursiva, carrega em si mesmo as condições que lhe são exteriores. Como afirma Gouveia
(2009), a partir de um dado contexto pode-se prever os diferentes discursos que serão
mobilizados, assim como, a partir de tais discursos, pode-se apreender o contexto no qual
estes se desenvolvem:
(…) os significados que podemos querer fazer são fortemente dependentes de aspectos
contextuais, para além de que uma parte importante quer da nossa capacidade quer da nossa
habilidade linguísticas é o conhecimento que temos de como as coisas são típica ou
obrigatoriamente ditas em certos contextos. Ou seja, a relação entre a língua e os seus
contextos de uso, ou dito de outra forma, a relação entre um texto e o seu contexto, é de tal
forma motivada que, a partir de um contexto, será possível prever os significados que serão
activados e as características linguísticas potenciais mais previsíveis para as codificar em texto.
Da mesma forma, dado um texto, será possível deduzir o contexto em que o mesmo foi
produzido, porquanto as características linguísticas seleccionadas num texto codificarão
dimensões contextuais, tanto do contexto de produção imediato, situacional – quem diz o quê a
quem, por exemplo -, como do contexto mais geral, cultural – que tarefa está o texto a
desempenhar na cultura. (Gouveia, 2009: 25-26).
(…): I see discourse practice as mediating between the textual and the social and cultural,
between text and sociocultural practice, in the sense that the link between the sociocultural and
the textual is an indirect one, made by way of discourse practice: properties of sociocultural
practice shape texts, but by way of shaping the nature of the discourse practice, i.e. the ways in
which texts are produced and consumed, which is realized in features of texts. (Fairclough,
1995: 59-60).
93
A construção discursiva das identidades nacionais
que os efeitos produzidos pelo texto resultam exclusivamente da intenção do autor ou, ao
menos, da sua ação (mesmo que não intencional).
Em parte, a perspectiva crítica da análise do discurso – que está longe de alcançar
consenso entre seus diversos praticantes – implica a ideia acima. Martin e Wodak (2003: 6),
por exemplo, entendem o conteúdo crítico da análise do discurso como recurso de
afastamento em relação aos dados, de reinserção (recuperação ou ligação) do campo textual
no social, de desmascaramento das operações ideológicas e de posições políticas e de
autorreflexão do analista em relação ao seu papel e ao objeto de análise. Para eles, o texto, via
de regra, não é unicamente obra do seu autor, mas sim local de disputa de diferentes
discursos, ideologias e posições, onde são negociadas as diferenças.
Uma vez reconhecida a controvérsia, importa esclarecer o entendimento que foi aqui
adotado. No âmbito desta pesquisa, atribui-se dois significados preponderantes ao conteúdo
crítico da análise do discurso: um deles está associado explicitamente a questões de poder,
enquanto o outro é dirigido à produção de significados – ambas as perspectivas serão
explicitadas a seguir.
Na primeira abordagem, a análise crítica do discurso busca revelar as relações de
poder que regulam as práticas discursivas/sociais, promovendo a mudança, ou seja, busca
trazer à tona as relações de poder e, assim, criar a possibilidade de mudança. Não se trata de
um poder único, nem de uma divisão dicotômica entre opressores e oprimidos, mas sim de um
poder difuso, que se manifesta das mais diversas formas.
Esse potencial de mudança é também destacado por Krzyzanowski e Galasinska
(2009: 12), que entendem os discursos como recursos de produção e reprodução da sociedade
e da cultura, atuando, portanto, necessariamente em sua contínua transformação e na
promoção da mudança, quer no âmbito cultural, quer no da política, sendo tais atividades
interdependentes.
Na segunda abordagem, a análise crítica do discurso pretende revelar o conteúdo
implícito, invisível, escondido no texto de forma intencional e não intencional. Todo texto é
composto por aquilo que diz, aquilo que pressupõe, aquilo que carrega e transmite sem o
saber e aquilo que deixa de fora, ou seja, como afirma Fairclough (1995: 108), citado a seguir,
pelo não dito, pelo dito e pelo pressuposto:
Any text is a combination of explicit meanings – what is actually ‘said’ – and implicit
meanings – what is left ‘unsaid’ but taken as given, as presupposed. Presuppositions anchor the
new in the old, the unknown in the known, the contentious in the commonsensical. A text’s
pressupositions are important in the way in which it positions its readers or viewers or
94
A construção discursiva das identidades nacionais
listeners: how a text positions you is very much a matter of the common-sense assumptions it
atributes to you. (Fairclough, 1995: 106-107).
95
A construção discursiva das identidades nacionais
(Gouveia, 2009: 14). Neste estudo, essa segunda abordagem é aquela que mais interessa e que
será, portanto, explorada.
Segundo Halliday (1994), pode-se identificar três macrofunções principais, atribuídas
à língua, que ele chama de “metafunções” – são elas a metafunção ideacional, a metafunção
interpessoal e a metafunção textual. A metafunção ideacional relaciona-se com o papel da
língua na construção de representações de mundo; a metafunção interpessoal relaciona-se com
o papel da língua na construção de relações subjetivas, ou seja, entre sujeitos; e a metafunção
textual relaciona-se com o papel da língua na construção e organização de sentido, como
explica Gouveia, ao referir-se às funções ideacional, interpessoal e textual respectivamente:
(…) Na sua essência (…), a linguagem desempenha três funções fundamentais, para além da
função comunicativa, equacionada como primordial e básica por um aparelho teórico que
encara a troca e a negociação do significado como a razão da existência da linguagem.
Concretizando, a linguagem serve para expressarmos conteúdo, para darmos conta da nossa
experiência do mundo, seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da nossa própria
consciência, interno a nós próprios; mas a linguagem serve também para estabelecermos e
mantermos relações sociais uns com os outros, para desempenharmos papéis sociais, incluindo
os comunicativos, como ouvinte e falante; e, por fim, a linguagem providencia-nos a
possibilidade de estabelecermos relações entre partes de uma mesma instância de uso da fala,
entre essas partes e a situação particular de uso da linguagem, tornando-as, entre outras
possibilidades, situacionalmente relevantes. (Gouveia, 2009: 15).
96
A construção discursiva das identidades nacionais
97
A construção discursiva das identidades nacionais
Potter (1997: 86), ao refletir sobre a afirmação de Foucault (1997) de que os discursos
não só produzem objetos mas também sujeitos, estabelece uma relação entre o modo como se
fala sobre um objeto e uma identidade específica, ou seja, entre os discursos construídos em
torno de um dado objeto e a construção da identidade de quem fala sobre ele. Essa posição é
partilhada neste trabalho, que se fundamenta no processo de construção discursiva das
identidades.
Como já explorado anteriormente, a relação de simbiose entre prática discursiva e
prática social configura espaço produtivo para a análise cultural. As práticas discursivas, sua
unidade, os discursos de resistência, sua tranformação, os elementos que figuram de forma
recorrente nessas construções, os elementos que são excluídos, as relações estabelecidas e
98
A construção discursiva das identidades nacionais
99
A construção discursiva das identidades nacionais
The reflexivity of modernity extends into the core of the self. Put in another way, in the context
of a post-traditional order, the self becomes a reflexive project. Transitions in individuals’ lives
have always demanded psychic reorganization, something which was often ritualised in
traditional cultures in the shape of rites de passage. But in such cultures, where things stayed
more or less the same from generation to generation on the level of the collectiviy, the changed
identity was clearly staked out –as when an individual moved from adolescence into adulthood.
In the settings of modernity, by contrast, the altered self has to be explored and constructed as
part of a reflexive process of connecting personal and social change. (Giddens, 2002: 33-34).
100
A construção discursiva das identidades nacionais
In summary, we will assume the following theses: The national identity of individuals who
perceive themselves as belonging to a national collectivity is manifested inter alia, in their
social practices, one of which is discursive practice. The respective national identity is shaped
by state, political, institutional, media and everyday social practices, and the material and
social conditions which emerge as their results, to which the individual is subjected. The
discursive practice as a special form of social practice plays a central part both in the formation
and in the expression of national identity. (Wodak, 1999: 29).
Síntese
101
PARTE II
Capítulo 4
Contextualização e apresentação do corpus
Portugal: contexto histórico-cultural
Perspectivas de análise
O Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), que vigora hoje em Portugal, tem suscitado
polêmica, como se depreende da frequência e do calor dos debates veiculados pelos meios de
comunicação portugueses nos anos subsequentes à sua entrada em vigor. Entre a diversidade
de temas que alimentam a discussão, interessa destacar aqueles que giram em torno de
questões de identidade nacional; afinal, são eles o objeto deste estudo.
Neste capítulo, parte-se de uma breve e fragmentada retrospectiva de determinados
momentos da história de Portugal, em especial a partir do século XIX, que contribuíram para
a construção da identidade do país. Pretende-se, assim, construir um dado contexto histórico-
cultural que servirá de enquadramento geral para a análise propriamente dita. Nesse processo,
procura-se destacar o papel da língua portuguesa como elemento intrínseco à construção de
certas versões de identidade para Portugal.
A seguir, são apresentados os contornos do atual acordo ortográfico, firmado por meio
de um tratado internacional e que conta com a adesão de vários países de língua oficial
portuguesa, entre eles Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. Assinado em 1990, o acordo
entrou em vigor no país em 2009, sendo adotado no âmbito do sistema nacional de educação
apenas no ano letivo 2011/2012.
A assinatura do acordo e, mais especificamente, as disputas que se instauram em torno
da legalidade e aplicação do mesmo foram – e ainda são – objeto de debate, sendo a mídia
uma das suas principais arenas. É nessa fonte que se vai buscar os artigos de opinião
publicados sobre o tema em 2012, nos jornais portugueses, e que constituem o corpus desta
análise. Passa-se, então, à apresentação e descrição detalhada do mesmo.
Uma vez explicitado o corpus, promove-se a identificação e o mapeamento dos
principais argumentos de caráter identitário trazidos ao debate público. Deixam-se de lado,
portanto, as discussões sobre a legalidade e viabilidade técnica e jurídica do acordo para se
destacar as questões relativas à identidade e, em especial, ao papel da língua na construção
dessas identidades.
Contextualização e apresentação do corpus
Por fim, são identificadas as duas principais perspectivas de estudo que conduzirão a
análise das diferentes representações identitárias construídas para Portugal ao longo do
corpus. A primeira delas consiste em refletir sobre (1) o modo como diferentes elementos são
articulados nesse processo de construção de uma ou múltiplas identidade/s para Portugal; já a
segunda procura entender (2) como essas identidades são construídas a partir do contraste
com outras entidades nacionais ou supranacionais.
O objetivo deste capítulo é, portanto, delinear um contexto histórico-cultural alargado
que servirá de base para a reflexão sobre as identidades nacionais portuguesas, tendo sempre
como ponto de partida a questão da língua, e suas diferentes estratégias de construção, que
será desenvolvida nos capítulos seguintes. Ao mesmo tempo, visa apresentar, justificar a
escolha e descrever em detalhes o corpus já identificado.
Portugal, localizado a Sul na Europa Ocidental, faz divisa com um único país, a
Espanha, que se espalha a Leste e Norte do seu território. A Oeste e Sul, está o oceano
Atlântico. Desde a criação do Condado Portucalense, em 1096, e da estabilização das
fronteiras portuguesas – processo que transcorre especialmente entre 1128 e 1297, não
obstante as disputas travadas ao longo do tempo e eventuais instabilidades – até ao Portugal
de hoje, o país passou por uma série de experiências que marcaram sua história, como não
poderia deixar de ser.
Embora o período que aqui nos interessa seja o do século XIX em diante, em função
do seu relevo para o desenvolvimento dos nacionalismos europeus, importa ressaltar um
momento histórico anterior, que desempenhou e ainda desempenha papel de destaque na
construção da identidade portuguesa: os ‘descobrimentos’ ou, em outras palavras, as grandes
navegações.
Os descobrimentos portugueses têm início com a conquista de Ceuta, na África, em
1415, e prosseguem ao longo dos séculos XV e XVI. Um dos países pioneiros nas
navegações, Portugal realiza uma série de conquistas, estabelecendo novas rotas comerciais e
dando início a um império colonial que ampliaria seu domínio para Ásia, África e América do
Sul e só chegaria ao fim no final do século XX.
108
Contextualização e apresentação do corpus
109
Contextualização e apresentação do corpus
110
Contextualização e apresentação do corpus
pública, pondo fim à monarquia portuguesa. Segue-se um breve período de República (1910-
1926), que será interrompido por um golpe militar, e, em 1933, a instituição do chamado
Estado Novo, que dá início a uma das mais longas ditaduras da Europa.
Durante esse período, a identidade nacional portuguesa é construída em torno do
discurso oficial de valorização do passado e das glórias do império, que, em alguma medida,
assume os contornos de uma espécie de culto à nação. É o Portugal singular que se afirma,
bem representado pelo slogan oficial “orgulhosamente sós” (Sobral, 2012: 79), em discursos
tão frequentemente veiculados pelos meios de comunicação de massas, então sob controlo
estatal.
Mas não só em Portugal a mídia desempenha papel relevante na construção dos
nacionalismos. Em toda a Europa, com a popularização dos meios de comunicação de massas
– em especial a rádio, a televisão e o cinema –, novas formas de mobilização e envolvimento
são desenvolvidas. Esses processos permitem, de algum modo, que o nacionalismo se
popularize por meio da difusão dos seus ideais – antes partilhados apenas por uma elite ou
grupo – por toda a sociedade. A criação, fortalecimento e centralização de instituições
públicas, como o exército e a escola, aliadas aos movimentos de valorização de uma suposta
tradição nacional – com a construção de monumentos e a organização de eventos públicos,
por exemplo – são alguns dos recursos utilizados nesse processo (Sobral, 2012: 76-77;
Hobsbawm, 1994)
A primeira metade do século XX é também lembrada pelas duas grandes guerras que
marcaram a história da Europa e do mundo, e que servem de substrato para o projeto da União
Europeia, que, por sua vez, começa a se desenvolver a partir do seu fim. Embora Portugal
tenha participado do primeiro conflito (1914-1918) ao lado dos Aliados, mantém-se
oficialmente neutro em relação ao segundo (1939-1945).
Nas décadas seguintes, Portugal mergulha na guerra colonial – a chamada Guerra do
Ultramar, iniciada em 1961, envolvendo Angola, Guiné-Bissau e Moçambique – numa
tentativa de manter suas colônias na África, no momento em que o colonialismo parecia ter
chegado ao fim – ou, numa outra perspectiva, no momento em que este se transformava em
uma nova forma de exploração: o neocolonialismo.
A guerra colonial marca os extertores do regime ditatorial português, que chega ao fim
em 1974, com a Revolução dos Cravos, depois de 41 anos de existência. Representa, também,
o fim do império português com as independências de Angola e de Moçambique, em 1975, e
também do Timor, que, no entanto, é invadido e violentamente ocupado pela Indonésia nesse
mesmo ano, só alcançando sua independência em 2002.
111
Contextualização e apresentação do corpus
Com o fim do império, cerca de 500 mil portugueses precisam ser repatriados, após
abandonarem às pressas as antigas colônias – são os chamados “retornados”. Muitos nascidos
e criados nas colônias, com outras vivências e culturas, outros modos de falar, outras
expectativas e crenças, nunca haviam pisado em solo português. Mais uma vez, uma certa
ideia de identidade nacional vem a tona, agora na construção de um eu verdadeiramente
português e de um outro, retornado. O país passa por profundas transformações em todas as
esferas da vida em sociedade.
O início dos anos 80 representa um forte abalo na identidade portuguesa: por um lado,
o encolhimento do território com a dissolução do império português e do papel colonial; por
outro, o processo de integração na União Europeia (Magalhães, 2001: 310). Após cinco
séculos voltado para o Atlântico, Portugal vira-se para o continente, numa rotação de 180º.
Embora ainda não saiba que papel desempenhará nesse contexto, parece evidente que este
será diametralmente distinto do de Portugal imperial; novas relações de poder serão e deverão
ser estabelecidas.
A mudança do Portugal imperial para o Portugal europeu é uma mudança de
paradigma. Segundo Sobral (2012: 79), tais mudanças afetam profundamente a noção de
identidade portuguesa. A glorificação do passado imperial, da “singularidade portuguesa” e
da “vocação atlântica” dá lugar ao Portugal europeu, cuja nova identidade ainda precisa ser
forjada.
Nesse contexto de inserção de Portugal na Europa, vigora uma sensação generalizada
de fragilidade, de perda de soberania e, em última instância, de perda de poder em relação ao
seu entorno. Segundo Sobral (2012:91), isso advém da percepção da fragilidade da posição do
país na tomada de decisões no âmbito da União Europeia, derivada da multiplicação dos
contatos via circulação de pessoas, dados, informações.
A adesão de Portugal à União Europeia – à época ainda Comunidade Econômica
Europeia (CEE) – só acontecerá em 1986. Passado o período de euforia, marcado pelo afluxo
de capitais europeus, pela modernização da infraestrutura nacional e pelo desenvolvimento
social e econômico, Portugal imerge na crise financeira que se alastrou pela Europa neste
início de século, entre planos de austeridade, reduções de salários, cortes de benefícios,
aumento de desemprego, entre tantas outras medidas.
Depois de passar pela mais longa ditadura da Europa ocidental, vivenciar o fim do
império colonial e a chegada dos retornados, aderir à União Europeia e ao euro, Portugal
atravessa o século XX e aterra no século XXI para se digladiar com uma crise econômico-
112
Contextualização e apresentação do corpus
financeira que ainda não chegou ao fim e cujos desdobramentos, no que diz respeito ao futuro
do projeto europeu, ainda não se pode precisar.
Chegamos, assim, ao Portugal de hoje, que, segundo Eduardo Lourenço (1988), ainda
vive de glórias passadas, do sucesso da sua empreitada marítima. Num texto de grande
repercussão – O Labirinto da Saudade, publicado em 1978 – o autor explora essa construção,
que, de certo modo, ainda parece atual. Segundo Lourenço, a identidade portuguesa é em
muito devedora do “ter sido”, ou seja, daquilo que já foi, numa referência ao passado
imperial, construindo para si uma imagem irreal e mitificada, incapaz de refletir sobre o
presente e marcada por um sentimento de ausência de sua “própria realidade”, que se arrasta
desde o século XIX (1988: 65).
Por sua vez, José Gil (2008), ao refletir sobre a identidade portuguesa, destaca o
impacto da vivência da ditadura que, segundo o autor, ainda se faz presente num país que
resiste a se “inscrever” e vive ainda numa atmosfera de “medo”. Inscrever-se, na perspectiva
do autor, implica atuar sobre e transformar as relações sociais e também nós mesmos, ou seja,
atuar sobre o mundo ao redor e os espaços que ocupamos nele. Já a atmosfera de medo é
entendida como um sentimento difuso e impreciso, um medo ao qual não se consegue atribuir
verdadeiro sentido ou sequer identificar sua fonte, o que torna impossível resistir-lhe.
Para Boaventura de Sousa Santos (2001), Portugal ocupa hoje na Europa uma posição
intermediária – a mesma que já ocupava durante o período colonial. Não se enquadra no
grupo dos países em desenvolvimento, tão pouco no dos países desenvolvidos, ocupando uma
posição caracterizada pelo autor como “semiperiférica”. Esse deslocamento em relação ao
centro implica perda de poder, caracterizada pela relação de dependência em relação ao
cenário internacional, enfraquecimento da autonomia ou soberania nacional e pouca
capacidade de influência no cenário europeu.
Independentemente das diferentes perspectivas adotadas, é possível encontrar
elementos que mostram certa consistência em suas respectivas representações da identidade
portuguesa: a valorização do passado ou mesmo uma espécie de fixação por ele; boa dose de
imobilidade ou incapacidade de ação que poderia se traduzir num espécie de desligamento do
presente; e uma debilidade generalizada ou fragilidade da posição no cenário internacional,
onde Portugal parece estar sempre a meio do caminho – nem um coisa, nem outra, sempre um
quase que não se resolve, mas que, por outro lado, pode também indicar uma tentativa de
alcançar esse presente fugidio.
Quanto à língua portuguesa, a sua importância hoje pode ser inferida pela criação da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, que, em sua formação
113
Contextualização e apresentação do corpus
inicial, reuniu Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé
e Príncipe. Em 2012, Timor-Leste viria se juntar ao grupo e, em 2014, seria a vez da Guiné
Equatorial aderir à CPLP.
Mas, se o universo de falantes da língua portuguesa alcança cifras tão altas, colocando
o português entre as dez línguas mais faladas do mundo, sua posição na Europa parece ser
diferente. Apenas a título de exemplo, vale referir esta passagem do livro do jornalista inglês,
radicado em Portugal, Barry Hatton, sobre o país e sua história, que destaca o estranhamento
provocado pelo contato do português no espaço europeu:
114
Contextualização e apresentação do corpus
O acordo ortográfico, objeto dos textos que serão analisados a seguir, foi aprovado em
12 de outubro de 1990 pela República Popular de Angola, República Federativa do Brasil,
República de Cabo Verde, República da Guiné-Bissau, República de Moçambique, República
Portuguesa e República Democrática de São Tomé e Príncipe, no âmbito da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP). Intervieram no processo a Academia das Ciências de
Lisboa, a Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a adesão de uma delegação de observadores da
Galiza.
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO90) visa à unificação da grafia do
português nos diferentes países onde este é língua oficial. Entre os objetivos principais
destacam-se a “defesa da unidade essencial da língua portuguesa” e do “seu prestígio
internacional”, como explicitado no texto do acordo, publicado no website da CPLP.
Concebido como tratado internacional, o AO90, à época da publicação dos artigos de
opinião aqui analisados (de 01 de janeiro a 31 de dezembro de 2012), havia sido ratificado por
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor. Em Moçambique,
embora o acordo tenha sido ratificado pelo governo em junho de 2012, sua ratificação pelo
parlamento seguia pendente em maio de 2015. Até essa mesma data, Angola não havia
ratificado o acordo. O AO90 entrou em vigor em Portugal em 2009 e foi introduzido no
sistema educativo português no ano letivo de 2011/2012, passando a ser obrigatório a partir
de maio de 2015.
Para este estudo de caso, foram analisados os artigos de opinião publicados em jornais
de notícias portugueses sobre o acordo ortográfico ao longo do ano 2012, como já referido. A
seleção dos jornais pesquisados baseou-se nos critérios de (i) maior tiragem e (ii) maior
amplitude de cobertura (vide anexo 1) com o intuito de identificar textos com potencial de
repercussão ampliada, quer em função de sua disponibilidade em número de exemplares quer
em diferentes geografias.
Por artigo de opinião entende-se os textos assinados individualmente, que consistem
na manifestação explícita do pensamento e da opinião de um determinado autor. Dessa forma,
portanto, excluem-se os textos predominantemente noticiosos e os editoriais, que, embora
sejam de natureza opinativa, representam a opinião de uma dada instituição (nesse caso, do
respectivo jornal) e não de seu autor.
115
Contextualização e apresentação do corpus
Público 35
Expresso 6
Sol 3
Série1
Correio da Manhã 2
Diário de Notícias 17
0 10 20 30 40
Quanto aos jornais com periodicidade semanal, a liderança coube ao Expresso, que
publicou seis artigos, ou seja, o dobro dos artigos publicados pelo Sol. Uma vez que não se
considerou a extensão dos textos, quer em função do número de caracteres, quer em função da
mancha gráfica (espaço físico que o texto ocupa no jornal, incluindo fotos, ilustrações, etc.),
não parece razoável fazer aqui quaisquer outras inferências a partir de tais números.
Entre os sessenta e três artigos publicados, foram identificados quarenta e três autores
diferentes, dentre os quais 83,7% publicaram um único artigo e 16,3% publicaram dois ou
mais. Nesse último grupo, destacam-se Nuno Pacheco, com nove artigos; Francisco Miguel
Valada, com cinco artigos; Vasco Graça Moura, também com cinco artigos; e Alberto
Gonçalves, Ferreira Fernandes, Octávio dos Santos e Rui Miguel Ventura Duarte, com dois
artigos cada, como indicado no Quadro 4.2.
Da análise desses dados, depreende-se facilmente a proeminência de Nuno Pacheco,
ocupando a liderança absoluta do ranking, com nove artigos publicados sobre o AO, seguido
por Francisco Miguel Valada e Vasco Graça Moura, empatados em segundo lugar, com cinco
artigos cada, sendo os autores contrários à aplicação do acordo. À época da publicação dos
116
Contextualização e apresentação do corpus
artigos analisados, Pacheco ocupava o cargo de editor do jornal Público e Graça Moura
respondia pela presidência da Fundação Centro Cultural Belém (FCCB).
Ferreira Fernandes 2
Alberto Gonçalves 2
Outros(*) 36
0 10 20 30 40
117
Contextualização e apresentação do corpus
DEZ 3
NOV 3
OUT 1
SET 3
AGO 7
JUL 2
JUN 2 Série1
MAI 2
ABR 7
MAR 6
FEV 20
JAN 7
0 5 10 15 20 25
N.D. 6
A Favor 8
Série1
Contra 49
0 10 20 30 40 50 60
Na grande maioria dos artigos, portanto – 77,5% de um total de sessenta e três textos –
, os respectivos autores assumiram posição contrária ao AO. Apenas em 12,7% das
ocorrências os autores adotaram postura favorável ao acordo. Nos casos restantes (9,5%), os
autores propositadamente não assumiram uma posição ou não foi possível identificá-la com
clareza.
Uma vez concluída a apresentação do corpus numa perspectiva quantitativa, importa
agora justificar sua escolha. A opção por artigos cujo tema central é o AO visa garantir, em
alguma medida, a existência de uma relação entre língua e identidade nacional, ou seja, se for
possível encontrar argumentos de natureza identitária em artigos sobre o acordo, já teremos aí
118
Contextualização e apresentação do corpus
“(…) more weitght is attached to the implicit frame of reference, the supposedly common
world of beliefs in which the reports (or the editorial comments) are anchored, than to the
explicit statements made by the reporters (or commentators). This approach is crucial for the
investigation of widely shared ideologies”.
identidade nacional em geral, quer pela sua relevância no contexto específico da identidade
portuguesa, revelando as representações partilhadas e disputadas. Busca-se, também, analisar
as diferentes posições assumidas por e ou atribuídas a Portugal na relação com outros países e
entidades nacionais e supranacionais.
Nesse contexto, o discurso jornalístico atuaria como uma espécie de discurso
intermediário entre as esferas pública e privada – assim como entre instituições e pessoas ou
entre especialistas e leigos, por exemplo – permitindo, dessa forma, alguma aproximação
entre diferentes concepções e entendimentos que circulam num dado momento, numa certa
sociedade, isto é, atuando no papel de mediador ou negociador.
Muito se tem discutido sobre o papel da mídia na sociedade moderna. Em geral, esses
discursos giram em torno da ideia de que a mídia, em algum grau, exerce papel estruturante
da realidade e decisivo na formação da chamada opinião pública, como discutido no capítulo
anterior. Sem nos alongarmos mais sobre o tema, que não é objeto desta pesquisa, parece
razoável assumir que, em alguma medida, a mídia consiste numa plataforma interessante e
relevante para se entender os valores e discursos recorrentes num dado momento, numa certa
sociedade sobre uma questão específica: neste caso, a identidade nacional portuguesa e o
papel da língua em seu processo de construção.
120
Contextualização e apresentação do corpus
para o jornal Correio da Manhã. O quadro completo com toda a identificação dos artigos está
disponível no apêndice A.
Na discussão sobre o AO, alguns temas se destacam por sua frequência e relevância
para os estudos de identidade. Para melhor entendê-los e analisá-los, tais temas foram
divididos em três grupos, de acordo com sua natureza e com o enfoque que adotam:
argumentos de caráter material (i), argumentos de caráter funcional (ii) e argumentos de
caráter simbólico (iii). Estes últimos são os que mais interessam no âmbito deste estudo.
Na perspectiva material (i), busca-se analisar o acordo em si mesmo, isto é, os
argumentos que incidem sobre o texto do acordo – seu conteúdo, as regras que institui, etc. –
e sobre o processo de elaboração, tramitação e aprovação. Em geral, os argumentos dessa
natureza caracterizam-se pela tecnicidade – real ou aparente – do debate, marcado pela
intervenção de juristas, linguistas e outros especialistas.
Em relação ao seu conteúdo, sobressaem as questões sobre aspectos técnico-
linguísticos, concretizadas, em geral, no debate sobre etimologia, que apontam, sobretudo,
para os riscos de eventual perda de relações de origem entre as palavras, com impacto
negativo para a educação e a aprendizagem do português europeu pelas gerações futuras,
entre outros problemas.
Nessa classe de argumentação, destaca-se o uso de um vocabulário muitas vezes
afetivo, que remete para o contexto das relações de família. Considerando-se o contexto
sociocultural português e o papel de destaque que a instituição da família ocupa dentro dele,
tal recurso pode ser bastante interessante na análise das representações de identidade também
na perspectiva simbólica. Afeto, responsabilidade, necessidade de proteção são alguns dos
temas correlatos que surgem nessas construções, como se pode ver nos seguintes exemplos:
Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de
famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e
as escrevem pensam. (…) A simplificação destrói laços de família. [PB25, destaques
acrescentados]
A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um p em ótimo, agora
lhe dizerem que afinal esse p (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem
argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem
o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! [EX04,
destaques acrescentados]
121
Contextualização e apresentação do corpus
defensores, por sua vez, relativizam e minimizam a importância dessas alterações, apontando
a reincidência das mesmas ao longo do desenvolvimento das línguas, evidente em acordos
anteriores.
Em relação ao processo de discussão e aprovação do acordo, o debate se divide entre a
análise da tramitação do AO, concebido como tratado internacional, onde as questões técnico-
jurídicas ganham corpo, e o tema da legitimidade democrática, que questiona a participação
de diferentes agentes sociais ao longo de todo o processo de elaboração, discussão, aprovação
e implementação do mesmo.
Seus críticos apontam falhas e irregularidades na tramitação do tratado internacional,
concluindo pela ilegalidade da entrada em vigor do AO, ao mesmo tempo em que acusam um
déficit de legitimidade democrática, apresentando o acordo como uma imposição, uma
abusiva demonstração de força por parte de uma minoria contra a maioria da população
portuguesa, resultado de um processo desenvolvido sem a devida publicidade. Já os
defensores do acordo defendem a legalidade de todo o processo e destacam o envolvimento
de diferentes atores sociais ao longo de sua gestação, assim como o longo período de
desenvolvimento que representaria a possibilidade de intervenção de todos e a devida
publicidade.
Ainda nessa perspectiva de análise, vale a pena observar o embate entre especialistas e
leigos, que levanta uma outra questão: quem pode – no duplo sentido de ter o poder de e estar
capacitado para – opinar sobre o ocordo? De certa forma, o pêndulo da balança parece
inclinar para o lado dos especialistas – sejam do campo da linguística, sejam do campo do
direito –, que são percebidos como dotados de maior autoridade para falar sobre o tema em
função do conhecimento que detêm. Não significa dizer que eles estejam em maioria entre os
autores dos artigos de opinião analisados, mas sim que as representações que associam saber e
poder prevalecem. Tal afirmação é corroborada, por exemplo, pela incidência dos casos em
que o autor se esforça por justificar a sua intervenção, uma vez que não se reconhece como
integrante do grupo de especialistas.
Essa discussão parece refletir uma certa tensão que se estabelece em torno do acordo e
da sua natureza técnica ou política, sem deixar de lado todas as posições intermediárias entre
um campo e outro. Como regra geral, é possível estabelecer uma relação afirmativa entre a
percepção do acordo como estando situado no campo técnico e a valorização do papel do
especialista nesse debate ou mesmo a sua identificação como o principal interlocutor nesse
processo.
122
Contextualização e apresentação do corpus
123
Contextualização e apresentação do corpus
Eu não vou aderir nunca ao acordo ortográfico. Vou escrever sempre como aprendi e me
ensinaram. Acho este acordo um embuste, feito de uma forma apressada e imposto, mas não
124
Contextualização e apresentação do corpus
aceite. A diversidade numa língua é uma mais-valia cultural, todos os países lusófonos se
entenderam na linguagem e escrita, as suas divergências sempre foram políticas ou de outra
índole. [PB07]
125
Contextualização e apresentação do corpus
posições são quase sempre entrelaçadas e confundidas ao longo do debate, nem sempre sendo
fácil – ou mesmo útil – identificá-las ou isolá-las sem comprometer sua interpretação. Daí a
opção por se trabalhar a partir de perspectivas de análise e não a partir de uma divisão e
classificação rígida de cada argumento.
Perspectivas Temáticas
Etimologia (questões técnico-
linguísticas)
Material
Tramitação e legitimidade do AO
(questões técnico-jurídicas)
Uniformização da grafia
Perspectivas de Análise
126
Contextualização e apresentação do corpus
127
Contextualização e apresentação do corpus
Síntese
128
Capítulo 5
Análise dos marcadores identitários
Representações de identidade nacional: marcadores identitários
Pátria e nação
Soberania
Povo
Cultura e identidade
Matriz
Consolidação da análise
Embora as teorias sobre os nacionalismos sejam bastante diversas, é possível
identificar alguns elementos que são recorrentemente trazidos ao debate, consistindo numa
espécie de vocabulário dos nacionalismos. Tais elementos funcionam aqui como marcadores
identitários, ou seja, como indicadores de que o tema identidade nacional, em alguma
medida, é trazido ao debate, contribuindo para a argumentação em torno da discussão sobre o
acordo ortográfico.
Este capítulo se inicia com a identificação de tais marcadores identitários, resultante,
num primeiro momento, da contabilização de palavras do corpus dentre as quais são
selecionadas aquelas compatíveis com a noção acima apresentada. O conjunto de palavras
obtido, dividido em sete grupos, gira em torno dos conceitos de pátria, nação, soberania,
povo, cultura, identidade e matriz, como já referido no capítulo anterior.
A seguir, cada um desses grupos é analisado em função dos seus respectivos contextos
e usos. Além da análise individual dos grupos, alguns deles são também analisados de forma
contrastada em função da sobreposição de seu potencial de significação que, muitas vezes, faz
com que sejam utilizados como se fossem expressões equivalentes ou mesmo sinônimos: é o
caso de pátria e nação e também de cultura e identidade.
Conclui-se a etapa de análise desenvolvida neste capítulo com a elaboração de um
quadro-resumo dos principais resultados, tendo sempre em vista a relevância dos mesmos
para a reflexão sobre os diferentes papéis desempenhados pela língua, em sua perspectiva
simbólica, na construção das identidades nacionais na Europa de hoje, em geral, e de
Portugal, em particular.
O objetivo deste capítulo é identificar os diferentes discursos e representações
construídos para as identidades nacionais, sejam elas genéricas ou específicas de/para
Portugal, a partir da articulação de elementos que marcam a discussão sobre os
Análise dos marcadores identitários
132
Análise dos marcadores identitários
como detentora de pleno direito sobre a autoria do produto). Em todos esses casos, no entanto,
a ideia de matriz surge sempre caracterizada de forma positiva.
Retomando os conjuntos temáticos, ou seja, os grupos de palavras (e seus derivados e
flexionados) nomeados em função do tema ao qual remetem, embora cada um deles tenha
sido analisado separadamente, optou-se por organizá-los em pares nos casos em que uma
reflexão comparada mostrou-se interessante. Isso se deu com os grupos Pátria e Nação e
também com os grupos Cultura e Identidade – conceitos, que muitas vezes, são sobrepostos
ou mesmo tomados um pelo outro em certas situações. Tem-se, portanto, os seguintes
conjuntos: (i) Pátria e Nação, (ii) Soberania, (iii) Povo, (iv) Cultura e Identidade e,
finalmente, (v) Matriz, como indicado no Quadro 5.1, onde também se registra o total de
ocorrências de cada marcador ao longo do corpus.
Ocorrências
Grupo
Identificadas
Matriz 9
Identidade 11
Povo 23
Cultura 55
Soberania 5
Nação 34
Pátria 15
Total 152
Quadro 5.1 – Marcadores identitários
Neste momento inicial da análise, vale observar o predomínio das ocorrências dos
marcadores de Cultura, que representam 36% do total, seguidas dos marcadores de Nação,
com aproximadamente 23%, e dos marcadores de Povo, com 14,3%. Houve um maior
equilíbrio entre as ocorrências de Pátria e Identidade, que reprentaram 9,3% e 8,1% do total,
respectivamente. Neste primeiro recorte, portanto, a associação entre língua – aqui
representada pela temática geral dos artigos analisados: o acordo ortográfico – e cultura é a
que se sobressai.
Por fim, resta ainda esclarecer que nem todas as ocorrências identificadas foram
consideradas relevantes para este estudo e, portanto, devidamente analisadas. Para cada
marcador, foram adotados critérios de exclusão específicos, que são identificados no início da
análise de cada grupo. A partir de agora, portanto, serão consideradas apenas as ocorrências
133
Análise dos marcadores identitários
que serão efetivamente analisadas. Para identificar o número de ocorrências que resistiram a
essa primeira triagem, consulte-se o Quadro 5.2.
Grupo Ocorrências
Analisadas
Matriz 9
Identidade 9
Povo 20
Cultura 43
Soberania 5
Nação 21
Pátria 13
Total 120
Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências
Pátria e Nação
134
Análise dos marcadores identitários
No que diz respeito à identificação de uma relação entre pátria e língua, com exceção
de dois casos, esta se verifica em todas as demais ocorrências (84,6% do total), seja para
afirmar uma interdependência entre tais conceitos, seja para negá-la, como indicado no
Quadro 5.4. Nesse sentido, considerou-se como referência à língua tanto a menção expressa
da palavra língua como da palavra ortografia – esta última referida tanto de forma direta
(menção à “ortografia”) ou indireta (recurso à expressão “modo como se escreve”). Na
maioria dos casos, essa interdependência é negada ou contestada, como exemplificado abaixo:
Há apenas duas ocorrências em que a relação entre pátria e língua é afirmada, que são
identificadas a seguir:
O recurso à ironia também se faz presente para criticar a associação entre língua e
pátria, segundo a qual, apoiar as mudanças ortográficas estabelecidas pelo AO90 seria um ato
antipatriótico, de traição à pátria, como se deduz da expressão “vende-pátrias”, utilizada,
inclusive, como título de um dos artigos (DN03). Em outras palavras, defender a manutenção
da ortografia do português anterior ao AO90 implicaria um ato de defesa da pátria, ou seja, de
patriotismo. Essa expressão é ainda qualificada de forma pejorativa pelo qualificador
“desavergonhados”, como explicitado a seguir:
(…) esta questão está entrelaçada com conceções quase “patriotísticas”, permita-se-me esta
“desfiguração”: parece existir um núcleo rebelde resistente, uma espécie de "maquisards" da
ortografia, oposto aos desavergonhados "vende-pátrias" que aceitam submissamente o império
do Acordo Ortográfico. [DN03]
Nessa representação, a crítica à posição assumida por aqueles que defendem tal
argumento é reforçada pelo uso de um neologismo – a palavra “patriotísticas” –, destacado
pelo uso de aspas, para caracterizar aqueles que defendem essa relação, associado ao recurso a
um vocabulário que remete para um cenário de violência e conflito, ao período das grandes
guerras – “maquisards” e “império”.
135
Análise dos marcadores identitários
Não teria bem esse nome [ditadura], claro, por causa da carga negativa que arrasta, mas seria
uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política
comum, que esta coisa de ter tantos partidos a dizer-se e desdizer-se a todo o momento
(garantiam) é realmente uma canseira. [PB14, referência e destaques acrescentados]
afirmativa 2 (18,2%)
Estabelece relação 11 (84,6%)
negativa 9 (81,8%)
Não estabelece relação 2 (15,4%)
Total 13
Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua
136
Análise dos marcadores identitários
autores fazem referência ao poeta Fernando Pessoa, importante ícone da cultura portuguesa,
como abaixo citado:
Vocábulo Ocorrências
Nacional/is 15
Nação 6
Total 21
Quadro 5.5 – Nação
Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras ocacionais dos
Estados, mas é a língua que caracteriza e define uma Nação. [DN07, destaques
acrescentados]
137
Análise dos marcadores identitários
É verdade que o sr. Krugman chegou a trabalhar no Banco de Portugal, mas um estágio de três
meses em 1976 não habilita ninguem a conduzir a nação através de uma coluna no New York
Times [DN11]
Nesse sentido, o uso da palavra nação (ou da expressão “dirigir a nação” em vez de
“dirigir o país”, por exemplo) parece aumentar a distância entre o estrangeiro e Portugal, uma
vez que o estrangeiro é exatamente aquele que não é nacional, ou seja, que não faz parte da
nação. Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, a caracterização do outro como estrangeiro
parece automaticamente afirmar a sua falta de legitimidade para se manifestar sobre os
desígnios da nação portuguesa, como se a atitude do economista, mais do que representar uma
afronta à soberania nacional, configurasse uma situação absurda, consistisse quase numa
impossibilidade fática.
Em sentido genérico 2
Em referência a Portugal 2
Em referência ao Brasil 2
Total 6
Quadro 5.6 – Acepções de nação
138
Análise dos marcadores identitários
No outro caso, já referido acima, Portugal é caracterizado como uma “nação do Velho
Continente”, numa passagem em que o autor parece atribuir valor positivo à pertença de
Portugal à Europa (o “Velho Continente”) ao repreender o país pela posição assumida face ao
acordo ortográfico:
(…) indigna de uma nação do Velho Continente a alteração leviana de algo tão básico na
identidade, na estrutura, na actividade de um país como o é a o ortografia, alteração essa que se
traduz num autêntico “Processo Retro-ortográfico Sem Curso”. [PB35]
139
Análise dos marcadores identitários
140
Análise dos marcadores identitários
Soberania
141
Análise dos marcadores identitários
grandes perdas, uma vez que os resultados e as consequências de suas decisões já não
poderiam ser confinados ao território nacional. Do mesmo modo, mas em sentido inverso,
também não seria possível blindar o território nacional contra decisões tomadas por entidades
estrangeiras.
Do mesmo modo, a limitação ou dificuldade de exercício da soberania está associada à
questão da perda ou limitação acima referida. Num cenário marcado concomitantemente pela
acentuada interdependência entre países e pelo aumento da complexidade das relações de
força entre eles, o modo de ação e realização desse poder soberano também é transformado.
Perda de transparência, instabilidade de posições e menor previsibilidade dos efeitos e
impactos decorrentes do exercício da soberania são alguns dos temas em destaque nesse
processo de mudança.
Além da ideia de perda ou enfraquecimento, a palavra soberania também é utilizada
para caracterizar certos órgãos públicos (“órgãos de soberania”, em PB03). Nesse contexto,
pode ser identificada como função e responsabilidade de certos órgãos de governo,
identificados como sendo os tomadores de decisão no âmbito do AO. Nesse sentido, a
expressão “órgãos de soberania” parece surgir como alternativa a “órgãos de governo”, no
sentido da administração pública. A relação entre soberania e governo mais uma vez remete
para o cenário dos Estados-Nação, aos quais cabe a função, a responsabilidade, o direito e a
prerrogativa do exercício da soberania.
Por fim, na última ocorrência analisada, a ideia de soberania extravasa o âmbito
político-administrativo, sendo associada ao conceito de cultura na expressão “soberania
cultural e não só” (PB35). Verifica-se, portanto, um alargamento do uso do conceito de
soberania para a esfera da cultura nessa construção, em que soberania surge como equivalente
a independência ou liberdade. Soberania cultural, portanto, poderia ser interpretada como a
liberdade da qual goza um país para construir, definir, proteger a sua própria cultura, sem
interferências externas indevidas.
Nesse contexto, mais uma vez o processo de globalização poderia ser invocado como
ameaça em função do potencial de homogeneização cultural que seria concretizado por via da
imposição de uma cultura ou padrão-cultural dominante e pela destruição das culturas locais
ou autóctones – tese desenvolvida e expressa no conceito de imperialismo cultural, já
abordado no segundo capítulo.
Simultaneamente ao alargamento acima mencionado, a ideia de soberania cultural
parece implicar também uma aproximação, mesmo que indireta, entre a ideia de Estado-
Nação e cultura, à medida que ambos passam a partilhar essa mesma característica ou poder: a
142
Análise dos marcadores identitários
soberania. Essa aproximação condiz com o crescente papel da cultura na construção das
identidades nacionais, tema que será retomado no desenvolvimento deste capítulo.
Em resumo, as representações identitárias analisadas neste grupo remetem para a
perda ou enfraquecimento da soberania estatal, afirmação recorrente em tempos de
globalização e no contexto europeu. Também atribuem responsabilidade aos órgãos públicos,
caracterizados como órgãos de soberania. Por fim, ao alargar o conceito de soberania para o
campo da cultura, chamam a atenção para uma perspectiva crítica da globalização, que é aqui
relacionada com o conceito de imperialismo cultural.
Povo
143
Análise dos marcadores identitários
Nas ocorrências em que algo é atribuído ao povo, este é representado como portador
de vontade (em PB07), idiossincrasias, mundividências (ambas em PB25) e identidade (em
DN06 e EX04). O povo é também o detentor de vida (em DN10) e língua (em PB26), e essa
mesma língua é identificada como sendo sua propriedade e matriz (ambas em EX04). Por fim,
o povo é personificado – ganha “costas” (em DN07) – sendo então atraiçoado, enganado,
quando algo é feito às escondidas, sem que lhe seja permitida a participação, numa referência
ao processo de aprovação do AO.
Nas ocorrências em que o povo é agente, ora este é objeto de uma definição ou
caracterização – sendo equiparado a uma comunidade (em DN07) ou considerado incapaz
(DN10) – ora assume o papel de sujeito, desempenhando as funções de pensar (em PB25),
acordar/concordar (em DN10), dar uso, utilizar (ambos em PB29) e cercar (DN08).
No entanto, com exceção do verbo cercar, os demais processos parecem remeter para
uma certa passividade, aqui entendida como ausência de iniciativa e, talvez, de mobilidade,
isto é, de ação propriamente dita. Quanto a referência a cercar, parece também importante
ressaltar a opção do autor pela expressão “cercado de povo” em vez da alternativa “cercado
pelo povo”. A opção da preposição de em detrimento de por parece indicar uma espécie de
despersonalização ou de coisificação do povo. Nesse contexto, o povo que cerca não parece
representar uma ameaça, pelo contrário, é quase a matéria que cerca o orador, que também
poderia estar cercado por árvores, cadeiras ou problemas. Mais uma vez, portanto, a
possibilidade de ação parece esvaziada.
Por fim, o povo como destinatário de algo, isto é, em situações em que algo é a ele
endereçado, aparece sempre em posição desfavorável, caracterizada pela perda de poder ou
capacidade. Nessas relações de endereçamento, o povo é invariavelmente subestimado, seja
144
Análise dos marcadores identitários
na perspectiva em que é obrigado a ceder – algo é imposto ao povo (em PB03) –, seja na
perspectiva em que é incapaz de entender – algo é explicado ao povo (em PB11) – ou seja na
perspectiva em que lhe é retirada a iniciativa da decisão – algo é considerado adequado ao
povo (em DN06).
Das quatro ocorrências de popular, em metade delas este é definido em oposição a
erudito (em PB06 e PB33) e, na outra metade, é utilizado como modificador das massas (em
PB01) e de dinâmicas (em DN10). O povo organiza-se em massas simultaneamente “dotadas
de vigor e liberdade”, mas “ignorantes”, e que, por isso, precisam ser instruídas e iluminadas.
É bem verdade que essa última afirmação é feita em tom de ironia, deixando claro que o autor
não partilha dessa ideia, mas tal recurso, em vez de negar a suposta ignorância das massas,
pressupõe, em alguma medida, que essa percepção é recorrente ou mesmo generalizada.
Passando-se agora à análise do papel da língua nas representações construídas em
torno do conceito de povo, pode-se identificar três linhas principais de argumentação, que
giram em torno da concepção de língua como (i) elemento constituinte ou formador dos
povos, (ii) manifestação ou expressão do modo viver e pensar ou (iii) bem, recurso ou
propriedade dos povos. Em geral, tais noções são de alguma forma sobrepostas, não sendo
possível estabelecer linhas divisórias claramente demarcadas. Ainda assim, no entanto, e
apesar de todas as nuances e interdependências entre tais argumentos, essa divisão pode ser
útil para se refletir sobre as relações estabelecidas entre língua e povo.
São exemplos da perspectiva da língua como elemento constituinte ou formador dos
povos os seguintes excertos:
145
Análise dos marcadores identitários
Um tal exemplo é apenas útil para quem estuda Latim, mas diz-nos de como a partir de
famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e
as escrevem pensam. [PB25, destaques acresentados]
A minha experiência de classicista, de passagem pela gramática comparativa (…), abriu-me à
percepção das constantes e das volubilidades da semântica e dos étimos e, com isto, das
idiossincrasias e mundividência de cada povo falante de uma das muitas línguas desta
grande família. [PB25, destaques acresentados]
Para o acordista, mesmo sendo um leigo ou exactamente por ser um leigo, o linguista é uma
espécie que vai contra um século democrático em que a língua é do povo. [PB26, destaques
acresentados]
-, a entrada em vigor do AO deverá ser diferida para o momento em que, precisamente, a
existência de um vocabulário comum, contendo as grafias consideradas adequadas para todos
os povos da lusofonia, torne finalmente exequível o clausulado do Tratado. [DN06, destaques
acresentados]
E, ainda, num último exemplo que parece ilustrar bastante bem o modo como os
argumentos acima são entrelaçados:
Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo, pela
primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz
e identidade de outros povos e de outras latitudes. [EX04, destaques acresentados]
Cultura e identidade
146
Análise dos marcadores identitários
147
Análise dos marcadores identitários
intromissão indevida pelo fato de ela não ser portuguesa ou, ao menos, de não ser falante
nativa do português e, portanto, tal justificativa fosse necessária.
Em três ocorrências (50%), a cultura é identificada como portuguesa, duas vezes de
forma direta (“cultura portuguesa”), e uma vez de forma indireta (“cultura nacional”). Ainda,
se nós considerarmos que a referência à “nossa cultura” foi feita por um autor português,
teríamos de adicionar mais uma ocorrência à forma indireta, considerando, portanto, que do
total de seis casos em que a palavra cultura é modificada, esse modificador remete para
Portugal em 66,7% dos casos.
É a partir da relação acima que são construídas as representações em que a cultura
aparece em situação de risco ou perigo iminente, sendo tal risco manifestado expressamente
ou assumindo os contornos de um alerta ou, ainda, de uma falta – é o que acontece em 30,8%
das ocorrências (ou seja, em quatro de treze casos). A ideia central é a de que o AO, ao
modificar a ortografia – e, por inferência, a língua –, modificaria também a cultura a ela
associada.
Essa ideia de risco é manifestada expressamente – “descaracterizar a cultura através da
‘linguagem’ escrita” (em DN07) e “os que tomam o novo acordo como atentado à cultura
nacional” (em DN10) –, mas também pode assumir os contornos de um alerta – “a cultura não
pode nem deve ser colonizada” (em PB07). Ainda nessa ideia de risco está a não afirmação da
cultura no âmbito internacional, numa passagem em que se criticam os esforços (ou a falta
deles) de divulgação da língua, destacada a seguir:
148
Análise dos marcadores identitários
149
Análise dos marcadores identitários
150
Análise dos marcadores identitários
A cultura como fator de identidade também é um tema central nas discussões sobre os
nacionalismos, onde conceitos como nacionalismo cultural, identidade cultural e identidade
nacional se confundem e sobrepõem. No contexto atual, de porosidade de fronteiras e intensa
atividade migratória, parece ganhar cada vez mais relevância o recurso à cultura como fator
de identidade e recurso de identificação.
Considerando-se, agora, as ocorrências de culturalmente, verifica-se 4 (quatro) outras
ocorrências em que a cultura surge como um modo de ser – “culturalmente interessante” (em
PB03) e “culturalmente empinantes” (em PB25) – ou mais especificamente como um modo
de ser português, como exemplificado a seguir:
Por fim, uma última observação: a palavra cultura sempre aparece no singular, o que,
de algum modo, acentua sua unidade, isto é, a ideia de inteireza. Mais ainda, parece refletir
uma concepção essencialista da ideia de cultura, atribuindo ou reconhecendo uma certa
homogeneidade em seu interior.
Em resumo, as representações identitárias que se destacam na análise desse marcador
estabelecem uma relação entre língua e cultura, ao mesmo tempo em que caracterizam uma
alteração à língua (neste caso, a alteração ortográfica instituída pelo AO90) como risco ou
ameaça à cultura. Também equiparam cultura a patrimônio, num cenário marcado pela
competição entre culturas (interculturalidade) e pela utilização recorrente da cultura no
processo de construção de identidades.
Passando-se, agora, ao estudo dos marcadores de Identidade, foram analisadas nove
ocorrências das onze identificadas – foram excluídas as incidências em que identidade era
sinônimo de semelhança ou de autoria. Fazem parte desse grupo as categorias
morfossintáticas identitário/as (22,2%) e identidade (77,8%), como referido no Quadro 5.13.
151
Análise dos marcadores identitários
Relação Nº
Identidade/Ortografia 4 (57,1%)
Identidade/Língua 3 (42,9%)
Total 7
Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia
Nas ocorrências em que se constrói uma relação entre língua e identidade, essa é
afirmada em todos os três casos, ou seja, nunca é negada. Nas ocorrências em que se constrói
a relação entre ortografia e identidade, essa é negada em 75% dos casos e afirmada nos
restantes 25%, que, em números absolutos, correspondem a um único caso, como destacado
no Quadro 5.15.
152
Análise dos marcadores identitários
Sob a égide da utópica unificação linguística o AO90 mutila e desfigura a ortografia da L.P e,
juntamente, todo o valor histórico, cultural e identitário que cada variante encerra. [PB27]
Para esta análise, importa observar sobretudo que em nenhum momento a relação
entre a língua, propriamente dita, e a noção de identidade é negada. Pode-se pôr em causa a
sua exclusividade ou propriedade, isto é, a afirmação de que a uma dada língua corresponde
uma nação, mas não o seu valor como elemento identitário.
Em resumo, as representações identitárias reunidas e analisadas neste grupo remetem
predominantemente para a associação entre língua e identidade, em geral, para afirmá-la.
Entretanto, nos casos em que língua e ortografia são representados a partir da diferença, a
relação entre identidade e ortografia é mais frequentemente negada.
Contrastando os marcadores Cultura e Identidade, verifica-se que a língua é utilizada
como elemento relevante marcadamente nas representações de identidade, sendo as
representações de cultura muito mais variadas. A perspectiva patrimonial só se aplica à ideia
de cultura, embora seja possível estabeler uma relação entre língua e cultura, língua e
identidade e, desse modo, entre cultura e identidade.
É ainda importante destacar que, assim como as ocorrências de cultura, as de
identidade estão sempre no singular – não há exceções. De certa forma, parece haver o
entendimento corrente de unidade, isto é, a ideia de um todo ou de completude: uma cultura
e/ou uma identidade. Essa percepção, mais uma vez, revela, de certo modo, uma perspectiva
essencialista que ainda parece marcar muitos dos discursos sobre as identidades – e também
sobre as culturas.
153
Análise dos marcadores identitários
Matriz
Nós [portugueses] temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por mudarem
algumas regras ortográficas que essa matriz se dilui [SL01]
Embora a interpretação acima pareça ser a mais razoável, também podemos construir
uma interpretação concorrente, que implicaria entender que a expressão “essa matriz” refere-
se a “regras ortográficas”, que, por sua vez, remeteriam para a ideia de língua. Nesse caso, a
palavra matriz estaria mais uma vez ligada ao contexto da língua e teríamos que todas as nove
ocorrências estariam ligadas a esse universo, sem exceção.
As referências à matriz, em resumo, remetem para uma associação com o contexto da
língua em oito ocorrências e para o contexto de identidade e cultura em um único caso, como
indicado no Quadro 5.16.
Contexto Nº
Língua 8 (88,9%)
Identidade e Cultura 1 (11,1%)
Total 9
Quadro 5.16 – Matriz
Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes de mais,
respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras. [DN15, EX03,
PB06]
154
Análise dos marcadores identitários
Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não tivesse acentos ou
consoantes mudas. O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a
mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso
acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula [PB06]
em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia [PB13]
no universo que usa a língua portuguesa como matriz (dela fazendo derivar riquíssimas
variantes) [PB24]
Em uma outra ocorrência, a matriz não mais parece ser exclusivamente o português
europeu, mas sim a língua portuguesa em toda a sua diversidade:
Idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de
outras latitudes [EX04]
Por fim, numa última ocorrência a matriz passa a ser a Inglaterra, num contexto de
comparação entre a “matriz inglesa” e a “variante americana” (em PB24), como resumido no
Quadro 5.17.
De modo geral, parece subsistir a ideia de matriz como algo valorado positivamente,
como já discutido no início deste capítulo. A matriz como origem deve ser preservada e
respeitada. A relação entre a matriz e suas variantes traduz, em alguma medida, uma relação
de poder em que matriz é o pólo mais forte. A ideia de pureza e integridade atribuída à matriz
concorre para essa construção de significado.
155
Análise dos marcadores identitários
Por fim, vale ainda destacar que, se na maioria das representações de língua como
matriz, esta é apresentada como matriz de outras línguas, há um único caso em que ela é
apontada como matriz dos povos que a falam, embora a distinção entre o português europeu
como matriz e os demais como variantes ainda esteja presente.
Em resumo, as representações identitárias identificadas nesse grupo remetem para a
ideia da língua como matriz, quer de outros povos, quer de outras línguas, prevalecendo a
identificação de Portugal como matriz da língua portuguesa.
Consolidação da análise
156
Análise dos marcadores identitários
ou ameaça da primeira para a segunda. Tal cenário remete para o debate sobre um suposto
“imperialismo cultural” – que seria uma espécie de sucedâneo dos impérios do passado, ou
seja, uma nova forma de exploração e expropriação.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Povo
estabelecem relação com a noção de língua a partir de três perspectivas: a língua como
elemento constituinte ou formador dos povos, a língua como manifestação ou expressão do
modo viver e pensar ou a língua como bem, recurso ou propriedade dos povos. Em geral, o
povo é representado em situação de passividade, no pólo mais fraco de uma relação, como
atores secundários de sua própria história.
Grupo Representações
Estabelecem relação direta entre pátria e língua para, a seguir,
Pátria
negá-la.
Salvo exceções, não estabelecem relação direta entre nação e
língua.
Nação
Alcançam variados domínios da vida em sociedade, com detaque
para o âmbito político-institucional.
Não estabelecem relação direta entre soberania e língua.
Soberania
Remetem para o contexto de perda ou enfraquecimento.
Estabelecem relação direta entre povo e língua.
Povo Representam o povo em posição de subalternidade ou
passividade.
Estabelecem relação direta entre cultura e língua, caracterizada
pela interdependência.
Cultura
Equiparam cultura a bem ou patrimônio.
Acentuam o papel da cultura na construção de identidades.
Estabelecem relação direta entre identidade e língua, em geral
Identidade
para afirmá-la.
Matriz Estabelecem relação direta entre matriz e língua.
Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo
157
Análise dos marcadores identitários
cenários marcados pelo contato (interculturalidade) e competição entre culturas, assim como
pela utilização recorrente da cultura no processo de construção de identidades.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Identidade
remetem predominantemente para a associação com a língua. Na maioria das vezes, essa
relação é de afirmação, ou seja, a uma dada língua corresponde uma certa identidade ou,
ainda, reconhece-se à língua um papel decisivo – ou, ao menos, bastante importante – no
processo de construção dessas identidades.
As representações identitárias analisadas no âmbito dos marcadores de Matriz, na
maioria das vezes, atribuem às línguas esse papel. Prevalecem as referências à Língua
Portuguesa e, mais especificamente, o português europeu. As línguas são representadas como
matriz de outras línguas ou mesmo de povos.
Síntese
158
Capítulo 6
Análise das relações de simetria e assimetria
envolvendo Portugal
Portugal numa perspectiva comparada: relações de simetria e assimetria
Consolidação da análise
Para se refletir sobre os processos de construção das identidades nacionais,
interessa analisar as diferentes relações estabelecidas entre países, ou melhor, entre
diferentes entidades nacionais e/ou supranacionais. Aproximação e afastamento,
identificação e diferenciação, manifestação de força ou de fragilidade, afirmação de
vantagem ou desvantagem são algumas das estratégias adotadas na construção de um eu
nacional e de um ou vários outros estrangeiros.
A perspectiva de análise desenvolvida neste capítulo centra-se no processo acima
referido. Primeiro busca-se identificar a presença de outros países ao longo do corpus num
contexto de contato e/ou comparação com Portugal. Tais relações são identificadas como
simétricas ou assimétricas em função de estabelecerem, respectivamente, posição de
igualdade (nivelamento ou equilíbrio de forças) ou diferença (desnivelamento ou
desequilíbrio de forças) entre Portugal e as demais entidades nacionais ou supranacionais.
A seguir, passa-se à análise de tais relações. As simétricas são classificadas como
convergentes ou divergentes, segundo a direção do movimento a elas atribuídos nos
diferentes contextos em que surgem: aproximação (convergência, portanto) ou afastamento
(divergência). Nas assimétricas, por sua vez, busca-se identificar qual é a posição assumida
por ou atribuída a Portugal no campo do embate de forças entre as diversas entidades
nacionais ou supracionais referidas – se o pólo forte ou o pólo fraco.
Conclui-se este capítulo com a consolidação da análise das relações simétricas e
assimétricas mapeadas no corpus. Os discursos de aproximação ou afastamento, por via da
análise das relações de simetria, são contrastados com os discursos construídos em torno de
relações de força, aqui concretizados, na maioria das vezes, na afirmação de posições de
vantagem ou desvantagem. No final, elabora-se um quadro-resumo com os principais
resultados da análise realizada nesta etapa da pesquisa.
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Quando, no entanto, essa relação é marcada pela disparidade de posições – seja pela
valorização ou desvalorização de uma das partes ou pela simultânea valorização de uma
das partes e desvalorização da outra – ela é classificada como assimétrica.
Uma primeira análise das situações de comparação identificadas levou ao
desdobramento dos oitenta e quatro casos iniciais em noventa e quatro relações de
comparação. A razão desse desdobramento foi a constatação de que nove das situações
identificadas foram construídas a partir de duas ou três relações de comparação
simultâneas ou interdependentes, como, a seguir, exemplificado:
Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90
vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e
outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas
dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a
menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola,
Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... [PB20-1]
Neste exemplo, o autor constrói, num primeiro momento, uma situação de paridade
entre Portugal e Brasil, embora marcada pela diferença, para, a seguir, construir uma
relação de disparidade, onde Portugal (assim como o Brasil) ocupa o pólo da força e/ou
vantagem face aos demais países da CPLP. Verifica-se, portanto, duas relações de
comparação entretecidas, o que leva à classificação da passagem acima na categoria de
situação de comparação complexa.
Em resumo, as situações de comparação constituídas por uma única relação
comparativa foram classificadas como simples, as demais foram classificadas como
complexas. Do mesmo modo, as relações comparativas que constituem situações de
comparação complexas foram classificadas, cada uma delas, como relação comparativa
complexa, enquanto as demais relações comparativas foram classificados como simples,
como indicado no Quadro 6.1.
Para facilitar a identificação dessas relações comparativas complexas no corpus,
optou-se pelo acréscimo das letras A e B ao código já apresentado acima. Portanto,
considerando-se essa última citação (PB20-1), a relação comparativa estabelecida entre
Portugal e Brasil é identificada como PB20-1A, enquanto a relação comparativa
estabelecida entre Portugal e os “restantes” países da CPLP é identificada como PB20-1B.
(Para uma visão geral do quadro de notações adotado nesta etapa da pesquisa, consulte os
apêndices C e D.)
163
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Concluída essa primeira etapa, passou-se à análise das relações comparativas, que
contabilizaram um total de noventa e quatro, como já referido. Ao final dessa nova
classificação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de assimetria (51,1%) face às
de simetria (48,9%), como explicitado no Quadro 6.2.
164
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
(…) depois de cem anos de divergências ortográficas (…) e depois de várias tentativas
goradas de acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências
de Lisboa (…) foi finalmente encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um
acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que
é positivo e que importa, portanto, enfatizar. [DN13-1]
165
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Intervenientes Quantificação
(%)
Brasil entre outros 42 (91,3%)
Angola e Moçambique apenas 1 (2,2%)
Angola apenas 1 (2,2%)
Países lusófonos (excluído o Brasil) 1 (2,2%)
Inglaterra e França 1 (2,2%)
Total 46 (~100%)
Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria
166
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
167
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
demais dezesseis, ou seja, nos restantes 61,5% dos casos, de forma implícita, como
indicado no Quadro 6.7.
Comparando-se os quadros 6.6 e 6.7, pode-se perceber que não houve diferença
significativa entre as referências explícitas e implícitas ao Brasil nos casos em que este
surge como único interveniente e nos casos em que surge como um dos intervenientes:
38,5% contra 37,5%, para as referências explícitas, e 61,5% contra 62,5%, para as
referências implícitas, respectivamente.
Tipo de
Detalhamento Nº
referência
Explícita Brasil 10 (38,5%)
Brasileiros 9
Público brasileiro 1
Ortografia brasileira 1
Academia Brasileira de Letras 1
Implícita 16 (61,5%)
Luso-brasileiro 1
Discípulos de Malaca & Bechara 1
Dos dois lados do Atlântico 1
Duas ortografias 1
Total 26 (100%)
Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:
referências explícitas e implícitas
Nas relações em que o Brasil surge como único interveniente, sendo representado
de forma implícita, tais representações são concretizadas via referência aos cidadãos
brasileiros (56,25%), via utilização de brasileiro/a como modificador de público, ortografia
e academia de letras (18,75%) ou, ainda via utilização de expressões que remetem
simultaneamente para Portugal e para o Brasil (25%), como registrado no Quadro 6.8.
É interessante observar que, do total de referências implícitas ao Brasil, nas
relações em que este figura como único interveniente, em um quarto delas são utilizadas
expressões que associam Portugal e Brasil. Veja-se, abaixo, um exemplo de relação
comparativa simétrica em que o Brasil encontra-se representado pelo modificador
“brasileiro” na expressão “neocolonialismo luso-brasileiro”:
168
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Representação Classificação Nº
Referências aos cidadãos
Brasileiros 9 (56,25%)
brasileiros
Público, ortografia ou ortografia Referência a brasileiro/a
3 (18,75%)
brasileira como modificador
Luso-brasileiro (*), Discípulos
de Malaca & Bechara, Dos dois Associação entre Portugal
4 (25%)
lados do Atlântico, Duas e Brasil
ortografias
Total 16 (100%)
(*) Neste caso, ‘brasileiro’ também é utilizado como modificador, permitindo, assim, ser classificado no item anterior.
Preferiu-se, no entanto, destacar as estratégias de associação entre Portugal e Brasil.
Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único interveniente
169
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem
diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné,
Cabo Verde, São Tomé e Timor. [EX04-3]
(…) depois de cem anos de divergências ortográficas (desde o acordo de 1911 que não foi
extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de acordos envolvendo a
Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa (…) foi finalmente
encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um
acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa,
portanto, enfatizar. [DN13-1]
O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com
Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é
decisivo para nós. [SL02-1]
Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os
censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e,
não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. [DN02-1]
(…) a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um
português europeu, africano, americano e asiático. [EX01-3]
A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da
diferença, não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias. [PB13-2]
170
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
de um total de vinte e seis casos) – e aqueles dezesseis casos em que aparece ao lado de
outros países lusófonos – 56,25% convergentes, 43,75% divergentes, como indicado no
Quadro 6.10.
171
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
França são trazidos ao debate. Em relação à Inglaterra, afirma-se a aliança política com
Portugal; em relação à França, afirma-se uma identificação cultural, como exposto abaixo:
É bem verdade que tais identificações são construídas em torno de uma polaridade,
evidenciada pelo recurso ao vocábulo “apesar”, mas esta não nega o conteúdo afirmativo
das relações de comparação acima identificadas, até porque em toda a relação de igualdade
há sempre uma relação de diferença pressuposta. Em outras palavras, os conceitos de
igualdade e diferença são interdependentes, embora a escolha que se faça – ao se adotar a
perspectiva de uma ou de outra na análise – implique significados distintos.
Concluída a classificação das relações comparativas simétricas em relações
convergentes ou divergentes, resta ainda avaliar o papel da língua na construção das
identidades nesse contexto. Com exceção da relação em que Inglaterra e França aparecem
como intervenientes, nas demais, o acordo ortográfico ou a perspectiva mais específica da
língua estão presentes. Dizendo de outra forma, em todas as construções que envolveram a
participação de países de língua protuguesa, o AO e/ou a língua ocuparam posição de
destaque nessas discussões.
Nos casos em que o Brasil é o único interveniente, predominam as referências
construídas com foco no acordo mais especificamente. Nos demais casos, o conceito de
língua parece disputar as atenções com o acordo propriamente dito. Nessas construções, a
língua surge, em geral, como fator de identidade, como um bem ou patrimônio ou, ainda,
como manifestação de cultura. É interessante também observar que tais argumentos são,
muitas vezes, entrelaçados a ponto de não ser possível individualizá-los. Além disso,
muitos desses argumentos são apropriados tanto por autores contrários como por autores
que defendem o acordo.
No exemplo abaixo, pode-se comparar a perspectiva da língua como fator de
identidade e cultura e também como recurso de construção da diferença. O autor se vale da
referência à língua para construir uma certa identidade nacional portuguesa, associada com
a formação e o desenvolvimento do indivíduo (“na língua em que cresci”) e, indiretamente,
com a ideia de cultura, mas também, simultaneamente, para marcar a diferença com outros
perfis nacionais (“não sou brasileiro nem moçambicano”). Essa comparação também
remete, em alguma medida, para uma perspectiva de posse ou patrimônio aqui traduzida
pela indiferença do autor – na condição de português – em relação à língua falada por
172
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os
censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e, não
fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da proclamação
gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a minha língua é.
[DN02-1]
O nosso grande património é termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com
Moçambique… tudo o que pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é
decisivo para nós. [SL02-1]
A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a
escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil,
Angola, Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural.
[PB07-1]
173
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
AO, por outro lado, privilegia-se a ideia de acordo e o potencial positivo da unificação. São
exemplos dessas linhas de argumentação as citações que seguem:
Além disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e
Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países
interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se
pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de
enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a
desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro. [DN17-3]
O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos
ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo
Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo. [SL02-5]
174
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Há, portanto, apenas três situações em que o Brasil não é o único interveniente,
surgindo ao lado de Angola (PB06-5) ou dos demais países de língua portuguesa, nas
referências a “espaço lusófono” (PB20-2B) e “outros países lusófonos” (PB26-3).
Considerando-se, agora, os restantes doze casos em que o Brasil não surge entre os
intervenientes, as relações comparativas assimétricas são estabelecidas entre Portugal e
outros países de língua portuguesa predominantemente – em nove ocorrências, o que
representa, portanto, 75% do total. Os únicos países não falantes do português que figuram
nessas relações comparativas são a Espanha e a Inglaterra, como evidenciado no Quadro
6.13:
175
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Pólo Portugal
Pólo Forte 9 (18,75%)
Pólo Fraco 39 (81,25%)
Total 48 (100%)
Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas
Nas nove ocorrências em que se dá o inverso, ou seja, nos 18,75% dos casos em
que Portugal ocupa o pólo da força, os intervenientes mais frequentes são os países
africanos de língua portuguesa (PALOP), com sete ocorrências de um total de nove, o que
representa 77,8% dos casos. Em três das ocorrências, que representam 42,9%, os PALOP
são os únicos intervenientes, enquanto nas demais quatro, que representam 57,1%, surgem
ao lado de outros países ou entidades, como registrado no Quadro 6.15.
176
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
177
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles
ficam admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui.
Não percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam
muito às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase
sempre me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso?
Fosse aqui e eu…” Mas não é aqui, é aí . [PB29]
A relação de comparação estabelecida com a Inglaterra, por sua vez, é marcada pela
ironia. Nela, atribui-se à Inglaterra uma habilidade no desempenho de uma atividade
específica – neste caso, a jardinagem – que, segundo o autor, Portugal não partilha. Nesse
quesito, a Inglaterra seria mais capaz que Portugal, ocupando, assim, o pólo da
força/vantagem face a ele.
As construções de comparação com Angola e Moçambique nas quais tais países
surgem no pólo forte da relação são marcadas, de modo geral, pela avaliação positiva do
comportamento de ambos no que se refere à não adoção da grafia definida pelo AO em
função do fato de ambos os países não terem, à época da publicação dos artigos, ratificado
o acordo. Estariam, portanto, em posição de vantagem, pois manteriam a correção da
grafia das palavras. Tal correção decorre do fato de Angola e Moçambique seguirem
escrevendo de acordo com as regras ortográficas em vigor antes do acordo, mantendo
assim a ortografia antiga, seguindo o modelo do português europeu.
Considerando-se, agora, apenas as representações de assimetria em que o Brasil
ocupa, sozinho, o pólo da força, verifica-se que as estratégias adotadas são bastante
diversas: num momento, promove-se a valorização do Brasil, noutro, desvaloriza-se
Portugal, como exemplificado abaixo. Em alguns casos, ainda, tais estratégias são
178
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma
questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser
aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como
Angola e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que
outras paragens). [DN17-2]
179
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro de uma geração ninguém conseguirá
pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como ela é falada deste lado do Atlântico.
[DN17-1]
(…) palavras que todos escreviam da mesma maneira, tantas, passam a escrever-se, por
imposição do AO, de modo diferente em Portugal, mantendo no Brasil grafia certa:
recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc. [PB34-3, destaques acrescentados]
180
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema
foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)? [PB05-5, destaques
acrescentados]
Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do
que aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da
omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão. [PB30-1, destaques
acrescentados]
Passa-se, agora, à análise dos nove casos em que Portugal ocupa o pólo da força
numa relação assimétrica. Como já referido nos Quadros 6.13 e 6.14, os países africanos de
língua portuguesa (PALOP) são os intervenientes mais frequentes, seguidos de Timor,
Brasil e Espanha. Nas relações envolvendo os países africanos, a posição de vantagem
atribuída a Portugal é construída a partir da ideia de que o AO representaria os interesses
de Portugal – e também do Brasil – com total desconsideração pelos PALOP. Nesse
contexto, tais países seriam considerados como irrelevantes, ou mesmo incapazes, no
debate sobre o AO, controlado por Portugal e Brasil.
Tais relações são, de modo geral, marcadas por um suposto protagonismo
português na definição dos termos do acordo ortográfico face aos demais países de língua
portuguesa, excetuado o Brasil. Vale ainda ressaltar que essas relações são construídas
sempre na perspectiva da crítica, isto é, caracterizando essa manifestação de força como
indevida, constituindo-se, assim, em mais uma estratégia de resistência ao AO.
Timor, por sua vez, figura sempre ao lado dos PALOP e dos países lusófonos como
um todo, nunca sendo nomeado expressamente, como indicado no Quadro 6.14. Sendo
assim, todas as observações feitas acima para os PALOP também se aplicam a esse país.
Mais uma vez, a posição de força/vantagem atribuída a Portugal é construída via afirmação
da irrelevância e fraqueza de Timor, em função de seu papel secundário – ou mesmo da
quase total ausência de participação – no debate sobre o acordo ortográfico.
Em relação ao Brasil, o país é posicionado no pólo fraco da relação de comparação
em duas ocasiões: em DN07-1, onde surge como único interveniente, e em PB26-3, onde
181
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
sua presença é inferida a partir da referência aos demais países lusófonos. Ambos os casos
serão analisados a seguir; este é o primeiro deles:
É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial
e facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou
melhor, com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no
meio intelectual a forma antiga. [DN07-1, destaques acrescentados]
182
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
lhe diz respeito. Em outras palavras, no debate sobre o AO, em relação aos espanhóis, os
portugueses são os interlocutores privilegiados.
Excluídos os dois casos em que o Brasil figura entre os intervenientes (DN07-1 e
PB26-3) numa relação assimétrica em que Portugal ocupa o pólo da força/vantagem e o
caso em que a Espanha participa (PB29-1), nos demais casos – ou seja, em seis de nove
comparações (66,7%) – Portugal não está sozinho, partilhando a posição de vantagem com
o Brasil. Isso ocorre porque tais relações de assimetria ora analisadas fazem parte de
situações comparativas complexas, compostas por diferentes relações entrelaçadas, ou
seja, situações em que, muitas vezes, relações de comparação simétricas e assimétricas
convivem entre si.
Embora, neste momento, o foco desta análise incida exclusivamente sobre as
relações assimétricas nas quais Portugal ocupa o pólo da força/vantagem, a informação
acima parece relevante para uma reflexão mais apurada. Portanto, fica aqui a ressalva de
que seis das nove relações de comparação ora analisadas são precedidas ou entrelaçadas
por outras relações de simetria entre Portugal e Brasil, como exemplificado abaixo:
Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90
vem consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e
outra para o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades
ortográficas dos restantes países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma,
ou a outra - a menos que surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de
Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor... (PB20-1B,
destaques acrescentados)
183
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser
praticada em Portugal! [DN09-1, destaques acrescentados]
Embora essa construção posicione o Brasil no pólo de força face a Portugal, ela
traduz uma visão de mundo compatível com a ideia de superioridade portuguesa. Essa
interpretação baseia-se no uso da expressão “nem mesmo o Brasil”, que traduz surpresa,
isto é, contrariedade de expectativas. Os critérios de aceitação brasileiros seriam – ou
deviam ser, era esperado que fossem – mais baixos do que os dos portugueses. O uso da
expressão “carnavalização” também contribui para essa identificação, pois, embora possa
assumir diferentes significados, não deixa de invocar o Carnaval – festa popular fortemente
associada à imagem pública do Brasil – que ainda poderia remeter para uma espécie de
licenciosidade, um ambiente onde tudo é possível e nada deve ser levado a sério.
Passando-se à análise do extrato seguinte, é a vez de Angola e Moçambique se
juntarem ao Brasil como intervenientes, conforme a seguinte citação:
184
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e
de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma
morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”,
“recepção”, etc., coisa esquecida por cá). (PB33-1, destaques acrescentados)
Consolidação da análise
Na análise das posições de força assumidas pelos ou atribuídas aos diferentes países
em situações de contato e comparação, verificou-se o ligeiro predomínio das relações de
assimetria (51,1%), ou seja, de situações em que são estabelecidas forças diferentes entre
os diversos interlocutores. Portugal, na grande maioria das vezes, ocupa o pólo fraco
dessas relações.
Embora diferentes países tomem parte nessas caracterizações, especialmente
aqueles envolvidos na discussão do tratado internacional sobre o acordo ortográfico, o
185
Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
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Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
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Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal
Síntese
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Capítulo 7
Reflexão final
A perspectiva dos marcadores identitários
Repercussões e desdobramentos
O recurso à língua como fator de identidade consistiu numa estratégia recorrente ao
longo do século XIX, especialmente a partir de sua segunda metade, na construção das
identidades nacionais na Europa. No entanto, neste início de século XXI, marcado pelos
processos de globalização e por profundas transformações do tecido social, no contexto da
modernidade tardia, resta saber se a relação entre língua e identidade nacional permanece – e,
se permanece, em que termos.
Neste capítulo, retoma-se os resultados da análise do corpus, desenvolvida na segunda
parte da pesquisa, especialmente nos dois capítulos anteriores, para, numa perspectiva
comparada e interessada, reavaliá-los a luz do enquadramento teórico-metodológico
elaborado na primeira parte. As teorias sobre os nacionalismos e sobre as identidades são
assim mobilizadas para dar sentido a – ou, ao contrário, para pôr em causa – os discursos e
representações identificados no exame dos artigos de opinião sobre o acordo ortográfico.
Como ponto de partida, traz-se novamente ao debate o conjunto de temas que
informam os chamados marcadores identitários, ou seja, elementos utilizados de modo
recorrente no processo de construção das identidades nacionais. Pátria, nação, soberania,
povo, cultura, identidade e matriz foram os conceitos assim identificados e que agora
retornam ao centro do debate sobre a relação entre língua e identidade nacional na Europa.
A seguir, retoma-se a análise das diferentes posições assumidas por e construídas para
Portugal nas situações de contato e contraste com outras entidades nacionais ou
supranacionais, realizada no capítulo seis. Procura-se, agora, constituir uma visão de
conjunto, que dê conta das perspectivas teóricas e das análises práticas e que revele os
diferentes discursos elaborados em torno da ideia de língua e identidade.
Por fim, concluída a análise comparada do recorte teórico-metodológico adotado e dos
resultados do estudo de caso, passa-se às reflexões finais sobre o tema central desta
investigação, ou seja, sobre o papel simbólico da língua na construção discursiva das
identidades nacionais. Esse esforço final implica a tentativa de se recontextualizar os
Reflexão final
discursos sobre língua e identidade num dado contexto espaço-temporal – a Europa deste
início de século – e de se refletir sobre possíveis ou potenciais repercussões e
desdobramentos.
O objetivo deste capítulo é sistematizar as reflexões e análises realizadas no decorrer
desta pesquisa, de modo a reunir e identificar as principais representações construídas em
torno da ideia de língua e de identidade nacional. Procura-se, assim, promover uma espécie de
mapeamento que – espera-se – possa contribuir para uma reflexão crítica e uma melhor
compreensão do tema.
192
Reflexão final
193
Reflexão final
alcançar alguma estabilidade – embora precária e relativa – na segunda metade do século XX,
após as duas grandes guerras. Esse é também o período de construção e afirmação das
culturas nacionais, que conduzem, na chegada do novo milênio, a uma comunidade europeia
de países com línguas e fronteiras definidas.
Mas, no exato momento em que essa fixidez e essa estabilidade parecem se tornar
realidade, elas começam a se desmoronar; afinal, o mundo segue em movimento. Agora são
as novas tecnologias de comunicação, os novos recursos de mobilidade, as novas relações de
força, as novas interdependências, os novos aliados e inimigos, novos valores e princípios e
uma nova organização geopolítica que emergem a partir dos diferentes processos de
globalização, no contexto desta modernidade tardia.
As fronteiras nacionais são postas em causa e transformadas, especialmente no âmbito
da União Europeia, assim como a noção de pureza e homogeneidade das línguas nacionais e a
valorização das línguas-padrão em detrimento de quaisquer outras. Num cenário de
mobilidade que se traduz, entre as várias formas possíveis, em acirramento dos movimentos
migratórios e de multiplicação das situações de contato e contaminação entre línguas, novas
políticas e novas teorias são desenvolvidas, muitas delas a favor da pluralidade e da
diversidade.
Nesse mesmo cenário, mas agora resgatando-se a associação entre língua e nação, que
se fez marcadamente presente nos nacionalismos europeus, alcança-se a perspectiva do
direito: o direito à língua confunde-se com o direito à nação. O recurso à língua como fator de
identidade e estratégia de homogeneização, que tanto beneficiaram o processo de construção
das nações, agora, se mantido, transforma-se em ameaça à integridade nacional, uma vez que,
no interior do território da nação, a diversidade linguística, sempre presente, ganha
notoriedade.
Consequentemente, num contexto marcado pela diversidade e pluralidade de línguas
convivendo num mesmo espaço nacional, o conceito de uma língua, uma nação precisa ser
revisto e transformado, o que implica a necessidade de tranformação da própria ideia de
língua nacional como sendo a língua materna de um determinado povo. Os discursos de
associação entre pátria, nação e língua começam a mudar – mas mudar leva tempo e há
sempre resistência. Os resultados do estudo de caso – com seus discursos de afirmação e
resistência à associação entre língua e pátria, por exemplo – parecem apontar nessa direção.
Outro tema que também se relaciona com os conceitos de pátria e nação e que foi aqui
analisado foi soberania. O conceito de soberania, tão caro aos discursos de afirmação dos
chamados Estados-Nação, tem sido rediscutido à luz do atual cenário social, político e
194
Reflexão final
econômico, caracterizado por uma crescente interdependência entre os Estados, associada aos
processos de globalização.
Em geral, não há representações que estabeleçam relação direta entre soberania e
língua; ela surge, por outro lado, associada à ideia de Estado ou governo, num contexto que
remete para perda ou enfraquecimento do poder estatal. Tais construções corroboram os
discursos atuais sobre a perda de soberania dos Estados no cenário internacional, e não só,
face a interdependência política, econômica e social associada à globalização, como acima
apontado.
Como ponto de partida, podemos entender soberania como sendo o poder de um país
de decidir o seu próprio destino, pelo menos teoricamente, sem intervenções externas ou
condicionamentos. É o livre arbítrio aplicado ao Estado-Nação. Na prática, no entanto,
sempre houve condicionamentos de natureza diversa – sejam eles diretos ou indiretos,
explícitos ou não. Nas sociedades ocidentais atuais, marcadas por uma intensa mobilidade,
pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e pela crescente interdependência
entre Estados, entre outros fatores, tais condicionamentos assumiram proporções de grande
vulto a ponto, talvez, de pôrem em causa a ideia de soberania em seus contornos originais.
Ainda no que diz respeito ao conceito de soberania, parece relevante fazer aqui uma
distinção entre duas perspectivas distintas. Por um lado, pode-se pensar a soberania no
contexto de perda ou enfraquecimento do poder ou da capacidade de um país decidir sobre um
certo tema por ter delegado tal poder, de forma voluntária e consciente, para os órgãos de
decisão colegiada da união europeia. Por outro, pode-se pensar a soberania no contexto de
perda ou enfraquecimento, porque um país, mesmo mantendo seu poder ou sua capacidade de
decidir, já não pode controlar ou conter a aplicação e/ou os resultados dessa decisão em
função de fatores externos a ele, mais uma vez associados aos processos de globalização e ao
desenvolvimento de novas tecnologias.
A questão da soberania perpassa a discussão do próprio projeto europeu, assim como
suas possibilidades de organização interna e sua imagem ou identidade no campo
internacional. Na condição de união entre países soberanos e distintos, é preciso definir de
quanto dessa soberania cada país deve abdicar a favor da unidade e como fazê-lo. Ainda hoje,
essa discussão vem sendo travada. No caso de Portugal, a pertença a uma entidade
supracional, como a União Europeia, parece tornar ainda mais evidente esse embate de forças
marcado pelos discursos de ameaça à ou perda de soberania.
Giddens (2014: 11), ao refletir sobre tais questões, ou seja, sobre os discursos de
perigo ou ameaça de perda de soberania, no âmbito da UE, alerta para o fato, difícil de
195
Reflexão final
contestar, de que não se pode falar em perda daquilo que já não se tem: “Não se pode entregar
aquilo que já está perdido. É escasso o poder que as nações detêm individualmente na cena
mundial”.
No contexto desta pesquisa, no entanto, não parece fazer sentido aprofundar essa
discussão. A rigor, o que importa ressaltar é que o AO90 representa um acordo entre
diferentes países, concretizado na forma de um tratado internacional, o que necessariamente
implica um jogo de forças e negociação de interesses entre países, remetendo para a questão
da soberania. O fato de o tema da soberania vir à tona no âmbito de um acordo internacional
sobre ortografia parece, ainda, reforçar, por si só, a imbricação entre língua, nação e
identidade nacional, mesmo que de forma indireta. Uma vez que o que interessa aqui é pensar,
como sempre, o papel simbólico da língua em sua relação com as identidades nacionais, a
perspectiva da perda da soberania ajuda a construir um cenário caracterizado pelo perigo e
pela ameaça, que agora pairam também sobre o conceito de língua, trazendo a discussão sobre
o AO para o campo da política e da afirmação nacional.
Por fim, a referência, embora única, à soberania cultural concorre para explicitar essa
relação com a língua, desdobrando-se na associação entre língua e cultura e, por sua vez, entre
cultura e identidade, temas que serão analisados mais à frente. Aqui, a relação que interessa é
aquela estabelecida entre soberania e identidade nacional, tendo a cultura como elo. Nesse
sentido, a ideia de soberania se estende para outros campos além da política, em outras
palavras, um país soberano deve assim o ser em todas as suas esferas de atuação.
Do mesmo modo que soberania, outro tema considerado na identificação dos
marcadores identitários foi o conceito de povo. Na análise das referências a povo, interessa
destacar principalmente os discursos de associação com a língua. Nessas representações, a
língua surge como elemento constituidor do povo ou revelador de uma certa etnia/origem. A
língua é também associada a um particular modo de viver e pensar, retomando a perspectiva
da língua como condicionadora de uma visão de mundo na esteira do pensamento de
Wittgenstein ou de Sappir e Whorf, como referido no capítulo três, ou da própria linguística
sistêmico-funcional, no seu princípio de que as línguas são estruturadas pelo uso e pelas
necessidades dos seus falantes.
Nesse contexto, parece haver uma espécie de fusão dos conceitos de povo, língua e
identidade, criando-se um amálgama onde já não é possível separar cada um desses elementos
com facilidade. Ampliando-se o conceito de identidade individual para o de identidade
nacional, a nação passa a figurar nessas relações, onde povo, língua e identidade conduzem ao
reconhecimento de uma nação, com tudo o mais que isso implica.
196
Reflexão final
197
Reflexão final
198
Reflexão final
199
Reflexão final
visão de cultura que se destaca – ideia reforçada pelo uso da palavra cultura sempre no
singular.
Assim como verificado na análise da relação entre povo e língua, a associação entre
cultura e língua também contempla a perspectiva patrimonial. Em tais discursos, a língua é
representada como um patrimônio ou bem cultural, muitas vezes dotado de valor econômico.
Em geral, verifica-se uma certa materialização dos conceitos de língua e cultura, em contraste
com a abstração que caracteriza tantos outros discursos, como estratégia de atribuição de
valor.
No contexto acima, quando a diversidade é realçada em tais construções,
invariavelmente surge como recurso de agregação de valor. É interessante observar também a
grande maleabilidade do argumento da diversidade, que se presta igualmente aos opositores e
aos defensores do acordo, como já referido no capítulo quatro. Em comum, todos afirmam seu
valor e, consequentemente, a importância e a relevância de se preservar tal diversidade.
Por fim, a relação entre língua e cultura também é utilizada como um valioso recurso
de construção das identidades nacionais, por todos os motivos já indicados acima. Mas, neste
momento, é a perspectiva da identidade, nas representações em que esta é explicitamente
nomeada, que interessa investigar e, mais especificamente, o papel simbólico desempenhado
pela língua nesse contexto.
Sobre o conceito de identidade, o primeiro ponto a destacar é que este surge
fortemente associado à ideia de língua. De modo geral, é em função dela que ele é articulado.
Se a cultura, como esperado, dada a amplitude de significados que incorpora, alcança maior
variedade de temas e contextos, entre os quais os da língua, o conceito de identidade é quase
que univocamente associado à língua no âmbito dos artigos de opinião sobre o AO.
Os discursos construídos em torno da ideia de identidade estabelecem relação direta
entre esta e a língua, em geral para afirmá-la. Entretanto, assim como na análise das
representações de cultura, verifica-se aqui uma tentativa de distinção entre língua e ortografia.
Em geral, quando tal distinção é feita, busca-se negar a relação entre identidade e ortografia,
ao contrário do que se verifica com a relação entre identidade e língua.
Como recurso de construção de identidades nacionais, a língua figura em posição de
relevo, constituindo por si só um fator de identidade. A língua é, assim, produtora, isto é,
geradora de identidades. Apenas como exemplo, considere-se a expressão língua materna,
que muitas vezes é utilizada como sinônimo da língua nacional em contextos onde a ideia de
homogeneidade e partilha de uma mesma origem ou etnia é reforçada no interior de uma
comunidade nacional – ou que se pretende nacional.
200
Reflexão final
201
Reflexão final
202
Reflexão final
matriz a partir da qual variações são derivadas, num processo que implica perda do valor
original de pureza, autenticidade, correção e rigor, distinguindo entre matriz (centro) e
variantes (periferia), por exemplo.
Adotando-se, no entanto, concepções alternativas ao conceito matriz/variantes, pode-
se entender as línguas como em permanente processo de transformação e mudança, motivadas
por outros contatos, vivências e contextos histórico-sociais. Nessa perspectiva, perde sentido a
tentativa de se definir claramente um ponto de partida e um ponto de chegada no processo de
evolução contínua das línguas, assim como de se estipular um ideal de pureza e correção a ser
seguido.
Apenas como exemplo, vale a pena retomar o seguinte excerto da citação já referida
no capítulo seis: “em Portugal e nos outros países que aprenderam a falar a partir da matriz
europeia” (em PB13-1). A opção pela locução verbal “aprender a falar”, independentemente
da intenção pretendida pelo autor do artigo, permite a construção de significados distintos:
transfigura o contexto colonial de imposição da língua portuguesa aos países colonizados ao
evocar o campo da educação e do aprendizado; parece pressupor uma certa incapacidade de
fala anterior ao contato com a língua portuguesa, promovendo, de certo modo, o apagamento
das línguas nativas; e, ainda, estabelece uma relação implícita de poder onde Portugal assume
o papel de quem ensina, ou seja, é identificado como o detentor de um saber/poder. Essa
interpretação – uma entre tantas possíveis – é, de certa forma, coerente com uma específica
imagem do colonizador, construída por e para Portugal, que parece ainda vigorar na
atualidade, apesar dos discursos em sentido contrário: a do bom colonizador empenhado numa
suposta missão civilizadora.
Embora o conceito de matriz não configure um elemento recorrente nos discursos
sobre os nacionalismos na Europa – muito possivelmente em função da associação de tal
conceito com o contexto colonial e, mais especificamente, com a relação entre colonizador e
colonizados, extrapolando, portanto, o espaço europeu –, as representações construídas em
torno de matriz e sua associação com a língua são compatíveis com as teorias sobre os
nacionalismos. A noção de língua como símbolo e matriz de identidade e cultura, destacada
no âmbito desta análise, é um bom exemplo disso.
203
Reflexão final
204
Reflexão final
Brasil do que para Portugal, pois implicaria uma aproximação indevida entre o português
europeu e o português falado e escrito no Brasil. A versão europeia da língua sairia
descaracterizada desse acordo ao sofrer um número maior de alterações ou, pelo menos, de
alterações mais significativas, em comparação com o Brasil.
Considerando-se o fato de que, em boa parte dos artigos analisados (77,5%), os
posicionamentos assumidos são contrários ao AO, a maior frequência das relações
comparativas assimétricas, onde Portugal ocupa o pólo fraco, não parece surpreender. Tal
conclusão decorre de a caracterização explicitada acima ser adotada preferencialmente pelos
autores que resistem ao acordo. Talvez por esse mesmo motivo, os cenários de ameaça, risco
e perigo, associados à língua portuguesa (especificamente ao português europeu) e às
identidades e culturas, sejam recorrentes.
Também nos casos em que Portugal ocupa o pólo da força, as representações acima
são mantidas. Em seis dos nove casos verificados, Portugal não aparece sozinho, mas sim
divide sua posição com o Brasil, como já discutido no capítulo anterior. Portanto, também
nesses casos, embora Portugal ocupe o pólo forte da relação de comparação, não consegue se
sobrepor ao Brasil, que, de modo geral, surge como o principal oponente de Portugal no
contexto do AO.
Retomando-se os principais argumentos mobilizados na construção de relações
comparativas assimétricas entre Portugal e o Brasil, temos: argumentos de cedência de
Portugal face ao Brasil, argumentos de maior força econômica do Brasil em relação a
Portugal, argumentos de proteção do português europeu e correção da língua e argumentos de
valorização e/ou aprovação de um comportamento ou imagem.
Os dois primeiros argumentos reforçam a caracterização de vantagem para o Brasil e
desvantagem para Portugal, apontando para o suposto favorecimento do Brasil no âmbito do
AO. O terceiro argumento, ao contrário, coloca Portugal em posição de vantagem, embora
cercado por ameaças e perigo. Essa vantagem é configurada como superioridade ao se atribuir
ao Português europeu a primazia da correção da língua, que agora se vê ameaçada pelo AO.
Por fim, o quarto argumento critica a posição de Portugal, por ter ratificado o acordo, e
simultaneamente valoriza as posições de Angola e Moçambique, especialmente, por ainda não
o terem feito.
Nas relações simétricas, houve um relativo equilíbrio entre convergência (47,8%) e
divergência (52,2%), com ligeira vantagem para a segunda. Mais uma vez, o Brasil figura
como o principal interveniente. Também outros países de língua portuguesa são chamados ao
205
Reflexão final
debate e apenas excepcionalmente países que não têm o português como língua oficial são
identificados – neste caso, especificamente a Inglaterra e a França.
A incidência do Brasil como interveniente nas relações de simetria (91,3%) é
significativamente superior à verificada nas relações de assimetria (75%). No entanto, deve-se
levar em conta que algumas das relações de assimetria são construídas lado a lado com
relações de simetria que envolvem o Brasil ou mesmo no âmbito de situações comparativas
complexas nas quais o Brasil muitas vezes figura. Isso significa dizer que, mesmo estando
ausente de 25% das relações de assimetria, ainda assim se faz presente em parte delas quando
se olha para a situação comparativa como um todo.
Considerando-se apenas a relação entre Portugal e o Brasil nas relações simétricas, é
interessante destacar a diferença das estratégias adotadas quando o Brasil figura como único
interveniente ou como um dos intervenientes, como já referido no capítulo anterior. No
primeiro caso, prevalece a divergência, ou seja, Portugal e Brasil são representados em
paridade de forças, porém com destaque para aquilo que os difere e distingue. No segundo
caso, ao contrário, prevalece a convergência, ou seja, destaca-se agora o que Portugal e o
Brasil têm em comum, mas dessa vez no âmbito da interação e concorrência com os demais
intervenientes envolvidos na relação de comparação.
Mais uma vez, os dados confirmam a análise anterior, que indica a polaridade de
posições assumidas ou atribuídas entre Portugal e o Brasil, por um lado, e, por outro, a
igualdade de forças e posições entre diferentes entidades nacionais e supranacionais que
remetem para o ambiente democrático e para os discursos de valorização da lusofonia, isto é
daquilo que une e aproxima os diferentes países de língua portuguesa.
A questão da polaridade também é reforçada pelo fato de prevalecer a convergência
nos casos em que as relações de comparação simétricas são estabelecidas entre Portugal e
outros intervenientes, excetuado o Brasil. Mas também parece relevante o fato de essa
convergência, no cenário em que o Brasil surge ao lado de outros países e entidades, tirar o
foco da relação Brasil e Portugal. Em outras palavras, embora se estabeleça, em tais casos,
uma relação simétrica convergente entre Portugal e Brasil, essa é diluída pela multiplicação
dos intervenientes ou mesmo pelo recurso a representações em que o Brasil surge de forma
implícita, como nas expressões “países lusófonos” (PB26-04) ou “países onde a língua oficial
é o português” (SL02-2), por exemplo.
206
Reflexão final
Repercussões e Desdobramentos
207
Reflexão final
208
Reflexão final
O Estado em rede, ainda segundo Castells (2007: XXI), seria caracterizado por fazer
parte e atuar numa abrangente rede de interações com outros Estados, governos, instituições,
entidades e organizações em diversos âmbitos: locais, internacionais, regionais, globais.
Nesse contexto, a sociedade civil, organizada local e globalmente, também desempenharia
papel relevante, assumindo posições distintas no embate de forças que marca o tecido social:
ora atuando em parceria ora em resistência às posições assumidas e defendidas pelo Estado.
Nesse contexto, o Estado regressa à cena global assumindo novas formas de
organização, de produção e exercício de poder e, também, novos princípios e estratégias de
legitimação (Castells, 2007: 358). No que diz respeito aos nacionalismos, portanto, não se
trata de apregoar o seu fim – afinal, não é necessário ou mandatório que acabe –, mas sim de
estabelecer e/ou reconhecer, em alguma medida, novas relações de forças, que parecem ainda
não se ter estabilizado.
Aceita a premissa de que o conceito de nação, longe de se ter exaurido, segue vivo,
embora em transformação, parece razoável assumir que a própria noção de identidade
nacional – seu possível conteúdo, mas também seu prestígio e relevância – é também
transformada. No campo das identidades nacionais, instaura-se uma concorrência maior de
identidades e identificações, onde diferentes elementos são mobilizados e/ou descartados ao
longo de processos de construção de identidades cada vez mais complexos, instáveis e
temporários, mas, nem por isso, menos intensos.
Essa mesma situação se verifica no contexto do nacionalismo linguístico, por
exemplo, num cenário em que línguas se multiplicam e já não podem ser contidas em espaços
físicos pré-determinados, como o dos antigos territórios nacionais, com suas fronteiras e
controlos rígidos.
O poder das redes globais e, especialmente, da mídia global, que demanda o
desenvolvimento e a circulação de uma língua comum, representa um desafio para as
identidades singulares, como defende Castells (2007), e o mesmo parece se dar com as
identidades nacionais. A língua, cada vez mais, aproxima-se do conceito de cultura,
assumindo o papel de expressão da mesma e atuando, muitas vezes, como o “reduto do
significado identificável”, nas palavras do autor (idem: 65).
Habermas (2004: 80), ao refletir sobre os nacionalismos hoje e, mais especificamente,
sobre as tensões e transformações da relação entre Estados no âmbito da União Europeia,
também destaca a perda da estabilidade das identidades coletivas, que, ainda segundo o autor,
ocorre juntamente com a perda de capacidade de ação dos Estados, pressionados por uma
sociedade mundial cada vez mais dirigida por parâmetros econômicos.
209
Reflexão final
Síntese
210
Conclusão
Os conflitos e tensões que marcaram esses últimos anos envolvendo Ucrânia, Crimeia
e Rússia, a crise dos refugiados sírios e a polêmica em torno da construção de novos muros na
Europa, a entrada em cena do autoproclamado estado islâmico e, mais recentemente, as
disputas entre Rússia e Turquia parecem indicar que as nações e os nacionalismos continuam
em voga nesse início de século XXI e que ainda são capazes de mobilizar e inspirar pessoas e
jusitificar ações e decisões, se não drásticas, no mínimo, polêmicas.
No âmbito desta pesquisa, procurou-se refletir sobre os nacionalismos na Europa de
hoje, mas numa perspectiva bastante estrita: a do papel simbólico da língua na construção das
identidades nacionais, com foco num caso particular – o de Portugal – e num contexto
específico – o da discussão em torno do acordo ortográfico de 1990, concretizado num tratado
internacional assinado pelos diferentes países de Língua Portuguesa.
Como ponto de partida, foram trazidas à discussão algumas das atuais teorias sobre as
identidades em geral e as identidades nacionais em particular, especialmente no âmbito da
modernidade tardia, com todas as transformações a ela associadas. Entre outros temas,
procurou-se destacar os contrastes entre visões essencialistas e não essencialistas das
identidades, aqui entendidas como resultantes de processos, incessantes e sempre inacabados,
de construção.
A seguir, buscou-se identificar o papel da língua na construção das identidades
nacionais no contexto das teorias do nacionalismo ou, mais especificamente, no campo do
nacionalismo linguístico. Deu-se destaque ao potencial simbólico da língua nesse processo. A
relação entre língua e cultura também foi explorada. Por fim, o contexto europeu do
multilinguismo foi resgatado num esforço de reflexão sobre a possibilidade de construção de
identidade no cenário de multiplicidade de línguas.
Para concluir essa primeira parte da pesquisa, foram expostos os fundamentos teórico-
metodológicos que serviram de base e justificativa para a análise de dados. O conceito de
Conclusão
discurso, na acepção do Foucault, atuou como uma importante diretriz para se delinear a via
da construção discursiva, adotada neste trabalho. A análise crítica do discurso foi apresentada
e discutida em linhas gerais, uma vez ser essa a perspectiva que rege este estudo, na
abordagem da linguística sistêmico-funcional.
Uma vez delimitado o campo teórico e esclarecida a metodologia, passou-se à análise
de dados, que dá início à segunda parte deste trabalho. Uma breve contextualização da
história de Portugal e alguma reflexão sobre a situação atual serviram de introdução. A seguir,
a escolha do corpus – artigos de opinião sobre o AO90 publicados nos jornais portugueses –
foi explicitada e justificada. Os principais argumentos mobilizados foram identificados e
mapeados e as perspectivas de análise escolhidas foram indicadas.
A seguir, passou-se à análise propriamente dita, com a identificação e análise dos
marcadores identitários. Pátria, nação, povo, soberania, cultura, identidade e matriz foram os
temas explorados. A segunda etapa da pesquisa concentrou-se na identificação das diferentes
posições assumidas por ou atribuídas a Portugal no contato com outras entidades nacionais ou
supranacionais.
No final, promoveu-se uma reflexão sobre o caráter identitário da argumentação em
torno do AO90 em Portugal a partir da contraposição da parte teórica e da parte analítica
desenvolvidas até aqui. O objetivo dessa sistematização final foi explorar algumas das
perspectivas e possibilidades da língua, em seu viés simbólico, na construção dos
nacionalismos europeus hoje e na construção de uma certa identidade europeia.
Entre os resultados mais determinantes, destacam-se a persistência da associação entre
língua e identidade (onde a perspectiva da cultura desempenha papel relevante e onde
parecem ainda persistir e resistir certas visões essencialistas), mas num contexto marcado pela
multiplicação de discursos concorrentes que indicam, de certo modo, um forte potencial de
mudança e transformação. Tambem as relações de poder, entrelaçadas com a ideia de posse,
propriedade e correção da língua, concretizam-se em estratégias de inclusão e exclusão,
aproximação e afastamento, construção de posições de força e fraqueza ou, ainda, na
caracterização de cenários de risco e ameaça.
Em resumo, o papel simbólico da língua como recurso de construção de identidades
nacionais permanece, mas não se mantém inalterado; pelo contrário, pressionado e contestado
por discursos concorrentes e por visões não essencialistas da relação entre língua e identidade,
esse papel se transforma para se adaptar às novas realidades, marcadas pela multiplicação das
identidades, que, em geral, perdem gradualmente sua rigidez e fixidez, e pela multiplicação
das línguas, agora engajadas em novas relações de poder e prestígio.
214
Conclusão
Nesse contexto, o projeto europeu, com sua aposta no multilinguismo e seu esforço de
construção de uma ou várias identidades para a Europa, parece representar uma espécie de
posto privilegiado de observação – privilegiado não por ocupar uma posição de relevo ou
singular importância, mas sim por ter oficialmente assumido e colocado em prática o
multilinguismo – como política e como princípio – na construção de um organismo que se
pretende, de algum modo, supranacional.
Partilhando a posição de Wodak (Wodak et al, 1999: 9), em seu esforço por lançar
alguma luz sobre o caráter dogmático e essencialista do conceito de nação, que dificulta ou
até mesmo impede a coexistência – em paridade e igualdade – entre pessoas de origens,
religiões e línguas diferentes, neste estudo procurou-se destacar o caráter dogmático e
essencialista das identidades nacionais, em especial no que diz respeito ao recurso à lingua em
seu processo de construção.
215
Apêndices
Apêndice A
Matriz 9
Identidade 9
Povo 20
Cultura 43
Soberania 5
Nação 21
Pátria 13
0 10 20 30 40 50
Apêndice B
Grupo Pátria
A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força . Eu vou continuar a escrever
13 como antigamente. 1
2 3 8
Relação Pátria x Língua Nº 2 11
Não estabelece relação
2 13
Estabelece relação Afirmativa 3
11
Negativa 8
Total 13
Patriótico 1
Patriotísticas 1
Patriotismo 2
Patriotas 1
Pátria/s 8
0 2 4 6 8 10
Apêndice B
Grupo Nação
stil. acordo ortográfico é do mais alto interesse nacional não tenho qualquer hesitação em
13 Espacial
afirmar que é do
hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este acordo seja assumido por
14 Político-Institucional
toda a comunida
nte oportunidade de vincar o sentido do interesse nacional e de demonstrar a sua
15 Político-Institucional
solidariedade com o governo
to de passar a haver "no interior do mesmo espaço nacional duas grafias, conforme a oscilação
16 Espacial
da pronúncia.
ransformação tão profunda e fundamental de âmbito nacional? Não fui eu, de certeza, nem a
17 Espacial
generalidade dos p
xcelente para ocultar as verdadeiras dificuldades nacionais. O caso Krugman A cada dia, nos
18 Político-Institucional
vários cantos da
internacional e muito menos nas ordens jurídicas nacionais… Agora ficou claro que este
19 Político-Institucional
entendimento é pacífi
e a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição
20 Político-Institucional
ortográfica vigente
ultimamente, esta arte. Os mais ousados artistas nacionais, aliás, até a fazem de venda nos
21 Cultural
olhos, como nos
Nacional/is 15
Nação 6
0 5 10 15 20
Apêndice B
Grupo Soberania
Grupo Povo
Popular/es 4
Povo/s 16
0 5 10 15 20
Apêndice B
Grupo Cultura
Cultura
Nº Clipping Recorte Modifica ou é
Especificação
modificada
ao iniciar funções no CCB - indiscutível homem de cultura que sempre admirei - teve o mérito
1 DN04 SIM Modifica
inesperado de
tracta. Um povo é uma comunidade de língua e de cultura, independente das fronteiras
2 DN07 SIM Modifica
ocasionais dos Estad
o intelectual a forma antiga. Descaracterizar a cultura através da "linguagem" escrita que
3 DN07 NÃO Nomeia
passa a ser di
lados. Os que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa
4 DN10 SIM Modificada
escrita não é a de
anifestação de um dos traços mais fortes da nossa cultura. Não seríamos portugueses se não
5 DN10 SIM Modificada
gastássemos temp
dura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura e fair play, apostada
6 DN10 SIM Modificada
na iniciativa,
esponsáveis políticos que desistiram de afirmar a cultura portuguesa fora de portas. Veja-se o
12 PB03 SIM Modificada
miserável pa
er um dos veículos mais importantes da difusão da cultura e da língua portuguesa. E porque
13 PB03 NÃO Nomeia
não há justifica
r de identidade e de valor cultural inequívoco. A cultura não pode nem deve ser colonizada. A
14 PB07 NÃO Nomeia
história ensi
gica”. A etimologia é configuradora de memória e cultura. Línguas que mantêm na escrita a
19 PB25 NÃO Nomeia
memória etimológ
e famílias de palavras as diversas línguas formam cultura, e de como os povos que as falam e as
20 PB25 NÃO Nomeia
escrevem pe
Apêndice B
ora com o fim de aprofundar o meu conhecimento da cultura portuguesa, se visito cada dia o
21 PB29 SIM Modificada
site do PÚBLICO
al, determinei que o Português faz parte da minha cultura e até da minha vida e que sim, tenho
22 PB29 SIM Modificada
alguma coisa
Cultural/is
Nº Clipping Recorte
Classificação
ientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e
23 Patrimônio
comunicações, sejam interno
aprendizagem. Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também
24 Patrimônio
consideráveis custos econ
elações diplomáticas, equitativamente económicas, culturais, norteadas pela rectidão, essas
25 Contato/Partilha
sim, são prioritá
razão da liberdade de opinião e da sua autonomia cultural. E será a nova ortografia
27 Contato/Partilha
inconstitucional por a
ho, de quase nove séculos -património histórico e cultural. Surpreendentemente, contudo,
28 Patrimônio
não é apenas a di
ou acusando os líderes de todo o mal. A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura
29 Identidade
social. A Ing
ido nas nossas cartas e recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude
30 Identidade
estatizante que nos t
uma plenamente a grave responsabilidade política, cultural e social, correspondente a uma
31 Campo
escolha dessa natu
lização absurda da Língua num contexto de voragem cultural global. Mas, se neste caso estou
33 Contato/Partilha
convicto de que
o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma questão política
34 Campo
assaz bizarra. E
irmãos para as respectivas esferas de influência cultural. estadistas e governantes de formação
35 Contato/Partilha
e ideologia
r em polémicas estéreis. nós temos uma identidade cultural com quase um milénio, e não é por
36 Identidade
mudarem algumas
assa mão-cheia de milhões na origem dessa epopeia cultural. cavaco silva tem aqui uma
37 Contato/Partilha
excelente oportunidade
Apêndice B
Culturalmente 4
Cultural/is 26
Cultura 13
0 5 10 15 20 25 30
Apêndice B
Grupo Identidade
Identitário/as 2
Identidade 7
0 1 2 3 4 5 6 7 8
Apêndice B
Grupo Matriz
Quadro Geral
Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo
10 DN14-1 (luso-)brasileiro Simetria Convergente
9 DN13-1 Academia Brasileira de Letras Simetria Convergente
21 SL02-4 AN Simetria Convergente
17 SL01-3 BR Simetria Convergente
66 PB25-1 BR Simetria Convergente
1 CM01-1 BR e qualquer outro PL Simetria Convergente
18 SL02-1 BR, AN, MO Simetria Convergente
31 EX04-3 BR, AN, MO, GU, CV, ST, TI Simetria Convergente
22 SL02-5 BR, AN, MO, ST, CV GU, TI Simetria Convergente
79 PB34-1 brasileiro Simetria Convergente
3 CM02-1B brasileiros Simetria Convergente
38 PB05-3 brasileiros Simetria Convergente
41 PB05-6 brasileiros Simetria Convergente
56 PB17-2 brasileiros Simetria Convergente
8 DN10-1 britânica, francês Simetria Convergente
45 PB06-3A discípulos de Bechara (brasileiros) Simetria Convergente
32 EX05-1A noutros países lusófonos Simetria Convergente
53 PB13-1 outros países que aprenderam a falar a partir da matriz europeia Simetria Convergente
29 EX04-1 outros povos e outras latitudes Simetria Convergente
68 PB26-2 país lusófono Simetria Convergente
70 PB26-4 países lusófonos Simetria Convergente
19 SL02-2 países onde a língua oficial é o português Simetria Convergente
35 PB03-2A AN e MO Simetria Divergente
Apêndice C
Quadro Geral
Nº Clipping Intervenientes Relação Tipo
30 EX04-2 (Cedemos?) Assimetria Desvantagem
11 DN17-1 (do outro lado do Atlântico) Assimetria Desvantagem
43 PB06-1 África Assimetria Desvantagem
14 DN17-4 AN Assimetria Desvantagem
12 DN17-2A AN e MO Assimetria Desvantagem
36 PB05-1 AN, MO Assimetria Desvantagem
47 PB06-5 angolanos, brasileiros Assimetria Desvantagem
7 DN09-1 BR Assimetria Desvantagem
12 DN17-2B BR Assimetria Desvantagem
13 DN17-3 BR Assimetria Desvantagem
15 SL01-1 BR Assimetria Desvantagem
20 SL02-3 BR Assimetria Desvantagem
23 SL03-1 BR Assimetria Desvantagem
24 EX01-1 BR Assimetria Desvantagem
32 EX05-1B BR Assimetria Desvantagem
33 EX06-1 BR Assimetria Desvantagem
34 PB03-1 BR Assimetria Desvantagem
35 PB03-2B BR Assimetria Desvantagem
40 PB05-5 BR Assimetria Desvantagem
42 PB05-7 BR Assimetria Desvantagem
52 PB11-1 BR Assimetria Desvantagem
65 PB22-2 BR Assimetria Desvantagem
67 PB26-1 BR Assimetria Desvantagem
Apêndice C
CM01-1
Do acordo ortográfico de 1990 (não tão novo como isso), pode dizer-se uma coisa que vale
para a generalidade das pessoas: é pior do que o pintam os seus pais e amigos, mas melhor do
que querem fazer crer os seus inimigos jurados. Para o bem e para o mal, o acordo não irá
alterar o modo de falar e escrever português em Portugal, no Brasil ou em qualquer outro
país lusófono. Todos sabemos que as especificidades do uso de uma língua excedem
largamente a grafia.
CM01-2
Estou certo de que o público brasileiro continuará a preferir, em geral, obras e textos escritos
em português do Brasil, bem como tradutores e intérpretes que usem esse português na
construção frásica, na escolha de vocábulos e, claro está, na pronúncia. Do lado de cá do
Atlântico acontecerá, seguramente, o inverso. Nada disso retira uma certa utilidade à
unificação da grafia, sobretudo para as editoras e em documentos oficiais. Mas essa
unificação é imperfeita, visto que o acordo admite que muitas palavras se escrevam de duas
maneiras diferentes.
CM02-1
Em 1990, ilustres detentores de uma certa Ortografia da Língua Portuguesa babaram-se de
prazer e glória ao verem no papel o ‘Novo Acordo’. Africanos e asiáticos falantes e
escrevedores da Língua, conhecidos por ‘falarem à preto’ foram obrigados a ver passar o
comboio ortográfico de portugueses e brasileiros. Depois, pediram-lhes batatinhas para
rubricarem o dito. Acordo que se preze deve levar assinaturas de todos.
DN02-1
Por mim, os brasileiros e os moçambicanos são livres de adoptar o húngaro sem que eu os
censure ou sequer note a diferença. Não sou brasileiro nem moçambicano. Sou português e,
não fosse pedir demasiado, dava-me jeito redigir na língua em que cresci. À revelia da
proclamação gratuita de Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa. Mas a
minha língua é.
Obs.: Embora a relação de comparação acima tenha sido construída de forma simétrica (divergente),
considerando-se o contexto mais geral de discussão do AO, a ideia de assimetria também se faz presente, uma
vez que o autor representa o acordo como uma forma de privação da sua língua e, portanto, como uma
desvantagem.
DN03-1
Tenho assistido - sem grande vibração, diga-se - à troca de opiniões, mais ou menos
acaloradas, mais ou menos profundas sobre a questão do Acordo Ortográfico.
Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo se argumenta, até com o
"matriotismo" obstinado do "foi assim que me ensinou a minha santa professora da escola
primária".
Obs.: Embora não haja menção expressa, Portugal é trazido à representação a partir de duas inferências: pela
expressão “tenho assistido”, que, de certa forma, remete para o caso português e para Portugal, uma vez que o
autor deste artigo ocupa o cargo de “provedor do leitor” no jornal português Diário de Notícias, e pela
expressão “submissão ao brasilês”, que invoca a parte que supostamente se submete (neste caso, Portugal).
249
Apêndice D
DN07-1
É que se querem abdicar de certa grafia para mostrar superioridade de ex-potência colonial e
facilitar a vida (a escrita) àqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor,
com a melodia da voz, façam-no para exportação, mas conservem também no meio
intelectual a forma antiga.
Obs.: Embora não haja menção expressa a Portugal, este é representado pela expressão “ex-potência
colonial”. O Brasil, por sua vez, é trazido à representação acima por meio da referência implícita aos
brasileiros, contida na expressão “aqueles que só sabem escrever de acordo com o som, ou melhor, com a
melodia da voz”.
DN09-01
De resto, há muitas outras questões que têm sido levantadas, mas que as mesmas
individualidades se dispensam de considerar, mostrando uma suficiência assaz discutível em
relação a assuntos que não estudaram e de que, pelos vistos, percebem pouco. Não as
abordaremos para já, mas elas não perdem pela demora. Diga-se apenas que nem mesmo o
Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal!
DN10-01
A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Inglaterra é uma sociedade
aristocrata, onde perdura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura
e fair play, apostada na iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França,
pelo contrário, afirmando-se democrática e abominando tirania e desigualdade, prefere
planeamento e regras impostas de cima, desconfia visceralmente de liberais e movimentos
espontâneos e confia em intelectuais e especialistas.
Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia
espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por
academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata, hoje como na
Primeira República. A simples concepção de um Estado intrometido nas nossas cartas e
recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos trouxe à
emergência financeira.
DN13-1
Em quarto lugar gostaria de dizer que depois de cem anos de divergências ortográficas (desde
o acordo de 1911 que não foi extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de
acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de
Lisboa (1931, 1943, 1945, 1971/ /1973, 1975 e 1986) foi finalmente encontrado um texto
comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um
facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, portanto, enfatizar.
DN14-1
O significado profundo desta coisa traduz provavelmente a confissão envergonhada, por parte
do neocolonialismo luso-brasileiro, de que o AO não dispõe absolutamente nada para a
grafia de vocábulos das línguas nativas que tenham sido incorporados no português. Se é este
o sentido útil desse ponto, isto significa o reconhecimento, por todos os governos, de que,
também por esta razão, o AO não pode ser aplicado enquanto não for alterado!
DN17-1
Os partidos políticos com assento parlamentar têm vindo a pactuar, sem excepção, com esse
estado de coisas. Ninguém lucra absolutamente nada com ele. Mas tudo isso redundaria
apenas num simples exercício de humor de gosto discutível, se não se traduzisse numa
violência quotidiana contra a língua. E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro
250
Apêndice D
de uma geração ninguém conseguirá pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como
ela é falada deste lado do Atlântico.
Obs.: Embora o Brasil não tenha sido expressamente referido, sua participação na construção desta relação
comparativa é inferida pela expressão “desde lado do Atlântico”, que pressupõe o “lado de lá” ou o “outro
lado” do Atlântico (nesse caso, o Brasil).
DN17-2
Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma
questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser
aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como Angola
e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que outras
paragens).
DN17-3
Alem disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e
Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países
interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, que se
pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de
enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a
desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro.
DN17-4
Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em
Angola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de
agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já
não somos capazes.
SL01-1
A este propósito, Cavaco silva foi peremptório: em seu entender, o acordo ortográfico era
essencial para que, no século XXI, o português falado em Portugal não ficasse com um
estatuto equivalente ao do Latim. Cavaco Silva fez-me notar que, nos leitorados das
universidades um pouco por todo o mundo, nas traduções em organizações internacionais e
em várias outras instâncias, era cada vez mais utilizado o português conforme escrito e falado
no Brasil.
SL01-2
Nem todos os estados-membros da CPLP ratificaram ainda o acordo? Pois não. Mas entre os
que já o fizeram encontra-se o país que se previa viesse a ter mais resistências: exactamente
o Brasil.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação na condição de um dos países que já ratificaram o acordo.
SL01-3
Fiz, tempos depois, uma visita oficial ao Brasil, e falei no congresso e na academia brasileira
de letras. E recordo-me bem de como o ambiente era reservado ou até hostil.
Não tenho qualquer hesitação em afirmar que é do mais alto interesse nacional que este
acordo seja assumido por toda a comunidade que se exprime oficialmente em português.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio da expressão “interesse nacional”, que, nesse contexto,
remete para o interesse de Portugal.
251
Apêndice D
SL02-1
- a oposição ao acordo ortográfico é um enorme disparate. O nosso grande património é
termos uma língua comum com o Brasil, com Angola, com Moçambique… Tudo o que
pudermos fazer para aproximarmos a grafia uns dos outros é decisivo para nós. Perante isso,
não tem qualquer interesse discutir chinesices, como a escrita desta ou daquela palavra.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso
grande património”, que, nesse contexto, remete para o patrimônio de Portugal.
SL02-2
É óbvio que não entrarei em discussões técnicas sobre este assunto com Vasco Graça Moura
ou qualquer outro especialista. Eles saberão certamente muito mais do que eu. Só que a
questão essencial não é essa. O essencial não é discutir o resultado – é admitir que são úteis
todos os esforços que se façam no sentido de os países onde a língua oficial é o português
aproximarem as suas grafias. E são especialmente importantes para nós, portugueses.
SL02-3
Portugal tem 10 milhões de habitantes – mas o Brasil tem 200 milhões. Só por arrogância ou
por capricho se pode defender que devemos ficar ad aeternum agarrados às nossas regras.
SL02-4
O nosso papel deverá, mesmo, ser o oposto: levar os países que ainda não adoptaram o
acordo, como Angola, a fazê-lo rapidamente.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome possessivo “nosso” na expressão “nosso
papel”, que, nesse contexto, remete para o papel de Portugal.
SL02-5
O que vale aqui é o princípio. É termos permanentemente na cabeça a ideia de que todos
ganham se em Portugal, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em S. Tomé, em Cabo
Verde, na Guiné e em Timor se escrever do mesmo modo.
SL03-1
Goste-se ou não se goste dele, há que admitir que, se o acordo existe, é precisamente porque
alguém se preocupou com estas questões e tentou delinear uma estratégia para a língua. Num
momento em que o português adoptado a nível internacional era mais o do Brasil do que
aquele que se falava a escrevia em Portugal, impunha-se a tomada de medidas. A solução
encontrada foi aproximar os dois ramos da língua.
EX01-1
Os legisladores impuseram aos falantes uma “ortografia unificada”, que, dizem, garante a
“expansão da língua” e o seu “prestígio internacional”. Mas a expansão da língua passa por
uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em
fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas
escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos
currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio
internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a “língua de Camões”,
que transformou o Brasil numa potência.
EX01-2
Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal,
diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do
252
Apêndice D
Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a
perguntar “oi?”, pois não percebeu metade.
EX01-3
E isso não tem problema algum, a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade,
pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático.
Obs.: Na relação de comparação acima, os diferentes países de língua oficial portuguesa, entre os quais
Portugal, são chamados a participar por meio das referências ao português, em sua diversidade.
EX01-4
E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por
andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram “bué”
e “guterrismo”.
EX01-5
É significativo que o próprio “acordo” reconheça o fracasso do projecto de “unificação a
língua”. Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são
obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes
iluministas, é paisagem].
Obs.: Na segunda parte da relação de comparação acima, em que África aparece como interveniente, Portugal
se faz presente por meio da referência aos “iluministas” (também interligada aos “sábios” da primeira parte da
relação), que remete para os defensores do acordo e, nesse contexto (jornais portugueses), mais especificamente
aos defensores do acordo em Portugal.
EX04-1
Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo,
pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade,
matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes.
Obs.: Na relação acima, entende-se “outros povos” como uma referência aos demais países de língua
portuguesa.
EX04-2
Cedemos? Não sei, nem me importa.
Obs.: Nesta relação de comparação, entende-se que Portugal e Brasil são trazidos à discussão por meio da
escolha de “Cedemos?” – quem cede, cede a alguém e, no presente contexto, as representações de cedências
giram em torno de ambos os países, ou seja, Portugal, ao ratificar o AO, supostamente ‘cede’ ao Brasil.
EX04-3
Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E
quem diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique,
Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Timor.
Obs.: Na relação acima, Portugal se faz presente por meio da manifestação do autor, na condição de
representante português, evidenciada pelo flexão do verbo ‘querer’ na primeira pessoa do singular.
EX05-1
Mas como é que nós sabemos que há facultatividade, que podemos em alguns casos manter o
c e o p que são mudos em Portugal e noutros países lusófonos? Sabendo qual é a "norma
culta" no Brasil. Acontece que nós não sabemos nem temos meios de saber tal coisa. E
acontece que aquilo que o AO chama "norma culta" da pronúncia não está definida em lado
nenhum.
253
Apêndice D
EX06-1
O Brasil, um enorme e apetecível mercado editorial já se marimbou para o acordo
ortográfico, assumindo sozinho o seu "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa". Lá
vamos de ter de vender um livrito ou outro numa grafia bizarra acordada. Os leitores irmãos
que se amanhem.
Obs.: Embora não haja menção direta a Portugal, o país é trazido a esta representação por via de uma
referência implícita aos portugueses, realizada por meio do verbo ir, flexionado na primeira pessoa do plural.
PB03-1
Porque é que os decisores políticos adoptaram um comportamento parolo, adequando, como
dizem, a língua portuguesa escrita à língua portuguesa falada, quando a nação mais populosa
não o fez da mesma maneira e quando a uniformização da escrita foi a razão mais invocada
para que este acordo ortográfico se efectivasse, apesar de ter sido o Brasil o primeiro a
denunciar a uniformização operada com a revisão de 1945?
Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir da expressão “decisores políticos”, que
remete para os decisores políticos portugueses e, desse modo, para Portugal.
PB03-2
Uma língua é tão mais rica quanto maior for a diversidade que apresenta. Esta decisão ilegal
dos políticos que assumem o poder desde 1990 é tanto mais incompreensível quando uma
pretensa unidade linguística dos países de língua portuguesa é comprometida com a não
adesão de Angola e Moçambique ou quando o que se transformou numa regra para Portugal
tem tantas excepções no Brasil, precisamente a nação com mais falantes de português.
PB05-1
O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom
pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça
Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da
forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de
língua oficial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado.
Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada.
PB05-2
Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela
do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”.
PB05-3
Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para
“gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros
portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos
impingir o dito “acordo”.
Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “dezenas de milhares” e “alguns”, entende-se que a representação
de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.
PB05-4
A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente
prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa,
que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente
“acordo” na ortografia portuguesa não são equivalentes à substituição do “ph” de “pharmácia”
por “f ”, pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do “c” mudo
afectará a pronúncia dos compostos do étimo “afecto” se este “acordo” for por diante.
254
Apêndice D
PB05-5
Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema
foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)?
PB05-6
O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas
de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguístas portugueses e muitos
brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografia, da
fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno
rectângulo do Sudoeste europeu.
Obs.: Apesar da diferença quantitativa entre “a grande maioria” e “muitos”, entende-se que a representação
de simetria acima faz-se pela convergência, pois é esse o movimento destacadado.
PB05-7
Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a
sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um “acordo”
artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá!
PB06-1
Diz-se “meter uma lança em África” como sinónimo de vencer uma grande dificuldade. Pois
bem: há dias, a lança virou-se, directamente de África, contra o “lançador”.
Obs.: Nesta relação de comparação, os intervenientes em destaque são os países africanos de língua portuguesa
– mais especificamente Angola, dado o contexto (referência a um dos editoriais do Jornal de Angola) –
representados por “África” – e Portugal, aqui entendido como o “lançador”.
PB06-2
E a findar: “O português falado em Angola tem características específicas e varia de
província para de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável
para os angolanos mas também para todos os falantes. Tal como o português que é falado no
Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos
devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP.
PB06-3
Ouviram, discípulos de Malaca & Bechara? Se lhes parece mal, por vir de africanos, então
ouçam lá um brasileiro: “O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito,
politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi
conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve
participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá
da tarde na Academia Brasileira de Letras)”.
Obs.: Nesta situação de comparação, Portugal e Brasil se fazem presentes, respectivamente, como “discípulos”
de Malaca, personalidade portuguesa, e “discípulos” de Bechara, personalidade brasileira – ambos a favor do
acordo. A perspectiva da assimetria é concretizada pela valorização da declaração de um brasileiro contra o
acordo, que deveria ser ouvida pelos portugueses (não por todos os portugueses, só por aqueles que são
favoráveis ao acordo, e não só pelos portugueses, também pelos brasileiros que o apóiam).
PB06-4
Mais: “A ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a ortografia
em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de grafias duplas permite inclusive
a construção de híbridos.”
255
Apêndice D
PB06-5
Foi você que pediu um acordo ortográfico? Não? Então descubra quem o encomendou. Os
angolanos e os brasileiros já sabem. Daí estas lanças, tão hábeis e certeiras.
Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado a partir de uma interpelação (“você”), dirigida
aos leitores do jornal; portanto, aos portugueses.
PB07-1
A língua é algo inegociável e patriótico, nada se consegue à força. Eu vou continuar a
escrever como antigamente. A diversidade de vocabulário escrito e falado no Brasil, Angola,
Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e noutros são uma riqueza cultural.
PB10-1
Pois em 1973 Ruy Castro chegou a Lisboa para trabalhar numa revista brasileira cá editada.
No primeiro dia de trabalho houve um problema na casa de banho e ele pediu à secretária:
“Isabel, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada”.
Isabel apenas percebeu o nome próprio e o “por favor”. Mas um colega do lado, brasileiro-
português, já acostumado aos labirintos da língua entre Portugal e Brasil, traduziu o pedido:
“Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete”. E então sim, Isabel
percebeu.
PB10-2
Como foi que surgiram entre nós os vocábulos ‘autoclismo’ e ‘retrete’, enquanto os
brasileiros escolheram os termos ‘bombeiro’ e ‘privada’? Eu sei que a troika não trata destas
coisas. Etimologicamente, aprendo no Houiass, “autós” significa em grego “por si mesmo” e
“klusmós” “acção de lavar”. Privada entrou mais tarde e sem este amparo clássico. É produto
duma outra civilização.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do pronome pessoal de primeira pessoa do plural “nós”,
que, no contexto de um jornal português dirigido a leitores portugueses, remete para o país.
PB10-3
Nunca alinhei especialmente nas brigadas pró ou contra a unificação da ortografia. Por falta
de competência não iria acrescentar nada ao debate. O que posso dizer é que nenhum acordo
de escrita entre Brasil, Portugal e a África lusófona irá erradicar estas diferenças de
vocabulário. E muitas outras existem, como toda a gente sabe.
PB11-1
Do que gosto no novo Acordo Ortográfico, tão inclinado para o Brasil, é do seu lado
português, como eu: um bocado feito em cima do joelho. Matou a paz da língua (e nisso está
de acordo com o espírito económico e político do seu tempo, aspecto importante… espera,
aspeto).
PB13-1
E a esta [irmandade lusófona] bastaria que, em Portugal e nos outros países que aprenderam
a falar a partir da matriz europeia, existisse uma Academia das Letras digna desse nome (ou
de uma equipa competente plurinacional) que elaborasse um léxico contemplando todas as
variantes do português, em plena igualdade plural. Isto a montante de todos os remendos
pontuais e casuísticos que se queira fazer ao que nasceu torto e tarde ou nunca poderá
endireitar-se.
256
Apêndice D
PB13-1
A grande família lusófona precisa, isso sim, de reconhecer-se na alegria criativa da diferença,
não de ficar frustrada com rasuras injustificadas e arbitrárias.
Obs.: Nesta comparação, todos os intervenientes são representados por uma só expressão “família lusófona”,
que reúne Portugal e todo os demais países de língua portuguesa.
PB17-1
“Segundo o AO90, os Brasileiros podem continuar a escrever (como sempre escreveram pela
reforma ortográfica brasileira de 1943), por exemplo: acepção, aspecto, conjectura,
perspectiva, decepção, detectar, excepcional, tactear, retrospectiva, percepção, intersectar,
concepção, imperceptível, respectivo, recepção, susceptível, táctico…
Em Portugal, com o mesmo AO90, seremos obrigados a escrever: aceção, aspeto, conjetura,
perspetiva, deceção, detetar, excecional, tatear, retrospetiva, perceção, intersetar, conceção,
impercetível, respetivo, receção, suscetível, tático…
Ora, a ideia não era uniformizar? Será que os Brasileiros não se vão rir quando virem, em
escritos de Portugal, aberrações como deceção, recetivo, perceção…?”
PB17-2
“No fundo eu estava perguntando, por outras palavras, o que é que lucrámos com isto,
Portugueses e Brasileiros, perguntando também, implicitamente, se não seria mais simples
deixar tudo na mesma — ao menos, já estávamos familiarizados com as igualizações e as
desigualizações, em vez de termos de aprender outras novas sem nenhuma vantagem óbvia.”
Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“igualizações”) como
às diferenças (“desigualizações”) entre o português de portugueses e brasileiros, entende-se que nessa
representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica
convergente (o mesmo se dá em PB26-3).
PB17-3
Seguindo o raciocínio de António de Macedo, peguemos num, dois, três, quatro, uma dúzia de
livros brasileiros recentes. Não é difícil ler, a par de ato ou fato (que cá se mantém facto, já
agora, numa deliciosa “ortografia comum”), palavras como aspecto, perspectiva, caracterizou,
facção, respectivamente, etc. Essas mesmas que o unificador acordo quer que, só em
Portugal, se escrevam aspeto, perspetiva, caraterizou, fação (é verdade, fação!) e
respetivamente.
PB17-4
É isto um acordo para unificar a ortografia? Onde está o empregado que serviu o bife, hã?
Não vêem que está mal passado? Não, não vêem. Vão “adotar” a coisa e não vêem. Mas
comem-no, regalados, apesar do truque baixo do bife apenas virado na cozinha, sem ver outra
vez a frigideira, para que todos se deliciem com a ilusão de uma ortografia unificada. Mas há
vozes atentas, vejam lá, que percebem a impossibilidade de tais mudanças. Leiam-nas: “Há
diferenças intransponíveis dos dois lados do Atlântico, as quais foram acentuadas pelo
tempo.” Autor? João Malaca Casteleiro, o pai do aborto, perdão, do acordo ortográfico (pág. 6
do opúsculo Atual: o que vai mudar na grafia do português, ed. Texto, 2007).
Obs.: Nesta relação, Portugal e Brasil são representados simultaneamente pela expressão “dos dois lados do
Atlântico”.
PB18-1
O defeito deve ser da gesta marítima, mas a verdade é que Portugal decididamente não se dá
bem com aventuras herbáceas. Os ingleses, sim. Jardinagem é com eles. Qualquer coisa onde
se mencione garden ou grass tem de ser bem feita. Eles sabem e dão muita importância ao
assunto.
257
Apêndice D
PB20-1
Em que pese a estas intenções mais poéticas do que realistas, o duro facto é que o AO90 vem
consagrar duas ortografias - pelo menos - bem diferenciadas: uma para Portugal e outra para
o Brasil, com singular menoscabo pelas eventuais peculiaridades ortográficas dos restantes
países da CPLP, que provavelmente terão de aderir ou a uma, ou a outra - a menos que
surjam terceiras e quartas alternativas para os casos específicos de Angola, Moçambique,
Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor...
PB20-2
Chamo a atenção para as semelhanças e diferenças: são de facto dois modelos bastante
distintos do AO90, a pensar exclusivamente no Brasil e em Portugal, como se mais nada
existisse no espaço lusófono. Dois modelos perfeitamente enquadrados: um delineado para o
Brasil, outro delineado para Portugal. E já nem discuto nem repiso a falácia da tão apregoada
"uniformização" ortográfica.
PB20-3
Quando José Eduardo Agualusa (angolano) e Mia Couto (moçambicano) declaram a sua
adesão ao AO90, será que sabem ao que é que estão a aderir? Ao modelo do AO90 para
Portugal, ou ao modelo do AO90 para o Brasil?
Obs.: Apesar das referências aos gentílicos “angolano” e “moçambicano”, estes não parecem trazer para a
representação efetivamente Angola e Moçambique, mas sim duas personalidades de renome no campo da
literatura de língua portuguesa.
PB21-1
Temos o irresistível argumento de aproximar a escrita da oralidade. Com pronúncias tão
distintas como as dos alentejanos, timorenses, brasileiros, moçambicanos, cabo-
verdianos, minhotos, guineenses, são-tomenses, açorianos, angolanos, etc., nada mais
lógico senão dizer-lhes a todos que escrevam como pronunciam…? Quando estamos ao
mesmo tempo a “unificar”, claro! Isto só como anedota. Será possível que haja quem ainda
não tenha visto a contradição gritante deste disparate?
PB22-1
Falta só que, curvados perante o número de falantes brasileiros e em nome da pretensa
“unidade da língua”, passemos a usar “presidenta ou estudanta”, entre outras similares,
obedecendo à lei n.º 12.605, de 3/4/2012, sobre o “Emprego obrigatório da flexão de género
para nomear profissão”, recente inovação da “Presidenta” do Brasil.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio do verbo “passar”, flexionado na primeira pessoa do
plural, que, nesse contexto, remete para os portugueses e, portanto, para Portugal.
PB22-2
Em 2011, o Conselho de Ministros afirmou que o AO visava “reforçar o papel da língua
portuguesa como língua de comunicação internacional”, mas, entretanto, fecham-se
leitorados, dificultam-se as aulas de Português para os filhos dos emigrantes, continuando nós
também a desconhecer o quanto tem custado e continua a custar este AO. O Brasil,
entretanto, promove congressos com o objectivo de “discutir políticas linguísticas
relacionadas à internacionalização do Português brasileiro”. E assim se fazem as cousas, diria
Gil Vicente.
Obs.: Portugal se faz presente nesta relação por meio de diferentes estratégias: via representação do governo
Português – concretizada na referência ao “Conselho de Ministros” e também nos verbos “fecham-se” e
“dificultam-se”, que, embora configurem orações com sujeito indeterminado, remetem para situações de
258
Apêndice D
responsabilização do governo – e via menção aos portugueses – concretizada na utilização do pronome pessoa
“nós”.
PB25-1
Dizem que é para facilitar… O Brasil fê-lo com as suas reformas. Portugal prepara-se para o
mesmo. Mas produziu e produzirá sociedades mais cultas e pensantes? Ou linguística e
culturalmente empinantes? E cuja escrita se reduza a um trogloditismo, à mera transcrição de
grunhidos? Repudiamo-lo!
PB26-1
A importância do Acordo, aliás, é defendida por se considerar que é a tábua de salvação da
língua. Sem o Acordo, e, portanto, sem o peso do Brasil, o português europeu passaria a ser
uma língua rapidamente extinta.
PB26-2
O acordista sabe que o Acordo Ortográfico não trouxe acordo ortográfico, mas finge, ainda,
ignorar que, para além da ortografia, não existem outras diferenças insanáveis, que só
poderiam desaparecer se, para além de um acordo ortográfico, se realizassem, ainda, um
acordo sintáctico, um acordo fonético e um acordo semântico. Nada disso impede o acordista
de afirmar, por exemplo, que “qualquer livro editado em português possa ser impresso em
qualquer país lusófono”.
Obs.: Nesta relação de comparação, Portugal é representado pelos portugueses que defendem o acordo,
referidos na expressão “acordista”, mas também na expressão “qualquer país lusófono” – embora, neste último
caso, seja representado lado a lado com demais países de língua portuguesa.
PB26-3
É, ainda, vulgar, ouvir o acordista criticar os críticos do Acordo Ortográfico por se julgarem
“donos da língua”. Tal crítica faria sentido se esses mesmos críticos defendessem a imposição
da ortografia europeia a todos os outros países lusófonos.
Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado pela expressão “ortografia europeia”.
PB26-4
A língua pertence, evidentemente, a quem a usa, o que quer dizer que o português pertence a
todos os países lusófonos e é, portanto, enriquecedor que esse facto provoque todo o género
de aproximações e admita as inevitáveis diferenças, que podem ser fonéticas, semânticas ou
ortográficas.
Obs.: Embora esta relação de comparação faça referência tanto aos pontos em comum (“aproximações”) como
às diferenças (“inevitáveis diferenças”) entre o português dos diferentes países lusófonos, entende-se que nessa
representação prevalece o esforço de aproximação, portanto, esta passagem foi classificada como simétrica
convergente (a exemplo da classificação de PB17-2).
PB27-1
Além dos avultados custos sociais e culturais, o AO90 acarreta também consideráveis custos
económicos: substituição de milhões de livros, ferramentas informáticas, documentos, etc.,
que assim ficam obsoletos, e perda de posição das exportações de edição portuguesa para o
mercado brasileiro.
Este acordo foi forjado nas costas dos portugueses, à revelia dos seus interesses.
PB29-1
Devo começar por dizer que duvidei na hora de enviar este texto. No fim de contas, sou
espanhola e alguns portugueses poderiam levar a mal uma estrangeira vir cá opinar sobre
aquilo que não lhe diz respeito.
259
Apêndice D
Obs.: A relação de comparação acima caracteriza-se como assimétrica com vantagem para Portugal por
atribuir aos portugueses o “direito” de opinar sobre o AO – em outras palavras, por privilegiar o papel dos
portugueses (nacionais) em detrimento dos espanhóis (estrangeiros) nesse contexto.
PB29-2
Quando falo com colegas, amigos ou familiares sobre o AO da Língua Portuguesa, eles ficam
admirados. Não percebem e dizem que eles nunca permitiriam uma coisa dessas aqui. Não
percebem e embora a maioria se esteja nas tintas (infelizmente, os espanhóis não ligam muito
às notícias vindas de Portugal, embora ache que a tendência começa a mudar) quase sempre
me perguntam: “E então, os portugueses não estão a fazer nada para evitar isso? Fosse aqui e
eu…” Mas não é aqui, é aí.
PB30-1
Podem até ensinar às crianças de hoje que a receção se pronuncia como recéção. Dentro de
uns 30 anos, se o AO vier a prevalecer, poderá esta pronúncia vingar, graças à frequente
exposição à palavra (embora proferida com a vogal átona fechada, quando palavra isolada?).
Já os brasileiros continuarão a olhar para Portugal como um país mais deprimente do que
aquilo que sempre foi: nos jornais, nos hotéis, nos organismos públicos, o país da
omnipresente e sempiterna receção, perdão, rêcêssão.
PB31-1
Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença
ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de
uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão
escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei,
nem discuto. Mas em Portugal não.
PB31-2
A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as
traduções brasileiras em Portugal.
PB31-3
Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que
o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir
custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior,
portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final.
PB33-1
Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e
de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma
morfologia etimológica torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”,
“recepção”, etc., coisa esquecida por cá).
Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal é representado em contraposição ao Brasil nas referências a
“lá” (Brasil) e “cá” (Portugal), mas sua presença também pode ser inferida pela construção verbal “se faça”, a
partir da presunção de que é Portugal quem faz “rasura da etimologia” ao ratificar o AO.
PB34-1
Resulta [o adiamento da entrada em vigor do AO no Brasil] de uma pressão que vem de
longe, como nos lembra o professor Ivo Manuel Barroso (que em Portugal entregou na
Procuradoria uma queixa, fundamentada, para que Portugal se desvincule do AO90) e tem por
base uma acção judicial intentada pelo professor brasileiro Ernani Pimentel.
260
Apêndice D
PB34-2
Porquê? Porque o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), editado
unilateralmente no Brasil em 2009 (o que é já de si um absurdo, porque o AO90 prometeu,
sem nunca cumprir, um “vocabulário unificado” comum a todos os países de língua oficial
portuguesa), contradiz o acordo de 90 em vários pontos.
PB34-3
Felizes, com a perspectiva? Ainda não viram nada. Se o AO90 já é uma fraude, fingindo
unidade onde foi criada confusão e divisão (palavras que todos escreviam da mesma maneira,
tantas, passam a escrever-se, por imposição do AO, de modo diferente em Portugal,
mantendo no Brasil grafia certa: recepção, percepção, confecção, ruptura, cacto, etc.), as
propostas “simplificadoras” de Pimentel vão apimentar ainda mais o debate em torno da já tão
massacrada grafia da língua portuguesa.
PB34-4
Mas o que move Pimentel? O facto (que por cá se mantém com c, permanecendo “fato” no
Brasil) de “70 por cento dos candidatos chumbarem por causa da língua portuguesa” nos
exames brasileiros de acesso ao Superior.
PB34-5
Pobre Brasil, pobre Portugal, pobre língua. Deixa de ser portuguesa, rica em variantes, para
ser língua de Pandora, aberta não ao mundo mas todos os disparates caseiros. Quem a salva de
tais tormentos? Quem “desacorda” de vez o seu futuro?
PB35-1
Quem tem dúvidas pode dissipá-las ouvindo Fernando Cristóvão numa entrevista concedida
em 2008, que esclarece o que pensam os "acordistas" sobre o processo legislativo num regime
democrático - em que, supostamente, as leis não são dogmas nem mandamentos, e, logo, são
alteráveis e revogáveis - e a independência, a soberania - cultural e não só - dos países
africanos de língua oficial portuguesa: "(...) Porque é que Angola também não há de ter uma
ortografia diferente? E porque é que Moçambique qualquer dia não...? E a Guiné, lá por ser
pequenina, não há de ter uma ortografia? Onde é que nós vamos parar? (...) O acordo tem de
se fazer porque nós temos duas ortografias, não podemos continuar assim, e a continuar
assim qualquer dia temos cinco ou seis. Qual é a língua que resiste a tanta ortografia? [O
Francês, que tem 15, e o Inglês, que tem 18!] (...) Confesso que, perante a urgência de haver
uma ortografia unificada, eu não entendo como é que há tanta teimosia em querer emendar
uma coisa que ainda por cima é uma lei. (...)"
Obs.: Na relação de comparação acima, Portugal se faz presente na expressão “duas ortografias”, que remete
para a ortografia de Portugal e para a ortografia do Brasil, simultaneamente.
261
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