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Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 1

2 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 3

Cátia Mourão

EROS E PSIQUE
um vitral gnóstico de Almada Negreiros
4 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 5

O pior vício é a definição, a delimitação dos


personagens. […] Simplesmente é uma utopia.
Não se pode definir, delimitar alguém. […] Seria
negar-lhe a unidade espiritual.
Título: José Manuel, Alquimia do Sonho (p. 25)
Eros e Psique – um vitral gnóstico de Almada
Negreiros

Autor:
Cátia Mourão
A minha linguagem é o símbolo. E todo o símbolo é
necessariamente breve, sintético, vertiginoso, sibilino.
Design:
Aliás, simbólica ou narrativa, a verdade é sempre
Fluid Creative - Design Studio
fictícia, misteriosa. Sobretudo aqui.
Coordenação Editorial:
José Manuel, Alquimia do Sonho (p. 37)
Paula Crespo

Produção:
Assembleia da República – Divisão de Edições

ISBN Para além da aparência fácil do que te cerca


978-972-556-515-5 uma outra realidade mais
subtil te espera.
Depósito Legal
… José Manuel, Primeiro Livro de Odes (p. 17)
6 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 7

Cátia Mourão

Índice
EROS E PSIQUE
Nota de abertura 09 um vitral gnóstico de Almada Negreiros
Prefácio 11

Descrição do vitral 13

Análise iconográfica 14

Uma iconografia em contexto: o vitral e a casa para onde foi concebido 35

Conclusão 44

Agradecimentos 45

Bibliografia 46
8 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 9

Nota de abertura
O presente ensaio constitui um novo contributo para A moradia em causa foi traçada nos anos 50 do
a análise iconográfica de um vitral executado por século XX por António Varela – colaborador de Jorge
Almada Negreiros. Partindo uma vez mais da dúbia Segurado –, em estrita observância das premissas dos
representação das figuras que o compõem, oferece proprietários, D.ª Maria da Piedade Figueiredo Mota
uma leitura alternativa às anteriores – que no entanto Gomes e seu filho Dr. José Manuel Mota Gomes Fróis
permite chegar exactamente à mesma conclusão – e Ferrão³, amigos do arquitecto e dos artistas plásticos
explora com maior detalhe os aspectos subjacentes à que colaboraram no programa decorativo deste
produção da obra, evidenciando a forte intervenção coerente projecto.
do encomendante e a relação simbólica entre a peça Revelando um traçado de influência corbusiana ⁴,
e a casa que originalmente integrou.

Para além das interpretações complementares,


apresenta também um desenho inédito do artista, que
embora seja anterior à obra em foco é subordinado ¹ Os painéis de azulejos, da autoria de Almada Negreiros e executados na
Fábrica Viúva Lamego em 1953, foram sumariamente referidos por Suraya
ao mesmo tema, e mais dois estudos igualmente Burlamaqui em 1996 (BURLAMAQUI, 1996, p. 12, 36 e 37).
inéditos para o vitral, que documentam a evolução ² A propósito da estreita relação entre as várias artes decorativas e a
do desenho, das formas e dos sentidos. Inclui ainda arquitectura, fomentada pelo Estado Novo no âmbito da “campanha do
bom gosto”, salientamos as reflexões do Arq. Porfírio Pardal Monteiro,
algumas fotografias antigas e actuais do interior e do para quem esta associação constituía um renascimento (ou revivalismo)
exterior da moradia, que evidenciam um conjunto das práticas do passado, já que «nos bons períodos de cada estilo o
ornamento integr[ou]-se na construção e [fez] corpo com ela. O seu papel
artístico extraordinariamente rico, onde se revela [era] o de valorizar as massas ou os elementos dum edifício, e quando
a admirável unidade simbiótica entre diferentes o ornamento [era] inteligentemente compreendido, constitu[ia] riqueza
expressões plásticas (vitral, azulejo¹ e escultura duma época.» Neste sentido, entendia que «o progresso da Arquitectura
[havia de] conduzir ao de todas as outras artes subsidiárias que na
adossada, de vulto pleno e placas incisas) reunidas Arquitectura t[inham] intervenção, mas adaptadas ao seu respectivo
e articuladas – desde os projectos iniciais – numa lugar e à função que lhes compet[ia].» (MONTEIRO, «Espírito clássico», in
Sudoeste, n.º 3, 1935, p. 170 e 171, apud VIEIRA, 2004, p. 149 e 150).
arquitectura modernista única, de fruição duplamente ³ Cfr. ARRUDA, 1995, p. 420, onde, por lapso, o arquitecto é mencionado
privada e pública, funcional e estética, racional e como proprietário da residência que apenas projectou.
emotiva, que permite uma interessante abordagem ⁴ Referência ao arquitecto suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris (1887-
1965), que adoptou o pseudónimo «Le Corbusier». As suas obras
do ponto de vista da psicologia da habitação e da destacam-se por intensos diálogos de formas rectas e curvas, volumes
afirmação da residência enquanto obra de expressão vazios e cheios, efeitos de luz e sombra, e pelo aproveitamento da
cobertura de alguns edifícios para criação de terraços-jardim. A sua
cultural e social, ultrapassando claramente o próprio influência em Portugal surge, sobretudo, na sequência do 1º Congresso
conceito coevo de obra arquitectónica utilitária Nacional de Arquitectura, decorrido entre Maio e Junho de 1948. A este
ornamentada². propósito, vide VIEIRA DE ALMEIDA e FERNANDES, 1986, p. 144.
10 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 11

Prefácio
o edifício ergue-se na Rua de Alcolena, situada no Vide também a Petição on line intitulada «É preciso salvar a Casa da Rua O vitral Eros e Psique passou a integrar as colecções Esta política aquisitiva teve início em 1998, por
de Alcolena, da autoria do arquitecto António Varela, com murais de
Bairro do Restelo (Encosta da Ajuda) – «desenhado azulejo da autoria do pintor Almada Negreiros», promovida pela Ordem da Assembleia da República em 2001, ainda proposta do Museu, com a aquisição da tapeçaria
por Faria da Costa entre 1938 e 1940, no espírito dos Arquitectos (05-03-2009). identificado como uma representação da Queda de Labirinto de Vieira da Silva, a que se seguiram em breve
da cidade-jardim howardiana»⁵. Devido à sua ⁷ A remoção da totalidade dos azulejos havia sido prevista pelo antigo
proprietário Carlos Lopes, mas acabou por ser interrompida em Fevereiro
Ícaro. Identificação com a qual fora levado à praça as tapeçarias Colheita e Anjinhos de Menez. Outras
localização, o imóvel encontra-se abrangido pela Zona de 2009 por embargo camarário, pois para além de estar inserido na em leilão em Dezembro do ano anterior, juntamente tapeçarias e inúmeras pinturas foram sendo adquiridas
Especial de Protecção de vários edifícios classificados, zona de protecção de dois monumentos classificados, o imóvel consta do com uma tapeçaria da Manufactura de Portalegre, da nos anos subsequentes, de entre as quais destacamos
Inventário Municipal de Património desde 1992, situações que inviabilizam
sobressaindo de entre eles a Capela de São Jerónimo, qualquer intervenção de vulto, como a demolição ou a alteração formal autoria de Sara Afonso¹⁰, tal como o vitral, exemplar obras de Júlio, Cruzeiro Seixas, Graça Morais, Júlio
que se avizinha no ângulo Nascente. e decorativa das fachadas. Todavia, para além daquela operação de único concebido para a mesma residência privada por Resende, Guilherme Parente, José de Guimarães,
Há muito desabitada e actualmente em processo de destacamento, em Janeiro de 2009 os posteriores proprietários do imóvel,
encomenda directa dos seus proprietários. Carlos Botelho, Rogério Ribeiro, Malangantana; entre
filhos do empreiteiro Vítor Santos, entregaram na Câmara Municipal de
classificação como imóvel de interesse municipal⁶, a Lisboa um pedido de demolição integral da moradia e de reconstrução ex os mais jovens, Bruno Pacheco e Rui Vasconcelos são
vivenda sofreu vários desmantelamentos na sequência nouo, de acordo com um projecto do Arq. João Massapina. Vide Público, A Assembleia da República perseguia então o propósito outros autores actualmente representados no acervo
das arrematações por diversos proprietários e, nesta 6-03-2009, p. 22.
⁸ Sobre a actividade desta fábrica, vide ABREU, REDOL e CAETANO, 2000 de adquirir obras de autores contemporâneos, de Assembleia da República.
dispersão do espólio artístico, perdeu numerosas (sobretudo os artigos de Rui Afonso SANTOS - «Apontamentos para a diversificando e enriquecendo um património que
obras, tais como uma tapeçaria de parede concebida História do Vitral no Século XX, p. 68-85 – e Dulce Freitas FERRAZ - «A
raras aquisições tivera desde os anos 40 do séc. XX e Após ter tido conhecimento de que não fora
Oficina de Ricardo Leone», p. 86-93) e VIEIRA, 2004 (sobretudo p. 61-
por Sara Afonso, uma pintura a óleo sobre tela de 69, 142-177 e 211). Nenhuma destas obras refere, no entanto, o vitral que permanecia imbuído em grande parte pela estética concretizada a venda, em leilão, do vitral de Almada
Almada Negreiros e outra de Eduardo Viana, alguns em estudo. Acerca da reabilitação do vitral no período do Estado Novo oficial do Estado Novo, dominante nas áreas nobres e Negreiros e da tapeçaria de Sara Afonso, propus
painéis de azulejos⁷ e o vitral, também de Almada e das suas utilizações, «em 1927, a revista Arquitectura [sublinhava] o
públicas do Palácio de São Bento, com excepção da ala superiormente a respectiva aquisição às herdeiras
“magnifico partido” e o efeito “surpreendente” que se poderia tirar da
Negreiros – possivelmente executado na laboriosa aplicação do vitral a fachadas exteriores e, sobretudo, à decoração de da antiga Câmara dos Pares. As obras adquiridas ao dos encomendantes, de que sabia apenas terem sido
Oficina de Vitrais e Mosaicos de Ricardo Leone, salas, vestíbulos e escadas principais, ou ainda dos jardins de Inverno em
longo de curto período de maior desafogo orçamental, amigos do casal de artistas. Considerei tratar-se de
sediada em Lisboa e responsável pela produção de “moradias ou palácios”.» VIEIRA, 2004, p. 74.
⁹ Dos vários cartões para vitrais produzidos por Almada Negreiros para no final dos anos 90, destinavam-se a decorar os uma oportunidade única para adquirir uma obra de
numerosos exemplares desta arte renascida durante esta fábrica destacamos os destinados aos conjuntos da Igreja de Nossa amplos corredores e gabinetes do andar nobre um dos mais importantes pintores portugueses do
o Estado Novo⁸, tendo por diversas vezes contado Senhora de Fátima (1935) e da Fábrica de Fogões Portugal (1945). «Para
a reabilitação (…) [do vitral] desejou Almada Negreiros contribuir não após se ter verificado a impossibilidade de recurso séc. XX, cuja cotação no mercado limita fortemente
com a colaboração de Almada, enquanto desenhador só na qualidade [de] pintor, mas também de conferencista, como bem às reservas dos museus nacionais em quantidade a possibilidade de integração em colecções de
de cartões⁹. mostraram as considerações que teceu sobre a sua finalidade e essência
no discurso Elogio da ingenuidade ou as desavenças da esperteza
necessária. Não constituem uma colecção no sentido instituições públicas. A proposta contemplava
saloia, proferido na Exposição de Artistas Modernos Independentes de estrito do termo, já que não foram definidos critérios igualmente a aquisição da tapeçaria de Sara Afonso,
1936. Ai declarava que “esta arte conhecida por vitral, e que é uma arte orientadores para uma programação aquisitiva e realizada na Manufactura de Portalegre, cujo tema
⁵ «Referência às ideias de Ebenezer Howard para o movimento das independente da pintura como de qualquer outra expressão de arte,
tem por função aproveitar a diferença de luz da atmosfera livre para um foram sendo integradas aleatoriamente, segundo os central é uma sereia presa em rede de pesca.
Cidades-Jardins na Inglaterra, uma tentativa de criar uma entidade que
incluísse cidade e campo.» TOUSSAINT, 2009. recinto fechado na intenção de ajudar a concentrar-se cada um colectiva locais a que se destinavam ou, por vezes, as escolhas
e individualmente.”» VIEIRA, 2004, p. 82 e 83 (com citação de ALMADA
⁶ Vide as Propostas P096.09 (17-02-2009) e P097.09 (24-02-2009)
NEGREIROS, «Elogio da ingenuidade ou as desavenças da esperteza dos órgãos de administração.
assinadas pelas Vereadoras do Movimento Cidadãos Por Lisboa, Arq.ª
Helena Roseta e Dr.ª Manuela Júdice, apresentadas na Câmara Municipal saloia», in Revista de Portugal, n.º 6, 1939, p. 164-174).
de Lisboa, com vista à classificação do imóvel como Património Municipal
e posterior transformação em Casa-Museu do Modernismo lisboeta. ¹⁰ AA.VV., 2000, p. 40 e 139 – respectivamente n.ºs 547 e 681.
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Descrição do vitral
O vitral ingressou na Assembleia da República em
Fevereiro de 2001, já que foi a única proposta que
teve acolhimento, tendo recebido o nº. MAR 271
aquando da reformulação do inventário do Museu.
Em 2003 foi colocado na escadaria da residência
oficial do Presidente da Assembleia da República
sobre uma caixa de luz por se tratar de uma parede
cega. A identificação iconográfica permanecia, no
entanto, dúbia: o tema Eros e Psique, indicado pela O vitral é composto por 5 partes de larguras desiguais, Fig. 1
unidas por caixilharia de chumbo, que congregam 153 Eros e Psique
proprietária por ocasião da venda, não correspondia José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)
à interpretação feita aquando da apresentação em peças de vidro policromo, formando uma composição Não datado (1954)
leilão, a qual considerava tratar-se da Queda de Ícaro. estruturada na horizontal, com duas figuras nuas e 57,5 x 325 cm
Esta duplicidade exigia um estudo pormenorizado para deitadas, estando uma a dormir e a outra acordada Vitral
olhando a primeira. A que dorme tem a pele rosada, Assembleia da República
cabal identificação, do qual foi incumbida a Dr.ª Cátia MAR 271
Mourão, e que veio revelar uma encomenda orientada está voltada para cima, tem o corpo posicionado Fotografia de Carlos Pombo
por um muito específico programa com profundas em diagonal descendente, a cabeça inclinada para
raízes herméticas, inserido numa vasta programação baixo e a três quartos, os cabelos longos, soltos, de
contemplando a totalidade da residência para onde cor arruivada, os olhos fechados, o braço direito Tem a cabeça erguida e de perfil, os cabelos loiros
foi executado. É este estudo, surgido no âmbito da estendido para o mesmo lado, o esquerdo curvado e compridos, cingidos atrás, as pernas estendidas e
investigação inerente ao inventário museológico (que e acompanhando a curvatura do tronco e a perna o pé direito apoiado no tornozelo da perna oposta.
permanece frequentemente ignorada) e desenvolvido direita estendida, cruzando a esquerda ao nível do Não tem asas e segura na mão direita uma pequena
posteriormente, que se traz a público e dá a conhecer tornozelo. Tem grandes asas de pássaro, de cor rosa lucerna de cor verde, cuja chama ilumina o rosto da
uma das obras mais relevantes, e mais enigmáticas forte, nas costas, estando a esquerda aberta e a direita personagem adormecida.
na sua concepção, do espólio da Assembleia da fechada, sobre a qual apoia a cabeça; a figura que a O fundo combina tons de violeta e lilás.
República. olha tem a pele amarela, está voltada para baixo, de O conjunto não está assinado nem datado.
bruços, apoiando-se no braço esquerdo e também no
Teresa Parra da Silva cotovelo direito (sobre a extremidade da asa da figura
Conservadora do Museu da Assembleia da República anterior).
14 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 15

Análise iconográfica
Alguns autores interpretaram a temática do vitral
como o episódio da Queda de Ícaro, considerando
que a personagem à esquerda seria Ícaro¹¹, já caído –
representado como um jovem andrógino, com as asas
que o permitiram sair do labirinto do Minotauro –, e
que a figura à direita seria Dédalo, certificando-se da
morte do filho.¹² Contudo, se confrontarmos a obra
com os seus estudos preparatórios, apercebemo-nos
de que as personagens representadas são, afinal, Eros
Fig. 3
e Psique. Eros e Psique¹⁴ (primeiro estudo?)
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)
Não datado (1951-1953)
16 x 56 cm
Aguarela e lápis de carvão sobre papel
Colecção particular de João Esteves de Oliveira
Fotografia de Vítor Branco

Fig. 2
Eros e Psique¹³ (esboço preparatório?)
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)
Não datado (1951-1953)
Fig. 4
44,5 x 67 cm
Eros e Psique¹⁵ (segundo esboço?)
Lápis de carvão sobre papel milimétrico
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)
Colecção particular dos Herdeiros de Almada Negreiros
¹¹ A obra foi a leilão no ano 2000, com o n.º 547 e o título A queda de Ícaro Não datado (1953-1954)
Fotografia de Maria Lino
– Cfr. AA.VV., 2000, p.10. 76,5 x 22 cm
¹² Sobre a lenda de Ícaro, vide GRIMAL, 1992, p. 241. Lápis de carvão sobre papel ¹⁴ Reproduzido em TEIXEIRA, 1993, p. 227, AA.VV.,2006, p. 194 e AA.VV.
¹³ Inédito. Agradecemos a referência e a imagem à Dr.ª Sara Afonso Colecção particular (Lisboa) 2008, p. 70.
Ferreira. ¹⁵ Inédito.
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra
16 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 17

Na época pré-socrática Eros era filho do Caos, vazio Quando o descobria, teve, contudo, o infortúnio
original do Universo, e detinha a força ordenadora de deixar cair sobre ele uma gota de azeite quente,
e unificadora dos elementos, pedra de toque para a acordando-o. Sentindo-se traído, o deus fugiu. Psique,
criação do Cosmos. Hesíodo¹⁸ descreveu-o como um assim relacionada com a Alma inquieta e ávida de
jovem dotado de beleza inigualável, considerando-o descoberta, foi imediatamente abandonada pelo
deus do Amor e do desejo. Em teogonias posteriores, Amor e posteriormente punida pela Beleza. Revoltada
já na era pós-socrática, a filiação de Eros foi controversa com o desaparecimento do filho, Vénus forçou a
e variável entre Zeus, Ares ou Hermes e Afrodite, jovem a vários castigos e, num deles, Psique teve de
Fig. 5 ou ainda Poro (Expediente) e Pénia (Pobreza). Esta descer ao infernal mundo de Hades para de lá trazer
Eros e Psique¹⁶ (penúltimo estudo?)
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970) última, defendida por Platão¹⁹, explicava a natureza uma boceta fechada com um pouco da formosura de
Datado: 10-2-1954 inconstante e insatisfeita do Amor, em permanente Prosérpina. Embora esta se destinasse à deusa mãe,
Inscrição: «almada/Ao José Manuel/no dia do seu aniversário/10-II-54» busca de realização, e retirava a Eros o estatuto de Psique não resistiu à tentação de abrir o recipiente e
76,5 x 22 cm deus maior, concebendo-o como génio mediador aspergir-se, mas logo descobriu o logro quando inalou
Aguarela sobre papel
Colecção particular (Lisboa) entre deuses e Homens. um aroma soporífero que a induziu em sono profundo.
Fotografia da galeria Antiks Design Arrependido pela fuga e tomado pela saudade, Cupido
No século II da era cristã, o escritor latino Lúcio conseguiu acordá-la usando o poder do Amor²². Com a
Apuleio²⁰ identificou o Eros grego com o Cupido permissão de Zeus e a reconciliação de Vénus, Psique
romano, deus do Amor e filho de Vénus, deusa foi tornada imortal e uniu-se a Cupido.
romana da Beleza. Na sua obra O Asno de Ouro
(também designada por Metamorfoses), relacionou-o
com Psique, uma virgem mortal mas tão bela, que os
homens passaram a adorá-la em detrimento da própria
deusa da Beleza.²¹ Esta, por vingança, pediu ao filho
que fizesse a donzela apaixonar-se pelo homem mais
Fig. 6
feio, pobre e indigno. Todavia, Cupido enamorou-se
Eros e Psique¹⁷ (último estudo – cartão para o vitral)
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970) da jovem e, sob a forma de voz incorpórea, ocultando ¹⁸ Hesíodo, Teogonia, apud GRIMAL, 1992, p. 148.
¹⁹ Platão, Simpósio e O Banquete, apud GRIMAL, 1992, p. 148.
Não datado (1954) a identidade e o aspecto, tomou-a em segredo e fê-la ²⁰ Lucius Apuleius nasceu em Madaura, actual Argélia, c.125 d.C., e faleceu
65,5 x 30,20 cm jurar que jamais tentaria descobrir o aspecto do ente em Cartago, c.180 d.C..
Óleo sobre papel ²¹ APULEIO, 1990, pp. 81-119.
amado. Mas, curiosa por natureza e ainda incitada
Colecção particular (Lisboa) ²² Tradições diversas defendem que Eros terá acordado Psique com um
Fotografia de Vítor Branco pelas irmãs, Psique não resistiu à tentação e, numa beijo ou com uma flecha, embora a primeira versão tenha colhido mais
noite, aproximou uma lamparina do rosto do marido frutos no meio poético e artístico – cfr. GRIMAL, 1992, p. 400.

que dormia a seu lado.


18 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 19

Em termos lineares, o mito de Apuleio constitui uma uma visão laica, ressaltando o teor romântico do conto Consoante as leituras, os dois esposos míticos de de arco e flechas, ou até de uma tocha³², ou ainda
estória de amor entre uma humana e um deus, da mítico²⁵; outras revelam uma perspectiva historicista Apuleio têm sido eternizados nas diversas expressões de uma lira³³, e Psique com asas de borboleta ou
qual se retira uma lição moralizante: a desobediência e portanto pagã, vendo os castigos de Psique como artísticas, ora apresentando-se ambos acordados e até de pássaro³⁴, segurando uma lucerna –, por
da primeira – motivada pela curiosidade – em relação etapas de uma iniciação nos Mistérios gnósticos em ritual de iniciação²⁷ ou em idílio²⁸, ora estando um vezes verificam-se supressões ou acrescentos de
às condições dogmáticas estabelecidas pelo segundo, antigos²⁶ e o seu sono final como uma condição de deles a dormir e o outro acordado (sendo que quando atributos.³⁵
é punida e, apesar de falhar o cumprimento do castigo possibilidade de ascender à Verdade e à imortalidade Eros dorme é perscrutado por Psique²⁹ e quando
– por não resistir à tentação da vaidade –, acaba por divina, ao invés de uma verdadeira punição; outras Psique dorme é observada ou acordada por Eros³⁰). No esboço preparatório para o vitral (Fig. 2), Almada
receber o perdão – cuja concessão demonstra o ainda remetem para uma dimensão hermética, Embora a maioria das representações obedeça ao Negreiros ensaiou uma composição muito abreviada,
carácter incondicional do Amor. Na estória, o sono perfilhando a leitura historicista e acrescentando-lhe uma padrão iconográfico clássico³¹ – que estabelece a organizada em 8 partes, com as personagens
funciona como um estado de vulnerabilidade que interpretação do sono de Psique como um símbolo da figura de Eros/Cupido com asas de pássaro, munido desprovidas de asas, estando a figura masculina
se afigura na primeira parte enquanto oportunidade condição de adormecimento da mente humana, em adormecida e localizada à esquerda, com o corpo
de satisfação da curiosidade e na segunda parte geral, que subentende a necessidade do despertar. posicionado no sentido da direita, apresentando uma
enquanto castigo para esta. torção acentuada ao nível da cintura (sendo que os
membros inferiores estão voltados de costas, os
O mito tem sido objecto de diversas interpretações superiores, o tronco e a cabeça virados de frente). A
alegóricas e filosóficas desde Platão²³, que figura feminina está acordada e localizada à direita,
contemplam a possibilidade de se tratar de posicionada no sentido oposto, de joelhos e inclinada
uma alegoria ao Conhecimento, sendo Psique a ²⁷ A representação de Eros e Psique no baixo-relevo encontrado no sobre a figura anterior, apoiando-se no braço direito,
Mithræum de Santa Maria di Capua Vetere, datado de finais do séc. II
personificação da mente humana, caracterizada pela e inícios do séc. III d.C., tem sido interpretada como uma cena de ritual que está flectido, e avançando o esquerdo na direcção
ávida curiosidade em relação ao desconhecido, e Eros ²⁵ GÉLY, 2006, p. 269 e ss, especificamente em relação à interpretação de iniciático, já que Eros carrega uma tocha na sua mão esquerda. daquela personagem para alumiá-la com uma
²⁸ A título de exemplo, no mosaico romano peninsular destacamos dois
a personificação do Amor e do Mistério. Algumas Charles Perrault, que parece negar a dimensão alegórica, influenciando as
exemplos cordobenses que representam o abraço entre Eros e Psique,
lamparina em meia-lua.
leituras posteriores de Boiardo, Basile, La Fontaine e Baronesa d’Aulnoy.
leituras demonstram uma exegese cristã, fazendo ²⁶ Na Antiguidade, estes Mistérios poderiam ser os de Ísis, de Osíris, de ainda crianças, onde Eros tem asas de ave e Psique tem asas de borboleta
referência à “queda” da Alma humana e ao perdão Orfeu ou de Elêusis. Os dois primeiros eram oriundos do Egipto e as suas num e de pássaro noutro. São ambos de finais do séc. III e inícios do séc.
práticas rituais e simbólicas foram aculturadas e adaptadas na Grécia e IV d.C., e estão, respectivamente, no Alcázar de los Reyes Cristianos e na
divino²⁴; outras conferem mais tarde em Roma, dando origem aos dois segundos. Destes, os de Caja de Ahorros de Córdoba. De cronologia muito mais recente, já de
³² Vide o exemplo já referido do relevo de Santa Maria di Capua Vetere, e
também a ekphrasis de Mosco de Siracusa (séc. II a.C.) sobre Eros: «Eros,
Elêusis foram os mais difundidos. Eram celebrados em Elêusis, cidade 1891, ressaltamos a pintura a óleo sobre tela, hoje no Museu do Chiado,
de cabelos encaracolados, pousando a tocha e o arco, tomou o bastão de
agrícola próxima de Atenas, e compreendiam ritos iniciáticos integrados em Lisboa, executada pelo português José Veloso Salgado, onde as duas
boieiro e pôs o alforge ao ombro.» - MOSCO, Antologia de Planudes, 200,
no culto da fertilidade da terra, associado às deusas Deméter (das personagens se apresentam já adultas, estando Eros a tanger uma lira.
in WALTZ, 1931-1974.
²³ Sobretudo na sua obra O Banquete. Para uma detalhada fortuna crítica colheitas) e sua filha Perséfone (sequestrada por Hades, deus do Mundo ²⁹ Caso do desenho de Francesco Bartolozzi, segunda metade do séc. XVIII
³³ Caso da pintura a óleo sobre tela, de José Veloso Salgado, 1891 (Museu
filosófica do mito, vide GÉLY, 2006, p. 151 e ss. A título de exemplo Inferior). O rapto de Perséfone induzira Deméter em profunda tristeza, (Tate Gallery).
do Chiado).
referimos BERGER, 1767, ROSCHER, 1886, JONG, 1900, REITZENSTEIN, descurando as lides da agricultura e dando origem ao Inverno, tempo de ³⁰ Caso da escultura de António Canova, 1793 (Museu do Louvre).
³⁴ Vide os casos romanos anteriormente referidos na nota 28.
1912, CUMONT, 1966, STOCKER, 1944, SOUSA, 2004, BARBAFIERI e carestia. Mas Hades permitiu que a filha visitasse a mãe durante alguns ³¹ Para uma detalhada fortuna crítica artística do mito, vide ROSCHER,
³⁵ Sobre as representações plásticas do mito de Apuleio até finais do
RAUSEO, 2004. meses e nesse período a deusa esmerava os seus trabalhos, permitindo a 1886, CUMONT, 1966, e sobretudo GÉLY, 2006.
século XIX, vide ROSCHER, 1886.
²⁴ GÉLY, 2006, p. 164, especificamente em relação à interpretação de abundância no Verão.
Fulgêncio.
20 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 21

No estudo seguinte (Fig. 3) o artista reorganizou a progressivamente mais esguias e estilizadas, sem As claras alterações fisionómicas poderiam indicar acabamos, de um modo aparentemente paradoxal
composição em 4 partes e manteve a localização das deixar, no entanto, de manter a figura adormecida uma troca de posições das personagens, o que por mas efectivamente lógico, por reforçar as conclusões
figuras mas reposicionou-as, apresentando a figura com as feições e a morfologia masculinas – apesar sua vez indicaria uma alteração do episódio do mito, finais anteriormente apresentadas, fazendo uso
adormecida no sentido inverso e com o corpo em de apresentar já o cabelo um pouco mais crescido –, que assim passaria a ser o momento em que Eros justamente dos mesmos argumentos. Com efeito,
curvatura descendente, exibindo asas de pássaro nas e a figura acordada com o cabelo comprido e o seio encontrou Psique adormecida pelo aroma soporífero também no âmbito de um entendimento simbólico,
espaldas (atestando a sua condição divina), apoiando proeminente. da boceta. Todavia, esta suposta mudança seria hermético e gnóstico do tema e da relação entre os
um tornozelo no outro, e a figura acordada de costas, acompanhada de uma insólita permuta de atributos amantes míticos, a androginia das duas figuras permite
sem asas (atestando a sua condição ainda humana, No último estudo (Fig. 6) e na obra definitiva (Fig. 1) entre as duas figuras, já que Psique ostentaria as asas que as personagens se confundam e expressem o
ou seja anterior à divinização e à parcial metamorfose o pintor reorganizou finalmente a composição em 5 de pássaro iconograficamente atribuídas a Eros e que conceito de identificação, de equivalência e de união
consequente), inclinada sobre a anterior e apoiada partes, mas manteve a estrutura essencial, embora este estaria acordado, apresentando-se despojado dos opostos. A decisão última de representar as duas
no braço esquerdo, aproximando do rosto da outra tenha deslocado o eixo de colocação das figuras no de asas e segurando a lucerna de Psique, adoptando personagens de forma dúbia propicia, assim, duas
uma pequena lamparina em meia-lua e cruzando as espaço, chegando-as mais à esquerda no estudo e uma atitude também invulgar de contemplação da leituras que embora pareçam diferentes acabam por
pernas. Mais pormenorizado, este desenho define as mais à direita no vitral, procurando uma métrica e um jovem, ao invés de beijá-la ou alvejá-la com uma ser também elas equivalentes e, uma vez mais, o
expressões das personagens que, no caso da segunda, equilíbrio específicos, também por meio de divisórias seta para acordá-la. Embora insólita, a suposta poema hermético³⁷ de Fernando Pessoa³⁸, amigo de
transmitem a sensação de surpresa momentânea verticais que se tornaram assimétricas para um melhor permuta de atributos seria possível no contexto de Almada e seu companheiro da geração modernista³⁹,
através da boca entreaberta e da pose instável, e no enquadramento da parte principal da figuração que um entendimento simbólico, hermético e gnóstico permite validar as duas hipóteses de uma realidade
caso da primeira traduzem o estado que antecede a está sensivelmente deslocada do centro. Porém, do tema e da relação entre os amantes míticos, que única:
interrupção do sono através do abandono do corpo, alterou a cor do fundo, que passou de amarela e contempla a união dos opostos através da equivalência
que indica ainda a fase onírica, e da crispação da mão branca para violeta, modificou o formato da lamparina, e da identificação entre eles.
direita, que prenuncia já o despertar. que passou a assemelhar-se a uma lucerna romana,
Nos estudos posteriores (Figs. 4 e 5), Almada mudou a cor do corpo da figura adormecida, que No entanto, consideramos agora, após a limpeza e
reorganizou a composição em 6 partes, conservou passou de amarela a rosa, e, sobretudo, modificou o o restauro do vitral, que as mudanças fisionómicas
a posição e as características da figura adormecida, aspecto fisionómico das personagens, representando das figuras não correspondem necessariamente a
mas alterou a pose e a expressão corporal e facial agora a que dorme com uma aparência feminina – de uma alteração de género, de identidade, de posições, ³⁶ O desenho apresenta duas meias-luas geminadas, mas ligeiramente
desniveladas, e potencia uma dupla leitura: quando visto de longe (à
da personagem mais próxima do espectador, feições muito delicadas, cabelos longos e soltos, peito de atributos e, por conseguinte, de episódio. Se distância normal de observação de um vitral) pode parecer um órgão
apresentando-a agora de bruços, mas sempre sem com volume e sexo algo ambíguo neste contexto³⁶– considerarmos que Eros e Psique simplesmente feminino; quando visto de perto (numa análise de pormenor, agora mais
possibilitada pela limpeza e restauro do vitral) revela-se masculino.
asas, e transformando a sua atitude de espanto inicial e a que está acordada com uma aparência masculina passaram a ser representados de forma andrógina ³⁷ Sobre o envolvimento de Fernando Pessoa nas diversas correntes
em atitude de serenidade (patente no encerramento – de feições angulosas, cabelos cingidos atrás e seio complementar e reflexiva (ele mais efeminado e ela esotéricas vide CENTENO, 1985, e ANES, 2004.
da boca e no estatismo corporal, que indicam a visualmente reduzido pela sobreposição parcial do mais masculinizada), aceitamos a representação ³⁸ PESSOA, 1934, p.13. O trecho que precede o poema é citação do autor.
³⁹ Almada pintou dois retratos a óleo de Fernando Pessoa, o primeiro dos
quietude de uma contemplação). Redefiniu também braço. iconográfica convencional dos seus atributos mas quais datado do mesmo ano em que terá realizado este vitral.
as características formais de ambas, fazendo-as
22 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 23

... E assim vêdes, meu EROS E PSIQUE E, se bem que seja obscuro O final do poema contém a mesma metáfora de
Irmão, que as verdades que Tudo pela estrada fora, identificação, reflexão e unificação observada no
vos foram dadas no Grau Conta a lenda que dormia E falso, êle vem seguro, último estudo e na obra final de Almada, sendo
de Neófito, e aquelas que Uma Princesa encantada E, vencendo estrada e muro, que o reconhecimento do Infante na Princesa
vos foram dadas no Grau A quem só despertaria Chega onde em sono ela mora. encantada é equivalente ao reconhecimento de Eros
de Adepto Menor, são, Um Infante, que viria em Psique e de Psique em Eros, expresso por meio
ainda que opostas, a De além do muro da estrada. E, inda tonto do que houvera, das características fisionómicas só aparentemente
mesma Verdade. À cabeça, em maresia, trocadas e da possibilidade de leitura dos seus atributos
Êle tinha que, tentado, Ergue a mão, e encontra hera, partilhados. Além de reiterar a interpretação do mito
Do Ritual do Grau de Vencer o mal e o bem, E vê que êle mesmo era como metáfora do Conhecimento, esta representação
Mestre do Átrio na Ordem Antes que, já libertado, A Princesa que dormia. ambígua – que funciona como uma espécie de
Templária de Portugal Deixasse o caminho errado comunhão, ou fusão, entre as duas personagens –,
Por o que à Princesa vem. permite uma referência específica à Gnose unitária:
Sendo Eros, no momento arcaico, o agente ordenador
A Princesa Adormecida, e unificador dos elementos dispersos do caos (ou
Se espera, dormindo espera. seja, o manipulador da prima matéria) e ao mesmo
Sonha em morte a sua vida, tempo a figura do Amor que une os opostos (isto é,
E orna-lhe a fronte esquecida, o mediador da conjunctio alquímica), os filósofos
Verde, uma grinalda de hera. herméticos tomaram-no como o guia iniciático nos
Mistérios que permitem o conhecimento sobre a
Longe o Infante, esforçado, unidade do Mundo⁴⁰. Por seu turno, Psique (Psyche
Sem saber que intuito tem, em latim e Psykhē em grego), que protagoniza a Alma
Rompe o caminho fadado. e o Espírito humanos, inicialmente mergulhados no
Êla dela é ignorado. desconhecimento, é considerada como a figura do
Êle para êla é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -


Êla dormindo encantada,
Êle buscando-a sem tino ⁴⁰ Para além do exemplo romano referido na nota 27, também algumas
estelas funerárias gregas dos séculos IV e II a.C. parecem apresentar Eros
Pelo processo divino encaminhando Psique pela mão, talvez assumindo-se como guia iniciático
Que faz existir a estrada. desta nos Mistérios.
24 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 25

Neófito guiado por Eros na via do conhecimento Convivendo com alguns filósofos racionais e Para além do conhecimento, Almada procurou também
superior por meio da iniciação nos processos herméticos modernistas – sobretudo do círculo de o ideal da unidade (patente na sua paradigmática
gnósticos. As etapas desta iniciação – entendidas de Orpheu e da Presença – que aludiram ao mito de adição «1+1=1»⁴⁷), pelo que não seria de admirar que
modo simbólico – passavam pela morte iniciática Apuleio como alegoria gnóstica (ora entendida no na sua Obra o mito de Apuleio sobressaísse não apenas
(equivalente ao sono⁴¹) e pelo renascimento para uma sentido exotérico, ora no sentido esotérico), Almada como parábola da Gnose, mas especificamente como
forma de vida esclarecida e eterna. De acordo com a Negreiros interessou-se também pelo tema no âmbito exemplo da Gnose Unitária. Todavia, nas demais
filosofia hermética, «o significado real da iniciação é, da sua demanda da chave do Conhecimento⁴³ (tendo abordagens que Almada fez deste mito esse sentido
para este mundo em que vivemos um símbolo e uma sido, aliás, no contexto dessa busca que aprofundou de unidade nunca se baseia no reconhecimento de
sombra, que esta vida que conhecemos pelos sentidos o estudo sobre a cultura da Antiga Grécia e sobre a uma personagem na outra e a eventual união entre
é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que Aritmética pitagórica⁴⁴, baseando-se no princípio do as duas firma-se nos paradoxos da relação conjugal e
o que vemos é uma ilusão»⁴². Nesta óptica, Eros é o Número Perfeito – o theleon de Pitágoras, referido por no confronto dos opostos que cada uma representa
Eleutério, ou libertador, da condição inferior de Psique Vitrúvio – para teorizar acerca do cânone geométrico e não na sua “con-fusão”. Efectivamente, quer na
e o facilitador do acesso desta ao Conhecimento, ou na Arte, encontrar a relação 9/10 e desenvolver sua obra literária (a peça teatral intitulada O Mito
seja ao entendimento mais elevado e unificado das uma «metafísica imanencial»⁴⁵). Assim, é natural de Psique, iniciada em 1949 e aparentemente nunca
partes que formam o Cosmos. Através do Amor e da que o artista tenha associado Eros e Psique a outras concluída, pois para além de se desconhecer o seu
iniciação, Psique torna-se imortal, passa a igualar-se a personagens da mitologia clássica ligadas à Sabedoria, último quadro, sabe-se que jamais foi posta em cena
Eros e a identificar-se com ele. A união dos cônjuges articulando-as num simbólico pentagrama e criando e que só foi publicada postumamente), quer nas
subentende, pois, a sua equivalência. uma fórmula alegórica ao Conhecimento Antigo (Fig. 7): suas obras plásticas conhecidas até à data, o artista
ostentou sempre as diferenças entre elas – sendo que
Fig. 7 no primeiro caso tais diferenças são bem claras ao
Pentagrama demonstrando as relações entre vários deuses da
⁴³ ALMADA NEGREIROS, 1993, p. 24. nível das personalidades, dos sentimentos, das
⁴⁴ Nos Anos 40, Almada ambicionou «a transplantação da Grécia Antiga mitologia grega, desenhado por Almada para explicar a Alberto
no nosso Portugal» e proferiu um discurso no Salão do jornal Diário de de Lacerda a estória de Eros e Psique. Ao associar o pentagrama
Notícias, onde dissertou sobre «Portugal na Europa com os olhos de às divindades gregas, o artista criou uma fórmula alegórica ao ⁴⁶ As balizas cronológicas apresentadas coincidem com a data do desenho
Homero». Sobre o evento, o jornalista Norberto de Araújo escreveu que Conhecimento Antigo, que veio a repetir analogicamente na que integra a colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste
⁴¹ «Sono e morte são, um como o outro, um vínculo quase explícito na se assistira a uma «noite de sonho colectivo» e considerou a intervenção fachada da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, apenas Gulbenkian (Fig.8) e com a data do pentagrama inciso na fachada da
como «o mito interpretado pelo mito» (Norberto de Araújo, apud VIEIRA, Reitoria da Universidade de Lisboa, que parecem ter sido a primeira e a
fórmula hesiódica de que são irmãos, filhos de Nyx.» Todavia, «se Morte com ligeiras alterações ortográficas e numéricas.
e Sono confundem-se, fraternizam, afeiçoam-se – pois tomam, um, as 2001, p. 172, e FRANÇA, 1985, p. 492). Sobre o pitagorismo e a geometria última abordagem de Almada a este tema.
Sagrada em Almada Negreiros vide FREITAS, 1990. José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)
feições do outro, como esclareceu Eudoro de Sousa (2004, p. 91) – não ⁴⁷ Esta fórmula, que surge num desenho que integra a «Histoire du
⁴⁵ José-Augusto França fala de «metafísica imanencial» em Almada Não datado (1948-1957⁴⁶) Portugal par cœur», escrita em Paris em 1919 e publicada, textos e
são, a princípio, o mesmo» (GUERRA, 2009, p. 3), pelo que no contexto
Negreiros (FRANÇA, 1985, p. 495) com base na ideia da Geometria 27 x 21 cm desenhos, em 1922 na Revista Contemporânea (ALMADA NEGREIROS,
hermético que referimos não há dúvida de que a morte iniciática não
é uma morte efectiva, mas sim uma morte simbólica equiparável ao enquanto «primeira posição do conhecimento, ou seja, a mais próxima do Tinta-da-china sobre papel 1922, p. 30), é retomada na peça teatral Deseja-se mulher, escrita por
adormecimento. recebimento da imanência» (Almada, in Diário de Notícias, 16-06-1960, Colecção Alberto de Lacerda Almada Negreiros em 1928, que juntamente com a peça S.O.S. compõe a
⁴² PESSOA, 54, A-55, s.d. entrevistado por António Valdemar, apud FRANÇA, Ibidem). Cota: 08129.377 Tragédia da Unidade e manifesta a aspiração do artista a uma “direcção
Fotografia da Fundação Mário Soares única” no entendimento da dualidade de todos os aspectos da sociedade,
da natureza, da arte, etc. (ALMADA NEGREIROS, 1971).
26 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 27

atitudes e até das condições sócio-económicas⁴⁸, e no Porém, no quadro seguinte ela surge acompanhada das três irmãs. Estes desenhos⁴⁹ foram certamente retomados por Almada
Mesmo que estas possam ser interpretadas como o símbolo das várias Negreiros como referência para a elaboração do segundo estudo
segundo caso distinguem-se perfeitamente pelo corte facetas ou idades da própria Psique, a ideia deste desdobramento do vitral (Fig. 3), uma vez que existem similitudes entre as duas
de cabelo, pela fisionomia e pela anatomia, tal como acaba por confirmar a impossibilidade de se conhecer completamente figuras masculinas adormecidas e as femininas que seguram
(«Como pode alguém parar de conhecer-se se as suas idades o mudam
se verifica não apenas nos estudos preparatórios, mas constantemente?» - p.180). Uma vez que se desconhece o último quadro
lucernas: nestes desenhos, o suposto Eros está deitado de lado
também em desenhos anteriores (Figs. 8, 9 e 10): e com os braços numa posição próxima da que se observa no
da peça, não é possível saber o seu desfecho rigoroso, e ainda que se
referido estudo, embora apresente as pernas em posição um
possa admitir a hipótese de Psique ter optado por ficar sozinha (dentro
pouco diversa. Por seu turno, a suposta Psique está sentada de
ou fora do casamento), ficou bem claro que ela nunca se conheceria
totalmente. Neste sentido, também não há garantia de que ela voltasse a
costas mas tem o braço esquerdo numa posição próxima daquele
⁴⁸ Nesta peça (ALMADA NEGREIROS, 1971, p. 170-188), Almada enumera querer a companhia de Eros, pois essa união conjugal ditaria o fim do seu
mesmo estudo.
várias diferenças entre as duas personagens, sendo que a primeira autoconhecimento, que como se viu é um processo contínuo e perpétuo.
é o modo como cada uma interpreta aquilo que vê, formando ideias Aliás, a própria sogra (Afrodite), que Eros considera saber estar sozinha
diferentes de uma realidade única: «a luz é única» mas como cada «ideia e conhecer-se a si mesma, vive longe do seu esposo e sem o amor dele
é uma glosa de luz» (p. 174 – certamente por lapso, esta expressão («Tenho tudo o que desejo (…) Só o imortal Deus de todos [Zeus] não está
é citada em ANIELLO, 2007, p. 351, como sendo oriunda da Cena do perpetuamente a meu lado!» -p. 172).
Ódio), cada indivíduo tem a sua própria verdade («A verdade. É o que Assim, deduz-se que Psique nunca chegaria a reconhecer-se em Eros e
difere pra cada um» p. 175). Neste sentido, Almada conclui que ninguém que o casamento também nunca seria uma verdadeira união… Poderá a
consegue enxergar além de si mesmo e que o único conhecimento que constatação desta impossibilidade de união de facto ter levado Almada a
pode ter é o autoconhecimento («Vê que não te é dado veres senão a ti não concluir a peça? Seja como for, face às leituras que fizemos do vitral e
mesma» - p. 176). Assim sendo, o autor nega a possibilidade de qualquer do texto dramático (que poderão não ser as únicas nem as correctas, mas
conhecimento exterior ao indivíduo e inviabiliza não só o conhecimento que nos parecem plausíveis), cremos, uma vez mais, não haver relação
do outro como também o reconhecimento do eu no outro (ao contrário directa e óbvia entre estas duas obras (o que já anteriormente referimos Fig. 9
do que parece acontecer no poema de Pessoa e no vitral, segundo a nossa de modo sucinto, afirmando que o vitral tem um carácter único na obra do Eros e Psique⁵¹
interpretação). Além disso, Almada entende que o autoconhecimento só artista). Aliás, as diferenças não se confinam a questões filosóficas: a peça José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)
é possível quando se está sozinho, o que subentende a necessidade do inspira-se na estória de Apuleio mas «acontece hoje em dia, é claro, de 1948
isolamento/desunião dentro do casamento ou até a separação («ELA – outro modo» (p.170), com as personagens modernizadas e humanizadas 50 x 63 cm
Então pra que casamos? / ELE – Pra que seja mais claro o estarmos cada no seu aspecto físico (nenhuma delas com asas e nenhuma delas deus ou Aguarela sobre papel
um sozinhos, as nossas verdades?» e «não somos deuses, eles sabem humano) e com um enredo bastante diferente do original, apresentando
estar sozinhos, mas vê por eles como hás-de olhá-los pra ficares sozinha, Colecção particular
inclusivamente motivações, situações e pormenores inteiramente novos,
tu» p. 176). Para além destas diferenças, Almada ressalta outras: apesar bem como numerosas substituições de entre as quais ressalta o episódio Fotografia da galeria Antiks Design
de considerar que ambas as personagens são da mesma «raça sagrada representado no vitral que de facto está ausente da peça.
da mestiçagem dos deuses e humanos» (p. 176), afirma que elas têm Fig. 8
sensibilidades, atitudes e condições muito diversas, em especial no que Eros e Psique⁵⁰
toca ao amor, ao casamento e à própria atitude vivencial, já que Eros José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)
procura estar sozinho para se conhecer a si mesmo e tem fé no amor, ao ⁴⁹ Agradecemos as referências à Dr.ª Sara Afonso Ferreira, com quem
1948
passo que Psique não consegue estar sozinha, não se conhece a si mesma pudemos não só identificar as figuras representadas, como também
mas procura conhecer os outros (no caso Eros e sua mãe Afrodite), não 51,2 x 63,5 cm
relacioná-las com a peça teatral escrita por Almada e dedicada ao tema
se reconhece neles nem na realidade deles (p. 176 e 177) e não tem fé Tinta-da-china sobre papel mítico, onde as personagens surgem humanizadas no seu aspecto físico, o
no amor. Sendo que a solidão parece ser a condição de possibilidade do Colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste que explicará a ausência das suas asas nestes desenhos.
autoconhecimento de Psique e da sua eventual tomada de consciência Gulbenkian ⁵⁰ Inédito.
como membro da “raça” do esposo e da sogra, Eros deixa a mulher no Número de inventário: DP191 ⁵¹ Reproduzido em AA.VV., 1998, N.º 55.
final do segundo quadro para que ela fique sozinha. Fotografia de Paulo Costa
28 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 29

A solução última da ambiguidade apresentada no Infelizmente não se encontrou qualquer registo escrito Senhor de uma personalidade complexa e de trato
vitral não se filia, portanto, directa e aprioristicamente que documentasse a encomenda da obra e pudesse peculiar, este intelectual multifacetado condenou
nas abordagens plásticas (nem, a nosso ver, na esclarecer definitivamente as hipóteses adiantadas. a própria obra pictórica e manuscrita ao silêncio do
literária) anteriores que Almada Negreiros fez deste Não obstante, a empenhada investigação levou-nos ao Fogo, num desejo cumprido post mortem que talvez
mito em particular e as circunstâncias em que esta encontro de memórias vivas⁵³ que testemunharam a tenha sacrificado as provas mais contundentes do
se desenvolveu parecem revelar, outrossim, uma amizade entre o artista e os proprietários da moradia seu pensamento hermético... Porém, escaparam à
decisiva intervenção externa. De facto, a obra surgiu de onde provém o vitral⁵⁴ e que recordam com damnatio as obras que publicou entre 1944 e 1965
no âmbito de uma encomenda para uma residência clareza o episódio de aprovação do último estudo⁵⁵. e que atestam a influência das leituras pessoais,
privada, sendo que o tema foi certamente escolhido Esta relação tão próxima parece ter sido suficiente estando as de Fernando Pessoa documentadas na
pelo proprietário e que o artista procurou ir ao para escusar a formalidade e firmar o contrato na citação preambular da obra Tema e Variações⁵⁷ e na
encontro da ideia deste. combinação discursiva. dedicatória à memória do poeta no livro Cantata⁵⁸. Os
A obra foi executada a pedido de José Manuel Ferrão seus livros denunciam uma atitude vivencial dividida
Com efeito, os primeiros quatro estudos (Figs. 2, 3, 4 (1928-1993) – ou simplesmente José Manuel, como entre o existencialismo⁵⁹ e a devoção⁶⁰ (pendendo
e 5) confirmam que Almada se propunha representar preferia assinar –, filho de D.ª Maria da Piedade. Poeta, talvez mais para um cristianismo gnóstico), e revelam
Eros e Psique com características físicas bem definidas, pintor, compositor, profundo admirador da obra de ideias, imagens e termos que remetem directamente
ou seja, com uma eventual união firmada nas claras Fernando Pessoa e amigo de Almada Negreiros, José para o vitral executado por Almada a seu pedido,
diferenças entre as duas personagens; aliás, o quarto Manuel contara já com a colaboração deste artista na sobretudo ao nível da concepção unitária, da temática
Fig. 10 estudo (Fig. 5) demonstra já um acabamento bastante ilustração das capas de três livros seus, o primeiro dos onírica e amorosa⁶¹, da dimensão cromática, da
Eros e Psique⁵² apurado que parece indicar ter sido considerado por quais intitulado As Primeiras Canções, publicado em técnica e dos materiais.
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970) si uma versão final para apresentar ao proprietário.
1948 1944, onde aliás lhe dedica o poema «Confissão»⁵⁶. A concepção e a temática tornam-se particularmente
50 x 62 cm
Todavia, a existência de um quinto estudo (Fig. 6) evidentes na paradigmática Alquimia do Sonho⁶²
Aguarela e tinta sobre cartolina com uma súbita mudança de cores, uma alteração – romance poemático e simbólico, de contornos
⁵³ Referimo-nos à viúva e à filha de José Manuel Ferrão (Sr.ª D.ª Cecília
Colecção particular numérica das partes em que se organiza a composição Guitart Ferrão e Dr.ª Madalena Guitart Ferrão), a uma amiga de Dª. Maria autobiográficos, editado em 1953 – e no seu primeiro
Fotografia da galeria Antiks Design e uma “con-fusão” de fisionomias (que na figura da Piedade (Dr.ª Maria Augusta Barbosa) e ainda ao filho de José de
Almada Negreiros (Arq. José de Almada Negreiros), que generosamente
masculina se reflecte até no volume do peito e no nos forneceram informações.
comprimento dos cabelos – caso único na Obra de ⁵⁴ ALMADA NEGREIROS, 1993, p. 24.
⁵⁵ Este episódio foi-nos relatado com extraordinário detalhe pela Dr.ª
Almada) faz pensar num reajuste decorrente de uma Maria Augusta Barbosa, que relembra o agrado com que José Manuel ⁵⁷ José Manuel, 1950 b), p. 1.
concertação entre o encomendante e o artista para recebeu o estudo a óleo, ressaltando a forma como traduzia a ideia do ⁵⁸ José Manuel, 1950 a), p. 1.
⁵²Reproduzido em AA.VV., 1998, N.º 56. A imagem foi impressa em posição
invertida no sentido horizontal. realçar a interpretação gnóstica unitária do mito. encomendante. ⁵⁹ José Manuel, 1947, 1953 e 1962 b).
⁵⁶ José Manuel, 1944, p. 126 e 127. Agradecemos esta referência ⁶⁰ José Manuel, 1961 b), 1962 a) e 1963.
bibliográfica à Dr.ª Sara Afonso Ferreira. Os outros dois livros, intitulados ⁶¹ Todas as obras deste autor referem as mencionadas temáticas.
Novas Canções e Sargaços, respectivamente publicados em 1946 e 1947, ⁶² José Manuel, 1953.
repetem a mesma ilustração de Almada mas em cores diferentes.
30 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 31

contributo para a revista Eros⁶³ – publicação de Não sei se me pertences O título do periódico e a temática do romance Outras obras anteriores e posteriores do poeta
ensaio e poesia com tiragem entre 1951 e 1958, da não sei se me possuis terão igualmente inspirado um painel de azulejos reiteram estes sentidos e complementam a leitura
qual foi director e que fundou em colaboração com Sei que estamos fundidos concebido para a marquise da mesma casa, também do vitral. As cores (da luz da lucerna, do fundo e
Fernando Guimarães, António José Maldonado e na mesma grande dor por Almada Negreiros, onde Arlequim e Colombina dos corpos das duas figuras), os vitrais e o sono vêm
Jorge Nemésio. […] estão enamorados (figuras que o artista representa referenciados em numerosos poemas, de entre os
Concebidas no período cronológico de construção da Qualquer que seja o teu caminho desde a primeira década de 1900 e que se repetem quais apresentamos quatro sobremaneira evidentes:
residência⁶⁴, a obra individual e a colectiva permitem é em mim que te encontras noutros azulejos desta casa), seguindo abraçados
*
não apenas comprovar a escolha do tema como uma Qualquer que seja o meu caminho numa pequena embarcação que ostenta a inscrição Eis o branco vítreo, baço e transparente,
vontade sua, mas também possibilitam a interpretação é em ti que o encontro «EROS» à direita (Fig. 11). a côr real dos impérios da luz,
da solução imagética polissémica do vitral como um a côr que ilumina tôda a gente,
desejo seu de transformar o mito numa parábola Seremos amplamente no seu esplendor crescente,
gnóstica da conjunctio, ou seja, numa ilustração quando formos um só. sempre e sempre eternamente!
da aliança nupcial entre os esposos. Tal como o
próprio José Manuel referiu: «O amor é comunhão, Eis o roxo do horizonte,
identificação, unificação. O amor transcende e exclui o o roxo da sepultura;
dualismo sujeito-objecto»⁶⁵ e «o pior vício é a definição, eis a côr […] amarela […] do oiro […]
a delimitação dos personagens. (…) Simplesmente é a rosada cheia d’esplendor,
⁶⁵ José Manuel, 1953, p. 22. A Alquimia do Sonho não é um tratado
uma utopia. Não se pode definir, delimitar alguém. de Alquimia operativa ou especulativa nem uma obra esotérica; é um […]⁶⁸
(…) Seria negar-lhe a unidade espiritual.»⁶⁶ É, aliás, romance poemático que tem como pretexto (parafraseando o próprio *
este o sentido do seu poema «Eros»⁶⁷, publicado no autor) a estória de uma relação amorosa, mas que revela o verdadeiro
propósito de expressar um pensamento filosófico unitário, habilmente
Aproxima-se a hora violeta
primeiro número da revista homónima: conciliado com reflexões existencialistas (na linha de Jean-Paul Sartre, Do nosso amor, ungido de ternura,
a quem o autor dedica o romance), onde o Sonho se apresenta como E pelo mesmo cálix de amargura
estado imanente da psique humana – sendo antiteticamente benéfico
e pernicioso –, e o Amor surge como sentimento ideal que permite o beberemos a vida mais secreta.
conhecimento do Eu, do Outro e da Natureza, funcionando como pedra de […]
⁶³ Inexplicavelmente, todos os números da revista Eros desapareceram toque para a união dos opostos e do Homem com o Mundo. A narrativa é
do acervo da Biblioteca Nacional. De acordo com a informação dos duplamente retrospectiva e projectiva, decorrendo num ritmo sincopado Fig. 11 A hora dos vitrais esmaecidos,
bibliotecários, esta ocorrência deu-se no dia 25 de Julho de 1998, volvidos de capítulos breves e sibilinos, nem sempre ligados directamente entre si, Pormenor de um painel de azulejos da marquise, concebido por A hora dos segredos por dizer,
5 anos sobre o falecimento de José Manuel e precisamente no dia de e a linguagem utilizada é simbólica, com recurso a termos de referência Almada Negreiros, com representação de Arlequim e Colombina
invocação a Santiago Maior, padroeiro dos Alquimistas. O momento lilaz, a fenecer,
hermética que denunciam a influência das leituras gnósticas. numa embarcação denominada EROS.
⁶⁴ O primeiro projecto arquitectónico de António Varela para a moradia ⁶⁶ José Manuel, 1953, p. 25. Fotografia de Paulo Cintra. No sonho dos segundos esquecidos,
data de 1951. Em 1954 a obra ficou concluída, embora em 1955 tenha ⁶⁷ José Manuel, 1951. Agradecemos ao Dr. José Mateus, da Biblioteca
sido objecto de adaptações, averbadas pelo arquitecto nas plantas e nos Geral da Universidade de Coimbra, o envio deste poema.
alçados.
⁶⁸ José Manuel, 1944, p. 12.
32 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 33

[…] * onde expressava um entendimento paradoxal do pentagrama, que constitui, outrossim, um símbolo
Desfazendo-se em sonhos pelos céus, Dorme e esquece… amor baseado nas diferenças dos cônjuges e no do Conhecimento⁷⁴); o cromatismo violeta do fundo
quase sentimental, quase secreta, Quantas vezes a vida nos parece caminho individual e solitário que cada um tem lembra a cor da Paixão (etapa que antecede a morte e
aproxima-se a hora violeta um sono enorme! de percorrer para se conhecer a si mesmo, jamais a ressurreição)⁷⁵; a lucerna, com a sua chama branca,
[…]⁶⁹ Dorme, dorme… conhecendo verdadeiramente o outro e dificilmente surge como fonte simbólica da Luz que permite o
* reconhecendo-se nele. Usando esses desenhos Conhecimento (podendo ser ora relacionada com
Como a lua assomando entre os vitrais Dorme que virei acordar-te, como referência para o posicionamento das figuras Psique, em alusão à sua curiosidade e descoberta, ora
ondulando através do templo todo Dorme um longo sono. (sobretudo da que se encontra adormecida), o artista com Eros, em referência à iluminação que este deus
se desdobrando em cores pelas naves […] foi trabalhando as características fisionómicas das proporciona à figura humana mediante a iniciação
– ametista e azul púrpura e oiro – dorme um sono que te torne ausente personagens, as cores e as divisões da composição de no processo gnóstico); a coloração amarelo-ouro
deste mundo impuro. acordo com as indicações do encomendante, sendo da figura acordada traduz a ideia de Conhecimento
te derramas em mim fluida e vibrátil […] que o resultado final constitui uma obra a quatro (ou seja Iluminação), transmutação e imortalidade,
palpitante de seiva e de mistério Dorme, dorme e esquece: mãos. O vitral revela, pois, um entendimento do mito em analogia com o simbolismo místico do Ouro
me alumbras, me consomes (mas tam pálida) Só dormindo poderás viver… de Apuleio como uma alegoria hermética ao Amor metálico⁷⁶ (podendo também ser arbitrariamente
me transportas além do instante efémero […]⁷¹ Gnóstico Unitário e permite uma análise unificada dos relacionada com Psique, na medida em que esta tem
pormenores materiais e simbólicos que o compõem, acesso ao Conhecimento, ou com Eros, uma vez que
subterrânea em meu sangue em minha carne Partindo de um tema da Antiguidade reinterpretado deixando perceber que todos eles se revestem a sua condição divina pressupõe que já é detentor
mas ardendo com chama imperecível por vários vultos do Modernismo – na sua maioria de particular sentido orgânico: o vidro permite a desse Conhecimento e que pode revelá-lo através
crepitando oscilando – infatigável – amigos ou conhecidos de José Manuel Ferrão –, o entrada da Luz no espaço onde o vitral foi colocado; da iniciação); a atitude de observação adoptada pela
aspirando (quem sabe?) a um céu mais livre vitral Eros e Psique nasce de um culto pessoal do o chumbo⁷², metal saturnino que os alquimistas figura em vigília relativamente à que dorme pode ser
encomendante pelo Conhecimento e pelo Amor, sendo operativos acreditavam poder ser transformado em duplamente interpretada como a descoberta de Psique
de súbito te evolas dos meus braços este entendido por si como forma de união dóxica ouro, une e ao mesmo tempo fracciona o vidro em 5 (destacando a curiosidade enquanto característica
num eflúvio de inquietas lantejoulas sagrada, de fusão hermética e de conhecimento de partes verticais, simulando as grades de uma janela propulsora do Conhecimento) ou como a orientação
abres as amplas asas para o espaço si, do outro e de reconhecimento de si no outro. Para esotérica⁷³ e remetendo para a simbologia do número de Eros (realçando o seu papel como guia iniciático
[…]⁷⁰ a sua execução, o amigo Almada Negreiros retomou 5 («sinal de união, número nupcial», «símbolo do de Psique); o estado onírico pode ser duplamente
três desenhos que havia feito anteriormente, quando homem» completo e também «do andrógino» e ainda entendido como uma oportunidade de descoberta
preparava uma peça teatral inspirada no tema (apesar da «harmonia pentagonal» – em analogia com o
de muito distante da estória e da narrativa mítica),
⁷² Para um significado do metal Chumbo nos contextos herméticos, vide ⁷⁴ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 196; para um significado do
CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 192. pentagrama - também designado pentagrama de Hermes gnóstico – nos
⁶⁹ José Manuel, 1947, p. 44 e 45.
⁷³ Para um significado da Janela nos contextos herméticos, vide CHEVALIER contextos esotéricos, vide CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 518.
⁷⁰ José Manuel, 1963, p. 7 e 8. ⁷¹ José Manuel, 1946, p. 106 e 107.
e GHEERBRANT, 1994, p. 382. ⁷⁵ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 697.
⁷⁶ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 495 e 496.
34 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 35

Uma iconografia em
contexto: o vitral e a casa
por parte de Psique e como uma alusão ao engano
dos sentidos e à morte iniciática para superar esse
ao descobrir Eros, Psique inicia-se nos Mistérios
Gnósticos, acede ao Conhecimento e atinge a
para onde foi concebido
engano material e alcançar a Verdade (consoante se vê imortalidade, mudando de condição e “igualando-
a figura adormecida como Eros ou como a projecção se” ao deus; resolvidas as diferenças entre eles,
de Psique); a tensão da mão da figura adormecida termina o dualismo e um revê-se no outro, como que
prenuncia o despertar desta, anunciando ora o início, confirmando a sua equivalência. Em última análise,
ora o fim das etapas iniciáticas de Psique (conforme subentende-se a sua “fusão”, ou seja, o resultado da
se interpreta a personagem adormecida como Eros ou conjunctio alquímica que é a Rebis (também designada
como a projecção de Psique); a presença das asas na por Andrógino ou Hermafrodita).
figura de Eros reporta à sua condição divina, ao passo
que na imagem projectada de Psique pode funcionar
triplamente como símbolo da desmaterialização
(enquanto saída do corpo material, sensorial e Fig. 13
enganador)⁷⁷, como renascimento para uma condição José Manuel Ferrão na biblioteca, acompanhado do seu Fox
superior imortal e ainda como sinal de “aliança” Terrier, de nome Jagodes, tendo atrás de si o vitral Eros e Psique⁷⁸.
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra.
nupcial com o deus.
A aparência andrógina das duas figuras gera,
pois, uma “confusão” de géneros que permite a
identificação de uma personagem com a outra e
Fig. 12
promove leituras diferentes mas complementares, Fachada principal da residência na Rua de Alcolena, N.º 28 (antigo
pois para além de compreenderem a condensação Lote 149).
dos dois episódios cruciais da estória de Apuleio num Fotografia de Paulo Cintra.
único registo imagético, conduzem, afinal, a uma
mesma e única conclusão: o mito é entendido como A dependência da casa para onde foi concebido o
uma alusão ao princípio hermético (compreendido vitral era precisamente a biblioteca de José Manuel
na Tábua de Esmeralda, de Hermes Trismegisto) da (Figs. 13 e 14), espaço de Conhecimento e de Reflexão
correspondência, da complementaridade e da união (em perfeita analogia com o tema e a forma de
dos opostos representados pelos dois amantes, já que Fig. 14
representação do vitral). Panorâmica actual do interior da biblioteca de José Manuel.
Na parede de topo observa-se a janela onde originalmente se
encontrava o vitral. Fotografia com montagem de Paulo Cintra.
⁷⁷ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 92 e 93.
36 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 37

Com larga fenestração e uma varanda aberta para o rio se adaptou uma pequena “cozinha”⁸¹ (Fig. 20, n.º 4),
Tejo, a biblioteca – que no entanto era essencialmente um quarto (Fig. 20, n.º 6) e uma casa de banho (Fig.
animada pela luz colorida e simbólica do vitral, 20, n.º 8). Toda a antecâmara e parte da biblioteca
exibido numa janela voltada a Poente – integrava- conservam as paredes pintadas de cor negra, rasgadas
se num espaço maior, afecto ao proprietário. Este a branco por linhas que prefiguram pentagramas⁸²
domínio privado ocupava uma área superior à metade – repetindo os motivos do painel geométrico de
esquerda do primeiro andar da moradia e afirmava a azulejos e do tapete branco e negro da biblioteca –,
sua independência relativamente às zonas sociais e afirmando a presença do símbolo gnóstico de união
às zonas privadas afectas a sua mãe, através de um dos opostos⁸³ sobre a cor favorita do proprietário:
acesso alternativo ao da entrada principal, criado à
direita desta, e feito por meio de uma escada metálica Mas de todas a mais formosa
que se desenvolve no exterior, agregada ao ângulo da e de todas a mais misteriosa
frontaria, e que conduz ao terraço do primeiro andar. é a minha verdadeira côr
que eu canto sem saber porquê!...
A porta para a antecâmara de José Manuel abre-se ao
centro de um painel de azulejos disposto em ângulo Fig. 16 É o escuro, é o negro,
curvo, decorado com motivos geométricos⁷⁹, de onde Painel de azulejos de Almada Negreiros, na metade esquerda da É a cor que se não vê!...⁸⁴
ressalta a formação de um pentagrama pitagórico – fachada principal, ao nível do piso superior (terraço), onde se abre
obra que testemunha a fase em que Almada estudou a porta que conduz à zona privada de José Manuel. Fotografias de
a génese do Conhecimento, através da Geometria e Paulo Cintra.
do Número⁸⁰, e que anuncia a solução encontrada ⁸¹ No terraço existe uma chaminé localizada na zona correspondente a
no painel inciso e policromado, intitulado Começar, Atravessando esse portal simbólico, entra-se num esta área, embora, estranhamente, sem qualquer ligação a ela ou a outra
divisão na mesma prumada. Efectivamente, não há seguimento desta
presente na Fundação Calouste Gulbenkian. verdadeiro “templo”, filosofal. Funcionando como um estrutura nos cortes, nas plantas ou na própria edificação, pelo que a sua
microcosmo autónomo, qual casa dentro da própria utilização permanece arcana, sabendo-se apenas que não foi projectada de
raiz (porquanto não vem representada nas primeiras plantas desenhadas
casa, essa ala inclui – para além da referida biblioteca por António Varela em 1951 e só passa a constar nas de 1955) e que
Fig. 15 (Fig. 20, n.º 5) – uma antecâmara, onde posteriormente também não era, seguramente, a chaminé da cozinha, uma vez que esta
⁷⁸ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José se situa na ala oposta e é servida por um sistema de extracção lateral.
Manuel Ferrão. Panorâmica da fachada lateral esquerda. Observa-se a entrada
⁸² A casa de banho mantém o revestimento de pedra negra, mas o quarto
⁷⁹ Contrariamente aos demais painéis figurativos da moradia, realizados principal, a escada de acesso ao primeiro piso (zona privada
foi posteriormente repintado de branco.
«em faiança policromada», este único painel geométrico terá sido de José Manuel) e a janela onde se encontrava o vitral (janela ⁸³ Para os vários significados possíveis do Pentagrama, vide CHEVALIER e
«executado pelo Mestre António de Sousa em alicatado». BURLAMAQUI, rectangular mais estreita e fechada). GHEERBRANT, 1994, p. 518.
1996, p. 37. ⁸⁴ José Manuel, 1944, p. 13.
⁸⁰ TOSTÕES, 1997, p. 60.
38 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 39

Todavia, no piso térreo, à direita de quem entra,


abre-se uma área social de convívio comum que
constitui o cadinho da unidade global: traçada como
um espaço aberto e único, mas virtualmente dividida
em dois por uma cortina ondulada e por uma linha,
também ondulada, de oposição de ladrilhos de cores
diferentes, esta divisão funciona duplamente como
sala de estar e sala de refeições e ostenta as três
cores unificadas da obra alquímica – negro num dos
lados do pavimento, branco nas paredes e no tecto e
vermelho no lado oposto do pavimento.
Este simbólico diálogo de áreas de encontros e
desencontros, de domínios femininos e masculinos,
expresso na arquitectura e na decoração com uma
coerência unificada, foi intencionalmente acordado
Figs 18 e 19 entre os proprietários e os artistas, como parecem
Aspecto actual do interior da ala de José Manuel. indicar as mudanças nos estudos de Almada Negreiros
Fotografias de Paulo Cintra. para o vitral e para os azulejos (hoje dispersos por
várias colecções particulares) e as alterações nos
projectos de António Varela para a redistribuição dos
Embora potencialmente independente, parecendo espaços (em arquivo municipal e na posse dos vários
dividir o primeiro piso da moradia em territórios herdeiros). D.ª Maria da Piedade terá colaborado com
distintos, a ala de José Manuel não deixa de estar Fig. 20 António Varela no traçado das dependências que lhe
articulada com os restantes espaços, porquanto possui Planta assinada pelo Arq. António Varela, em 1955, com projecto respeitavam, solicitando para a sua suite um espaço
também escadas interiores comuns que propiciam para alterações ao primeiro andar da moradia, onde se nota a
de culto religioso, com altar e genuflexório, e para
Fig. 17
a união dessa diversidade. Não obstante, no último demarcação dos espaços afectos a José Manuel (à esquerda) e a D.
José Manuel, acompanhado de Jagodes, na sua biblioteca.⁸⁵ Ao Maria da Piedade (à direita), conseguida com o encerramento dos a cozinha uma disposição funcional a gosto, dotada
fundo observa-se parte de uma parede pintada a negro, com patamar volta a delinear-se o princípio da divisão de um cómodo monta-cargas para comunicação
acessos que permitiam a sua comunicação.⁸⁶ Espólio familiar.
pentagrama traçado a branco. Estão ambos sentados sobre um por meio de uma oposição de ladrilhos, em cores
tapete que repete, em oposição de cores, os motivos da parede. com a suite. Terá igualmente acompanhado Almada
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra. diferentes, que demarcam as zonas de influência da Negreiros nos estudos para os painéis de azulejos da
mãe ou do filho. varanda do seu quarto, das varandas do rés-do-chão e
⁸⁶ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José
⁸⁵ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José Manuel Ferrão. da marquise (sendo que nesta última poderá ter
Manuel Ferrão.
40 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 41

concedido ao filho o desejo de incluir a representação É de crer que José Manuel também possa ter Embora comprovadamente⁸⁹ participativos na
alusiva a Eros), parecendo ter deixado a escolha temática orientado a escolha temática de uma escultura em concepção funcional e simbólica da moradia, os
ao critério do artista, que optou por representações metal, da autoria de Amaral Paiva, representando proprietários não impuseram significativas limitações
mais livres e aparentemente mundanas quando São Francisco de Assis com um cão (animal predilecto plásticas e técnicas ao pintor ou ao arquitecto.
comparadas com as que executou para a ala afecta deste proprietário) – originariamente colocada no Admirando sobremaneira as características
a José Manuel (embora nelas também sobressaia jardim e posteriormente transferida para o interior da essenciais das expressões de cada um, acolheram
a tendência unitária da representação e dos seus casa –, e ainda a ornamentação da porta principal da entusiasticamente a transição formal, temática e
sentidos, sendo disso exemplo a constante associação moradia (Fig. 21), executada pelo mesmo artista, que técnica da obra de Almada⁹⁰, conglutinando elementos
directa entre o elementos feminino e masculino, conta com uma escultura em cerâmica policromada, da gramática decorativa de obras anteriores⁹¹ e
expressa nos inúmeros pares de enamorados, em de representação aparentemente zoomórfica (do tipo a diversidade da pintura a óleo, do vitral e do
particular no casal de arlequins que caminha ao luar, candivorens, lembrando um Oroboros⁸⁸ que morde azulejo, e receberam vivamente a riqueza semântica
partilhando um único casaco, parecendo geminado a própria cauda) e 10 quadrados em barro vidrado de Varela, poetizada num volume imponente e
em termos formais e afectivos). com motivos geométricos de simbólica hermética, alteado relativamente às demais moradias vizinhas.
Por seu turno, José Manuel terá solicitado ao agrupados em 5 de cada lado da mesma porta, onde Expressando de forma plástica o sentido exacto da
arquitecto que criasse uma zona auto-suficiente para se repete a figura do pentagrama. É provável que citação de Paul Éluard, epigrafada sobre a pedra (Fig.
seu uso privado e interveio activamente no programa também o revestimento das escadas interiores e o 24) onde se regista a data da conclusão da obra (10 de
iconográfico de Almada para a respectiva decoração, projecto das duas escadas exteriores a tardoz (que Fevereiro de 1954⁹² – «La maison s’élèva / comme un
onde se conjugam composições geométricas e terminam abrupta e enigmaticamente junto ao muro) arbre fleurit»), Varela fez “nascer” a casa, qual árvore,
figurativas de forte dimensão simbólica unitária⁸⁷. tenham sido um pedido seu. de um “ventre” fecundo de terra, criado

⁸⁹ Para esta afirmação contribui o já mencionado testemunho da Dr.ª


Maria Augusta Barbosa, que enunciou vários exemplos da intervenção de
D.ª Maria da Piedade e de José Manuel, por nós tidos em conta.
⁹⁰ ALMADA NEGREIROS, 1993, p. 51.
⁹¹Para além dos tão conhecidos pares amorosos de arlequins e dos
Fig. 21 pentagramas, destacam-se também as embarcações simples com guarda-
sóis e as composições de pequenas mesas redondas já utilizados pelo artista
Entrada principal da moradia, na fachada lateral esquerda, com nas decorações murais da Gare Marítima da Rocha do Conde d’Óbidos.
decoração em cerâmica ostentando motivos geométricos em Agradecemos ao fotógrafo Paulo Cintra a lembrança da referência.
placas e uma escultura aparentemente zoomórfica, executada ⁹² O dia 10 de Fevereiro de 1954 marca também o 26.º aniversário de
⁸⁷ Mesmo nos azulejos da varanda da biblioteca de José Manuel, onde se ⁸⁸ O Oroboros (ou Ouroboros, ou Oureboros, ou ainda Uroboro) simboliza por Amaral Paiva. Observa-se também parte do revestimento das
encontra representado um tema aparentemente mundano: uma família duplamente o eterno-retorno e a União dos princípios opostos (CHEVALIER José Manuel Ferrão. A coincidência da data leva a crer numa oferta de D.ª
fachadas, apresentando pequenas incrustações em pedra negra Maria da Piedade ao filho.
(pai e filho de um lado e mãe e filha e outro), é possível entender a ideia e GHEERBRANT, 1994, p. 670).
de unidade, expressa nos laços do núcleo familiar. que formam pontilhado.
Fotografia de Paulo Cintra.
42 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 43

através de uma elevação da cota do terreno e


permitiu que ela florescesse num diálogo de formas
rectas e curvas, de avanços e recuos, de vazios e
cheios⁹³, de luz e sombra⁹⁴, de texturas e materiais
que se estendem desde o enxaquetado do jardim
até às pérgulas, passando pelos canteiros – que se
correspondem formalmente com a chaminé –, pelos
bancos e pelas escadas de pedra, pelo poço no lado
esquerdo, pelo tanque na frente, pelo pequeno lago
na retaguarda e pelas varandas na frontaria (Fig. 23).

Fig. 23
Vista do ângulo Sudoeste da moradia, no ano da sua conclusão,
em 1954, onde se destaca a composição volumétrica e os intensos
jogos de claro-escuro do edifício. Espólio familiar.⁹⁶ Reprodução
fotográfica de Paulo Cintra.

Fig. 22
Projecto assinado pelo Arq. António Varela, em 1951, com os
quatro alçados da residência na Rua de Alcolena. Observam-
se claramente os apontamentos da decoração em azulejo (na Fig. 24
fachada principal – 1º desenho), cerâmica e vitral (na fachada D.ª Maria da Piedade fotografada junto às epigrafias que
lateral esquerda – 4º desenho), atestando a unidade conceptual identificam o arquitecto da moradia e a data de conclusão desta,
entre esta e a arquitectura, desde o início. Espólio familiar.⁹⁵ bem como a citação do poeta Paul Éluard. Espólio familiar.⁹⁷
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra.
⁹³ TOSTÕES, 1994, p. 60.
⁹⁴ Este encontra-se hoje parcialmente destruído pela eliminação das
pérgulas do terraço. ⁹⁶ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Arq. António
⁹⁷ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José
⁹⁵Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José Varela.
Manuel Ferrão.
Manuel Ferrão.
44 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 45

Conclusão Agradecimentos
O vitral Eros e Psique – único que Almada Negreiros A coerência absoluta que se verifica entre os sentidos À Sr.ª D.ª Cecília Guitart Ferrão e à Dr.ª Madalena À Dr.ª Sara Afonso Ferreira e ao Dr. Luís Manuel
produziu para uma residência privada – versa sobre do vitral, a função e a decoração do espaço em que Guitart Ferrão, respectivamente viúva e filha de José Gaspar, pela amizade e pela generosidade com que
um tema que desde a Antiguidade constitui uma se integra (uma biblioteca com paredes negras Manuel Ferrão, pela partilha de vivências e empatia. partilharam o seu profundo conhecimento sobre o
alegoria ao Conhecimento, particularmente apreciada animadas por pentagramas brancos), os sentidos das À Dr.ª Maria Augusta Barbosa, amiga da família Ferrão, espólio de Almada Negreiros. À Dr.ª Sara também
e explorada nos meios intelectuais. Através de uma restantes expressões plásticas agregadas à moradia, pela disponibilidade e preciosas informações. pelo apoio na pesquisa iconográfica, e ao Dr. Luís
representação imagética ambígua e polissémica e os sentidos da organização espacial desta, confere Ao Arq. José de Almada Negreiros e às Arq.as Rita e igualmente pelo empenho na revisão de texto.
das figuras dos dois amantes, a obra reflecte uma ao conjunto habitacional uma dimensão de unidade Catarina Almada Negreiros, respectivamente filho e Ao Dr. José Mateus, da Biblioteca Geral da Universidade
interpretação filosófica hermética do mito de Apuleio absoluta que ultrapassa a conhecida associação netas do artista plástico, pela amizade, pelo apoio, de Coimbra, pelo acesso ao poema «Eros», de José
e funciona como metáfora do Amor Gnóstico Unitário, entre a arquitectura e a sua ornamentação na época pelo incentivo e pela autorização de reprodução de Manuel.
promovendo duas leituras que embora pareçam do Modernismo. A concentração e a exposição de imagens. À Dr.ª Rita Lougares, do Museu Colecção Berardo,
diferentes são, de facto, complementares e, em tais sentidos nas duas fachadas de fruição pública À Dr.ª Maria do Céu Pimentel e à Dr.ª Joana Morais pela cedência de imagens de dois estudos de Almada
termos finais, equivalentes, pois confluem na mesma do edifício revelam uma intenção de “publicitar” a Varela, respectivamente sobrinha e sobrinha neta Negreiros.
conclusão de que o dualismo inicial das personagens filosofia de quem o habita. de António Varela, pelo acesso ao arquivo familiar À Sr.ª D.ª Maria Amélia Santos Almeida e à Sr.ª D.ª
– baseado na oposição dos géneros masculino e Relacionado com a fina-flor da cultura modernista e do arquitecto e pela autorização de reprodução de Maria José Almeida, da galeria Antiks Design, pela
feminino, das condições divina e humana, imortal conhecedor de teorias filosóficas herméticas, José imagens. cedência de imagens de dois estudos de Almada
e mortal, iniciador e iniciada – se unifica tanto na Manuel Ferrão contribuiu fortemente para a unidade Ao Dr. Fernando Guimarães, pelas informações sobre Negreiros.
lenda como na concepção gnóstica do Mundo. simbólica da moradia na Rua de Alcolena que no a sua colaboração com José Manuel Ferrão na revista Ao Dr. Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares,
Efectivamente, através da iniciação nos Mistérios seu todo orgânico constitui uma «interpretação Eros. pela cedência da imagem de um desenho de Almada
gnósticos e do poder incondicional do Amor, Psique objectivada duma impressão subjectiva»⁹⁸, deixando, À D.ª Maria Almeida, antiga funcionária do anterior Negreiros, da Colecção Alberto de Lacerda.
ascende ao conhecimento e à imortalidade pela mão deste modo, a sua marca indelével nas obras de proprietário da residência, pela visita ao interior da À Dr.ª Teresa Parra da Silva, pela oportunidade de
de Eros, passando a equiparar-se a esta divindade. A Almada Negreiros e de António Varela. casa. estudo.
solução visual do Amor gnóstico é, pois, confluente Ao fotógrafo Paulo Cintra, aos Arq.os Leonor Cintra À Prof. Doutora Raquel Henriques da Silva pelo
com a do postulado hermético das correspondências, e Michel Toussaint, pelo convite à realização de uma impulso da nova publicação.
pelo que a simbólica conjunctio dos esposos míticos palestra sobre a moradia na Ordem dos Arquitectos. Ao Dr. Rui Costa e à Dr.ª Teresa Xardoné, pela
se subentende na aparência andrógina de ambos. À Arq.ª Helena Roseta, ao Dr. Paulo Ferrero e à Dr.ª concretização da nova publicação.
Luísa Jacobetty, pelo incondicional empenho na À Dr.ª Sandra Neves da Silva, pelas dissertações sobre
classificação da moradia. filosofia hermética.
⁹⁸ PESSOA, 1966, p. 177. A frase completa, da qual citamos a derradeira
parte, é: «A obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação Ao fotógrafo Carlos Pombo, pela amizade e apoio na Ao Carlos Martins, pela companhia e pela inesgotável
objectivada duma impressão subjectiva.» Fernando Pessoa desenvolve causa. paciência.
esta ideia e explica que «Na arte temos a distinguir três partes. A arte
envolve uma impressão, ou ideia, sobre a qual se trabalha; envolve uma Ao Doutor José Manuel Anes e à Doutora Yvette Aos meus Pais, pela serenidade e pela lucidez.
interpretação dessa ideia ou impressão de modo a torná-la artística; e Centeno, pelos ensinamentos e pelo incentivo na
envolve, finalmente, uma coisa de que se tem essa impressão ou ideia.»
republicação deste estudo.
46 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 47

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50 Eros e Psique Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 51

Cátia Mourão

EROS E PSIQUE
um vitral gnóstico de Almada Negreiros
52 Eros e Psique

O vitral Eros e Psique foi encomendado a Almada Negreiros para decorar


a biblioteca particular de um amigo intelectual, numa residência
modernista projectada pelo arquitecto António Varela e situada na
Rua de Alcolena (Bairro do Restelo). Adquirido pela Assembleia da
República em 2001, encontra-se actualmente na Residência Oficial
do Presidente daquele órgão representativo e está montado numa
estrutura com iluminação artificial.
O presente estudo constitui um contributo para a análise iconográfica
do vitral e aborda os aspectos subjacentes à sua produção, evidenciando
a forte intervenção do encomendante e a relação simbólica entre a
peça e a casa que originalmente integrou.

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