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Parte I.

Introdução.

Há dois modelos interpretativos sobre a negação do Genocídio Armênio. O


primeiro é o mais comum deles. Ele é e/ou ecoa uma das versões nacionalistas negativas
da negação, que se expressa, também, por meio da denuncia. Produzido e circulado
entre intelectuais da diáspora armênia, ele atravessa as lutas por reconhecimento e
reparação que, além desses próprios intelectuais, tem como sujeitos burocratas
armênios, agentes da diáspora e agentes ligados e/ou vinculados a organizações de
direitos humanos, a organizações internacionais e a instituições da diáspora armênia. As
interpretações que este modelo contém são baseadas na definição genérica da negação,
aquela que trata do fenômeno como o estágio final dos genocídios ou como uma forma
simbólica de atualização do crime original, no presente, por meio de falsificação
ideológica do passado – uma definição declaradamente produzida para as lutas diversas
e transversais por reconhecimento e reparação1.

O outro modelo, menos comum e mais recente, pertence a um campo


relativamente novo dos estudos sobre a política internacional que tem como objetos os
discursos construídos como narrativas sobre o passado. Sua ênfase recai sobre o que
seriam modalidades de discursos com natureza invariável e com princípios e conteúdos
variáveis. Nesse modelo, os conteúdos e os princípios das narrativas existem e variam
segundo a influência de fatores externos (normas internacionais, pressões multilaterais
etc.) e por determinação de fatores internos contingentes (legitimidade,

1
CRIMES against Humanity and Civilization – The Genocide of the Armenians. Brookline: Facing History
and Ourselves, 2004. Resource Book; CHARNY, I. W. Innocent denials of know genocides: a further
contribution to a psychology of denial of genocide. Human Rights Review, vol. 1, n. 3, p. 15-39,
abril/junho de 2002; _____. A classification of denial of the Holocaust and other genocides. Journal of
Genocide Research, vol. 5, n.1, p. 11-31, 2003;______; FROMER, Daphna. Denying the Armenian
Genocide: patterns of thinking as defence-mechanism. Patterns of Prejudice, vol. 32, n.1, 1998, pp. 39-
49; CHURCHILL, W. Denials of the Holocaust. In: CHARNY, I. (Org). Encyclopedia of Genocide. Vol I. Santa
Bárbara: Abc-Clio, 1999, p. 167-174. SMITH, R. Denial of the Armenian Genocide. In: CHARNY, I.
Encyclopedia of Genocide. Vol. 1. Santa Barbara: ABC-Clio, 1999, pp. 161-165; DADRIAN, Vahakn. The
Key Elements int the Turkish Denial of The Armenian Genocide. Cambridge: The Zoryan Institute for
Contemporary Armenian Research and Documentation, 1999; HOVANNISIAN, R. (Org.). Looking
backward, moving forward: confronting the Armenian genocide. New Brunswick: Transaction Books,
231-262; ______ (Org.) The Armenian Genocide. History, Politics, Ethics. Londres: Macmillan, 1992;
______. (Org.) Remembrance and Denial: The case of the Armenian Genocide. Detroit: Wayne State
University Press, 1999. ______. Denial: The Armenian Genocide as a prototype. In: ROTH, J.K.;
MAXWELL, E.; LEVY, M.; WHITWORTH, W. (Orgs.). Remembering for the future. The Holocaust in an Age
of Genocide. Vol. 1. Nova York: Palgrave, 2001, pp. 796-812.
constrangimentos políticos sistêmicos, questões materiais e territoriais etc), i.e., por
meio dos produtos dos cálculos das relações conjunturais entre estruturas e agências2.

Um dos principais proponentes das interpretações que compõem o primeiro


modelo é o historiador Richard G. Hovannisian. É dele a tese de que a negação do
genocídio armênio seria um protótipo da negação. Para ele, por conta de sua história e
de sua natureza extremamente institucionalizada, este caso particular teria se
transformado numa espécie matriz discursiva e programática replicável para qualquer
caso de negação de crimes contra a humanidade, como se da negação do Genocídio
Armênio tivessem derivado tanto as estratégias retóricas produtoras da fraude histórica,
quanto seus fins gerais: o engano e a confusão3.

Um bom exemplar do segundo modelo interpretativo para a negação do


genocídio armênio está em Dark Pasts: Changing the State’s Story in Turkey and in
Japan, de Jennifer Dixon. Nesse trabalho, Dixon compara a mudança dos conteúdos das
versões oficiais elaboradas a posteriori sobre o genocídio armênio e sobre os massacres
e estupros em massa cometidos contra populações chinesas durante a Segunda Guerra
Sino-Japonesa. Ela demonstra como, em cada caso, os processos de transformação dos
conteúdos dessas narrativas oficiais ou histórias (stories) seriam o resultado de
racionalizações resultantes das relações tensas e dinâmicas entre estruturas e
contingências nacionais e internacionais. Para Dixon, em todos os casos, quais e como
sejam seus conteúdos, em quaisquer circunstâncias, essas narrativas seriam um meio de
configurar a concatenação e a sequência de causas e efeitos (storytelling), enfim, de dar
sentido global aos eventos que tomam como objeto4.

As interpretações do primeiro modelo são certamente inspiradas naquelas


que, entre os anos 1980 e 1990, foram realizadas por Nadine Fresco e por Pierre Vidal-
Naquet sobre a negação do Holocausto. Tanto nessas investigações pioneiras, quanto
naquelas sobre a negação do genocídio armênio, os procedimentos são praticamente os
mesmos. Em ambos os casos, os textos e os agentes da negação são examinados para
que se identifique neles a prática e materialização de um tipo de falsificação deliberada,
ideologicamente motivada e executada por meio de recursos retóricos e fraudes
processuais. Pelo caráter dos falsários e da falsificação, essas análises constroem e
2
DIXON, Jennifer M. Dark Pasts: Changing the State’s Story in Turkey and in Japan. Ithaca: Cornel
University Press, 2018.
3
HOVANNISIAN, 2001.
4
DIXON, 2018.
descobrem na negação um objeto em si mesmo, como se a falsificação do passado fosse,
ao mesmo tempo, a natureza e o princípio da negação5.

A segunda interpretação é o resultado de uma análise diferente e que produz


um resultado semelhantemente inverso. Aqui a negação é tomada como uma das
variedades tipológicas dos conteúdos possíveis de uma narrativa oficial posterior sobre
eventos-limite. Ao contrário da primeira interpretação da negação, que inclui em sua
definição as suas diferentes formas discursivas (a relativização, a mitificação, a
banalização, o silêncio etc.), aqui a negação só toma forma através da negativa
categórica – ela só pode ser expressa pela forma radical e pouco lucrativa em termos de
efeitos do “não aconteceu”. Desse modo, em diversas conjunturas, ela pode ser
sobreposta ou atravessada por outros conteúdos e, então, dar sentido global ao passado
por meio de mentiras, é verdade, mas, ainda assim: uma explicação. E uma explicação
oficial, de Estado com “e” maiúsculo6.

Apesar dessas diferenças, em ambas as interpretações o regime de


transformação da negação é o mesmo, ainda que descritos e descobertos de modos
diferentes. No primeiro caso, as estratégias retóricas mudam, variando de acordo com os
produtores individuais da negação, enquanto seus objetivos, fins e princípios e natureza
permanecem relativamente fixos7. No segundo caso, a negação varia para e/ou entre
outros tipos de conteúdos, enquanto seu princípio, por dependência de trajetória (path
dependence) ou por inércia, permanece fixo8.

Em suma, no primeiro tipo de interpretação, essas mudanças acontecem


evolutiva e retrospectivamente entre o silêncio, a negação categórica e a relativização;
na segunda, esse esquema se repete sem o esquema evolutivo e exclusivista, de modo

5
C.f. exemplo: FRESCO, N. Les redresseurs de morts. Chambres à gaz: la bonne nouvelle. Comment on
révise l’histoire. Les Temps Moderns, n. 407, Jun. de 1980; ______. Les “revisionists negateurs de la
Shoah. Anti-Rev [Online]. Disponível em < http://www.anti-rev.org/textes/Fresco90a/> , acessado pela
última vez em 25/10/2018; ______. Rassiner, Paul. In: Maiton, J. (Org.). Dictionaire biografphique du
mouvement ouvrier français. Paris: Les Édtions Ouvrières, 1991; VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da
Memória: Um Eichmann de Papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1988.
6
Dixon fornece uma escala que organiza os conteúdos possíveis dos discursos pós-genocídio em dois
grupos que seguem. Um deles é o grupo (A) dos conteúdos descritivos, em que se sucedem negação,
mitificação, reconhecimento do evento, pelo reconhecimento do dano/declaração de arrependimento,
pela admissão da responsabilidade. O outro é grupo (B) dos conteúdos reparadores, que incluem a
desculpa, a reparação e a comemoração. C.f. Dixon, 2018, p. 14-19.
7
C.f., por exemplo, HOVANISSIAN, 2001.
8
DIXON, pp. 21-31
que são dados como móveis os regimes de sobreposição desses e dos outros conteúdos
que foram as narrativas oficiais na relação entre agências e estruturas9.

Há ainda outro ponto de encontro imprevisto entre essas interpretações –


uma convergência que se liga e se equivale logica ou estruturalmente às outras que
descrevi até aqui. Em ambas há uma continuidade e uma identidade suposta e
inquestionada entre “o Estado” e a negação e/ou narrativa oficial, como se desse sujeito
coletivo universal – “o Estado” - emanassem os conteúdos, as agências e as práticas, a
natureza e o princípio da negação ou das narrativas pós-eventos-limite.

Na primeira, é “o Estado” turco quem sujeita unilateralmente a negação e os


negadores. A negação seria produto do “Estado” onde quer que fosse e como quer fosse.
Diferente da falsificação que dá corpo à negação e que, por isso mesmo, precisa ser
demonstrada e explicada, sua relação unilateral com o estado é geralmente construída
como um dado que se deduz unilateralmente da falsificação e das adesões mais óbvias
dos falsificadores: a negação existe e funciona porque agentes do Estado turco e/ou em
alguma medida pagos ou favorecidos pelo Estado turco fazem-na existir e funcionar
para o Estado Turco como retribuição ou como produto de uma espécie de “trabalho
sujo” comissionado por uma “instituição (naturalmente) corrupta”.10

Na segunda, essa identidade é acentuada, ainda que as valorações adjetivas


sejam substituídas pelo léxico profissional dos politólogos. A derivação direta Estado-
Negação atravessa as relações entre “agências” (os agentes, as agências de estado, as
organizações internacionais) e as estruturas (o próprio estado, as normas internacionais
etc.) na produção e na mediação da narrativa oficial, como quer que seja, quando quer
que seja. Esse atravessamento, por sua vez, se realiza através de uma homologia que,
por meio da descrição esquemática, transforma a derivação direta em equivalências
diretas entre “Estado”/ “Agências de Estado”/ Burocratas/ Intelectuais etc., que, em
todos os casos, são tomados como se fossem uma espécie de sujeito universal da
narrativa que existe fora de relações sociais11.

Neste ponto, para falar como Pierre Bourdieu, ambas as interpretações


reproduzem duas formas de finalismo que, não por acaso e não de qualquer modo, tem

9
Idem; Ibidem.
10
HOVANISSIAN, 2011, DADRIAN, 1999.
11
DIXON, 2018, p. 15 ss.; _______. Defending the Nation? Maintaining Turkey’s Narrative of the
Armenian Genocide. South European Society and Politics, vol. 15, n. 3, Set. 2010, pp. 467-485.
consequências interpretativas negativas. Uma dessas formas de pensamento finalista se
manifesta na crença especializada relativamente comum de os fenômenos do mundo
social acontecem necessariamente segundo um fim, uma finalidade, um destino etc. que,
não raro, é elaborado como pressuposto e não descoberto como resultado do trabalho de
pesquisa. A outra variedade desse pensamento finalista comum a essas interpretações é
aquela que atualiza uma versão genérica do individualismo metodológico, segundo a
qual os agentes individuais, mesmo esses coletivos mas individualmente abstratos como
“o Estado”, calculam suas ações racionalmente e agem estrategicamente perseguindo
fins igualmente estabelecidos desde o início12.

Assim, como consequência dessas variedades do pensamento finalista


especializado que estrutura esses modelos interpretativos, o essencialismo e a
homologia não deixam ver ou não colocam como possibilidade a descrição e a
explicação da diversidade e da complexidade dos espaços sociais, dos sujeitos, das
relações sociais e simbólicas que produzem e reproduzem a negação como uma prática
social de natureza e de efeitos políticos. Aqui a razão finalista se satisfaz com o
pressuposto mais ou menos implícito de que, nesse caso, a negação é a manifestação de
algo como que uma “razão de Estado”.

De modo diferente, com outros referentes, é possível encontrar esses


mesmos tipos de problemas em algumas interpretações sobre a negação do Holocausto.
Nessas interpretações o Estado é substituído pela ideologia. Refiro-me a dois e mais ou
menos importantes exemplares dessa interpretação, que, afinal, variam em relação aos
seus conteúdos, mas são invariantes no seu núcleo. Segundo todas elas, sendo a negação
um produto do antissemitismo, ela é um produto manifesto da ideologia13.

Ainda que essas interpretações não expliquem como a ideologia produz a


negação senão pela sua circularidade tácita que faz da negação mesma um fenômeno
ideológico por transferência contínua (ideologia - negação – ideologia), não é uma
definição genérica da ideologia que informa esse resultado que precisa ser deduzido dos
trabalhos a que me refiro. Duas concepções ou teorias negativas e reducionistas da
ideologia informam esse resultado. E elas fazem igualmente de maneira tácita, como se
os historiadores que produziram essas interpretações antevissem uma comunidade de

12
BOURDIEU, P. O oficial e o privado. In:______. Sobre o Estado: Cursos no College de France (1989-
1992). São Paulo: Cia. Das Letras, 2014, p. 190.
13
sentido entre seus leitores que lhes dispensasse do trabalho de descrição. De todo, modo
trata-se aqui da combinação eclética, para não dizer irrefletida, de uma teoria da
ideologia como um conjunto universal de crenças irracionais com uma teoria da
ideologia como falseamento do mundo.

Primeiro refiro-me à importante interpretação de Deborah Lipstadt, que


reproduz, a seu modo, não só os resultados, mas o modelo das investigações de Pierre
Vidal-Naquet14, integrando-os à um desenvolvimento diacrônico e linear. De todo
modo, e de maneira sumária, a interpretação de Lipstadt se desenvolve de maneira
circular. Segundo ela, a negação do Holocausto consiste no ato de falsificação
ideológica da história e no uso ideológico da falsificação como uma forma atualizada do
anti-semitismo como ideologia15.

Depois, refiro-me à coleção dicionaresca de biográficas de negadores do


Holocausto produzida por Stephen Atkins como uma série contínua de engajamentos
individuais geograficamente distribuídos, individualmente isolados e retrospectivamente
descritos. Por esses meios, Atkins transforma os negadores em ideólogos como que por
passe de mágica, ou melhor, como que pela concretização de um destino coletivo-
singular que, antevisto da soma dos engajamentos ideológicos, resulta inevitavelmente
na negação como prática ideológica. Assim, por adequação lógica, a negação aparece
como princípio, meio e fim ou da ideologia em si mesma, ou dos engajamentos
ideológicos que dão na negação em si mesmos – e aí está reproduzida a circularidade
redundante da interpretação de Lipstadt16.

De todo modo, tanto no caso daquelas interpretações sobre a negação do


genocídio armênio, tanto nessas sobre a negação do Holocausto, ficamos sem saber
como essas trocas simbólicas acontecem. E não simplesmente porque elas são tomadas,
muitas das vezes a priori, como dados. Não se trata também do fato de elas nem serem
consideradas e construídas como variáveis de importância analítica. Antes, essa vaga é
consequência do pressuposto de, na verdade, quando essas relações importam, elas são
descritas de modo como se existissem e funcionassem em um vazio social em que a

14
VIDAL-NAQUET, 1988.
15
LIPSTADT, D. Denying the Holocaust: the growing assault on truth and memory. Nova York: Plume,
1993; _______. History on Trial: my day in court with a Holocaust denier. Nova York: Harper & Collins,
2004;
16
ATKINS, S. Holocaust Denial as an International Movement. Westport: Praeger, 2009.
negação e os negadores existem apenas em função dos fins quase sempre antevistos de
suas ações e dos efeitos de suas ações.

Assim, é como se a negação e os negadores, a natureza, o princípio e o fim


da negação e, portanto, a ação dos negadores, fossem produtos ou imanências de uma
“razão de estado” ou de uma “ideologia” genericamente definidos que, por um lado, em
cada caso, parecem os autorizar e os legitimar negativamente e que, por outro lado,
oferecem o conjunto dos repertórios que não só permitem, mas informam e justificam a
negação, i.e., a falsificação, a dissimulação, a fraude processual, enfim, a mentira.

Nessas interpretações, e intencionalmente, inexiste o universo de relações


sociais posicionais e disposicionais por meio das quais a mentira é produzida,
reproduzida, posta a funcionar e é dotada de sentidos entre disputas por posições, por
objetos, por recursos, por capitais simbólicos, pelos próprios sentidos e usos da mentira,
por projetos, por heranças simbólicas etc., tudo isso entre cooptações, conversões,
consagrações, autorizações, formação de grupos ou quase-grupos, de unidades de ação
em potencial etc.

Com elas, nós sabemos que a mentira sobre o passado tem, na mão dos
negadores, o potencial de transformar o mundo. Mas como ela chega nas mão dos
negadores e é, então dotada desse potencial? Enfim, como a mentira pode ser um
instrumento e um objeto da política? Até agora, as interpretações sobre a negação de
crimes contra a humanidade não ofereceram respostas para este problema. Na verdade,
ofereceram, mas de maneira impressionista, ainda que apresentadas por meio de
raciocínio dedutivo.

Mais uma vez – e eu insisto nesse ponto – essas interpretações não


demonstram como essas relações sociais e simbólicas acontecem delimitando e sendo
delimitadas, instituindo e sendo instituídas em e por espaços sociais de relações
desiguais e tensas, espaços esses que são relativamente autônomos e que, em ambos os
casos, tanto para a negação do genocídio armênio, quanto para a negação do
Holocausto, permitem trânsitos e contatos de agentes intelectuais e políticos entre suas
fronteiras mais ou menos definidas. Por isso, em cada caso, elas abrem espaço e, alguma
medida, conscientemente ou não, acabam produzindo uma certa mistificação da negação
e dos negadores que tem efeitos políticos.
Essas mistificações contribuem para que essas interpretações sejam elas
mesmas transformadas e oferecidas como objetos e instrumentos das disputas pelo
passado ou pelas interpretações do passado que tem a negação e os negadores como
antagonistas essencial e negativamente definidos, tanto em relação aos espaços
institucionais disciplinares e/extra-disciplinares, quanto no espaço público abrangente17
- um expediente que, aliás, neste terreno, foi inaugurado e é amplamente empregado
pelos negadores na produção, na instituição e na projeção de suas auto-imagens.

Assim, a defesa política da verdade que esses trabalhos realizam por meio
de se seus resultados, até agora se contentou com a demonstração da mentira e com o
“desmascaramento” dos falsários. Penso que essas batalhas pela verdade poderiam
encontrar mais munições se elas levassem em conta e demonstrassem quais e como
sistemas de relações, sistemas de classificações, categorias de percepção, hábitos de
pensamento e de ação informam a produção e a instituição política da mentira por meio
de relações sociais e simbólicas entre sujeitos diferentemente posicionados em relação a
esses processos.

Dito de outra forma, a defesa pela verdade do passado de eventos-limites


poderia ser mais efeitiva se seus sujeitos soubessem não só como a mentira é
formalmente construída, mas como ela é dotada e faz sentido politico. As interpretações
que até agora alimentaram e tomam parte dessas disputas pela verdade, descobriram a
mentira e os mentirosos, mas não viram na mentira uma prática social capaz de dar
sentido ao mundo de certos agentes e, assim, de criar unidades de ação em potencial nas
lutas simbólicas e, portanto, mais uma vez, políticas pela definição do mundo.

Este trabalho não tem o objetivo de questionar outra vez a falsidade do texto
negacionista, nem no caso do genocídio Armênio, nem no caso do Holocausto. Não se
trata também de suspender os lugares e os papeis da Turquia, para um caso, e da
extrema-direita do pós-guerra, para outro. Trata-se antes, de devolver essas práticas e
sujeitos a seus universos sociais, situá-los em suas conjunturas e processos de
desenvolvimento, e, usando a comparação como um instrumento de controle de dados,
explicar se, como e em que medida eles se assemelham e se diferenciam.

Nessa parte do trabalho, e para os fins deste exame de qualificação, trata-se,


antes, formular e começar a oferecer respostas para as seguintes questões: quais são os

17
Um caso paradigmático é o do julgamento Irving vs. Penguin Books. Sobre isso, c.f.: Lipstadt, 2004;
espaços sociais da negação do Genocídio Armênio? Quais são os do Holocausto? Como
eles se constituíram em relação à negação? Em que e como se eles se assemelham e se
diferenciam nesse processo?

Nos dois capítulos que seguem como duas monografias, tratarei de


momentos particulares dos processos de formação dos espaços sociais e da negação do
genocídio Armênio e do Holocausto. Este texto deve integrar a Parte 1 da tese. Os
limites temporais da análise que o material sistematiza e apresenta se estendem entre
aos anos 1950 e 1980, um espaço temporal que, em ambos os casos, permite a
explicação e a comparação dos processos sócio-genéticos da formação desses espaços
sociais ou campos e das práticas que os constituíram e foram constituídas por eles.

Demonstrarei a hipótese de que esses campos foram, em cada caso,


constituídos por e em torno de disputas que tomam a mentira sobre o passado como
objeto e instrumento das lutas pelas definições das fronteiras do mundo social, i.e., lutas
por valores, por visões de mundo de mundo, por hábitos de pensamento, por repertórios
intelectuais, por relações e por posições. Em todos os casos, agentes tomam parte dessas
lutas que têm nas instituições o seu meio e o seu motor, quer dizer, as instituições são
tanto os lugares onde se luta pela definição da mentira, pelos sentidos e pelos usos
políticos da mentira, quanto os lugares onde, por meio de relações mais ou menos tensas
e sempre posicionadas, se constrói e se usa a mentira para as disputas políticas no
espaço público englobante.

No caso da negação do genocídio armênio, esses processos se dão entre


relações entre burocratas, intelectuais e agentes de instituições do estado e da diáspora
turca. No caso da negação do Holocausto, trata-se de redes em potencial, associações,
organizações, editoras etc. que formam uma espécie de subcampo intelectual composto
por sujeitos e práticas de diferentes campos da extrema-direita do pós- II Guerra
Mundial.
Capítulo 1 – “A questão armênia”.

I- Em 1988 apareceu na Turquia uma tradução para o inglês de um livro que havia sido
originalmente publicado em 1950. Tratava-se The Armenians in History and the History
of the Armenian Question (Os armênios na história e a história da Questão Armênia,
sem tradução para o português), baseada na segunda e expandida edição de Tarihte
Ermeniler ve Ermeni meselesi, de Esat Uras, em 198718.

Ambas, segunda edição e tradução, foram o produto da cooperação entre


intelectuais e burocratas ligados a agências do estado turco. A segunda edição e a
tradução foram editadas por Tulay Duran, uma historiadora que, nesse período, como
editora e burocrata, tomou parte de um relativamente vasto trabalho de
reposicionamento da história do Império Otomano e de produção de monumentos para
turismo histórico voltado para um público internacional 19. O texto da tradução foi
18
URAS, Esat. Tarihte Ermeniler ve Ermeni meselesi. Ankara: Yeni Matbaa; Belge, 1951 (1987); ______.
The Armenians in History and the History of the Armenian Question. Ankara: Documentary Publications,
1988. Trad. Süheyla Artemel. A segunda edição, matriz da tradução para o inglês, é uma edição
estendida. Ela conta com um prefácio do autor e com o texto originais traduzido para o inglês, mais uma
introdução. A versão do texto transformada em fonte para esta pesquisa é uma edição digitalizada da
tradução para o inglês, que mantêm a estrutura da segunda edição. Entretanto, ela não contém a
introdução que, ao que tudo indica, enquadra o conteúdo do livro em uma história do que seria o
terrorismo armênio. Em fichas catalográficas de bibliotecas que contém as versões físicas e/ou
digitalizadas dos livros, nas fichas do Google Books e em resenhas, essa introdução à segunda edição e à
tradução é creditada a Cengiz Kürşat. C.f, por exemplo: CATALOG. Item DS175 .U713. Library of Congress
[Online]. Disponível em < https://catalog.loc.gov/vwebv/holdingsInfo?
searchId=17848&recCount=25&recPointer=2&bibId=3420380>, acessado pela última vez em
14/02/2021; JOSIAH. Item DS175 .U713. Brown University Library Catalog [Online]. Disponível em <
http://josiah.brown.edu/search~S7/o?SEARCH=ocm21597807>; WALKER, Christopher J. The Armenians
in History and the Armenian Question. By Esat Uras. An English translation of the revised and expanded
second edition, pp. Xiv-1048. Ankara, Documentary Publications, 1988. Journal of the Royal Asiatic
Society of Great Britain and Ireland, n.122, vol. 1, 1990, pp. 165-170. Resenha; SONYEL, Salahi R. The
Armenians in History and the Armenian Question. Journal of Islamic Studies, vol 1, pp. 174-176, 1990.
Resenha.
19
Tulay Duran graduou-se e doutorou-se em História pela Universidade de Istambul entre os anos 1960
e 1970. Ela foi professora assistente nessa mesma universidade até meados dos anos 1980, quando
passou a ocupar uma posição no Ministério da Cultura e do Turismo da Turquia. Duran foi também
professora do Departamento de História da Universidade de Bogazici, por onde se aposentou. Além
disso, desde 1993, ela dirige uma organização educacional nacionalista turcomenistã, a Fundação Ayaz
Tahir Turkistan. Por meio dessa instituição, Duran produz e participa de eventos de divulgação histórica
e história pública e, entre outros programas, financia pesquisas e estudos em nível de graduação e pós-
graduação por meio de bolsas de estudos. Em uma homenagem a seu orientador e em protesto contra a
remoção do busto do mesmo em uma universidade russa, Duran falou sobre sua formação e sua carreira
em uma palestra que foi transformada em artigo publicado em um portal nacionalista de grande
audiência, c.f.: HABERINIZ. Ord. Prof. Dr. Zeki Velidi Togan’ın büstünün kaldırılmasına yönelik protestolar
devam ediyor. [Online] Haberiniz, 08/02/2021. Disponível em < https://haberiniz.com.tr/dunya/ord-
prof-dr-zeki-velidi-toganin-bustunun-kaldirilmasina-yonelik-protestolar-devam-ediyor-08022021>;
acessado pela última vez em 10/02/2021. Nesse mesmo portal há noticias sobre as atividades realizadas
preparado por Süheyla Artemel (1930-2018), uma figura relativamente destacada entre
os círculos intelectuais universitários e nacionalistas de Istanbul20.

A segunda edição expandida de Tarihte Ermeniler... foi lançada em uma


edição de luxo como item de uma série comemorativa dos 50 anos da República Turca.
O material, que foi publicado por uma prestigiosa editora nacionalista sem ligações
formais com instituições do governo turco, foi preparado e encomendado por Duran por
meio da Divisão de Pesquisa e Publicações Históricas da Fundação para o
Estabelecimento e Promoção dos Centros de Pesquisa Histórica e Documentação,
órgãos do Ministério da Cultura e do Turismo. A não ser pela casa editora, o mesmo
aconteceu com a tradução de Artemel para Tarihte Ermeniler..., que foi publicada,
também em um volume de luxo, pelo selo editorial especializado em publicações em
inglês do Centro de Pesquisa de Instambul, também uma autarquia do Ministério da
Cultura e do Turismo da República da Turquia21.

Artemel era professora de Inglês e de Literatura Comparada na


Universidade de Bogazici quando trabalhou na produção de Armenians in History...22.
Nesse mesmo período, entre meados e finais da década de 1980, ela realizou outros
trabalhos para o MCT. Além da tradução do livro de Uras, ela traduziu para o inglês
por Duran por meio da Fundação Ayaz Tahir Turkistan, c.f: KURBAN, Roza. Millet Anaları. [Online]
Haberiniz, 13/12/2019. Disponível em < https://haberiniz.com.tr/kose-yazilari/millet-analari-13122019>,
acessado pela última vez em 10/02/2021. Um outro portal nacionalista notícia a ocasião em que Duran
recebeu da direção do Rotary Clube um prêmio por reconhecimento profissional. C.f.: TOPPRAKAYA,
Kadir. Tülay Duran ve Sedat Öztoprak’a Rotary Üstün Hizmet Ödülü. [Online] Anadolu Yakasi,
02/03/2016. Disponível em <https://www.anadoluyakasi.net/tulay-duran-ve-sedat-oztopraka-rotary-
ustun-hizmet-odulu/> , acessado pela última vez em em 10/02/2021.
20
Ver nota 22.
21
C.f. Uras, 1988, p. 1-5.
22
Süheyla Artemel graduou-se pelo Departamento de Língua e Literatura Inglesa da Universidade de
Istambul e obteve seu doutorado pela Universidade Durhan, na Inglaterra, em 1966. Logo após o
doutoramento, Artemel ingressou no magistério superior como professora na Universidade de Bogazici,
de onde se aposentou em 1997. Depois de sua aposentadoria, ela passou a integrar o quadro da
Universidade Yeditepe, uma instituição fundada e gerenciada por meio de uma fundação privada e
nacionalista. O moto da Universidade Yeditepe evoca o nacionalismo kemalista, sendo informado por
valores seculares e modernizantes; por meio dele, a universidade é identificada como “a Universidade
que continua o renascimento de Ataturk”. Artemel fundou e foi chefe o Departamento de Língua e
Literatura Inglesa e foi diretora da Faculdade de Artes e Ciências da instituição. Depois de sua morte, ela
foi homenageada com uma série de conferências que leva seu nome. C.f. obituário escrito por Martin
Vialon, professor da Universidade de Yeditepe, publicado no sítio eletrônico do jornal diário BirGün:
VIALON, Martin. Süheyla Artemel, bir Türk hümanisti gitti. BirGun, 12/05/2018. Disponível em <
https://www.birgun.net/haber/suheyla-artemel-bir-turk-humanisti-gitti-215572?>, acessado pela última
vez em 12/10/2020 [tradução: Google Tradutor]. Em 2018, professoras e um doutorando da
Universidade de Bogazici organizaram Festschrift em homenagem à Artemel. A coletânea foi publicada
em uma edição bilíngue pela editora da Universidade de Bogazici. C.f.: BURÇOGLU, Nedret Kuran;
TEKINAY, Asli; YAZICIOGLU, Ozlem O; SARIAKA, Cafer (Orgs.). Profesör Süheyla Artemel' e Armağan;
Tribute to Professor Suheyla Artemel. Istambul: Boğaziçi Üniversitesi Matbaasında Basılmıştır, 2019.
uma coleção de trabalhos de natureza institucional que, aparentemente, visava a
promoção de turismo histórico na Turquia23.

Duran, ao contrário, era funcionária com posição executiva na Divisão de


Pesquisa e Publicações Históricas. Do seu posto, quando Armenians in History... saiu,
ela já havia publicado e coordenado a edição de volumes de uma monumental História
do Império Otomano, de biografias dinásticas de sultões, de histórias regionais, etc.,
quase todos publicados em turco e em inglês pela mesma divisão do Ministério da
Cultura e do Turismo. Seu trabalho e seus trânsitos entre as elites intelectuais e
burocratas nacionalistas turcas lhe garantiram uma posição como professora no
Departamento de História da Universidade de Bogazici. Em meados dos anos 2000, ela
deixou a universidade com uma aposentadoria para se dedicar à presidência de uma
aparentemente bem financiada organização nacionalista turcomenistã. Nesse período,
ela ainda era presença ad hoc em projetos da Divisão de Pesquisa e Publicações
Históricas do MCT, fosse coordenando a edição de atlas históricos e geográficos, fosse
preparando a edição de artigos, coletâneas, livros, coleções documentais, etc24.

Quando Duran e Artemel trabalharam na segunda edição e na tradução de


The Armenians in History..., o autor do livro original já havia falecido há pelo menos 30
anos. Tarihte Ermelier... foi um produto tardio da carreira de Uras, que foi um
destacado burocrata e político no Império Otomano e na República da Turquia.

Uras graduou-se em Ciência Política pela Universidade Ankara, entre o final


do século XIX e o início do século XX. Nesse período de sua formação, a Faculdade de
Ciências Políticas era, ao mesmo tempo, um centro formador de elites civis turcas para
o serviço público do Império Otomano em modernização e um espaço de sociabilidade
entre jovens nacionalistas que integrariam o governo do Comitê para União e Progresso
(CUP) e que, mais tarde, se tornariam destacados agentes da República da Turquia25.
23
Me refiro à coleção Ottoman Empire in Drawnings, publica em cinco volumes entre 1985 e 1988. C.f.:
MINISTRY of Culture and Tourism. Ottoman Empire in Drawings. Ankara; Istambul: Historical Research
Foundation; Istanbul Research Center, 1985, 1988. [ 5 Volumes]. Trad.: Süheyla Artemel.
24
C.f., por exemplo: DURAN, Tuley. Padisah Portreleri: Portraits of Ottoman Empire’s Sultans. Istambul:
The Historical Research Foundation, 1999. Vol 1. _______. (Ed.) The Ottoman Empire in the Reign of
Suleyman the Magnificent. Istambul: The Historical Research Foundation, 1988. C.f. também: HAZAI,
Gyorgy. (Org.). Archivum Ottomanicum XIII (1993-1994). Vol. 13. Wiesbaden: Harrassowitz, 1994, p. 119.
25
C.f.: FOSS, Clive. The Turkish View of Armenian History: a vanishing Nation. In: HOVANNISIAN, Richard
G. (Org.). The Armenian Genocide: History, Politics. Londres: MacMillan, 1992, p. 258, Cap. 11;
BLOXHAM, Donald. The Great Game of Genocide: Imperialism, Nationalism, and the Destruction of the
Ottoman Armenians. Nova York: Oxford University Press, 2005, p. 213; SUNY, Roald Grigor. Writing the
Genocide: The Fate of the Ottoman Armenians. In: SUNY, R.G.; GOÇEK, Fatma Muge; NAIMARK, Norman
M. A question of Genocide: Armenians and Turks at the end of the Ottoman Empire. Nova York: Oxford
Como muitos de seus pares contemporâneos, Uras ingressou no serviço
público no governo do CUP na fase final do cataclismo do Império Otomano, nos anos
imediatamente anteriores à I Guerra Mundial. Durante esse período, ele serviu como
administrador de província, foi diretor do serviço policial de inteligência, ocupou a
chefia do Diretório Geral para Tribos e Imigrantes (General Directorate for Tribes and
Immigrants - Aşâir ve Muhacirîn Müdüriyet-i Umûmiyesi) - uma agência do Ministério
do Interior criada para tratar das minorias étnicas do Império Otomano, por meio da
qual foram executados e coordenados as deportações e os massacres contra populações
armênias, gregas, curdas, entre outras. Nos anos finais do Império, durante a Guerra de
Independência Turca, Uras também foi, também, presidente de província26.

Da posição de chefe do Diretório Geral para Imigrantes e Tribos, Uras


coordenou a produção de um relatório que justificava o tratamento do governo unionista
às minorias. Esse relatório alegava que as deportações de armênios da Anatólia teriam
sido um instrumento de defesa contra supostas insurgências, um modo de mitigar uma
espécie de quinta-colunismo de grupos nacionalistas conspirados com o Império Russo
e com potências ocidentais, como o Reino Unido e a França, contra o governo o
governo do CUP e contra o Império Otomano27.

Com a instituição da república, Uras foi preso e, depois, acolhido entre as


elites kemalistas. Ele foi deputado do parlamento durante quase todo o período do
sistema unipartidário, ocupou cargos executivos regionais e foi membro vitalício da
importante Sociedade Histórica Turca, fundada pelo próprio presidente Mustafa Kemal
Ataturk a partir da dissolução de uma igualmente importante organização intelectual
nacionalista, em 1931, como um dos centros de produção e a mediação dos discursos
históricos nacionais. Tudo indica que quando começou a trabalhar em Tarihte
Ermeniler, Uras já havia se afastado da vida pública28.

University Press, 2011, p. 21; GOÇEK, F.M. Reading the Genocide: Turkish Historiography on 1915. In:
Idem, pp. 47-49. UNGOR, Ugur Umit. Turkey for the Turks: Demographic Engineering in Eastern Anatolia
1914-1945. In: Ibdem, p. 296; MAMIGONIAN, Marc A. Academic Denial of the Armenian Genocide in
American Scholarship: Denialism as Manufactured Controversy. Genocide Stduies International, n. 9, vol.
1, 2015, pp. 61-82; KALIGIAN, Dirkan. Anatomy of Denial: Manipulating Sources and Manufacturing a
Rebellion. Genocide Studies International, n. 8, vol. 2, 2014, pp. 208-223. GURPINAR, Dogan. The
Manufacturing of denial: the making of the Turkish ‘official thesis’ on the Armenian Genocide Between
1974 and 1990. Journal of Balkan and Near Eeastern Studies, vol. 18, n. 3, 2016, pp. 217-240.; ARAI,
Masami. Turkish Nationalism in the Young Turk Era. Lieden: E.J. Brill, 1992, pp. 1-6.
26
Idem.
27
UNGOR, 2011, p. 296; GÜRPINAR, 2016, p. 219-220.
28
C.f.: KALIGMAN, 2014, p. 210; GÜRPINAR, 2016, p. 219.
De todo modo, ainda que as circunstâncias de produção de Tarihte
Ermeniler... sejam variáveis importantes e aqui estejam elaboradas como resultado de
pensamento dedutivo, o que interessa nesta análise é o que significa e o que se realiza
por meio da tradução preparada por Artemel e Duran. Devo demonstrar que The
Armenians in History... é um dos resultados de uma das etapas da mobilização de
esforços institucionais através do recrutamento de intelectuais e burocratas para a
ressignificação pública do passado turco-otomano de maneira ampla. Trata-se de um
processo polissêmico e polivalente, que se direciona desde à restauração de
monumentos e à promoção de turismo histórico até a organização e de arquivos. The
Armenians in History... é um capítulo desse processo. E não de qualquer forma: ele foi
produzido e oferecido como um meio de mitigar e de responder negativamente as
demandas igualmente institucionalizadas de agentes da diáspora armênia por
reconhecimento e reparação.

Com The Armenian in History..., por meio de uma versão nacionalista de


uma história do passado turco-otomano, cria-se uma continuidade, ou melhor, uma
homologia negativa entre as demandas nacionalistas armênias por autonomia do
Império Otomano entre meados do século XIX e o início do século XX e as demandas
por reparação que começaram a tomar corpo em meados dos anos 1970.

Aqui, a chamada Questão Armênia deixa de ser apenas um episódio do


cataclismo otomano. Ela se torna a secular saga de conspirações, difamações e
antagonismos violentos “dos armênios” contra “os turcos”. Uma saga que, então, passa
a incorporar a palavra cujo o valor semântico é significativo em termos de efeitos
políticos contra a República Turca: o genocídio.

II. The Armenians in History... é um título justo ao seu conteúdo. Trata-se de um


material estruturado em cinco partes que se seguem diacronicamente: I) Background
(Antecedentes); II) Reform and the Armenian Question (Reformas e a Questão
Armênia); III) Political Committees and Revolts (Organizações Políticas e Rebeliões);
IV) From 1908 to the end of First World War (De 1908 até a o final da Primeira Guerra
Mundial); e V) Peace, Sévres and Lausanne Treats (Tratados de Paz, de Sévres e
Lusanne) 29.
29
Refiro-me a URAS, 1988, em que as partes são organizadas segundo a seguinte paginação: Parte I, pp.
225-366; Parte II, pp.369-668; Parte III, pp. 671-829; Parte IV, pp. 833-1028. Quando me refiro às partes
Na primeira parte, o livro apresenta as formas pelas quais “os armênios”
teriam “aparecido na história”. Com isso, o volume não só situa, mas também constrói
“os armênios” como unidade singular e coletiva, negativa e essencialmente definida no
tempo e no espaço. Nesse estágio, isso se faz pela descrição do que seriam “as fontes da
história armênia”: um catálogo de historiadores fraudulentos e/ou interessados e uma
coleção de mitos fundacionais e histórias falsas30.

Ainda nessa parte, a partir dessas histórias e contra elas, são derivados
dados sobre a geografia, sobre a população, sobre a etnologia, sobre a língua, sobre a
literatura, sobre as crenças e, entre outras coisas, sobre a política armênia entre a
antiguidade e o período pré-otomano. Com a apresentação desses dados, demonstra-se a
ideia que “os armênios” seriam essa unidade singular e negativa que começou a ser
elaborada com o catálogo dos mitos armênios anteriormente listados31.

Assim, “os armênios” aparecem como se não tivessem uma história, como
se não tivessem um território originário e, por consequência, como se jamais pudessem
formar uma nação legítima. A verdadeira história “dos armênios”, de acordo com a
tradução do livro de Uras, seria a de um povo errante, indistinto, indefinido, sem uma
cultura, sem uma raça, sem uma língua e sem uma população concentrada. Por isso
mesmo, a história “dos armênios” teria sido desde sempre a história de objetos de
dominação, nunca a de sujeitos autônomos de um destino unitário32.

Na tradução do livro de Uras, é essa visão que fundamenta a explicação das


origens, dos desenvolvimentos e das consequências da “Questão Armênia” - como ficou
conhecido o conjunto diverso das disputas de armênios por autonomia entre meados do
século XIX e o início do século XX, nas conjunturas de reformas e de crises do Império
Otomano. A história dessa “Questão Armênia” ocupa as quatro e mais substantivas

do texto em sua integralidade, refiro-me a esta paginação. Esta edição conta ainda com uma longa
introdução em que se apresenta uma história do que seria o terrorismo armênio. A edição digital
transformada em fonte para esta pesquisa foi acessada por meio de um repositório digital do
Departamento de História da Universidade de Louisville e não contém essa parte do texto, apenas a o
prefácio e o texto de Uras traduzido d. Segundo fichas catalográficas disponíveis em bibliotecas onde
existem depositados o volume integral da segunda edição (URAS, 1987) e/ou da tradução
Ela é composta pelo prefácio do autor e pelo texto original de Uras traduzido da segunda edição (Uras,
1987), sem a introdução que, em fichas catalográficas . Dessa forma, o livro pode ser acessado em <
http://louisville.edu/a-s/history/turks/the_armenians_in_history.pdf>. Por limitações linguísticas, por
incapacidade de acesso à edição integral impressa e por adequação ao problema, apenas esta edição
tradução é fonte desta pesquisa.
30
Idem., pp.,225-308.
31
Idem., pp. 309-366.
32
Ibidem.
partes subsequentes de The Armenians in History... Ela é contada, sobretudo, por meio
de transcrições de documentos diversos e especialmente distribuídos. Textos legais,
correspondências diplomáticas, documentos administrativos, programas políticos etc.,
são dispostos e organizados de modo a dar sentido a uma cadeia de desenvolvimentos.
Além disso, eles são dados a ler como se fossem autossuficientes na descrição dos fatos
da história da “Questão Armênia”, cabendo ao autor, em muitos dos casos, apenas
comentários contextualizadores.

Por meio de documentos transcritos e notas, nessas partes do livro, a história


da chamada “Questão Armênia” acontece, então, em três grades quadros de eventos que
se sucedem diacronicamente marcados e retrospectivamente descritos em relação às
conjunturas de crise do Império Otomano. Passo a descrevê-los sumariamente.

No primeiro quadro, “os armênios” viviam relativamente em estado de paz,


prosperidade, representação e favor com o domínio do Império Otomano. Essa situação
segue até que, em meados do século XIX, demandas por autonomia não satisfeitas
aparecem e logo se cristalizaram. Ideias e programas radicais teriam, então, começado a
circular entre armênios turcos (otomanos) por intermédio de aventureiros interessados,
de associações nacionalistas subversivas e de armênios russos a serviço do Império
Rússo. Nesse momento, e até o início da I Guerra Mundial, as elites armênias teriam
feito um jogo duplo. Enquanto sinalizavam adesão às reformas que lhes concediam
autonomia, elas teriam agido nacional e internacionalmente por meio de propaganda,
conspiração e revoltas. Essas manifestações marcam uma variação do padrão previsível
do quinta-colunismo armênio, agora integrado às manifestações de outras minorias
rebeldes e às ações do Império Russo, da França e do Reino Unido contra a integridade
territorial e autonomia do Império Otomano33.

A seguir, trata-se especificamente do período que vai da instauração do


governo do Comitê para União e Progresso (CUP), em 1908, até o fim da I Guerra
Mundial. Nesse período, depois de uma aparente pacificação consequente à instituição
da Constituição de 1908, as movimentações por autonomia e as hostilidades se
radicalizam, primeiro, incentivadas pela Guerra dos Balcãs (1912-193), e, depois, pela
entrada do Império Otomano na I Guerra Mundial. Nessa conjuntura, representantes das

33
Idem, pp. 369-829.
associações nacionalistas e das elites armênias começam a se armar, a se organizar e a
recrutar mais adeptos entre as províncias otomanas34.

Durante a Guerra, armênios russos e otomanos formam milícias, promovem


revoltas regionais e motins, lutam ao lado do Império Russo e conspiram com as
potências europeias contra o Império Otomano. As sublevações armênias, contra as
quais as forças otomanas reagem pontualmente, instauram um cenário de uma guerra
civil paralela, agravando o estado de guerra total e enfraquecendo irremediavelmente a
administração otomana, que, mesmo assim, depois da dispersão das tropas russas do
Cáucaso por conta da Revolução de 1917, dá continuidade às campanhas militares e às
negociações pela retomada dos territórios sequestrados até o rendimento ou a dispersão
dos revoltosos, o que ocorre em 1918, quando uma coalisão nacionalista formou, pela
primeira vez e com reconhecimento otomano, uma República Armênia35.

Por fim, há o terceiro quadro de eventos. Aqui as demandas armênias por


território otomano continuam. Apesar dos termos de 1918, as disputas avançam entre os
processos que dão na Conferência de Paz de 1919, no Tratado de Sevres e no Tratado de
Lousanne. Integram esse quadro a intervenção dos países Aliados sobre o Império
Otomano - que experimenta nesse período a sua crise final -, a criação definitiva de um
estado armênio integrado à União Soviética como República Socialista Soviética da
Armênia, o avanço do movimento republicano e a Guerra de Independência Turca36.

Nessa história, não por óbvio, os os massacres e as deportações de 1915-


1918 que configuram o genocídio não existem enquanto como tais. Da mesma forma e
por isso mesmo, por meio de um recurso de coesão semântica que adequa
negativamente as causas e as consequências, deixam de existir os processos dos
Tribunais Militares Especiais Otomanos que, entre 1919-1922, trataram dos crimes de
membros de Comitê para a União e Progresso durante a I Guerra Mundial. Ainda que as
cortes marciais tenham produzido mais efeitos políticos do que retributivos, sua
ausência nessa história da “Questão Armênia” é significativa37.
34
Idem, pp. 833-841.
35
Idem., p. 841-914.
36
Idem., p. 917-1021.
37
Os tribunais foram instituídos em 1919 com o objetivo declarado de tratar dos crimes dos oficiais
otomanos contra as populações armênias do império. Eles funcionaram até 1922, quando foram
abandonados na conjuntura final do cataclismo otomano, entre a ocupação dos Aliados, o
fortalecimento do movimento Kemalista e a Guerra de Independência Turca. As cortes marciais
serviram, antes de mais nada, como um recurso para um expurgo simbólico de agentes destacados do
governo do Comitê para União e Progresso e para aplacar as demandas punitivistas dos Aliados,
1915 é tratado, de fato, como o começo de um período catastrófico para "os
armênios" na tradução do livro de Uras. Mas as deportações são tidas como
“realocações” e “emigrações”. E mais, ainda: as catástrofes que se seguem no período
não teriam sido o resultado de ações turco-otomanas. Ao contrário, "os armênios"
teriam sido ingenuamente os responsáveis por suas próprias tragédias. Os ditos
movimentos populacionais e a violência teriam sido o resultado inesperado da política
de expansão do Império Russo. Sem saber, enquanto conspiravam com representantes
do governo russo, “os armênios” teriam se oferecido como objeto de manipulação e
instrumento que permitiria a ocupação da Anatólia. Assim, ao invés de garantir que as
regiões onde populações armênias viviam fossem asseguradas e oportunamente
integradas a um estado armênio autônomo, os exércitos russos teriam avançado sobre
elas, deixando-as em estado de terra arrasada, forçando as “emigrações” e “realocações”
para construir uma “Armênia sem armênios”38.

De todo modo, os crimes dos agentes do CUP ou a denúncia deles – exceto


pelos procedimentos dos Tribunais Militares Especiais, que não existem em The
Armenians in History... - não poderiam existir senão como propaganda anti-turca. E é
assim que eles são tratados na parte final do livro. Quando se trata do período
imediatamente após a I Guerra Mundial, as denúncias aparecem como “ataques e
insultos de ativistas políticos armênios, como “declarações infundadas feitas por
pessoas traiçoeiras e tolas”, como alegações “não só intoleráveis, mas que haviam
causado feridas” no “sentimento de orgulho nacional e dignidade” turco, como “parte de
um plano (design) mal-intencionado para incriminar a administração e o governo
anterior” – exatamente o CUP – e como “evidência forçada contra o Império
Otomano”39. Mais tarde, nas conjunturas entre a Conferência de Paris de 1919 e a
assinatura dos Tratados de Sèvres e de Lausanne, as deportações e massacres de

sobretudo do Reino Unido, que tinha interesses geopolíticos com o desmonte do Império Otomano. Por
isso, também, elas produziram provas, julgaram responsáveis e condenaram alguns militares e
burocratas do Comitê para União e Progresso pelos crimes contra populações armênias-otomanas, sem
produzir feitos retributivos significativos. Logo depois, com a instauração da República Turca, a própria
instituição das cortes marciais e os resultados dos processos funcionaram como um dos marcos
genéticos do novo estado. Sobre os processos, c.f: DADRIAN, Vahakn N.; AKÇAM, Taner. Judegment at
Istanbul: The Armenian Genocide Trials. Nova York; Oxford: Berghan Books, 2001; BALINT, Jennifer. The
Ottoman Stete Special Military Tribunal for the Genocide of the Armenians: ‘Doing Government
Business’. In: HELLER, Kevin Jon; SIMPSON, Gerry. The Hidden Histories of War Crimes Trials. Nova York:
Oxford University Press, 2013, pp. 77-100. Cap. 4.
38
Idem., pp. 855 -903.
39
Idem, pp. 879-883, 918, 943-954, 958.
armênios aparecem como justificativa e propaganda anti-turca para a criação de um
estado armênio autônomo no território Otomano, entre a Anatólia e a Cicília40.

Essa história da Questão Armênia é atravessada por revoltas, rebeliões e


conspirações “dos armênios” com a Rússia Imperial ou Soviética e/ou com as potências
europeias. De todo modo, ela é uma história de eventos que se definem contra “os
turcos”, ou, o que dá mesmo, já que se trata de variações léxicas com mesmo conteúdo
semântico, contra “a Turquia”, contra “o Império Otomano” ou contra “a Anatólia”.

Em linhas gerais, o que se tem é uma história de conspirações e de


decadência. Conspirações por parte dos armênios, do Império Russo e das potências
ocidentais; decadência do Império Otomano, que teria sido incapaz de resistir às
pressões internas e externas e de implementar de modo eficaz as reformas que poderiam
ter resolvido os problemas das minorias e, com isso, preservado sua integridade.

Mas essa não é a única história que se conta aqui. Na verdade, por meio dela
se conta outra. Considerando o conteúdo das cinco partes do livro, o que se lê é uma
história “dos turcos”, ou, o que dá no mesmo, da República Turca, cuja instituição
coincide não só com o marco final e resoluto da história que se constrói e com o fim do
livro, mas com um destino: com a realização de um devir que se materializa com a
instituição do estado Turco como continuidade regeneradora do Império Otomano41.

A ideia de que o passado ou um passado comum é uma das condições para


que uma nação exista como unidade atravessa e dá sentido à ordem dos conteúdos
diversos dessa história. Ela supõe que esse um passado comum seria aquilo que, antes
de tudo, legitima a existência de um povo enquanto nação e de uma nação enquanto
estado-território. E é ela que informa a lógica do jogo entre ausências e presenças
reproduzido no par semântico oposto “os turcos”/os armênios” que sustenta e marca a
história que se conta por meio do texto de Uras: o que é negativo em um, é positivo em
outro; o que falta em um, existe natural e intrinsecamente em outro42.

40
Idem. pp. 924-925, 943-949, 951-958, 965-970, 976-977, 992-999.
41
Essa imagem ambígua do passado otomano em relação à república era regular e instituída entre
círculos nacionalistas do período. C.f.: GÜRPINAR, Dogan. From ‘renewal and regeneration’ to ‘decline
and collapse’: the rise and fall of Tanzimat (1830-1950). In:______. Ottoman/Turkish visions of the
Nation, 1980-1950. Nova York: Palgrave Macmillan, 2013, pp. 164-190.
42
Sobre essa definição negativa do nacionalismo turco kemalista em relação às minorias étnicas e
religiosas na Anatólia, c.f.: CAGAPTAY, Soner. Islam, Secularism and Nationalism in Modern Turkey: who
is a Turk. Nova York: Routledge, 2006.
Não há indícios de que Uras tenha sido comissionado para produzir o material
original de The Armenians in History. Ele certamente era portador de títulos e posições
que o autorizavam à empreitada. Ele havia participado da execução do genocídio como
alto burocrata do império e era bem integrado às elites kemalistas. Mas não é a partir
dessas posições que Uras, por meio de sua tradutora, conta essa história43.

Aqui ele não é oferecido como testemunha, nem como o propositor de uma
interpretação alternativa para os fatos da “Questão Armênia”. O que a tradução faz com
o material de Uras depende do recurso ao discurso neutro e descritivo, referencial e
referenciado, da seleção de documentos que ele transcreve e organiza, da forma como
esses documentos integram o discurso, da ordem retrospectiva dos fatos como cadeia de
causas e consequências, etc. Enfim, a “Questão Armênia” é tratada aqui por um sujeito
que recorre e mobiliza a retórica especializada do cientista político nacionalista, não a
do burocrata, menos ainda a do criminoso evasor.

É possível, ainda, que, ao contrário do que sugere a historiografia, a evasão de


responsabilidade pelo crime não tenha sido a única intenção44. Talvez ela sequer tenha
existido para Uras. É verdade que a inexistência do extermínio no livro parece ser
adequada a um expediente retórico que caracteriza a negação: se não há crime, não há
responsabilidade – variável que não é nada desprezível analiticamente. Mas seria
preciso relativizar essa explicação, ou coloca-la em perspectiva, já que qualquer que
tenha sido a intenção de Uras, ela deve ter sido plural e contingente – portanto, em uma
situação distinta daquela em que a tradução para o inglês foi publicada em uma edição
de luxo, 38 depois da publicação original de Tarihte Ermelier....

A questão da culpa ou da evasão da culpa não tem lugar aqui. E muito


provavelmente, essa ausência não se trata de um não-dito. Os julgamentos e a
condenação de alguns dos integrantes do governo otomano do CUP pelos crimes de
1915, entre os quais Uras não se encontrava como réu – ele foi preso pelos republicanos
na posição de governador de província e por isso mesmo -, serviram menos para

43
C.f.: GOÇEK, F.M. Reconstructing the Turkish Historiography on the Armenian Massacres and Deaths
of 1915. In: HOVANNISIAN, R. G. (Org.) Confronting the Armenian Genocide: loocking backward, moving
forward. New Brunswick; Londres: Transaction Publishers, 2003, p. 220;
44
Refiro-me a trabalhos que tratam do livro original de Uras como uma espécie de cânone natural do
qual derivam os tropos da negação do genocídio armênio. C.f., por exemplo: GÜRPINAR, 2016; GOÇEK,
2011; BLOXHAN, 2005, p. 213; MATOSSIAN, Bedross Der. Venturing into the Minefield: Turkish Liberal
Historiography and the Armenian Genocide. In:______. HOVANNISIAN, R. (Org.) The Armenian
Genocide: cultural and ethical legacies. New Brunswick: Transaction, 2007, pp. 369-388; KALIGIAN, 2014.
imputar responsabilidade do que para marcar, pelo menos discursiva e
institucionalmente, uma ruptura profunda entre o Império Otomano e a república
kemalista dos primeiros anos. No período kemalista, essa ruptura entre o
antigo/decadente/cosmopolita do império e o moderno/ /nacional funcionou como um
princípio de legitimidade novo estado etnicamente unificado e definido45.

Essas distinções que a ruptura supõe foram, dessa forma, uma das condições
para que membros das elites otomanas ligadas ao CUP pudessem ser incorporados como
convertidos ao novo regime46 – e esse sim parece ter sido o caso de Uras. Também por
meio dessa ruptura, pelo menos até meados de 1930, o passado otomano deixou de
existir, e, com ele, o dos armênios e de outras minorias. Eles só voltariam a aparecer
depois da morte de Ataturk, quando começou a haver algum interesse pela história do
império e essa história passou a ser também uma história nacional, uma história turca,
dos turcos – uma história da qual, de modos diferentes, o livro de Uras e sua tradução
são exemplares47.

De todo modo, e não por acaso, os eventos de 1915-16 não existiam nessa
história como o massacre e deportação forçada das populações armênias do território
otomano. Em lugar nenhum eles existiam como crimes ou violações contra os quais
alguém pudesse se defender, mesmo que por antecipação. E mais uma vez, essa
ausência não é um não dito. Os crimes simplesmente não são percebidos, elaborados e
dados a ver como crimes.

Os massacres e as deportações de armênios eram relativamente públicos


enquanto aconteciam. Ainda que as atenções se concentrassem nas frentes de batalhas
europeias, veículos de imprensa ocidentais deram alguma atenção às violações contra
populações armênias do império Otomano48. Representantes dos serviços internacionais
dos países Aliados notificaram o Império Otomano publicamente por “crime contra a

45
C.f.: notas 32 e 36. Mais precisamente: DADRIAN; AKÇAN, 2001, pp. 1-2, 102-107.
46
Idem.
47

48
C.f., por exemplo: STEEL, Danie. Genocide on Fleet Street: the Armenian genocide in the Britsh press,
1915-1918. Dissertação (BA Honours in History). Departamento de História, Universidade de Caterbury.
Canterbury, 2016, 44 pp.; CHABOT, J.; GODIN, R. KAPPLER, S.; KASPARIAN, S. Introduction:
Representations of the Armenian Genocide in the Mass Media. In: ______; ______; ______; ______;
(Org.) Mass Media and the Genocide of the Armenians – one hundred years of uncertain
representantion. Nova York: Palgrave, 2016, pp. 1-15; BECKER, A; WINTER, J. Génocide arménien et les
reaction sw l’opinion internationale. In: HORNE, J (Org.) Vers la Guerre Totale. Le Tournant de 1914-
1915. Paris, Tallandier, 2016, pp. 291-313. BALAKIAN, Peter. The Burning Tigris – The Armenian
Genocide and the America’s response. Nova York: Harper & Collins, 2007, pp. 266-272;
humanidade e à civilização” ainda em 1915, durante a I Guerra Mundial, quando a
categoria jurídica de crimes contra a humanidade ainda não existia como tal49.

O então embaixador Henry Morguenthau, que foi chefe do serviço


internacional estadunidense no Império Otomano durante o período de crise, relatou
extensivamente as violações contra as populações armênias50. Arnold Toynbee, famoso
historiador e membro do parlamento do Reino Unido, documentou e acusou
institucionalmente os crimes dos membros do CUP 51. Nos EUA, para a contrariedade de
agentes do serviço internacional do Império Inglês, foram formados comitês,
associações e fundos filantrópicos alimentados e administrados por intelectuais,
políticos, missionários, empresários, gestores de universidades, representantes da alta
sociedade, americanos ricos de descendência armênia etc. para dar suporte a refugiados
e para pressionar o Departamento de Estado, o Congresso e a Casa Branca a assumir
uma posição favorável e a intervir para a criação de um estado armênio autônomo como
direito de reparação pelos crimes otomanos. Denúncias e ações desse tipo se
estenderam, ainda, durante os tratados e acordos do pós-guerra, em Paris, em Versailles,
em Sèvres e em Lausanne52.

Entretanto, antes mesmo do fim da guerra as denúncias perdessem força entre


os interesses conflitantes das potências Aliadas sobre o Império Otomano e sua extensão
pelo Oriente Médio e pela Ásia Menor, entre as disputas nacionalistas no interior do
império, e entre a formação, o avanço do movimento republicano kemalista e a Guerra
de Independência53. Além do mais, e nesse ínterim, depois de vários conflitos e
negociações desde a declaração de independência armênia de 1918, um estado armênio
autônomo finalmente foi estabelecido em uma pequena faixa territorial na Transaucásia,
em 1920, e logo se tornou uma República Socialista Soviética54.

A instituição de um estado armênio nessas condições cimentou uma


convergência entre o movimento republicano kemalista e o governo soviético contra
49
USA Departament of State. Report of Allied warning to the Ottoman government to stop the
massacres of Armenians [Telegrama], Washington; Istanbul, 29/05/1915.
50
MORGENTHAU, H. Ambassador Morgenthau’s Story. Nova York: Doubleday, 1918.
51
TOYNBEE, A. J. ; BRYCE, Viscount. The treatment of Armenians in the Ottoman Empire: Documents
preseted to the Viscount Grey of Fallodon. Londres, Hodder and Stoughton, 1916;
52
C.f.: notas 48, 49, 50, 51 e também: MALKIAN, Mark. The Disintegration of the Armenian Cause in the
United States, 1918-1927. International Journal of Middle East Studies, n. 16, 1984, p. 350-352.
53
Idem.; ZÜRCHER, E.J. The Unionist Factor: the role of the Committee of Union and Progress in the
Turkish National Movement, 1905-1906. Leiden: Brill Academic Publishers, 1984.
54
Idem.; KAZEMZADEH, Firuz. The Quest for Transcaucasia, 1917-1921. Nova York: Philosophical Library
Inc., 1951.
pretensões do Reino Unido sobre os territórios otomanos ocupados, contra o
estabelecimento de um estado armênio segundo princípios wilsonianos e pela
integridade territorial da Anatólia. Com a instituição da república, o governo kemalista e
o governo soviético mantiveram relações estratégicas em bons termos, pelo menos até
1939. A seu modo, essas relações contribuíram para a garantia de interesses geopolíticos
regionais de ambos governos, sobretudo sobre a integridade da Cáucaso e da Anatólia, o
que significava o abandono das pretensões expansionistas antagônicas entre o Império
Russo e o Império Otomano e, portanto, dos interesses nacionalistas armênios sobre a
Anatólia atravessados pela Rússia, pelo Reino Unido e pela França. Assim, com a
instituição da República Turca e da Armênia Soviética, a chamada “Questão Armênia”
deixou de existir enquanto conflitos por autonomia55.

Nessas situações que incluem também uma série de relações mais ou menos
tensas com agentes de governos de estados que se formaram com o fim do Império
Otomano, não há registro de nenhuma demanda pública sobre a Turquia em relação aos
crimes dos membros do governo da Comissão para União e Progresso contra
populações armênias ou contra outras minorias otomanas56.Aliás, mesmo tendo passado
a integrar a Liga das Nações como membro em 1932, vale indicar que, pelo menos até a
década de 1950, a Turquia foi objeto de um vigoroso processo de secularização e
homogeneização étnica, executado, inclusive, por meio de políticas públicas de
assimilação forçada de minorias étnicas e religiosas, islâmicas ou não57.

Já em 1944, quando Raphael Lemkin criou o conceito de genocídio como


crime internacional, ou quando, em 1948, as Nações Unidas instituíram a Convenção
para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, o caso dos massacres das
populações armênias do Império Otomano era um anátema. De fato, no imediato pós- II
Guerra Mundial, não havia nada que impedisse a adesão da Turquia a instrumentos
internacionais de Direitos Humanos. Bem ao contrário, e em uma conjuntura em que a
posição da Turquia na balança de poder passou a pender, a adesão a esses instrumentos

55
C.f.:KAZEMZADEH, 1951; ORAN, B.; AKDEVELIOGLU, A.; ALPKAYA, G. et. al. Turkish Foreing Policy,
1916-2006 – Facts and analyses with documents. Salt Lake City: The University of Utah Press, 2010, pp.
143-224.
56
ORAN et. al.,2010, pp. 61-126.
57
C.f., por exemplo: YLMAZ, Hale. Becoming Turkish: Nationalist reforms and cultural negotiations in
early Republican Turkey, 1923-1945. Syracuse: Syracuse University Press, 2013; TURNAOGLU, Banu. The
formation of Turkish Republicanism. Princeton: Princeton University Press, 2017, pp. 219-243.
e instituições – e não só as relativas aos Direitos Humanos - era um incentivo e uma
marca de sua aproximação ao Bloco Ocidental58.

Desse modo, em 1949, a Turquia tornou-se signatária da Declaração Universal


dos Direitos Humanos e foi incorporada ao Conselho Europeu. Logo depois, no mesmo
ano em que a edição original do livro de Uras saiu, em 1950, o país tornou-se um
signatário da convenção das Nações Unidas sobre o Genocídio. E não só: em 1954,
tornou-se signatária da Convenção Europeia de Direitos Huamnaos; em 1959, foi feita
candidata a membro associado da Comunidade Europeia; e, 1961, tornou-se signatária
da Convenção para Refugiados das Nações Unidas de 195159.

Outra vez, quando a edição original do livro de Uras foi publicada, não havia e,
portanto, não pesavam sobre a Turquia pressões por reconhecimento, por
responsabilidade ou por reparação. Os massacres e deportações de 1915-1916 eram um
não-evento, ou, para ser exato, não eram massacres. Agora, como na história de Uras,
eles eram desdobramentos da chamada Questão Armênia. De todo modo, o que é mais
importante: esses eventos ainda não eram um genocídio, mesmo quando poderiam ser.
Em 1950 não havia ainda crime para que um perpetrador pudesse justificar ou furtar-se
de suas responsabilidades criminais, mesmo que Uras falasse como um dos sujeitos dos
crimes e não como um agente especializado.

Estima-se, e é mesmo possível que este seja o caso, que o livro de Uras tenha
sido uma resposta às demandas soviéticas por territórios entre a Anatólia e a
Transcaucásia no pós- II Guerra Mundial. Desde 1936, a Turquia detinha o controle da
navegação no Mar Morto e no estreito de Bósforo. Um tratado multilateral, a
Convenção de Montreux sobre o Regime dos Estreitos, regulava a situação. Países
bálticos, França, Reino Unido, Turquia e União Soviética eram signatários da
Convenção. Em 1946, quando venceu a última versão do pacto de não agressão
originalmente celebrado entre Turquia e URSS em 1925, o governo soviético impôs
58
LEMKIN, R. Axis rule in occupied Europe - laws of occupation, analysis of government, proposals for
redress. Clark: Lawbook Exchange, 1943; UNITED Nations. Convention on the prevention and
punishment of the Crime of Genocide. Nova York: Secretary General of United Nations, 1948 (1951);
TAMS, C.; BERSTER, L.; SCHIFFBAUER, B. Convention of the Prevention and Punishment of the Crime of
Genocide – a commentary. Oxford: Beck – Hart- Nomos Publishing, 2014; HENHAM, R. J.; CHALFONT, P.;
BEHRENS, P. (Orgs.). The criminal law of genocide: international, comparative and contextual aspects.
Farnham: Ashgate Publishing, 2007; ORAN, et. al., 2010, pp. 285-297, 311-342.
59
ORAN, et. al. Op. Cit.. Para uma visão panorâmica sobre a condução da política externa turca entre o
bloco ocidental e a URSS, c.f.: também: ULGUL, Murat. The Soviet Influence on Turkish Foreign Policy,
1945-1960. Tese (Master in Arts). The Florida State University, College of Social Sciences, Tallahassee,
2010, pp. 1-19.
como condição para sua renovação a concessão de territórios da Anatólia que teriam
pertencido à Geórgia e à Armênia. Esses territórios permitiriam à União Soviética
acesso ao Mar Morto e ao Mediterrâneo – ambições territoriais que existiam de formas
diferentes desde o século XVIII -, além da alocação de armênios da diáspora que
haviam imigrado para a Armênia Soviética.

O plano soviético de anexação de territórios turcos falhou. Agentes


estadunidenses interviram e, em 1952, a Turquia foi incorporada entre os países
membros da OTAN. E isso não foi sem efeitos. Integrada desse modo à aliança
ocidental, em alguma medida, a Turquia foi objeto de políticas do Plano Marshall e da
Doutrina Truman e foi posicionada estrategicamente nas dinâmicas geopolíticas da
Guerra Fria no sudoeste asiático. De qualquer forma, e ainda que o tema das demandas
soviéticas não apareça no livro de Uras, a história da questão armênia que se conta por
meio dele parece antecipá-las, atualizá-las e oferecer uma longa perspectiva histórica
para enquadra-las. Talvez seja por isso, também, que “as tragédias” de 1915-1916
existam dessa forma.

De todo modo, em 1950, os eventos de 1915-1916 existiam praticamente como


esquecimento. Em 1987 e 1988, quando saíram, respectivamente, a segunda edição e a
tradução para o inglês do livro de Uras, a situação era outra, assim como tudo indica que
era outro o livro de Uras.

O passado dos massacres e das deportações que integram os processos que


deram no genocídio armênio eram, agora, objetos de disputas.

A pergunta sobre o porquê de eles terem sido produzidos na década de


1950, e não antes se impõe.

De qualquer modo, o livro de 1950 não é o mesmo da edição inglesa de


1980, assim como o mundo não o é.
É consenso entre os historiadores que tratam da negação do genocídio
armênio o argumento de que o livro de Uras é uma espécie cânone. Segundo esse
argumento, a negação deriva ou reproduz os seus temas e estratégias de Tarihte
Ermelier.../ Armenians in history....

e o estabelecimento da autonomia relativa das minorias por meio dos


millets. Nesse sistema, “os armênios” teriam vivido em paz e prosperidade até a guerra
entre o Império Otomano e o Império Russo de 1877-1878 e termina em 1908, ano em
que o CUP ocupa o governo. Nesse período,

período em que as conspirações por autonomia teriam começado a se


radicalizar, segundo Uras, por fraqueza da própria administração imperial, que não teria
previsto essa radicalização como consequência possível das concessões feitas por meio
de uma constituição que regulava a autonomia dos armênios em relação ao império, da
propaganda anti-turca/otomana feita pelos armênios no ocidente e pela influência da
Russia.

A história da Questão Armênia de Uras ocupa 4 partes do livro e tem vários


episódios. Ela começa com a conquista otomana e o estabelecimento da autonomia
relativa dos armênios por meio dos chamados milets

Assim, depois de terem vivido anos pacificamente sob domínio Otomano,


os armênios que formavam minorias espalhadas, começaram a reclamar por autonomia,
na segunda metade do século XIX. O império teria atendido a essas demandas, mas os
armênios, não satisfeitos, teriam envolvido, potências ocidentais, o Império Russo e
outras minorias no que se teria se tornado uma contenda, marcada por insurgências,
motins e conspirações que seriam expressões da radicalização das demandas por
autonomia supostamente orquestradas por Moscou.

À primeira vista, essas operações de sentido poderiam nos indicar duas


coisas distintas e/ou logicamente derivadas. A primeira é que Armenians in History...
seria uma versão erudita do relatório que justificava as deportações enquanto elas
aconteciam. A segunda é que elas seriam, como justificação, uma das etapas do
argumento de que governo do CUP e, portanto, os turcos, não teriam responsabilidade
sobre o que aconteceu com os armênios entre 1915 e 1916. Entretanto, esses não
parecem ser o caso.

Os temas da insurreição, da conspiração e do quinta-colunismo são


recorrentes. Eles aparecem de diversas formas ao longo do tempo, mas nesse caso eles
são informados por um princípio particularista do nacionalismo turco. Esse princípio
está na chamada Tese Histórica Turca, uma das visões do passado produzidas e
comunicadas que encontrou na Sociedade Histórica Turca o seu lugar de produção e
mediação ampla e coordenada por meio da educação formal, de associações intelectuais,
de órgãos do Estado, da imprensa e de publicações variadas.

A Tese Histórica Tuca foi apresentada pela primeira vez em 1932, no


Primeiro Congresso de História Turca, organizada pelo Ministério da Educação para
discutir a atuação por meio da Sociedade Histórica e para apresentar as diretrizes para o
ensino de história. A tese era uma narrativa, uma coleção de discursos fragmentários
que forneciam uma explicação global sobre o que eram a Turquia e o Turcos. Segundo
ela, os turcos eram raça ancestral da Ásia Central que deu origem a que num passado
remoto se expandi e civilizaram desde o sul asiático até o mediterrâneo.

Entretanto, não parece ser esse o caso, ainda que os temas da insurreição e
da conspiração sejam recorrentes e ainda que, em ambos os casos, a visão “d(os)
armênios” como um unidade singular e negativa seja informada por um princípio
nacionalista e particularista.

Com alguma segurança, talvez seja possível sugerir que a continuidade


desse princípio e a recorrência dessa imagem no livro de Uras sejam, na verdade,
atualizações de temas ou tropos do conjunto fragmentário e diverso dos discursos
kemalistas sobre o passado que definiam a “Tese Histórica Turca”. Segundo essa “tese”

que foi uma utopia de passado turco-centríca, um conjunto de discursos


variados e fragmentários que compunham uma visão global do passado da República
Turca no processo de nacionalização e formação do estado – uma visão definida
sobretudo em relações ao Império Otomano, às minorias étnicas que viviam na Ásia
Menor/Anatólia, e às identidades turcas que, sendo islâmicas ou não, pelo menos no
período kemalista, eram diluídas e homogeneizadas em uma definição racista, secular e
modernizante da nação como uma personalidade nacional definida incialmente contra o
cosmopolitismo do império.

Mais precisamente, talvez seja possível sugerir que o trabalho de Uras


pertence à uma das etapas do processo

Essa visão global do passado foi construída em relação ao passado do


Império Otomano, às minorias étnicas tidas como não turcas e às identidades turcas que,
fossem elas seculares, modernas, ocidentais ou islâmicas, eram dissolvidas em uma
ideologia nacional racista. Talvez o livro de Uras seja um dos acontecimentos que
marcaram um processo de turquificação da história do Império Otomano que tem lugar
a partir da segunda metade dos anos 1930 e que se institucionaliza no final da década de
1940, por meio de intelectuais que, como Uras, eram ligados à Sociedade Histórica
Turca. Se até a década de 1930 os princípios kemalistas supunham uma ruptura com o
Império Otomano, como se ele fosse o sinal do atraso em oposição ao progresso da
república, a partir daí, “os turcos” passaram a ser sujeitos da história do Império – Uras
fala em império turco em diferentes partes do livro.

De qualquer modo, ainda que as versões do nacionalismo dos unionistas e


dos kemalistas sejam diferentes e, sobretudo no caso da última, variem ao longo do
tempo, Uras participou com outros membros das elites políticas/intelectuais que se
formaram entre o cataclismo otomano e a instituição da república.

Intelectuais cujos círculos eram os mesmos que o de Uras,

é o que fundamenta a explicação das origens, dos desenvolvimentos e das


consequências das demandas de armênios por autonomia e/ou participação e garantias
de direitos civis no contexto das reformas (Tanzimat) do Império Otomano, que
envolveram pressões de potências europeias, entre meados e finais do século XIX – a
chamada “Questão Armênia”. A história da Questão Armênia de Uras ocupa 4 partes do
livro e tem vários episódios. Ela começa com a conquista otomana e o estabelecimento
da autonomia relativa dos armênios por meio dos chamados milets

Assim, depois de terem vivido anos pacificamente sob domínio Otomano,


os armênios que formavam minorias espalhadas, começaram a reclamar por autonomia,
na segunda metade do século XIX. O império teria atendido a essas demandas, mas os
armênios, não satisfeitos, teriam envolvido, potências ocidentais, o Império Russo e
outras minorias no que se teria se tornado uma contenda, marcada por insurgências,
motins e conspirações que seriam expressões da radicalização das demandas por
autonomia supostamente orquestradas por Moscou.

Capítulo 2 – “O mito dos seis milhões”.

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