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A produção de sentidos num contexto de aproximação entre arte e vida

The production of meanings in context approach between art and life

Luzia Renata da Silvai


Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo

O desenvolvimento desse texto se constitui a partir da necessidade de pensar a prática


artística em relação com propostas pedagógicas transformadoras. A partir desse interesse,
problematiza-se alguns artistas que transformaram seus campos, contextos e formas de
atuação por não filiarem-se a ideia de arte tradicionalmente aceita. Por consequência, a
reflexão formulada reflete sobre a importância que o educador Rudolf Steiner teve na
constituição e na visão de arte de Joseph Beuys e os possíveis desdobramentos do
pensamento desse artista na atuação do professor artista José Luiz Kinceler que, na lida com
a arte, propôs ações transformadoras em um contexto de ensino de arte.

Palavras chaves: Produção de sentido, arte, educação.

Abstract

The development of this text comes from the need of thinking of the artistic practice in relation
to transformative educational proposals. With this objective, a few artists who did not comply
with the idea of traditional art and transformed their fields, contexts and forms of action are
analyzed. Consequently, the reflection formulated reflects on the importance that educator
Rudolf Steiner had in the constitution and art vision of Joseph Beuys, and the possible impact
of Steiner's way of the thinking in the performance of art professor José Luiz Kinceler, that in
dealing with art, proposed transformative actions in the context of Art education.

Key words: sense of production, art, education.

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Revista Digital do LAV – Santa Maria – vol. 9, n. 3, p. 104 - 118 – set./dez. 2016 ISSN 1983 – 7348
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Influências da filosofia antroposófica na obra de Joseph Beuys1

Da educação das crianças deveriam se ocupar os artistas, colecionadores e


mágicos.
Walter Benjamin

Esta frase de Benjamin renova o espírito didático do artista que encontra no ensino
uma extensão de sua prática, no entanto, os interesses políticos, econômicos e sociais, bem
como a observação dos acontecimentos históricos, podem revelar a dimensão romântica deste
fragmento2, pois o mesmo Benjamin, anos depois de tê-lo escrito, foi vítima de um sistema
no qual a arte aliada a outras ferramentas, foi usada pedagogicamente para a afirmação do
ideal nazista.
Em geral, nos regimes totalitários ocidentais, temos visto que a política tem se
apropriado da retórica das artes para alcançar uma transformação cultural aliada ao domínio
territorial e ideológico, o filme “O Triunfo da Vontade” (1935) de Leni Riefenstahl (figura 1)
é um exemplo de como o cinema inspirou-se na estética clássica para fundamentar os
ideais do Nacional Socialismo com reconhecido rigor estético e o domínio técnico. No
documentário “Leni Riefenstahl - A Deusa Imperfeita” (1993) a cineasta alega que era apenas
uma artista a serviço de sua arte, no entanto, o reconhecimento incontestável de seu talento
não a livrou do ostracismo após o fim da 2ª Guerra Mundial.

Figura 1: Hitler e Riefenstahl durante as fimagens de Trinfo da Vontade, Alemanha, 1934.


Fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/cine-historia/sonho-e-trauma

Nas artes visuais, o poeta modernista Marinetti declara sua simpatia ao fascismo
quando escreve: “Queremos glorificar a guerra – a única higiene do mundo –, o militarismo,

1Há um universo de possibilidades a serem exploradas nessa linha, no entanto, o texto trata de apenas alguns aspectos devido ao
desenvolvimento da proposta do artigo.
2
Walter Benjamin, 2005.
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o patriotismo, o ato destrutivo dos anarquistas, as belas ideias pelas quais um indivíduo
morre, o desprezo pelas mulheres” (LYNTON, 2000, p. 71).
Os exemplos citados apenas indicam que o simples fato de ter artistas, poetas,
cineastas ou mágicos responsáveis pela educação das crianças não está de modo algum
relacionado a uma educação “salvadora”, pois tanto a arte quanto à pedagogia são ações
políticas que muitas vezes atendem a interesses obscuros.
A fim de ponderar sobre a questão do artista que entende sua arte como uma forma
de ação política, o texto entrelaça a obra Joseph Beuys, para quem a arte deveria
desempenhar um papel ativo na sociedade (2001), com a pedagogia antroposófica de Rudolf
Steiner, onde qualquer método de ensino deve ser mergulhado no artístico (2003). Ambos,
cada um a seu modo, pretendiam aproximar o homem da natureza e das coisas primordiais
misturando a arte na vida.
A trajetória de Beuys acumula experiências incomuns para um artista. Durante a
Segunda Guerra Mundial ele serviu à Força Aérea Alemã pilotando um avião Stuka, em um
desses voos ele viria a cair dos céus após ser atingido na região da Criméia, sendo acolhido
por povos Tártaros que cuidaram de suas feridas com com ervas recobertas por feltro e
gordura, (BORER, 2001) talvez seu interesse pela natureza e pela transformação das
substâncias venha desse segundo nascimento.
Certas tensões rondam sua biografia. Envolto em um mito criado por ele mesmo,
temos visto que tanto sua obra quanto sua biografia são suscetíveis à dúvidas e desconfianças
que sugerem a comprovação de sua lenda.
No entanto, uma lenda nunca pode ser verificável. No sentido da palavra, lenda
é aquilo que deve ser lido e dito, aquilo que é narrado com status de verdade. Beuys criou
um mito e esse mito é um elemento integrante de seu projeto artístico. No livro de Alain Borer
lemos:
Ainda jovem, começou o estudo de medicina, pretendendo devotar-se
aos mais humildes, esse desejo, no entanto, foi destruído quando
pilotava o seu Stuka, depois de ingressar na Luftwalle em 1941. No ano
de 1944, aos 22 anos, ele miraculosamente escapou da morte na Ásia.
O seu avião, um JU 87, caiu numa região coberta de neve chamada
Crime ou Crimeia. Joseph ficou inconsciente por vários dias,
semicongelado, foi levado por genuínos Tártaros, que cuidaram de suas
chagas. O povo, natural do lugar, logo o tomou por um dos seus: “Du
nix Njemcky, du Tatar”, e trouxe-o de volta à vida, enrolando-o em seus
tradicionais cobertores de feltro e aquecendo-o com gordura animal.
(BORER, 2001, p. 13)

A lenda criada por Beuys recria sua própria existência, alimenta sua obra e é
alimentada por ela. Por meio da lenda, podemos nos aproximar dos desejos, dos medos e
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anseios humanos tendo como guia nosso imaginário. Nesse lugar, as narrativas imagéticas
transmitidas por aqueles que viviam mais conectados com natureza tem a função de ajudar
as pessoas a assimilarem e dissiparem os sentimentos aflitivos. E isso é feito através de uma
oralidade, tal qual indicou Benjamin (2012) no texto “Pobreza e experiência” - da boca para
ouvido - vivendo uma experiência ancestral.

Para Benjamin a experiência estava em declínio, pois esta teria que passar pelo
acúmulo das histórias e saberes transmitidos no boca-a-boca. No entanto, essa oralidade
demasiadamente arraigada ao passado e a rememoração não mais existia, pois as histórias
passaram a ser escritas e massivamente distribuídas em um material impresso para uma
população que não teve a vivência. Portanto, é uma noção de experiência ligada a memória.
Apenas traçando um paralelo com a antroposofia, a respeito da decadência da
experiência humana Steiner diz:

As palavras devem significar o que realmente existe. E, com efeito,


neste caso havia antigamente uma espécie de ciência que se ligava
diretamente à prática. [...] Naquele tempo uma pessoa contava à outra
aquilo que sabia, em consequência das suas próprias experiências, e
pressentia-se desde logo se alguém era fanfarrão, ou se realmente
tinha acumulado experiências, pois estas coisas são completamente
diferentes, quando se ouve alguém conversando. [...] Porquanto a tinta
preta do impressor tem sido frequentemente acrescentada às demais
coisas, como se fosse uma nova autoridade. (STEINER, 2005, p.73)

Ao potencializar o ato da narrativa através de um conto ou de uma lenda, Steiner


(2003) confirma o poder que essa oralidade tem de atingir a pessoa como um todo, em seu
corpo físico e em seu corpo astral3.
Nessa mesma vibração, ao prospectar uma conexão entre dois mundos Beuys (figura
3) realiza o trabalho “Como se explicam quadros a uma lebre morta” nessa ação, o artista
usa sapatos com sola de feltro e cobre, tem o rosto envolto em mel e ouro em pó,
performativamente ele ocupa o espaço expositivo embalando no colo uma lebre morta, nesse
embalo ele murmura palavras em uma língua obscura relacionando os reinos animais,
vegetais, minerais conferindo-lhes alto teor simbólico. “A imagem solitária do homem que
tenta se comunicar de forma ritualizada com um animal já morto sintetiza um interesse

3
Benjamin não se referia ao corpo astral, mas sim a rememoração possível através da oralidade, da figura do narrador que para ele,
na década de 1930 já não existia mais.
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declarado do artista por uma revisitação de um saber primitivo e por uma igualdade no diálogo
entre homem e animal” (MARCONDES, 2015).

Figura 2: Joseph Beuys, Como explicar pintura a uma lebre morta, 1965.
Fonte:http://www.artecapital.net/perspetiva-149-artecapital-foco-em-madrid-arco-
e-12-exposicoes-para-visitar

Muito já foi escrito sobre a jornada de Beuys e o caráter mitológico que atravessa
seu trabalho. Essa característica marcante encontra em Joseph Campbell (1991) suporte para
a compreensão de um Beuys que buscava, como um herói, redimir-se e redimir a sociedade
que se encontrava doente por estar afastada na natureza.
Nesse contexto, o artista criou uma obra cuja variedade de materiais ligam-se a uma
proposta de unir arte e vida alterando a estrutura social e política. Ou seja, a arte para ele
pode ser usada como um meio para transformar a sociedade, e o oficio da pedagogia poderia
proporcionar essa transformação. Nesta tarefa, o artista inspira-se no educador Rudolf Steiner

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para forjar sua obra.

Entrelaçamentos feltrados entre Beuys e Rudolf Steiner

Rudolf Steiner (1861-1925) pedagogo austríaco criador da Antroposofia, do grego


"conhecimento do ser humano”, método que, desde os primórdios, tem atuado em várias
áreas do conhecimento buscando com isso aproximar o ser humano da natureza e do
universo.
Com intuito de atuar no ser desde a sua formação, Steiner criou em 1919, em
Stuttgart, Alemanha, a primeira escola antroposófica inicialmente para os filhos dos operários
da fábrica de cigarros Waldorf-Astória, de modo que o nome da metodologia carrega o nome
da fábrica de cigarros sede da primeira escola. Atualmente existem escolas Waldorf
espalhadas por todo o mundo e a metodologia ampliou-se para o tratamento do ser como um
todo.
Nossa pretensão neste artigo não visa o aprofundamento da metodologia
antroposófica, tampouco a explicação da obra de Beuys, mas encontrar alguns pontos de
contato entre um conceito de arte ampliada e um conceito de educação ampliada para pensar
nos desdobramentos que essas visões de mundo tiveram na constituição de uma vertente da
arte contemporânea.
Situando moderadamente a antroposofia, uma das maneiras de pensar o homem é
relacionando-a com a natureza à sua volta, de modo que ele é visto como um ser que
comunga semelhanças com os reinos mineral, vegetal e animal mas, por ter consciência,
diferencia-se desses. Essa característica é presente em quase toda a trajetória de Beuys.
Uma das formas de pensar o ser é através da “Quadrimembração”. Visando uma
aproximação com a palavra lembramos que trata-se dos quatro elementos constituintes do
ser humano: corpo físico, do corpo etérico, do corpo astral (alma) e do Eu (espírito).

Corpo físico: é a estrutura sólida, material, palpável e mensurável,


sujeita às leis da física e da química. É o corpo que compartilhamos
com os minerais. É uma estrutura totalmente inerte e morta quando
não permeada pelo segundo elemento (corpo etérico). Corpo Etérico
ou Vital: são as forças responsáveis por todo o princípio da vida, seja
nos vegetais, animais ou seres humanos. O corpo vital nos dá a
possibilidade de desenvolvermos vida vegetativa: crescimento,
regeneração e reprodução. Corpo Astral (corpo anímico ou alma): são
as forças da consciência, presentes nos reinos animal e humano, e que

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formam o fundamento para uma vida sensitiva. Tem um papel de “or-


ganizador” dos processos vitais e, de maneira didática, podemos dizer
que ele manifesta-se como sistema nervoso e vida psíquica.
Organização do Eu (espírito): é o elemento característico do ser
humano, que o distingue dos demais reinos e seres da natureza. É o
responsável pela atuação saudável dos demais corpos e o
aparecimento do andar ereto, da fala e do pensar. É a nossa
individualidade, nossa entidade espiritual. Relaciona-se com os
processos de calor no âmbito do organismo. (ABMA, 2015).

A antroposofia é atravessada por essa espiritualidade, isso leva Steiner a romper


com o ensino tradicional para construir uma nova edificação fundamentada na harmonia entre
o “ser humano superior, o ser humano anímico-espiritual, e o ser humano físico corpóreo, o
ser humano inferior” (2003 p.11).
De modo que as matérias obrigatórias e convencionais são, a partir de então,
conectadas com a natureza do ser humano e as imagens que o cercam. Para o educador,
“Todo e qualquer método deve ser mergulhado no artístico” (2003, p. 14). De modo que na
alfabetização o ensino das letras deveria passar primeiramente pela imagem, passando pelas
mãos e pelos sentidos do corpo antes mesmo de passar pelo intelecto.
Se pensarmos nas esculturas, ou mesmo nas ações artísticas desenvolvidas por
Beuys, podemos supor que, o que está impregnado ali são as formas cruas, a busca pela
substância da matéria, o contato com o primordial, sem uma antecipação de um conceito.
Muito embora para aproximarmo-nos de sua obra, como de qualquer obra complexa, somos
imediatamente acionados intelectualmente para buscar nossas referências, porque assim
fomos acostumados a fazer.
Essa conceituação evidencia-se sobremaneira quando nos damos conta de que na
obra de Beuys a estética desaparece. A orientação vai em outra direção e, com certeza, essa
direção não é a do belo, mas a da transformação da sociedade pela arte. E essa transformação
ele conduz como um pedagogo/pastor/artista engajado em uma mudança estrutural na
sociedade através de sua fala.
No entanto, penso na sensação que tenho ao escrever sobre uma ação que nunca
presenciei. Li sobre Beuys, vi suas obras em livros, assisti a entrevistas e vídeos de suas
ações, mas a experiência de sua obra, para mim, é mediada por fotografias, vídeos e textos.
Aqui, novamente Walter Benjamin no texto já citado, reforça a mediação pela qual esse artigo
é escrito. Lembrando que essa é uma prática habitual na academia.
Meu conhecimento da obra de Beuys e da pedagogia de Steiner não são
semelhantes, a de Beuys passa pela leitura acadêmica, a de Steiner, pela vivência na escola
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Waldorf Anabá, em Florianópolis. A experiência de participar de uma escola que propõe uma
metodologia ampliada contribui para a compreensão da obra de um dos artistas mais
paradigmáticos do nosso tempo.
A costura entre uma pedagogia antroposófica e uma arte antropológica4 cria um
ponto cruz no conceito de Estrutura Social, na qual, a pesquisadora Magda Vicini5 reflete sobre
a obra do artista entrelaçada/feltrada com os ensinamentos de Steiner. Sabemos que a cera
de abelha é um dos materiais que fazem parte do inventário do artista, seu interesse pela
transformação da matéria e pela substância são constantemente retomados a partir de
inúmeros trabalhos.
Para a pesquisadora o interesse de Beuys pela cera pode ter surgido após sua leitura
do livro “Abelhas”, de Steiner. Numa das frases do livro, o autor diz que “[…] a vida da colmeia
repousa no fato de que as abelhas colaboram entre si de um modo muito preciso, muito mais
que as vespas e as formigas, e de que as abelhas realizam o trabalho de tal maneira que tudo
se harmonize” (STEINER, 2005, p. 28).
Além do espaço colaborativo na colmeia, residem nessa organização aspectos
materiais que remetem aos problemas físicos da escultura. O calor interno da colônia ajuda
as abelhas a transformarem fluídos líquidos em escultura cristalizada, essa observação
ajudou-o a pensar na metamorfose da gordura ao alterar seu estado físico (VICINI, 2011).
Beuys estava interessado na anterioridade da matéria pois como
artista/professor/condutor, entender os processos é fundamental.
Analisando a materialidade de sua obra, vemos que Beuys convoca o outro rumo a
uma aproximação com a natureza das coisas, e essa convocação é primordial na pedagogia
Waldorf, onde a pessoa é levada a realizar os processos da vida perpassando sua trajetória
pelo começo, meio e fim.
Para ambos, nos diferentes contextos, a sociedade encontrava-se doente devido ao
afastamento da natureza. De modo que a arte, a medicina e a educação poderiam unir
novamente as coisas que foram separadas pelo excesso de cientificismo e convenções
inventadas.
Nesse aspecto, pondera-se o fato de que a noção de arte que temos atualmente é
baseada em uma convenção, em um acordo entre pessoas, e nesse acordo as partes
consideraram por bem que a obra de arte deveria ser uma coisa separada da vida.
Não foi sempre assim, e não é assim em todas as esferas sociais e culturais, no
entanto, quando se fala na “ grande arte” entende-se que houve um momento em ela saiu
do cotidiano e passou a ter um lugar para admiração e legitimação, e nesse momento ela

4
Por vezes, uma proposta de arte carregada de cunho antropológico, pode apresentar sinais de estereótipos.
5
A tese de doutorado e a dissertação de mestrado da pesquisadora Magda Vincini foi sobre a obra de Joseph Beuys.
De sua dissertação foi publicado o livro: Arte de Joseph Beuys: pedagogia e hipermídia.
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distanciou-se das outras coisas do mundo. Condição que leva alguns artistas contemporâneos
a tentar unir o que foi separado por estas convenções.

Desdobramentos na arte contemporânea

O desenvolvimento desse texto teve como ponto de partida perceber algumas das
influencias que Beuys possa ter tido de Rudolf Steiner. Essa preocupação não recai sobre a
necessidade de determinar uma origem da produção do artista, ou um motivo que o levou a
trabalhar por uma arte ampliada, e sim, encontrar confluências entre uma proposta de arte
transformadora e uma proposta de educação transformadora.
A partir desse encontro, nossa atenção volta-se para os desdobramentos desses
pensamentos na produção de uma vertente da arte contemporânea que tem como objetivo
diluir a arte na vida valorizando ações colaborativas, dos saberes e fazeres que escapam do
metier artístico fundamentado pelas convenções traçadas para a arte tradicional. Em tais
convenções, os objetos artísticos eram destinados a um determinado lugar de culto,
pertenciam a um determinado sistema de legitimação, escrita e circulação que, segundo
Dewey, empobreciam a experiência: “Quando um produto artístico atinge status de clássico,
de algum modo, ele se isola das condições humanas em que foi criado e das consequências
humanas que gera na experiência real de vida” (DEWEY, p.59, 2010).
Dewey pode estar sugerindo que o isolamento dos objetos artísticos interferem na
recepção e assim, na experiência da arte. Celso Favaretto6 comenta que para Dewey “[…] a
experiência diz respeito exatamente ao estar em relação com as pessoas e as coisas,
sistematicamente organizadas de uma maneira ou de outra, em funcionamento e produzindo
efeitos. Efeitos esperados e efeitos que não são esperados […].
Diante desta consideração, é interessante pensar nos processos artísticos que atuam
diretamente no espaço aberto do cotidiano, de certo modo forjando uma experiência na vida
através de ações artísticas colaborativas que provocam descontinuidades.

Para entender a noção de descontinuidade em arte devemos considerar


o fato de que recebemos uma cultura em movimento, que cabe a nós,
em nossa presente condição vivenciar, e, deste espaço tempo, articular
conjuntamente a nossos desejos e percepções outras possibilidades de
habitar este mundo que agora nos toca praticar. Em definitiva de
instalar um outro imaginário a partir de práticas artísticas, pautadas
em desconstruir o que tenta se manter reificado por agendas de saber

6
Video: John Dewey I: A Relevância da Experiência (½).
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e poder que se instalam na convencionalidade (KINCELER, p. 1791,


2008).

No rastro da obra de Beuys, parece existir a necessidade de trazer de volta algo que
foi perdido em outro tempo, e esse algo pode vir a existir no espaço real das relações.
Percebemos essa característica na obra de Kinceler, quando o artista afirma a necessidade de
vislumbrarmos um outro tipo de arte, uma arte livre das regras da beleza e da estética
convencional transmitidas ao longo da história da arte. Kinceler propõe a arte como
acontecimentos que produzam sentidos na convivência.
Esse pensamento/ação que instala sua prática artística nos espaços das relações e não
nos espaços simbólicos autônomos já estabelecidos, dirige seus esforços para gerar
acontecimentos que produzam sentidos através da elaboração de estratégias de reinvenção
do cotidiano. A estrutura de funcionamento é outra. Aqui não existe a obrigatoriedade da
existência de um objeto artístico físico que represente algo ou que testemunhe a existência
de um referente, o que interessa é provocar descontinuidades a partir de situações reais.
De certo modo, guardadas as devidas referências, a proposta da arte relacional em
sua forma complexa7 apresenta uma proximidade com o que Favaretto nos relata sobre o que
seria a experiência em Dewey. Experiência artística aqui aconteceria nas relações entre as
pessoas e na produção de sentidos geradas a partir dessa aproximação.
Diante da massificação que vivemos, gerar acontecimentos que produzam sentidos é
um desafio. De modo que os desvios, tanto da arte tradicional quanto do próprio cotidiano
massificado, parece ser uma saída para a reinvenção da arte e da sociedade.
Ao propor uma forma de arte colada nas coisas da vida, a arte relacional em sua forma
complexa atua no sistema da arte e no fluxo da vida. Não é pelo fato de se aproximar de
situações reais e de propor acontecimentos na vida cotidiana que ela se desconecta do sistema
de arte. Ao contrário, suas descontinuidades provocam uma diluição nos campos que foram
convencionalmente separados.
Retomando Favaretto quando afirma que a experiência é um estar em relação, e a
partir dessa relação deve-se produzir efeitos, em uma proposta de arte relacional, a
descontinuidade deve acontecer amplamente, de modo que o participante também precisa
ser de desestabilizado e ter seus conceitos revistos. Por isso a proposta deve ser aberta e não
definida antecipadamente pelo artista que posteriormente vai expôr um resultado final de seu
trabalho.

7
O termo deriva das reflexões de Nicolas Borriaud, mas os desdobramentos práticos amplificam sobremaneira a teoria.
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São formas dinâmicas de atuação gerando descontinuidades que favorecem a


reconstrução das subjetividades, a participação e os encontros a partir do convívio num
espaço real.
Essa perspectiva denota uma forma de arte ligada a vida e de forte teor político. Muitos
são os projetos artísticos que atuam nessa vertente. Atuando no Brasil podemos citar a dupla
MALWAL- Mauricio Dias e Walter Riedweg8, artistas que questionam o sistema da arte e seus
modos de circulação ao realizarem projetos artísticos de cunho político e educativo por meio
de imersões na realidade. Um exemplo é o trabalho “Mera Vista Point” (2002, Brasil),
composto por pequenos vídeos onde 33 camelôs que trabalham no Largo da Concórdia, em
São Paulo tem um minuto para realizar um pequeno anúncio dos seus produtos. O trabalho
imprimiu mudanças no funcionamento do comércio local e envolveu os vendedores na
elaboração e exposição dos trabalhos.
Em Florianópolis, Santa Catarina, o artista professor José Luiz Kinceler realizou
inúmeros projetos onde a sala de aula era transformada em laboratório de propostas
relacionais. Assim como Beuys, ele acreditava que a arte poderia ser um modo de reinvenção
do cotidiano, e afirmava que para ele “em arte não importa o objeto, mas as relações entre
as pessoas”.
O projeto que tive a oportunidade de participar enquanto aluna9 foi denominado por
Panorâmica Mont Serrat. Mont Serrat é uma comunidade centralmente periférica da cidade
Florianópolis, quando falamos comunidade, no Brasil, nos referimos a agrupamentos sociais
marginalizados pelo desenvolvimento do capitalismo. O dispositivo que acionou a proposta foi
a realização dos desejos.
A partir de uma atividade proposta pelo professor, cada participante expôs um desejo
que pudesse ser realizado no coletivo, isso vinha de encontro ao que vínhamos discutindo
desde o inicio do semestre.
Naquele semestre, como aluna especial, tínhamos a companhia da Rosa. Rosa é uma
moradora do Mont Serrat, e nesta comunidade atua como professora. Seu desejo era ver o
céu do Mont Serrat colorido. De modo que os desejos de todos se mesclaram ao desejo de
Rosa na construção de uma plataforma em que todos estavam envolvidos na realização e
organização de um trabalho coletivo, compartilhando responsabilidades num movimento em
que os desejos individuais passavam a ser coletivos.

8Maurício de Mello Dias (Rio de Janeiro, Brasil, 1964) é formado em Artes Plásticas e Walter Stephan Riedweg (Lucerna, Suíça,
1955) é formado em Música e Teatro. Os dois se conheceram na Basileia, Suíça, em 1993, e trabalham juntos desde então.
9
No programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – UDESC, cursando a disciplina Arte Relacional nos Limites do Real, no ano
de 2011.
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Através de ações que valorizam o espaço de (com)vivência, práticas criativas podem


ajudar a criar espaços de descontinuidade e diluição dos campos de conhecimento onde um
saber se mistura a outro (figuras 4 a 7).

Aqui, a proposta se caracteriza por estabelecer várias tramas relacionais que


provoquem sentidos na interseção de diferentes culturas, a descontinuidade deve existir dos
dois lados.

Considerações

Na configuração desse texto, acreditamos poder traçar paralelos que nos ajudam
encontrar não um rastro desde onde se pode descrever ou explicar a arte contemporânea,
mas sim, alguns pontos de contato entre o espírito transformador da educação e da arte.
No texto “A educação do an-artista parte II” há uma passagem onde Allan Kapow

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aposta que a mudança social pode vir das escolas, e que mesmo com as regras burocráticas
da escola, os professores acreditam poderem fazer a diferença. Isso corrobora em muito com
a postura pedagógica de Joseph Beuys e também de José Kinceler. Ambos acreditavam poder
mexer na estrutura da arte plantando uma ideia de arte misturada na vida, usando para isso
seu ofício de artista professor.

Somente quando desejarem sessar de ser artistas, os artistas ativos


podem converter suas habilidades, como dólares em yens, em algo que
o mundo possa gastar: jogar-brincar. Jogar-brincar como moeda.
Podemos aprender melhor a jogar-brincar mediante exemplos, e an-
artistas podem proporcionar isso. Em seu novo trabalho como
educadores, eles precisam simplesmente jogar-brincar, como fizeram
uma vez sob a bandeira da arte, mas em meio aqueles que não se
importam com isso. Gradualmente o pedigree “arte” se retirará até
tornar-se irrelevante (KAPROW, 2004, p. 181).

A arte colaborativa, a meu ver, pode ser pensada como um desdobramento dos
pensamentos de Beuys e por consequência de Rudolf Steiner uma vez que propõe a
construção de subjetividades que produzam sentidos, e ao fazê-lo questiona as formas de
representação postas de antemão.
Quando nascemos fomos envolvidos em um contexto regrado por convenções
humanas que se estabeleceram antes de nossa chegada. Mas há que se considerar que o ser
humano vive em constante processo de transformação e habitando em um mundo mutante,
de modo que inventar novas formas de arte, novas formas de educação e novas formas de
olhar para mundo é uma condição humana que requer que alcancemos e compartilhemos os
múltiplos saberes que cada um carrega em si.

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A produção de sentidos num contexto de aproximação entre arte e vida

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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - CEART/UDESC, na linha de pesquisa Processos
Artísticos contemporâneos e mestrado em Artes Visuais pela mesma instituição, oportunidade em que desen-
volvi a pesquisa;Arthur Omar e a menina do brinco de pérola: anacronismos na fotografia contemporânea;
defendido no ano de 2013 sob a orientação da pesquisadora Drª. Célia Maria Antonacci Ramos. Especialização
em Fundamentos da Arte na Educação concluído na Faculdade de Artes do Paraná no ano de 2001, cuja
pesquisa intitulou-se;Poéticas conceitual; tendo como orientadora a pesquisadora Ma. Daniela Vicentini. Par-
alelamente à produção acadêmica, desde o ano de 2003 me dedico a produção cultural, especificamente na
área da fotografia. Atualmente coordeno o Festival de Fotografia Floripa na Foto, que acontece anualmente
na cidade de Florianópolis e o núcleo de estudos em fotografia e arte - NEFA.

Enviado em: 10 de outubro de 2016.

Aprovado em: 22 de dezembro de 2016.

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