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Jonas Tadeu Silva Malaco

A forma elementar das trocas em Aristóteles e Marx

Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da


Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Livre-
Docente

São Paulo
2012
Índice

Introdução ................................................... 6

I. A relação elementar das trocas em Marx .................... 9

. A fórmula da relação elementar das trocas em Marx ....... 9

. Liberdade, igualdade, solidariedade .................... 11

. Reciprocidade compulsória .............................. 19

. Ilusionismo e impostura ................................ 26

. Incerteza .............................................. 34

. O contraditório ........................................ 45

. Sentenciamento ......................................... 56

II. A relação elementar das trocas em Aristóteles ........... 65

. Gratidão pela contrapartida de um serviço .............. 65

. A fórmula elementar das relações


de troca em Aristóteles ................................ 71

. Igualdade, liberdade e solidariedade efetivas .......... 74

. Igualação proporcional e não simples ................... 79

. Uma relação referenciada em outras ..................... 83

. O representante da demanda ............................. 92

. A razão do relacionamento entre


as pessoas e aquela entre seus bens ................... 101

. O dinheiro nada propriamente igualaria ................ 105

. Um importante expediente prático ...................... 113

2
III. Os fatos de mercado e sua expressão em Marx ........... 124

. A supressão dos sujeitos .............................. 124

. Uma estranheza na expressão de Marx ................... 127

. O que de fato corresponderia à sentença


com que Marx pretende reportar-se às trocas? .......... 135

. Ainda à procura daquilo a que poderia


reportar-se a sentença de Marx ........................ 142

. Permutabilidade irreal ................................ 147

. Distinção de significado
conforme o sentido da leitura ......................... 151

. Explorando as proporções de Aristóteles ............... 155

. Complementaridade e não reversibilidade ............... 161

. A necessidade de um terceiro termo .................... 164

IV. Valores ................................................ 169

. A face social dos indivíduos .......................... 169

. Uma mercadoria tão boa como outra ..................... 177

. A definição da pessoa
pelos bens que ofertasse .............................. 182

. A definição da pessoa
pelos bens de que se privasse ......................... 188

. A definição da pessoa
pelos bens que demandasse ............................. 192

. O aspecto jurídico .................................... 195

. Vontades particulares
irredutíveis em sua distinção ......................... 204

. A pessoa que acabaria por se deixar ver


ou se esconder na relação de troca .................... 208

3
. Desprezo e cegueira ................................... 214

. De que nos valeriam os valores ........................ 222

. De volta a Marx e à sua


necessidade de um terceiro termo ...................... 226

V. O enigmático terceiro termo


de Marx: primeiras dificuldades ......................... 228

. No que se igualariam as mercadorias ................... 228

. A abstração do valor trabalho ......................... 236

. A medição do trabalho social


corporificado nas mercadorias ......................... 246

. Falando-se uma coisa e dizendo-se outra ............... 252

. Na desconsideração dos trabalhos produtores


de valores de uso em sua diversidade,
não haveria como se constituir o conceito
de um trabalho humano em geral ........................ 256

. Um trabalho produtor de coisa nenhuma ................. 266

VI. O trabalho abstrato de Marx materializar-se


na indiferença pelo exercício profissional ............. 278

. O antecessor anônimo de Adam Smith .................... 278

. Se um se pusesse a fazer o trabalho do outro .......... 283

. Postulação de uma normalidade ......................... 292

. Um trabalho feito desnecessário ....................... 298

. Trabalhos distintos,
identidade ou distinção de bens ....................... 301

. O trabalho abstrato de Marx


acaba por se materializar ............................. 304

. Trabalho e força de trabalho .......................... 309

4
. O que nos mostraria a inspeção dos fatos? ............. 314

. A força de trabalho só existiria


como potência sempre determinada ...................... 318

VII. O princípio explicativo da sociedade


que se diz querer revolucionar, seria a própria
revolução que deveria estabelecê-lo ................... 325

. Duas fases na história da humanidade .................. 325

. A base técnica da produção em


contradição com as relações de exploração ............. 336

. Trabalho intelectual e trabalho braçal ................ 340

. Diversidade persistente ............................... 346

. Hipocrisia ............................................ 351

. Divisão do trabalho e leis gerais


. de desenvolvimento da sociedade capitalista ........... 355

. Contradição entre o Capítulo I e


o Capítulo XIII do Livro I de O capital ............... 361

. Fim e princípio na construção teórica de Marx ......... 363

Conclusão: Marx crítico de Aristóteles


ou, em Aristóteles, a crítica de Marx ...................... 367

. Clarificações ......................................... 367

. Mercadorias ........................................... 368

. Proprietários ......................................... 372

. A irremediável ignorância humana ...................... 377

. Valor e utilidade ..................................... 380

. O reportar-se de Marx a Aristóteles ................... 382

Apêndice: Ética a Nicômacos 1132b-1133b .................... 399

5
Introdução

”[...] um gigante interpela outro através dos espaços


vazios do tempo, e, sem se deixarem perturbar pelos anões
maliciosos e barulhentos que guincham por baixo deles,
continuam o seu diálogo espiritual sublime.“1

Na frase, Nietzsche reporta-se aos primeiros gregos cujo


pensamento temos documentado. Propõe-se em seguida a se pôr à
escuta daqueles ”gigantes“ e a narrar o que ”a surdez moderna“
seria capaz de ouvir e compreender do seu diálogo. Também um
gigante intelectual parece ter sido Aristóteles. Marx,
ombreando-o, interpela-o sobre o que seriam as relações de
troca. Desse diálogo, como Nietzsche se propôs a fazer com os
primeiros pensadores gregos, vejamos o que alcançaria nossa
”surdez moderna“. Heidegger, no entanto, estudando também os
primeiros gregos, adverte-nos: se dizer e falar é dar
propriamente alguma coisa para ser objeto da atenção dos demais,
se o falar não se determinaria meramente a partir de um som que
exprimiria algum sentido, mas só a partir daquilo mesmo a que se
reportaria, o escutar que lhe deveria corresponder não poderia
consistir meramente em um som que batendo no ouvido seria
captado e retransmitido ao nosso entendimento. Se nosso ouvir
fosse sempre apenas este captar e retransmitir de sons, então
seria verdade que ”a mensagem sonora entraria num ouvido e
sairia pelo outro“. Isto aconteceria quando não nos
concentrássemos naquilo que nos seria dirigido. O que nos seria
propriamente dito não seriam as palavras, mas aquilo a que se
reportariam. O escutar seria, sim, um ouvir, um recolher-se
concentrado na palavra que nos seria dirigida; na atitude que se

1
Friedrich Nietzsche, A Filosofia na idade trágica dos gregos, trad.
de Maria Inês Madeira de Andrade, revista por Arthur Mourão, Lisboa,
Edições 70, 1987, p. 21.

6
pusesse à escuta manifestar-se-ia mesmo a essência do ouvir: só
escutaríamos quando fôssemos todo ouvidos. Mas o ”ouvido“ de que
se trataria no verdadeiro escutar não seria o do aparelho do
sentido auditivo.

”Os mortais escutam o trovão do céu, o vento da


floresta, o murmúrio da fonte, os acordes da harpa, o
ruído dos motores, o barulho da cidade, somente e na
medida em que de tudo isto já fazem ou não fazem parte.
Somos todo ouvidos, quando nosso recolhimento se
transporta, puro, para dentro do poder de escutar, quando
esqueceu completamente os ouvidos e a simples impressão de
sons. Enquanto escutarmos apenas palavras como expressão
de alguém que fala, não escutamos ainda, não escutamos
absolutamente. E jamais chegaremos, assim, a ter realmente
ouvido qualquer coisa. Quando então teremos ouvido? Tê-lo-
emos, quando fizermos parte daquilo que nos é inspirado.“2

Seria necessário que nos tornássemos abertos para aquilo


que emergiria das palavras. Seria só a partir de uma tal escuta
que se poderia estabelecer um diálogo com o que alguma vez se
dissera; para isso, que nosso pensamento se transportasse antes
de tudo para aquilo sobre o que teriam sido ditas as palavras.
Enquanto reproduzíssemos apenas o que tivesse sido dito, não
entenderíamos ainda. Só viríamos a entender quando nossas
palavras passassem a ser também palavras que falassem a partir
do que estivesse em questão.3
Fato é que tanto Aristóteles como Marx se dedicaram a
pensar as relações de troca, um e outro a pensando a partir do
que cada um entendeu que seria a sua forma mais simples. O
segundo interpela mesmo o primeiro, fazendo-o explicitamente;
estabelecendo-se, pois, um diálogo aberto entre eles. De tal

2
Martin Heidegger, Logos (Heráclito, Fragmento 50), trad. de Ernildo
Stein, em Os Pré-Socráticos — Fragmentos, doxografia e comentários,
seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza, São
Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores), 1978, p. 115.
3
Martin Heidegger, A sentença de Anaximandro, trad. de Ernildo Stein,
em Os Pré-Socráticos, p. 22-5.

7
diálogo, podemos procurar modestamente participar, colocando-nos
à escuta; mas isto, então, só se formos, como nos adverte
Heidegger, capazes de fazer com que nosso pensamento faça parte
daquilo que seu diálogo nos inspira.

8
I. A relação elementar das trocas em Marx

. A fórmula da relação elementar das trocas em Marx


. Liberdade, igualdade, solidariedade
. Reciprocidade compulsória
. Ilusionismo e impostura
. Incerteza
. O contraditório
. Sentenciamento

A fórmula da relação elementar das trocas em Marx

Para apreciar o modo de sociabilidade mercantil ou a


maneira pela qual as relações interpessoais seriam dadas pelas
trocas de mercado, Marx entende que poderíamos tomar por
princípio a simples troca de duas mercadorias: a troca de duas
mercadorias constituir-se-ia na relação elementar dos processos
de relacionamento social no mercado4. No toma lá dá cá do
mercado trocar-se-iam produtos que seriam uns distintos dos
outros; só por sua diversidade intercambiar-se-iam. Não haveria
sentido em se trocarem calçados por calçados, mas calçados por
tecido ou pelo que dos calçados fosse distinto. Quem trocasse
calçados por tecido só o faria por ser o tecido diferente dos
calçados, satisfazendo-lhe uma necessidade que não poderia ser
satisfeita pelos calçados; sendo que, por sua vez, quem trocasse
tecido por calçados também só o faria porque os calçados seriam
diferentes do tecido, satisfazendo-lhe uma necessidade que não

4
”A mais simples relação de valor é, evidentemente, a que se
estabelece entre uma mercadoria e qualquer outra mercadoria de espécie
diferente.“ (Karl Marx, O capital, tradução de Reginaldo Sant’Anna,
São Paulo, Civilização Brasileira, 1980, p. 55)

9
poderia ser satisfeita pelo tecido5. No entanto — observa Marx —
os bens transacionados, ainda que distintos e só trocados por
sua distinção, ao serem trocados, não se fariam simplesmente
presentes em sua diversidade; mas, em sua distinção mesma,
apresentar-se-iam como sendo de um mesmo valor. O tecido valeria
os calçados ou os calçados o tecido: igualar-se-iam seus
valores. Tantos metros de tecido, em sua particular qualificação
de certo tanto de certo bem, apresentar-se-iam como valendo ou
sendo equivalentes a tantos pares de calçados, também em sua
particular qualificação de uma quantidade determinada de um
específico bem. Estabelecer-se-ia entre o tecido e os calçados,
em sua própria distinção, uma equivalência ou uma igualdade de
valor. Nas relações de troca sempre veríamos certo tanto de
determinado bem sendo posto como equivalente a outro certo tanto
de outro determinado bem; um e outro tanto, deste e daquele bem,
em suas distinções mesmas, sendo postos como de igual valor. A
relação mais simples presente nos processos de troca — conclui
então Marx — poderia ser entendida como sendo a da igualação
entre dois bens; objetos distintos em sua existência para o
serviço das necessidades humanas, mas postos no processar-se de
seu intercâmbio como sendo do mesmo valor, por exemplo:

x pares de calçados = y metros de tecido6

Haveria, assim, uma fórmula elementar para as trocas de


mercado, dada em termos da igualação de uma mercadoria a com uma
mercadoria b, a distinta de b, mas na relação de intercâmbio
igualadas. As trocas expressar-se-iam, pois, por uma fórmula
dada em termos de um simples a = b:

mercadoria a = mercadoria b

5
”Casacos não se permutam por outros tantos casacos iguais, valores de
uso idênticos não se trocam.“ (O capital, p. 49)
6
”Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Qualquer que
seja a proporção em que se troquem, é possível sempre expressá-la com
uma igualdade em que dada quantidade de trigo se iguala a alguma
quantidade de ferro, por exemplo: 1 quarter de trigo = n quintais de
ferro.“ (O capital, p. 43)

10
Liberdade, igualdade, solidariedade

A troca das mercadorias dar-se-ia na forma de um simples


mercadoria a = mercadoria b; e — acrescenta Marx — só através de
suas mercadorias, assim simplesmente igualadas, existiriam os
homens no mercado. Os homens far-se-iam presentes no mercado
exclusivamente através dos objetos transacionados; só se
expressariam através deles. Por seus calçados, um se
expressaria; outro, por seu tecido. O sapateiro e o tecelão
(supondo-se, para simplificar, que o próprio sapateiro e o
próprio tecelão estivessem trocando os produtos de seus
respectivos trabalhos) far-se-iam presentes tendo em mãos, um,
seu tecido, outro, seus calçados; e só pelo seu tecido ou por
seus calçados um e outro se expressariam: o sapateiro por seus
sapatos, o tecelão por seu tecido. Só pelos bens de suas posses
os homens far-se-iam valer no mercado.7
O tecelão com seu tecido e o sapateiro com seus calçados
colocar-se-iam um frente ao outro. E fazendo assim, far-se-iam
valer um diante do outro porque o objeto com que cada qual se
apresentaria, tanto o de um como o de outro, seriam para uso do
outro. O tecido com que se apresentaria o tecelão não seria
objeto para seu próprio consumo, mas para consumo do sapateiro.
Far-se-ia valer o tecelão frente ao sapateiro, voltar-se-ia o
sapateiro para o tecelão, porque no tecido o sapateiro veria um
objeto de seu consumo. O tecido não valeria ao tecelão como meio
de consumo, mas como um meio de troca pelo qual se faria valer
frente ao sapateiro. Da mesma maneira, o sapateiro não se faria
presente com um objeto para seu próprio consumo, mas tendo em
mãos o objeto da satisfação do tecelão. O sapateiro far-se-ia
valer frente ao tecelão, voltar-se-ia o tecelão para o
sapateiro, porque nos seus sapatos veria, também o tecelão, um
objeto de seu consumo. Os sapatos não serviriam ao sapateiro e o
tecido ao tecelão como objetos de seu próprio consumo, mas como

7
”As pessoas, aqui [na relação econômica de mercado], só existem,
reciprocamente, na função de representantes de mercadorias e,
portanto, de donos de mercadorias.“ (O capital, p. 95)

11
seus meios de troca, dando-lhes condição para que se fizessem
valer um frente ao outro tendo em vista a aquisição, cada qual,
do bem do outro. Ao iniciar-se uma transação de troca, os
objetos estariam em mãos de quem não os teria para seu consumo
próprio, mas para o consumo daquele com quem se confrontassem.
Seria só assim que cada um se faria valer frente ao outro. Nos
dois lados da relação, veríamos pessoas que fariam uso dos bens
de sua posse como meios de troca e não como meios de seu próprio
consumo. Do ponto de vista do consumo, os objetos principiariam
por estar como que trocados de mãos: o que seria de uso para o
tecelão estaria em mãos do sapateiro e o que seria de uso para o
sapateiro estaria em mãos do tecelão. Um e outro entrariam em
relação para obter aquilo que estaria em mãos do outro; só mesmo
por isto entrariam em relação. A finalidade de sua relação seria
a de que o tecido em mãos do tecelão passasse para aquelas do
sapateiro, vindo a lhe ser objeto de uso ou utilidade, assim
como os calçados, em mãos do sapateiro, passasse para aquelas do
tecelão, vindo também a lhe ser objeto de utilidade. Por meio de
uma relação de troca, efetuar-se-ia a transferência de dois
bens, um e outro, das mãos de quem, tendo-os como propriedade
pessoal, não os teria como objeto de seu próprio consumo, para
aquelas de quem, à sua posse, daria o sentido do uso.8
Um se apresentaria com o objeto da demanda do outro e —
considera Marx — tanto um como outro só veriam mesmo no outro o
objeto de sua própria demanda: só o objeto de sua própria
demanda, um veria no outro. Os olhos de todos se voltariam
exclusivamente para os objetos de suas demandas. Para todos, os
demais só existiriam enquanto possuidores do que desejassem; só
assim estes lhes interessariam. Só mesmo assim se fariam valer
uns frente aos outros; de outra maneira, não haveria mesmo como
se fazerem valer. O sapateiro só importaria para o tecelão pelos

8
”Para ele [o sujeito das trocas], a mercadoria que possui não tem
nenhum valor de uso direto. Do contrário, não a levaria ao mercado.
Ela tem valor de uso para outros. Para ele só tem diretamente um valor
de uso, o de ser depositária de valor e, assim, meio de troca. Por
isso, quer aliená-la por mercadoria cujo valor de uso lhe satisfaça.
Todas as mercadorias são não valores de uso, para os proprietários, e
valores de uso para os não proprietários. Todas têm, portanto, de
mudar de mãos.“ (O capital, p. 95-6)

12
sapatos e o tecelão para o sapateiro pelo tecido. O conjunto
todo de outros atributos de cada qual que a cada um definiria
como pessoa determinada, além daquele meramente da posse do
objeto da demanda do outro, não seria levado em consideração.
Suas demais características, que não a posse do objeto demandado
pelo outro, não importariam em nada para a relação; seriam mesmo
desprezadas. No processar-se das trocas, as pessoas existiriam
exclusivamente por suas posses, cada qual do objeto da demanda
do outro. Só por meio de suas mercadorias as pessoas far-se-iam
valer nas trocas; só por seu meio lá teriam expressão social. E
suas mercadorias, seu meio de expressão social, igualar-se-iam
ao serem trocadas. Ora, igualar-se-iam, assim, as próprias
pessoas em seu modo de presença social. Na relação de igualdade
entre suas mercadorias, só por seu meio apresentando-se, teriam,
as pessoas, igualadas suas faces sociais. Em seu modo de
presença social nas trocas, as pessoas estariam postas como
iguais. Nos termos em que se dariam suas relações de troca,
seriam iguais.9

9
”Cada um dos sujeitos é alguém que troca; isto é, cada um tem com o
outro a mesma relação social que o outro tem com ele. Como sujeitos da
troca sua relação é pois a da igualdade. É impossível perceber
qualquer diferença, sobretudo oposição entre eles; jamais nenhuma
diferenciação. Além disso, as mercadorias que eles trocam são valores
de troca equivalentes, ou ao menos passam por tal — poderia haver erro
subjetivo apenas na avaliação recíproca e somente se um indivíduo
enganasse o outro em alguma coisa, o que aconteceria não pela natureza
da função social (na qual eles estão um frente ao outro, pois ela é a
mesma e nela eles são iguais) mas só pela astúcia natural, pela arte
da persuasão, etc., em resumo, só pela mera superioridade individual,
a superioridade de um indivíduo sobre o outro. A diferença, que seria
natural, como tal não diria respeito à natureza da relação [...].
Tomada em consideração a mera forma, o lado econômico da relação —
[...] — apenas três momentos, que são formalmente distintos, colocam-
se em evidência: os sujeitos da relação, aqueles que trocam; postos na
mesma determinação, os objetos de sua troca, valores de troca,
equivalentes, que não apenas são iguais, mas assim devem ser
expressos, e como iguais são postos; enfim o próprio ato da troca, a
mediação pela qual os sujeitos são postos imediatamente como pessoas
que trocam, como iguais, e seus objetos como equivalentes, iguais. Os
equivalentes são a objetificação de um sujeito para o outro; isto é,
eles mesmos são de valor igual e se confirmam no ato da troca como de
mesmo valor ao mesmo tempo que como indiferentes um ao outro. Na
troca, os sujeitos são de mesmo valor um para o outro apenas por meio
dos equivalentes e se confirmam como tais pela permuta da
objetividade, onde um existe para o outro. Dado que na troca eles
estão um para o outro apenas deste modo, como de mesmo valor, como
possuidores de equivalentes e como fiadores dessa equivalência, eles
são do mesmo valor e ao mesmo tempo indiferentes um em relação ao
outro; suas outras diferenças individuais não vêm ao caso; eles são

13
O tecelão procuraria pelos calçados do sapateiro e o
sapateiro pelo tecido do tecelão. Seria mesmo a particular
diferença dos objetos transacionados que justificaria a relação:
o fato dos sapatos serem distintos do tecido e, por sua
particular distinção uns e outro da demanda do outro; os
sapatos, da demanda do tecelão, assim como o tecido, da demanda
do sapateiro. A diferença dos objetos é que aproximaria as
pessoas. O tecelão só procuraria pelo sapateiro por sua demanda
de calçados e o sapateiro, pelo tecelão, por sua demanda de
tecido; tecido e calçados, um distinto dos outros. A diferença
de suas demandas seria satisfeita pela diversidade de suas
ofertas. Na complementaridade de suas ofertas e demandas, em sua
diversidade sendo mutuamente úteis seus bens, desejariam
relacionar-se: só assim teriam pelo que fazê-lo. Porém para que
de fato se relacionassem, para que alguma relação entre eles
viesse a se dar efetivamente, seria necessário, ainda, que os
bens de suas demandas e ofertas, além da sua complementaridade
em sua distinção, fossem também, contrariando mesmo sua
diversidade, colocados em uma relação de igualdade: só se
igualadas em sua diversidade as mercadorias seriam trocadas.
Para que se trocassem em sua diversidade, as mercadorias
deveriam mostrar-se iguais em seu valor.
Se só por uma relação que igualasse suas mercadorias em
sua diversidade se expressariam, no modo de se expressarem
necessariamente se igualariam. Sua diferença estaria ali
suposta: seria mesmo condição de sua relação social. Como
distintos estariam supostos, mas seria necessário que se
igualassem como condição da efetividade de sua relação social.
Um seria distinto do outro, a mercadoria de um seria distinta da
mercadoria do outro; mas para um e outro, a mercadoria do outro
teria de valer a sua ou a sua a do outro. Para que se
relacionassem as duas condições seriam necessárias, tendo-se
como princípio uma, afirmar-se-ia a outra: sua distinção e sua

indiferentes a todas as suas demais qualidades individuais.“ (Karl


Marx, Grundrisse der Kritik der Politschen Öconomie, Ökonomische
Manuskripte 1857-1858, em Karl Marx e Friedrich Engels, Werke, Band 42
(MEW42), Berlin, Karl Dietz Verlag, 2005, p. 167-8, p. 8-9 do
manuscrito do Capítulo do dinheiro como capital, tradução para o autor
de Ilma Curti com a colaboração de Alice Foz)

14
igualdade. Sua distinção constituir-se-ia dos traços pessoais de
cada qual, pelo que seriam distintas as suas demandas que, em
sua complementaridade, constituir-se-iam no princípio de seu
relacionamento social. Só se afirmariam socialmente, no entanto,
se suas distintas demandas se dissessem de mesmo valor,
constituindo-se sua igualdade no fato propriamente social, pois
propriamente relacional. Suas diferenças seriam princípio para
sua igualdade social; sua igualdade condição social de
relacionamento a partir de suas diferenças. Socialmente, em sua
forma de existência social no mercado, estariam, a partir de sua
distinção, postos como iguais; só como tais no mercado
existiriam. Ainda que distintos, seriam, mesmo necessariamente,
igualados no seu modo de expressão social nas trocas — mesmo
assim seria para Marx.10
O tecelão e o sapateiro entrariam em relação, vincular-se-
iam, porque cada um deles teria em mente a posse da mercadoria
do outro, de algo que estaria em mãos do outro. Ora — lembra
Marx —, a vontade de possuir o que quer que estivesse em posse
de um outro poderia levar ao uso da violência ou ao
estabelecimento de todo tipo de relações de dependência. Não
seria, no entanto, o caso dado nas trocas de mercado. Nelas, de
ambas as partes, haveria, sim, a vontade de tomar posse do que
fosse do outro. O tecelão teria em vista o que estaria em posse
do sapateiro e este o que estaria em posse daquele; mas seria
fundamental para a relação — frisa Marx — que tanto um como
outro, tanto o tecelão como o sapateiro, reconhecessem no outro

10
”Pois este conteúdo da troca, que permanece totalmente exterior à
sua determinação econômica, longe de pôr em risco a igualdade social
dos indivíduos faz, muito mais, de sua diferenciação natural a base de
sua igualdade social. Se o individuo A tivesse a mesma necessidade que
o individuo B e tivesse realizado seu trabalho no mesmo objeto que o
individuo B, não haveria, então, absolutamente relação entre suas
existências; eles não seriam absolutamente indivíduos diferentes,
considerados pelo lado da sua produção. Ambos têm a necessidade de
respirar; para ambos existe o ar como atmosfera; isso não os leva a
nenhum contato social; como indivíduos que respiram estão em relação
entre si apenas como corpos naturais, não como pessoas. A
diferenciação de sua necessidade e de sua produção apenas dá o motivo
para a troca e para sua igualdade social nela; essa diferenciação
natural é portanto o pressuposto de sua igualdade social no ato da
troca, e dessa relação em geral, em que se colocam, um para o outro,
como produtivos.“ (Grundrisse, p. 168, p. 9 dos manuscritos)

15
a qualidade de proprietário privado do bem que tivesse em suas
mãos11. Por seu simples apresentar-se em meio às relações de
troca, declarariam estar dispostos a ceder o bem de sua posse
para a satisfação da demanda dos outros, colocando-se, pois, na
condição de quem poderia vir a ser submetido a um despojamento;
mas a disposição de entregar os bens da própria posse estaria
sempre dada sob a condição de que uns reconhecessem nos outros
uma mesma qualidade de proprietários privados, este
reconhecendo-a naquele e aquele, neste; um e outro entregando
seu bem ao outro só se, pelo seu, entregasse também, o outro, o
seu. No mercado, uns e outros se apresentariam cordialmente,
declarando-se dispostos a ceder o objeto de sua propriedade — no
que exigiriam o reconhecimento dos outros — em troca dos objetos
de posse dos outros — estes também exigindo fossem reconhecidos
na mesma qualidade de serem seus proprietários. Por sua simples
presença no mercado, manifestar-se-iam interessados, não em
reter o que possuíssem e, sim, em colocá-lo a serviço dos
demais; mas isto só se reconhecidos como seus proprietários,
respeitando-se sua vontade de entregá-los exclusivamente em
troca do que entendessem lhes equivaler. Os bens de uns mostrar-
se-iam assim como servindo aos outros sem que se desrespeitassem
as suas vontades. Os interesses de todos seriam satisfeitos sem
que se recorresse à violência de ninguém. Desnecessária seria a
violência; o serviço do outro seria conseguido pela
contrapartida de um próprio, respeitadas ambas as vontades. E
ainda que nas trocas os homens estivessem determinados por suas
necessidades e obrigados a prestação de um serviço, a
necessidade de cada qual só cada um mesmo a definiria — só cada
um mesmo, por si mesmo, definiria que serviço esperaria dos
outros —, definindo ainda cada um, também só por si mesmo, qual
serviço, por sua vez, estaria disposto a prestar aos outros em

11
”As mercadorias são coisas; portanto, inermes diante do homem. Se
não é dócil, pode o homem empregar força, em outras palavras,
apoderar-se dela. Para relacionar essas coisas, umas com as outras,
como mercadorias, têm seus responsáveis de comportar-se,
reciprocamente, como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de
modo que um só se aposse da mercadoria do outro, alienando a sua,
mediante o consentimento do outro, através, portanto, de um ato
voluntário comum. É mister, por isso, que reconheçam, um no outro, a
qualidade de proprietário privado.“ (O capital, p. 94-5)

16
troca dos seus próprios. Cada qual, assim, afirmaria plenamente
sua vontade. Só se apoderariam da mercadoria do outro lhe
entregando a própria mediante o consentimento dos dois; através,
portanto, de um ato voluntário comum, reconhecendo um no outro a
qualidade de proprietário privado. Por suas próprias pernas,
conforme seu próprio querer, tendo em vista seu próprio
interesse e definindo por si mesmos seus próprios meios, é que
se apresentariam nas relações de troca. Todos dariam aos demais
a mesma liberdade que aquela em que se veriam. Seriam, assim,
ali, além de iguais pela igualdade de suas mercadorias, também
livres: só se reconheceriam ali como tais.12
Ao se colocarem, livremente, em relações de igualdade no
mercado, os homens saberiam que para a vontade de um realizar-se
o mesmo deveria acontecer com a vontade do outro. Em sua relação
de troca com o sapateiro, o tecelão não poderia afirmar-se sem
que o sapateiro também o fizesse; nem este, sem que também
aquele. Assim mesmo entenderiam os dois: o tecelão que sua
vontade de calçados só seria satisfeita se a vontade de tecido
do sapateiro também o fosse; o sapateiro, que sua vontade de
tecido só seria satisfeita se também o fosse a vontade de
calçados do tecelão. Um e outro só se afirmariam se o outro
também o fizesse: assim mesmo entenderiam. Entenderiam que suas
vontades, sendo distintas, precisariam ser também
complementares. Para cada qual satisfazer a sua própria, deveria
satisfazer-se também a do outro: só assim uma relação de troca
poderia vir a existir. O tecelão e o sapateiro declarariam de
igual maneira estar dispostos a se desfazerem do que teriam como
seu para a satisfação da demanda do outro, este da demanda
daquele, aquele da demanda deste. Ainda que sempre sob a
condição de que os outros também fizessem o mesmo, manifestar-
se-iam interessados, não em reter o que possuíssem, mas em
colocá-lo a serviço dos demais, os bens de uns mostrando-se,
assim, como estando ao serviço dos outros. Quando trocassem suas

12
”Ainda que o indivíduo A sinta a necessidade da mercadoria do
individuo B ele não se apodera dela pela força nem vice-versa, mas se
reconhecem mutuamente como proprietários, como pessoas cuja vontade se
impõe por meio de suas mercadorias.“ [...] ”Ninguém se apodera da
propriedade do outro pela força, cada um se desfaz da sua por vontade
própria.“ (Grundrisse, p. 169, p. 9 dos manuscritos)

17
mercadorias estariam, uns e outros, satisfazendo a vontade dos
outros, e não cada um exclusivamente a sua própria. Se com o quê
ali se apresentassem fosse produto de seu próprio trabalho (como
supomos seja o caso do nosso tecelão e do nosso sapateiro), uns
e outros teriam produzido para os outros: o tecelão teria
produzido para o sapateiro, assim como o sapateiro para o
tecelão. Quando as trocas se afirmassem como mediação necessária
para a satisfação das vontades individuais, todos que nelas se
apresentassem não o fariam mesmo com aquilo que representasse um
mero excedente eventual de sua produção para consumo pessoal ou
familiar, mas com alguma coisa que já teria sido fabricada com o
objetivo de ser trocada. Produziriam todos já pensando nos
demais; agiriam assim já quando os bens estivessem sendo
produzidos. Pensariam socialmente desde o princípio de suas
produções pessoais, uns aos outros sempre tendo em vista. E como
quer que tivessem vindo a ter a propriedade daquilo com que se
apresentassem nas trocas — produzindo-o diretamente ou vindo a
ter em mãos o que alguém mais houvesse produzido —, cada um
faria face ao outro enquanto proprietário do objeto da
necessidade deste último e não de sua própria, objeto do qual se
desfaria para satisfação daquele. Ora, conscientes de que suas
existências transcenderiam o seu aspecto individual, cada qual
sabendo de sua carência dos produtos ou bens dos outros e de sua
necessidade de servir-lhes com os produtos ou bens que, por sua
vez, fossem de sua carência, sendo nisto solidários e como tais
todos se comportando, nisto, nas relações de troca, os homens
afirmariam que sua existência seria necessariamente social e
solidária — entende mesmo assim Marx. E assim, no seu modo de
relacionamento por meio das trocas, à sua igualdade pela
igualação de suas mercadorias e à sua liberdade por lá só
estarem na plena posse de seus bens e voltados inteiramente para
a realização de seus interesses, acrescentar-se-ia a condição da
solidariedade, isto pela necessária prestação mútua de serviços.
A solidariedade seria mais um traço definidor dos indivíduos
presentes nas relações de troca.13

13
”Que a necessidade de um pode ser satisfeita pelo produto do outro e
vice-versa, que um é capaz de produzir o objeto da necessidade do

18
Os homens seriam, então, livres, iguais e solidários no
mercado; ao menos assim poderiam ser entendidos — salienta Marx.
Seriam livres no mercado, pois, nele a violência e o
constrangimento estando excluídos. Nada os estaria determinando
senão a vontade de cada qual mesmo. Seriam lá ainda iguais, pois
só por meio de uma relação de igualdade poderiam ali estar
presentes. E, mais ainda, seriam lá também solidários, pois ali
não estariam senão por meio da mútua prestação de serviços.
Livres, iguais e solidários: assim seriam os homens em suas
relações de troca — mesmo assim lá os mostra Marx.

Reciprocidade compulsória

Nas relações de troca, livremente e como iguais, os homens


estariam solidariamente servindo uns aos outros. Mas —
acrescenta Marx — uns estariam servindo aos outros só a fim de
servir cada um a si próprio. Uns se tornariam, sim, meios para
os outros; mas isto só porque, só assim, cada qual alcançaria
sua própria finalidade. Haveria nas relações de troca
reciprocidade, mas sempre se tendo em vista os fins exclusivos
de cada qual. Na verdade — frisa Marx —, não encontraríamos no
mercado senão uma completa indiferença pelos fins alheios. Nele
a reciprocidade só existiria como meio de cada um vir a
satisfazer seu próprio e exclusivo interesse egoísta. Ao
intercambiarem seus bens no mercado, os homens não agiriam tendo
em vista os outros como fins em si mesmos: só a si próprios ali
teriam como fim. Seriam lá obrigados a agir conforme a
reciprocidade — seria a reciprocidade mesmo compulsória aos
partícipes das relações trocas —, mas, em seus egoísmos, ela

outro e cada um se defronta com o outro como o proprietário do objeto


da necessidade do outro, mostra que cada um como homem domina sua
própria necessidade particular etc. e que eles se comportam como
homens um em relação ao outro; que todos são conscientes de
pertencerem a uma coletividade de seres da mesma espécie. Que
elefantes produzam para tigres ou animais para outros animais, isso
não acontece em parte alguma; por exemplo, um enxame de abelhas
representa no fundo uma única abelha, e elas produzem todas o mesmo.“
(Grundrisse, p. 168-9, p. 9 dos manuscritos)

19
seria condição satisfeita tendo-se em mente somente os fins
exclusivos de cada qual. Os fins dos outros não existiriam em si
mesmos como motivação dos atos de intercâmbio mercantil;
apareceriam apenas como meros meios para que todos só a si
próprios colocassem como fim. Haveria nas relações de troca, de
um e outro lado de cada uma delas, apenas o interesse egoísta.14
Os homens apresentar-se-iam no mercado com o que fosse
seu, com algo de sua propriedade, com aquilo que teriam
produzido ou do que teriam vindo a ter a posse; e o que quer
tivessem produzido, ou o que quer tivessem feito para que algo
viesse a estar em suas mãos, o que tivessem produzido ou feito,
tê-lo-iam feito só em função mesmo de vir a ter algo para si
mesmos, tendo em vista exclusivamente uma aquisição pessoal e
egoísta — mesmo assim entende Marx. Quando se apresentassem no
mercado com um bem de sua posse ou propriedade, produto de seu
esforço (mesmo que só o de suas artimanhas, haveria de se
considerar), não teriam em vista obter com seu bem senão o
benefício de si mesmos. O objetivo da produção dos homens como

14
”Há então na consciência dos dois indivíduos: 1) que cada um só
realiza seu fim na medida em que serve de meio para o outro; 2) que
cada um só se torna meio para o outro (ser para outro) quando se torna
fim em si mesmo (ser para si); 3) que a reciprocidade, em que cada um
é simultaneamente meio e fim, e na verdade só realiza seu fim enquanto
se torna meio, e só se torna meio enquanto se põe como fim em si
mesmo, que cada um portanto se põe como ser para outro enquanto ser
para si mesmo e o outro como ser para ele enquanto ser para si próprio
— que essa reciprocidade é um fato necessário e é pressuposta como
condição natural da troca, que como tal, porém, é indiferente a cada
um dos sujeitos da troca e a eles, esta reciprocidade só tem interesse
na medida em que ela satisfaz o interesse próprio, excluindo o do
outro, sem relação com a satisfação do outro. Isto é, o interesse em
comum, que aparece como motivo do ato conjunto, é na verdade
reconhecido como fato por ambos os lados, mas como tal ele não é
motivo, mas desenrola-se, por assim dizer, apenas pelas costas dos
interesses particulares refletidos em si mesmos, atrás do interesse
isolado de um em oposição àquele do outro. [...] A partir do ato da
troca mesmo, o indivíduo, cada um mesmo deles, é refletido em si
mesmo, determinado como sujeito exclusivo e dominante. Com isso,
então, se põe a total liberdade do indivíduo: transação voluntária;
violência de nenhum lado; colocação de si mesmo como meio ou a
serviço, somente como meio para ser fim em si mesmo, para se colocar
como dominador e subjugador; enfim, o interesse egoísta nada
realizando de mais nobre; o outro é também do mesmo modo reconhecido e
sabido como realizando seu interesse egoísta, de modo que ambos sabem
que o interesse comum existe unicamente na dualidade, na
multiplicidade e autonomia das diferentes partes, na troca dos
interesses egoístas. O interesse geral é o conjunto dos interesses
egoístas.“ (Grundrisse, p. 169-70, p. 9-10 dos manuscritos)

20
proprietários privados, tal como se apresentariam no mercado,
seria sempre uma possessão, e uma possessão egoísta15.
Apresentar-se-iam no mercado com os objetos da necessidade dos
outros; mas, uns e outros, sempre tendo em vista, não a
satisfação dos outros, mas só mesmo a própria. Os esforços de
cada um não teriam, na verdade, relação com as necessidades dos
demais, pois não se as teria em vista como fins em si mesmas. A
satisfação das necessidades alheias seria entendida como mero
meio para a satisfação das necessidades egoístas de cada qual.
No que se fizesse tendo em vista a troca, e ainda em seu próprio
processar-se, não encontraríamos nenhuma atividade que fosse
realmente a de um homem para outro homem; não se trataria de
atividades propriamente sociais, onde homens teriam em vista
outros homens.
Ao se estabelecerem relações de troca, os homens, na
verdade, nada valeriam para os outros homens. Nelas nenhum de
nós poderia fazer-se valer enquanto simplesmente homem. Em nossa
simples condição humana, em nossa condição de dependência do
produto do trabalho dos demais, nada valeríamos. Por nossas
carências, não teríamos nada que pudesse despertar o interesse
dos outros. Simplesmente por nossas carências, os outros não se
interessariam por nós, fornecendo-nos bens que fossem seus para
que com eles nos satisfizéssemos. Os bens dos demais lhes
pertenceriam: seriam coisas suas e exclusivamente a seu próprio
serviço estariam presentes nas relações de troca. Por mais que
deles necessitássemos, enquanto homens simplesmente, não
teríamos direito algum sobre eles: pertenceriam a outrem e não a
nós mesmos, seriam sua propriedade e não nossa. No mercado não
teríamos poder algum para despertar o interesse de qualquer
interlocutor, ou direito algum sobre uma propriedade alheia de

15
”Man produces only in order to have – this is the basic
presupposition of private property. The aim of production is having.
And not only does production have this kind of useful aim; it has also
a selfish aim; man produces only in order to possess for himself; the
object he produces is the objectification of his immediate, selfish
need. For man himself – in a savage, barbaric condition – therefore,
the amount of his production is determined by the extent of his
immediate need, the content of which is directly the object produced.“
(Karl Marx, Economic manuscripts 1844, Comments on James Mill,
disponível em <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1844/james-
mill/index.htm>, acesso em 17 de março de 2008)

21
que carecêssemos, acaso, por nossa vez, não atraíssemos seu
titular pela propriedade, também por nosso lado, do bem de sua
carência. Só assim poderíamos vir a ser objeto de seu interesse.
Não nos relacionaríamos por nossas carências mas por nossas
propriedades ou posses, só com o que poderíamos vir a ter o
objeto de nossa própria carência. Ninguém seria visto em sua
condição humana de carência e de ninguém a posse ou propriedade
estaria lá para suprimir a carência de ninguém mais, mas só a
sua própria mesmo. Ninguém, na verdade, produziria ou faria
qualquer coisa senão para si mesmo — mesmo assim seria para
Marx.
Ainda que os bens presentes nas relações de troca fossem
apresentados como de utilidade recíproca, não seriam as trocas
uma espécie de mediação que confirmaria que os produtos de uns
seriam destinados ao uso dos outros. O bem com que cada um se
apresentasse, ainda que dado como sendo para uso dos outros, e
só assim podendo estar presente, estaria sempre sendo visto
meramente como o meio de cada qual vir a ter em mãos o objeto do
outro para sua exclusiva satisfação egoísta. O tecelão daria seu
tecido para a satisfação da necessidade de cobertura do corpo do
sapateiro só para que os calçados daquele lhe fossem dados para
proteção de seus próprios pés: a cobertura do corpo do sapateiro
ser-lhe-ia simples meio para vir a calçar seus próprios pés.
Também o sapateiro daria seus calçados para a proteção dos pés
do tecelão só para que o tecido daquele lhe fosse dado para
cobertura de seu próprio corpo: a proteção dos pés do tecelão
ser-lhe-ia simples meio para vir a cobrir seu próprio corpo. No
tecido do tecelão, ter-se-iam os calçados para proteção dos pés
do próprio tecelão; nos calçados do sapateiro, ter-se-ia o
tecido, também para proteção do corpo do próprio sapateiro. O
que quer se produzisse ou como quer que se viesse a ter em mãos
o bem apresentado no mercado, tudo teria sido feito com cada um
só tendo em vista só mesmo a si mesmo. Os interlocutores de
mercado não teriam em mente mais nada a não ser seus próprios
fins exclusivos: o tecelão os seus próprios, também os seus
próprios, o sapateiro. Ver-se-ia no outro exclusivamente um
objeto de que se desejaria o desfrute; não uma pessoa qualquer e

22
suas necessidades. A satisfação da demanda do outro seria
encarada como mero meio para a satisfação da própria.16
Nas relações de troca, cada qual enquanto homem — pondera
Marx — se relacionaria, sim, humanamente ao produto dos outros:
provaria a sua necessidade, vê-lo-ia como objeto de desejo. Mas
a necessidade e o desejo de cada um seriam impotentes em face da
propriedade alheia. Nas relações de troca, a natureza humana de
cada um, a carência que nos ligaria necessariamente ao produto
do trabalho dos demais, não daria a ninguém direito algum. Em
função de nossa mera condição de carência, relação alguma
estabeleceríamos no mercado. A humanidade de cada qual, a
carência de uns pelo produto do trabalho dos outros, não seria
reconhecida como tendo qualquer tipo de poder ou influência nos
intercâmbios mercantis. Pelo contrário, a carência de um bem,
que fosse meu, vivida por qualquer outro, sua dependência do bem
de minha propriedade para o sustento de sua vida, seria por mim
entendida, não como obrigação de prestar-lhe um humano socorro,
mas só como um meio de fazer com que ele viesse me prestar um
serviço, satisfazendo ele, sim, minha carência, e não eu
necessariamente a dele. Pouco eu me importaria com sua carência.
A humanidade de cada um seria só o que o levaria a tornar-se
dependente, não se encontrando ninguém que se obrigasse a servi-
lo por causa dela. Tua necessidade do objeto de minha
propriedade, longe de te dar qualquer poder sobre mim ou de te
levar a ter algum direito sobre o que fosse meu, seria, antes, o
meio pelo qual eu viria a ter poder sobre ti.17

16
”I have produced for myself and not for you, just as you have
produced for yourself and not for me. In itself, the result of my
production has as little connection with you as the result of your
production has directly with me. That is to say, our production is not
man's production for man as a man, i.e., it is not social production.
Neither of us, therefore, as a man stands in a relation of enjoyment
to the other's product. As men, we do not exist as far as our
respective products are concerned. Hence our exchange, too, cannot be
the mediating process by which it is confirmed that my product is
[for] you, because it is an objectification of your own nature, your
need. For it is not man's nature that forms the link between the
products we make for one another.“ (Economic manuscripts 1844,
Comments on James Mill)
17
” As a man you have, of course, a human relation to my product: you
have need of my product. Hence it exists for you as an object of your
desire and your will. But your need, your desire, your will, are
powerless as regards my product. That means, therefore, that your

23
A troca realizar-se-ia necessariamente por intermédio de
objetos de nossas demandas recíprocas — sustenta Marx. Para ele
a ”relação ideal“ entre nós e os objetos de nossa propriedade ou
possessão no mercado seria mesmo aquela das recíprocas
necessidades: cada qual estaria ali fornecendo o objeto da
carência do outro, só por isso uns e outros se relacionando. Mas
— contrapõe Marx — a ”relação real e verdadeira“, aquela que
acabaria por se impor, seria devida exclusivamente ao interesse
de um pelo objeto em posse do outro, não o de cada qual, com seu
objeto, satisfazer a necessidade do outro. Os homens não se
relacionariam no mercado pelo interesse de fornecerem ao outro o
objeto da sua necessidade. Relacionar-se-iam, ao contrário, só
pelo interesse pelo objeto em posse do outro. Interessar-se-iam
só em vir a ter o que fosse do outro. Só se víssemos o outro
podendo nos oferecer o objeto de nossa própria demanda,
interessar-nos-íamos por ele, da mesma maneira que só se nos
visse como podendo fornecer-lhe o objeto de sua própria demanda
é que se interessaria, o outro, por nós. Só por meio, pois, de
uma possessão, que alguém mais desejasse viesse a ser sua, cada
qual se afirmaria. Não se afirmariam pela necessidade do que
estivesse em possessão do outro. Um teria necessidade do objeto
do outro, mas não seria a necessidade do objeto do outro que
daria a ninguém qualquer direito ou poder de colocar esse outro
em relação consigo, fazendo com que entregasse o que fosse seu;
pelo contrário, só em posse do objeto da sua própria demanda é
que se poderia estabelecer uma relação com ele, só então fazendo
com que ele viesse a entregar o que fosse seu. Seria só a
possessão de um objeto de uma demanda que não a própria que
daria valor e dignidade à demanda de cada qual. A carência de
cada um, por si mesma, nada valeria; só quando afirmada por meio
da posse do que fosse da carência de um outro poderia expressar-

human nature, which accordingly is bound to stand in intimate relation


to my human production, is not your power over this production, your
possession of it, for it is not the specific character, not the power,
of man's nature that is recognized in my production. They [your need,
your desire, etc.] constitute rather the tie which makes you dependent
on me, because they put you in a position of dependence on my product.
Far from being the means which would give you power over my
production, they are instead the means for giving me power over you.“
(Economic manuscripts 1844, Comments on James Mill)

24
se. Só pela possessão de um objeto de demanda alheia ter-se-ia
algum valor ou poder. A posse do bem da demanda alheia seria o
único meio, o único instrumento, para cada um fazer valer suas
necessidades frente aos demais. A demanda de cada um, sua
necessidade ou carência, não teria por si mesma significação
alguma, efeito algum. A carência de um simples ser humano,
privado da posse do objeto da demanda do outro, não passaria de
um simples capricho ou de um desejo que acabaria por ficar
insatisfeito. Enquanto ser humano simplesmente, na sua mera
condição de carência do produto do trabalho dos demais, ninguém
teria poder ou direito algum, por mais que de algo fosse
18
carente, por mais que o necessitasse.
A única linguagem compreensível nas relações de troca
seria aquela dos objetos: a cada homem dar-se-ia só o
significado de suas posses — reitera Marx. No nosso modo de ser
e de nos comportarmos nas interlocuções sociais de mercado,
seríamos incapazes de compreender uma linguagem propriamente
humana, aquela de nossas carências. Falar em nome delas —
enfatiza Marx — não teria efeito algum; em seu nome não faríamos
senão suplicar; o que seria mesmo entendido como uma humilhação,
impudência ou loucura, e pelo que seríamos repelidos com desdém.
Nas relações de troca, uma linguagem direta da natureza humana
aparecer-nos-ia como uma violação da própria dignidade humana;
sendo que, ao contrario, a linguagem dos valores materiais

18
”On both sides, therefore, exchange is necessarily mediated by the
object which each side produces and possesses. The ideal relationship
to the respective objects of our production is, of course, our mutual
need. But the real, true relationship, which actually occurs and takes
effect, is only the mutually exclusive possession of our respective
products. What gives your need of my article its value, worth and
effect for me is solely your object, the equivalent of my object. Our
respective products, therefore, are the means, the mediator, the
instrument, the acknowledged power of our mutual needs. Your demand
and the equivalent of your possession, therefore, are for me terms
that are equal in significance and validity, and your demand only
acquires a meaning, owing to having an effect, when it has meaning and
effect in relation to me. As a mere human being without this
instrument your demand is an unsatisfied aspiration on your part and
an idea that does not exist for me. As a human being, therefore, you
stand in no relationship to my object, […]“ (Economic manuscripts
1844, Comments on James Mill)

25
aparecer-nos-ia como a única digna do homem19. Só uma posse faria
de nós homens nas interlocuções sociais de mercado; só uma
possessão nos daria dignidade. O valor que cada um ali possuiria
aos olhos dos demais seria exclusivamente o valor do objeto de
sua possessão; ali o próprio homem não teria valor algum.20

Ilusionismo e impostura

Suponhamos a realização do encontro entre dois indivíduos


através de suas mercadorias tal como o entenderia Marx; por
exemplo, o tecelão e o sapateiro de que falávamos. Estariam lá
os dois, um frente ao outro, cada qual com o objeto da
necessidade do outro. Lá estariam tendo em vista a recíproca
prestação de seus serviços; e seria livremente que ali estariam,
pois ainda que determinados por suas necessidades, não sendo
portanto livres em relação a elas, as de cada qual só cada um
mesmo, livremente, as teria definido; e mesmo que obrigados à
prestação de um serviço, também em liberdade da mesma maneira, o
de cada qual só cada um mesmo teria definido; e sendo que,
ainda, igualando-se na relação de troca os bens ou serviços
prestados, como só por seu meio é que uns se fariam presentes
aos outros, por essa igualação de seus bens, eles mesmos se
fariam iguais, igualar-se-iam em sua presença social. A
equiparação de cinco metros de tecido de um com um par de

19
”The only intelligible language in which we converse with one
another consists of our objects in their relation to each other. We
would not understand a human language and it would remain without
effect. By one side it would be recognized and felt as being a
request, an entreaty, and therefore a humiliation, and consequently
uttered with a feeling of shame, of degradation. By the other side it
would be regarded as impudence or lunacy and rejected as such. We are
to such an extent estranged from man's essential nature that the
direct language of this essential nature seems to us a violation of
human dignity, whereas the estranged language of material values seems
to be the well-justified assertion of human dignity that is self-
confident and conscious of itself.“ (Economic manuscripts 1844,
Comments on James Mill)
20
”Our mutual value is for us the value of our mutual objects. Hence
for us man himself is mutually of no value.“ (Economic manuscripts
1844, Comments on James Mill)

26
calçados do outro seria, assim, uma forma de posicionamento
reciprocamente útil, livre e igual do nosso sapateiro e do nosso
tecelão. Estariam presentes, quando duas mercadorias fossem
trocadas no mercado, a reciprocidade, a igualdade e a liberdade.
Ao trocarem seus produtos, o nosso sapateiro e o nosso
tecelão seriam, na prestação recíproca de serviços, livres e
iguais. Mas em seus egoísmos — acrescentaria Marx, observando-os
—, estariam os dois em relação movidos exclusivamente por seus
interesses particulares. Far-se-iam presentes como prestadores
de serviços recíprocos; mas o que, antes de tudo, pretenderiam,
um frente ao outro se posicionando, seria a satisfação de seus
interesses exclusivos, o tecelão, os seus próprios e da mesma
maneira o sapateiro. Cada qual teria em vista, antes, a
prestação do serviço do outro para si mesmo do que a prestação
do seu serviço para o outro. O tecelão pensaria, sim, no
sapateiro; porém movido acima de tudo por seu interesse nos
sapatos para seus próprios pés e não pelo desejo de ver seu
tecido cobrindo o corpo do sapateiro. Teria em conta a
necessidade de tecido por parte do sapateiro como mera
oportunidade de satisfazer sua própria necessidade de calçados.
Também o sapateiro teria em conta a necessidade de calçados do
tecelão só como mera oportunidade de satisfazer sua própria
necessidade de tecido. Cada qual teria para si o outro antes
como fornecedor do objeto para seu próprio consumo do que como
consumidor de sua produção. O tecelão veria no sapateiro o
possuidor dos calçados que desejaria e, sabendo que não poderia
obter esses calçados senão em troca de seu tecido, fornecê-lo-
ia: forneceria o tecido só com a finalidade de obter os
calçados. Estaria pensando, antes, nos calçados para si mesmo do
que na necessidade de tecido do sapateiro. Só pensaria na
necessidade do outro como meio de satisfação da sua própria. O
mesmo, mas ao inverso, com o sapateiro. Pensariam os dois
socialmente — pensariam em alguém mais —, mas só de uma maneira
muito bem determinada; determinada por uma finalidade que seria
exclusivamente a de cada qual e não social. Pensariam na
sociedade, em outros, como meio e não como fim em si mesma; com
ela se preocupariam exclusivamente como momento necessário à

27
realização de seus interesses egoístas particulares. Não
pensariam na própria sociedade, nela mesma como finalidade.21
Tendo-se isto em vista — é como quer Marx —, a própria
natureza dos bens permutados seria alterada conforme o ponto de
vista de cada um dos interlocutores presentes em uma relação de
troca. Os bens permutados receberiam uma definição distinta por
parte de cada um dos envolvidos: não seriam o mesmo para um e
para outro. Quem só para seus exclusivos interesses estivesse
voltado, de posse de uma mercadoria para troca, não veria nela
mais do que um meio para a obtenção de outra. Não estaria
interessado nela como objeto para seu próprio consumo, mas sim
como instrumento para a aquisição de outro bem, este sim útil à
sua necessidade. Sendo isto o que teria em vista, se pensasse
nas qualidades para consumo do objeto que teria em mãos, seria
só porque, para que efetivamente lhe funcionasse como
instrumento de intercâmbio, deveria apresentar-se com as
qualidades para tanto necessárias: aquelas especificamente
próprias de um bom instrumento de troca. Só estas, no entanto, e
não outras; em particular, não aquelas que deveria ter se acaso
fosse pensado como um bem para seu próprio consumo. O alimento
que por alguém fosse apresentado no mercado como seu meio de
troca, para que lhe viesse servir efetivamente como tal, deveria
mostrar-se como o que alimentasse, e os calçados que também se
ofertassem como o que calçasse — qualidades estas, sim, para o
consumo. Caso assim não se mostrassem, não seriam úteis a
ninguém como meios de troca. Mas a alimentação e a proteção dos
pés de que deveriam mostrar-se capazes não seriam necessidades
de quem com eles se apresentasse no mercado a fim de trocá-los.
Tendo sido levados ao mercado para serem trocados, quer o

21
”Although in your eyes your product is an instrument, a means, for
taking possession of my product and thus for satisfying your need; yet
in my eyes it is the purpose of our exchange. For me, you are rather
the means and instrument for producing this object that is my aim,
just as conversely you stand in the same relationship to my object.
But 1) each of us actually behaves in the way he is regarded by the
other. You have actually made yourself the means, the instrument, the
producer of your own object in order to gain possession of mine; 2)
your own object is for you only the sensuously perceptible covering,
the hidden shape, of my object; for its production signifies and seeks
to express the acquisition of my object.“ (Economic manuscripts 1844,
Comments on James Mill)

28
alimento quer os calçados, deveriam ali ser dados como úteis não
para quem até lá os teria levado, pois, quem o fizesse, o faria
mesmo declarando que não teria em vista fazer uso próprio deles.
Quem viria a fazer uso dos calçados, calçando-os, ou do
alimento, alimentando-se, não seria quem, ao trocá-los, deles se
livraria. Como o consumo de que se trataria não seria o de quem
se apresentasse com os bens no mercado, mas o dos outros que com
eles se retirariam, e como com estes outros os primeiros pouco
se importariam, o que preocuparia estes últimos, acaso de fato
estivessem voltados exclusivamente para si próprios como os quer
Marx, não seria que seus bens fossem realmente bons ou
efetivamente úteis no consumo. O que os preocuparia, entendendo-
os como meramente interessados na satisfação de seus próprios
interesses, seria não que seus bens tivessem efetivamente as
qualidades requeridas para o uso dos outros, mas só aquelas
requeridas para o seu próprio, e a si próprios os bens serviriam
como meros instrumentos de troca. E sendo assim, poderíamos
entender, contentar-se-iam até com que seus bens só aparentassem
ter, até mesmo que só aparentassem ter tais qualidades, sem que
as tivessem de verdade. Bastaria que passassem por tê-las para
que lhes servissem como seus instrumentos pessoais de permuta.
As qualidades dos bens que fossem utilizados como meios de
permuta, ao contrário mesmo de reais, poderiam até ser reduzidas
a meras aparências. Um bem que fosse considerado como
qualificado para consumo por seu adquirente, ainda que de fato
não o fosse, seria aceito como objeto de troca. Pouco importaria
para quem dele se desfizesse que o desejo de quem com ele
acabasse por ficar não viesse a ser satisfeito. A consideração
do objeto como adequado ao consumo por um bastaria para que
servisse ao outro como instrumento de permuta: dado por um como
adequado ao consumo, prestar-se-ia ao uso do outro como meio de
intercâmbio. No entendimento de Marx, os agentes econômicos de
mercado — em seu estrito egoísmo, como sempre os tem — não
precisariam estar propriamente interessados nas qualidades para
consumo dos bens de que fariam uso exclusivamente como meros
instrumentos de intercâmbio. O que preocuparia os interlocutores
sociais no mercado, estando voltados mera e exclusivamente para

29
a realização de seus próprios interesses, não seria que aqueles
com quem se relacionassem tivessem ou não suas necessidades
satisfeitas. O que lhes importaria seria, sim, cada qual por seu
lado, sair das relações de intercâmbio com os objetos de sua
própria satisfação. A satisfação das necessidades alheias não
seria objeto da preocupação de ninguém. A satisfação das
necessidades dos outros seria preocupação só dos outros,
preocupação outra com coisa outra que não a própria de cada
qual. E assim — faz com que tenhamos em mente Marx — todos os
possíveis erros de avaliação de quem adquirisse um bem no
mercado, pelos quais pudesse vir a considerá-lo como adequado ao
uso, quando na realidade não o fosse, contariam a favor de quem
quisesse usá-lo simplesmente como meio de troca. O erro de um
seria útil ao outro ao propiciar que seu objeto melhor lhe
servisse como mero meio de permuta.
A qualidade de um bem em sua verdade seria, sim, do
interesse de quem com ele saísse de uma relação de troca,
levando-o para a privacidade de seu consumo, onde, então,
deveria realmente prestar o serviço de que se apresentara como
capaz. Haveria interesse em adequadamente avaliar as mercadorias
por parte de quem viria a tê-las como efetivos objetos de uso.
Isto poderia ser feito, ao menos em parte, no próprio processar-
se das relações de intercâmbio. Lá, os bens mutuamente desejados
muitas vezes estariam mesmo à frente dos indivíduos. Quem os
desejasse como objeto de consumo poderia ali vê-los e tocá-los.
Mas isto só por um tempo determinado. No processar-se imediato
de uma relação de troca qualquer, quando o objeto da aquisição
de um encontrar-se-ia em mãos do outro, só poderiam vir a ser
conhecidas aquelas qualidades dos bens transacionados, ou a sua
falta, que fossem apreciáveis no intervalo de tempo que
correspondesse aos próprios atos de intercâmbio, e sem que nada
fosse propriamente apropriado ou consumido. Ver-se-iam e mesmo
se provariam os bens; não se os consumiria. E nestes limites,
toda avaliação acabaria por necessariamente ser mais ou menos
precária. A qualidade de um bem qualquer só poderia, entender-
se-ia, vir a ser completamente verificada pelo seu efetivo
consumo; o que se daria, na maior parte das vezes, em um momento

30
posterior à transação econômica de troca. Só na efetividade de
seu consumo os bens dariam prova de sua qualificação — a do
alimento de alimentar, a do tecido de efetivamente aquecer —, e
sendo seu consumo um momento em geral posterior aos atos de
troca, só se poderia vir a ter certeza de sua qualificação
posteriormente ao momento em que tivessem sido trocados; às
vezes, só após um longo tempo. Haveria, pode-se entender, de se
trocar sem que se soubesse o que, bem na verdade, se trocaria. E
assim o hiato que em geral ocorreria entre a transação social de
intercâmbio e o consumo — só onde as qualidades dos bens que
houvessem sido intercambiados poderiam ser real e completamente
testadas — faria com que se pudesse tomar como adequado ao uso o
que na verdade não o fosse. Poderia enganar-se seu adquirente.
A verdade toda de um bem — se seria mesmo um bem ou o bem
especificamente desejado — só poderia ser encontrada quando
efetivamente consumido e não nos próprios atos do intercâmbio
mercantil; sim, mas, por outro lado, ainda do ponto de vista de
quem o desejasse como objeto de seu próprio uso — haveria ainda
de se considerar —, também na sua produção, ou pela sua
produção, poder-se-ia prever sua qualificação ou eficácia no
momento em que viria a ser utilizado, ao menos com uma margem
razoável de segurança. Quem visse em um bem seu possível objeto
de uso, poderia apreciar sua produção no que diria respeito à
qualificação das matérias que dela participassem, assim como na
específica adequação das operações de que se compusesse. Se boas
as matérias utilizadas e se corretas as operações de um processo
produtivo, tal qual, entenderíamos, deveria ser o seu produto.
Na observação do modo como teriam sido produzidas as mercadorias
presentes nos processos de troca encontrar-se-ia um meio de
avaliação de suas qualidades. No entanto, a produção, assim como
o consumo, também se constituiria – tem em vista Marx — em ato
exterior às trocas, sendo-lhes em geral anterior, como aquele, o
consumo, posterior. Ainda que de fato existentes, as
possibilidades dadas pela produção para que nela se observassem
as qualidades dos bens a que daria existência, não seria algo a
que se pudesse recorrer no próprio desenrolar-se dos atos de
intercâmbio mercantil. Em geral, só seus produtos se fariam

31
presentes no toma lá dá cá das relações de troca, não ela mesma
como processo que lhes tivesse dado existência.
Sendo assim, a produção, ela própria, não se dando em
geral à presença ao se trocarem seus produtos; não sendo pois
possível, nas trocas mesmas, apreciar os bens trocados a partir
das matérias com que e os modos pelos quais teriam sido
produzidos; e não sendo também possível, no próprio desenrolar-
se do intercâmbio mercantil, bem avaliar os bens intercambiados
na sua efetiva qualificação para consumo, não restaria talvez a
quem se colocasse na posição de demandante de algo senão a
possibilidade de contar com a credibilidade pessoal de quem o
estivesse oferecendo. Quem algo ofertasse, ou o teria como fruto
de seu próprio trabalho, e saberia com o que e como o teria
feito, ou acaso não o tivesse ele mesmo fabricado, tê-lo-ia
talvez experimentado, ou ao menos o teria visto ser
experimentado; teria talvez a obrigação de já tê-lo testado.
Teria assim, supor-se-ia, mais conhecimento do que seria o bem
com que se apresentasse nas trocas do que aquele de quem por ele
lá estivesse demandando. Poderia transmitir esse seu
conhecimento ao outro. Poder-se-ia mesmo entender que devesse
fazê-lo, e fazê-lo ao modo de uma pessoa idônea; necessário,
entender-se-ia talvez, que o fosse. Deveria por isso, quem se
apresentasse no mercado com algo como seu meio de troca, ser não
só o seu legítimo possuidor, mas também um assegurador confiável
de suas qualidades. Poder-se-ia mesmo entender que as relações
sociais de mercado devessem sempre contar com a credibilidade
pessoal, todos devendo assegurar as qualidades dos bens que lá
apresentassem como seus meios de intercâmbio e que os demais não
pudessem avaliar com seus próprios recursos. Na palavra de cada
qual precisaria assentar, ao menos em alguma medida, a
confiabilidade que se atribuiria aos bens transacionados22. Quem

22
”Qui ne voit [...] que tous les contrats et toutes les promesses
doivent être remplis avec soin pour fortifier la confiance et la bonne
foi, qui font tant progresser l’intérêt général de l’humanité?“ (David
Hume, Enquête sur les principes de la morale (1751), trad. de André
Leroy, Paris, Aubier, 1947, p. 50-1) — ”[...] la legalidad racional,
en particular la inviolabilidad formal de lo prometido una vez, es la
cualidad que se espera del coparticipe en el cambio y que constituye
el contenido de la ética del mercado que, en este respecto, inculca
una concepción muy rigurosa: en los anales de la bolsa es casi

32
estivesse cedendo uma mercadoria deveria colocar-se como uma
espécie de auxiliar em sua avaliação no que diria respeito a
suas possibilidades de vir a satisfazer as necessidades daqueles
que viriam tê-la como objeto de consumo. Seria talvez de
interesse de todos, mesmo em seus egoísmos, comportar-se bem
nesse papel de avalistas, visto que tal os qualificaria como
pessoas idôneas para posteriores transações econômicas. Isto, no
entanto, só quando os interlocutores econômicos fossem tidos
como copartícipes de um mesmo meio social, onde seria necessário
que os encontros se repetissem. Situações haveria, no entanto,
onde seria possível furtar-se a qualquer avaliação. O conjunto
dos possíveis interlocutores sociais poderia ser de tal maneira
extenso, que não seria necessário depender sempre dos mesmos;
podendo alguém, se desmascarado por uns, encontrar outros a quem
ludibriar. Haveria ainda a possibilidade de se contar com
interlocutores que, movidos talvez por necessidades prementes,
facilmente se deixariam enganar. Se a má-fé de um pudesse ser
substituída pela idoneidade de outro, estaria o primeiro
excluído; mas toda tentativa de substituição de interlocutores à
busca de sua idoneidade poderia frustrar-se dada uma mesma má-fé
em todos. Desenvolver-se-iam mesmo técnicas especificamente
adequadas ao comércio astucioso e ao achado de situações mais
propícias a se tirar partido dos sempre possíveis erros de
avaliação de nossos interlocutores no mercado.
Seria, sim, verdade que o poder que cada qual atribuísse a
seu próprio objeto requereria a aprovação do outro: só como
equivalentes os objetos seriam trocados. Mas o mútuo
reconhecimento do respectivo valor ou poder de atração do objeto
de um sobre o outro — sua equivalência — seria uma luta onde o
vitorioso seria simplesmente aquele que tivesse mais energia,
perspicácia ou astúcia, excluindo-se a mera violência. Nas
relações sociais dadas pela troca de mercadorias, às caras ou

inaudito que se rompa el convenido más incontrolado e improbable


cerrado con la firma.“ (Max Weber, Economía y sociedad, trad. de Juan
Roura Parella, México, FCE, II, p. 297) — ”[...] a veracidade é um
dever que deve ser considerado a base de todos os deveres a serem
fundados sobre um contrato[...]“ (Immanuel Kant, Sobre um suposto
direito de mentir por amor à humanidade, trad. de Floriano de Souza
Fernandes, em Textos seletos, Petrópolis, Vozes, 1974, p. 122)

33
por trás delas, travar-se-ia uma espécie de jogo de esperteza,
no qual o objetivo não estaria na satisfação das necessidades
alheias, mas na satisfação exclusiva da necessidade egoísta de
cada qual, cada um podendo fazer uso dos recursos que lhe fossem
próprios. Avaliar-se-iam mesmo os homens pelo seu sucesso nesse
tipo de confronto, onde o que se mediria seria antes a sua
capacidade de causar danos a seus interlocutores sociais do que
aquela de promover a sociabilidade como cooperação de indivíduos
voltados para a satisfação de seus interesses recíprocos.23

Incerteza

Os homens só a si mesmos colocariam como fim em suas


relações de troca — vê assim Marx. Mas mesmo assim, observar-se-
ia — conforme o próprio Marx — que no interior de cada uma das
relações sociais de troca, na efetividade de sua existência
social, ali, em cada uma daquelas relações, mesmo em todo seu
egoísmo, os dois interlocutores econômicos presentes, tanto um
como outro, teriam, de fato, produzido ou se encarregado de ter
em mãos um bem para o consumo de uma outra pessoa; esta para o
daquela, aquela para o desta. Assim, ambos teriam produzido
socialmente. A produção do bem para o consumo dos outros seria
condição iniludível para a presença nas relações sociais de

23
”The social relation in which I stand to you, my labour for your
need, is therefore also a mere semblance, and our complementing each
other is likewise a mere semblance, the basis of which is mutual
plundering. The intention of plundering, of deception, is necessarily
present in the background, for since our exchange is a selfish one, on
your side as on mine, and since the selfishness of each seeks to get
the better of that of the other, we necessarily seek to deceive each
other. It is true though, that the power which I attribute to my
object over yours requires your recognition in order to become a real
power. Our mutual recognition of the respective powers of our objects,
however, is a struggle, and in a struggle the victor is the one who
has more energy, force, insight, or adroitness. If I have sufficient
physical force, I plunder you directly. If physical force cannot be
used, we try to impose on each other by bluff, and the more adroit
overreaches the other. For the totality of the relationship, it is a
matter of chance who overreaches whom. The ideal, intended
overreaching takes place on both sides, i.e., each in his own judgment
has overreached the other.“ (Economic manuscripts 1844, Comments on
James Mill)

34
mercado. A posse de tal bem seria condição para que, por
exemplo, tanto o tecelão como o sapateiro de que antes falávamos
viessem a poder entrar em relação. Seria necessário, para que de
fato viessem a se relacionar, que o tecelão tivesse em mãos o
objeto útil para o sapateiro — o tecido — e que o sapateiro, por
sua vez, fosse portador do objeto útil para o tecelão — os
calçados. Por meio da relação, um acabaria por servir-se do
objeto com que se apresentara o outro; só com este objetivo
entrariam mesmo em relação. Encontrar-se-iam exclusivamente como
portadores de bens úteis para a satisfação, não da própria
necessidade, mas da necessidade daquele com quem viessem a se
relacionar.
A condição para se relacionarem, a de que o tecelão
estivesse em posse do objeto útil para o sapateiro e este do
objeto útil para aquele, entretanto, por si só, já se
constituiria em problema — observa Marx. Se não vissem nos
outros os meios de satisfação de suas demandas, uns pelos outros
não procurariam. Uns e outros só viriam a aproximar-se porque em
posse dos objetos das respectivas demandas: o que fosse deste
precisaria ser desejado por aquele, o que fosse daquele desejado
por este. Para vir a entrar em relação com os outros, cada qual,
por seu lado e por seus meios, teria, pois, que preencher uma
condição, aquela de estar em posse do objeto que serviria a um
consumo que não o seu próprio, mas ao da pessoa com que quisesse
se ver relacionando. Começariam mesmo já aí as dificuldades,
pois, no pressuposto de seu estrito egoísmo — tal como os quer
Marx —, não haveria, na verdade — observa ele —, como satisfazer
essa condição. Para que se pudesse apresentar com o que viesse a
satisfazer a necessidade do outro, seria preciso conhecê-la.
Levar-se-ia ao mercado aquilo pelo que, saber-se-ia, procurariam
os outros, mas fazê-lo seria de fato problemático, ao menos com
o grau de certeza que se consideraria o necessário; pois, para
isso, seria preciso que os partícipes das relações de
intercâmbio tivessem conhecimento, e um conhecimento de antemão,
de quais seriam as suas mútuas necessidades para que, só então,
se dispusessem a satisfazê-las e viessem a se colocar de fato em
condição de fazê-lo.

35
Teria, cada qual, as suas específicas carências; para
satisfazê-las, demandaria ora por isto, ora por aquilo. E
dificultando a previsibilidade de suas interlocuções mercantis,
os modos de satisfazer suas carências por meio destas ou
daquelas demandas seriam diversos entre eles, estabelecidos que
seriam só por cada qual mesmo, conforme ditasse o seu arbítrio,
um arbítrio sendo diferente de outro. Para a satisfação de uma
mesma carência, decidiria este fazer uso de um objeto, aquele de
outro; o objeto que àquele satisfaria uma carência, a este
satisfaria outra. Não poderiam, assim, se basear em si mesmos
para prever o comportamento dos demais. E mais, sobre suas
necessidades, dificultando ainda o mútuo conhecimento, não
conversariam ou, se conversassem, não haveria como entre eles
haver confiança. Ninguém, na verdade, contaria a ninguém qual
seriam propriamente suas carências. Cada qual, carente,
esconderia qual seriam suas específicas carências, ao menos quão
grande seriam. Dirigir-se-iam ao mercado esperando explorar as
carências dos outros; só por elas poderiam fazer com que eles
entregassem o que tivessem como seu. Esperariam até encontrar os
outros mais carentes do que a si próprios, ou ao menos fazê-los
assim entender. Esperaria, por exemplo, o nosso sapateiro que lá
estivesse o nosso tecelão com os pés descalços ou maltratados
por serem já velhos e desgastados seus calçados, premido, pois,
o tecelão, pela necessidade de novos calçados, e premido por
essa necessidade mais do que ele, sapateiro, pela necessidade de
tecido; para poder, então, este, o sapateiro, fazer com que,
pelos seus sapatos, de que tanto precisaria o tecelão,
entregasse aquele um bom número de metros de seu tecido. Seria
diferente, entenderia o sapateiro, se ele é que lá estivesse com
seu corpo mal coberto e o tecelão com seus pés bem calçados;
particularmente se assim o visse o outro. Mesmo que carente do
tecido do outro pela má cobertura de seu corpo, procuraria
escondê-lo para que, por vê-lo com frio, o tecelão não viesse a
entender que poderia obrigá-lo a entregar os seus calçados por
um menor número de metros de seu tecido ou, então, mais de seus
calçados por um mesmo tanto de tecido. Cada qual, movido pelo
seu próprio egoísmo, se dirigiria ao mercado esperando poder

36
explorar a premência das necessidades alheias para melhor poder
suprir as próprias. Nestes termos, não seria prudente revelar-se
como carente de nada. A ciência do bem mercadejar envolveria
mesmo o saber aproveitar-se de quem estaria obrigado a oferecer
mais pelo mesmo bem; para isto, cada um valendo-se de todas as
possíveis fraquezas de seus interlocutores econômicos. O custo
de obtenção de um bem poderia ser entendido como inversamente
proporcional à necessidade que dele se tivesse, sendo uma
imprudência expressar em sua verdade as próprias carências.
Ninguém, em defesa sensata de seus interesses, deveria dizer o
quanto, propriamente, estaria interessado nisto ou naquilo.
Ninguém revelaria assim quais seriam propriamente suas
necessidades, todos as segredando com receio de que, por
expressá-las, poderiam vir a ter de pagar mais para satisfazê-
las. Não se poderia, por isso, confiar na declaração dos demais
e por ela saber qual viria a ser em um momento qualquer sua
efetiva demanda ou o quanto se estaria demandando por alguma
coisa; sendo que, entenderíamos, só a satisfazendo poderíamos
vir a satisfazer as nossas próprias.24
Não poderiam basear-se em si próprios para prever quais
seriam as demandas dos demais nem como confiar em suas
declarações, vendo-as como expressões de quais viriam a ser suas

24
O conhecimento de fato dos objetos de troca não passa para Marx de
uma ficção jurídica: ”Na sociedade burguesa reina a ficção jurídica de
que todo ser humano, como comprador, tem um conhecimento enciclopédico
das mercadorias.“ (O capital, nota 8, p. 42) — Talvez se possa citar
aqui Engels no que Marx, na Contribuição para a crítica da economia
política (Lisboa, Estampa, 1971, p. 30), considera um ”genial esboço“
de uma crítica da economia política: ”[...] se enfretan, pues, dos
individuos movidos por intereses diametralmente opuestos, y el
conflicto que entre ellos se crea no puede ser más hostil, ya que el
uno conoce perfectamente las intenciones del otro y sabe que son
antagónicas a las suyas. El primer resultado de ello es, por lo tanto,
de una parte, la mutua desconfianza, y de otra la justificación de
dicha desconfianza, el empleo de medios inmorales para la consecución
de un fin inmoral. Así, por ejemplo, uno de los primeros principios
del comercio es el secreto, la ocultación de cuanto pueda mermar el
valor de la mercancía de que se trata. Consecuencia de ello: al
comerciante le es lícito sacar el mayor provecho posible de la
ignorancia, de la confianza de la otra parte, y atribuir a su
mercancía cualidades que no posee. En una palabra, el comercio es el
fraude legal.“ (Friedrich Engels, Esbozo de crítica de la economía
política, em Karl Marx e Arnold Ruge, Los Anales Franco-Alemanes,
tradução de J.M. Bravo, Barcelona, Martinez Roca, 1970, p. 122)

37
reais carências e a verdadeira natureza de suas demandas. Mas
como quer que fosse, de alguma maneira haveria de se tentar
prever suas demandas. Não haveria mesmo como deixar de fazê-lo,
pois vir a estar em condição de satisfazê-las seria condição
propriamente iniludível de participação nas trocas. Ora, não
contando com a confiabilidade do que se declarasse e não se
podendo basear em si mesmo para pensar os outros, a demanda a
ser satisfeita não teria como vir a ser prevista senão por
aquilo que cada qual, por própria conta e risco, pudesse
observar nos demais. No que mais alguém poderia referenciar-se?
Lembremo-nos de nosso tecelão. Talvez pudéssemos vê-lo agora nas
lides do mercado com alguns metros de seu tecido na expectativa
de trocá-los por calçados. Mas para que lá agora estivesse com
seu tecido, teria sido necessário que, antes, o tivesse
produzido e, para que nisto se houvesse empenhado, de alguma
forma haveria de ter sido motivado; e seus motivos, só poderia
tê-los encontrado, na verdade, na observação da demanda passada
dos demais. O nosso tecelão teria, por exemplo, antes, em uma
oportunidade passada qualquer, observado a presença de nosso
sapateiro ofertando seus calçados, calçados que nosso tecelão
bem veria calçando seus pés; e teria também observado, o nosso
tecelão, que o sapateiro dos calçados para seus pés mostrara-se
interessado em trocá-los por tecido; tecido de que por si mesmo
aquele, como sapateiro que era, não poderia munir-se, e tecido
que, por seu lado, o nosso tecelão, por seu ofício mesmo,
poderia vir a fornecer-lhe. Naquela oportunidade, o nosso
tecelão havia mesmo trazido algum tecido de sua própria produção
ao mercado; mas, quando se defrontara com o sapateiro dos seus
desejados calçados, já o houvera trocado, por um tanto de
batatas ali e por algumas cebolas acolá, encontrando-se, no
momento em que se defrontara com o sapateiro dos seus calçados,
sem o que lhe oferecer. Mas lá estivera o nosso sapateiro com
seus desejados calçados e o nosso tecelão bem observara que lá
estivera também desejoso de tecido. Teria sido talvez assim que
o nosso o tecelão viera a pensar que, em uma próxima
oportunidade, poderia obter os calçados de que necessitava se
voltasse a apresentar-se no mercado com um tanto do seu tecido.

38
Teria sido por suas observações e considerações de um fato
passado, que ele agora, no presente, teria em mãos algum tecido
para trocar por calçados. Com certo tanto de seu tecido, vê-lo-
íamos então de volta às lides das trocas no seu toma lá dá cá.
Mas agora, no presente, o nosso tecelão, poderia não encontrar
de novo nosso sapateiro. Não o reencontraria, talvez,
simplesmente porque nenhuma necessidade o tivesse levado de novo
até lá. E se acaso nosso sapateiro lá de novo estivesse e nosso
tecelão tornasse a encontrá-lo, poderia, no entanto, nosso
tecelão vê-lo não tendo mais em mãos quaisquer calçados. Teria,
o sapateiro, acaso já trocado todos os calçados que trouxera ou,
se tivesse ainda alguns em mãos, talvez não quisesse mais trocá-
los por tecido. Poderia ser assim. Entre a observação passada de
nosso tecelão e agora, quando o veríamos novamente em meio às
lides do mercado, teria transcorrido certo tempo: o tempo que
entenderíamos tivesse sido o necessário para que produzisse o
seu tecido. E no transcorrer desse tempo, a situação antes por
ele observada poderia ter mudado, não podendo ele mais obter,
com o tecido que agora teria em mãos, os sapatos de seus sonhos.
Na verdade, nada lhe poderia dar a certeza de que um
comportamento passado qualquer no mercado tornaria a se repetir
e que, portanto, pudesse basear sua produção nessa expectativa.
O nosso sapateiro, que procurara por tecido, poderia,
simplesmente, ter deixado de fazê-lo, não se fazendo mais
presente no mercado. Teria já obtido seu tecido ou, então, se
continuasse a estar pelo mercado procurando por algum tecido,
poderia ter passado a preferir não mais aquele específico tipo
de tecido que nosso tecelão em particular produziria, mas um de
algum outro tipo, produzido por outro tecelão. Se ainda
interessado em tecido, preferiria o tecido de outro tecelão por
sua melhor qualidade ou talvez, simplesmente, pela sua adequação
mais completa a um seu específico uso ou, ainda, por muitas
outras diferentes razões. Quaisquer que fossem suas razões
seriam sempre só suas próprias razões, não outras; sempre suas
próprias razões, sem que ninguém tivesse nada a ver com elas. A
escolha por parte do nosso sapateiro de qual seria o tecelão a
satisfazer sua necessidade de tecido — quando a tivesse, se é

39
que a tivesse — seria uma decisão exclusivamente sua; ninguém
mais teria nada a ver com ela. Sendo assim, o nosso tecelão que
tanto havia se esmerado tecendo seu tecido para nosso sapateiro,
como também qualquer outro que o nosso sapateiro não escolhesse
para se relacionar por uma razão ou outra, um e outros, poderiam
ficar com seus pés descalços; a menos, é claro, que encontrassem
outro sapateiro que lhe fornecesse os calçados que desejavam em
troca de seus tecidos. Para satisfazer suas próprias demandas
precisariam satisfazer as demandas dos demais. Mas no suposto de
seu apego exclusivo aos seus próprios interesses egoísticos, não
poderiam procurar atendê-las senão a partir de suas próprias
previsões do que elas poderiam vir a ser. A satisfação da
demanda dos demais — sendo condição absolutamente necessária das
relações sociais de troca — não poderia ser imaginada como vindo
a ser dada senão pela previsão particular de cada um dos
indivíduos envolvidos, cada qual a fazendo por si mesmo, a
partir de seu próprio ponto de vista exclusivo. Fariam todos
suas previsões do que os demais deveriam vir a procurar; a
partir disso, empenhar-se-iam em produzi-lo. Seria, assim, a
expectativa da demanda dos demais, e não sua demanda real e
efetiva, que acabaria por determinar a produção de todos. E, na
verdade, uma previsão segura a respeito da demanda dos demais
seria impossível, pois enfrentaria sempre o arbítrio de todos.25
Cada indivíduo, sendo livre no mercado, decidiria por si
mesmo o que tomaria e o que entregaria por meio da troca,
modificando o conteúdo tanto de sua oferta como de sua demanda

25
”[...] a divisão social do trabalho é um organismo de produção que
se formou e continua a evolver, natural e espontaneamente, à margem da
consciência dos produtores de mercadorias. A mercadoria pode ser
produto de nova espécie de trabalho, que se destina a satisfazer
necessidades emergentes ou mesmo criar necessidades até então
desconhecidas. [...] O produto satisfaz hoje determinada necessidade
social. Amanhã perde, talvez, sua posição, parcial ou totalmente, para
um produto semelhante. Mesmo o trabalho do nosso tecelão de linho [o
tecelão de Marx e não o nosso, mas os dois com os mesmos problemas,
mesmo porque o nosso é uma paródia do dele], embora seja um elemento
comprovado da divisão social do trabalho, não tem, por isso,
assegurado o valor de uso de seus 20 metros de linho. Estando
saturada, pelos produtores rivais, a necessidade social do linho —
pois ela tem limites, como tudo mais —, o produto do nosso amigo
torna-se excedente, supérfluo e inútil. A cavalo dado não se olha o
dente, mas ele não vai ao mercado para presentear ninguém.“ (O
capital, p. 119)

40
exclusivamente conforme seu próprio arbítrio. Para uma mesma
demanda ou oferta cada um poderia escolher diferentes
interlocutores sociais, substituindo-os conforme sua própria
vontade. No pressuposto da irrestrita liberdade de cada qual,
ninguém poderia dizer nada sobre o que cada um dos outros
deveria ofertar ou demandar, nem lhes determinar quais deveriam
ser seus parceiros econômicos. Para o mercado, a demanda e a
oferta de cada um e a escolha dos interlocutores econômicos
seriam fruto de uma decisão estritamente pessoal, estando todos
os demais privados de nelas interferirem. Os partícipes das
relações de troca demandariam e ofertariam o que quisessem,
quando e como quisessem; relacionar-se-iam com quem quisessem,
só quando quisessem. Nas relações sociais de troca, todos se
comportariam exclusivamente segundo sua própria vontade. Assim,
nada poderia garantir que o comportamento passado de qualquer um
se repetisse. A liberdade que todos teriam possibilitar-lhes-ia
mudar de comportamento a qualquer momento. Como demandantes,
poderiam alterar o conteúdo de sua demanda, como também escolher
livremente com quem se relacionar para satisfazê-la; como
ofertantes, teriam plena liberdade de decisão quanto à natureza
do bem de sua oferta, escolhendo da mesma maneira, também
livremente, seus interlocutores sociais.
Ofertariam o que quisessem e como quisessem, quando
quisessem e para quem quisessem. E mesmo que o que ofertassem
fosse para o consumo dos outros, ofertá-lo-iam exclusivamente
tendo em vista sua própria demanda. Em suas ofertas não
teríamos, na verdade, senão suas demandas. Estariam voltados
exclusivamente para a obtenção dos bens de sua própria demanda,
apresentando-se nas trocas só com o que entendessem viesse
satisfazê-la, só se relacionando com quem se apresentasse como
podendo fazê-lo. No pressuposto de seu estrito egoísmo, não
seria senão consigo mesmos que estariam preocupados. Por isso,
os outros lhes seriam indiferentes e demonstrariam essa
indiferença substituindo-os por terceiros. Cada qual seria para
o outro um interlocutor sempre descartável; também sempre
imprevisível. Descartar-se-ia livremente o outro; livremente se
declinaria de relacionar-se com ele. Ninguém poderia fazer nada

41
para que alguém mais, este ou aquele, quem quer que fosse,
viesse a se comportar conforme sua demanda, demanda determinada
de algo por uma determinada contrapartida de uma particular
oferta, demanda disso e não daquilo, em troca disto e não
daquilo. Estaria lá alguém, por exemplo, a oferecer calçados,
quando o que se desejaria seria que estivesse a oferecer as
meias que melhor acomodassem os pés em calçados como aqueles.
Alguém talvez oferecesse meias para aqueles calçados, mas não as
entregaria em troca de alguns metros de tecido; só o que se
poderia oferecer-lhe. Estaria alguém a oferecer o que não seria
desejado ou, então, na recusa de entregar o que se desejasse em
troca do que se poderia oferecer. Estaria lá como que se
recusando a prestar um serviço, sendo opaco às determinações de
outra vontade que não a sua própria. Seria mesmo um outro, uma
exterioridade, só deixando de sê-lo quando, por si mesmo, em
função de seu próprio interesse, viesse a estar em posse de um
bem que quiséssemos como nosso, e mais, com a disposição de
transferi-lo em troca de um outro bem que se lhe pudesse
oferecer como objeto de seu próprio desejo. Nessa situação, ver-
se-ia nele a causa de virmos a nos alegrar; ver-se-ia nele o
objeto que poderia acabar por satisfazer nosso desejo. Mas não
haveria como se produzir com certeza esse momento. Esse momento
não poderia realizar-se pela vontade exclusiva quer de um, quer
de outro. Ninguém teria como fazer com que qualquer outro viesse
posicionar-se consigo em uma relação de troca. Cada um, por si
mesmo, teria que lá se colocar. Poderia fazê-lo ou não. Isto
dependeria exclusivamente de seu próprio arbítrio, da
consideração de sua própria necessidade exclusiva e de suas
sempre precárias previsões a respeito do comportamento da
liberdade dos demais.26

26
”Os componentes dispersos do organismo social de produção,
configurados na divisão social do trabalho, têm suas funções e
proporcionalidade determinadas de maneira espontânea e aleatória. Por
isso, descobrem nossos donos de mercadorias que a mesma divisão do
trabalho, ao fazer deles produtores privados, torna independente deles
o processo social de produção e as próprias relações que mantém dentro
do processo, e, ainda, que a independência recíproca das pessoas se
integra num sistema de dependência material de todas as partes.“ (O
capital, p. 120-1)

42
No mercado, seriam os homens inteiramente livres para
ofertar e demandar o que quisessem; também para escolher seus
interlocutores econômicos. Todos teriam o poder de decisão sobre
o que ofertar ou demandar e também o de relacionarem-se só com
quem e quando quisessem. Meramente egoístas — como os quer Marx
—, nessa sua liberdade, seriam totalmente indiferentes uns em
relação aos outros. Cada um, livre, cuidaria de si mesmo, não
tendo obrigação alguma para com os demais. Só se preocupariam
com a sociedade, com os outros, como meio através do qual
atingiriam seus próprios fins pessoais. Ninguém se preocuparia
com os fins dos outros. E, assim, essa sua liberdade, essa
indiferença de cada um em relação aos demais, faria com que suas
relações sociais acabassem por ser imprevisíveis. Seria a
liberdade individual de personalidades egoístas a responsável
pela sua incerteza no âmbito social: incerteza de suas próprias
relações e incerteza da posse dos bens que só por seu meio
poderiam ser obtidos. Estariam em condição de permanente
incerteza quanto à possibilidade de estabelecerem relações com
quem quer que fosse; o que iria marcá-los integralmente pela
dependência recíproca em que de fato se encontrariam. No modo de
sociabilidade das trocas, os homens seriam livres na
determinação de suas ofertas e demandas individuais; seriam
livres em todos os seus atos individuais no mercado. E
exatamente por isso, pela liberdade que teriam nos seus
particulares atos de troca, não poderiam ter suas relações
sociais como resultantes de uma mesma afirmação de liberdade.
Impossibilitados estariam de livremente constituírem suas
relações sociais. Seriam livres quando se dispusessem a ofertar
algo, também quando se pusessem a demandar por alguma coisa; mas
não teriam a liberdade de fazer com que suas ofertas viessem a
ser correspondidas pelas demandas dos outros ou suas demandas
satisfeitas pelas ofertas dos demais. Não teriam, na verdade, a
liberdade de vir constituir sequer uma única de suas relações
sociais; menos ainda a série toda das relações de troca
necessárias a cada um, e mais, ainda menos, a liberdade de
constituir o conjunto todo das relações necessárias à manutenção
de todos. Tudo dependeria de encontros que não poderiam ser

43
assegurados. Nenhum deles poderia trazer ninguém para uma única
que fosse das várias relações de intercâmbio de que
necessitaria, por mais que desejasse. Para isso, não bastaria só
a vontade de um; seria preciso também a vontade de um outro e
sobre a vontade alheia ninguém teria poder algum. No interior de
cada uma das relações de troca, cada qual se mostraria e far-se-
ia reconhecer como livre pela liberdade de suas ofertas e
demandas, vendo e reconhecendo no outro a mesma liberdade; mas
ninguém teria a liberdade de criar sequer uma única relação de
troca, determinando a oferta e a demanda alheias. Para o
estabelecimento de uma relação de troca, seria preciso a vontade
de um e seria preciso também a vontade de outro, mas nem este
teria como agir decisivamente sobre aquele, nem aquele sobre
este, voltados que estariam exclusivamente para si próprios. Ao
acaso, sem liberdade, na verdade, se relacionariam — assim
entende Marx.27

27
”La circulation est le mouvement ou la aliénation générale apparaît
comme appropriation générale et vice versa. Bien que l’énsemble de ce
mouvement apparaisse comme um processus social dont lês moments isoles
émanent de la volunté consciente et dês fins particulières dês
individus, la totalité du processus est em fait um agrégat objetif, né
spontanément. Issue de l’interation conscient des individus cette
cohésion n’est pas pour autant um fait de leur cosncience, et ils ne
l’assument pas comme totalité. Leurs propres conflits produisent une
force sociale au-dessus d’eux, qui leur est étranger; l’action qu’ils
exercent les uns sur les autres devient um processus et une puissance
que échappent à leur maîtresse. Totalité du processus social, la
circulation est aussi la primière forme dans laquelle non seulement le
rapport social — comme c’est le cas avec une pièce de monnaie ou avec
la valeurr d’échange — mais ancore l’ensamble du mouvement da la
société elle-même se présent comme um fai indépendant des individus.
Les interrelations sociales des individus s’erigent em autorité
autonome au-dessus d’eux: qu’on représent cette autorité comme um fait
de la nature, du hasard ou de quelque autre force, elle est le
résultat fatal de ce que le point de départ du mouvement social n’est
pas le libre individu social.“ (Grundrisse, p. 127, p.38 do
manuscrito, tradução de Maximilien Rubel, inserida na introdução do
Livro II de O capital, em Karl Marx, Œevres, Économie II, Paris,
Gallimard, 1968, p. 506)

44
O contraditório

Nas trocas de mercado, os homens definiriam suas ofertas e


demandas como quisessem; ninguém poderia dizer a ninguém mais
quais deveriam ser as suas próprias: cada um ofertaria e
demandaria o que quisesse, quando quisesse, a quem quisesse.
Ofertas e demandas dependeriam exclusivamente do arbítrio de
cada qual. Definir-se-iam assim, no mercado, os homens como
livres — mesmo assim lá se definiriam conforme Marx. Só por si
mesmos se posicionariam em relações econômicas de troca; ninguém
poderia ser determinado por mais ninguém a nelas entrar, com o
que e visando o que entrar. Nelas entrariam só tal qual a
vontade de cada qual determinasse; e por vontade própria, a
partir de si mesmos, fariam tudo só mesmo para si mesmos —
acrescenta mesmo Marx. A vontade de cada um seria determinada só
a partir do egoísmo de cada qual mesmo. Todos não pensariam
senão em si próprios e exclusivamente a partir de si próprios
iriam colocar-se no mercado em relações com os demais. As
relações de troca existiriam exclusivamente como fruto da
decisão de arbítrios egoístas.
Mas sendo assim — continua Marx —, sendo os homens livres
nas trocas por deterem egoisticamente o senhorio exclusivo de si
próprios, seria impossível que viessem a se conhecer mutuamente.
Dada a liberdade e o egoísmo de todos, não teriam ali como
conhecer uns aos outros, mesmo que quisessem. Não haveria como
fazê-lo: o direito dado a cada um de só por si mesmo
egoisticamente se determinar o impediria. O que se pensasse dos
demais, acaso se procurasse de fato neles pensar, não passaria
de diletantismo vazio; pois conhecer, como ao que se poderia de
fato determinar, só mesmo cada um a si mesmo. E assim, mesmo que
em função de suas necessidades precisassem estabelecer relações
entre si, não saberiam, na verdade, ao certo, como vir a fazê-
lo. A realização das trocas que lhes seriam necessárias seria
preocupação de todos, mas só como ansiedade de cada qual. Todos,
ainda que uns com os outros se relacionando, seriam, na verdade,
solitários, pois cada qual, tendo em vista exclusivamente seus

45
próprios fins, ao fim, só consigo mesmo se relacionaria. Os
outros seriam vistos meramente como meios em relações, bem na
verdade, só de cada qual consigo mesmo. As trocas de cada um
seriam negócio só seu, assunto que diria respeito exclusivamente
a si mesmo. Ninguém estaria preocupado com as trocas dos outros.
As trocas de uns e outros se relacionariam, visto que seriam
mesmo entre uns e outros; mas seriam o resultado da ação de
pessoas solitárias, voltadas só para si mesmas, preocupadas só
com seus próprios fins; e sem que, na liberdade de seus
egoísmos, o comportamento de uns pudesse ser previsto pelos
outros. As trocas de uns dependeriam das dos outros; mas
senhores solitários de si mesmos, não teriam como fazer com que
se relacionassem. Cada qual, podendo cuidar só de si mesmo,
acabaria por deixar mesmo a si sem cuidado, pois do cuidado de
si dependeria a participação dos outros, e dos outros ninguém
poderia cuidar para que agissem conforme se desejasse.
Relacionar-se-iam, este e aquele, aquele mesmo e outro mais,
ainda mais outro, acaso com este mesmo ou mais outro ainda; mas
como quer que fosse, nem mesmo uma única de suas relações
poderia ser previsível ou obrigada a acontecer, menos ainda ser
pensada na certeza de sua conexão com qualquer outra mais. Todas
seriam dependentes da indeterminabilidade dos egoístas arbítrios
envolvidos e, portanto, em si mesmas indetermináveis. E se em
sua individualidade as relações de troca seriam já fortuitas,
pois dependentes do egoísmo de cada qual, com o conjunto delas
todas não poderia ser diferente. Sua totalização dar-se-ia ao
acaso, como um resultado natural, impessoal. O conjunto das
relações de troca todas, a sociedade que por elas existiria, não
passaria de uma mera somatória de relações sempre ocasionais e
não necessárias. Ao estarem os homens voltados exclusivamente
para si próprios, todos sendo objeto de um mesmo desprezo por
parte dos outros, suas trocas não poderiam determinar-se
socialmente senão como uma somatória aleatória. Propriamente,
não se definiria nenhuma sociedade. A totalidade das trocas — o
que se poderia entender viesse ser a sociedade por elas
constituída — não estaria sob o poder de definição de ninguém. O

46
conjunto das relações dos homens por meio das trocas ficaria por
se definir.
Com a ausência do conhecimento e assenhoramento do que
seria a sua própria sociedade, na impossibilidade de domínio de
suas relações no mercado, os homens não poderiam lá se afirmarem
como propriamente livres: tal seria a consequência do que seria
sua liberdade individual no mercado. Pela liberdade de todos em
um voltar-se exclusivamente para si próprios — cada qual sendo
sempre só um ser egoísta, e podendo sê-lo livremente —, tudo
acabaria por se lhes fazer estranho. Pela liberdade que teriam
como meros egoísmos na definição de si mesmos no mercado — dado
o desconhecimento mútuo e a imprevisibilidade de seus
comportamentos daí decorrentes —, acabariam por perder-se na
ignorância da própria associação que constituiriam; e assim, não
haveria como lá considerá-los propriamente livres: far-se-iam
estranhos a si mesmos e perderiam sua liberdade. As relações que
estabeleceriam no mercado, ainda que o fossem a partir da
liberdade de cada um, não seriam objeto da liberdade de ninguém.
A liberdade de cada um levaria mesmo a perda da liberdade de
todos. A associação humana, ainda que coisa propriamente humana,
posto que criada e composta por homens, escaparia à sua própria
compreensão e ao exercício de sua liberdade.
Os homens só se envolveriam em relações com os outros
porque necessitados e não livres para por si mesmos se
determinarem. No mercado, no entanto, seria acidental o
estabelecimento de qualquer relação. Não tendo a liberdade de
estabelecer as relações que lhes seriam necessárias à sua
existência, não a teriam assegurada. Sem que uns pudessem
determinar o comportamento dos outros, a realização por parte de
cada um das trocas de que necessitasse seria coisa que não
poderia ser tida como certa. Ninguém estaria seguro de realizar
sequer uma das trocas de que precisaria para se munir daquilo de
que necessitasse. Estariam, assim, inseguros de terem suas
pessoas providas dos bens de que carecessem. A liberdade que
lhes seria dada no mercado como que se faria vazia, pois não
lhes daria condição a que dessem sustentação a suas próprias
vidas. Voltados sobre si mesmos, desinteressados uns dos outros

47
ou uns vendo nos outros só um meio para a própria satisfação
egoísta, todos sendo objeto de um mesmo desprezo, e sem que
nesse desprezo pudessem uns contar com os outros, não teriam no
mercado a liberdade de se assegurarem de sua sustentação, pouco
lhes valendo qualquer outra liberdade que lá tivessem. Tal como
Marx vê o mercado, como um agregado humano que escaparia ao
controle dos próprios homens, porque cada um estaria voltado
exclusivamente para si mesmo, iriam até lá os homens
insatisfeitos, à procura da supressão de sua condição de
carência, e poderiam de lá regressar sem que trouxessem consigo
o que teriam procurado, da mesma forma insatisfeitos. O mercado
seria, sim, um campo de possibilidades, se nele não vissem a
possibilidade de encontrar os objetos de sua demanda, para lá
não se dirigiriam; mas o mercado nada lhes asseguraria, sendo
também um campo de incertezas. Em meio a possibilidades e
incertezas, estariam sem a possibilidade de livremente se
afirmarem como pessoas através dos objetos de sua necessidade:
não teriam esta liberdade no mercado.
Só por se mostrarem em meio às relações de troca, por ali
se fazerem presentes, dir-se-iam já os homens em uma condição de
carência e não liberdade; já assim — para Marx — de princípio,
se encontrariam no mercado. Estariam a dizer, simplesmente por
lá estarem, que por si só cada qual não poderia ser, que lhes
faltaria algo, que precisariam desse algo e que para obtê-lo
precisariam de alguém mais. E mais ainda no entendimento de Marx
estariam a dizer os homens simplesmente por se posicionarem no
mercado: estariam a dizer que em função de suas carências,
precisando dos demais, seriam obrigados a servi-los, pois só os
servindo viriam a servir-se deles. Nisto reafirmariam que sua
condição não seria a de quem não estivesse na dependência dos
outros; apresentar-se-iam, ao contrário, como quem deles
dependeria e, mais, por isso devendo servir-lhes. Não teriam em
mãos os objetos necessários à sua existência, careceriam deles;
por isso, dependentes do favor de quem os possuísse, e que só
seria conquistado pela contrapartida de um serviço. Precisariam
pôr-se a serviço dos outros para que os outros se pusessem ao
seu. Declarariam, por seu simples posicionar-se em uma relação

48
de troca, que estariam na dependência dos demais e que seria
preciso servi-los, fornecendo-lhes aquilo do quê, por sua vez,
fossem carentes. Não teriam no mercado a liberdade de se
furtarem ao serviço dos demais; não teriam lá a condição de
serem senhores de si mesmos também porque lá estariam dados em
uma condição de serviço. No mercado, serviriam mesmo de meio aos
outros. Ainda que seu objetivo estivesse na realização exclusiva
de suas próprias finalidades — ainda que só a si mesmos vissem
como fim —, não poderiam deixar de pôr-se na condição de meio ou
instrumento a serviço dos outros. Ainda por isto, pela sua
condição necessária de prestadores de serviço — entende Marx —
os homens não seriam livres no mercado.
Em sua carência e obrigação de serviço, como também, já
antes, no seu desconhecimento de si próprios enquanto sociedade,
assim entendidos os homens no mercado, tanto pela carência como
pelo serviço, como ainda, já antes, pelo desconhecimento de sua
própria associação, estariam eles em condição de não liberdade.
Mas mesmo conforme Marx, à sua condição de não liberdade, não
deixariam de associar, lá mesmo no mercado, uma condição
contrária, de liberdade. Marx não deixa de ter em conta que
alguma espécie de liberdade os homens teriam em suas relações de
troca: em uma associação por meio da troca, todos seriam livres
para definirem suas próprias ofertas e demandas. As ofertas e
demandas de cada um só dele mesmo dependeriam. Tanto no que
demandassem como no que ofertassem todos imporiam sua
autoridade. Com o que demandassem teriam uma relação afirmativa,
com o que ofertassem, uma negativa; mas quer pela afirmativa
quer pela negativa, impor-se-iam como sujeitos que só por si
mesmos e para si mesmos existiriam. A condição de liberdade que
ali teriam não seria aquela de se assenhorarem integralmente de
suas próprias vidas, cada um como uma vontade imperiosa na
independência de tudo mais. Esta liberdade, nega-lhes Marx.
Negando-lhes esta, dá-lhes, no entanto, mesmo ali, outra. Em
outro sentido, os homens seriam lá livres. Estariam no mercado
como seres carentes, dependentes e não livres dos demais,
inseguros de que sua condição de carência pudesse vir a ser
suprimida; mas mesmo assim, sem que fossem livres para se

49
assenhorarem de suas próprias vidas; mesmo assim, sem esta
liberdade, considera Marx que, quando se colocassem por meio das
trocas em relação uns com os outros, não teriam de abdicar de
seu estatuto de sujeitos que só por si e para si mesmos se
determinassem, ofertando cada qual o que quisesse, demandando o
que desejasse. Afirmar-se-iam de fato como livres, como
determinantes de seus próprios atos no que demandassem e
ofertassem. Só por si e para si mesmos nas relações de troca se
posicionariam por meio de suas ofertas e demandas. Ninguém os
constrangeria em sua definição. Seriam livres no modo de se
posicionarem por seu meio. Só livremente se relacionariam por
meio das trocas; só por si mesmos, livremente, as
estabeleceriam, tendo a si próprios como fins em suas demandas e
não tendo em suas ofertas senão a satisfação de suas próprias
demandas. Relacionar-se-iam nas trocas como vontades que só em
si mesmas veriam o senhorio definitivo. No toma lá dá cá do
mercado, ninguém estaria sob a autoridade de ninguém mais;
ninguém teria de submeter sua autoridade à de ninguém mais.
Teriam lá suas vontades efetivamente presentes como desejo, como
querer à procura de satisfação. Seriam livres na definição de
seus fins e meios. Poderiam até não vir a realizar seus fins,
não encontrando seus meios; mas só a eles teriam como
determinantes de seu modo de agir e comportar-se. Só para si e
por si agiriam. Os fins e os meios dos outros, sim, a serem
considerados, seriam só meios para os seus próprios fins. E
ainda que precisassem colocar-se a serviço dos demais, seria só
para si e por si que o fariam. Só para si e por si mesmos em uma
condição de serviço colocar-se-iam. Tudo fariam tudo
subordinando a seus próprios fins, conforme a definição de seus
próprios meios, cada qual se afirmando como pessoa que não
estaria na posição de mero meio a serviço de outrem. A si mesmos
teriam como fim determinante, e só mesmo conforme a definição de
seus próprios meios afirmariam seus fins, escolhendo seus meios
a partir de seus fins; ainda que, para seus fins e conforme seus
meios, fosse necessário definirem-se em uma condição de serviço.
Só se relacionariam com outra vontade, servindo-a, quando esta
se pusesse a serviço da sua. Todos estariam colocando a si

50
próprios, por seus próprios meios, como fins exclusivos, dando
mesmo a seus fins e seus meios o caráter de condicionantes da
realização dos fins dos demais. Estariam no mercado como
sujeitos insatisfeitos, sob a autoridade de suas próprias
necessidades, na condição de serviço aos demais, sem que
tivessem controle sobre suas próprias relações, e ainda mesmo,
na impossibilidade de se verem assegurados do suprimento dos
bens cuja falta lhes definiria numa condição de carência; mas
apesar de tudo isso — sustenta Marx — não estariam ali tendo
abdicado de reivindicar pela afirmação de sua liberdade na
definição das carências que seriam as suas, por meio da
definição livre de suas demandas, como também na definição dos
serviços que seriam os seus aos outros por meio de suas livres
ofertas. No mercado, por meio de suas livres ofertas e demandas,
dariam livremente definição a si mesmos: nisto lá seriam, sim,
os homens livres. Marx tem mesmo assim os homens no mercado.
E assim como a uma condição de não liberdade associar-se-
ia no mercado uma condição contrária de liberdade, vê Marx que,
a uma condição de egoísmo, ali também se associaria uma condição
contrária de prestação de serviço. Seriam, sim, os homens
egoístas. A liberdade que teríamos no mercado far-nos-ia mesmo
mais egoístas. As trocas seriam em nada fraternas. Constituir-
se-iam, não, propriamente, de uma associação entre homens, mas
antes da luta de seus egoísmos libertos de qualquer
constrangimento. Na liberdade que no mercado teríamos, não
encontraríamos, na verdade, mais do que uma mera reivindicação
de afirmação irrestrita de nossos egoísmos. A liberdade do
mercado não seria senão um meio de nos desobrigarmos de
quaisquer deveres para com os demais. Egoístas, em nada
fraternos, seriam os homens: assim sempre os tem Marx, e assim
os tem especificamente no que diz respeito à afirmação de sua
liberdade nas relações de troca. Ainda que no mercado uns se
colocassem livremente a serviço dos outros, não o fariam senão
para serem servidos. Lá se colocariam a serviço dos outros só
para que, a si mesmos, fossem pelos outros servidos. Não seriam
mesmo fraternos. No entanto, mesmo sustentando que os homens em
nada seriam fraternos, considera Marx que no mercado, mesmo

51
assim, não poderiam deixar de se colocar uns a serviço dos
outros — mesmo necessariamente e mesmo livremente —, havendo nas
relações de troca, pois, apesar de não serem nem um pouco
fraternos, efetiva cooperação entre eles. Sua motivação nas
trocas seria egoísta, mas nem por isso menos necessária à
prestação de um serviço. Nas relações de mercado, para que seus
egoísmos se satisfizessem, deveriam se conformar à necessidade
da mútua prestação de serviços. Para realizarem seus fins
egoístas, beneficiando-se do serviço dos outros, teriam de se
fazer meios para os fins dos outros, prestando-lhes um serviço;
mesmo livremente teriam de fazê-lo. Uns precisariam satisfazer
as demandas dos outros, conforme, em liberdade, uns e outros as
tivessem manifesto, e satisfazê-las por meio do que, também em
liberdade, ofertassem. Uns e outros deveriam fazer-se
complementares por meio de suas livres ofertas e demandas, a
livre oferta de um satisfazendo a livre demanda do outro e vice-
versa. Só assim se relacionariam no mercado. À sua condição de
liberdade na definição de suas ofertas e demandas, somar-se-ia
no mercado — conforme mesmo o entendimento de Marx — a condição
de lá serem também prestadores de serviços mútuos, sendo lá,
pois, apesar de seus egoísmos, cooperantes. Nas trocas, seriam
cooperantes apesar do seu egoísmo. Haveria mesmo cooperação
entre eles no mercado — entende propriamente assim Marx,
insistindo que cada qual só teria mesmo como fim a satisfação de
sua própria demanda, mas que, no entanto, para tanto, teria de
solidarizar-se com os demais, destes satisfazendo também as
demandas. Só se uma e outra demanda egoísta presentes viessem a
ser satisfeitas processar-se-ia uma relação de troca. Só haveria
uma relação de troca se, sendo cada um dos presentes só mesmo um
egoísmo, fossem satisfeitos os dois, tanto um egoísmo como
outro. Cada qual, por meio de sua oferta, feita em busca da
satisfação egoísta de sua demanda, reconheceria em um outro um
mesmo direito de satisfação egoísta de sua própria demanda; isto
desde que prestasse também ele, o outro, por uma oferta sua, um
serviço seu à demanda egoísta do outro. Realizariam os homens
uma relação de troca quando encontrassem meio de livremente se
solidarizarem enquanto livres egoísmos com um mesmo direito de

52
virem a satisfazer-se. Seriam assim propriamente cooperantes em
suas relações de troca, ainda que só egoisticamente. No
entendimento de Marx, mesmo em seus egoísmos, ainda que de
propriamente fraternos nada tivessem, pois uns não se
preocupariam com os outros e seus fins senão como meios da
satisfação de si mesmos, mesmo assim, os homens encontrariam
meio de livremente se solidarizarem nas trocas, alcançando os
modos de uma cooperação livre na mútua satisfação de suas
demandas por meio de suas recíprocas ofertas. Insiste Marx em
que não se dedicaria interesse algum aos outros se acaso como
meios não fossem vistos; mas uns e outros, vendo os outros só
como seus próprios meios — mesmo livremente, mesmo em seus
egoísmos —, solidarizar-se-iam nas trocas por uma mútua
prestação de serviços. Ainda que, propriamente, em nada
fraternos, suas ações no mercado seriam, sim, de cooperação:
cooperariam na realização de seus fins egoístas.
E ainda, como à condição humana de não liberdade e ao
humano egoísmo associar-se-iam seus contrários no mercado,
liberdade e altruística prestação de serviços, também à condição
humana de desigualdade no mercado associar-se-ia uma condição
contrária de igualdade. Nada mais fariam os homens no mercado do
que procurar afirmar suas diferenças; sim, assim seriam.
Dirigir-se-iam ao mercado só para a satisfação de suas demandas
particulares e diferenciadas, com o que só pretenderiam afirmar-
se em suas distinções pessoais. Mas mesmo assim, no entanto —
adverte-nos Marx —, mesmo sendo lá seu único fim e propósito a
afirmação de suas distintas pessoas — só para isto sendo livres
e só por isto se pondo a serviço dos demais —; mesmo assim, em
sua desigualdade, e não mais do que procurando reafirmá-la,
colocar-se-iam em relações que seriam de fato de igualdade. Não
se apresentariam no mercado sem terem suas faces sociais
igualadas. Suas mercadorias seriam seu único meio de se fazerem
presentes, lá, suas faces sociais, e lá necessariamente
igualadas. Igualadas obrigatoriamente suas faces sociais, não
existiriam socialmente senão como pessoas iguais. A necessária
igualdade das mercadorias quando trocadas seria a sua única
forma de existência no mercado: unicamente como iguais no

53
mercado existiriam. Suas diferenças seriam desprezadas;
existentes de fato, não seriam consideradas. As mercadorias
intercambiadas seriam distintas — só por isso faria sentido
trocá-las —, mas ao serem trocadas deveriam afirmar-se
necessariamente como de igual valor. Para que fossem trocadas,
uma deveria valer pela outra, uma tanto quanto a outra. O
tecelão, só trocaria seu tecido por calçados quando entendesse
que os calçados valessem seu tecido. Trocaria seu tecido por
calçados só quando a aquisição dos calçados valesse a entrega de
seu tecido, seu tecido valendo os calçados ou os calçados, o
tecido. O sapateiro, por seu lado, também só trocaria seus
calçados pelo tecido quando entendesse o tecido valesse seus
calçados. Trocaria seus calçados pelo tecido só quando a
aquisição do tecido valesse a entrega de seus calçados, seus
calçados valendo o tecido ou o tecido, os calçados. Só se os
calçados de um valessem o tecido do outro, ou o tecido de um, os
calçados do outro, relacionar-se-iam. Entrariam em relação só se
entrassem com um bem e saíssem com outro de mesmo valor, só se,
pela relação, a posse de um viesse a se igualar à posse do
outro: a posse do tecido, à dos calçados para um; a posse dos
calçados, à do tecido para o outro. O tecelão, entrando com o
tecido, sairia com os calçados; o sapateiro, entrando com os
calçados, sairia com o tecido. Só se, pelo tecido, os calçados e
pelos calçados, o tecido, relacionar-se-iam. Para uns e outros,
seus bens precisariam valer os dos outros ou os dos outros os
seus. Só se os bens de uns viessem valer os dos outros, só se se
igualassem em seus valores, ocorreria a sua troca. E não
existiriam senão pelos seus bens. O sapateiro não importaria
para o tecelão, senão por seus calçados; o tecelão para o
sapateiro, senão por seu tecido. Não estariam interessados uns
nos outros, no que propriamente fossem ou no que pudessem
necessitar. Interessar-se-iam exclusivamente em obter, em trazer
para suas mãos, o bem que o outro tivesse como seu. Interessar-
se-iam exclusivamente pelos bens intercambiados. Tudo mais seria
desconsiderado, desprezado. Nesse desprezo de tudo mais que não
os bens transacionados, reduzir-se-iam em sua presença social a
esses mesmos bens. Necessariamente se igualando no seu valor os

54
bens transacionados, ao que estariam reduzidos os homens, eles
mesmos também se igualariam. Como traço definidor de suas
existências nas relações de troca, a uma real liberdade e também
a uma real cooperação na prestação de serviços, acrescentar-se-
ia a igualação ali de suas presenças sociais, sua igualdade no
apresentarem-se socialmente; ainda que essa igualdade não
suprimisse a distinção entre eles e que ali só estivessem mesmo
para que se afirmasse a distinção de cada qual.
Tal como Marx entende as relações de troca, seria de fato
como iguais, livres e cooperantes que nelas os homens se
relacionariam; eles que, contraditoriamente seriam, também de
fato, desiguais, dependentes e egoístas. Consideradas as
relações de mercado tal como faz Marx, mesmo que nelas não se
igualasse ninguém — pois cada qual estaria ali sempre afirmando
sua distinção frente a todos os demais —, mesmo que também em
ninguém elas criassem o sentimento de solidariedade ou
fraternidade — pois cada um lá não cuidaria senão de si mesmo —,
e ainda mesmo que ali estivessem obrigados e não livres por suas
carências e dependência uns dos outros; nelas, nas relações de
mercado, mesmo assim — considera Marx —, os homens se afirmariam
ao mesmo tempo como livres, iguais e fraternos: só assim mesmo
lá existiriam. Ainda que nas relações de troca estivessem
obrigados, sem que se igualassem propriamente e sem que neles
houvesse qualquer sentimento de solidariedade, só existiriam
nelas, primeiro, como indivíduos iguais, desprezadas que seriam
suas diferenças; segundo, como estando uns a serviço dos outros,
sendo, pois, cooperantes ou solidários; e ainda, terceiro, só
como livres lá existiriam, visto que agindo exclusivamente
conforme as determinações de seus próprios arbítrios. Para Marx
o mercado não eliminaria a desigualdade entre os homens, não
eliminaria também o antagonismo entre eles e nem ainda os
retiraria de sua condição geral de carência e de não liberdade:
imporia regras para que se expressassem a partir dessa condição
de antagonismo, desigualdade, carência e não-liberdade; e tais
regras seriam, contraditoriamente, de igualdade, liberdade e
cooperação. No entendimento de Marx, a forma das relações
mercantis imporia aos homens, para que se apresentassem

55
socialmente, uma condição da igualdade, uma igualdade em
contradição com sua desigualdade; imporia ainda, como condição
de sua presença social, que só como livres mutuamente se
considerassem, contradizendo-se com isso sua não liberdade, e
mais ainda exigiria a forma das relações mercantis, então em
contradição com o interesse egoísta de cada qual, a cooperação
entre todos, uns aos outros devendo prestar um serviço. Sendo
assim, mesmo entendendo os homens como meramente egoístas,
desiguais, carentes e não livres, e só mesmo como tais os
considerando, Marx, mesmo assim, quando observa as relações de
troca, nelas encontra liberdade, igualdade e cooperação. Em seu
entendimento, liberdade, igualdade e cooperação estariam
efetivamente dadas nos relacionamentos mercantis. Elas
definiriam as formas necessárias de relacionamento dos homens no
mercado. De igualdade, liberdade e cooperação seriam as regras
através das quais, no mercado, os homens se confrontariam em sua
condição de egoísmo, desigualdade e não liberdade.

Sentenciamento

Tal como Marx vê o mercado, lá, com regras de igualdade,


liberdade e cooperação, confrontar-se-iam os homens em sua
condição de egoísmo, desigualdade e não liberdade. No mercado,
pois, teríamos a afirmação de condições humanas contrárias: sua
igualdade em contraposição à sua desigualdade, sua liberdade à
sua não liberdade e sua cooperação a seu egoísmo. Contrapor-se-
iam umas e outras condições. Mas, para Marx, não ficaria sem
solução essa contraposição; não ficaria indeciso o jogo de
condições humanas contrárias que se viveria no mercado.
Contrapondo-se igualdade, liberdade e solidariedade com
desigualdade, não liberdade e egoísmo, acabariam por se impor as
últimas. Impor-se-iam as condições negativas sobre as positivas:
a desigualdade sobre a igualdade, a dependência sobre a
liberdade e o egoísmo sobre a cooperação.

56
Os homens seriam meramente egoístas — assim mesmo sempre
os tem Marx —, e, segundo ele, seu egoísmo sobrepor-se-ia no
mercado a tudo mais: egoisticamente lá seriam livres,
egoisticamente também se dariam como iguais e, ainda
egoisticamente, serviriam uns aos outros. Para homens voltados
exclusivamente para a satisfação de seus próprios desejos e
apetites, entende Marx que a liberdade que teriam no mercado — a
começar por seu modo de ser egoisticamente livres — a liberdade
que lá teriam não significaria mesmo senão a possibilidade de
livre manifestação e realização de seus próprios e exclusivos
desejos e apetites, os de cada qual em desprezo dos de todos os
demais. Personalidades egoístas, eles encontrariam na liberdade
do mercado só um meio de realização de seus próprios desejos em
desconsideração de tudo que dissesse respeito aos outros.
Considera Marx que, para a satisfação de seus apetites, o
mercado oferecer-lhes-ia mesmo inúmeras espécies de liberdade;
de princípio já livres estariam de ter de levar os outros em
consideração, seus próprios fins ou o que fosse seu próprio bem.
Livres estariam para explorar todos os sempre possíveis erros de
apreciação dos outros quanto às próprias necessidades e os
objetos que poderiam satisfazê-las, e ainda livres estariam para
explorar todas as dificuldades resultantes da incerteza
generalizada de que ninguém no mercado escaparia. Seriam livres
em tudo no mercado para explorar todas as possíveis fraquezas
dos demais. Lá os homens só se entenderiam como livres no
sentido de estarem libertos de todos os compromissos de respeito
para com os outros. E essa liberdade dada a todos no mercado, a
de desprezo de pelos outros, teria em si implicada, em
contrapartida, a todos deixar sem ter como poder contar com
aqueles de quem dependeriam e, assim, de virem a estar munidos
do que necessitassem para a própria existência. A liberdade de
todos no desprezo dos demais, já por si, retiraria a todos a
liberdade de se contar com os demais. Dependeriam uns dos
outros, mostrariam mesmo isto já ao irem uns a procura dos
outros no mercado; mas lá não poderiam contar uns com os outros,
pois livres lá estariam para só de si mesmos cuidarem, cada qual
de si próprio, não precisando ninguém cuidar de ninguém mais. A

57
cada vez, a cada troca que se realizasse, a demanda que fosse de
um outro deveria ser, sim, satisfeita; a cada troca, um e outro
deveriam cuidar da demanda do outro — tem em conta Marx —; mas
cada um não teria de cuidar do outro mesmo, a quem, na verdade,
se desprezaria. Mostrar-se-ia bem essa indiferença pelo outro,
mesmo quando se satisfizesse sua demanda, pelo fato dele ser
sempre substituível. Para que um certo tecido houvesse sido
obtido haveria sido necessário que a demanda de calçados do
tecelão que o teria produzido houvesse sido satisfeita. Mas quem
quer que houvesse obtido seu tecido, e por isso satisfeito sua
demanda de calçados, não a teria satisfeito, ainda que a tivesse
satisfeito, por obrigação alguma de satisfazê-la
especificamente. Só a teria satisfeito para obtenção do tecido,
não por ela mesma ou por aquele específico tecelão que a teria
sustentado. Ela haveria sido satisfeita como a demanda de outro
tecelão qualquer que um tecido como o seu oferecesse. Para quem
procurasse por um tecido como o seu, seria indiferente
satisfazê-lo ou a outro tecelão qualquer que um outro tecido
como o seu também o oferecesse. Satisfar-se-ia a demanda de
algum tecelão para que se obtivesse certo tecido; mas seria
indiferente que específico tecelão seria satisfeito. Satisfar-
se-ia a demanda de um ou outro, de um qualquer, desde que um
mesmo tecido fosse obtido. Satisfar-se-ia a um e não a outro. Os
excluídos nada poderiam reclamar. Ninguém teria a obrigação de
servir a ninguém mais em particular. Servir-se-ia, sim, a
alguém; sem que se tivesse a obrigação de servir a ninguém em
particular. Ninguém seria obrigado a se importar especificamente
com ninguém mais, ainda que alguma particular demanda houvesse
de ser sempre satisfeita. Os outros a que se deveria satisfazer
seriam quaisquer: uns ou outros, uns e não outros, como acaso
viesse a acontecer. Só acidentalmente se satisfariam as demandas
alheias. As demandas dos demais não importariam em si mesmas;
acidentalmente as satisfaríamos só para vir a satisfazer as
nossas próprias. Dependeríamos uns dos outros: precisaríamos nos
preocupar com eles; mas ninguém teria a obrigação de se
preocupar especificamente com ninguém mais. Todos estando
desobrigados de se preocuparem com os outros, com cada um deles,

58
com cada um de nós, não haveria como uns contarem com os outros.
Colocar-nos-íamos a serviço dos outros por meio de nossas
ofertas e eles ao nosso pelas suas; mas de nossas ofertas, desta
ou daquela, sempre mais alguém poderia servir-se — não este, e
sim aquele, ou nem este e nem aquele, mas outro qualquer —, como
também das suas ofertas, alguém que não nós mesmos poderia
servir-se — nem eu, mas tu, ou nem tu também, mas ele.
Substituiríamos os outros por terceiros, assim como também eles
a nós. Estaríamos no mercado em condição de dependência e sem
podermos estar certos de virmos a escapar dela, pois daríamos a
todos de que dependeríamos o direito de deixar de nos servir. A
liberdade dada a todos deixaria a todos em condição de
permanente insegurança, sem a liberdade de se afirmarem no que
fossem os objetos de suas necessidades. Estaríamos sempre na
condição de dependermos da disposição de um outro vir a nos
servir, sem que obrigação nenhuma o levasse a isso; no que
seríamos, então, antes dependentes do que livres: tal qual no
mercado existiríamos — julga Marx. Dependeríamos de quem não
poderíamos confiar, porque livres para deixarem de nos servir.
Se livres, eles, para não nos servir, não seríamos livres, nós,
para deles nos servirmos. Assim — lamenta-se Marx — nenhuma
sociedade propriamente dita constituiriam os homens por meio de
suas relações de troca; não constituiriam nenhuma associação que
lhes assegurasse a mútua cooperação que lhes seria necessária.
Sem que a constituíssem, e sendo que precisariam mesmo dela para
dar a si mesmos as condições objetivas de sua existência,
ficariam sem ter sequer a liberdade de existir. A liberdade de
todos impediria que propriamente se associassem, tal como lhes
seria necessário já mesmo para simplesmente viverem. Por meio
das suas relações de troca, os homens não seriam capazes, não
teriam a liberdade de dar forma à convivência necessária à sua
própria existência.
E acrescenta Marx: a liberdade dada a todos, retirando de
todos a possibilidade de controle de sua própria associação e
negando-lhes a segurança na manutenção de suas próprias
existências; a liberdade dada a todos, além disso, daria também
a todos condições de se proporem ao senhorio pessoal sobre os

59
demais. Daria a cada um a possibilidade de controle dos objetos
da demanda dos outros, ao menos de alguns outros, e, por meio
desse controle, poder para colocá-los em condição de
dependência. A liberdade de todos constituir-se-ia em fator
promotor da presunção a um senhorio indiscriminado. A cada um, a
liberdade do mercado daria o poder de se fazer senhor dos
demais. O que um demandaria estaria em mãos de outro. Quem em
mãos tivesse o objeto da demanda de um outro teria sobre ele um
instrumento de poder. Cada qual teria em seu objeto de troca um
potencial instrumento de controle pessoal sobre os demais. Seu
meio de troca seria um instrumento para vir a colocá-los na
dependência de si. E a todos estando dado esse mesmo poder,
colocar-se-iam todos em disputa. Disputariam os homens no
mercado pela condição de quem teria aos demais na dependência do
que ofertassem. A liberdade que lá teriam resultaria em uma
sempre reiterada disputa entre todos para assumir um senhorio
exclusivo. Para Marx, a liberdade que teriam os homens no
mercado não seria mesmo senão a de colocarem os outros em
condição de dependência de si, obrigando-os à prestação de um
serviço. Pela liberdade que lá teriam, a de cada qual só a si
mesmo se afirmar, impor-se-ia só a luta entre todos pela
imposição do senhorio exclusivo de cada qual. Haveria entre os
homens no mercado, na verdade, disputa e não cooperação.
Decididamente, sua condição lá não seria a de cooperação.
Cooperantes propriamente, quando uns e outros teriam o interesse
do outro como o seu próprio, nunca o seriam no mercado. Ainda
que a satisfação da demanda dos demais fosse, sim, lá
necessária; havendo lá, pois, uma sorte de reciprocidade entre
eles por meio dos bens que transacionassem — este satisfazendo a
demanda daquele e aquele a deste —, em seus egoísmos, mesmo na
recíproca prestação de serviços, não encontraríamos senão um
mero meio de cada um procurar colocar os demais em uma condição
de dependência. Cada um veria no outro só a posse de um objeto a
ser dele despojado; o que deveria ser feito por meio de sua
subordinação, ainda que só se o subordinasse pelo oferecimento
de um serviço. Todos se preocupariam não mais do que com colocar
os outros em uma situação de dependência, para que se pudesse

60
privá-los de uma posse, fazendo com que passasse a ser nosso
aquilo que fosse deles. Tendo em vista a fraqueza expressa por
suas demandas, seduzi-los-íamos com uma oferta, procurando fazer
com que viessem até nós trazendo consigo o que desejássemos. O
serviço que se lhes ofereceria não visaria senão explorar a
fraqueza que houvessem demonstrado em suas demandas.
Estabelecida a relação, só nosso interesse deveria prevalecer,
em nada nos importando que o deles pudesse acabar por ficar
insatisfeito. O que nos outros nos interessaria seria antes e
acima de tudo um despojamento, privá-los do bem que desejaríamos
passasse a ser nosso. Não estaríamos interessados em que viessem
eles a satisfazer seus desejos ou necessidades. A partir de seus
desejos ou apetites, subordiná-los-íamos por um serviço, fazendo
com que por meio desse nosso serviço acabassem eles por nos
servir. O serviço que lhes prestaríamos seria um simples meio,
um simples artifício, para que ficassem dependentes de nós e
viessem nos prestar o seu serviço; servindo, sim, eles a nós,
pouco nos importando se, de fato, a eles, nós viéssemos a
servir. As declarações de solidariedade e de preocupação com a
supressão das carências dos demais não passariam mesmo para Marx
de mero ardil para que os outros cooperassem conosco, pouco nos
importando que nós viéssemos de fato a cooperar com eles. O
serviço oferecido aos outros visaria unicamente colocá-los em
nossa dependência, para que nós, de seus serviços, nos
beneficiássemos. Disputaríamos por meio de nossas ofertas para
fazer dos outros nossos dependentes, explorando-os. Tal qual, em
nada fraternos seríamos em nosso comportamento no mercado —
sentencia Marx.
E acrescenta mais Marx em seu sentenciamento negativo do
mercado. Ainda que nas relações de troca os homens estivessem
dados como iguais, ainda que pela igualação do valor dos seus
objetos de troca assim fossem dados nas relações de troca, na
verdade mesmo, no mercado não se igualariam; ao contrário, o
serem ali dados como iguais só lhes facilitaria imporem-se como
desiguais. Só seriam iguais no mercado por uma forma de se
apresentarem onde não considerariam a pessoa dos outros: só
assim lá se igualariam. Haveria na sua igualação nas relações de

61
troca uma total desconsideração de tudo o mais que não fossem os
objetos por eles desejados; só por essa desconsideração igualar-
se-iam. Fixados nos objetos de seus desejos, não nas pessoas dos
outros, só seriam iguais pela anulação de suas importâncias
pessoais. Igualar-se-iam só porque ninguém representaria nada
para ninguém; far-se-iam iguais só por nada importarem uns para
os outros. Limitados à igualdade do desprezo recíproco,
desobrigar-se-iam da consideração do que suas diferenças
poderiam implicar em termos de humano respeito. Nada de humano
estaria dado para que fosse respeitado. Assim, quem quer que
fosse ou tivesse mais poderia fazer-se valer sobre quem quer que
fosse ou tivesse menos. Não se excluiria mesmo o recurso a toda
forma de impostura. Excluindo-se a violência física imediata,
tudo o que distinguisse as pessoas em termos de suas
capacitações e poderes relativos seria um meio válido de
imposição pessoal. A redução à igualdade pelo desprezo das
diferenças entre as pessoas, única condição em que se veriam os
homens no mercado, não faria senão os desonerar de todos e
quaisquer compromissos a que pudessem ser obrigados a partir de
suas distintas capacitações. Não haveria mesmo como se
comprometer com o que estaria sendo desconsiderado. Na igualação
do desprezo, dariam livre curso a seu egoísmo e à afirmação de
sua distinção. A igualdade em que estariam dados no mercado não
seria senão a forma pela qual fariam valer plenamente, sem
restrições, a distinção de cada qual. Marx nega também aos
homens uma verdadeira condição de igualdade no mercado. Impor-
se-ia lá, antes, a distinção de cada qual; mesmo pela igualdade
em que todos seriam considerados. A igualdade em que estariam os
homens nas relações de troca não seria senão a conveniente
desconsideração de suas distinções.
Para Marx, os homens seriam, sim, dados como iguais,
livres e fraternos nas relações de mercado; mas para ele, ao
serem assim dados, na verdade, mesmo porque assim estariam
dados, impor-se-ia só o que lhe fosse contrário: a não
liberdade, a desigualdade e a disputa egoísta pelo senhorio
exclusivo. A liberdade, igualdade e cooperação ali existentes
não passariam de meios pelos quais se imporiam seus contrários:

62
pela liberdade dada a todos, a todos se retiraria a liberdade de
contar com os demais, pois cada qual só se importaria por impor
a sua aos outros; pela igualdade em que seriam considerados,
impor-se-ia só uma desigualdade sem entraves; e pela cooperação
em que se mostrariam, não mais do que uma disputa por quem teria
os demais na dependência de si. A liberdade far-se-ia impotência
e subordinação; a igualdade, distinção, e a cooperação, disputa
egoísta. Nada harmonizaria seus interesses. A verdade do mercado
não estaria na liberdade, igualdade e cooperação, mas na
dependência impotente, na desigualdade e, ainda, na disputa de
todos com todos.
No Manifesto do Partido Comunista, com Engels, Marx assim
se reporta ao estabelecimento das relações de mercado na
sociedade moderna:

”Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia


calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas.
Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem
feudal a seus ”superiores naturais“ ela os despedaçou sem
piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o
laço do frio interesse, as duras exigências do ”pagamento à
vista“. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do
entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-
burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da
dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as
numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela
única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra,
em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e
políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta,
cínica, direta e brutal.“28

E, em O capital, arremata sua análise das relações de


troca com ironia:

28
Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partico Comunista, Rio de
Janeiro, Vitória, 1963, p. 25.

63
”A esfera [...] da circulação ou da troca de
mercadorias [...] é realmente um verdadeiro paraíso dos
direitos inatos do homem. Só reinam aí liberdade,
igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade, pois o
comprador e vendedor de uma mercadoria [...] são
determinados apenas pela sua vontade livre. Contratam como
pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o
resultado final, a expressão jurídica comum de suas
vontades. Igualdade, pois estabelecem relações mútuas
apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente
por equivalente. Propriedade, pois cada um só dispõe do que
é seu. Bentham, pois cada um dos dois só cuida de si mesmo.
A única força que os junta e os relaciona é a do proveito
próprio, da vantagem individual, dos interesses privados. E
justamente por cada um só cuidar de si mesmo, não cuidando
ninguém dos outros, realizam todos, em virtude de uma
harmonia preestabelecida das coisas, ou sob os auspícios de
uma providência onisciente, apenas as obras de proveito
recíproco, de utilidade comum, de interesse geral.“29

29
O capital, p. 196-7.

64
II. A relação elementar das trocas em Aristóteles

. Gratidão pela contrapartida de um serviço


. A fórmula elementar das relações de troca em Aristóteles
. Igualdade, liberdade e solidariedade efetivas
. Igualação proporcional e não simples
. Uma relação referenciada em outras
. O representante da demanda
. A razão do relacionamento entre as pessoas e aquela entre seus
bens
. O dinheiro nada propriamente igualaria
. Um importante expediente prático

Gratidão pela contrapartida de um serviço

Aristóteles, como Marx, cuidou de pensar o mercado. De seu


ponto de vista, no entanto, os indivíduos que ali se fariam
presentes não teriam em vista, como em Marx, fins exclusivamente
egoístas. Suas relações dar-se-iam mesmo conforme o princípio da
gratidão; cada qual veria o outro como alguém de quem
necessitaria um serviço e que, se o concedesse, por ele deveria
ser gratificado. Entende mesmo Aristóteles que, em geral, as
pessoas se comportariam umas em relação às outras segundo a
ideia da reciprocidade. Os homens procurariam retribuir o mal
com o mal — se não pudessem agir assim, diz ele, se sentiriam
como escravos —, e procurariam também retribuir o bem com o bem,
preocupados que estariam em se manterem unidos. A reciprocidade
manteria a cidade unida. Destinar-se-ia nas cidades, por isto,
um lugar de destaque ao templo das Graças, acreditando-se que
por seu meio se fomentaria a prática da reciprocidade,
característica da gratidão. Deveríamos mostrar-nos gratos,

65
retribuindo a quem nos tivesse servido e, mesmo, tomar a
iniciativa da prestação da ajuda aos outros30. Os pitagóricos —
diz Aristóteles — pensavam até que a reciprocidade seria justa
de maneira irrestrita e, assim, definiam a justiça irrestrita
simplesmente como reciprocidade.31
E seria uma espécie de reciprocidade que regeria as trocas,
a que Aristóteles chama de ”proporcional“32. Por meio de troca, o
sapateiro obteria do seareiro os cereais de que necessitaria,
dando-lhe em retribuição os sapatos que fizera e que seriam de
necessidade do outro. Nessa relação, onde um se serviria do
produto do trabalho do outro, estariam dados como iguais, frisa
Aristóteles como depois fará Marx; sendo, no entanto, diferente
o entendimento dos dois em relação aos modos dessa igualação.
Como desiguais, diz Aristóteles, não poderiam relacionar-se ou,
se acaso o fizessem uma vez, seu relacionamento não teria
continuidade, pois — entende ele, sem que o faça Marx —, sem
igualdade, o relacionamento seria injusto e, na injustiça, uma
comunidade não poderia manter-se. Se uns aos outros
reciprocamente servissem e se, ainda, nessa reciprocidade de
serviços, uns fossem iguais aos outros — só também na existência
desta segunda condição — haveria relacionamento e continuidade

30
”Mas nas associações por meio das trocas o que associa é mesmo tal
justo, a reciprocidade, conforme a proporcionalidade e não conforme
uma simples igualdade. De fato, pelo retribuir proporcional mantém-se
unida a cidade. Ou o mal procuram, se não, se não o retribuírem,
escravos passam por ser; ou o bem, se não, não há compartilhar, mas
pelo compartilhar mantém-se unidos. Pelo que o templo das Graças em
proeminência constroem, para que gratidão haja; pois esta é própria
das Graças; e também, com efeito, tanto é preciso retribuir a quem nos
agracia, como antes mesmo tomar a iniciativa aos outros agraciando.“
(Ética a Nicômacos 1133a [6 e 7] — Seguindo procedimento usual,
citamos Aristóteles conforme a paginação da edição de suas obras por
Bekker em 1831. Os números entre colchetes são referência a nosso
apêndice)
31
”E até parece para alguns que o justo é simplesmente a
reciprocidade, como os pitagóricos dizem; com efeito, definem o justo
simplesmente como a reciprocidade para com o outro.“ (Ética a
Nicômacos 1132b [1])
32
”Mas nas associações por meio das trocas o que associa é mesmo tal
justo, a reciprocidade, conforme a proporcionalidade e não conforme
uma simples igualdade. De fato, pelo retribuir proporcional mantém-se
unida a cidade. Ou o mal procuram, se não, se não o retribuírem,
escravos passam por ser; ou o bem, se não, não há compartilhar, mas
pelo compartilhar mantém-se unidos.“ (Ética a Nicômacos 1132b [6])

66
de relacionamento; caso contrário, não, porque não seria justo33.
Na prestação recíproca de serviços, deveriam necessariamente, o
sapateiro e o seareiro, ser dados como iguais para que justa
fosse a relação. A justiça seria uma condição necessária ao
relacionamento, sendo justo o igual e injusto o iníquo ou
desigual34. Se a condição de igualdade ou justiça deixasse de ser
respeitada, simplesmente não ocorreriam trocas ou, acaso uma ou
outra acontecesse, não teriam continuidade. Tratar-se-ia de uma
condição posta pelos próprios interlocutores sociais, condição
sem a qual eles se recusariam a participar de quaisquer
transações. Valores sociais impor-se-iam sobre o modo de
relacionamento econômico: o entendimento que cada qual teria de
si próprio e de cada um dos demais seria parte constituinte das
relações sociais. Só como iguais — em justiça — relacionar-se-
iam; sem ela, recusar-se-iam ao relacionamento. Exigiriam que
fosse assim — entende Aristóteles.
Só como iguais se relacionariam; mas em si mesmos seriam
desiguais, só mesmo por sua desigualdade se relacionando — frisa
também Aristóteles como depois fará Marx. Não seriam dois
médicos que se associariam para a permuta de serviços, mas um
médico e um lavrador, ou um construtor e um sapateiro, ou de um
modo geral pessoas diferentes e desiguais. As pessoas, e também
os serviços permutados, seriam necessariamente desiguais. Se
fossem iguais não haveria porque se estabelecer qualquer
intercâmbio. O médico só procuraria pelo construtor, ou pelo
lavrador, porque distinto deles e necessitado dos produtos de
seus trabalhos, também diferentes estes do seu; da mesma
maneira, o sapateiro ou o lavrador só procurariam pelo médico
por serem distintos dele e seus serviços também diferentes do
daquele35. Mas o médico, mesmo que precisando dos calçados e do

33
”Deve, então, receber o construtor da parte do sapateiro a obra
daquele, e este com aquele compartilhar a sua. Acaso, pois, primeiro
haja o igual conforme a proporcionalidade, e assim a reciprocidade
aconteça, será o que foi dito. Se porém não, nem igualdade, nem se
mantêm unidos [...]“ (Ética a Nicômacos 1133a [8])
34
”Se, portanto, o injusto é o desigual, o justo é o igual [...]“
(Ética a Nicômacos 1131a)
35
”Na verdade, de dois médicos não se produz associação, mas de médico
e agricultor, e em geral dos desiguais e não dos iguais [...]“ (Ética
a Nicômacos 1133a [9])

67
alimento produzidos pelo sapateiro e pelo lavrador, coisas que
como médico não produziria, e querendo, por isso, com aqueles
relacionar-se; e estes, o sapateiro e o lavrador, mesmo que,
pela mesma razão, precisando do serviço do médico, e por isso
também com ele querendo relacionar-se; eles todos, uns e outros,
entendendo mesmo que só pela diversidade de seus produtos e
serviços relacionar-se-iam, mesmo assim, entenderiam que só
poderiam fazê-lo como iguais. Só como iguais aceitariam
relacionar-se porque, só assim, entenderiam, haveria justiça. O
médico, o lavrador e o sapateiro — sendo distinto o serviço do
médico dos alimentos produzidos pelo lavrador e dos calçados
confeccionados pelo sapateiro, os produtos dos trabalhos destes
distintos dos daquele, e distintos já antes como pessoas — eles
todos, para que se relacionassem conforme a justiça, ainda que
desiguais, impor-se-iam a condição da igualdade: ver-se-iam só
como iguais em suas relações de troca. E de fato haveria como
ali se apresentarem em igualdade, mesmo em sua desigualdade,
pois — procura mostrar-nos Aristóteles — para isso existiriam
suportes de fato: já a própria demanda de todos, o fato de todos
serem igualmente demandantes, cada um do produto do trabalho dos
outros, assim como, ainda, o fato de serem, igualmente também,
fornecedores de serviços, cada um do serviço de demanda do
outro. Assim, no serem reciprocamente produtores dos bens de
necessidade dos outros e demandantes dos produtos da produção
dos outros, nisto, seriam de fato iguais. Apesar de sua
distinção como pessoas e da decorrente diversidade, por um lado,
de suas demandas e, por outro lado, de seus trabalhos e
produtos, uns e outros, por serem igualmente demandantes e em
condições de satisfazer a demanda uns dos outros, seriam,
simplesmente como tais, iguais tal qual exigiria a justiça:
seriam iguais em sua condição de reciprocamente demandantes do
serviço dos outros e fornecedores do seu a eles, ainda que só
mesmo porque demandantes e fornecedores de coisas diferentes. O
médico demandaria pelo produto do trabalho do lavrador assim
como o lavrador demandaria pelo serviço do médico; o lavrador
pelo produto do trabalho do sapateiro assim como este pelo
produto do trabalho daquele; o sapateiro, pelo do médico assim

68
como também este pelo seu. Uns e outros demandantes do serviço
dos outros, seriam ao mesmo tempo capazes de, aos outros,
fornecer os serviços de suas demandas. Seus serviços e demandas
seriam recíprocos. Em suas demandas, mostrar-se-iam igualmente
dependentes da prestação do serviço dos outros; em seus
serviços, mostrar-se-iam igualmente capazes da prestação do
serviço aos outros. Haveria neles, pois, uma mesma condição de
humanidade na carência e prestação de serviço. Cada qual seria
dependente do serviço ou auxílio dos demais e, se acaso o
recebesse, capaz de a eles, em contrapartida, servir. Nisto se
igualariam em uma condição de carência e de auxílio mútuo. Nessa
igualdade, dada por uma mesma condição de carência e auxílio,
encontrariam mesmo sua humanidade. Se as pessoas não
necessitassem umas das outras, ou se cada qual como todos os
outros não necessitasse dos demais, os homens não formariam uma
sociedade: só a formariam como prestadores de serviços uns aos
outros. Na sua condição de carência e serviço encontrariam o
princípio de constituição de sua sociedade em condição de
igualdade36. A igualdade na condição de carência e serviço
constituir-se-ia em princípio de justiça originador e mantenedor
da associação humana: justo seria ter os homens só em sua
condição de igualmente carentes e de prestadores de serviços
recíprocos, ainda igualmente — só assim se associariam.
Mas não mesmo — para Aristóteles —, que o fato de serem
igualmente demandantes do produto do trabalho dos demais e, para
a satisfação de suas demandas, igualmente prestadores de
serviços recíprocos; não mesmo, que isso, neles, eliminasse as
diferenças. Relacionar-se-iam por suas diferenças, só por elas.
Se fossem iguais não haveria relação entre eles. Na demanda e na
prestação de serviços haveria uma igualdade de condição, de uma
condição de carência e serviço, entre pessoas diferentes.
Haveria mesmo algo de igual entre eles. Todos seriam igualmente
carentes e prestadores de serviço, mas, em sua distinção,
carentes de coisas distintas e prestadores de serviços

36
”[...] pois se de nada fôssemos necessitados ou não igualmente
necessitados, não haveria troca ou não esta [...]“ (Ética a Nicômacos
1133a [11])

69
diferentes. Tratar-se-ia, portanto, de uma igualdade de pessoas
diferentes, de uma igualdade promovida mesmo por sua
desigualdade. A distinção seria o motivo de seu intercâmbio e a
igualdade a condição de justiça, princípio imposto por eles
próprios ao seu modo de sociabilidade. Conforme essa distinção e
igualdade constituiriam uma sociedade, seriam cooperantes, uns e
outros fornecendo igualmente aos outros os bens de suas
carências.
A igualdade na distinção de suas carências e serviços seria
exigida pelos interlocutores sociais em seus atos de troca: só
assim se relacionariam, só assim se reconheceriam como
interlocutores sociais válidos. Ao se postarem uns frente aos
outros em relações de troca, reconheceriam que na
particularidade de suas diferenças estariam igualmente capazes
de satisfazer uns aos outros em sua igual condição de carência.
Fazendo-o, não se igualariam simplesmente, o médico e o
lavrador, o médico e o sapateiro, ou o lavrador e o sapateiro;
cada um permaneceria irredutível em sua diferença frente aos
demais. Entenderiam a si mesmos como pessoas irredutíveis a
quaisquer outras, porque a satisfação da carência de um seria
irredutível à satisfação da carência de qualquer outro, assim
como o serviço de um irredutível ao serviço de qualquer outro.
Entenderiam também, no entanto, que cada um, ele próprio e todos
os outros, igualmente irredutíveis em suas pessoas sob o império
de suas particulares carências e serviços, encontrar-se-iam,
todos, em uma mesma condição de humana precariedade à qual se
contraporia igualmente o mútuo socorro. Assim, se o médico
simplesmente se postasse diante do lavrador ou do sapateiro, ou
o sapateiro simplesmente se pusesse à frente do médico ou do
lavrador, ou este último diante de um e outro daqueles, se um
meramente se postasse à frente do outro, nada de igual se
poderia observar neles: mostrar-se-iam só em sua distinção. Mas
cada um levaria consigo ao mercado o produto de seu respectivo
trabalho como coisa útil aos demais; uns e outros se mostrando,
pois, como capazes do serviço à demanda alheia, podendo, assim,
todos dirigirem ao outro o olhar como a quem se poderia recorrer
em função da própria carência: neles, então, se veria igualdade

70
e humanidade. O médico mostrar-se-ia interessado no produto do
trabalho do lavrador ou no produto do trabalho do sapateiro, do
mesmo modo — conforme uma mesma condição de humanidade — que o
lavrador e o sapateiro se mostrariam interessados no seu
serviço. Ou, ainda, o lavrador interessar-se-ia pelo produto do
trabalho do sapateiro, assim como, igualmente, o sapateiro
mostrar-se-ia interessado pelo produto de seu trabalho.
Distintos, reconheceriam que na particularidade de suas
diferenças estariam igualmente carentes uns dos outros, sendo
uns e outros também, na diferença de seus serviços, capazes de
prestá-los para a supressão da carência dos outros. Só assim,
nesse mútuo reconhecimento de suas diferenças e de sua
igualdade, entrariam em relação.

A fórmula elementar das relações de troca em Aristóteles

Os homens seriam igualmente carentes de serviços que


poderiam prestar mutuamente: tal qual estabeleceriam suas
relações de troca. Igualmente resolveriam suas carências pela
prestação de serviços recíprocos. Assim, definir-se-ia ali um
específico modo social de ser. Uma fórmula poderia expressá-lo,
considera Aristóteles. Recorre Aristóteles, como depois também
fará Marx, à formalização para reportar-se às relações de troca.
Seu modo de fazê-lo é, no entanto, peculiar, diferente do de
Marx. Fossem a e b os bens transacionados, sendo a produto do
trabalho do indivíduo A e que (simplificando-se como em Marx)
por ele mesmo estivesse sendo transacionado, e b produto do
trabalho do indivíduo B, que também (nos termos da mesma
simplificação) por ele mesmo estivesse sendo transacionado. A e
B relacionar-se-iam porque A teria necessidade de b, produto do
trabalho de B, assim como B teria necessidade de a, produto do
trabalho de A. Na relação, A apresentar-se-ia em posse de a, de
interesse de B, e B apresentar-se-ia em posse de b, de interesse
de A. Apresentar-se-iam, um frente ao outro, cada qual na posse
do bem de sua produção e da demanda do outro: assim um se faria

71
valer frente ao outro como seu igual. A far-se-ia valer igual a
B por meio de a, assim como B far-se-ia valer igual a A por meio
de b. O bem de produção de um, ou serviço de um, estaria lá, na
relação de mercado, para o outro — valeria para o outro — assim
como o bem de produção do outro, ou o serviço do outro, valeria
para si37. Nos termos de suas mútuas necessidades e recíprocos
serviços, na relação entre eles, o bem de produção de A, ou
serviço de A, a, estaria para B, assim como, igualmente como, o
bem de produção de B, ou o serviço de B, b, estaria para A.
Poder-se-ia escrever então, considera Aristóteles:

serviço de A para B

assim como

serviço de B para A

ou

38
a / B = b / A

37
”E estabelece a troca, aquela conforme a proporcionalidade, a
conjunção diamétrica [h9 kata_ dia&metron su/zeuciv]. Tal qual o construtor
chamemos de A, o sapateiro chamemos de B, a casa chamemos de C, os
sapatos chamemos de D. Deve, então, receber o construtor da parte do
sapateiro a obra daquele, e este com aquele compartilhar a sua. Acaso,
pois, primeiro haja o igual conforme a proporcionalidade, e assim a
reciprocidade aconteça, será o que foi dito. Se porém não, nem
igualdade, nem se mantêm unidos [...]“ (Ética a Nicômacos 1133a [8])
38
”Haverá, então, reciprocidade quando igualizados de tal maneira que
o que o agricultor para o sapateiro, a obra do sapateiro para a do
agricultor.“ (Ética a Nicômacos 1133a-b [12]) — Observe-se, A estaria
para B, não como o produto de seu trabalho ou seu serviço estaria para
o produto do trabalho ou serviço de B (A / B = a / b), mas, ao
inverso, A estaria para B assim como o produto ou serviço de B estaria
para o seu próprio produto (A / B = b / a). O produto ou serviço de B
estaria para A e não para o próprio B, assim como, também, o serviço
ou produto de A estaria, não para o próprio A, mas para B
(b / A = a / B). Uma pessoa estaria para outra assim como estariam os
bens que fossem por elas desejados, não como aqueles que fossem por
elas produzidos: uma pessoa estaria para outra pessoa assim como
estariam um para outro os objetos de suas demandas ou carências. A
estaria para B assim como b (o bem ou serviço de que A se mostraria
carente) estaria para a (o bem ou serviço de que B se mostraria
carente).

72
Na relação, o produto do trabalho ou o serviço de A, o bem
ou o serviço a, estaria para B, da mesma maneira que o produto
do trabalho ou o serviço de B, o bem ou serviço b, estaria para
A. Por meio de a, A valeria para B o mesmo que, por meio de b, B
valeria para A; a seria útil para B tanto como b seria útil para
A; ou o que seria o mesmo, a relação de A com B seria igual à
relação de b com a. A estaria para B assim como b para a.

A / B = b / a

Nos termos desta mesma proporção ainda, o juntar-se ou o


somar-se de A com b estaria para o juntar-se ou o somar-se de B
com a, assim como A estaria para B e b para a:

39
A + b / B + a = A / B = b / a

39
Aristóteles não faz explicitamente referência a esta qualidade das
relações proporcionais quando se refere ao que chama de ”conjunção
diamétrica“ (h9 kata_ dia&metron su/zeuciv), a qual se efetuaria quando das
relações de troca. Mas, ao se reportar a uma outra forma de
proporcionalidade, aquela que se aplicaria ao que seria ”o justo
distributivo“ (to_ nemhtiko&n di/kaion), assim se expressa: ”Com efeito, a
proporção é uma igualdade de de razões, envolvendo no mínimo quatro
elementos (é evidente que a proporção descontínua envolve quatro
elementos, mas acontece o mesmo com a proporção contínua, pois ela usa
um elemento como se tratasse de dois e o menciona duas vezes; por
exemplo, ’a linha A está para a linha B assim como a linha B está para
a linha C‘; a linha B foi mencionada então duas vezes, de tal forma
que se a linha B for considerada duas vezes os elementos proporcionais
serão quatro); o justo envolve também quatro elementos no mínimo, e a
razão entre um par de elementos é igual à razão existente entre o
outro par, pois há uma distinção equivalente entre as pessoas e as
coisas. Então, o elemento A está para o elemento B assim como o
elemento C está para o D [isto no caso do justo distributivo; no caso
do justo que estaria presente nas relações de troca teríamos que A
estaria para D, assim como C para B; ou, em nossas próprias
denominações, A para b e B para a], e portanto, por alternação, A está
para C assim como B está para D. Logo também a soma do primeiro e do
terceiro elementos está para a soma do segundo e do quarto assim como
o primeiro elemento está para o segundo. Esta é a combinação efetuada
por meio de uma distribuição dos quinhões, e a combinação será justa
se as pessoas e os quinhões forem combinados desta maneira. O
princípio da justiça distributiva, portanto, é a conjunção do primeiro
termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o
justo nesta acepção é o meio termo entre dois extremos
desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o
proporcional. Os matemáticos chamam esta espécie de proporção de
geométrica, pois é na proporção geométrica que a soma do primeiro e do
terceiro termos está para a soma do segundo e do quarto assim como um
elemento de cada par de elementos está para outro elemento.“ (Ética a

73
O estar junto ou associado de um sujeito ao objeto de sua
demanda, este objeto de oferta do outro, estaria para o outro
sujeito, estando este também junto ou associado ao objeto de sua
demanda, este ainda objeto de oferta do outro; isto assim como
um sujeito estaria para o outro e como, ainda, o objeto da
demanda de um e oferta do outro estaria para o objeto da demanda
do outro e oferta do primeiro. Associando-se a um sujeito como
ao outro o bem de suas respectivas demandas, objetos de suas
mútuas ofertas, incorporando-se aos sujeitos os bens de suas
mútuas necessidades por suas recíprocas ofertas, ou fazendo-se
desses objetos efetivos atributos dos sujeitos, cada qual
estando junto ao bem de sua necessidade por suas ofertas
recíprocas; isto assim como cada um estaria para outro e assim
também como o bem de necessidade de um, ofertado pelo outro,
estaria para o de necessidade do outro, ofertado este pelo
primeiro; assim, no conjunto dessa relação, haveria justiça e
igualdade no modo em que uns estariam dados para os outros, os
sujeitos e seus respectivos objetos. Um sujeito estaria para o
outro assim como o estar junto do bem de sua demanda por um
estaria para o estar junto do bem de sua demanda também pelo
outro, o objeto da demanda de um estando para o objeto da
demanda do outro. Um estaria para o outro assim como os bens de
suas respectivas demandas reciprocamente ofertados e também
assim como cada um dos dois, como resultado das recíprocas
ofertas, estando juntos ao bem de sua própria demanda, estariam
entre si.

Igualdade, liberdade e solidariedade efetivas

Para Aristóteles, entre os partícipes do intercâmbio social


por meio das trocas, haveria reciprocidade e justiça quando a
relação entre eles fosse estabelecida de tal forma que um
estivesse para o objeto de sua demanda como oferta do outro

Nicômacos 1131b, trad. de Mario da Gama Kury, Brasília, Editora


Universidade de Brasília, 1985)

74
assim como também este para o objeto da sua como oferta do
primeiro. Cumprir-se-iam, já assim, duas condições de
sociabilidade: a de que suas necessidades fossem mutuamente
satisfeitas, que fossem pois solidários, e a de que só se
relacionariam em igualdade e justiça. Se não fosse assim, não
haveria nem permuta nem relacionamento. Sem a primeira condição
não haveria por que se relacionarem; sem a segunda, ainda que
havendo por que se relacionarem, recusar-se-iam, pois,
entenderiam, não haveria justiça ou igualdade40. As pessoas
precisariam umas das outras, precisariam relacionar-se: suas
demandas levariam à sua solidária união em uma comunidade, e o
modo justo de fazê-lo seria em igualdade, pela prestação mútua
de ajuda e serviço, pelo que uns seriam gratos aos outros.41
Nos intercâmbios sociais por meio das trocas, além dos
homens serem solidários e iguais na prestação de serviços
recíprocos, conforme Aristóteles, seriam, ali, também
efetivamente livres. Seriam livres já porque uns e outros
reconheceriam nos outros o direito de fazerem valer suas
vontades de satisfação de suas demandas individuais, só por cada
um mesmo definida e manifesta. A decisão pelo estabelecimento do
intercâmbio dependeria sempre, livremente, só do arbítrio de
cada uma das duas partes envolvidas em uma relação de troca,
cada qual por si próprio definindo a si mesmo e aos outros nos
termos dos valores relativos de seus bens ou serviços. Em uma
relação de troca, estariam envolvidos quatro elementos, duas
pessoas e os respectivos bens por elas transacionados. Através
de uma proporção entre as pessoas e os bens de suas respectivas
ofertas e demandas, em suas diferenças, a partir mesmo de suas
diferenças, relacionar-se-iam livremente ao modo da igualdade,
conforme a justiça. Suas diferenças seriam igualadas por meio de
uma relação de proporcionalidade graças ao fato de que, em suas
diferenças, seriam igualmente úteis umas às outras; sendo seus

40
”[...] se dessa maneira porém não houvesse reciprocidade, não
haveria associação.“ (Ética a Nicômacos 1133b [12])
41
”[...] porque quando em demanda não estejam uns dos outros, um e
outro ou um dos dois, não entram em relação de troca; como quando
alguém necessita do que este tem, como de vinho, dando trigo em
troca.“ (Ética a Nicômacos 1133b [13])

75
trabalhos ou serviços complementares, satisfazendo, uns, as
demandas das outras, conforme livremente as tivessem definido. O
poder ou valor que uma teria sobre a outra ou para a outra seria
sempre o mesmo que aquele que sobre ela ou para ela a outra
teria. Só como tendo um mesmo poder ou sendo de um mesmo valor
reconhecer-se-iam: não admitiriam que o poder ou o valor de uma
outra pessoa fosse dado como maior do que o seu próprio; que um
poder outro se afirmasse sobre o seu ou que uma se colocasse na
simples dependência da outra. A força de uma impediria que a
força da outra simplesmente se impusesse sobre si. A força ou
poder de atração que o bem de uma teria sobre a outra (a demanda
da outra) seria sempre o mesmo que a do bem da outra teria sobre
si (sua própria demanda). Para uma, um bem teria o mesmo valor
que, para a outra, o outro bem teria; uma pessoa, em relação ao
bem da outra, o mesmo poder ou força que a outra em relação a
seu próprio bem. Cada qual se faria valer frente ao outro —
seria livre frente ao outro — através de um bem a que daria o
mesmo valor ou força que o bem do outro teria sobre si. Assim se
fariam valer uns frente aos outros e haveria, só assim então,
liberdade, reciprocidade e igualdade; sem o que o intercâmbio
não se estabeleceria, ou se acaso uma vez se estabelecesse, não
teria continuidade.
Seriam necessárias as três condições para o estabelecimento
das relações de troca: a do serviço recíproco — a condição da
consideração do outro como finalidade em si mesmo —; também a de
que só se entraria em relação se as finalidades de cada qual só
cada um mesmo as definisse — a condição do reconhecimento da
liberdade de cada um definir a sua própria demanda e como vir a
satisfazê-la —, e mais ainda, também a de igualdade de poder ou
força de uns frente aos outros — só como igualmente livres se
relacionariam, nenhum precisando submeter-se simplesmente ao
outro, pois como forças equivalentes se apresentariam. Sem que
uns aos outros fossem úteis não haveria relação, ou se acaso
alguma viesse a existir, não teria continuidade; sem que se
entendesse que a um serviço outro fosse livremente oferecido em
retribuição, também relação alguma se estabeleceria, ou, ainda,
se estabelecida uma vez, não se repetiria; e por fim, sem

76
igualdade — sem justiça —, sem que o valor de um serviço fosse
igual ao do outro, livrando-se um e outro da submissão à força
do outro, ainda por isto, não seria possível o relacionamento ou
sua continuidade. Para que houvesse intercâmbio, um intercâmbio
que fosse contínuo, seria preciso que, reciprocamente úteis na
diversidade de suas carências e serviços, e livremente gratos
uns aos outros pelos mútuos serviços prestados, entendessem, uns
e outros, que, simplesmente por isto, na reciprocidade grata e
livre de seus serviços, igualar-se-iam, cada qual se definindo
como participando de uma mesma condição de humana solidariedade.
Em Aristóteles, tal como em Marx, nas relações de troca
ver-se-iam as pessoas como tendo produzido umas para as outras.
Porém, diferente de Marx, para Aristóteles tratar-se-ia ali de
uma produção propriamente humana ou social, pois, ainda que o
motivo determinante de todos fosse, sim, a satisfação da própria
necessidade individual, isto só se poderia afirmar nos moldes
impostos pelo princípio da gratidão, conforme a compreensão de
que a satisfação de um implicaria necessariamente na recíproca
satisfação do outro. A condição humana seria uma de carência,
não havendo como suprimi-la senão pela reciprocidade de
serviços. Compreendê-lo-iam os homens e, assim, a produção de
uns viria a estar relacionada à carência dos outros. Ver-se-ia
no mercado a produção dos bens necessários à vida humana como
negócio propriamente humano, uma produção de homens para homens
enquanto tais, pois cada qual, ao ter em mãos ali o objeto de
sua produção ou esforço, estaria tendo por referência os outros
homens como iguais a si mesmo em uma mesma dependência do
serviço dos demais. E não haveria que se temer o poder que um
outro homem tivesse sobre nós, visto que, sobre ele, um poder
equivalente ter-se-ia42. Cada qual teria mesmo um título de

42
Comparemos com Marx: ”As a man you have, of course, a human relation
to my product: you have need of my product. Hence it exists for you as
an object of your desire and your will. But your need, your desire,
your will, are powerless as regards my product. That means, therefore,
that your human nature, which accordingly is bound to stand in
intimate relation to my human production, is not your power over this
production, your possession of it, for it is not the specific
character, not the power, of man's nature that is recognized in my
production. They [your need, your desire, etc.] constitute rather the
tie which makes you dependent on me, because they put you in a
position of dependence on my product. Far from being the means which

77
disposição sobre o produto do trabalho dos outros; far-se-ia
valer frente a eles por meio do produto de seu próprio trabalho.
Far-nos-íamos valer nas relações de troca como forças iguais,
poderes iguais, por meio de nossos produtos de utilidade
recíproca; sendo que, nessa igualdade de poder ou valor de uns
em relação aos outros, estaríamos todos efetivamente preocupados
com a satisfação dos demais — nós e eles, pessoas vistas, sim,
como finalidades em si mesmas. Assim, entenderíamos criar e
manter os nossos laços sociais por meio da prestação de serviços
recíprocos, uns sendo gratos aos outros, uns e outros sendo
movidos pelo sentimento da gratidão, sob a égide das Graças,
pois. Entenderíamos que de uma mesma humanidade participaríamos
e preocupar-nos-íamos com ela fomentando a solidariedade pela
gratidão que entenderíamos ser devida aos serviços a nós
prestados pelos demais. As transações de troca constituir-se-iam
efetivamente em uma espécie de movimento mediador entre nós
mesmos como homens. Por seu meio, confirmar-se-ia que os
produtos de uns seriam destinados aos outros, e que só
socialmente realizaríamos nossas pessoas, mesmo na
particularidade irredutível de cada qual. Só satisfaríamos
nossas carências por meio da colaboração dos demais.
Propriamente como indivíduos humanos relacionaríamos nossas
produções43. Para isso bastaria que assim a nós mesmos
entendêssemos, e efetivamente nos tomássemos como tais, cada
qual a si mesmo e a todos os demais: sujeitos de uma demanda
sempre posta como de mesmo valor que uma outra. Responderíamos

would give you power over my production, they are instead the means
for giving me power over you.“ (Economic manuscripts 1844, Comments on
James Mill)
43
Lembremo-nos outra vez de Marx: ”I have produced for myself and not
for you, just as you have produced for yourself and not for me. In
itself, the result of my production has as little connection with you
as the result of your production has directly with me. That is to say,
our production is not man's production for man as a man, i.e., it is
not social production. Neither of us, therefore, as a man stands in a
relation of enjoyment to the other's product. As men, we do not exist
as far as our respective products are concerned. Hence our exchange,
too, cannot be the mediating process by which it is confirmed that my
product is [for] you, because it is an objectification of your own
nature, your need. For it is not man's nature that forms the link
between the products we make for one another.“ (Economic manuscripts
1844, Comments on James Mill)

78
às nossas carências reconhecendo-as como definidoras de uma
mesma condição de humana igualdade, entendendo que a elas só
satisfaríamos se nos dotássemos do sentimento da necessária
gratidão à prestação do serviço que recebêssemos.

Igualação proporcional e não simples

Para Aristóteles haveria, como também em Marx, uma sorte de


igualação nas trocas. Haveria para ele, sim, uma igualação; no
entanto, não tão simplesmente como em Marx. Um estaria para o
bem do outro assim como o outro estaria para o seu; ou então, um
estaria para o outro assim como o bem de sua demanda para o bem
da demanda do outro. Não um simples:

a = b

Mas um:

A / b = B / a

O valor do bem de um para o outro seria o mesmo que o valor


do bem do outro para si. A reciprocidade que deveria haver para
que se constituísse uma comunidade em igualdade por meio das
trocas seria conforme esta proporcionalidade. Nela os bens não
se igualariam direta e simplesmente. Seriam, sim, postos em uma
relação de igualdade; mas a igualdade de que se trataria seria
uma de demandas, de um A demandante por um b e de um B
demandante por um a, e não simplesmente uma igualdade de dois
bens, um a igual a um b. Os bens igualizar-se-iam, poder-se-ia
talvez mesmo dizer, mas só como bens propriamente humanos,
objetos da demanda humana44. Os bens estariam presentes nas
relações de troca — ali sendo igualizados ou balanceados, antes

44
”Na verdade, impossível que coisas tão diferentes se tornem
comensuráveis, mas, frente à demanda, são tidas ao modo de sua
conveniência.“ (Ética a Nicômacos 1133b [14])

79
do que simplesmente igualados — nos termos de um a / b assim
como, ou igual, a um B / A. Um A e um B se relacionariam por
meio de um a e um b; a e b só estariam relacionados por meio de
A e B. Encontrando-se a razão que haveria entre A e B
(A / B) naquela que existiria entre a e b (b / a), ou aquela
entre a e b, naquela entre A e B. Os bens existiriam nas
relações de troca só em função de uma mesma carência humana,
satisfeita a de cada qual em sua específica diversidade. Os bens
só se relacionariam quando cada um fosse reciprocamente objeto
da demanda do possuidor do outro:

A / B = b / a

Já de princípio, em distinção de Marx, para Aristóteles, os


indivíduos que se apresentassem no mercado não o fariam
exclusivamente a si mesmos tendo como fim, mas, ao contrário,
teriam os fins dos outros como devendo ser alcançados como seus
próprios, afirmando-se e sustentando-se a igualdade de uns e
outros em uma mesma condição de dependência e direito a serviços
recíprocos. Exigir-se-ia que cada qual a todos os outros tivesse
respeitando seus próprios fins, cada um afirmando os seus, e
sendo respeitado nisto pelos outros, uns e outros se colocando
ao serviço dos fins dos demais. Assim, cada qual teria os outros
como iguais a si próprio; suas relações devendo ser, pois,
propriamente de reciprocidade entre iguais, uns sendo iguais aos
outros pelos serviços que de bom grado ofereceriam para a
satisfação das mútuas finalidades. Afirmariam isto, eles
próprios, nos próprios atos de suas trocas. Di-lo-iam na forma
de uma proporção: A estaria para b assim como B para a, A seria
carente do produto de B assim como B do produto de A, estando A
servindo a B por meio de a e B servindo a A por meio de b:

A / b = B / a

Eles próprios imporiam a seu relacionamento essa forma de


igualação do valor de suas carências e de seus serviços
recíprocos. Assim seriam livres, ainda que fossem dependentes

80
dos demais. Seriam livres da condição de desigualdade, quando o
poder ou valor de um se sobreporia ao poder ou valor do outro;
livres de terem de se colocar na simples dependência de um outro
ou de fazê-lo em condição de desigualdade. Cada qual se imporia
sobre o outro, igualar-se-ia ao outro, pela força da atração
exercida sobre ele pelo bem que tivesse em mãos. Ao poder ou
valor do outro, cada qual contraporia o seu próprio. O poder de
um e outro seriam iguais, um teria o mesmo valor que o outro.
Também isto se diria pela proporção com que Aristóteles define
as trocas: B far-se-ia valer sobre A por meio de seu produto ou
serviço b, assim como A far-se-ia valer sobre B por meio do seu
a, o serviço prestado a B por A igualando-se com o prestado a A
por B:

b / A = a / B

Um estaria para o outro tal qual suas necessidades e


serviços, diria já mesmo a expressão:

A / B = b / a

E a expressão diria, ainda, que um como outro estariam


junto de seus bens assim como mesmo eles e seus bens entre si
também estariam:

A + b / B + A = A / B = b / a

Os dois partícipes de uma relação de troca far-se-iam


presentes reconhecendo que uma mesma condição de humanidade,
marcada pela carência, estaria dada para ambas as partes; far-
se-iam presentes também como pessoas dotadas do sentimento de
gratidão pelos serviços prestados pelos demais e, ainda mais,
como quem estaria dotado da disposição de dar expressão à sua
gratidão por meio da prestação aos outros de serviços próprios;
nisto não sendo contrariada a vontade de ninguém, pois a isso
tudo levaria o próprio modo de ser de cada qual, conforme lhes

81
inspirariam as Graças. Assim se fariam presentes na fórmula da
relação elementar das relações de mercado de Aristóteles.
A fórmula da relação elementar das relações de mercado de
Aristóteles acusa bem a presença das pessoas; não deixa de fazê-
lo, como se, sendo suas as relações de mercado, nelas pudessem
estar suprimidas, como acredita Marx. Faz Aristóteles com que em
sua fórmula mais elementar para as relações de troca bem
apareçam um A e um B, designando uma e outra pessoa envolvida,
uma referenciada na outra, uma servindo livremente à outra,
igualando-se a prestação recíproca de seus serviços. Não, como
em Marx, um simples a = b. Não a simples igualação de dois bens
sem que se fizessem presentes as individualidades humanas cuja
relação a fórmula expressaria, mas sim A / b = B / a. Na fórmula
de Aristóteles, mostram-se os bens e mostram-se também os homens
que os produziriam e quem serviriam; os interlocutores sociais
fazem-se presentes como carentes uns dos outros e, nessa mútua
carência, reciprocamente valorando os bens de sua produção —
cada qual o seu próprio e também o do outro. Na fórmula de
Aristóteles não se esconde ninguém por detrás de uma simples
relação entre coisas. Não se esconde também coisa alguma.
Mostram-se umas e outras. As coisas se fazem presentes na
copresença das pessoas e estas na daquelas. As pessoas, porque
carentes e porque dispostas umas ao serviço das outras, trariam
as coisas a uma presença que não seria senão uma presença
perante as próprias pessoas. Só com referência às pessoas
haveria a presença das coisas. Estas só se fariam presentes por
meio da presença daquelas, só quem lhes daria algum sentido ou
valor. Presentes as pessoas e seus bens, dar-se-iam a conhecer
umas e outros; estes, pela valorização daquelas; aquelas, aos
valorizá-los. Na valoração de si mesmos e dos outros como
produtores de bens para satisfação das mútuas necessidades, cada
qual definindo livremente seu próprio valor e o valor alheio, o
valor de seus próprios bens e o valor dos bens dos demais;
nisto, uns e outros, dariam o conhecimento de si aos outros, e
isto bem se expressaria na fórmula da Aristóteles.

82
Uma relação referenciada em outras

O sapateiro, tendo em vista bem se alimentar, relacionar-


se-ia com o seareiro; tendo em vista a proteção de seu corpo,
relacionar-se-ia com o tecelão; e com outros mais ainda se
relacionaria conforme suas necessidades. Frente aos outros, far-
se-ia valer com o que produziria: os calçados. O mesmo fariam os
outros frente a ele e também entre si, com o alimento, o tecido
ou com o que quer que mais fosse produto de seus trabalhos.
Frente ao seareiro, tendo em vista o cereal, o sapateiro far-se-
ia valer por meio de seus calçados; o seareiro, por sua vez,
frente ao sapateiro, tendo em vista os calçados, far-se-ia valer
por meio de seu cereal. O sapateiro, oferecendo seus calçados,
demandaria pelo cereal; o seareiro, ofertando seu cereal,
demandaria pelos calçados. Mas como concretamente, conforme a
justiça e a igualdade, colocar o sapateiro, o seareiro, os
calçados e o cereal em uma mesma relação de igualdade? Como
fazer para que o sapateiro e o seareiro, em sua distinção e na
diversidade dos produtos de seus trabalhos, fossem postos
concretamente em uma relação em condição de igualdade e justiça?
O sapateiro, apresentando-se com os calçados, desejaria
retirar-se com o cereal; o seareiro, apresentando-se com o
cereal, desejaria retirar-se com os calçados. A demanda de um
deveria igualar-se à demanda do outro; um deveria estar frente
ao outro tal qual os bens de suas respectivas necessidades. A
relação de um com outro corresponderia à relação dos bens de
suas demandas. O que o sapateiro seria para o seareiro seria o
mesmo que um certo tanto de cereal para tantos pares de
calçados. A relação entre os dois resolver-se-ia como uma
relação entre o cereal e os calçados, o cereal em sua específica
utilidade para o sapateiro e os calçados em sua específica
utilidade para o seareiro.

sapateiro / tanto de cereal = seareiro / tantos calçados

resolver-se-ia em:

83
sapateiro / seareiro = tanto de cereal / tantos calçados

Ao definirem um b / a, a relação que teriam seus bens de


troca como sendo de utilidade recíproca, os dois, o sapateiro e
o seareiro, dariam determinação a um A / B, relação em que a si
mesmos dariam valor relativo. Ao definirem o valor relativo de
seus bens, dariam definição ao valor relativo de si próprios; ao
determinarem a razão em que estariam seus bens na relação troca,
dariam para si próprios a razão de seu relacionamento:

b / a = A / B

Ou, à inversa, um estaria para o outro como tanto de cereal


para tantos calçados:

A / B = b / a

Porque partícipes da relação de A e B, seria preciso que a


e b se definissem relativamente45. Para que se estabelecesse uma
relação entre o sapateiro e o seareiro seria preciso que se
definisse uma relação entre o cereal e os calçados. Uns e outros
trocariam aquilo que fosse seu como valores relativos, um
estando para o bem de sua demanda assim como o outro para o bem
da sua; um estando para o outro, pois, como seus respectivos
objetos de demanda. Para Aristóteles, far-se-iam assim
livremente iguais e associados de maneira justa.
O sapateiro far-se-ia valer frente ao seareiro e o
seareiro frente ao sapateiro pelo que exigissem fosse oferecido
em troca do que fosse seu. O primeiro, tendo em vista o cereal,
far-se-ia valer frente ao segundo pelos calçados, assim como
este, tendo em vista os calçados, far-se-ia valer frente àquele
pelo seu cereal. Contar-se-ia, no entanto, digamos, o sapateiro
só por si mesmo e o seareiro também só pelo seareiro mesmo: um e

45
”Pois bem, é preciso que tal qual o construtor para o sapateiro,
tantos calçados para a casa ou o alimento. Porque se não assim, não
haverá troca nem associação. Então isso, se não forem iguais dessa
maneira, não haverá.“ (Ética a Nicômacos 1133a [10])

84
outro seriam só mesmo um. Contar-se-iam, por sua vez, o cereal e
os calçados, por unidades de medida diferentes, conforme mesmo a
sua distinta natureza, os sapatos por pares, o cereal — vamos
dizer — por arrobas. A demanda associaria os elementos
participantes de uma relação de troca como unidade46. A / b
estaria para B / a assim como um; uma demanda estaria para a
outra como um. Seria, assim, a demanda a unidade, não o par de
calçados ou a arrobas de cereal, nem também o sapateiro ou o
seareiro.

Se A / b = B / a

(A / b) / (B / a) = 1

E entenderiam, os dois, seria de se esperar, que, sendo


cada um deles só um mesmo, um par de calçados de um não valeria
o mesmo que uma simples arroba de cereal do outro. Um e outro, o
sapateiro e também o seareiro entenderiam provavelmente que,
para que fossem iguais em suas demandas na relação de troca,
seus produtos, contados por unidades diferentes, não poderiam
ser dados por uma simples igualização das quantidades de suas
unidades. Nada estaria fixando — aqui está propriamente a
dificuldade — de que modo quantidades de bens dados conforme
unidades diversas poderiam vir a ser igualizadas e trocadas.
Como fariam, então, o sapateiro e o seareiro, para dar razão ao
seu relacionamento por meio de uma razão entre seus bens?
Haveria que se estabelecer uma relação entre os calçados e
o cereal — o primeiro contado por pares, o segundo por arrobas —
para que sua troca fosse efetivada de modo que fosse considerada
justa e igual. O sapateiro e o seareiro, concordando
provavelmente que deveriam ser distintas as quantidades a serem
trocadas das respectivas unidades de seus bens (menor, talvez, a
de pares de calçados e maior a de arrobas de cereal), contudo
não concordariam em quais deveriam ser seus específicos números
relativos. O sapateiro poderia estar esperando obter por seus

46
”[...] a demanda associa tal qual unidade sendo [...]“ (Ética a
Nicômacos 1133b [13])

85
calçados um volume maior de cereal do que estaria disposto a lhe
entregar o seareiro, ou o seareiro que os calçados do outro lhe
custassem um volume menor de seu cereal. Barganhariam os dois.
Homens de bem, não deixariam de estar procurando igualdade e
justiça em seu relacionamento, entendendo que tanto e como cada
um viesse a fazer pelo outro seria o mesmo que se receberia
dele47. Se observássemos os dois, talvez viéssemos a ver, é
verdade, o seareiro não se recusando a ter em troca de um
simples punhado de seu cereal um par de calçados do sapateiro.
Mas se tal postulasse, o sapateiro, certamente, não o aceitaria;
e o próprio seareiro, provavelmente, entendê-lo-ia em sua
recusa, homem de bem que, na verdade, seria. O sapateiro diria
mesmo que um par de seus calçados valeria muito mais do que um
punhado de cereal, que valeria um bom tanto dele. O seareiro
acaso entendesse que pelos calçados do outro deveria entregar
uma boa quantidade de seu cereal, mas pensaria ele, talvez, que
aquele tanto não precisaria ser tão grande como pretendia o
sapateiro.
Um e outro teriam sua própria maneira de ver a si mesmos e
aos outros pelo modo de valorarem o que fosse seu em relação ao
que fosse do outro. Poderia, por exemplo, o nosso sapateiro
pensar consigo mesmo que, se fosse ele próprio a plantar e
colher o cereal (certo tanto dele), levaria só uma porção do
tempo que levara para confeccionar seus calçados (um certo
número de seus pares). Na mesma proporção, entenderia, deveriam
seus calçados ser trocados pelo cereal. Poderia também não
pensar em quanto lhe teria custado confeccionar seus calçados,
mas o quanto lhe custaria, entenderia, usá-los para obtenção do
cereal; visto que pelo cereal, ficaria sem algum tecido que
teria também em vista, mesmo um em particular, que não só daria
matéria para a confecção de um abrigo para seu corpo, como a
distinção que julgava apropriada à sua pessoa. O seareiro, por
seu lado, reivindicaria a condição de ver seus pés bem
protegidos e ornados de acordo com a pessoa que, por sua vez,

47
”E mesmo isto em relação às diferentes artes; com efeito,
desapareceriam acaso não se fizesse aquilo que se faz, quanto e como,
e aquilo que se recebe se recebesse, tanto e tal qual.“ (Ética a
Nicômacos 1133a [9])

86
julgaria ser, sem dispender muito de seu cereal, que muito lhe
teria custado plantar e colher. Contrapor-lhe-ia, talvez, o
sapateiro, que a proteção de seus pés seria, sim, a ele
necessária, mas não o ornamento que desejava ter em seus
calçados, a menos que se mostrasse digno dele por ser capaz de
adquiri-los com a riqueza que tivesse produzido em cereais. O
sapateiro daria valor aos calçados e ao cereal conforme o valor
que desse a si mesmo e ao seareiro. Este faria o mesmo. Teria,
cada qual, uma imagem de si mesmo, de seu trabalho e de seu
produto, como também uma imagem do outro, de seu trabalho e
produto. Entenderiam de certa maneira a si mesmos e aos outros,
considerando cada um o seu próprio trabalho e o do outro, a vida
de um e a de outro. Segundo esse entendimento da parte de um e
outro, relacionar-se-iam.
Regateios e regateios, os números de um e outro poderiam
aproximar-se; se chegassem a concordar, a relação entre eles
acabaria por se efetivar, trocando-se certo número de pares de
calçados por um certo tanto de cereal; caso contrário, não. Mas,
no caso de efetivar-se, teria acontecido conforme que números?
Efetivar-se-ia — entende Aristóteles — simplesmente conforme os
números definidos pelos dois mesmos, o sapateiro e o seareiro,
na particularidade de suas pessoas, conforme a específica
situação em que se encontrassem. Os números seriam aqueles que o
nosso sapateiro e o nosso seareiro, eles próprios, definissem em
sua particularidade de pessoas determinadas no interior de uma
específica relação econômica. Eles decidiriam; a decisão seria
algo de sua competência exclusiva. A relação efetivar-se-ia, ou
não, dependendo exclusivamente deles, só deles, da aceitação por
parte de cada um dos números do outro. Do ponto de vista do
sapateiro, por exemplo, quaisquer que pudessem ser as
postulações de seu específico interlocutor econômico, no caso o
seareiro, seus calçados só seriam trocados pelo tanto de cereal
que ele próprio aceitasse. Poderia de início querer mais, menos
ou aquilo mesmo que o seareiro estivesse disposto a oferecer.
Dependendo da disposição do outro, conseguiria ou não obter o
que houvesse ele próprio postulado. O mesmo valeria para o
seareiro. Como quer que fosse, a postulação em si e a aceitação

87
ou não do que lhes oferecessem seus interlocutores seriam
decisões exclusivamente suas. Assim se fariam valer uns frente
aos outros. Assim afirmariam a si próprios, definindo seus
respectivos valores e aqueles de seus distintos bens e
trabalhos.
Livremente, assim se efetivaria sua igualdade a cada caso.
A cada caso definiriam o que seria para si o igual. Recusar-se-
iam a um relacionamento — porque ele não seria justo — se nele
cada um não entendesse colocar-se livremente como sendo igual ao
outro na prestação de um serviço de mesmo valor. A demanda
impulsioná-los-ia ao relacionamento; atuaria no sentido da união
da comunidade. A demanda de um sendo diferente da demanda do
outro, nisto já sendo um distinto do outro, um e outro não se
deixariam considerar, no entanto, como diferentes em um outro
sentido, aquele em que se os negasse em uma mesma condição de
igualmente demandantes ou carentes, a carência de um não podendo
valer senão o mesmo que a carência do outro. Só enquanto
carentes de carências de mesmo valor se reconheceriam. Para que
as relações de troca pudessem ser efetivadas, isto deveria ser
afirmado a cada caso por ambas as partes: como iguais deveriam
sempre se reconhecer. Sempre deveriam também se reconhecer como
livres, cada um respeitando a vontade do outro, comportando-se
como quem, sendo uma vontade livre, à sua frente não teria senão
uma outra vontade livre, só seu próprio senhorio também
reconhecendo. Em cada uma das específicas e particulares
relações de troca, o arbítrio dos envolvidos decidiria. Assim
sempre seria em uma troca entre indivíduos livres. Os indivíduos
trocariam entre si bens e serviços conforme lhes ditasse o seu
próprio arbítrio, em relações sempre bilaterais, negócios, a
cada vez, de duas individualidades livres. A liberdade de cada
um em definir seu próprio valor, e também o valor dos demais,
estaria sempre sendo contraposta a uma mesma liberdade presente
e reconhecida no outro. Assim, cada qual não definiria o seu
próprio valor relativamente ao valor do outro sem que este, por
sua vez, fizesse o mesmo. O valor de cada um só se definiria em
relação à definição do valor dos outros, cada um definindo o seu
próprio valor e o dos outros só quando os outros também

88
definissem os seus próprios e dessem a sua própria definição do
valor dos demais.
A liberdade de todos não levaria, no entanto, a que a
sociedade se pulverizasse em uma multiplicidade de relações
bilaterais, sem que nada as unisse e nada explicitasse o seu
caráter de, em conjunto, constituírem uma comunidade —
acrescenta Aristóteles. Na verdade, já a cada caso, cada um dos
dois indivíduos envolvidos em uma relação de troca, não só
consideraria seu específico e imediato interlocutor econômico,
mas também, ainda, todos os outros em quem pudesse ter interesse
e de que tivesse conhecimento ou notícia em suas pessoas e
posses. Teria em mente as relações que com eles estabelecera,
aqueles que eles teriam estabelecido entre si, por si mesmos, e
também, ainda mesmo, aquelas que, de um ou outro destes tipos,
poderiam vir a ser estabelecidas no futuro. Procuraria lembrar
de tudo que pudesse ser pertinente e poria mesmo a todos em todo
tipo de imaginárias transações, entre eles próprios e consigo
mesmo. Teria em mente a si próprio e aos outros em seus
comportamentos passados e prováveis comportamentos futuros.
Quando com um bem se adquirisse outro, todos os demais, que com
esse mesmo bem poderiam ser adquiridos, deixariam de sê-lo. Se,
com seus calçados, nosso sapateiro viesse a adquirir cereal para
seu sustento, com os mesmos calçados nada mais poderia adquirir.
O cereal de seu sustento, tendo-lhe acaso valido os calçados,
estes nada mais lhe poderiam valer. A obtenção de um bem com
alguns de seus calçados custar-lhe-ia, mesmo sempre, a privação
de todos os outros de que acaso também necessitasse, ou pelos
quais tivesse algum interesse, que pudessem ter sido adquiridos
com aqueles calçados; ainda que só se de outra maneira que não
com aqueles calçados não viesse também a poder adquiri-los.
Teria, com seus calçados, obtido o cereal; necessitando também
de algum tecido para a proteção de seu corpo ou mesmo de
instrumentos para o exercício de seu ofício, teria de recorrer a
outros bens que não aqueles mesmos calçados para obtê-los, visto
que, aqueles, o cereal já lhe teria custado. Haveria de recorrer
a outros bens, não ao que já fora trocado; em seu caso, talvez o
melhor fosse simplesmente vir a confeccionar novos calçados.

89
Isto não sendo possível, esgotados seus recursos com a obtenção
do cereal, mesmo aqueles para a produção de novos calçados, de
tudo mais nosso sapateiro ficaria privado. Por isso, na
aquisição do cereal por alguns de seus sapatos, precisaria de
ter levado, seria de se esperar que tivesse levado em
consideração, tudo o mais que com eles poderia ter sido
conseguido na oportunidade, o que fora por ele dispensado ou, ao
menos, do que a aquisição fora postergada para que viesse a ter
o cereal. Dar-se-ia sempre a priorização de uma demanda em
prejuízo de outras. As outras demandas de nosso sapateiro, que
não aquela de cereal, e que poderiam ter sido satisfeitas por
meio daqueles seus calçados, teriam sido por isso, com esta,
comparadas. Com aqueles seus calçados, nosso sapateiro poderia
ter agora em mãos isto ou aquilo, ou ainda aquilo outro.
Escolheria isto e não aquilo, ou nem isto nem aquilo, mas ainda
algo outro. Tudo o que tivesse sido entendido como passível de
aquisição por aqueles seus calçados teria sido imaginado como a
eles equivalente, assim como o cereal: cada uma dessas coisas,
aqueles calçados poderiam ter-lhe valido. O conjunto dessas
possibilidades acabaria, é verdade, por reduzir-se a uma única
transação real, no caso, a troca dos calçados pelo cereal; mas
no plano da imaginação do sapateiro teriam tido existência
efetiva, e na efetividade dessa existência, em sua imaginação,
teria ele comparado todo o conjunto de bens que tivesse como
pertinentes às suas necessidades que acaso pudessem ter sido
obtidos com aqueles seus calçados, tendo-os posto em relações de
troca imaginárias, onde os próprios bens e seus possuidores
teriam sido avaliados em relação a si próprio e seus calçados,
exatamente como, em específico, ele teria feito com o seareiro e
seu cereal. Para que avaliasse a si mesmo e seus calçados frente
ao seareiro e seu cereal em uma específica relação de troca, o
sapateiro teria colocado em linha de consideração todos os bens
que teria como de sua utilidade e que fariam parte do que
poderia ter-lhe valido seus calçados; todos esses bens teriam
sido avaliados em relação a seus calçados, assim como seus
possuidores em relação a si próprio. Assim seria em todas as
suas relações de troca. Sendo múltiplas e variadas suas

90
necessidades, o sapateiro, ao estabelecer cada uma das suas
várias relações de troca, acabaria por levar em conta as mais
diversas pessoas e os mais diferentes bens — todos aqueles e
tudo aquilo que estaria no interior de seu universo de interesse
—, dando a si mesmo e a seus calçados e aos outros e aos
produtos de seus trabalhos valores referenciados nos valores de
todos os demais e de tudo mais. Só assim, tendo em vista o que
lhe interessasse ou que pudesse vir a lhe interessar, e que
conseguisse reunir com seus recursos de entendimento, memória e
imaginação, o sapateiro definiria o tanto de cereal a receber
por seus calçados. E seria preciso — assim se esperaria que o
fizesse — que o seareiro aceitasse livremente o tanto de cereal
a ser entregue pelos calçados postulado pelo sapateiro, tecendo,
por sua parte, considerações do mesmo tipo a respeito de si
próprio e do bem de sua oferta, assim como de todos os demais e
de tudo mais, de todos os outros e tudo mais que tivesse no
universo de suas possíveis relações de troca. Só assim, com a
avaliação por parte de cada qual de si mesmo e seu bem de troca,
assim como de todos os outros e seus bens de troca que tivessem,
pessoas e bens, como copartícipes de seu universo de trocas, e
com a concordância dos dois, do sapateiro e do seareiro,
estabelecer-se-ia o tanto de cereal de um que seria trocado por
um certo número de pares de calçados do outro.
A proporção em que seus bens seriam trocados dependeria
exclusivamente, sim, da concordância do arbítrio dos dois. Mas
assim fazendo, não estariam com as vistas voltadas
exclusivamente para si mesmos: seria a própria sociedade, e a
sociedade toda, como um e outro a tivessem para si, que estaria
em pauta quando da realização de sua particular transação. Os
partícipes de uma relação de troca só definiriam a si mesmos,
valorando seus bens, quando o mesmo fizessem com todos os
demais. Aos outros, definiriam quando, valorando seus bens, a si
mesmos definissem ao valorarem seus próprios bens. Em cada um de
todos os casos, a relação definir-se-ia, sim, a partir do
arbítrio de um e outro lado; mas não só se procuraria acordo a
respeito de quem seriam os dois indivíduos e os bens
transacionados imediatamente presentes, mas também a respeito de

91
todos os outros possíveis indivíduos e bens partícipes do seu
universo de trocas. Uns e outros se colocariam em relações de
troca sempre como sendo capazes de darem seu parecer e chegarem
a um acordo a respeito de si próprios e seus bens, assim como e
de todos os demais e os bens que fossem deles. A cada vez, a
cada relação de troca entre dois, verificar-se-ia nos dois, pela
concordância a que pudessem chegar, o quanto ambos, um frente ao
outro, seriam capazes de afirmar uma mesma apreciação de valor
de si mesmos e de todos os outros, assim como de seus bens e de
todos os bens dos demais.

O representante da demanda

Ainda que em cada relação de troca, estivessem envolvidas


diretamente, só duas pessoas e seus respectivos bens,
indiretamente, pela mediação das duas, para a avaliação de si
mesmas e de seus bens, não haveria como deixar de se ter em
vista o conjunto todo das pessoas e dos bens partícipes de seu
universo de troca. O sapateiro teria uma imagem de si mesmo, de
seu trabalho e do seu produto, como também uma imagem do
seareiro, de seu trabalho e produto, dando-lhes valores
relativos; e consideraria — ainda mais — todos os outros
interlocutores econômicos que lhe pudessem interessar e de que
tivesse conhecimento ou notícia em suas pessoas e produtos; a
todos observaria, pondo-os mesmo em transações imaginárias tendo
em vista seus prováveis comportamentos. Só assim, levando em
conta as mais diversas pessoas e os mais diferentes bens viria a
dar a si mesmo e seus calçados, também ao seareiro e seu cereal,
seus respectivos valores, vindo estes a ser, pois, referenciados
nos valores de todos os demais e de tudo mais que conseguisse
reunir com seus recursos de entendimento, memória e imaginação.
O seareiro, por sua parte, teceria o mesmo tipo de considerações
a respeito de si próprio e seu produto, do sapateiro e do seu
produto, assim como também de todos os outros e seus produtos. E
deveriam concordar, os dois, o sapateiro e o seareiro. Só assim

92
se estabeleceria o número dos pares de calçados que seriam
trocados por certo tanto de cereal. Seria a sociedade toda, como
um e outro a tivessem para si, que estaria em linha de
consideração quando da realização de sua particular transação.
Cada qual só definiria a si mesmo quando também o fizesse com
todos os outros. Na particularidade de cada relação, já aí, cada
qual teria em mente não só um único interlocutor, aquele seu
imediato, mas uma multiplicidade deles, aqueles que — entenderia
— estariam no horizonte de seus possíveis recursos de
socialização.
O nosso sapateiro, por exemplo, de início talvez, pedindo
por seus sapatos um certo tanto de cereal, veria que não poderia
obtê-lo de um primeiro seareiro com que barganhasse, que só
concordaria em pagar por seus calçados um tanto de cereal menor
do que aquele que desejava obter; mas de outros seareiros que
não esse, entenderia o nosso sapateiro, talvez pudesse, sim,
obter o tanto de cereal que desejava por seus calçados; talvez o
obtivesse até de muitos outros, esperaria. Se um lhe recusasse o
que estivesse pedindo, pensaria, outro talvez não o fizesse;
ainda que, por outro lado, é claro, preocupar-se-ia, outros
pudessem só concordar em entregar-lhe por seus calçados um tanto
ainda menor de cereal. O nosso sapateiro, certamente, pondo-se
em atividade, tentaria ao longo do tempo apreciar uns e outros;
procuraria informar-se a respeito de quanto cereal poderia vir a
ter por seus calçados. Saberia por fim, talvez com algum
trabalho e cansaço, qual seria o tanto de cereal que seria
razoável esperar conseguir com eles. Sua própria experiência em
múltiplas relações e o conhecimento que viesse a ter da
experiência dos outros, sua capacidade de pensar a si mesmo e a
toda sociedade de que participaria, acabariam por lhe oferecer
uma ideia, mais ou menos precisa, de qual seria o tanto de
cereal que poderia obter pelos sapatos que fizera. Assim seria
com todos os demais. As múltiplas experiências de todos
acabariam por lhes definir uma expectativa, mais ou menos
próxima do que seria realista, a respeito do que poderiam obter
em troca de seus bens. As experiências de uns se somariam às
experiências de outros e o acúmulo dessas experiências todas

93
acabaria por propiciar a todos uma condição razoável para terem
uma expectativa, mais ou menos correta, quanto ao que poderiam
obter em troca do que fosse seu. Nas múltiplas e necessárias
relações que entretecessem os distintos indivíduos, ora este com
aquele, ora este mesmo com outro, ou aquele com outro mais,
paralelamente ou sucessivamente, nessas múltiplas relações,
haveria mesmo encadeamentos, repetições, semelhanças e
recorrências.
A multiplicidade das trocas, sua repetição e o conhecimento
mais ou menos generalizado de seus termos dariam condição de
nelas haver alguma previsibilidade. No entanto, problemas
persistiriam. Supondo-se, por exemplo, que o nosso sapateiro
houvesse uma vez conseguido trocar um certo número de seus pares
de calçados por uma certa quantidade de cereal, poderia ele,
nosso sapateiro, por causa daquela transação passada, esperar
que em uma nova oportunidade, agora talvez, viesse a obter pelo
mesmo tanto de seus calçados aquele mesmo tanto de cereal, ou,
pelo menos, que os números daquela transação pudessem lhe servir
de referência para a de agora. No entanto, o mesmo seareiro de
antes, ou outro com quem o nosso sapateiro acaso agora
barganhasse, poderia não aceitar suas postulações atuais
baseadas em uma referência a uma transação passada. Do ponto de
vista do sapateiro, o ter obtido antes um certo volume de cereal
por seus calçados, implicaria talvez em que, nos regateios da
atual negociação, tivesse mais condições para sustentar o que
pedia em troca deles. Diria ele, para o outro e mesmo para si
mesmo: se antes consegui tanto por meus calçados, por que agora
não posso conseguir esse mesmo tanto? Se um específico
interlocutor econômico recusasse-lhe esse tanto, pensaria ele,
poderia obtê-lo, logo ali adiante, de alguém mais, conforme lhe
sucedera anteriormente. Argumentaria frente ao seareiro que
teria, sim, anteriormente conseguido a mesma quantidade de
cereal que lhe estaria pedindo por um certo número de seus pares
de calçados; lembraria talvez que ele mesmo, o seareiro de
agora, lhe teria entregue por seus calçados, em uma oportunidade
passada, aquele mesmo tanto de cereal. O seareiro ouvi-lo-ia
atentamente, mas preferiria negociar com quem agora lhe desse

94
mais por seu cereal, e o nosso sapateiro ficaria sem seu
alimento: enganara-se, não sendo mais possível o que fora antes.
Mas ainda que reticente a princípio, o seareiro talvez pudesse,
sim, vir, no transcorrer das negociações em seu confronto de
argumentos, a dar razão ao nosso sapateiro. Talvez soubesse que
ele estaria dizendo a verdade, tendo efetivamente conseguido
anteriormente aquela quantidade de cereal por seus calçados; ele
mesmo, o seareiro de agora, antes já lhe teria efetivamente
entregue aquele tanto de cereal pelo mesmo tanto de calçados, ou
saberia, então, que outro seareiro o fizera, tal como
argumentava o sapateiro. Sabendo disso, o seareiro talvez
aceitasse as postulações do nosso sapateiro porque, sendo
verdade o que dizia, seriam reais suas possibilidades de ter de
um outro seareiro que não ele o cereal que reivindicava por seus
calçados, e este, se não as aceitasse , preocupar-se-ia, poderia
ficar com seus pés descalços.
Um e outro, o sapateiro e o seareiro, teriam lá suas
experiências e a partir delas estariam pensado uma situação
presente. Poderiam vir a concordar; talvez não. Na condição que
seria a mais propícia ao intercâmbio, talvez dissessem, para si
mesmos e cada um para o outro, que o que estariam pedindo, cada
um pelo bem que estivessem ofertando, seria aquilo que, em
geral, se conseguiria por ele. Cada um saberia que, se em geral
se conseguiria certo tanto de um bem por certo tanto de um
outro, quem quer que oferecesse menos pelo primeiro estaria
correndo o risco de ficar sem ele, pois o seu ofertante teria
como encontrar outros que, por ele, pelo menos aquele tanto de
outro lhe entregassem; ou então, pelo outro lado, saberiam todos
também que quem quer que pedisse mais do que em geral se obteria
com certo bem correria o risco de acabar por ficar com ele nas
próprias mãos, nada conseguindo por seu meio, obtendo-o, os
outros, de outras mãos. Cada um pedindo por seu bem o que em
geral por ele se pedisse, saberiam, talvez mais provavelmente
neste caso, acabaria por efetivar-se uma transação.
Mas como ter as referências necessárias todas para os
argumentos da barganha que se estabeleceria entre os diferentes
interlocutores econômicos no mercado, já que, para tanto,

95
haveria de se comparar a todos e a tudo? Os dados pertinentes
iriam se acumulando a partir de experiências singulares,
particulares. As quantidades em que os bens transacionados
equiparar-se-iam uns com os outros seriam sempre definidas caso
a caso. Por um par de calçados ter-se-ia obtido 2 arrobas de
cereal, ou 10 metros de tecido, ou 3 arrobas de cevada; se de um
trigo e não outro, de uma cevada e não outra, mais ou menos de
suas arrobas; se de um tecido e não outro, mais ou menos de seus
metros. E o par de calçados com que se teria obtido 2 arrobas de
cereal agora talvez só fosse suficiente para a obtenção de 1
arroba, ou quem sabe, com ele poder-se-ia agora obter 3 arrobas.
Difícil seria apreciar essas experiências, fazê-las úteis, dada
sua diversidade. Para que viessem a contribuir para que se
definisse uma expectativa que não deixasse de ser realista a
respeito do que se poderia obter em troca dos bens que se
possuísse haveria que se recorrer a todo um conjunto de meios de
pensamento. Precisariam ser levadas em consideração as
quantidades relativas em que os bens teriam sido trocados, aqui
ou ali — para o que já se exigiria muito de nós, dada a
quantidade e multiplicidade do que estaria em pauta —, o quanto
tais quantidades relativas poderiam ter variado, ali ou aqui, já
que de fato variariam aqui e também ali, qual teria sido a
amplitude de suas variações ao longo do tempo, ter em conta
quais teriam sido as razões dessas variações, ou então aquelas
de sua relativa constância, visto que poderiam também apresentá-
la, perguntar ao que umas e outra, variações e constância,
poderiam ser atribuídas, etc. Em sua complexidade, tudo isto se
constituiria em arte ou ciência; reuniria mesmo varias delas. E
o que nos poderiam fornecer essas artes ou ciências, mesmo um
conjunto todo delas, seria só mesmo aquilo que as ciências em
geral nos fornecem: não mais do que uma expectativa razoável
quanto ao que poderia vir a acontecer.
Algum bem, no entanto, acabaria por se tornar objeto de
trocas repetidas e generalizadas48. Tratar-se-ia de algo que a
todos interessasse; por exemplo, o sal com que todo alimento se

48
É nos moldes de uma conjectura como essa que Marx pensa o
aparecimento do dinheiro. Ver O capital, p. 97-100.

96
temperaria, o gado que a todos alimentaria, algum cereal que
faria o mesmo, ou o que quer que todos, ou quase todos, se
interessassem por possuir e pelo que estariam dispostos a
entregar algo de seu. Dada a existência de um bem desse tipo,
supor-se-ia, com ele, todos os outros, ao longo do tempo,
acabariam por ser trocados. Disso se adquiriria conhecimento com
alguma facilidade. Aí, em especial, seria de se esperar, haveria
recorrências. Saber-se-ia quanto de cada bem costumaria ser
trocado por aquele de interesse comum. Em geral, observar-se-ia,
trocar-se-iam 2 arrobas de farinha por 1 arroba de sal; já, com
uma única cabeça de gado, obter-se-iam
15 arrobas de sal, etc. Todos os bens acabariam por se comparar
com o sal. Essa referência a um bem comum serviria mesmo para a
comparação de todos os bens entre si. Se
2 arrobas de farinha fossem normalmente necessárias para a
obtenção de 1 arroba de sal e se 2 metros de um certo tecido
fossem também em geral necessários para a obtenção da mesma
arroba, ter-se-ia isto como referência para se estabelecer
futuras relações, não só entre a farinha e o tecido com o sal,
mas também como referência para qual seria a relação do tecido e
da farinha entre si mesmos. Se com 1 arroba de sal poder-se-ia
esperar obter 2 metros de tecido, ou com 2 metros de tecido
1 arroba de sal, e também, com o mesmo tanto de sal, 1 arroba,
obter 2 arrobas de farinha, ou com 2 arrobas de farinha,
1 arroba de sal; entender-se-ia, então, que em posse de 2 metros
de tecido, podendo-se vir a ter 1 arroba de sal, poder-se-ia,
depois, em posse de 1 arroba de sal, vir a ter 2 arrobas de
farinha; ou também que, em posse de 2 arrobas de farinha,
podendo-se vir a ter 1 arroba de sal, poder-se-ia, depois, em
posse de 1 arroba de sal, vir a ter 2 metros de tecido. Valendo,
2 arrobas de farinha e 2 metros de tecido,
1 arroba de sal, dir-se-ia, valeriam o mesmo e dir-se-ia mesmo
que uma coisa valeria a outra. Valeriam o mesmo no sentido de
valerem o mesmo sal e também no sentido de uma poder vir a valer
a outra pela intermediação de suas trocas com o sal. Valendo o
mesmo através da intermediação do sal, imaginar-se-ia, até

97
mesmo, que poderiam vir a ser trocadas diretamente uma pela
outra; eventualmente tal troca poderia ocorrer.
Mas — observe-se — o fato de 2 arrobas de farinha e
2 metros de tecido terem valido o que quer que fosse, no caso
1 arroba de sal, que é só o que poderia ter sido propriamente
verdade — o terem valido alguma coisa —, mesmo que em trocas
recorrentes, não asseguraria que novamente viessem a valê-lo; e
menos ainda — observe-se mais — que por terem valido, as
2 arrobas de farinha e os 2 metros de tecido, um mesmo tanto de
sal, ainda que recorrentemente tivessem valido o mesmo tanto de
sal, não estaria assegurado que uma coisa viesse a valer a
outra. Não seria porque 2 arrobas de farinha ou 2 metros de
tecido tivessem valido ou tivessem sido trocados por 1 arroba de
sal que poderiam ainda, com certeza, por ela mesma ser trocados
ou valerem ela ainda; ou também que, vindo a se obter com a
farinha ou o tecido aquele tanto de sal, se poderia com certeza
vir a ter, depois, pela farinha, o tecido, ou pelo tecido, a
farinha; isto, então, com a intermediação ou não do sal. Mas a
observação dos fatos passados, particularmente aquela de fatos
recorrentes, poderia, sim, servir de recurso no estabelecimento
do que seriam expectativas razoáveis quanto ao que se poderia
obter pela troca de nossos bens. 1 arroba de sal poderia ser,
sim, entenderíamos, referência para o que poderia ser obtido com
2 arrobas de farinha ou com 2 metros de tecido, desde que
tomássemos certos cuidados. Em posse de 1 arroba de sal, poder-
se-ia imaginar, pela simples recorrência das quantidades
relativas em que seriam trocados o sal com a farinha e o tecido,
simplesmente por acontecimentos recorrentes, poder-se-ia
imaginar — acaso tivéssemos motivo para acreditar que a
recorrência que teria despertado nosso interesse prometesse
persistir —, poder-se-ia imaginar que, em posse de 1 arroba de
sal, seria bem possível vir a ter 2 metros de tecido ou
2 arrobas de farinha, como também imaginar que, em posse
de 2 metros de tecido ou 2 arrobas de farinha, bem que se
poderia vir a ter 1 arroba de sal. E mais, se com 1 arroba de
sal fosse possível obter 2 metros de tecido e também 2 arrobas
de farinha, entender-se-ia que, em posse do tecido, bem que se

98
poderia esperar vir a ter a farinha, trocando-se o tecido,
primeiro, pelo sal, e depois esse sal pela farinha; ou que, em
posse da farinha, poder-se-ia esperara vir a ter o tecido,
trocando-a, primeiro pelo sal e, depois, o sal pelo tecido.
Assim, se todos os bens tivessem seu valor dado em sal, e se
tivéssemos a expectativas de que seus valores em sal seriam mais
ou menos constantes, ao menos por um tempo; nos limites desse
tempo, bastaria ver quanto de sal se obteria ao trocar um bem
por ele e imaginar o que se obteria com esse tanto de sal para
que se estabelecesse qual seria o poder ou valor desse bem nas
trocas, ou seja, estabelecer qual seria a capacidade de obtenção
de outros bens de que ele nos estaria dotando.
Para que nos servisse nas trocas tal como o sal dessa
conjectura, teria sido inventado o dinheiro — acredita
Aristóteles. Toma-o, no entanto, antes de tudo como resultado da
inventividade humana.49 O dinheiro seria para ele, propriamente,
um espécie de instrumento, um recurso facilitador das permutas;
assim efetivamente o entende: existiria não pela natureza, mas
pela convenção50. Seria um recurso criado pelos homens para que
se pudesse ter uma expectativa mais razoável quanto às
quantidades relativas em que os bens poderiam vir a ser
trocados. Seria pelo menos mais fácil vir a ter uma ideia a
respeito dessas proporções com seu uso do que sem ele. O
dinheiro compararia o valor relativo de todos os bens, definiria
o quanto um bem poderia vir a significar dos outros. Teria o
papel de padrão através do qual todos os bens seriam medidos em
suas quantidades relativas na expectativa da troca.51
E o dinheiro, como se poderia também esperar do sal de
nossa conjectura, serviria ainda como uma espécie de garantia de
realização das permutas em geral. Sendo objeto de demanda
49
Os detalhes de como esta se teria comportado não são por ele
estudados. Aborda o assunto rapidamente na Política 1257b.
50
”[...] mas qual representante da demanda o dinheiro veio a existir
conforme convenção; mesmo por isto tem por nome dinheiro [no/misma],
porque não pela natureza mas pelo costume [no/mov] é, e não só está em
nós mudá-lo mas também fazê-lo inútil.“ (Ética a Nicômacos 1133a [11])
51
”Casa A, dez minas B, cama C. O A do B metade, se cinco minas
valerem a casa, ou iguais a ela; a cama a décima parte o C do B;
mostrando-se assim quantas camas igualmente pela casa, ou seja cinco.“
(Ética a Nicômacos 1133b [15])

99
generalizada, todos estariam interessados por ele, e, portanto,
tê-lo em mãos seria uma garantia de se poder vir a ter tudo
mais. Mais com ele também, do que com outro bem qualquer, poder-
se-ia ter a expectativa de obtenção de tudo mais. Tê-lo
garantiria ou tornaria mais segura ou provável a satisfação das
demandas todas de alguém. Servir-nos-ia, o dinheiro, como uma
espécie de garantia inclusive de permutas futuras. Sua posse
asseguraria a realização das permutas quando elas viessem a ser
necessárias; preencheria os requisitos de algo que poderíamos
manter em mãos para com mais certeza obter aquilo de que
viéssemos a necessitar no futuro, que gostaríamos não nos viesse
a faltar. E ainda que acontecesse com o dinheiro, como com tudo
mais, de não ter sempre o mesmo valor ou de não ser sempre
trocado pelos outros bens nas mesmas quantidades relativas, as
proporções em que se trocaria seriam mais estáveis. Por essa sua
maior estabilidade, dar-se-ia maior previsibilidade ainda aos
termos das transações de troca em geral.52
O dinheiro seria, pois, padrão de medida para todos os bens
transacionados em mercado e também um assegurador das demandas
em geral. A sua simples posse estaria por dizer que se estaria
demandando por algo ou que se viria a fazê-lo, expressar-se-ia
por sua posse o desejo de bens alheios, a demanda por esses
bens: seria, já assim, um representante da demanda. E, pelo
outro lado, na posse de um outro bem, ao se lhe dar um valor em
dinheiro ou um preço, expressar-se-ia a disponibilidade de
trocá-lo com quem quer que fosse que pagasse por ele ou nos
entregasse aquele tanto de dinheiro fixado em seu preço;
ficando-se, então na sua posse, com o que se estaria a dizer que
se estaria ou se viria a estar demandando por algo: seria ele,
mais uma vez, um representante da demanda. Como padrão através
do qual todos os bens se expressariam em seus valores relativos
e, também, por ser imediatamente permutável com tudo, serviria

52
”E mais, no que diz respeito às trocas que estão por vir, se agora
algo não é necessitado, porque acontecerá acaso que venha a ser
necessitado, o dinheiro como garantia será para nós; com efeito, ele é
necessário para haver como tomar posse do que queremos. Sofre
alterações, sem dúvida, também ele mesmo; certamente nem sempre pode
ser igual; mas ao menos tende a ser mais permanente.“ (Ética a
Nicômacos 1133b [14])

100
como meio geral de disponibilização de tudo em troca de tudo,
facilitando, com sua intermediação, a permuta em geral. Em si
mesmo, não teria valor nenhum senão o de meio de demanda;
enquanto tal, a demanda tal qual ela se expressaria: seria um
representante da demanda. Por seu meio a demanda de todos pelos
bens de todos estaria expressa e também assegurada. Por isto —
considera Aristóteles — dever-se-ia estabelecer um preço para
todos os bens, pois desta forma facilitar-se-iam as permutas, e
consequentemente a comunidade entre as pessoas.53

A razão do relacionamento entre as pessoas e aquela entre seus


bens

A reciprocidade e a igualdade nas trocas seriam do tipo


proporcional e não simples. O sapateiro obteria do seareiro o
cereal e entregar-lhe-ia em retribuição os calçados; o seareiro
obteria do sapateiro os calçados e entregar-lhe-ia o cereal.
Fariam isto igualando suas demandas, a de um pelo bem da oferta
de outro. Haveria nas trocas reciprocidade e igualdade: só se
relacionariam os homens no mercado se reciprocamente demandantes
e iguais. Só como reciprocamente demandantes e só como iguais
relacionando-se, seriam, no entanto, em si mesmos diferentes,
eles próprios e os bens com que se apresentariam; acaso não
fossem diferentes, as pessoas e seus bens, não se relacionariam.
Nada impediria mesmo — frisa Aristóteles — que, ao se igualarem,
o produto de um fosse ”melhor“ ou ”pior“ que o do outro. Ao se
igualarem, pessoas e bens, seriam necessariamente desiguais e
uns e outros poderiam ser até ”melhores“ ou ”piores“ do que os
54
outros . Visto que distintos, não poderiam ser igualados direta
e simplesmente entre si, o sapateiro e o seareiro, os calçados e
o cereal. O sapateiro não seria igual ao seareiro, nem a alguns

53
”Por isso todas as coisas devem ter seu preço fixado; porque desse
modo sempre haverá troca, e se assim, associação.“ (Ética a Nicômacos
1133b [14])
54
”[...] não que melhor não possa ser a obra de um que a do outro;
nesse caso, devem ser igualizadas.“ (Ética a Nicômacos 1133a [8])

101
deles; os sapatos não seriam iguais ao cereal, nem a este nem
àquele tanto de cereal. As pessoas e bens nunca se igualariam
simplesmente, as pessoas entre si mesmas e os bens entre si
mesmos; não seriam, nem umas nem outros, umas as outras ou uns
os outros, havendo entre elas e entre eles distinções
qualitativas que nunca seriam superadas.
Mas como fariam então, retomemos, o sapateiro e o seareiro
para se relacionarem em igualdade? Suas demandas teriam de ser
igualadas e, para isso, os bens demandados e ofertados
reciprocamente comparados. Sempre teria de ser assim nas trocas,
pois se um não recebesse o que considerasse igual ao que
recebesse o outro, a satisfação de uma demanda devendo ser igual
ou de mesmo valor que a satisfação da outra, ninguém se
colocaria em relação de troca nenhuma. Confrontar-se-iam duas
demandas; igualar-se-iam quando satisfeitas por ofertas
complementares: a demanda do sapateiro pela oferta do cereal do
seareiro e a demanda do seareiro pela oferta dos calçados do
sapateiro. Sapateiro A, seus calçados a, seareiro B e b seu
cereal. A seria diferente de B, assim como a de b; uma pessoa
distinta da outra, um objeto distinto do outro. A relação de
cada um com o objeto da oferta do outro seria a de uma demanda:
A e B relacionar-se-iam respectivamente com a e b como seus
ofertantes e com b e a como seus demandantes. A demanda de A por
b expressar-se-ia por A / b e a de B por a por B / a. A relação
do primeiro com o objeto de oferta do segundo, a demanda do
primeiro, deveria ser posta como igual à relação do segundo com
o objeto de oferta do primeiro, a demanda do segundo. Deveriam
igualar-se as duas demandas:

A / b = B / a

A e B e também b e a estariam igualizados ou balanceados


como termos de uma proporção, mas nem os primeiros nem os
segundos simplesmente igualados entre si. A e B não estariam em
relação de igualdade se suas recíprocas demandas e ofertas não
fossem complementares e de mesmo valor. A e B não se igualariam
simplesmente um com o outro, nem b e a entre si. Igualizar-se-

102
iam, sim, uns juntos com os outros, uns como demandantes, cada
um do bem de oferta do outro (A / b = B / a), e os outros como
objetos demandados, cada um pelo ofertante do outro
(a / B = b / A). A igualdade que haveria nas trocas seria só uma
igualdade entre duas ofertas e demandas, entre uma pessoa e
outra como igualmente demandantes do objeto da oferta da outra,
ou entre um objeto e outro como igualmente demandados pelo
ofertante do outro: nenhuma outra igualdade lá encontraríamos.
Tratar-se-ia de uma igualdade de relações, de uma relação de
relações de oferta e demanda. Mas a igualdade de relações de
oferta e demanda seria também uma igualdade entre, por um lado,
uma relação das pessoas entre si, dos ofertantes e demandantes
e, por outro lado, uma relação dos objetos de suas demandas e
ofertas entre si; sempre se considerando que um e outro lado, o
da relação entre as pessoas e o da relação entre os objetos, não
existiriam senão conjuntamente, um frente ao outro em uma
relação de igualdade:

A / b = B / a

seria também:

A / B = b / a

A / B seria igual a b / a: à relação entre as pessoas


corresponderia uma entre os objetos de suas respectivas ofertas
e demandas. Definir-se-ia a relação entre as pessoas com a
definição de uma relação entre os objetos de suas respectivas
ofertas e demandas. Definir a relação entre os objetos de suas
ofertas e demandas seria definir a relação entre as pessoas:
dar-se-ia A / B como b / a. Determinar-se-ia b / a como A / B ou
A / B como b / a. Não haveria como se determinar A / B sem que
se determinasse b / a, nem b / a sem que determinasse A / B. As
pessoas relacionar-se-iam mesmo com a colocação em relação de
seus bens: A e B relacionar-se-iam colocando em relação a e b.
Colocar-se-iam em relação só ao colocarem os bens de suas
respectivas ofertas e demandas em relação:

103
A / B = b / a

As pessoas relacionar-se-iam colocando seus bens em


relação. Para que a relação entre o sapateiro e o seareiro
viesse a se determinar haveria, pois, que se determinar como se
relacionariam os calçados com o cereal; a relação entre aqueles
só se determinaria quando a relação entre estes se determinasse.
Relacionar-se-iam aqueles, o sapateiro e o seareiro, por uma
razão; também estes, o cereal e os calçados, se relacionariam
por uma razão; estando a razão pela qual os primeiros se
relacionariam igualada com a razão pela qual os segundos se
relacionariam. Haveria, assim, que se encontrar os termos em que
uns e outros estariam em suas razões, igualizar ou balancear os
termos da proporção que definiria a relação entre eles: os
calçados e o cereal, o seareiro e o sapateiro.
Igualizar-se-iam, ou bem se balanceariam, os bens, quando o
serviço que um prestasse ao possuidor do outro fosse dado como
igual ao serviço que este último prestasse ao possuidor do
primeiro. Bem se balanceariam, a e b, em uma relação de troca
quando o serviço que a prestasse ao possuidor de b fosse dado
como igual ao serviço que b prestasse ao possuidor de a. Assim
se estabeleceria a razão entre a e b como sendo objetos de
demandas de um mesmo valor. Seria a demanda o fator igualador ou
que levaria a que os bens se igualizassem ou bem se balanceassem
em uma relação de troca por meio da definição de suas
quantidades relativas. As quantidades relativas dos bens
permutados seriam definidas em termos de quais seriam aquelas
que os dessem como prestando serviços de um mesmo valor.
Igualar-se-iam nas trocas duas ofertas e demandas, a demanda de
um correspondendo à oferta do outro; em função da igualação de
duas ofertas e demandas, igualar-se-iam as razões de troca entre
os bens e as razões do relacionamento entre as pessoas.

104
O dinheiro nada propriamente igualaria

Igualar-se-iam as ofertas e demandas mais facilmente quando


fossem representadas por um tanto de dinheiro. O dinheiro, no
entanto, servindo para esse fim, nada propriamente igualaria.
Imaginemos uma situação peculiar para apurarmos nosso olhar. A
seria demandante de b, de b que seria dado por B como
equivalendo a x de dinheiro, e B seria demandante de a, de a que
seria dado por A também como equivalendo a um mesmo x de
dinheiro. Como objetos de demanda, b, para A, seria igual a x de
dinheiro e a, para B, seria também igual a x de dinheiro —
diríamos.

b / A = x de dinheiro

e também:

a / B = x de dinheiro

Arriscar-se-ia mesmo a dizer simplesmente:

b / A = a / B

ou

A / b = B / a

O que assim estaria acontecendo seria que A, desejoso de b,


veria que, para seu preço, B teria fixado x de dinheiro, e veria
B, desejoso de a, que A, para seu preço, haveria fixado um mesmo
x de dinheiro. Entenderiam, pois, os dois, que para obter o bem
do outro deveriam fazer-lhe frente com x de dinheiro, a demanda
de um e outro pelo seu bem sendo de um mesmo x de dinheiro. As
expressões b / A = x de dinheiro e a / B = x de dinheiro
serviriam para designar o que A e B veriam como sendo necessário

105
ter em mãos para, por meio de uma troca, virem a se apossar do
bem que estivesse em posse do outro. Para A, b seria igual a
x de dinheiro enquanto o que ele A deveria ter em mãos para que
pudesse vir a se relacionar com B, e de b se apossar. Pelo outro
lado, a, para B, seria igual também a x de dinheiro, em termos
de que x de dinheiro seria aquilo que custaria a B vir a estar
em posse de a por meio de seu relacionamento com A. As duas
expressões, no entanto, não designariam nenhuma relação de troca
propriamente dita, mas simplesmente o que, entenderiam os dois,
seria necessário para que alguma viesse a ocorrer. Ocorrendo uma
troca entre eles, ela não se daria de outra maneira senão ao
modo de um:

b / A = x de dinheiro / B

ou de um:

a / B = x de dinheiro / A

A e B só se relacionariam se ou outro viessem a estar em


posse de x de dinheiro e, na relação, a sua posse transferindo-
se de um para o outro. A princípio talvez, teriam percebido, os
dois, que em posse de seus próprios bens que não o dinheiro não
poderiam, nenhum nem outro, fazer frente ao outro. A teria em
mãos a e não o x de dinheiro que desejaria B por seu bem b; B
teria em mãos b e não o x de dinheiro que A desejaria por seu
bem a. Mas os dois perceberiam também que com seus próprios bens
poderiam vir a ter em mãos o x de dinheiro desejado pelo outro
em troca do seu bem. A, podendo fixar x de dinheiro como preço
de a, entenderia que, se acaso de fato o vendesse, poderia vir a
entrar em transação com B, obtendo dele seu bem b. B, pelo outro
lado, o mesmo esperaria, que com seu bem b, fixando seu preço em
x de dinheiro e vendendo-o efetivamente por tanto de dinheiro,
viria a ter condições de postar-se frente a A e obter dele seu
bem a. Perceberiam, assim, que o bem que possuiriam poderia lhes
valer o bem do outro. Se, para A, seu bem a, esperaria o

106
próprio A, deveria prover-lhe de x de dinheiro — assim
entenderia ao fixar seu preço em x de dinheiro —, teria ele que
seu bem a poderia vir a lhe valer o bem b de B, visto que com o
x dinheiro, que obtivesse com a venda de a, poderia vir a
comprar o bem b de B. Diríamos então que, para A, seu bem a
viria a lhe significar x de dinheiro; a para A seria como
x de dinheiro — mas x de dinheiro para A e não para ninguém
mais:

a / A = x de dinheiro / A

E x de dinheiro seria o mesmo que B desejaria com a venda


de seu bem b. Assim como a, para A, seria igual a x de dinheiro;
para B, b lhe seria — mas também só x de dinheiro para B e não
para ninguém mais:

b / B = x de dinheiro / B

A poderia vir a ter b de B porque B estaria desejoso de


x de dinheiro, o que teria em mãos A pela venda de a:

A / b = B / x de dinheiro

Onde A estaria para o bem de sua demanda assim como também


B para o seu, b sendo objeto da demanda de A e x de dinheiro
objeto da demanda de B. Então, diríamos, para A:

a / A = x de dinheiro / A

Ou simplesmente, para A:

a = x de dinheiro

E em seguida:

x de dinheiro / A = b / A

107
Ou simplesmente, para A:

x de dinheiro = b

O que se resumiria:

a / A = x de dinheiro / A = b / A

ou mais simplesmente, para A:

a = x de dinheiro = b

E o mesmo se poderia pensar do ponto de vista de B em


relação a seu interesse por a. Para B, analogamente:

b = x de dinheiro = a

Estas assertivas todas, que diríamos corretas, teriam que


ser entendidas, no entanto, como meras expressões do que teria
passado pelas cabeças de A e B ao pensarem suas possíveis
relações de troca, e não como exprimindo o que em qualquer delas
poderia vir propriamente a acontecer. Nenhuma troca poderia se
dar em termos de um a estar para um A assim como um x de
dinheiro para o mesmo A:

a / A = x de dinheiro / A

A sentença reportar-se-ia meramente ao que, para A, no


entendimento de A, viria a significar o bem a em sua posse.
Mesmo se, acaso, A acabasse por vender a, vindo este
propriamente a lhe valer x de dinheiro, a expressão designaria o
que seria resultado para A de uma troca e não a própria troca. O
mesmo em relação a B e seu bem b. Entender isto, no entanto, não
significaria que as expressões não contivessem nenhuma verdade;
conteriam, sim alguma verdade; mas só a sua própria, não outra.
E poderiam mesmo ser resumidas. Diríamos que se, para A:

108
a = x de dinheiro

Sendo, para B:

b = x de dinheiro

Para A, acaso:

a = x de dinheiro = b

Resumidamente, para A, acabaríamos por ter:

a = b

Diríamos igualmente que se, para B:

b = x de dinheiro

Sendo, para A:

a = x de dinheiro

Para B, talvez:

b = x de dinheiro = a

E, assim, para B, acabaríamos por ter resumidamente:

b = a

Os dois, A e B, perceberiam que em posse de seus


respectivos bens poderiam vir a ter o do outro, porque um e
outro haveriam fixado um mesmo tanto de dinheiro como preço de
seu bem:

preço de a = preço de b

109
Nisto, no entanto, não existiria nenhuma outra igualdade
senão uma só mesma de preços. E uma igualdade de preços,
considere-se, não é, primeiro, uma igualdade de dois bens
quaisquer:

mercadoria a = mercadoria b

E, segundo, não é também uma simples igualdade de duas


quantidades de dinheiro:

x de dinheiro = x de dinheiro

As expressões, se consideradas verdadeiras, não passariam


mesmo de mera tautologia. Além disso, mais nenhuma verdade
poderia haver nelas. Do ponto de vista das trocas — o que nos
interessa reter —, duas mercadorias iguais não se trocariam e —
o que é, então, de nosso específico interesse — nem dinheiro
pelo mesmo dinheiro. O x de dinheiro fixado por A como preço de
seu bem a, não seria, na verdade, senão um x de dinheiro a que
nada se igualaria, visto que seria só aquele que A pretenderia
ver em suas mãos como a venda de a; e também a nada se igualaria
o x de dinheiro fixado por B como preço de seu bem b, pois
também este x de dinheiro não seria senão aquele x de dinheiro
que B desejaria ter em suas mãos pela venda de seu bem b. E o
x de dinheiro fixado por A como preço de seu bem a seria aquele
específico x de dinheiro que desejaria ter em mãos pela venda a
e não de um outro bem qualquer que fosse seu; assim como o
x de dinheiro fixado por B como preço de seu bem b seria só
aquele x de dinheiro que B desejaria ter em suas mãos pela venda
de b, e não, também, de qualquer outro bem que fosse seu. A e B
desejariam ver realizados o preço de suas mercadorias a e b em
específico, ainda que pudessem querer ver também realizado o
preço de outras mercadorias que também fossem suas; mas a
realização do preço de umas não seria o mesmo que a realização
do preço de outras, porque não realizado o preço de umas, com
estas é que se ficaria em mãos, não com as outras, e, se não
realizado o preço de outras, com estas é que se ficaria nas

110
mãos, e não com as primeiras. E ainda, para definir a
especificidade de cada x de dinheiro: o x de dinheiro fixado
como preço de a, por A, A não desejaria ver senão em suas
próprias mãos e não em mãos de B, mesmo de quaisquer outras que
não as suas próprias; e o x de dinheiro fixado por B como preço
de b, B também não desejaria ver senão em suas próprias mãos e
não nas mãos de A, mesmo também de quaisquer outras que não as
suas próprias. Um x de dinheiro seria x de dinheiro para A e
outro um x de dinheiro para B. Ainda que, um e outro, um x,
seriam dois, um x para um e outro x para outro.
Mas igualar-se-iam, dir-se-ia, os preços dos dois bens, a e
b. Pela igualdade de seus preços, A e B, a partir da posse de
seus próprios bens, poderiam vir a ter em mãos o desejado bem do
outro. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o bem de um poderia
acabar por valer o bem do outro. Em posse de a, A poderia mesmo
se ver já em posse de b e B, em posse de b, mesmo já em posse de
a. Mas a operação seria somente dada em suas próprias cabeças,
visto que, para que a viesse a valer b para A, A teria, antes,
que fazer com que a lhe valesse x de dinheiro e, depois, que
x de dinheiro lhe valesse b; assim como B teria que fazer,
primeiro, com que b lhe valesse x de dinheiro e, depois, com que
x de dinheiro lhe valesse a. Para A:

a = x de dinheiro = b

E para B:

b = x de dinheiro = a

Estas sentenças, no entanto, não passariam de fatos


meramente mentais, expressões resumidas do que se pretendesse
que viesse a acontecer. Mas, mesmo como tais, poderiam ser úteis
a A e B. Tais formulações poderiam, sim, valer a A e B na
definição de seus comportamentos. Mas eles não poderiam deixar
de ter em vista que seriam formulações que não corresponderiam
propriamente a quaisquer relações de troca, ainda que, com elas,
se pudesse ter em vista outras expressões que, sim

111
corresponderiam a efetivas transações de troca e das quais
seriam antecipações expressas simplificadamente, ou então meros
resumos a posteriori. Corresponderiam propriamente aos fatos
outras expressões. Fatos propriamente — a começar por A — seriam
ou poderiam vir a ser só, primeiro, a troca de seu bem a por
x de dinheiro e, depois, a troca de x de dinheiro por b. Uma
primeira relação de troca processar-se-ia, acaso, entre A
desejoso de x de dinheiro e um possuidor de x de dinheiro
desejoso do bem a de A:

A / x de dinheiro = possuidor do x de dinheiro / a

Uma segunda relação de troca processar-se-ia ou poderia vir


a processar-se entre A, em posse de x de dinheiro, e desejoso do
bem b de B, e B, em posse de b, desejoso de x de dinheiro.

A / b = B / x de dinheiro

Para B, da mesma maneira, fatos mesmos só poderiam vir a


ser duas trocas, a primeira com um possuidor de x de dinheiro e
a segunda com A.
Os dois, como demandantes de um mesmo x de dinheiro, não se
relacionariam. A demandando por x de dinheiro não se
relacionaria com B se este também estivesse demandando por x de
dinheiro. A demandando por x de dinheiro só se relacionaria com
B se B demandasse pelo que A desejasse converter em x de
dinheiro. O sapateiro, em posse dos calçados e demandando por x
de dinheiro, só se relacionaria com o seareiro se este desejasse
seus calçados; acaso, sim, um seareiro como A, mas só se este
houvesse antes transformado seu cereal em x de dinheiro. O mesmo
sapateiro, por outro lado, em posse de x de dinheiro e
demandando por cereal, só se relacionaria com o seareiro se este
estivesse em posse do cereal e não de x de dinheiro.

112
Um importante expediente prático

Uma transformação de calçados e de cereal em dinheiro — há


que se observar — talvez não fizesse senão, até mesmo, complicar
uma possível relação entre o sapateiro e o seareiro. Se o
sapateiro e o seareiro estivessem um frente ao outro, o primeiro
desejoso do cereal do outro em troca de seus calçados e o
segundo desejoso dos calçados do primeiro em troca de seu
cereal, concordando inclusive, os dois, em relação às
quantidades relativas em que seus bens deveriam ser trocados,
entender-se-ia, não se separariam, cada qual, por seu lado,
procurando transformar seu bem em dinheiro para, só depois,
procurarem estabelecer entre si uma relação de troca, quando, só
então, com o dinheiro conseguido por um e outro, obteriam
reciprocamente o produto do outro. Se um e outro, frente um a
outro, estivessem desejosos do produto do outro, e concordantes
quanto às quantidades em que deveriam ser trocados, de imediato,
entender-se-ia, os trocariam. Tal situação, no entanto, não
seria a mais provável. Estaria, acaso, o sapateiro com seus
sapatos a procura de cereal, mas o seareiro com que se
encontrasse, tendo em sua posse o cereal desejado pelo
sapateiro, não desejaria, talvez, trocá-lo por calçados, mas sim
por meias para melhor acomodar seus pés em calçados que já
estariam em seu uso, ou então por algum tecido com que
confeccionaria um abrigo para proteção de seu corpo, mesmo por
um traje já acabado conforme seu gosto. O seareiro estaria
desejando trocar seu cereal pelo que fosse de seu agrado no
momento, sendo que não seriam calçados. Ficaria, então, o
sapateiro com seus calçados, sem que com eles pudesse obter
nenhum cereal. A posse dos calçados não asseguraria que o
sapateiro viesse a ter o cereal. Só viria a tê-lo se o seareiro
fixasse seus calçados como o objeto que desejaria trocar por seu
cereal. No entanto, se o seareiro, ainda que não interessado em
calçados, houvesse fixado um preço para seu cereal, ou estivesse
dizendo que teria interesse em trocar seu cereal por um certo
tanto de dinheiro, o sapateiro saberia que, em posse daquele

113
tanto de dinheiro, poderia obter o cereal do outro; sendo que,
saberia também o sapateiro, que por seus calçados poderia vir a
ter algum dinheiro, aquele mesmo tanto ou até mais. O sapateiro
teria em mãos os calçados e não o dinheiro, sendo que o seareiro
teria em vista o dinheiro e não os calçados; mas entenderia o
sapateiro que, por seus calçados, poderia vir a ter o dinheiro
e, com este, vir a ter o cereal que desejava. A fixação do preço
para o cereal pelo seareiro diria que ele estaria disposto a se
desfazer dele em favor de quem quer que lhe entregasse o tanto
de dinheiro que estaria ali definido. O mesmo, é verdade,
aconteceria se o seareiro houvesse fixado qualquer outro bem
como objeto que trocaria por seu cereal, bastando ao sapateiro
trocar seus calçados por esse outro bem para que pudesse entrar
em relação com o seareiro, obtendo seu cereal. Mas acontece que
a mesma dificuldade que teria tido o sapateiro de se relacionar
com o seareiro, em função de seu cereal, poderia ter ele também
para se relacionar com quem tivesse, talvez, as meias que,
saberia, seriam objeto de desejo do seareiro e que, portanto,
viriam a possibilitar-lhe entrar em relação com ele. Desejaria o
seareiro meias e não calçados em troca de seu cereal. O
sapateiro teria em suas mãos calçados e não meias. Poderia, no
entanto, trocar seus calçados por meias, primeiro, e depois as
meias pelo cereal. Mas também só trocaria seus sapatos com as
meias se deles o possuidor das meias estivesse desejoso; o que
nem sempre, ou só ao acaso aconteceria. Quando em posse de seus
calçados, sua relação com o possuidor das meias apresentaria as
mesmas dificuldades que aquela com o seareiro tendo em vista seu
cereal.
Haveria de se saber que bem funcionaria como meio de troca
em relação a este ou àquele interlocutor, em função do desejo de
um ou outro bem. Definir-se-ia, no entanto, um bem que
funcionaria em todos os casos como meio de troca: o dinheiro.
Todos fixando um preço para seus bens, a posse do dinheiro seria
um meio para obtenção de tudo mais. Todos os bens que não o
dinheiro se apresentariam só acidentalmente como meios de troca.
Poderiam ou não servir para troca só conforme a disposição dos
outros de virem a aceitá-los como tais. Diferente se

114
apresentaria o dinheiro. Não desempenharia o papel de meio de
troca só acidentalmente, mas permanentemente. Todos se
mostrariam desejosos dele ao igualmente fixarem um preço para
seus bens. O seareiro desejara calçados, mas, porque já os teria
obtido, ou mesmo que não, deixara de procurar por eles e passara
a ter suas vistas voltadas para meias; o fabricante de meias,
por sua vez, desejara calçados, mas também, porque já os teria
obtido, ou mesmo ainda que não, por uma outra razão qualquer,
também ele, deixara de procurar por eles, passando a ter em
vista, talvez, um agasalho. Fixado o dinheiro como meio
universal de troca, a todos os bens tendo-se dado um preço,
todos, ver-se-ia, sempre estariam a procura dele; em sua posse,
então, seria possível vir a ter tudo mais. O seareiro desejaria
ora calçados, ora meias; o fabricante de meias, ora calçados,
ora um agasalho, etc. Mas, para os calçados, o seareiro
desejaria, por seu cereal, dinheiro; e, para as meias, outra vez
por ele desejaria dinheiro. O mesmo com o fabricante de meias e
com o próprio sapateiro: todos sempre estariam desejosos de
dinheiro. Isto porque a posse do dinheiro asseguraria a todos a
obtenção de todos os bens de suas necessidades, sem que
precisassem verificar caso a caso o que lhe seria
especificamente necessário ter em mãos para se adquirir o que
particularmente desejassem. Assim, todos entenderiam que antes
de procurar trocar diretamente o bem de que tivessem a posse por
aquele de sua específica necessidade, ou de procurarem ter em
mãos o que especificamente desejasse quem em sua posse o
tivesse, em vez disto, entenderiam todos, deveriam antes trocar
o que tivessem por dinheiro. Trocariam o que tivessem por
dinheiro — vendê-lo-iam — para, depois, trocar o dinheiro assim
obtido pelo bem de sua necessidade — comprando-o — qualquer que
este fosse. Venderiam para depois comprar o que quer que fosse.
A venda, a transformação do bem de que se tivesse a posse em
dinheiro, seria o primeiro passo para que se viesse a poder
obter com mais facilidade e certeza o que quer que se desejasse.
Por meio da venda adquirir-se-ia a posse do meio universal de
aquisição de todos os bens. Toda demanda apresentar-se-ia,
assim, como posse de dinheiro; dir-se-ia que seria representada

115
por dinheiro. O dinheiro apareceria como uma espécie de
representante da demanda.
O dinheiro possibilitaria que todos viessem a se colocar
mais facilmente em relação, facilitando mesmo o gerenciamento de
seus esforços pertinentes à obtenção de todos os bens. Cada qual
acabaria por ter no bem de sua posse um efetivo meio de vir a
adquirir os bens que estivessem em posse dos outros. O sapateiro
(sempre nos termos de nossa simplificação, onde o sapateiro se
faria presente no mercado só com o produto de seu próprio
trabalho, os sapatos), com o uso do dinheiro por todos, viria a
ter, o sapateiro, em seus sapatos, um meio de aquisição de tudo
mais que necessitasse com certa facilidade. Tendo em vista o
dinheiro como representante da demanda em geral, definiria, já
mais facilmente, o quanto deveria dedicar-se à produção de seus
calçados. E o faria simplesmente considerando, primeiro, o
conjunto dos bens de sua necessidade como uma certa soma de
dinheiro: precisaria para o cereal de seu sustento de tanto de
dinheiro; para o tecido ou o agasalho para seu corpo, de mais um
tanto; para sua casa, de mais outro tanto; e mais ainda, talvez,
mais um outro tanto de dinheiro, consideraria, seria preciso
para a aquisição de novos instrumentos de trabalho, visto que
alguns dos seus estariam estragados, etc. Estando definido um
preço para todos os bens, cada uma das necessidades do sapateiro
representaria simplesmente uma certa quantidade de dinheiro e o
conjunto delas todas uma certa soma de quantidades de dinheiro.
Tal soma de dinheiro, o sapateiro teria de obter com a venda de
seus calçados, só o que teria para vender. Haveria então de
confeccionar certo número de seus pares e atribuir-lhes um preço
de tal modo que aquela soma de dinheiro, correspondente à soma
dos preços dos bens de sua demanda (ou uma maior), viesse a
estar em suas mãos pela venda daqueles. Assim, seria mais fácil
organizar o conjunto de sua atividade como produtor de calçados.
E o dinheiro ainda mais auxiliaria o sapateiro no
gerenciamento de seus recursos na medida em que permitiria que
suas aquisições se ajustassem aos seus efetivos tempos e ritmos
de consumo. Precisaria o sapateiro do pão de seu dia a dia, do
pão de cada um de seus dias. Pela barganha com quem o cozesse,

116
haveria de se chegar a uma certa relação quantitativa entre
calçados e pães; assim sempre os bens se trocariam. Esperar-se-
ia que por um único de seus pares de calçados, entenderia
provavelmente o sapateiro e concordaria com ele quem cozesse os
pães, que por um único dos pares de seus calçados deveria, o
sapateiro, receber um bom tanto de pães. O sapateiro, então,
simplesmente, entregaria ao outro um par de seus calçados e
receberia o tanto de pão que se entenderia lhe corresponder?
Tratar-se-ia, no entanto, provavelmente, de um volume de pão
superior àquele que o sapateiro consumiria em um único dia,
mesmo em alguns, levando talvez muitos dias para fazê-lo.
Ficaria, então, o sapateiro, com o pão a estragar-se em sua
casa, visto que só ao longo de um bom tempo, esperar-se-ia, ele
consumiria o número de pães que corresponderia a um único par de
seus calçados. Ou entregaria de início o seu calçado a quem
cozesse o pão e combinariam, os dois, que o segundo lhe
forneceria por um certo período de tempo o pão que lhe fosse
necessário a cada dia? Possível seria que assim se fizesse. Mais
fácil, no entanto, seria que um e outro viessem simplesmente a
ter pelo bem que utilizassem como meio de troca, os calçados de
um e os pães de outro, certo tanto de dinheiro, para que, com
esse dinheiro, cada um obtivesse tudo o mais, despendendo-o ou
mantendo-o conforme os específicos tempos e ritmos em que
consumiriam seus diversos bens. O quanto se estragaria o
dinheiro permanecendo em umas e outras mãos seria desprezível,
particularmente se comparado ao que aconteceria com a maioria
dos outros bens, mesmo em particular com o pão do dia a dia de
nosso sapateiro; ainda que esta não fosse uma qualidade que
seria exclusivamente sua.
Mas seria também uma qualidade do dinheiro, que pudesse
partir-se nas porções adequadas às quantidades de pão
necessárias a cada um dos dias de nosso sapateiro. Hoje,
disporia de uma porção do dinheiro que tivesse obtido com a
venda de seus calçados, amanhã, de outra amanhã; com cada uma
delas adquirindo o pão a cada dia necessário, inclusive um que
acabara de ser cozido, o que em particular lhe agradaria. Pelo
lado de quem cozesse os pães, receberia, ele, do sapateiro pelo

117
pão de seu dia a dia, e também, de vários outros mais, receberia
pelo pão de seus dias. Somar-se-iam, no dia a dia de quem
cozesse os pães, os ganhos com a venda do pão do dia a dia dos
outros. Assim este ganharia sua vida, vindo a dispor de um meio
de troca que, partido no bolso dos demais, no seu, recompor-se-
ia, somando-se, e que, também a ele, serviria, acaso desejasse
com a mesma qualidade de partição com que servira àqueles a que
ele servira com seu pão. Não precisariam, assim, todos sempre
definir com uma grande antecipação quais viriam a ser suas
demandas, podendo mesmo mudá-las ou adaptá-las conforme viessem
a ser as circunstâncias.
Sem o dinheiro algumas relações seriam mesmo impossíveis.
Precisaria o sapateiro de uma casa que a ele e sua família desse
abrigo. Não a construindo, deveria ir à procura de um construtor
que a teria como produto de seu trabalho. Encontrando-o,
entenderiam provavelmente, os dois, agora o sapateiro e o
construtor, que por uma única casa o sapateiro deveria entregar
um bom número de seus pares de calçados e não um único; ou, se
acaso quem procurasse pelo construtor fosse um marceneiro, para
usarmos o exemplo de que faz uso Aristóteles, entregar-lhe um
certo de número das camas que houvesse feito e não uma única.
Tomando-se o exemplo do marceneiro e o construtor de
Aristóteles, diz este que entenderiam aqueles que a 1 casa
corresponderiam 5 camas. A relação entre a casa e as camas no
exemplo não é certamente uma que entenderíamos ser a mais
provável hoje, mas isto não vem ao caso no que apreciamos: a 1
casa corresponderiam 5 camas, aceitemos. Porém se, por um lado,
o marceneiro talvez pudesse entender que 5 de suas camas bem que
lhe valeriam 1 casa, que por 1 casa bem que entregaria 5 de suas
camas, ter-se-ia de ter em vista que, pelo outro lado, o
construtor talvez não o aceitasse, visto que, senão por outras
razões, sendo a sua casa — 1 casa — de utilidade do marceneiro —
precisaria de fato o marceneiro de 1 casa —, talvez 5 camas não
lhe fossem de utilidade; bastar-lhe-ia, talvez, 1 única cama. O
construtor não teria interesse em 5 camas, visto que viria a se
servir de 1 cama só. Se assim, não seria de se esperar se
trocasse 1 casa por 5 camas. Estaria dada como necessidade do

118
marceneiro 1 casa, mas não 5 camas como necessidade do
construtor. Poder-se-ia imaginar, é claro, que o construtor
quisesse dar cama não só ao conforto de si mesmo e sua mulher,
mas também àquele de seus filhos ou de mais algum parente; ou
cogitar-se-ia, talvez ainda, que recebendo por sua casa 5 camas,
ficasse com só 1 delas e as demais as trocasse por outros bens
de sua necessidade. Mas aqui também se complicariam as relações.
Seria mais fácil que o marceneiro obtivesse com a venda de suas
camas a soma de dinheiro que fosse suficiente para satisfazer o
conjunto de suas necessidades, entre elas a de 1 casa, e que só
então entrasse em relação com os possuidores dos bens que lhes
fossem pertinentes, entre eles, o construtor. O marceneiro
venderia algo, suas camas, e compraria a casa, só a casa ou ela
entre outros bens. Por sua vez, o construtor, da mesma maneira,
venderia algo, sua casa, e com o dinheiro que obtivesse
compraria o que quer que fosse objeto de sua necessidade.
Resolver-se-iam, assim, também os problemas que o construtor
pudesse ter para transformar sua casa nos diferentes bens de seu
consumo, quando, dado o valor relativamente elevado da sua casa,
estes correspondessem a só uma fração daquele. Tendo em troca de
sua casa um tanto de dinheiro, faria com que, por sua partição,
partição que não seria possível com a própria casa, viesse a ter
em mãos como meio de troca o que especificamente correspondesse
a cada um dos itens do que necessitasse e que fosse de valor
inferior ao da sua casa, como, por exemplo, 1 par de calçados ou
alguns pães. Partir 1 casa, como também 1 par de calçados, seria
impossível, ao menos difícil na maior parte das vezes. Também o
sapateiro, como vimos, precisaria do que tivesse um valor que só
corresponderia a uma fração daquele de um único par de seus
calçados. Não haveria, no entanto, como separar os cômodos da
casa, esta se constituindo em unidade (ainda que, sim, às vezes,
um ou outro cômodo pudesse ser dela separado); assim como não
haveria também, ao menos em geral, como separar um e outro
calçado do par que formassem, constituindo-se, no caso, o par em
unidade. Transformando-se em dinheiro, a casa e os calçados,
ter-se-ia em mãos algo que, ao contrário daqueles bens, seria
partível ou fracionável. Partir-se-ia qualquer soma de dinheiro

119
que com a casa ou os sapatos se houvesse adquirido conforme o
preço dos bens que se desejasse obter.
E precisariam, o sapateiro, o construtor, o marceneiro e
quem cozesse pães, todos eles, acabar por ter os bens de suas
demandas efetivamente em suas próprias mãos. Das mãos de uns, os
bens deveriam ser transferidos para as mãos de outros: deveriam,
para isso, deslocar-se espacialmente. E deslocar-se-iam as
pessoas em função do deslocamento dos bens. Para trocar seu bem
com o daquele, este o levaria até lá ou acolá, onde estivesse
aquele; ou aquele, para trocar o seu bem com o deste, o traria
até cá. Poderiam mesmo, todos, definir um lugar onde levariam
seus bens para trocá-los, partilhando entre si os custos de
deslocamento. Um se deslocaria um tanto, outro, um outro tanto,
talvez um tanto aproximadamente igual. Os bens, no entanto, não
seriam sempre fáceis de transportar. Por isso, ainda, teria sido
inventado o dinheiro, dando-lhe os homens uma substância que o
teria feito de fácil transporte. Reduzir-se-ia com isso o
desgaste de pelo menos uma das partes. Quem com o recurso ao
dinheiro fosse adquirir um bem, não transportaria, na primeira
fase da transação de troca, mais do que algo de relativa leveza,
reduzido tamanho e facilidade de manuseio. Apresentando-se com o
dinheiro em mãos, quando todos adotassem seu uso, uma pessoa
seria mesmo dotada do poder de obtenção de todos os demais bens;
sua posse lhe asseguraria vir a tê-los de fato. Os bens que
comprasse, haveriam, sim, de ter se deslocado ou teriam de vir a
fazê-lo, em toda sua concretude de forma, tamanho, e peso; isto,
com todos os custos pertinentes: não haveria como eliminá-los.
Mas os custos de transporte do meio geral de aquisição, ainda
que talvez não desaparecem totalmente, seriam pelo menos
extremamente pequenos se comparados com o de tudo mais. Trocar-
se-ia, assim, também por isto, o que se tivesse como meio de
troca, acaso de difícil transporte — o que se somaria a outras
possíveis dificuldades para que bem funcionasse como o
instrumento que se estaria querendo ver nele — trocar-se-ia o
que se tivesse como meio de troca por dinheiro e, depois, levar-
se-ia o dinheiro, de fácil transporte, até onde estivessem os
demais bens todos. A princípio, os homens teriam pactuado dar e

120
receber por todos os seus bens certas substâncias que fossem por
si mesmas produtos úteis e também fáceis de transportar. Os
metais em particular teriam essa característica. Por isso teriam
adquirido primeiro a forma de dinheiro; para isso, suas porções
sendo definidas por pesos padronizados e marcadas com um
símbolo, de modo a dispensar inclusive seus usuários da
obrigação de pesá-las. A matéria separar-se-ia de seu símbolo em
55
desenvolvimentos posteriores.
Face às necessidades práticas para que as trocas se
estabelecessem, ter-se-ia assim instituindo um elemento mediador
de aceitação geral caracterizado pela durabilidade, para que
pudesse ser retido e utilizado conforme a disposição das
necessidades de cada um ao longo do tempo; caracterizado também,
o elemento mediador, pela possibilidade de partição, também
recomposição, para que os diversos bens encontrassem suas
necessárias proporções; assim como, ainda, seria caracterizado,
o elemento mediador, pela facilidade de manuseio e transporte.
Por tudo isto, o dinheiro serviria para que todas as coisas se
tornassem de fato comensuráveis, tal como se exigiria deveriam
ser nos processos de troca. Não seriam, no entanto,
comensuráveis por si mesmas — salienta Aristóteles. Só seriam
comensuráveis, mesmo com a ajuda do dinheiro, por referência à
demanda; só o que as colocaria em relação nos processos de
troca, quando — insiste Aristóteles — não seriam tomadas senão
por seu caráter de serem próprias ao uso de alguém,
utilitariamente; cada uma, pois, sempre dada em relação a um
demandante. Não existiria nenhuma igualação simples e direta de
dois termos nas trocas; haveria, sim, uma igualação, mas só
aquela de uma igualdade de duas relações ou razões: um estaria

55
”[...] tinham necessariamente de instituir o uso do dinheiro,
porquanto as coisas naturalmente necessárias à vida muitas vezes não
são fáceis de conduzir; consequentemente os homens, para efeito de
permutas, pactuaram dar e receber certas substâncias que fossem por si
mesmas produtos úteis e fáceis de conduzir nas circunstâncias normais
de vida (o ferro, por exemplo, a prata e outros da mesma natureza),
definidas no início apenas por seu tamanho e peso, mas finalmente
marcadas com um símbolo, de modo a dispensar os usuários da obrigação
de pesá-las, pois o símbolo indicava o seu valor.“ (Política 1257b,
trad. de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora Universidade de
Brasília, 1985)

121
para o bem do outro assim como o outro estaria para o seu, ou
então, um estaria para o outro assim como o bem de sua demanda
para o bem da demanda do outro. A reciprocidade entre iguais que
haveria nas trocas, os bens de uns vindo a ser úteis aos outros,
seria conforme essa proporcionalidade: o dinheiro simplesmente
ajudaria a expressá-la de uma forma mais clara e fácil. Não
seriam, os bens, em si mesmos comensuráveis. Eles só se
tornariam comensuráveis pela demanda:

”Na verdade, impossível que coisas tão diferentes se


tornem comensuráveis, mas, frente à demanda, são tidas ao
modo de sua conveniência.“56

a / b não seria igual a 1, mas a B / A:

a / b = B / A

A demanda seria o fator unificador. As demandas é que se


relacionariam como unidade:

(A / b) / (B / a) = 1

A comensurabilidade necessária seria aquela para que a e b


se igualizassem na razão entre si, esta devendo estar igualada à
razão entre A e B; b estando sobre a e não a sobre b, nos termos
de uma ”conjunção cruzada“ como diz Aristóteles.

A / B = b / a

E não:

A / B = a / b

Nestes termos, frente à demanda, é que o dinheiro,


meramente, tornaria os bens mais facilmente comensuráveis. Por
ele, todas as coisas, nas relações de igualação das demandas,

56
Ética a Nicômacos 1133b [14].

122
poderiam ser mais facilmente medidas. Seria, propriamente, um
meio de facilitação das trocas e, enquanto tal, condição
desejável para a igualdade nas relações de reciprocidade
constituintes de uma sociedade. A comensurabilidade seria
condição de uma igualação proporcional entre pessoas e bens. A
igualação proporcional seria, por sua vez, condição das
permutas. E as permutas, ainda, condição para a existência da
própria comunidade, que assim se definiria como um conjunto de
relações baseadas na reciprocidade proporcional entre pessoas e
bens. Para Aristóteles, pois, havendo interesse de uns pelos
bens dos outros e havendo, também, a possibilidade de um
relacionamento em igualdade — do tipo proporcional e não simples
— conforme a justiça, só assim, só conforme também a segunda
condição, haveria relacionamento, porque, sem justiça, nenhuma
transação seria possível. Para que houvesse relacionamento, e
relacionamento contínuo, seria preciso que as pessoas fossem
igualadas em suas demandas; e isto seria feito através do
estabelecimento de uma proporção entre elas mesmas e os bens por
elas transacionados; para o que, como um instrumento
facilitador, se faria uso do dinheiro: só pelo que o dinheiro
viria a existir.

123
III. Os fatos de mercado e sua expressão em Marx

. A supressão dos sujeitos


. Uma estranheza na expressão de Marx
. O que de fato corresponderia à sentença com que Marx pretende
reportar-se às trocas?
. Ainda à procura daquilo a que poderia reportar-se a sentença
de Marx
. Permutabilidade irreal
. Distinção de significado conforme o sentido da leitura
. Explorando as proporções de Aristóteles
. Complementaridade e não reversibilidade
. A necessidade de um terceiro termo

A supressão dos sujeitos

A simples relação de troca entre duas mercadorias poderia


ser tomada como princípio para apreciar o modo de sociabilidade
mercantil — assim pensa Marx. Para ele, como já antes para
Aristóteles, a permuta de duas mercadorias constituir-se-ia na
relação elementar dos processos de relacionamento social no
mercado. Mas Marx, diferente de Aristóteles, ao procurar dar
expressão ao que seria a relação de troca mais simples, faz uso
de um mero a = b e não de um pouco mais complexo A / b = B / a
como fizera Aristóteles. Na distinção das expressões dos dois,
vemos, em um, a necessidade de explicitar a presença das pessoas
a quem fariam referência as mercadorias intercambiadas, sem que
o mesmo aconteça no outro. Na formulação de Aristóteles dá-se à
presença um A e um B; A que, ofertando a mercadoria a, estaria
demandando pela b, e B que, ofertando a b, estaria demandando
pela a. Preocupa-se Aristóteles em mostrar as relações que no

124
mercado as pessoas teriam entre si e com os objetos
transacionados: explicitam-se as relações em que estariam
envolvidos os sujeitos dos intercâmbios de mercado, cada qual
com sua própria mercadoria como meio de troca e com a mercadoria
do outro como objeto de demanda. Em sua formulação fica bem
claro que, para o indivíduo A, a mercadoria a como instrumento
de troca valeria a mercadoria b como objeto de consumo — a
propiciar-lhe-ia a aquisição de b para seu uso —, assim como,
para o B, a mercadoria b como instrumento de troca valer-lhe-ia
a como objeto de consumo — b proporcionar-lhe-ia a aquisição
para seu consumo de a. Na expressão A / b = B / a ou
A / B = b / a, mostram-se os objetos que seriam intercambiados e
mostram-se também os sujeitos que os intercambiariam, dizendo-se
quais seriam as relações entre uns e outros, aquelas entre os
próprios sujeitos e aquelas entre eles e os objetos de seu
intercâmbio. Em Marx, a expressão dada às trocas simplifica-se:
um simples a = b; onde estaria suposto, é verdade, um A e um B,
os respectivos possuidores iniciais de a e b. Mas esse A e esse
B, supostos sim por Marx, não se deixam ver em sua fórmula mais
simples. Em sua expressão, só se veem um a e um b; só os objetos
do intercambio se mostram, não os sujeitos que os
intercambiariam. Mostram-se os objetos, não as pessoas. Fossem
as trocas como as vê ou quer Marx, estariam lá os bens, uns
frente aos outros, e junto deles não se veria ninguém:
relacionar-se-iam os bens por meio de sua igualação em abstração
das pessoas, igualar-se-iam como que por si mesmos.
Mas os bens, em sua presença mesma na simples relação de
igualdade de Marx, ali mesmo naquela expressão, onde se
igualariam, mostrar-se-iam contraditoriamente como distintos:
postar-se-iam um frente ao outro como sendo distintos, dizendo-
se iguais ou, à inversa, dizendo-se distintos, igualar-se-iam:
dir-se-iam ao mesmo tempo iguais e distintos. Tratar-se-ia da
igualação de um a e de um b — de um a distinto de um b — e não
da igualação de um a ou de um b consigo mesmos. Tratar-se-ia de
a = b e não de a = a ou b = b. Os termos a e b, sendo distintos,
estranhamente estariam dados como iguais. No toma lá dá cá do
mercado trocar-se-iam produtos que seriam uns distintos dos

125
outros; só por sua diversidade intercambiar-se-iam, entende
mesmo Marx, como já antes fizera Aristóteles, e também como
este, vê Marx uma sorte de igualação entre as diversas
mercadorias nas trocas, insistindo, ainda como aquele, que tal
igualação ocorreria apesar de mesmo ali as mercadorias estarem
dadas em patente distinção. Mas ao contrário de Aristóteles,
Marx acredita que os bens transacionados igualar-se-iam sem
necessidade de mediações quaisquer. Tantos metros de tecido, em
sua distinta qualificação de um certo tanto de um determinado
bem, apresentar-se-iam imediatamente como iguais a tantos pares
de calçados, também em sua distinção de quantidade determinada
de um específico bem. Trocar-se-ia o tecido por calçados e,
assim se fazendo, o tecido mostrar-se-ia valendo o mesmo que os
calçados, ou estes o mesmo que aquele: mostrar-se-iam, ao serem
trocados, imediatamente, em sua distinção mesma, o tecido e os
calçados, como iguais em seu valor. A relação mais simples
presente nos processos de troca seria a da direta igualação
entre dois bens, objetos distintos, mas dados para efeitos de
sua troca numa relação de simples e imediata igualdade.
Aristóteles acreditava também que haveria uma sorte de
igualação entre os objetos trocados. Bens distintos, por sua
distinção mesma, far-se-iam igualmente objeto de demanda; de
duas demandas distintas, mas recíprocas e de mesmo valor,
fazendo assim com que os próprios bens e as pessoas a quem
estivessem referidos se relacionassem ao modo de uma igualdade.
Estabelecer-se-iam as relações de troca quando dois indivíduos
estivessem reciprocamente em posse do objeto da demanda do
outro, um demandando pelo objeto do outro, e dando ambos à
demanda do outro o mesmo valor que à sua própria. Igualados em
suas demandas, A como demandante de b e B como demandante de a,
relacionar-se-iam nos modos de um B / a = A / b. Assim seria
para Aristóteles. Vendo também Marx igualação nas trocas,
acredita poder expressá-la por meio de uma fórmula mais simples
do que aquela de uma igualdade de relações como havia feito
Aristóteles. Para Marx a espécie de igualdade que se efetuaria
nas trocas seria dada ao modo de uma simples e imediata relação
dos objetos transacionados, por si mesmos igualando-se, sem

126
necessidade da mediação das pessoas. Em sua fórmula não estariam
presentes as pessoas a quem os objetos transacionados estariam
servindo. Igualar-se-iam as mercadorias por meio de um simples
a = b, porque seriam de igual valor, sem que fosse necessário se
dissesse a quem valeriam em seu mesmo valor, ou por meio de quem
viriam a ter um mesmo valor. A expressão a = b expressaria uma
igualdade de valor em abstração das pessoas. E assim entende
mesmo poder fazer Marx porque, para ele, as pessoas de fato não
se fariam presentes nas trocas ou, se entendêssemos o fizessem,
só o fariam por meio de suas mercadorias. Exclusivamente por
meio de suas mercadorias apresentar-se-iam as pessoas no
mercado; as mercadorias seriam a sua face social exclusiva nos
processos sociais de troca, o único meio pelo qual lá poderiam
vir a ter alguma existência. As pessoas mesmas, no que dissesse
respeito a tudo mais que não aos objetos por elas imediatamente
intercambiados, não importariam para nada. As mercadorias ali as
substituiriam. Tratar-se-ia de um simples apresentar-se de uma
mercadoria frente à outra, uma reportando-se à outra em exclusão
das pessoas. Tratar-se-ia, para Marx, mesmo de uma simples
relação entre coisas, com exclusão das pessoas; expressá-la
seria, pois, possível por um simples a = b.

Uma estranheza na expressão de Marx

Na imediata igualdade entre a e b de Marx, haveria, no


entanto, uma estranheza a ser explicada (estranheza que não se
vê na fórmula de Aristóteles). Como coisas distintas, e só mesmo
presentes como objetos de troca por sua distinção, poderiam
mostrar-se ao mesmo tempo tão direta e simplesmente como iguais?
Como a e b distintos, sendo mesmo ali patente sua distinção —
tratando-se de um a e de um b e não de duas vezes a ou b —, como
poderiam a e b, ali mesmo dados como sendo diferentes, mesmo
ali, apresentar-se tão simplesmente como iguais? Como poderiam
em sua distinção, sem mediações, se igualar? Sendo propriamente
distintos, para que ali pudessem igualar-se — pondera então Marx

127
— deveria haver algo que lhes fosse comum. Se tomássemos o trigo
e o ferro — exemplifica —, qualquer que fosse a proporção em que
se trocassem, sempre — acredita Marx — expressaríamos a relação
entre eles por uma sentença onde uma dada quantidade de trigo se
igualaria a uma de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo = n
quintais de ferro. E essa igualdade — continua Marx — não
poderia significar outra coisa a não ser que algo comum, com a
mesma grandeza, existiria em duas coisas diferentes, que as duas
seriam iguais a uma terceira que delas diferiria e à qual seriam
redutíveis57. Um simples exemplo geométrico — acredita ainda Marx
— seria suficiente para evidenciar essa significação: para
determinar e comparar (acaso igualar) a área dos polígonos,
decompô-los-íamos em triângulos, estando já, para este fim, o
próprio triângulo convertido em uma expressão diversa de sua
figura visível: a metade do produto da base pela altura. Do
mesmo modo os bens transacionados no mercado, ao se igualarem em
sua diversidade, seriam redutíveis a uma mesma coisa, diversa de
suas figuras visíveis, da qual representariam simplesmente uma
quantidade maior ou menor58. — Mas o que seria isto então? O que
as mercadorias teriam de comum em sua diversidade e que as
igualaria nas trocas; a que mesma grandeza estariam sendo
reduzidas quando trocadas, assim como para efeito da comparação
de suas áreas os polígonos geométricos seriam todos reduzidos a
triângulos e estes à metade do produto da base pela altura? Dir-
se-ia ser o seu valor. O que se estaria dizendo com a expressão
a = b seria que a e b teriam o mesmo valor. — Mas então, o que
isto viria ser: o valor de a e b, o mesmo, o de uma e outra
mercadoria?

57
”Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Qualquer que
seja a proporção em que se troquem, é possível sempre expressá-la com
uma igualdade em que dada quantidade de trigo se iguala a alguma
quantidade de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo = n quintais de
ferro. Que significa essa igualdade? Que algo comum, com a mesma
grandeza, existe em duas coisas diferentes, em um quarter de trigo e
em n quintais de ferro. As duas coisa são portanto iguais a uma
terceira que por sua vez delas difere. Cada uma das duas, como valor
de troca, é reduzível, necessariamente a essa terceira.“ (O capital,
p. 43)
58
O capital, p. 43-4.

128
Nos termos em que Marx faz essa pergunta, tendo por
referência um simples a = b, haveria de se encontrar a resposta
para o que viria ser o fator de igualação nas trocas, ou o valor
das mercadorias lá transacionadas, sem que se recorresse à ideia
de uma demanda igualadora como antes fizera Aristóteles. Trata-
se de uma impossibilidade imposta pela própria natureza da
fórmula escolhida por Marx para dar expressão às relações de
mercado. À demanda alguma poderíamos recorrer porque nenhuma
poderíamos caracterizar. Só o que vemos em sua fórmula são um a
e um b, e tal a e tal b, ali simplesmente igualados, não se
mostram nos termos de qualquer demanda. Para que ali a e b
pudessem ser caracterizados como mercadorias objeto de demanda,
tal qual seria, mesmo ali, sua existência de fato, seria
necessário que junto deles estivessem também presentes um A e um
B. Só se um A estivesse presente como demandando por b e um B
como demandando por a, mostrar-se-iam a e b como objetos de
demanda: a por B (a / B), b por A (b / A). Só assim — conforme
dissera Aristóteles — a e b poderiam vir a participar de uma
relação de igualdade, pois, se do mesmo valor a demanda dos dois
(A e B), as duas relações: a / B e b / A, igualar-se-iam:
a / B = b / A. E observe-se mais: um a só estaria ali, naquela
relação de igualdade com um b, como objeto da demanda de um B e
não de um A, assim como um b só estaria também ali como objeto
da demanda de um A e não de um B. Só assim viriam a igualar-se:
como objetos de demanda de pessoas diversas. Por isso, para que
as demandas ali igualadas fossem caracterizadas, seria
necessária a presença de um A e também de um B, de um A distinto
de um B, porque só na distinção de seus sujeitos, assim como de
seus objetos, distintas demandas viriam a dar existência às
trocas; nestas se igualando. O demandante de um dos bens seria
distinto do demandante do outro: a seria demandado por B e b por
A. Nem a seria demandado por A, nem b por B. Não haveria ainda
um a ou um b que fossem objeto da demanda de A e também da
demanda de B, como também nenhum A ou B que demandassem por a
assim como por b. Não haveria como igualar a e b como objetos de
uma mesma demanda, quer fosse a demanda de A pelos dois, quer a
de B pelos dois; assim como, ainda, igualá-los mesmo como

129
objetos que fossem, os dois, a e b, objetos da demanda
simultânea dos dois, A e B: a / A e também a / B, b / A e também
b / B, a / A e também b / A ou, ainda, a / B e também b / B —
nada disto diria respeito às trocas. Um a e um b, distintos,
seriam objetos de demandas distintas, uma a demanda de A e outra
a demanda de B. Só como objetos diversos de duas demandas, uma
distinta da outra, a e b viriam a participar de uma relação de
igualdade ao serem trocados. Teríamos, pois, de um lado, A por
b, A demandando por b; e de outro lado, B por a, B demandando
por a. De um lado e outro teríamos a definição de uma relação de
um só e distinto sujeito com um só e distinto objeto; sujeitos e
objetos sempre necessariamente diversos, só mesmo ali presentes
por sua diversidade. Assim, nenhum termo se repetiria nos dois
lados da igualdade. Na diversidade de todos os seus termos, nada
haveria que pudesse ser formalmente cancelado naquela fórmula; e
a partir dela nada se poderia encontrar de mais simples. Se a e
b fossem caracterizados como objetos de demanda, o que só
poderia ser feito na presença de um B e de um A — seus sujeitos
demandantes —, a fórmula da relação econômica de mercado não
seria, assim, redutível a nenhuma expressão mais simples do que
uma do tipo A / b = B / a. Ao escolher uma expressão mais
simples do que essa, Marx exclui, pois, já de princípio, a
possibilidade de explicar a partir da demanda a igualação que
seria dada nos intercâmbios de mercado. Mesmo que se entendesse
que um a e um b só viriam a se colocar em relação de troca se
por eles houvesse alguma procura ou demanda, tal como Marx não
deixa de fazer, em um simples a = b nunca poderiam vir a ser
apresentados como tais. Para fazer com que ali aparecessem tais
quais, teriam de estar também ali presentes um B e um A, os
respectivos sujeitos que por eles procurariam; só com o quê, só
na presença de quem, se poderia vir a ver naqueles alguma
demanda. A demanda pelos bens transacionados, ainda que sim
suposta por Marx, não é passível de caracterização em sua
fórmula. A partir de sua fórmula, à demanda alguma, posto que
não explicitável, poder-se-ia atribuir a razão da igualação das
mercadorias nas trocas.

130
Estariam lá então, na expressão de Marx, um a e um b
abstraídos de suas relações com os sujeitos de quem seriam
objeto de algum desejo ou demanda. Abstraídos os bens de suas
relações com as pessoas, tal qual é seu modo de existência na
sentença que Marx julga apropriada para nos apresentar o que
seriam as trocas, e abstraídos também de quaisquer outras
relações senão daquela simples e exclusiva entre eles mesmos,
não haveria como se encontrar o que viesse a ser o seu valor, ou
a razão de lá se igualarem, senão nessa mesma exclusiva
simplicidade de seu suposto modo de se relacionarem. Em
abstração das pessoas, as mercadorias igualar-se-iam; por si
mesmas o fariam, nelas mesmas devendo nós encontrarmos a razão
de poderem fazê-lo. Não poderíamos consegui-lo — entende Marx —
a não ser que entendêssemos que em si mesmas, propriamente
nelas, haveria algo de igual a que pudessem ser reduzidas. A
expressão a = b diria respeito a algo de propriamente igual que
haveria em um a e um b, algo de comum a um e a outro, dado sob
sua aparente distinção, e que com eles próprios, tais como ali
dados, não se confundiria. Não se faria com aquela expressão
referência à igualdade ou identidade de a e b tais como
simplesmente dados, porque, como tais, seriam propriamente
distintos, e só mesmo como distintos presentes em uma relação de
troca. Tratar-se-ia de uma igualdade que não a da simples
identidade de dois termos tais como dados, visto que ali mesmo
dados como diversos; mas de uma outra espécie de igualdade,
reportando-se com ela a algo não explicitado: uma mesma
propriedade de que ambos os termos participariam e a que
estariam sendo como que secretamente reduzidos.
Mas o que em a e em b, em sua distinção, poderia haver de
comum ou ao que estariam sendo reduzidos ao serem dados como
iguais quando trocados? Insistindo na pergunta, Marx acrescenta
(como que para provocar nosso espanto e nos colocar no caminho
da procura da solução de um enigma) que, assim como no
processar-se das trocas veríamos um a ser trocado por um b,
poderíamos vê-lo também, o mesmo a, ser trocado por um c e por
um d. Poderíamos ver no processar-se das trocas um a mostrando-
se como de igual valor não só a um b, mas também a um c e a um

131
d. Teríamos nesse caso um a = b, também um a = c e ainda um a =
d. Como, pergunta então Marx, um mesmo a poderia mostrar-se, não
só diferente dele mesmo e igual a um b, porém, ainda mais, como
repetidamente poderia mostrar-se diferente de si próprio e igual
ao que lhe fosse distinto também em suas relações com c e d? Se
em suas diferentes relações de igualdade o que de a se mostrasse
fosse seu valor, mostrando-se a como igual a b e também a c e d,
e ainda a tudo mais com que viesse a se trocar — mostrando-se
como de muitas maneiras distinto de si mesmo, e a cada vez
sempre mostrando seu valor —, diria a que talvez muitos fossem
seus valores. O valor de a mostrar-se-ia a princípio como algo
de variável ou fortuito, não havendo o que a tivesse como sendo
intrinsecamente seu valor.
Disserta Marx: uma mercadoria seria trocada por outras em
diferentes e variáveis proporções: trocar-se-ia 1 quarter de
trigo por x de graxa, y de seda e z de ouro; a cada vez, pois, o
quarter de trigo mostrando-se valer algo de distinto: uma vez
x de graxa, outra y de seda e outra vez ainda z de ouro. Assim,
tal como se mostraria o trigo em suas relações com os outros
bens, não pareceria que tivesse um valor que lhe fosse imanente
— enfatiza Marx. O que, a cada caso, pelo trigo fosse dado em
troca, este pareceria ser seu valor. Um quarter trigo teria
mesmo, poder-se-ia assim entender, ao invés de um só, muitos
valores: valeria, conforme as circunstâncias, x de graxa, y de
seda ou z de ouro. A princípio, o valor do quarter de trigo
mostrar-se-ia efetivamente como sendo algo de casual e puramente
relativo.59
Propondo-se, no entanto, a ver as coisas mais de perto,
Marx, observando as diferentes relações de troca de que
participaria uma mesma mercadoria — em seu exemplo, o quarter de
trigo —, entende que todos os itens com que o trigo se trocasse
separadamente, contrariando a sua diversidade, mostrar-se-iam
como sendo também iguais e permutáveis entre si pelo simples

59
”O valor de troca revela-se, de início, na relação quantitativa
entre valores de uso de espécies diferentes, na proporção em que se
trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por
isso, o valor de troca parece algo casual e puramente relativo, e,
portanto, uma contradição em termos, um valor de uso inerente,
imanente à mercadoria.“ (O capital, p. 43)

132
fato de se trocarem e igualarem com o mesmo trigo. Se as
relações do trigo com a graxa, a seda e o ouro pudessem ser
expressas em termos de uma simples igualdade entre certas
quantidades desses bens, assim talvez fosse efetivamente. As
diferentes relações de troca do quarter de trigo seriam
expressas por um a = b, um a = c, um a = d, etc.; essas
distintas expressões podendo ser resumidas em uma única outra,
dada por um a = b = c = d = etc.; sendo que os termos das
relações mais simples entre os pares de elementos, como também
aqueles da expressão seriada, seriam intercambiáveis. Assim
entendendo, tendo em vista uma simples igualação, ainda que se
fazendo seriada, Marx adianta-se considerando que a partir disso
se poderia deduzir: primeiro, que os diferentes termos presentes
— porque iguais e intercambiáveis — estariam expressando um
mesmo significado; e, segundo, que só estariam ali como a forma
de manifestação de uma substância que deles deveria distinguir-
se60 — já que em si mesmos distintos e em sua identidade
irredutíveis uns aos outros.
O x de graxa, o y de seda e o z de ouro igualar-se-iam com
o quarter de trigo de uma mesma maneira: teriam um mesmo
significado. O trigo e a graxa, a graxa e a seda, a seda e o
ouro, este e o trigo, todos eles — na forma da simples igualdade
com que Marx espera dar expressão às trocas — nunca deixariam de
ser iguais a si mesmos e distintos dos outros; ainda que a
relação que estabelecessem quando trocados fosse a de uma
igualdade, onde, igualando-se cada um com os demais, revelariam
contraditoriamente ser distintos em relação a si próprios. O
trigo revelar-se-ia distinto do trigo mesmo e igual à graxa, à
seda e ao ouro. Os outros fariam o mesmo, dir-se-iam diferentes
de si próprios e iguais aos demais: a graxa igual ao trigo, à

60
”Qualquer mercadoria se troca por outras, nas mais diversas
proporções, por exemplo, um quarter de trigo por x de graxa, ou por y
de seda ou z de ouro etc. Ao invés de um só, o trigo tem, portanto,
muitos valores de troca. Mas, uma vez que cada um dos itens,
separadamente — x de graxa ou y de seda ou z de ouro — é o valor de
troca de um quarter de trigo, devem x de graxa, y de seda e z de ouro,
como valores de troca, ser permutáveis e iguais entre si. Daí se
deduz, primeiro: os valores de troca vigentes da mesma mercadoria
expressam, todos, um significado igual; segundo: o valor de troca só
pode ser a maneira de expressar-se, a forma de manifestação de uma
substância que dele se pode distinguir.“ (O capital, p. 43)

133
seda e ao ouro; a seda, ao trigo, à graxa e ouro; o ouro ao
trigo, à graxa e à seda. O valor do quarter do trigo mostrar-se-
ia como algo que seria diferente do próprio quarter de trigo,
sendo-lhe comum com o x de graxa, o y de seda e o z de ouro.
Também os demais bens mostrariam seu valor como algo que seria
diferente de si mesmos, sendo-lhes comum com os demais.
Revelados em sua distinção em relação a si mesmos e em sua
igualdade com relação aos outros, nos simples termos de uma
fórmula do tipo a = b = c = d, não diriam, no entanto, qual
teria sido a razão de assim se mostrarem; não revelariam naquela
expressão de igualdade o que distinguiria cada um de si mesmo,
igualando-os entre si. Naquela fórmula, a razão de sua igualação
não estaria expressa, pois o que nela se mostraria seria
meramente que, de alguma estranha maneira, nos atos de suas
trocas, cada qual em sua distinção viria a ser diferente de si
mesmo e igual aos demais. Uma igualdade estaria dada, mas seu
significado não estaria revelado. E o que significasse — assim
entende Marx — só poderia vir a ser propriamente expresso se
tanto o trigo, como a graxa, a seda e também o ouro fossem
efetivamente reduzidos ao que neles haveria de comum. Algo
haveria que lhes seria comum — só o que daria possibilidade à
sua igualação — sem que, no entanto, em sua igualação mesma se
mostrasse. A existência de algo que possuíssem de comum, que
neles estivesse presente de modo a igualá-los, mostrar-se-ia
como a necessária condição de validade da própria igualdade em
que se dariam nas trocas. Necessário que possuíssem algo de
comum, diria sua igualação; mas sem que nela se dissesse do que
se constituiria tal coisa comum de que todos participariam.
Tratar-se-ia, então, de encontrar meios para que se mostrasse
aquilo que, distinguindo os bens intercambiados de si mesmos, os
igualaria. Seria preciso definir o que seria o fator de
igualação que se diria ser o seu valor, o mesmo para todos
quando igualados nas trocas.

134
O que de fato corresponderia à sentença com que Marx pretende
reportar-se às trocas?

1 quarter de trigo trocar-se-ia com x de graxa, y de seda e


z de ouro. Para Marx, ao se trocar com tais bens, o trigo a eles
se igualaria:

1 quarter de trigo = x de graxa = y de seda = z de ouro

Segundo Marx, teríamos para nos mostrar a permutabilidade


do trigo com a graxa, a seda e o ouro nessas quantidades uma
expressão do tipo:

a = b = c = d

E entende ele que, igualando-se conforme uma expressão


desse tipo, o quarter de trigo, o x de graxa, o y de seda e o z
de ouro, sendo distintos, estariam sendo reduzidos a algo
diverso de si próprios e que expressaria sua natureza em comum.
Sim, é claro e mesmo óbvio. Mas isto — detenhamo-nos — só se
tomássemos a sentença enquanto uma mera abstração matemática; o
que ela, no entanto, no caso, não seria. Com uma sentença do
tipo a = b = c = d, Marx pretende apreender fatos sociais
concretos. Haveria algo que se pretenderia apreender por meio da
abstração de uma sentença e, assim, haveria um referente ao qual
tal sentença deveria estar adequada. A razão de ser da sentença
de igualdade de Marx seria trazer à nossa presença certos fatos.
Faria isso bem e viria a ser uma sentença verdadeira, ou não o
faria bem, vindo a ser então falsa. Vejamos, nós também, a coisa
mais de perto.
Aquilo a que, em Marx, faria referência uma sentença do
tipo a = b = c = d seria a permutabilidade de 1 quarter de trigo
por x de graxa, y de seda e z de ouro — a equivalência de valor
do quarter de trigo com essas quantidades determinadas de outras
mercadorias ou, em geral, a permutabilidade e equivalência de
valor entre quaisquer mercadorias quando trocadas. Para Marx,

135
tal permutabilidade e equivalência poderia ser dada ao modo de
uma simples expressão matemática de igualdade. Pois bem,
estabelecida a igualdade matemática, Marx toma-a enquanto tal e
explicita suas propriedades formais: os termos presentes
estariam dados como iguais; como tais, seriam permutáveis entre
si; e como não se trataria de uma tautologia — ou de um a, ou de
um b ou c, de quaisquer termos iguais a si mesmos, tais termos,
ao se igualarem em sua distinção, estariam dizendo que, apesar
de distintos, todos acabariam por ter um mesmo significado ou
que seriam todos iguais a um outro termo, distinto de cada um
deles e que expressaria sua identidade ou o que neles haveria de
comum. De maneira semelhante aconteceria quando disséssemos que
o peso x de alguma coisa seria igual ao y e ao z de outras por
meio de uma sentença como x = y = z. Poderíamos falar do peso de
um certo tanto de açúcar, de farinha e de café nomeando-os de x,
y e z respectivamente. Se o tanto de açúcar pesasse o mesmo que
o tanto de farinha e o tanto de café — por exemplo 2 quilos —,
poderíamos dizer que x = y = z. Assim, x, y e z, enquanto expressões
dos pesos da farinha, do açúcar e do café, seriam iguais entre
si enquanto 2 quilos; 2 quilos que, como expressão genérica de
peso, não seriam nem os 2 quilos de farinha, nem os 2 quilos de
açúcar, nem os 2, também quilos, de café. x, y e z significariam
uma mesma coisa, teriam um significado igual: 2 quilos —
simplesmente 2 quilos — que não seriam nem 2 quilos de farinha,
nem de açúcar ou de café. Aplicar-se-ia isto de alguma maneira à
realidade da troca do quarter de trigo pelo x de graxa, pelo y
de seda e pelo z de ouro?
Imaginemos o nosso quarter de trigo tal como possa ter sido
sua existência nas lides de mercado. Para que lá pudesse haver
estado, tê-lo-ia feito necessariamente como instrumento de troca
a serviço de alguém: só assim o trigo poderia vir a apresentar-
se no mundo dos homens quando este se definisse pelas relações
de intercâmbio mercantil. E quem houvesse feito de algum trigo
seu instrumento particular de intercâmbio, poderia tê-lo trocado
ou por x de graxa, ou y de seda ou ainda por z de ouro.
Poderíamos imaginar que alguém houvesse trocado 1 quarter de
trigo por qualquer uma dessas coisas. Mas — observemos — um

136
certo quarter de trigo que por alguém houvesse sido trocado por
x de graxa — se acaso houvesse sido por alguém efetivamente
trocado por esse tanto de graxa — não poderia também ter sido
trocado por qualquer tanto de seda ou por qualquer tanto de
ouro; se trocado por um certo tanto de seda, não poderia tê-lo
sido por tanto algum de graxa ou ouro, ou por qualquer
quantidade de outra coisa mais qualquer. Nas mãos onde houvesse
estado o trigo passaria a existir, no primeiro caso, a graxa;
nos seguintes, a seda e o ouro, ou qualquer coisa mais que não
aquele trigo. Aquelas mãos não teriam mais aquele trigo; nelas
não mais estaria aquele trigo para que viesse a ser trocado pelo
que quer que mais fosse. Alguém que estivesse em posse de 1
quarter de trigo, só poderia trocá-lo uma vez, uma única. Uma
vez trocado, não haveria como fazer o mesmo com ele uma outra
vez. Se trocado pela graxa, não haveria mais como vir a trocá-lo
pela seda ou pelo ouro; se pela seda, não mais pelo ouro ou
graxa. Não se pode trocar duas vezes uma mesma mercadoria.
1 quarter trigo poderia assim ter valido ou x de graxa, ou
y seda, ou z de ouro, sendo que este ”ou“ seria excludente:

1 quarter de trigo = x de graxa

ou

1 quarter de trigo = y de seda

ou

1 quarter de trigo = z de ouro

A afirmação de qualquer uma dessas relações seria


necessariamente excludente em relação à afirmação das demais.
Uma das relações realizando-se, negar-se-ia a possibilidade da
efetivação das outras. Um a = b excluiria a possibilidade de
existência de um a = c ou de um a = d; um a = c, de um a = b
ou de um a = d; e do mesmo modo com um a = d. Não haveria,
assim, para quem utilizasse o trigo como seu instrumento de

137
intercâmbio como se chegar a um a = b = c = d. Uma fórmula desse
tipo não se reportaria a trigo algum que alguém houvesse tido em
mãos como instrumento de intercâmbio, a coisa alguma que se
utilizasse como instrumento de troca.
Nisto que imaginamos, no entanto, tivemos sempre em mente
um certo sujeito em posse de um certo tanto de trigo ou de
alguma outra mercadoria como seu instrumento de troca. Talvez
pudéssemos ver de maneira diversa se tivéssemos nossa atenção
centrada, não mais em quem alguma coisa trocasse, mas
distintamente, se voltássemos nossos olhos para o próprio bem em
questão. Acompanharíamos, então, não mais os movimentos de
alguém que, possuindo algum trigo, passasse em seguida a ter nas
mãos graxa, seda ou ouro; mas voltaríamos nossa atenção para a
movimentação do próprio trigo que, principiando por estar em
certas mãos, passaria a estar sucessivamente em outras.
Acompanhemos o trigo no que seria sua pequena aventura ao passar
de mão em mão no característico toma lá dá cá do mercado.
Acompanhando-o, tornemos a perguntar se uma expressão do tipo
a = b = c = d não serviria acaso para ali retratar o acontecido.
Um certo quarter de trigo, de início, em uma primeira
transação, poderia ter sido trocado por x de graxa, passando das
mãos de quem o tivesse trazido para o mercado para aquelas de
quem houvesse trazido um tanto de graxa, trocado-o pelo trigo;
depois, em uma segunda transação, o mesmo quarter de trigo
haveria sido trocado por y de seda, saindo assim das mãos de
quem se apresentara inicialmente com a graxa e haveria passado a
estar com o trigo, por ter por este trocado aquela, trocando
este agora por seda, passando assim, o quarter de trigo, para as
mãos de quem houvesse trazido a seda, trocando-a por trigo; e
por fim, em uma terceira transação, ainda o mesmo quarter de
trigo trocar-se-ia por z de ouro, passando assim o trigo das
mãos de quem houvesse trazido a seda e por ele a trocara, para
aquelas de quem, havendo trazido o ouro, pelo trigo então o
trocasse. Algo do tipo acontecendo, uma expressão como 1 quarter
de trigo = x de graxa = y de seda = z de ouro talvez pudesse vir
a ser considerada como uma espécie de narrativa simplificada do
que teria acontecido com o quarter de trigo; útil acaso para

138
efeito do entendimento da série de permutas pelas quais um mesmo
quarter de trigo ter-se-ia feito presente no mercado. Através de
uma série de relações, um mesmo quarter de trigo, sempre o
mesmo, ter-se-ia igualado a x de graxa, y de seda e z de ouro.
Uma fórmula do tipo a = b = c = d, que não poderia expressar a
existência social efetiva de um quarter de trigo do ponto de
vista de qualquer de seus possuidores, que com ele não efetuaria
mais do que uma única transação, poderia talvez — entender-se-ia
— bem ser expressão da série de relações de um mesmo quarter de
trigo passando de uma a outras mãos no mercado; bastando para
validá-la que nossa atenção passasse a estar no próprio, sempre
o mesmo, quarter de trigo, e não mais em seu possuidor ou
possuidores.
Mas observe-se, tal fórmula reportar-se-ia a uma série de
acontecimentos singulares; bem definida sua singularidade
inclusive por sua distinção temporal. Haveria, primeiro, um
a = b, a troca do quarter de trigo por x de graxa;
posteriormente, um a = c, a troca do quarter de trigo por y de
seda, e, depois ainda, um a = d, a troca do quarter de trigo por
z de ouro. Cada uma das transações constituir-se-ia em
acontecimento distinto, separado temporalmente dos demais, e sem
que cada uma em sua singularidade pudesse servir de referência
de verdade para as outras. Ao longo do tempo, passando por
distintas mãos, o quarter de trigo ter-se-ia mostrado igual a
x de graxa, y de seda e z de ouro; mas a cada momento, quem quer
que dele tivesse a posse não poderia entender que ainda valesse
o que antes houvesse valido. Nenhuma das coisas que pudesse ter
valido o quarter de trigo valeria ele necessariamente agora.
Para quem agora o tivesse em mãos, poderia haver, mas também
poderia não haver a possibilidade de trocá-lo, como antes acaso
ocorrera, por x de graxa, y de seda ou z de ouro. Isto só seria
possível conforme a disponibilidade e as cotações atuais,
digamos, da graxa, da seda e do ouro em relação ao trigo; não
segundo aquilo que acaso acontecera em um passado qualquer. A
cada caso, o momento seria sempre um outro que não aquele de
anteriores transações, e quem acaso agora estivesse em posse do

139
trigo teria de ver se haveria ou não com o que o trocar; havendo
com o que o trocar, em que cotações.
Na verdade, cada uma das permutas do quarter de trigo dar-
se-ia só a partir de determinadas e bem específicas condições.
Havendo 1 quarter de trigo para ser trocado, a fim de que alguma
transação viesse a acontecer, além da sua própria
disponibilidade para troca, seria necessário que também outros
bens estivessem dados como podendo por ele ser permutados. Se de
um lado estar-se-ia ofertando trigo, de outro, seria preciso que
alguma outra coisa — seda, ouro ou o que quer mais que fosse —
estivesse também sendo ofertada, e ofertada especificamente para
uma troca com o trigo. Não há possibilidade de troca se ao menos
dois bens não se ofertem, um como sendo permutável pelo outro:
um a que seja visto como útil pelo possuidor de um b, sendo
este, por sua vez, visto como útil pelo possuidor daquele. Para
que haja troca são necessárias pelo menos duas ofertas, uma
complementar à outra. E ofertas e demandas, mais a sua
complementaridade, sempre ocorrem dentro de limites temporais
determinados. A quem tivesse em mãos algum trigo para troca
caberia verificar quais seriam os bens que, sendo objetos de sua
demanda, estariam em oferta enquanto coisas especificamente
permutáveis com o trigo. As circunstâncias só acidentalmente
seriam agora as mesmas que as de um momento passado qualquer.
Assim, uma sentença do tipo a = b = c = d não se validaria como
expressão das trocas por falta de unidade temporal entre as
diferentes relações que expressaria.
Mas talvez houvesse ainda uma outra possibilidade para que
uma sentença como essa tivesse alguma verdade em seu reportar-se
às transações de mercado. Imaginemos uma transação como a da
troca de um certo quarter de trigo por x de graxa; e imaginemos
também uma outra transação, a da troca de um outro quarter de
trigo — não aquele mesmo quarter que houvesse sido objeto da
primeira transação, mas ainda que não aquele mesmo quarter, um
quarter que seria de um mesmo trigo ou de um de trigo de uma
mesma origem, espécie ou safra —, este outro quarter de um mesmo
trigo sendo então, em uma outra transação, trocado por y de
seda; e imaginemos mais, em outra distinta transação ainda, uma

140
terceira, a permuta de um outro quarter de trigo, distinto dos
dois primeiros, mas também do mesmo trigo, ser, este terceiro
quarter de trigo, trocado por z de ouro. Considerar-se-ia,
assim, não mais um mesmo tanto de trigo em sua particularidade,
mas distintos tantos de trigos; em quantidades que seriam, no
entanto, igualmente de 1 quarter, sendo todas elas,
propriamente, de um só trigo ou de um trigo de um só tipo.
Entendendo-se que volumes com quantidades iguais de 1 quarter
pudessem ser de um mesmo trigo, talvez pudesse alguém,
observando que 1 quarter daquele trigo houvesse sido permutado
por aquelas quantidades daqueles outros bens, afirmar que a
expressão 1 quarter de trigo = x de graxa = y de seda = z de
ouro seria válida para se mostrar que uma igual quantidade
daquele trigo teria aqueles valores em graxa, seda e ouro.
Poder-se-ia fazer acaso assim, mas também aqui, com correção,
poderia tal pessoa fazê-lo só para facilitar o seu modo de falar
e com o cuidado de não confundir a simplicidade formal de sua
expressão com as específicas realidades em que 1 quarter daquele
trigo teria ou poderia ter participado de distintas relações de
trocas. Em termos propriamente adequados aos fatos, se em uma
permuta 1 quarter daquele trigo houvesse valido x de graxa, para
que um outro seu quarter viesse valer y de seda ou z de ouro,
duas outras permutas deveriam efetivar-se; duas outras permutas
que se constituiriam em atos de troca distintos do que teria
sido a primeira e também distintas entre si. Ainda que ao mesmo
tempo diferentes quarters daquele trigo acabassem por valer
x de graxa, y de seda e z de ouro — o que agora seria possível,
pois, se tratariam de quarters distintos que poderiam ser
permutados concomitantemente —, mesmo assim, a relação entre
essas transações não deixaria de ser acidental, visto que a
existência de nenhuma delas poderia, por si mesma, assegurar a
das demais. Para que 1 quarter de trigo viesse a valer x de
graxa, quem acaso o tivesse em mãos teria de encontrar alguém
que, com x de graxa, nele, no seu trigo, tivesse interesse; para
que valesse y de seda, haveria que encontrar quem, com y de seda
em mãos, por seu trigo da mesma maneira se interessasse; e com
relação ao z de ouro, da mesma maneira: sempre o mesmo a cada

141
vez e caso. A verdade de cada uma das transações não asseguraria
nem a sua repetição nem a existência de nenhuma das outras
relações. Cada uma das trocas daquele trigo existiria sempre
como fato singular: não se poderia contar, com certeza, com ela
para mais nada. Poderia haver unidade temporal, mas não
espacial: unidade temporal porque se tratariam de quarters de
trigo diferentes, não espacial, pela mesma razão. Nesta
sentença, na verdade, não haveria nunca junção, mas disjunção de
membros por diversidade espacial. Ocorresse, acaso, unidade
temporal, permaneceria mesmo assim a distinção espacial: seriam
sempre transações simplesmente dadas uma ao lado das outras com
quarters distintos de trigo.

Ainda à procura daquilo a que poderia reportar-se a sentença de


Marx

Uma fórmula do tipo a = b = c = d não poderia reportar-se a


fatos concretos pertinentes à utilização do trigo ou de qualquer
outro bem como instrumento de intercâmbio. Restaria, no entanto,
investigar se acaso tal tipo de fórmula não seria válida para
nos dizer mesmo assim alguma verdade; pertinente talvez, não,
então, aos aspectos mais palpáveis das transações, mas àqueles
menos palpáveis, que, no entanto, não seriam menos reais: os
pertinentes ao discurso, pensamento e imaginação. Trocar-se-iam
concretamente os bens, mas seriam também objeto de pensamento no
dá lá toma cá do mercado. Com uma sentença do tipo a = b = c = d
não se estaria, acaso, fazendo referência a fatos neste outro
plano de realidade? Talvez com ela não se tratasse de alcançar a
verdade dos atos concretos de alguém com um certo trigo como seu
meio de intercâmbio ou aquela das relações em que se envolveria
algum tanto de trigo ao ser lançado no mercado, mas de apreender
o que se pensasse ou calculasse em função dessas transações.
Nesse plano, no pensamento de uns e outros e ainda no vozerio
que acompanharia as suas trocas, os bens apareceriam também como
coisas ideais, partícipes de transações imaginárias. Existiriam,

142
mesmo na realidade mais imediata de suas ofertas e demandas,
como elementos de meras proposições onde as movimentações
concretas de intercâmbio seriam dadas como acontecimentos
simplesmente possíveis, coisas de um futuro mais ou menos
imediato ou distante. Momento ideal, sim, mas de que se
precisaria para que se definissem as possibilidades reais dos
diferentes bens virem a participar de fato de movimentações
concretas de intercâmbio. Para investigar a verdade da sentença
de Marx, caberia, pois, considerar em que termos, no espaço das
ideias e imaginação, seria dada às pessoas a troca de seus bens
ou, à inversa, quais seriam os modos ideais dos bens serem
trocados. Tratar-se-iam dos modos de existência meramente ideais
dos bens, mas pertinentes, sim, mesmo à existência real e
concreta das pessoas no confronto de suas ofertas e demandas nas
lides de mercado.
Imaginemos então que em suas lides no mercado, ao portador
de um certo quarter de trigo houvesse sido dada a possibilidade
de trocá-lo por x de graxa e também por y de seda e z de ouro, e
que tais bens lhe teriam sido ofertados em troca de seu trigo em
uma sucessão de três ofertas; fatos a que o portador do nosso
trigo, ou mesmo nós mesmos, poderíamos fazer referência por três
sentenças de igualdade, aquelas mesmas com que antes tentávamos
referir-nos às transações concretas do trigo com aqueles bens:

1 quarter de trigo = x de graxa

1 quarter de trigo = y de seda

1 quarter de trigo = z de ouro

As mesmas sentenças seriam agora utilizadas para mostrar,


não a troca real do trigo com qualquer daqueles bens, mas só à
possibilidade que teria havido disso ocorrer. Como expressões de
relações simplesmente possíveis — em sua verdade, meras
proposições — as sentenças não mais se excluiriam como antes,
quando se refeririam a trocas de fato, porque um mesmo quarter
de trigo, como algo dado como termo de uma simples proposição ou

143
fala, tal qual apareceria nos específicos atos de uma oferta,
poderia estar dado em todo um conjunto de sentenças sem que, por
estar presente em uma, não pudesse estar presente nas outras
também. Um trigo que fosse reduzido a um simples termo de uma
proposição de oferta poderia desdobrar-se em múltiplas
presenças. A realização de qualquer uma das relações expressas
por aquelas sentenças excluiria a realização das outras, mas a
proposição de qualquer uma delas não excluiria a das outras. No
pensamento de uns e outros, de quem ofertasse e de quem
recebesse uma oferta, as possibilidades somar-se-iam: definir-
se-ia a possibilidade disto e também daquilo, a uma
possibilidade somar-se-ia outra e mais outra. Tendo isto em
vista, pensar-se-ia talvez que uma sentença que poderia bem
expressar tal somatória de possibilidades seria:

1 quarter de trigo = x de graxa = y de seda = z de ouro

Mas haveria de se observar que, tal como imaginamos


inicialmente este caso, as possibilidades de troca do trigo com
aqueles outros bens só se teriam mostrado também em uma sucessão
temporal. A uma oferta sucedera-se outra; a esta outra, outra
ainda e mais outra; a cada oferta, no caso imaginado,
correspondera um tempo próprio, o tempo de uma distinto do tempo
da outra: esta e depois aquela, depois uma outra e outra mais.
Assim, na verdade, não se poderia também, no caso imaginado,
resumir as expressões das diferentes possíveis trocas do trigo
em uma única sentença; não mais porque, sendo o trigo utilizado
para a realização de uma transação, faltaria para todas as
outras — tratando-se meramente de um elemento de uma proposição,
haveria quanto se quisesse dele —; mas porque, também neste
caso, a cada uma das sentenças corresponderia um tempo em
particular, o tempo de cada uma sendo diferente do tempo de
todas as outras, e sendo que o que houvesse sido dado em um dos
tempos não serviria de garantia para o que pudesse se dar nos
outros. Teria havido a possibilidade de trocar 1 quarter de
trigo por x graxa em um certo momento; depois em outro momento,
por y de seda, e em outro momento ainda, por z de ouro. Só assim

144
as possibilidades de troca do trigo se haveriam mostrado. Não
teria havido unidade de tempo entre os diferentes mostrar-se do
trigo para que se validasse uma sentença do tipo a = b = c = d.
O tempo de a = b teria sido diferente do tempo de a = c e do
daquele de a = d. Assim, tendo sido possível um a = b, haveria
de se verificar se ele ainda seria válido quando viesse a ser
possível um a = c ou um a = d. Um a = b não asseguraria a
existência de um a = c ou de um a = d, nem a de qualquer um
destes dois últimos a daquele. Uma sucessão de ofertas não
poderia ser expressa por uma sentença do tipo a = b = c = d.
A sentença não seria válida também para esse caso.
Isso se imaginássemos as possíveis trocas do trigo com a
graxa, a seda e ouro tendo sido dadas por uma sucessão de
acontecimentos. Porém se acaso ocorresse que tais ofertas
tivessem sido simultâneas? Imaginemos que em certo momento teria
sido dada simultaneamente ao nosso possuidor de 1 quarter de
nosso trigo a possibilidade de trocá-lo por x de graxa, como
também aquela de trocá-lo por y de seda e ainda aquela de o
fazer por z de ouro. Tal lhe teria sido apresentado — quem sabe?
— no quadro de cotações do mercado que frequentasse. Teria
constatado, o nosso homem, ser-lhe possível, em um certo
momento, trocar seu quarter de trigo por x graxa, também por
y de seda, ou ainda por z de ouro. Em seu quarter de trigo teria
visto, em um mesmo momento, a possibilidade de vir a ter em mãos
a graxa, a seda ou o ouro naquelas quantidades. Mais uma vez
teríamos:

1 quarter de trigo = x de graxa

1 quarter de trigo = y de seda

1 quarter de trigo = z de ouro

Como expressões de meras possibilidades, as sentenças


necessariamente não se excluiriam. Excluir-se-iam no caso
anterior porque dadas em uma sucessão temporal; mas no que
cogitamos agora, haveria unidade temporal entre elas. Não se

145
excluindo como expressões de possibilidades e havendo entre elas
unidade temporal, poderiam, então, entender-se-ia, ser agregadas
sem que perdessem sua verdade:

1 quarter de trigo = x de graxa = y de seda = z de ouro

Teríamos assim uma sentença do tipo a = b = c = d em


respeito à verdade dos fatos. À alguma coisa ao menos, parece,
ela de fato corresponderia. Mas, para que permanecesse nessa
verdade, haveria de se ter em mente seus próprios limites
temporais. Quem de uma expressão como essa se utilizasse não
poderia deixar de ter em seu pensamento que as condições em que
se mostrara possível trocar o quarter de trigo com aquelas
quantidades daqueles outros bens sempre estariam alterando-se.
Talvez para sua felicidade, sendo-lhe favoráveis as condições,
tivessem lá sua permanência e pudesse seu quarter de trigo,
agora assim como antes, valer-lhe o mesmo x de graxa, y de seda
e z de ouro de antes. Mas se acaso, então, não o houvesse
trocado, mantendo-o em mãos, certamente, entenderia que,
valesse-lhe o que lhe valesse seu trigo agora, valer-lhe-ia
conforme as condições de oferta do presente e não as do passado.
Pelas condições de oferta do passado, deveria entender, não
estaria assegurado de que, acaso houvesse preservado em mãos seu
trigo, pudesse ele ainda lhe valer as mesmas coisas que antes.
Enquanto estivera decidindo sobre o fim a lhe dar, a graxa, a
seda e o ouro poderiam mesmo ter-se esgotado em sua oferta; ou
se ainda ofertadas, suas cotações de troca com o trigo poderiam
ter passado a ser outras. Não haveria como imaginar que os
interlocutores econômicos de mercado pudessem tranquilamente
fazer seus cálculos descansados e confiantes na estabilidade das
ofertas ou das cotações dos bens. A permutabilidade do quarter
de trigo com x de graxa, y de seda, e z de ouro, não teria sido
para o portador do nosso trigo senão um conjunto de
possibilidades dadas sucessivamente ou simultaneamente, mas
sempre temporalmente determinadas; oportunidades sempre
evanescentes, ora se abrindo, ora se fechando. Em uma fórmula do
tipo a = b = c = d, poderíamos ter, sim, a expressão de um

146
conjunto de possibilidades, mas de possibilidades só mais ou
menos permanentes, mais ou menos passageiras; não mais do que
fatos singulares, ainda que, por vezes, de certa permanência
temporal. Possibilidades singulares que, além disso, se acaso
realizadas, seriam sempre excludentes, não valendo aquela
sentença de igualdade senão para expressar fatos no plano das
meras conjecturas; pois, de fato mesmo, não poderíamos ter senão
um a = b que negaria qualquer possibilidade de existência de um
a = c e de um a = d, assim como de qualquer outra relação onde
se precisasse contar com a presença de um a em sua concretude de
um bem determinado qualquer.

Permutabilidade irreal

Observando a sentença 1 quarter de trigo = x de graxa = y


de seda = z de ouro, Marx entende que, não só o quarter de trigo
se igualaria e trocar-se-ia com os outros itens presentes, mas
que estes também se igualariam e trocariam entre si mesmos:
1 quarter de trigo sendo igual e permutável com x de graxa, y de
seda e z de ouro, teríamos que x de graxa, além de igual e
permutável com 1 quarter de trigo, seria também igual e
permutável com y de seda e z de ouro; y de seda, por sua vez,
além de também igual e permutável com 1 quarter de trigo, seria
ainda igual e permutável com x de graxa e z de ouro; e este
último, o ouro, seria do mesmo modo permutável com cada um dos
demais bens presentes na mesma expressão. As mercadorias
trocadas pelo quarter de trigo, além de iguais e permutáveis com
o quarter de trigo, seriam iguais e permutáveis entre si mesmas.
Se encarássemos a sentença 1 quarter de trigo = x de graxa = y
de seda = z de ouro como uma mera fórmula do tipo a = b = c = d,
se mais nada víssemos além da própria sentença matemática, isso
seria mesmo verdade. Mas a sentença diz-se valer como imagem de
relações sociais determinadas, podendo ser verdadeira, pois,
exclusivamente nos termos da correspondência que viesse a ter
com elas.

147
Suponhamos que, efetivamente, 1 quarter de trigo tivesse
sido trocado por x de graxa, e também por y de seda e, ainda,
por z de ouro. Imaginemos que alguém, ao longo de um certo
tempo, pudesse ter-se valido de 1 quarter de um certo trigo e
depois de mais outros 2 quarters do mesmo trigo para obter
x de graxa, y de seda e z de ouro. Em uma primeira transação
teria, com 1 quarter de um certo trigo, obtido x de graxa; em
uma segunda transação, com outro 1 quarter do mesmo trigo,
obtido y de seda, e, por fim, numa terceira transação, teria,
com ainda outro 1 quarter daquele trigo, obtido z de ouro.
Resumiria talvez em sua memória aquelas transações na expressão
1 quarter de trigo = x de graxa = y de seda = z de ouro. Mas
poderia, tal pessoa, para que os termos dessa expressão fossem
propriamente considerados como equivalentes e permutáveis trocar
agora seu x de graxa por y de seda ou z de ouro, ou então seu
y de seda por x de graxa ou z de ouro, ou efetuar quaisquer que
fossem as permutas dos bens presentes naquela igualdade?
Poderia, com o x de graxa, assim como fizera com seu quarter de
trigo, obter também y de seda ou z de ouro? Quem poderia sabê-
lo? Para obter a seda pela graxa teria de encontrar alguém que a
possuísse e estivesse disposto a trocar um tanto dela, um certo
y, por um x de sua graxa. Talvez quem estivesse em posse desse
tanto de seda não quisesse trocá-la por sua graxa, mas só, ainda
mesmo, por trigo nas proporções de 1 quarter por x daquela; ou,
mesmo que estivesse disposto a trocar sua seda por graxa, não o
quisesse na razão de um y de seda por um x de graxa, desejando
por aquela mais graxa do que um mero x. Assim, quem estivesse em
posse do quarter de trigo poderia vir a obter o y de seda; quem
estivesse com a graxa, não; o quarter de trigo trocar-se-ia pelo
y de seda, não o x de graxa. O mesmo teria de ser considerado no
que diz respeito às relações entre si de todos os outros itens
com que o trigo ter—se-ia trocado. Uma expressão do tipo
a = b = c = d, quando aplicada à série de trocas de 1 quarter de
trigo por diferentes quantidades de outras mercadorias, na
verdade, designaria, só mesmo, e com imperfeição, sempre um
conjunto de realidades ou verdades meramente singulares.
Expressão de fatos singulares, só na sua própria concretude e

148
singularidade destes, encontraria suas específicas condições de
validade. Ter-se-ia 1 quarter de trigo mostrado igual a x de
graxa — dir-se-ia do fato de ter valido x de graxa —; e teria
também se mostrado igual a y de seda e ainda a z de ouro — dir-
se-ia do fato de ter valido y de sede e z de ouro. Poder-se-ia,
talvez, resumir essas quatro expressões em uma única: 1 quarter
de trigo = x de graxa = y de seda = z de ouro; mas para que a
expressão fosse válida universalmente, para que um a = b = c = d
fosse propriamente e incondicionalmente válido como modo de
referir-se a relações sociais de troca, precisaríamos estar
assegurados de um a = b, de um a = c, de um a = d e, também, de
um b = c, um b = d e um c = d; só assim uma expressão geral
estaria corretamente resumindo outras. No caso, uma expressão
geral seria, na verdade, matematicamente imprópria, porque, em
termos do seu referente social concreto, não se poderia estar
assegurado de que, sem que se definissem suas específicas
condições de validade, mesmo que uma ou mesmo mais vezes um a
houvesse sido igual a um b, a um c ou a um d, nada disso,
quantas vezes pudesse ter acontecido, passaria a ser verdade
estabelecida. Também nunca se encontraria estabelecido ou se
poderia imaginar viria a ser estabelecido que um b fosse igual a
um c ou a um d, ou ainda um c igual a um d. Nada disto seria
verdade de uma vez por todas. Se observássemos os fatos deste
ponto de vista, diríamos que só ao acaso 1 quarter de trigo ter-
se-ia trocado por aqueles outros específicos bens naquelas
determinadas quantidades. Não haveria, na verdade, como resumir
as diversas e distintas expressões em que o trigo teria sido
trocado com a graxa, a seda e o ouro — ou se mostrado como
podendo vir a fazê-lo — naquela única expressão geral, pois,
ainda porque, se a ela reduzíssemos as outras, dar-se-iam como
imediatamente permutáveis entre si o x de graxa, o y de seda e o
z de ouro, sem que nunca o tivessem sido e sem que se pudesse
vir a saber se poderiam vir a sê-lo.
Para que uma expressão do tipo a = b = c = d fosse
propriamente válida como forma em que se expressariam as
relações de troca em sua verdade, os itens presentes deveriam
ser de fato permutáveis entre si. No entanto, ainda que no plano

149
dos fatos, acaso — exclusivamente como resultado de uma situação
concreta fortuitamente constituída —, se, por ventura, em posse
de a, viesse a ser possível obter-se os outros itens; se, por
ventura, isso houvesse ocorrido, ainda que só mesmo no plano das
possibilidades dadas pelo confronto de ofertas e demandas, e se,
acaso ainda, tal possibilidade se mantivesse, em posse de um dos
outros itens, para que se viesse a ter qualquer um dos demais
que não o a, seria preciso primeiro converter o item de que se
tivesse a posse em a para só depois converter a no item que se
desejasse. Na posse do x de graxa, por exemplo, não se poderia
obter imediatamente nem o y de seda, nem o z de ouro; precisar-
se-ia, para tanto, antes, converter o x de graxa em um quarter
de trigo para, depois, converter o quarter de trigo em y de
seda. E isto só se houvesse estabilidade na oferta dos bens em
causa e permanência também das cotações em que se
intercambiariam. Na falta dessa estabilidade e permanência,
trocando-se o trigo pela graxa na expectativa da seda; com ela,
a graxa — tendo esta de ser trocada pelo trigo para, só então,
obter-se a seda —, poder-se-ia, com a graxa, acabar por ficar
sem a seda. As condições de estabilidade das ofertas e das
cotações poderiam não ser tão precárias, é verdade, havendo
talvez como se efetuar as duas transações (a troca do trigo pela
graxa e a da graxa pela seda) com relativo sucesso; mas não
haveria nunca como imaginar que se pudesse deixar de considerar
a especificidade de tempo e a particularidade de espaço como
determinações imperiosamente presentes, devendo cada qual se
pautar pelas circunstâncias conforme por eles definidas.
Marx desconsidera a distinção entre a sentença abstraída da
relação social e a relação social mesma em sua própria
realidade. Dá a uma sentença matemática validade universal, sem
que lhe defina qualquer condição. Nenhuma de todas as relações
de troca do trigo observadas — reais ou mesmo simplesmente
imaginadas — teria, na verdade, substancialidade social; nenhuma
poderia ser dada como algo que subsistiria ao longo do tempo ou,
também, através do espaço. Cada uma se esgotaria em si mesma.
Poderia 1 quarter de trigo ter sido igual ou ter-se mostrado
como podendo vir a ser igual a x de graxa, y de seda e z de

150
ouro; talvez ainda estivesse sendo dado como igual ou como
podendo vir a ser igual a tais coisas; e, se acaso houvesse
deixado de ser, talvez voltasse a sê-lo. Sendo aqui igual a x de
graxa e z de ouro, lá ou acolá não o seria; ou, quem sabe, o
fosse. Da mesma maneira, também com a graxa, a seda e o ouro. A
expressão 1 quarter de trigo = x de graxa = y de seda = z de
ouro poderia até dizer respeito a algum conjunto ou a alguma
sucessão de relações de troca em que um mesmo ou diferentes
quarters de trigo teriam sido trocados ou se mostrado como
podendo vir a ser trocados por certas quantidades de outras
mercadorias; assim como estas poderiam ter sido ou ter podido
vir a ser trocadas entre si naquelas proporções, ao longo do
tempo ou simultaneamente, em um mesmo ou diferentes lugares, sob
condições distintas ou, acaso, idênticas. Poderia ser aquela uma
expressão de fatos reais (ainda que às vezes só no plano das
possibilidades) mas nunca de fatos substanciais. Seriam sempre
casos particulares determinados que se esgotariam em si mesmos.
A expressão não seria mais do que uma síntese mais ou menos
precária de uma série ou conjunto de outras expressões. Uma
expressão do tipo a = b = c = d, quando utilizada para se
reportar às relações de troca, não poderia dizer respeito mais
do que a fatos quase que só mentais, registro de acontecimentos
passados ou simplesmente possíveis, mas não propriamente reais
em sua associação. A expressão iludiria ao ser tomada na
universalidade que estamos acostumados a associar às meras
sentenças matemáticas.

Distinção de significado conforme o sentido da leitura

Um a = b =c = d não serviria para expressar a verdade das


relações de troca. Essa agregação de igualdades só em um único
caso corresponderia a alguma possível realidade que, sendo fato,
só o seria enquanto acontecimento singular, determinável só
empiricamente e sem a permanência exigida às referências
conceituais. Mas talvez encontrássemos ali alguma verdade —

151
poder-se-ia conjecturar e perguntar — se desmembrássemos aquela
associação de igualdades e ficássemos só com os elementos de que
se constituiria? Um a = b = c = d não valeria para dar
expressão às relações de troca, mas valeria sim um a = b desde
que separado de um a = c ou d e de um b = c ou d e de um c = d.
Com uma sentença simples do tipo a = b poderíamos talvez dar
expressão ao que seriam propriamente as relações de troca. É só
mesmo a partir de um a = b em sua simplicidade que Marx chega a
um complexo a = b = c = d. Poderia, no entanto, ele
propriamente, com verdade, fazer assim, dar expressão às
relações de troca em sua verdade por um mero a = b? Vejamos.
Trocar-se-ia trigo por ferro. Entende Marx que qualquer que
fosse a proporção em que se trocassem, desde que se trocassem,
seria sempre possível expressar sua relação por meio de uma
igualdade em que dada quantidade de trigo igualar-se-ia a alguma
quantidade de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo = n
quintais de ferro. A relação de troca do trigo com o ferro se
reduziria a uma expressão dessa simplicidade61. Mas observemos
mais uma vez como a relação se daria em sua efetividade. A
princípio, teríamos alguém com 1 quarter de trigo postado à
frente de alguém com n quintais de ferro. De um lado e outro, as
vistas estariam voltadas para a mercadoria do outro; entendendo,
tanto um como outro, que para obter o que fosse do outro haveria
que entregar o que fosse seu. O portador do trigo teria em vista
o ferro e o portador do ferro, o trigo; e entenderia, o portador
do trigo, que só poderia obter o ferro do outro se entregasse
seu trigo em troca, ou que só seu trigo lhe poderia valer o
ferro, assim como o portador do ferro, por sua vez, entenderia
que só seu ferro poderia valer-lhe o trigo do outro, que só
poderia obtê-lo se entregasse em troca seu ferro. O que teria
valor para o portador do ferro seria o trigo — seu ferro não lhe
valendo senão como forma de obtenção do trigo —, e o que teria
valor para o portador do trigo seria o ferro — seu trigo também

61
”Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Qualquer que
seja a proporção em que se troquem, é possível sempre expressá-la com
uma igualdade em que dada quantidade de trigo se iguala a alguma
quantidade de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo = n quintais de
ferro.“ (O capital, p. 43)

152
não lhe valendo senão como meio de obtenção do ferro. Um e
outro, ao se apresentarem dispostos a se desfazerem de seus
respectivos bens, diriam que, para si mesmos, nada valeriam ou
que só valeriam como meios de obtenção do bem em posse do outro.
Para o portador do trigo, o trigo valeria o ferro; para o
portador do ferro, o ferro valeria o trigo. Para o portador do
ferro, o ferro não valeria o próprio ferro; nem para o portador
do trigo, o trigo, o próprio trigo. Para um, o trigo valeria o
ferro; para outro, o ferro, o trigo. Um diria que seu ferro
valeria o trigo do outro ou que o trigo do outro valeria seu
ferro: o trigo valeria o ferro ou o ferro valeria o trigo; outro
diria que seu trigo valeria o ferro do outro ou que o ferro do
outro valeria seu trigo. Um e outro — um com seu trigo, outro
com seu ferro — diriam, sempre e a cada caso, um o contrário do
outro. Efetivada a transação, um acabaria por realizar também o
contrário do outro: um acabaria por fazer com que seu trigo lhe
valesse o ferro; o outro, com que seu ferro lhe valesse o trigo.
Mas apesar da relativa complexidade da relação, talvez se
pudesse mais simplesmente dizer que, tanto para um como para
outro, o ferro valeria o trigo ou trigo, o ferro; pois, para um,
o seu trigo como meio ou valor de troca valeria o ferro como
meio ou valor de consumo, e para o outro, o seu ferro como meio
ou valor de troca valeria o trigo como meio ou valor de consumo.
Para um e para outro, 1 quarter de trigo seria igual a
n quintais de ferro ou n quintais de ferro seria igual a
1 quarter de trigo; conforme considerássemos o valor de troca de
1 quarter de trigo e o valor de uso de n quintais de ferro, para
um, e o valor de troca de n quintais de ferro e o valor de uso
de 1 quarter de trigo, para outro:

1 quarter de trigo = n quintais de ferro

ou

n quintais de ferro = um quarter de trigo

153
Tratar-se-ia de um a = b ou b = a, com que talvez
pudéssemos mesmo expressar a relação entre dois bens quando
trocados. Mas observe-se, primeiro, cada um dos itens
transacionados, em nosso caso, o quarter de trigo e os n
quintais de ferro, um ou outro, valendo para um dos
interlocutores como meio de troca, não valeria também como meio
de troca para o outro. Para um dos interlocutores, o trigo é que
valeria como meio de troca; para o outro, o ferro é que
desempenharia esse papel. Quem estivesse a princípio com o
trigo, usaria o trigo como meio de troca e não o ferro; quem
estivesse a princípio com o ferro, o ferro e não o trigo. E
observe-se depois: os bens transacionados, valendo para o
consumo de um dos interlocutores, não valeriam para o consumo do
outro. O trigo sendo visto como objeto de consumo por um, seria
visto como meio de troca pelo outro; o ferro, visto como útil
para o consumo de um, seria apreciado como instrumento de troca
pelo outro. Para um, o trigo valeria para seu consumo; para o
outro, o ferro é que lhe valeria para consumo. As mercadorias
valer-lhes-iam, como meio de troca, as mercadorias dos outros,
estas lhes valendo como meio ou objeto de consumo. Haveria um
valer como valor de troca e, no interior da mesma relação, um
outro valer, um valer como valor de uso ou consumo. Para um, o
portador do trigo, o trigo, como valor de troca, valer-lhe-ia o
ferro como valor de uso; e, para o outro, o portador do ferro, o
ferro, como valor de troca, valer-lhe-ia o trigo como valor de
uso. Quando cada um dissesse que sua mercadoria valeria a do
outro ou que a do outro valeria a sua, estaria pensando o
”valer-lhe“ em um sentido diferente do outro: a sua mercadoria,
não a do outro, valer-lhe-ia como meio de troca a mercadoria do
outro, não a sua, como meio consumo. Mas assim um a = b não
poderia ser lido igualmente nos dois sentidos, como seria o caso
se uma expressão matemática do tipo fosse tomada em sua mera
abstração. Concretamente, tendo-se em vista ao que se referiria
uma expressão do tipo a = b, teríamos que, se para um dos
interlocutores um a valeria um b, para outro, um b é que valeria
um a. Se, para um, valesse-lhe o a como meio de troca, para o
outro, como tal lhe valeria o b; se, para um, o que tivesse

154
valor de troca fosse o b, para outro, seria o a. Da mesma
maneira quando, para um, o que tivesse valor de uso ou consumo
fosse o a, para o outro, seria o b; e se, para um, o que tivesse
valor de consumo fosse o a, para o outro, seria o b. Quando para
um:

a = b;

para o outro:

b = a.

O que quer que fosse que para um valesse, não valeria para
o outro. Quando, para um, a, como valor de troca, valer-lhe-ia b
como valor de uso, a = b, para o outro teríamos b = a, b
valendo-lhe, como valor de troca, a como valor de uso. Para
nenhum dos dois a = b confundir-se-ia com b = a, como afirmaria
a expressão matemática se pudesse ser considerada como uma pura
abstração. Se pelo símbolo de igual lêssemos ”valer“ ou ”vale“,
quando um dos interlocutores lesse a expressão a = b em um
sentido o outro a leria no sentido contrário; quando um lesse
”vale“ como lhe valendo como valor de uso o outro leria ”vale“
como lhe valendo como valor de troca.62

Explorando as expressões de Aristóteles

Ainda para avaliarmos se a sentença com que Marx procura


expressar a realidade das trocas não viria representar alguma
verdade, tomemos mais uma vez duas mercadorias no processar-se
de seu intercâmbio. Pensemos agora, no entanto, não ao modo do

62
Marx irá considerar a diferença de significado que poderia ser dada
na leitura de um a = b em seus dois possíveis sentidos quando passar a
discutir em O capital o que seria o desenvolvimento de sua forma do
valor; lá, no entanto, já pressupondo seu próprio conceito de valor
definido, sendo que, para que viesse a tê-lo definido, como vemos
agora, tomara um a = b enquanto expressão das trocas como tendo seus
termos permutáveis.

155
próprio Marx e sim ao de Aristóteles. Fossem a e b as
mercadorias trocadas. Por seu meio, seus possuidores — A e B
respectivamente — far-se-iam um ao outro presentes em uma troca.
Em suas presenças, estariam, a princípio, em uma relação
negativa com suas próprias mercadorias, cada um querendo livrar-
se da sua, e, ao mesmo tempo, em uma relação afirmativa com a
mercadoria do outro, desejando que viesse a ser sua. Igualar-se-
iam na relação, os bens e as pessoas, os bens em suas
correlações com as pessoas: o que valeria a mercadoria a para o
possuidor da mercadoria b seria o mesmo que valeria a mercadoria
b para o possuidor da mercadoria a. O que valeria uma para o
consumo do possuidor da outra seria o mesmo que a outra valeria
para o consumo do possuidor da primeira. A relação de fato em
que as duas mercadorias estariam dadas como valores de uso seria
também aquela em que estariam dadas como valores de troca. Dadas
como coisas úteis para o consumo, também mostrariam sua
utilidade como instrumentos de troca: a seria útil para A como
instrumento de troca para a obtenção de b; b, por sua vez, seria
útil como instrumento de troca para B, em função da aquisição de
a. Em uma única e mesma relação de fato, as mercadorias
apareceriam como valores de uso e de troca: uma dada como valor
de troca para este e valor de uso para aquele, e a outra dada
como valor de troca para aquele e valor de uso para este. Para
bem expressar esses seus dois distintos usos, teríamos,
entender-se-ia talvez, que recorrer a duas distintas expressões,
e não só uma, ainda que uma só a relação de fato. Para uma única
relação de fato haveria duas sentenças ou relações ao modo das
expressões matemáticas. Em termos do que valeriam como objetos
de consumo, teríamos:

a / B = b / A

e, em termos do que valeriam como instrumentos de troca:

a / A = b / B

156
Como objetos de consumo, tanto quanto a mercadoria a teria
valor para B, a mercadoria b teria valor para A; e como
instrumentos de troca, tanto quanto a valeria para A, b valeria
para B. Em cada uma dessas duas sentenças, no entanto, a e b
estariam designando coisas diferentes, pois ainda que em uma e
outra as mercadorias fossem as mesmas (a e b em uma e na outra
também), em cada uma delas estariam presentes a partir de pontos
de vista distintos. Em uma sentença seriam tomadas como úteis
para o consumo; em outra, como úteis para a troca com o que
viesse a ser útil para o consumo. Ainda que em si mesmas sempre
as mesmas, apresentar-se-iam como distintas porque diferentes
seriam seus usos; estando ali, pois, a e b, em uma e outra
sentença, não como coisas que pudessem ter existência meramente
em si, mas como objetos que ali só encontrariam definição por
referência a seu aspecto instrumental. Na primeira expressão
valeriam por serem úteis para o consumo; como tais lá estariam
definidas e apreciadas. E assim definidas, suas qualidades
deveriam ser aquelas que as adequassem ao consumo daqueles a
quem atenderiam com seu específico serviço. Na segunda
expressão, distintamente, a e b valeriam ou seriam úteis como
instrumentos de troca e, como tais, lá estariam sendo
distintamente apreciadas e definidas em suas propriedades, então
aquelas que especificamente as adequassem, não ao consumo, mas à
sua utilização como instrumentos de intercâmbio.
No que diria respeito aos valores de troca, A valer-se-ia
de sua própria mercadoria como B da sua, e como, um e outro, da
mesma maneira, na imediatez daquela relação, não se fariam valer
por mais nada, unicamente nelas, nas suas mercadorias,
encontrariam sua expressão social: só por seu meio se
expressariam, suas mercadorias seriam suas exclusivas faces
sociais. Não estariam, nem A nem B, presentes na relação senão
por suas mercadorias; ocultar-se-iam, dir-se-ia, por traz delas.
E, assim, talvez pudéssemos mesmo vir a dizer como Marx que a
relação social entre eles dar-se-ia em termos de um simples
a = b; só no que consistiria a verdade imediata da presença de
um frente ao outro. Com esse entendimento das relações de
mercado, talvez o mero a = b de Marx viesse a expressá-las

157
melhor — com mais simplicidade e também na correspondência à
verdade dos fatos — do que faria o A / b = B / A de Aristóteles.
A simplificação operar-se-ia nos próprios atos de troca, em sua
própria concretude; nelas as pessoas reduzir-se-iam, de fato, a
suas posses.
Mas vejamos novamente. A mercadoria a de A, enquanto valor
de troca, valeria para A e não para B, assim como, por sua vez,
a mercadoria b de B valeria como valor de troca para B e não
para A. Para A, tendo em vista o valor de troca, teríamos um
a = b: o que, para A, valeria a, seria b; pois, tendo em vista o
valor de uso de B, a mercadoria de B, A entenderia que esta
valeria o desapossar-se de sua própria mercadoria, a mercadoria
a. A mercadoria de B valeria para A o desapossar-se da sua: a
mercadoria do outro valeria a sua. Para B também a mercadoria do
outro, como valor de uso, valeria a sua como valor de troca,
seria o valor de troca da sua; b, como valor de troca,
entenderia B, valeria a como valor de uso, ou b = a. Assim
sendo, a partir de um ponto de vista e de outro, igualmente, a
mercadoria do outro como valor de consumo estaria dada como
valendo a sua própria na troca. Tendo em vista os valores
presentes na relação, para A:

a = b

e, para B:

b = a

Poderíamos dizer que a mercadoria de um valeria na troca a


mercadoria do outro. Na troca, para A, a valer-lhe-ia b assim
como, para B, b valer-lhe-ia a. Mas tornemos a observar. Quando,
para A, a valesse b, a = b; para B, b valeria a, b = a. Não
seria indiferente, nem para A nem para B, um b = a ou um a = b,
como seria no caso de uma mera expressão matemática de
igualdade; pois, quando de um ponto de vista, o que valesse
fosse b, do outro ponto de vista, o que valeria seria a. A e B
talvez pudessem até dizer, indiferentemente, que a sua

158
mercadoria valeria a do outro ou que a do outro valeria a sua.
Sim, mas só se cada um, como quer que se expressasse, entendesse
que, ao fim da transação, acabaria por ficar com a mercadoria
que efetivamente desejasse, e não com a outra. A indiferença no
modo de expressar-se por um a = b ou um b = a não significaria,
nem para A nem B, que lhes seria indiferente acabar por ter em
mãos uma ou outra das mercadorias transacionadas. Melhor seria
então usarmos uma expressão do tipo A / b = B /a, pois assim
estaria claro que, como valor de troca, o que a valeria para A
seria b e que, ao inverso, o que b valeria para B seria a. Como
valores de troca:

a = b / A

b = a / B

Se disséssemos:

a = b

Teríamos de, na verdade, entendê-lo nestes termos; ou seja:

b / A = a / B

ou

A / b = B / a

Insistamos: para A, a mercadoria a estaria a lhe valer,


como valor de troca, a mercadoria b como valor de consumo; e
para B, da mesma forma, mas ao inverso, a mercadoria b, a lhe
valer, como valor de troca, a mercadoria a como valor de
consumo. Dizer que a valeria o mesmo que b seria algo que tanto
A como B poderiam, sim, fazer; mas só se tivessem implícito que
o que a valeria como valor de uso seria para B, e não para A,

159
assim como, o que b, como valor de uso valeria, seria para A, e
não para B; e, da mesma maneira, mas ao inverso, o que a,
valendo como valeria como valor de troca b, tal valeria para A,
e não para B; assim como o que b valeria como valor de troca,
que seria a, seria para B e não para A. Tanto em termos de
valores de uso como de valores de troca, tanto uma mercadoria
como outra, o que valessem para um, não seria o que para o outro
valeriam. Não seria A que faria uso de b como instrumento de
troca; B é que o faria. Da mesma maneira, não seria B que faria
uso de a como instrumento de troca, sendo A que dela faria esse
uso. Como meio de uso, por sua vez, A faria uso de b, não de a,
e B, de a e não de b. Quando um deles dissesse que a sua
mercadoria valeria o mesmo que a do outro isto só faria
propriamente sentido se, com isso, quisesse dizer que a sua
mercadoria, enquanto valor de troca para si mesmo e enquanto
valor de consumo para o outro, valeria o mesmo que a mercadoria
do outro enquanto valor de troca para o outro e valor de consumo
para si próprio.
Se insistíssemos, para nos reportarmos às trocas, em usar
expressões do tipo a = b ou b = a precisaríamos sempre ter em
vista que, como valores de troca ou como valores de consumo,
quando, para um A, a expressão a = b valesse em um sentido, para
um B ela valeria no outro: se, para o primeiro, a = b, para o
segundo, b = a; se, para o primeiro, b = a, para o segundo,
a = b. Assim, não se poderia em caso algum ter uma igualdade do
tipo a = b como expressão do que seriam as trocas,
considerando-a como tendo seus termos reversíveis, como
aconteceria se se tratasse de uma mera expressão matemática
considerada em sua pura abstração; pois, com isto, nos
colocaríamos no ponto de vista de um sujeito social, na verdade,
inexistente. Para nenhum dos sujeitos envolvidos em uma relação
de troca faria sentido tal reversibilidade. Na verdade, ao se
tratar de valores, de uso ou de troca, sempre haveria que se
reportar a um a quem e se como um valor de troca ou um de uso
algo valeria; não havendo como, propriamente e em verdade, dar
expressão a qualquer relação de troca sem se reportar às pessoas
em função das quais as coisas valeriam, quer valessem como

160
valores de troca ou de uso. Os valores, os de troca e também os
de uso, estariam sempre dados em função das pessoas. Na
definição de uma função matemática, se a quiséssemos como
expressão dos intercâmbios de mercado, isto não poderia deixar
de estar presente.

Complementaridade e não reversibilidade

Ainda que os termos da igualdade de Marx não possam ser


reversíveis, não se tratando, pois, de uma simples igualdade
matemática, poder-se-ia, mesmo assim, talvez ainda dizer que um
a = b valeria para dar expressão ao que seriam as relações de
mercado; isto se entendêssemos que para um a = b haveria
necessariamente um b = a; ou, ao inverso, desde que, para um
b = a, houvesse obrigatoriamente um a = b. Para que, do ponto de
vista do indivíduo A, a sua mercadoria — a mercadoria a —
valesse-lhe como valor de troca a mercadoria b como valor de
uso, seria preciso que, para o indivíduo B, a sua mercadoria — a
mercadoria b — valesse-lhe, como valor de troca, a mercadoria a
como valor de uso. Para que, do ponto de vista de A, a valesse-
lhe b, ou a = b, seria preciso que, do ponto de vista de B, b
valesse-lhe a, ou b = a. Duas igualdades seriam necessárias para
se dar expressão às trocas, uma e outra como condição necessária
à existência da outra, sem que qualquer uma das duas pudesse ser
reduzida à outra. Nenhuma nem outra seria assim considerada como
mera abstração matemática com existência própria e
reversibilidade de termos. Tratar-se-ia do que, talvez,
pudéssemos chamar de expressões matemáticas não puras ou
impróprias, de que nos serviríamos para nos referirmos a uma
determinada realidade social.
Para que houvesse um a = b, para um A, seria preciso que,
para um B, houvesse um b = a. Para um tratar-se-ia de um a = b;
para outro, de um b = a. A relação entre um e outro só se
estabeleceria se e somente se os dois agissem conforme os modos
de uma espécie de igualdade onde a reversibilidade não seria

161
possível, nem do ponto de vista de um, nem do ponto de vista do
outro. Cada um dos indivíduos presentes precisaria colocar-se em
relação com o outro através de uma mercadoria por ele escolhida
para lhe servir de instrumento de troca, tendo em vista, por seu
meio, obter uma outra mercadoria, escolhida por ele para ser
objeto de seu consumo. Estabeleceriam assim suas relações. Cada
qual definiria o que lhe valeria como valor de troca — o que
como instrumento de intercâmbio lhe seria útil —; definiria
também, cada qual, o que como valor de uso lhe valeria — o que
como objeto de consumo lhe seria útil. E só quando as definições
de um se fizessem complementares às definições do outro é que a
relação entre eles poderia ocorrer. Só quando a definição de um
A de um a = b correspondesse à definição de um B de um b = a é
que A e B entrariam em relação. Suas definições deveriam ser
complementares, uma sendo condição de existência da outra, uma
se espelhando na outra; mas não se reduzindo uma à outra. E
assim os indivíduos não se reduziriam um ao outro, ainda que os
dois tivessem no outro a condição de sua própria existência na
relação.
Sendo assim, quando se dissesse que, para A, haveria um a =
b, com isto não se poderia estar querendo dizer senão que a sua
mercadoria — a mercadoria a — valer-lhe-ia, como valor de troca,
a mercadoria de B — a mercadoria b — como valor de uso; e também
quando se dissesse que, para B, haveria um b = a, não se poderia
estar querendo dizer senão que a sua mercadoria — a mercadoria b
—, como valor de troca, valer-lhe-ia a mercadoria de A — a
mercadoria a — como valor de uso. Para um e outro, o que lhes
valeria a sua mercadoria como valor de troca seria a mercadoria
do outro como valor de uso. Em termos de valores de troca, a
valeria b e b valeria a, para A e B respectivamente. O valor de
troca de a, para A, seria b e o valor de troca de b, para B,
seria a. Teríamos, pois, que:

a valeria b para A (a = b)

162
b valeria a para B (b = a)

A mercadoria a transformar-se-ia na b para o uso de A —


acabaria por valer, para o uso de A, a mercadoria b —; e a
mercadoria b transformar-se-ia na a para o uso de B — acabaria
por valer, para o uso de B, a mercadoria a. A mercadoria a
acabaria por estar para o uso de B e a mercadoria b para o uso
de A. A transformaria seu valor de troca a no valor de uso b e B
transformaria seu valor de troca b no valor de uso a.
Seria, sim, verdade que como valores de troca, a estaria
para A assim como b para B. Para A, a serviria como valor de
troca assim como, para B, b é que serviria como tal:
a / A = b / B. Mas, como vimos, o que valeria a como valor de
troca seria b como valor de uso; assim como b, o que valeria
como valor de troca seria a como valor de uso: para A, a como
valor de troca seria igual a b como valor de uso; para B, b como
valor de troca igual a a como valor de uso. Para A: a como valor
de troca = b como valor de uso. Para B: b como valor de troca =
a como valor de uso. Tomando-se a expressão anterior que
relacionava os indivíduos e suas mercadorias enquanto valores de
troca, a / A = b / B, e substituindo nela o que a e b enquanto
valores de troca e valores de uso valeriam — a valendo b e b, a
—, não teríamos senão:

b / A = a / B ou A / b = B / a

Se um a = b e um b = a não fossem considerados como


redutíveis um ao outro, sendo, no entanto, necessariamente
complementares, tal como exigiria a própria natureza das trocas,
não haveria como escapar de Aristóteles; simplificá-lo não
levaria senão à incorreção.

163
A necessidade de um terceiro termo

Trigo e ferro, qualquer que fosse a proporção em que se


trocassem, acaso se trocassem, entende Marx que seria possível
sempre expressar sua relação por uma igualdade em que dada
quantidade de trigo igualar-se-ia a alguma quantidade de ferro,
por exemplo:

1 quarter de trigo = n quintais de ferro

A troca entre uma certa quantidade de trigo e outra de


ferro poderia, para Marx, ser sempre dada por uma simples
expressão de igualdade. Acredita ele poder bem expressar a
realidade das relações de troca por uma simples sentença do
tipo:

a = b

Fixando-se nessa expressão, exclusivamente nela, observa


que, por si mesma, ela estaria dizendo que algo comum, com uma
mesma grandeza, existiria em duas coisas diferentes, em 1
quarter de trigo e em n quintais de ferro. Em um a e um b
distintos deveria haver algo de comum, pois se assim não fosse
não poderiam igualar-se. Cada um dos termos presentes deveria,
assim, ser redutível a um terceiro que deles diferiria63. Os
termos presentes na igualdade estariam designando bens
diferentes; a expressão mesmo o diria, um estaria dado como a,
outro como b — a distinto de b. Como, então, coisas diferentes,
e que declarariam mesmo sua distinção, poderiam ser igualadas? —

63
”Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Qualquer que
seja a proporção em que se troquem, é possível sempre expressá-la com
uma igualdade em que dada quantidade de trigo se iguala a alguma
quantidade de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo = n quintais de
ferro. Que significa essa igualdade? Que algo comum, com a mesma
grandeza, existe em duas coisas diferentes, em um quarter de trigo e
em n quintais de ferro. As duas coisas são portanto iguais a uma
terceira que por sua vez delas difere. Cada uma das duas, como valor
de uso, é reduzível, necessariamente, a essa terceira.“ (O capital, p.
43)

164
pergunta Marx, respondendo de imediato que só se encontrássemos
um terceiro termo ao qual os dois igualmente poderiam ser
reduzidos. Expressando a relação de troca por um simples
mercadoria a = mercadoria b, Marx passou, assim, a ter
necessidade de encontrar um terceiro termo, ao qual, a e b
precisariam reduzir-se. A necessidade de um terceiro termo, é o
que, evidentemente, frisa mesmo Marx, caracterizaria aquela
expressão. Isto ela mesma o diria e, de fato, ela o diz em sua
abstração tal como a tem Marx.
As sentenças de Marx e Aristóteles talvez pudessem ser
entendidas como apresentando uma mesma dificuldade. Na sentença
de Marx a e b, ali expressando dois valores de troca, só o
fariam como valores de uso distintos. Só como valores de uso
distintos e dados em sua expressão mesmo como tais — um a
distinto de um b — é que igualar-se-iam como valores de troca.
Dados só em sua diferença, não haveria, pois, como serem ditos
iguais senão se entendendo que sua igualdade seria resultado de,
nos dois, haver algo de comum; só pelo que poderiam igualar-se.
Assim o a = b de Marx estaria sempre por ser, na sua própria
imediatez de uma sentença, a igualação de dois valores de uso em
sua diversidade: 1 quarter de trigo = n quintais de ferro ou a
igualação de que bens mais que fossem intercambiados em sua
específica e diferenciada qualificação. De um lado teríamos o
trigo em 1 de seus quarters e de outro o ferro em n de seus
quintais. Ainda que igualmente valores de uso, o trigo e o ferro
lá só estariam presentes em sua distinta qualificação: não
valeriam ali por sua identidade como valores de uso quaisquer.
Haveria na sentença de Marx — se dela fizéssemos uma simples
leitura — uma distinção de qualidade entre os dois lados.
Invalidar-se-ia assim por tal distinção; havendo de se encontrar
como reduzi-la à condição de uma igualação que desse como igual
o que fosse diverso. No caso da sentença de Aristóteles haveria
também distinção de termos, correspondendo à distinção de
natureza do que expressariam. As mercadorias a e b lá só
estariam como bens, um distinto do outro, por exemplo, o mesmo
quarter de trigo e os mesmos n quintais de ferro da expressão de
Marx. E mercadoria a, em sua específica qualificação de

165
1 quarter de trigo, seria posse de um indivíduo A, pessoa
especificamente determinada, diversa de um também
especificamente determinado B, possuidor da mercadoria b, em sua
específica qualificação de n quintais de ferro. Poder-se-ia
pensar assim que em um a / B = b / A não haveria também como
encontrar a razão da igualação ali dada senão através de um
terceiro elemento a que as duas razões, a / B e b / A, poderiam
ser reduzidas. Cada um dos termos, em sua distinção com os
demais, e cada uma das relações por eles constituídas não
poderiam vir a igualar-se a menos que algum tipo de redução ao
que lhes fosse comum fosse possível. O a / B e o b / A haveriam
de reduzir-se a um x qualquer que lhes expressasse a identidade.
Parece assim que as sentenças de Marx e de Aristóteles
apresentariam um mesmo tipo de dificuldade: ao igualarem o que
fosse distinto, não poderiam ser entendidas senão como
expressões, na verdade, impróprias. Diriam existir uma igualdade
do diverso, sem que por si mesmas revelassem como tal haveria
sido estabelecido. Na expressão de Marx tratar-se-ia de um mesmo
valor de valores de uso diversos; na de Aristóteles, da
igualdade de duas demandas distintas.
Nenhum dos bens e nenhuma das pessoas envolvidas nos
processos de intercâmbio seriam iguais: lá só estariam presentes
por sua distinção — Marx e Aristóteles, ambos entendem assim.
Não haveria nunca como se vir a dizer que a seria igual a b ou A
igual a B. Cada qual, pessoas e bens, mostrar-se-iam
propriamente tal qual seriam: idênticos só a si próprios: só
como tais poderiam participar de processos de troca. Não se
poderia dizer que 1 quarter de trigo seria igual a n quintais de
ferro, nem o possuidor de um igual ao possuidor dos outros. Não
haveria mesmo como se ver nem o trigo como igual ao ferro, nem o
possuidor de um como igual ao do outro. No entanto — e é o que
se vê destacado na fórmula de Aristóteles —, trigo e ferro como
bens diversos, propriamente diversos e dados como tais enquanto
objetos de demandas de pessoas distintas, mesmo assim, igualar-
se-iam nas trocas porque objetos de demandas igualmente humanas,
relacionando-se uma com a outra como sendo de um mesmo valor;
tanto uma como outra tendo o direito de realizar-se, uma sendo

166
entendida como podendo realizar-se só mesmo com a realização da
outra. As coisas mesmas, diversas, não haveria como
desconsiderá-las em sua diversidade; as próprias pessoas, sempre
distintas, não haveria como desprezá-las em sua distinção. Mas
as pessoas, mesmo na distinção de suas demandas por bens
diversos, poderiam, sim, ser dadas como tendo um mesmo direito
de ter igualmente suas demandas satisfeitas. As demandas humanas
poderiam ser igualadas como forma de estabelecimento do que
seria a justiça, definida pela sentença de Aristóteles como uma
condição de igualdade, não em termos da identidade das pessoas
naquilo que fossem em sua individualidade, sempre diversas que
seriam, nem também da igualdade de uma mesma demanda, sendo
estas distintas; mas nos termos da igualdade que ali mesmo se
estabeleceria de que a demanda de um teria o mesmo direito de
ser satisfeita que a demanda do outro. Não se trataria de
igualar bens em sua distinção, nem pessoas em sua irredutível
identidade diversa, mas de relacionar as pessoas na diversidade
de suas demandas em termos de um mesmo direito de sua
satisfação. Igualar-se-ia aquilo que humanamente se poderia
igualar: nossa própria condição em relação aos demais. Nada se
igualaria contrariando a verdade dos fatos, no que dissesse
respeito às pessoas e no que dissesse respeito aos bens.
Igualar-se-ia aquilo que dependeria exclusivamente da definição
nossa de nós mesmos; onde nos definiríamos tal qual decidisse
nosso próprio arbítrio.
Mas o a / B = b / A de Aristóteles é substituído em Marx
por um simples a = b. Marx suprime de sua expressão as pessoas.
Tratar-se-ia de ter em mente só as mercadorias. Para ele, as
trocas não deixariam de ser relações entre pessoas, indivíduos
que trocariam entre si bens que, sendo possuídos por uns,
estariam sendo objeto da demanda de outros; mas nelas as pessoas
deveriam ser entendidas como se fazendo presentes só por meio de
suas mercadorias. Sua presença social reduzir-se-ia às suas
mercadorias. Dos sujeitos econômicos, nada mais se apresentaria,
nada mais seria considerado nos atos de troca, a não ser suas
posses, suas mercadorias como objeto de troca. Seriam elas a sua
face social exclusiva, único recurso de que ali se valeriam. Uma

167
relação entre pessoas passaria, então, a ser dada como uma
relação entre coisas. Só por meio de uma relação entre coisas é
que as pessoas se relacionariam. As pessoas não se relacionariam
por meio de sua imediata presença social, uma se postando frente
à outra, mas só por meio de suas posses; estas, sim, postas umas
na frente das outras. Os sujeitos sociais existiriam só como que
por detrás das coisas. Por isso valeria, para expressar suas
relações, um simples a = b. Reduzindo a relação de troca a essa
simples expressão, Marx se depara, então, com a questão de como
coisas diferentes, só mesmo trocadas por sua distinção, poderiam
ser, tão simplesmente, igualadas. Como aquilo que só encontraria
sua razão social de ser em sua distinção poderia, em sua
existência social mesma, perdê-la? — questiona-se, tendo as
vistas voltadas para a simplicidade de sua fórmula. O porquê das
mercadorias igualarem-se nas trocas é pensado a partir de sua
simples e imediata igualdade. Reduzida a relação de troca a uma
mera igualdade abstrata, tal seria mesmo o problema. Nestes
termos, para que um a e um b distintos se fizessem iguais
deveriam reduzir-se a um mesmo terceiro termo. Marx vai então à
sua procura.

168
IV. Valores

. A face social dos indivíduos


. Uma mercadoria tão boa como outra
. A definição da pessoa pelos bens que ofertasse
. A definição da pessoa pelos bens de que se privasse
. A definição da pessoa pelos bens que demandasse
. O aspecto jurídico
. Vontades particulares irredutíveis em sua distinção
. A pessoa que acabaria por se deixar ver ou se esconder na
relação de troca
. Desprezo e cegueira
. De que nos valeriam os valores
. De volta a Marx e à sua necessidade de um terceiro termo

A face social dos indivíduos

Expressando a relação de troca por um mercadoria a =


mercadoria b, Marx tem necessidade de encontrar um terceiro
termo ao qual a e b precisariam reduzir-se. A necessidade de um
terceiro termo é o que, evidentemente — frisa mesmo ele —,
caracterizaria a expressão: isto ela própria diria; e adverte
Marx, já de início, que esse terceiro termo, aquilo que lhes
seria comum e a que seriam redutíveis as mercadorias para que se
igualassem, não poderia dizer respeito a qualquer de suas
propriedades ou qualidades como coisas úteis à satisfação das
necessidades humanas. Não haveria como as mercadorias se
igualarem senão em desprezo de tudo o que entre elas haveria de
diferença. Suas propriedades como coisas úteis as distinguiriam;
precisariam, pois, ser desconsideradas ou desprezadas para que
se igualassem. Como valores de troca, igualando-se, elas não

169
poderiam ser consideradas senão em desprezo de sua distinção
como valores de uso.64
Em sua troca, as mercadorias igualar-se-iam em
desconsideração de sua diversidade. — Mas como, nas próprias
trocas, suas propriedades diferenciadas poderiam ser desprezadas
se só por elas é que ali estariam? A distinção das mercadorias
transacionadas estaria mesmo patente na própria diferença dos
termos da igualdade a que corresponderiam sempre os intercâmbios
mercantis: mercadoria a = mercadoria b, uma mercadoria a
distinta de uma b. Aristóteles já antes se detivera na
consideração da necessidade da diversidade das mercadorias
intercambiadas: seria mesmo só o que as levaria a serem
trocadas65. Marx insiste em relação ao mesmo ponto; diz ele:
casacos não se trocariam por casacos, ou, pelo menos, pelos
mesmos casacos66. Cumprida esta condição, no entanto, entende
Marx distintamente de Aristóteles, as mercadorias estranhamente
transmutar-se-iam ao serem trocadas: igualar-se-iam. Ainda que
para serem trocadas precisassem ser diferentes, suas diferenças
estariam desconsideradas ao serem trocadas. Sua diversidade
seria condição para que viessem a ser trocadas; quando, então,
seria desprezada. A expressão mercadoria a = mercadoria b
estaria mesmo mostrando isto pela distinção de seus termos: um a
mercadoria a, outro a mercadoria b; a mercadoria a distinta da
b. As mercadorias, sendo mesmo diversas, igualar-se-iam; a
64
”Essa coisa comum não pode ser uma propriedade das mercadorias,
geométrica, física, química ou de qualquer outra natureza. As
propriedades materiais só interessam pela utilidade que dão às
mercadorias, por fazerem destas valores de uso. Põem-se de lado os
valores de uso das mercadorias, quando se trata da relação de troca
entre elas. É o que evidentemente caracteriza essa relação. Nela, um
valor de uso vale tanto quanto outro, quando está presente na
proporção adequada. Ou como diz o velho Barbon: |”Um tipo de
mercadoria é tão bom quanto outro, se é igual o valor de uso. Não há
diferença ou distinção em coisas de igual valor de troca. “ (N.
Barbon, A discurse on coining the new Money lighter, In answer to Mr.
Locke’s considerations etc., Londres, 1696, p. 53) | Como valores de
uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente;
como valores de troca, só podem diferir na quantidade, não contendo
portanto nenhum átomo de valor de uso.“ (O capital, p. 44)
65
”Na verdade, de dois médicos não se produz associação, mas de médico
e agricultor, e em geral dos desiguais e não dos iguais [...].“ (Ética
a Nicômacos 1133ª [9])
66
”Casacos não se permutam por outros tantos casacos iguais, valores
de uso idênticos não se trocam.“ (O capital, p. 49)

170
afirmação de sua distinção em sua igualação enfatizaria o que
estaria sendo desconsiderado: sua distinção far-se-ia patente e,
então, claramente seria desprezada.
Prende-se Marx ao fato de que não haveria como uma
mercadoria igualar-se à outra senão pela negação da diversidade
que as caracterizaria como valores de uso. Tratando-se de uma
igualdade, haveria que se desprezar qualquer distinção. Só mesmo
na desconsideração da diversidade dos valores de uso poder-se-ia
dar expressão às trocas por um simples mercadoria a =
mercadoria b — seria propriamente o que afirmaria essa
igualdade: a igualdade de um a distinto de um b, a negação de
sua diversidade. Anular-se-ia ali a diversidade dos valores de
uso.
Na formulação de Aristóteles, em seu A / b = B / a, ficava
claro que as mercadorias só seriam trocadas por serem diversas
e, como tais, mostrando-se como úteis para usos diversos;
associadas, assim, a distintas demandas. Propriamente como tais
estariam dadas e só tais quais relacionadas naquele seu
A / b = B / a. Só como valores de uso distintos e, por isso,
capazes de satisfazer distintas demandas, seriam as mercadorias
trocadas. Mas diz Marx, diferente, que as mercadorias, sendo sim
valores de uso distintos, e só mesmo presentes nas trocas como
tais, mesmo ali, como tais não seriam ali consideradas: seus
valores de uso seriam desprezados. Sua fórmula expressa esse
desprezo e frisa ele que ela o faz. Fazendo-o, as mercadorias
não se apresentam mais como objetos de demanda alguma,
referenciadas a quem quer que os demandasse. Marx elimina mesmo
de sua fórmula a presença das pessoas, só por meio do que
demanda haveria. Mas então, sendo assim, como as pessoas se
relacionariam e as mercadorias se trocariam? Estranhamente se
relacionariam, as pessoas e suas mercadorias. As pessoas
estabeleceriam relações de troca em função dos valores de uso
que desejassem — só por isso suas mercadorias acabariam por ser
trocadas —; e elas mesmas, mesmo ao se relacionarem,
desprezariam os valores de uso das suas mercadorias, só pelo que
se interessariam. Desconsiderariam os valores de uso envolvidos
em suas transações. Desconsiderados os objetos de seu interesse,

171
só pelo que se importariam e far-se-iam presentes umas frente às
outras presentes, estariam, então, na verdade, desprezando a si
próprias. Ao desconsiderarem os valores de uso envolvidos,
desprezariam estranhamente a si mesmas, visto que ali, em si
mesmas, não existiriam senão como demandante deles. A isto bem
corresponderia um simples a = b. Na desconsideração das pessoas,
bastaria mesmo, para formular o que seriam as relações de troca,
um mero mercadoria a = mercadoria b, sem se fazer referência a
nenhum A ou B. Não haveria, então, mais o que propriamente
distinguisse as mercadorias como objetos diversos de demandas
distintas: mostrar-se-iam em sua distinção só mesmo para que
fosse negada. Não faria sentido, pois, a presença de quem, por
quem existiriam em sua distinção, as afirmasse enquanto tais. As
mercadorias passariam a relacionar-se em negação de sua
diversidade, só o que as relacionaria às pessoas; na
desconsideração do que, pois, não se as teria como relacionadas
a estas, não havendo porque mencioná-las. — Mas como as pessoas
poderiam ser excluídas das trocas se só mesmo por elas e para
elas as trocas existiriam?
Estariam, sim, as pessoas presentes nas trocas — responder-
nos-ia Marx —, mas só que — acrescentaria — exclusivamente por
meio de suas mercadorias. Nas relações de troca — afirma — a
presença das pessoas reduzir-se-ia àquela de suas mercadorias.
As mercadorias seriam as exclusivas faces das pessoas nos
processos sociais de troca. As mercadorias seriam a face pela
qual as pessoas se mostrariam nas relações de troca, o seu modo
de ali existir67. No próprio pensamento de Marx, as mercadorias

67
”[...] tomada em consideração a mera forma, o lado econômico da
relação [...] apenas três momentos, que são formalmente distintos,
colocam-se em evidência: os sujeitos da relação, aqueles que trocam;
postos na mesma determinação, os objetos de sua troca, valores de
troca, equivalentes, que não apenas são iguais, mas assim devem ser
expressos, e como iguais são postos; enfim o próprio ato da troca, a
mediação pela qual os sujeitos são postos imediatamente como pessoas
que trocam, como iguais, e seus objetos como equivalentes, iguais. Os
equivalentes são a objetificação de um sujeito para o outro; isto é,
eles mesmos são de valor igual e se confirmam no ato da troca como de
mesmo valor ao mesmo tempo que como indiferentes um ao outro. Na
troca, os sujeitos são de mesmo valor um para o outro apenas por meio
dos equivalentes e se confirmam como tais pela permuta da
objetividade, onde um existe para o outro. Dado que na troca eles
estão um para o outro apenas deste modo, como de mesmo valor, como
possuidores de equivalentes e como fiadores dessa equivalência, eles

172
não seriam coisas que em relações de troca estariam, bem na
verdade, em completa independência das pessoas: seriam suas
faces e, assim, dependeriam delas. A face dos indivíduos, deles,
depende; mesmo como tudo o que é próprio de alguma coisa ou de
alguma pessoa delas depende. Como faces das pessoas, existiriam
em função das pessoas. O ser face não tem existência própria.
Por sua face algo se mostra, dá-se em seu aparecer. A face de
algo, não sendo aquele algo mesmo ou ele todo, pertence-lhe como
sua presença ou sua aparência. É o que, pertencendo a algo ou a
alguém, sendo seu, faz frente a algo ou a alguém mais; é o que,
de algo ou alguém, é dado à presença de alguém ou algo mais.
Ainda que não o próprio ser, dir-se-ia, existindo, pertence-lhe
necessariamente. Nas mercadorias, nessa que seria a presença
social das pessoas no mercado, em suas faces nas relações de
troca, o que se veria então? Nada se veria; as pessoas esconder-
se-iam sob suas faces sociais? Mas, já na distinção das
mercadorias, não veríamos pessoas diversas? Não seria mesmo como
suas faces que as mercadorias, já de início, se apresentariam
como sendo distintas, por essa distinção dando conta do
apresentar-se de pessoas diversas? Em sua diversidade não seriam
já signos de distintas pessoas; signos, um distinto do outro, de
pessoas uma distinta da outra? Por elas, em sua diversidade, as
pessoas, em sua própria distinção, não se mostrariam? O que
veríamos nas trocas não seria sempre dois distintos indivíduos
em relação, um ao outro fazendo face por meio da diversidade de
suas mercadorias? E assim não veríamos, já só por isto, mais
simplesmente e corretamente do que se víssemos só duas
mercadorias em sua patente diversidade estranhamente declararem
sua igualdade? Porém, se signos de pessoas diversas, se suas
faces — como as quer Marx —, por que se igualariam segundo um
simples a = b, negando por esse igualar-se que fossem faces ou
signos de pessoas diversas, a elas associadas só mesmo porque
elas mesmas distintas? A simplicidade de um a = b como expressão
do que viriam a ser as trocas parece turvar nosso entendimento.

são do mesmo valor e ao mesmo tempo indiferentes um em relação ao


outro; suas outras diferenças individuais não vêm ao caso; eles são
indiferentes a todas as suas demais qualidades individuais.“
(Grundrisse, p. 167-8, p. 8-9 do manuscrito)

173
Observemos melhor a ver se não nos deixamos enganar a respeito
do que seriam as transações de mercado.
Coisa alguma faria sentido em uma relação de troca se não
fosse um objeto que se mostrasse adequado à satisfazer uma
demanda diferente da daquele que com ele ali se apresentasse. Um
bem que não satisfizesse essa condição nunca prestaria qualquer
serviço como instrumento de troca. Haver alguém que o demandasse
seria condição para ele ali se encontrar, sua razão de ali ser
alguma coisa. Para o objeto, deveria haver um demandante. O
demandante seria o desejoso de um bem por meio da troca. O
objeto de seu desejo, a princípio, estaria dado como coisa que
não lhe pertenceria: pertenceria a outro. O objeto de seu desejo
caracterizar-se-ia por uma pertinência a outro. Junto ao objeto
de seu desejo, encontrar-se-ia seu possuidor, sustentando-o como
uma pertença sua, até mesmo fisicamente, com suas próprias mãos;
sempre o reivindicando como coisa sua e só disposto a se
desfazer dele se ele lhe viesse a servir de meio de aquisição de
um outro objeto, este, por sua vez, da demanda própria dele, do
possuidor do objeto da demanda do primeiro. Teríamos, assim, a
efetiva presença de quatro termos em uma relação de troca, dois
bens e duas pessoas. As duas pessoas apresentar-se-iam com algo
de que só abdicariam da posse se em troca da posse daquilo com
que se apresentaria o outro. Lá se postariam como dispostas a
abdicarem do que fosse seu só se, por tal alienação, viessem a
obter o que fosse do outro: suas ofertas não seriam senão suas
demandas. A presença de uma pessoa e outra sempre se afirmaria
pela imposição imperiosa da satisfação dos desejos de cada uma
das duas. Suas ofertas e, consequentemente, a possibilidade de
seus bens virem a servir para a satisfação de um outro desejo
qualquer que não o seu próprio, seriam sempre oferecimentos em
condicional, em função que estaria da satisfação de seus
próprios desejos. Não se poderia obter o que quer que fosse,
conforme os modos mesmos de existência das pessoas e das coisas
no mercado, quer fossem batatas ou quiabos, se pelos quiabos ou
batatas não se dessem cebolas ou beterrabas. Não haveria como se
vir a ter o que se desejasse a não ser que à sua demanda fizesse
frente uma outra que se pudesse satisfazer. Não haveria como

174
satisfazer as necessidades próprias, se por estas não se
satisfizessem as necessidades de outros. Uns e outros se
mostrariam como desejosos dos bens de posse dos outros —
carentes deles — e tendo de ceder os seus próprios em sua troca;
isto como vontades que imperiosamente se afirmariam pela
retenção do que fosse seu até que seu desejo de aquisição do que
fosse alheio viesse também a ser satisfeito.
As mercadorias seriam, assim, dadas como objetos sempre
determinados, de uma oferta e demanda de sujeitos também sempre
determinados. Estas seriam as faces sociais dos sujeitos das
trocas. Espelhariam desejos pessoais determinados; por um lado o
desejo de posse, por outro a necessidade da alienação: quem
demandasse e quem as mercadorias ofertasse. Uns e outros as
teriam, por um lado, como objetos de utilidade, nelas se
espelhando o desejo do consumo — em uma o desejo de consumo de
um, em outra o desejo de consumo do outro —; e ao mesmo tempo,
por outro lado, uns e outros as tendo também, tanto uns como
outros, como objetos de troca, nelas se espelhando o desejo de
intercâmbio — nesta o desejo de intercâmbio deste, naquela o
desejo de intercâmbio daquele. Por um lado, batatas fossem, ou
quiabos, cebolas ou beterrabas, nunca nada disto estaria em uma
relação de troca sem que fossem tidos por alguém como um
específico meio seu para troca; e, por outro lado, lá também
nada disso estaria acaso não estivesse lá também quem os
desejasse. Só como objetos de algum desejo, batatas, cebolas ou
quiabos, poderiam bem desempenhar seu papel de meios para troca;
assim como, à inversa, não poderiam bem vir a desempenhar o
papel de objeto de desfrute de ninguém senão por bem
desempenharem o papel de instrumentos de intercâmbio de outros.
Só quando alguém se colocasse na condição de alienar o que fosse
seu é que aquilo que houvesse de seu poderia vir a ser do
desfrute de outrem; e à inversa, só se meios de desfrute de uns,
poderiam vir a ser meios de troca para outros. Acaso não se
mostrassem como objeto de um desejo de consumo, não viriam a ser
objeto de troca; acaso não se mostrassem como objeto de um
desejo de troca, do mesmo modo, não viriam a ser objeto de
consumo.

175
E sendo assim, só mesmo por sua diversidade as mercadorias,
os objetos de troca, existiriam. Os objetos de troca só
existiriam se fossem objetos de consumo, este se dando sempre
sob uma forma determinada, diferenciada conforme mesmo a
diversidade das pessoas. Existiriam só como objetos que por sua
diversidade seriam capazes de satisfazer distintas necessidades
de pessoas diversas. Teriam de se apresentar sempre como
reportados por sua específica diversidade a específicas e
diferenciadas necessidades de uso ou consumo particular. Teriam
de ser diferentes; só assim poderiam servir como instrumentos de
intercâmbio e como tais terem existência no mercado. Só
desempenhariam bem o papel de meio de troca apresentando-se como
bem podendo desempenhar o papel de meio de satisfação de um
desejo diferenciado de consumo. As pessoas no mercado sempre se
mostrariam em sua distinção como desejosas do que seria diverso
daquilo de que teriam a posse. Em posse de uma coisa,
procurariam por outra; porque com a última, por sua distinção
com a primeira, poderiam satisfazer um desejo que com aquela não
poderiam satisfazer. A distinção entre as mercadorias seria
condição de sua troca. Só por sua distinção, relacionar-se-iam
seus possuidores, cada qual tendo em mãos um bem distinto do bem
do outro. Desejariam, as pessoas, desfazer-se de um bem em troca
de um outro, um distinto do outro. Desejariam o que seria de uma
outra pessoa por sua distinção com o que fosse seu. E para
chegar a obter o que fosse da outra pessoa, satisfazendo-se,
haveria que ceder o que fosse seu, satisfazendo-se a outra
pessoa. Só servindo às outras pessoas, na particular diversidade
de cada um de seus desejos, a si mesmas poderiam servir, também
na particular diversidade de seus próprios desejos. Um desejo de
aquisição do diverso só se realizaria se também um outro desejo
de aquisição do que fosse diverso se realizasse. Um bem teria de
ser sempre diferente do outro; só por essa distinção um se faria
valer frente ao outro, e por meio deles, uma pessoa em face da
outra.
Mas — entende Marx — o que caracterizaria a relação de
troca seria mesmo o fato das mercadorias transacionadas
igualarem-se, nisto sendo obrigatoriamente posta de lado sua

176
diversidade. Só em desconsideração de sua diversidade as
mercadorias igualar-se-iam e trocar-se-iam. Mas acaso não fosse
por sua diversidade, por que se trocariam as mercadorias?
Enquanto valores de troca, no entanto, não poderia haver
distinção entre elas, insiste Marx. Um tipo de mercadoria seria
tão bom quanto outro enquanto valores de troca. Não haveria
distinção em coisas de igual valor de troca. Cem libras
esterlinas de chumbo ou de ferro valeriam tanto quanto cem
libras esterlinas de ouro ou prata — procura advertir-nos Marx.
Mas tratando-se de cem libras e cem libras mesmo, haveria por
que as trocar? Quando se tratasse simplesmente de cem libras
esterlinas, não haveria porque as trocar. De que troca nos
estaria falando Marx? Os bens não seriam trocados quando fossem
iguais. Como poderia estar Marx dizendo que, para efeito de
serem trocados, os bens seriam uns tão bons como outros, se só
mesmo por sua distinção seriam trocados? Vejamos.

Uma mercadoria tão boa como outra

Suponhamos como Marx que 1 quarter de trigo tenha sido


trocado por n quintais de ferro e que, assim como esta, houvesse
ocorrido uma outra troca, a de x quilos de chumbo pelo mesmo
tanto de ferro. Dir-se-ia a partir disto talvez — é o que faz
Marx — que 1 quarter de trigo e x quilos de chumbo, valendo os
dois o mesmo n quintais de ferro, teriam se mostrado, os dois,
como sendo de um mesmo valor; para efeitos de troca, seriam,
iguais. Escrever-se-ia de uma outra maneira:

1 quarter de trigo = n quintais de ferro

x quilos de chumbo = n quintais de ferro

A partir do que se diria:

177
1 quarter de trigo = x quintais de ferro

Poder-se-ia sim dizê-lo; mas, quem dissesse isto, o que


propriamente teria tido em mente? Simplesmente o fato de que
1 quarter de trigo e também x quilos de chumbo teriam sido
trocados por n quintais de ferro, ou que, uma vez tendo sido
trocados nessas proporções, se acaso viessem a ser trocados
novamente, sê-lo-iam conforme elas mesmas e não outras? Far-se-
ia referência a fatos concretos passados ou a uma qualidade
substancial presente no trigo e no chumbo, aquela de serem
trocados na proporção de 1 quarter / x quilos? Acaso de fato —
poderíamos imaginar como uma primeira hipótese para dar início a
nossas considerações —, acaso de fato, para um sujeito econômico
específico, em um dado momento e em determinado lugar — para uma
pessoa particular, em relações determinadas, singulares, em um
determinado lugar do espaço e um certo momento no tempo —; acaso
para um sujeito econômico definido segundo específicas
circunstâncias, 1 quarter de trigo tivesse se mostrado do mesmo
valor que x quilos de chumbo, pois com 1 quarter de trigo e com
x quilos de chumbo teria ela obtido um mesmo n quintais de
ferro. Teria aquele específico sujeito trocado 1 quarter de
trigo por n quintais ferro e teria, também, aquela mesma pessoa,
trocado x quilos de chumbo por aquele mesmo tanto de ferro.
Poderia, então, tal pessoa dizer — talvez de fato o dissesse —
que 1 quarter de trigo e x quilos de chumbo ter-lhe-iam valido o
mesmo, pois, com uma coisa e outra, teria obtido uma mesma
outra, um mesmo n quintais de ferro. Mas para isto — observe-se
— aquela pessoa precisaria, já como primeira condição, ter tido
em mente ou ter desejado por duas vezes, uma vez e mais outra
vez desejado obter n quintais de ferro — precisaria ter
entendido por duas vezes que o ferro lhe valeria alguma coisa.
Por duas vezes, a finalidade de uma pessoa precisaria ter sido a
de obter n quintais de ferro; primeiro, com seu 1 quarter de
trigo e, depois, com seus x quilos de chumbo. Fixando seu
objetivo na obtenção de n quintais de ferro por duas vezes,
aquelas outras duas coisas ter-lhe-iam sido uma tão boa como a

178
outra. Se, acaso, seu objetivo não houvesse estado duas vezes
nos n quintais de ferro, seu trigo e seu chumbo poderiam ter
vindo a valer-lhe outras coisas que não os n quintais de ferro,
qualquer bem que houvesse desejado e que tivesse conseguido em
troca do seu trigo e chumbo. Algo semelhante ocorreria, em uma
segunda hipótese, se a mesma pessoa houvesse percebido que, em
certas circunstâncias, desejosa de n quintas de ferro, poderia
obtê-lo, quer em troca de 1 quarter de trigo quer de x quilos de
chumbo. Teria visto que lhe fora dada a opção por vir a ter o
ferro desfazendo-se ou do seu trigo ou do seu chumbo. Nesta
segunda hipótese, não precisaria ter tido em mente a obtenção
por duas vezes do mesmo tanto de ferro. Percebera simplesmente
que um certo tanto de ferro poderia ser obtido ou com seu trigo
ou com seu chumbo. Ter-lhe-ia sido possível obter um tanto de
ferro com o chumbo e mais um outro tanto com o trigo ou,
obtendo-o com um de seus bens, guardar o outro para outra
aquisição qualquer. Na primeira hipótese, teria concretamente
trocado seu trigo e seu chumbo pelo ferro; na segunda, tê-lo-ia
feito só em imaginação, podendo concretamente vir a realizar as
duas transações ou uma só. Mas como quer que fosse, tanto em uma
hipótese como em outra, haveria de se considerar a sempre
precária estabilidade das ofertas e das cotações de troca
daqueles três bens. Trigo e chumbo poderiam ter, sim, se
mostrado como lhe valendo ou podendo lhe valer o ferro; mas se,
por exemplo, houvesse adquirido aquela quantidade de ferro com
aquele tanto de trigo ou chumbo, quando procurasse fazê-lo
novamente, tal poderia não ser mais possível. Por exemplo, n
quintais de ferro teriam passado a valer uma quantidade maior do
que x quilos de chumbo ou do que 1 quarter de trigo. O trigo e o
chumbo poderiam não lhe valer também mais o ferro porque, ainda
antes, trigo ou chumbo, ou mesmos os dois, já não valessem mais
nada para esse fim, pois quem agora possuísse o ferro não
estaria mais interessado neles. Ou também, entenderia, o trigo e
também o chumbo não lhe valeriam mais o ferro, ou o ferro o seu
trigo ou também chumbo, simplesmente porque, para ela mesma, o
ferro passara a não valer mais nada. Já não precisava dele; ou
mesmo que dele ainda precisasse, bastar-lhe-ia um certo tanto a

179
ser obtido só com o chumbo, e não com o ferro, porque do chumbo
é que de fato não precisaria. O ferro ficar-lhe-ia disponível
para um outro uso qualquer, mesmo aquele de instrumento de troca
para obtenção de uma outra coisa que não o ferro. Assim, já não
se veria como quem por duas vezes se colocaria com a intenção de
obter um certo tanto de ferro ou mesmo de obtê-lo em uma
quantidade que fosse o dobro de n quintais. Na verdade, não se
poderia dizer de 1 quarter de trigo e x quilos de chumbo
”valerem“ n quintais de ferro, se por esse ”valerem“
entendêssemos uma qualidade sua persistente, algo que neles
existisse ou que, por si mesmos, necessariamente fossem.
Poderiam ter valido n quintais de ferro, mas poderiam não valer
mais; poderiam ter valido e ainda agora valer; mas mesmo assim
não saberíamos se continuariam ainda a valer o mesmo no futuro.
Para uma certa pessoa, no entanto, 1 quarter de trigo e
x quilos de chumbo teriam valido de fato n quintais de ferro;
teriam, sim, valido uma mesma coisa pela troca ou igualados seus
valores de troca. Nisso não poderíamos dizer que teriam mesmo
tido seus valores de uso desprezados, tal como quer Marx?
Observemos as relações do 1 quarter de trigo, dos x quilos de
chumbo e dos n quintais de ferro no que diria respeito
especificamente aos valores de uso envolvidos. Diz Marx que
estariam desprezados: valores de uso com o mesmo valor de troca
para ele valeriam o mesmo. O 1 quarter de trigo e os x quilos de
chumbo, tendo valido, como valores de troca, n quintais de
ferro, um tendo sido tão bom como o outro como valor de troca,
valeriam os dois o mesmo, desprezando-se sua diversidade como
valores de uso. Ora, certo tanto de trigo e certo tanto de
chumbo, tendo, como valores de troca, valido um certo tanto de
ferro a alguém, teriam para essa mesma pessoa valido nada
enquanto valores de uso. Se considerássemos o seu ”valerem“, não
como valores de troca, mas como valer como valores para consumo
próprio, para a pessoa que deles se tivesse valido para a troca,
eles não teriam valido nada mesmo. Tal pessoa não teria feito do
trigo e do chumbo objetos de seu próprio consumo. Teria tal
pessoa, por exemplo, no caso de supormos que efetivamente trigo
e chumbo houvessem sido por ela trocados por ferro e não

180
simplesmente se mostrado como sendo disso capazes; teria tal
pessoa feito uso de uma certa mercadoria a para adquirir uma b,
e teria feito também uso de uma outra certa mercadoria c para
adquirir outra vez uma mesma b. As mercadorias a e c, como
valores de troca, ter-lhe-iam valido duas vezes a b. A
mercadoria b teria sido duas vezes a sua finalidade em duas
distintas relações de troca, em uma delas fazendo uso de a para
obtê-la e na outra de c. Nas duas relações o bem desejado teria
sido a mercadoria b; a a e a c só lhe servindo em função dessa
b. Em si mesmas, pois, a e b teriam sido usadas como bens dos
quais se desfaria, coisas que daria como não lhe valendo nada
para seu próprio uso, a não ser em termos de um especificíssimo
uso, aquele para troca. Enquanto valores de uso, as mercadorias
a e c não lhe teriam valido nada. Ora, não tendo, uma e outra
mercadoria, valido nada como valor de uso, as duas, enquanto
nada, teriam mesmo, já mesmo como valores de uso, valido o mesmo
— o mesmo nada. A mercadoria a teria sido de fato tão boa como a
mercadoria c do ponto de vista de quem as tivesse como não
valendo por si mesmas nada, só lhe valendo por lhe valer uma
outra coisa. Uma teria valido tanto quanto a outra por nenhuma
delas valer nada. Os valores de uso assim valeriam um tanto como
outro quando não valessem nada. — Seria propriamente isto que
Marx estaria dizendo ao afirmar que duas mercadorias, tendo o
mesmo valor de troca, seriam uma tão boa como a outra? Do ponto
de vista de quem tivesse algo como um mero valor de troca, seu
valor de uso não lhe valeria mesmo nada?
Ao se usar uma coisa para trocar far-se-ia dela um uso
particular que seria exatamente o de utilizá-la como meio de
troca, obtendo-se por esse seu uso uma outra coisa. Ao trocá-la,
não se faria uso dela como objeto de consumo; mas far-se-ia,
sim, uso dela como um meio de aquisição de uma coisa que não ela
mesma. Marx insiste em que as mercadorias seriam uma unidade de
valor de uso e de valor de troca. Mas não haveria maneira de
usá-las como valores de uso e como valores de troca ao mesmo
tempo. Seriam sempre utilizadas como objetos de consumo ou,
exclusivamente, como meios de troca. Valeriam como valores de
uso ou, então, como valores de troca; um uso excluindo o outro.

181
Quando utilizadas para consumo, não estariam sendo usadas para
troca; quando utilizadas para troca, não estariam sendo usadas
para consumo. Nunca se poderia usar uma mesma coisa, ao mesmo
tempo, como objeto de consumo e objeto de troca. Porém, quando
usadas para troca, teriam mesmo suas qualidades para uso fora de
linha de consideração, tal como ele entende? Como assim se
poderia entender? Enquanto valores de troca, seriam mesmo
desconsideradas como valores de uso? Sumiriam ou desapareceriam
suas qualidades como valores de uso quando utilizadas para
troca?
1 quarter de trigo seria talvez tão bom como x quilos de
chumbo do ponto de vista de quem pudesse fazer uso de uma coisa
e outra, ou de uma ao invés de outra, para obter os mesmos n
quintais de ferro; estando no ferro o que lhe valeria alguma
coisa, tendo suas vistas voltadas para o ferro, desejoso de seus
n quintais. Procurando pelo ferro, poderia obtê-lo em troca de
1 quarter de trigo ou de x quilos de chumbo. Perceberia tal
possibilidade; realizá-la-ia eventualmente. Se realizadas as
operações de troca do trigo e do chumbo com o ferro, o trigo e o
chumbo teriam valido o mesmo ferro duas vezes. 1 quarter de
trigo poderia mesmo ser dito tão bom como x quilos de chumbo do
ponto de vista de quem houvesse feito uso de uma coisa e da
outra para obter duas vezes n quintais de ferro. Mas, mais uma
vez, interroguemos: o trigo e o chumbo teriam sido então, ou
poderiam ter sido mesmo, a quem assim o teria utilizado, de
fato, um tão bom quanto o outro? Do ponto de vista dessa pessoa,
a quem trigo e chumbo teriam propiciado o mesmo ferro, teriam
mesmo desaparecido as diferenças entre eles?

A definição da pessoa pelos bens que ofertasse

O trigo e o chumbo poderiam ter sido um tão bom quanto o


outro para a aquisição do ferro; sim, mas nisso seus valores de
uso não poderiam ter sido propriamente desprezados. Para quem,
em posse de 1 quarter de trigo e de x quilos de chumbo,

182
estivesse com as vistas postas exclusivamente na utilidade que
lhe teriam n quintais de ferro e, por isso, por este querendo
trocar aqueles; aqueles, o trigo e o chumbo, acabariam por não
lhe valer nada como valores de uso, mesmo um mesmo nada; porém
para que tanto uma coisa como outra, o trigo e o chumbo,
valessem-lhe como valores de troca para aquisição do ferro — se
acaso desejasse que como tais trigo e chumbo efetivamente lhe
valessem o ferro —, seria necessário que, mesmo postos como o
que como valor de uso não lhe valeria nada, valessem por outra
parte, sim, os dois, e como valores de uso — propriamente tais
quais — para quem estivesse oferecendo o ferro. Para que trigo e
chumbo pudessem funcionar como valores de troca na obtenção do
ferro, para que viessem valer à alguém algum ferro, seria
necessário que, por parte de quem tivesse o ferro, seu ferro
viesse lhe valer o trigo e o chumbo como valores de uso, pois só
assim trocaria seu ferro por eles. O trigo e o chumbo não teriam
como transformar-se em ferro se o ferro, por sua vez, não
pudesse transformar-se em trigo e chumbo; isto só podendo
acontecer se quem tivesse o ferro, no trigo e chumbo visse algum
valor para seu uso. Não haveria, já por aí, como se desprezarem
os valores de uso na relação de troca. Seriam desprezados para o
uso de quem os alienasse, não para o de quem os adquirisse. Cada
qual, mesmo que desprezando para seu uso o valor de um dos bens
em transação, aquele de que se desfizesse, estaria interessado
no valor de uso do outro bem que estivesse em transação.
Colocaria isto mesmo como condição da relação, que dela se
retirasse com um bem que lhe fosse útil em seu próprio consumo.
Para quem tivesse o trigo e o chumbo viesse a ter o ferro e para
quem este tivesse, viesse a ter aqueles; aqueles, o trigo e o
chumbo, teriam que ser entendidos como valores de uso para quem
tivesse o ferro, assim como para quem o trigo e o chumbo
tivesse, o ferro é que teria de ser entendido como tendo valor
de uso.
Mas vejamos de novo a relação do ponto de vista mais
específico das pessoas enquanto ofertantes. Utilizando-se algum
bem para troca, far-se-ia uso dele como um valor de troca e não
como um valor de uso. Sim, mas do ponto de vista de quem assim o

183
utilizasse poderíamos dizer simplesmente que estariam
desprezadas suas qualidades enquanto valor de uso? Ora, se do
ponto de vista do demandante interessar-lhe-iam essas qualidades
em função de seu consumo, do ponto de vista do outro, do
ofertante, deveriam aquelas qualidades, sim, também importar;
mesmo em função do bem em questão vir a prestar-lhe um bom
serviço como meio de troca, pois só se, por elas, ele
satisfizesse ao demandante é que ele próprio, o ofertante,
poderia utilizá-lo com sucesso para troca. Seu bem só
desempenharia adequadamente o papel de instrumento de troca se
objeto qualificado para o consumo, de outrem. As qualidades como
objeto de uso do bem ofertado importariam ao ofertante; ainda
que as qualidades em linha de consideração não fossem aquelas
pertinentes a seu próprio consumo, mas àquele de seu demandante.
O consumo para o qual o bem utilizado como meio de troca deveria
mostrar-se como de utilidade não seria o do ofertante, mas
aquele de quem se lhe contrapusesse como demandante de seu bem;
mesmo assim, no entanto, necessariamente importando ao ofertante
como condição de bom desempenho de seu meio de troca.
Mas nas qualidades do bem ofertado deveríamos, então, ver
acaso exclusivamente o demandante, ali presente por sua demanda,
como que nela se espelhando; e não o ofertante, presente só como
quem estaria oferecendo o objeto do espelhamento do outro? Seria
mesmo assim? Para o ofertante, as qualidades do bem em transação
só importariam no que importassem ao demandante? Se aceitas as
qualidades do bem de sua oferta pelo outro, prestando-lhe assim
o seu serviço como meio de troca, para si mesmo em mais nada
importariam? Em outros termos: a qualificação de seu bem que lhe
diria respeito restringir-se-ia àquela que o levasse a aceitação
por parte de seu interlocutor, no mais podendo ser desprezada? A
qualificação enquanto valor de uso de seu bem em nada mais lhe
diria respeito senão em termos de ele vir a bem lhe servir como
valor de troca, só por isso devendo mostrar-se adequado como
valor de uso para seu interlocutor? Vejamos.
Os ofertantes todos, preocupados com o bom desempenho de
seus bens como instrumentos de troca, mesmo em sua preocupação
com eles enquanto exclusivamente meios de troca, cuidariam —

184
teriam de fazê-lo necessariamente — de sua qualificação para que
se mostrassem atraentes para o consumo. Cuidariam disso já no
modo de sua produção; não deixando também de fazê-lo mesmo que
não os produzissem diretamente e os adquirissem de terceiros
para repassá-los a terceiros: haveria que bem selecioná-los,
estocá-los, etc. Estariam ainda preocupados com que seus
instrumentos de troca se mostrassem atraentes para o consumo dos
demais em meio aos próprios trâmites de mercado, fazendo-os mais
aparentes, acaso até mais em suas qualidades do que em seus
defeitos. Relacionar-se-iam, assim, com os bens de sua oferta
por períodos mais ou menos prolongados, em maior ou menor
proximidade, mas sempre os tendo como seus, sob seus cuidados;
ainda que o que estivesse sendo dado como seu não fosse
destinado ao seu próprio consumo, mas à troca. Relacionar-se-iam
com os bens de sua oferta, e, ao fazê-lo, estariam sendo
determinados conforme a sua própria diversidade; sendo que por
estas determinações não haveria como deixarem de encontrar
definição para suas próprias pessoas, dando mesmo esta definição
ao conhecimento dos demais. Se acaso fosse com suas próprias
mãos que alguém viesse a ter os seus bens para troca, elas
acabariam por calejar-se: na produção de seu bem de troca daria
determinação à pele de suas mãos. Com as mesmas mãos que se
dedicara à fabricação de seu bem, cumpriria talvez também os
ritos pertinentes aos próprios atos de seu intercâmbio, onde,
pessoa que se diria de bom trato, viria a cumprimentar seus
interlocutores e estes, assim, em suas mãos, poderiam reconhecer
o trabalhador que seria: por suas mãos, dar-se-ia a conhecer aos
demais nas definições que lhe teriam sido impostas pelo seu
trabalho. Talvez não fosse com suas próprias mãos que alguém
mais produziria o bem de que faria seu instrumento de
intercâmbio; então, talvez também pessoa de bom trato, mas já de
um outro trato que não o do primeiro, orgulhar-se-ia da
delicadeza de sua pele, característica específica sua, e que
seria também apreciável quando cumprimentasse a quem se
associasse nos intercursos de mercado. Se o que a alguém
caracterizasse fosse a oferta de um bem que se qualificasse
meramente para a prestação de um serviço prosaico, para a

185
satisfação de um desejo entendido talvez como de uma pessoa
simplória; não teria provavelmente, esse homem, as qualidades de
um outro que se veria ofertando um bem que se valorasse para o
serviço de um gosto que fosse dado como mais sofisticado, de
quem procurasse talvez uma especial elevação espiritual. Os
esforços para a obtenção e colocação em disponibilidade dos bens
que viessem ofertar, fabricando-os pessoalmente ou tendo-os em
mãos como quer que fosse, exibindo-os e trocando-os pessoalmente
ou não, tais recursos e modos definiriam, por certo, os traços
pessoais do ofertante, a pessoa de cada qual, seu modo de ser e
mesmo seu próprio gosto. Conforme a natureza do bem com que se
apresentassem no mercado, vestir-se-iam de uma certa maneira,
desta e não de outra, frequentariam certos lugares e não outros,
distinguindo-se ainda no que mais fosse que lhes determinasse a
natureza específica dos bens por eles postos em transação. Não
se esperaria encontrar um mesmo tipo de pessoa oferecendo
perfumes e adereços femininos, ou ferro e chumbo, ou ainda trigo
e feijões. Haveria quem se vinculasse mais ou menos
estreitamente com a produção direta, elaborando por si mesmo o
que viria a trocar ou de perto gerenciando o trabalho de outros;
haveria quem se desvinculasse da produção direta, gerenciando-a
ainda, mas de mais longe, por meio talvez de uma codificação
meramente contábil ou letrada; haveria, ainda, quem em pessoa
vendesse seus bens ou o fizesse só indiretamente; haveria mesmo
quem só com papéis lidasse e quem nem sequer com eles
diretamente se ocupasse, dada a possibilidade de valer-se de
outros recursos pelos quais cuidaria do que lhe fosse necessário
nas trocas. Ocupar-se-iam até com mercadorias sem matéria, mas
isto não significaria que se pudesse deixar de considerar, mesmo
onde houvesse uma desvinculação com a materialidade imediata dos
bens, que a pessoa, no caso só em posse de títulos ou papéis ou
só mesmo de sua capacidade de fazer juras e promessas verbais,
deixasse aí de se definir também pelas práticas que fossem, em
seu específico meio, as pertinentes. A pessoa, às vezes mais às
vezes menos, sempre se definiria por seus modos no trato dos
bens de sua utilização para troca, como quer que lidasse com o
que fosse seu. As características pessoais estariam sempre sendo

186
definidas pela atividade própria de cada um no preparo ou
obtenção do que viessem a ser suas mercadorias, assim como pelo
modo de vir a apresentá-las e tratá-las nos próprios atos
pertinentes às relações de mercado. E mesmo ainda — acrescente-
se —, até para além do tempo gasto em suas lides mercantis
estariam sendo definidos pelo que fizessem nelas. O tempo que
lhes sobrasse além daquele tomado imediatamente por sua
atividade mercantil seria definido como mais ou menos longo, a
ser usufruído com recursos maiores ou menores, com atividades de
um tipo e não outro, criando-se e recriando-se um determinado
indivíduo e não outro; pois tal tempo sobrante seria utilizado
conforme o que se houvesse feito necessário e o gosto que se
houvesse desenvolvido pela forma específica do comportamento de
cada um em seu trato dos seus específicos bens de troca. De uma
forma ou de outra, mas sempre de uma forma determinada, o
ofertante definir-se-ia por sua oferta, por tudo aquilo que ela
envolveria necessariamente.
Sendo assim, haveria uma sequência necessária de
implicações. Os interlocutores das relações de mercado, já que
ali não estariam senão para trocar o que fosse seu, querendo,
pois, que seus bens lhes servissem como bons meios de troca,
haveriam de cuidar para que fossem bons os seus valores de uso
aos olhos dos demais. Se não se apresentassem como bons valores
de uso a quem se lhes contrapusesse nas relações de troca, as
mercadorias não poderiam, por sua vez, bem desempenhar o papel
de meios de troca. Teriam seus possuidores de cuidar para que
fossem ou se apresentassem como sendo bons valores de uso.
Teriam de fazê-lo e, ao fazê-lo, acabariam por definir a si
mesmos em função das qualidades diferenciadas dos valores de uso
envolvidos. Dariam definição a si próprios conforme a definição
própria dos bens com que trabalhassem ou manuseassem.
Determinar-se-iam conforme os modos pelos quais diversamente
teriam produzido seus bens de troca ou de como quer que tivessem
feito para vir a tê-los em mãos; determinar-se-iam ainda
conforme a maneira pela qual viriam disponibilizá-los para a
apreciação dos demais no intercurso das próprias trocas. Em tudo
isso a diversidade das qualidades das mercadorias como valores

187
de uso determinaria a figura de quem fizesse uso delas como
instrumentos de troca, ainda que só assim as usasse. A oferta de
um bem constituir-se-ia, sim, em uma relação negativa, de
alienação; tratar-se-ia de separação e distanciamento. Mas não
seria por isso que os bens ofertados em sua diversificada
qualificação como valores de uso deixariam de determinar quem
deles acabaria por se separar. Os bens alienados importariam,
propriamente importariam em sua qualificação como valores de uso
para quem os negasse em sua qualificação para uso próprio,
alienando-os a partir de sua oferta para troca; importariam sim
para o ofertante, pois este, ainda que não se deixando
determinar pelos bens de sua oferta em suas qualidades de objeto
de seu consumo próprio, deixar-se-ia, no entanto, determinar por
eles e suas qualidades enquanto determinações do que seriam os
objetos de sua produção e do que teria de ser sustentado como
posse pessoal no processar-se de todo o conjunto de trâmites
pertinentes aos processos de intercâmbio de mercado. Os bens
alienados importariam em sua qualificação como valores de uso
para quem os ofertasse, ainda mesmo que pela sua oferta seu
ofertante declarasse em certo sentido não se importar com eles.

A definição da pessoa pelos bens de que se privasse

Suponhamos que alguém, possuindo alguma carne e cereais,


entendendo mesmo que bem se complementariam para seu desfrute
alimentar; mas, mesmo assim, estivesse interessado em melhor
condimentar seu prato. Preocupar-se-ia com o tempero da carne;
os cereais dispensariam maiores cuidados, bastando salgá-los — é
como entenderia. Estaria até a carne até já condimentada, mas
não bem ao seu gosto, pessoa orgulhosa de ser um bom gourmet.
Descontente então com o preparo de sua carne, e procurando
condimentos para melhorá-lo, poderia o nosso bom gourmet
encontrar alguém que, tendo disponíveis os condimentos que
desejasse, bem que os trocaria — perceberia o nosso homem em seu
apetite —; e constataria ainda o nosso gourmet que o outro, o

188
dos condimentos desejados, poderia trocá-los, desejaria mesmo
trocá-los, diria, por aquilo mesmo que o nosso gourmet possuía,
quer sua carne quer seus cereais. Com sua carne ou com seus
cereais poderia então o nosso homem obter os condimentos
desejados. Mas o que faria com os condimentos se entregasse sua
carne e seus cereais? Fazendo questão da carne acompanhada dos
cereais não poderia entregar nenhum nem outro. Talvez lhe fosse
possível convencer o outro a lhe ceder os condimentos em troca
de qualquer outra coisa que possuísse, sem que fosse obrigado a
prejudicar o sabor ou a completude do prato de seu gosto. Acaso
possuísse algo mais qualquer que, entendesse, não lhe valeria
nada para seu próprio consumo — beterrabas que odiasse, queijos
que em breve se estragariam, ou fosse lá mais o que fosse que
não apreciasse — e com o que poderia acabar por fazer com que o
outro lhe cedesse em troca seus condimentos. Neste caso, suas
beterrabas ou seus queijos seriam entendidos como coisas umas
tão boas como as outras, ou seja, valendo-lhe nada, e, como
tais, indiferentemente utilizadas para troca; enquanto sua carne
e cereal, ao contrário, tê-los-ia como um distinto do outro em
sua qualificação para a completude do sabor do prato de seu
desfrute. Mas quem tivesse os condimentos poderia demonstrar tal
predileção pela carne e cereais do nosso homem que não haveria
como fazê-lo desistir de seu intuito de vir a ter a seu dispor,
ao menos, talvez, um dos dois. Estaria o outro especialmente
desejoso da carne, vendo-a no cozido que de costume satisfazia
seu apetite e, quanto aos cereais, maravilhava-se já os
imaginando em companhia das aves que abatera pensando em assá-
las. Face à insistência do outro em relação à sua própria
demanda, o nosso bom gourmet talvez pudesse pensar em mudar a
sua própria, para isso alterando a composição de seu planejado
prato. Entregaria, então, o quê ao outro, a quem talvez uma
coisa ou outra serviria? A carne e os cereais poderiam valer-lhe
o que desejava, os condimentos. Podendo valer-lhe os mesmos
condimentos seria a carne tão boa como os cereais? Utilizaria
uma ou os outros indiferentemente para obtenção de seu
condimento? Desconsideraria, para esse efeito suas qualidades
como valores de uso? Ficar sem a carne parecer-lhe-ia, acaso,

189
uma pior alternativa. Se a trocasse pelos condimentos, ficaria,
sim, com os condimentos, mas sem a carne a ser condimentada. De
nada lhe valeriam os condimentos se não houvesse carne para ser
condimentada. Trocaria, então, seus cereais pelos condimentos?
Ficaria, assim, sem os cereais a dar contorno a seu prato. Teria
de se contentar com sua carne sem a condimentação desejada,
ainda que devidamente contornada pelos cereais ou, se
condimentada a seu gosto, não mais com o acompanhamento
daqueles. Talvez aceitasse compor seu prato com a carne
acompanhada por algum legume, assim entregando seu cereal. Como
quer que concretamente viesse a resolver seu problema, sempre
nas opções de troca do nosso gourmet haveria de se considerar:
(1) tratar-se-iam propriamente de opções, podendo ele escolher o
que trocar pelo quê; (2) ao optar pelo que trocar, estaria
apreciando o seu meio de troca levando em consideração também
suas qualidades como valor de uso — e de valor de uso para si
próprio. As qualidades dos bens enquanto valores de uso para uso
próprio não seriam indiferentes a quem deles fizesse uso como
meros instrumentos de troca, ainda que só este uso se fizesse
deles. Mesmo que o uso que se acabasse por dar a um bem fosse o
de ser um simples instrumento de troca, as suas qualidades
enquanto valor de uso, mesmo para o daquele que o trocasse,
teriam sim importado.
Ainda que considerássemos só o aspecto privativo na
alienação de um bem — pois haveria um aspecto positivo, quando
por seu meio de troca alguém se definiria de uma certa maneira
perante outrem —; mesmo na exclusividade da negatividade de uma
privação, tratar-se-ia sempre de um dar determinações à própria
vida e si próprio. Ao nos separarmos de alguma coisa ao trocá-la
por outra, privar-nos-íamos dela. Deixaríamos de poder continuar
a utilizá-la, fazendo-se dela, assim, um uso que seria o término
de todos os seus outros possíveis usos para nós, onde todas as
possibilidades de sua utilização seriam definitivamente
exauridas. E também por essa privação se definiria a pessoa: um
conjunto particular de características de um indivíduo e um
determinado modo de vida. Desfazer-se de um violino seria deixar
de ser violinista, pelo menos muitas vezes. O desfazer-se do

190
violino, muitas vezes, reportar-se-ia, como a seu sujeito, ao
ter sido ou ao deixar de ser violinista. Ainda que a relação que
se tivesse com o bem que se utilizasse como objeto de troca
fosse sempre marcada pela negatividade, essa negatividade teria,
sempre, uma face oposta que seria positiva. A pessoa, assim como
se definiria pela posse e uso de alguma coisa, definir-se-ia
também pela negação de uma posse ou de uma possibilidade de uso.
Ao se negar a possibilidade de utilização de algo se
determinaria também a pessoa. Ainda que se o fizesse pela
negatividade, positivamente também se o faria ao se
caracterizar, como resultado da negatividade, alguém que seria e
existirá sem o uso de alguma coisa. Não só pela posse dos bens,
definem-se as pessoas; definem-se também por sua privação. Ao
escolher algo como objeto a ser tratado negativamente como valor
de uso na permuta por algo mais, utilizando-o como meio de
troca, não haveria, pois, como o tratar com simples e mero
desprezo. Desprezar-se-ia às vezes aquilo que se alienasse; o
que se alienasse, às vezes, seria mesmo alienado por ser
desprezado; acaso porque se mostrara como algo não qualificado,
acaso, ainda que qualificado, porque aquilo para o que se
qualificava passara a ser desprezado. O instrumento mesmo não
seria bom ou não serviria bem, ou aquilo para que seria útil não
seria mais desejado. Um bem mostrar-se-ia como não servindo;
desprezá-lo-íamos. Por isso, definir-nos-íamos negativamente;
mas, ao menos aos nossos olhos, tendo em vista a definição da
positividade do que nos sobrasse. E seríamos também obrigados a
trocar aquilo de que gostaríamos de manter a posse, apreciando-
o, vendo-nos mesmo, em sua posse, como pessoas melhores, ao
menos mais bem aquinhoadas. Seríamos obrigados a fazê-lo. Não
haveria mais como continuarmos a ser o que éramos. Pelo alimento
nos desfaríamos do violino. Desfazermo-nos dele, que teríamos
propriamente como um bem, seria um outro modo de dar definição a
nós próprios, no caso, então, negativamente em relação ao valor
que daríamos a nós próprios. Trocar-se-iam uns bens, deixar-se-
ia de trocar outros. Trocar-se-iam uns de bom grado; outros, a
contragosto. Poderíamos dispor-nos a trocar uns, recusar a
trocar outros. Nessas opções de troca determinaríamos a nós

191
mesmos. Haveria sempre algo que os bens alienados representariam
para nós, quer positivamente, quer negativamente. Sendo assim,
já por isto, como se poderia entender que não haveria diferença
entre as coisas que fossem trocadas? Como poderia haver um
simples desprezo, um mero não se importar em relação às suas
qualidades?

A definição da pessoa pelos bens que demandasse

Os ofertantes seriam ao mesmo tempo demandantes. E, assim


como pelo lado da oferta, também pelo lado da demanda as pessoas
dariam definição a si mesmas. Como ofertantes, determinar-se-iam
pelo que ofertassem, cuidando para que fosse objeto da demanda
de uma outra pessoa que não elas próprias; objeto de que, por
meio mesmo de sua aquisição por outra pessoa, se separariam; o
ofertante, assim, definindo-se como quem não faria uso de alguma
coisa. Como demandantes, pelo outro lado, as pessoas definir-se-
iam pela procura do que houvessem definido fosse-lhes um bem, um
bem para si próprias ou que lhes fosse próprio em seu uso. Não
haveria como ser violinista sem o violino. A procura pelo
violino seria própria do violinista. A procura do violino pelo
violinista seria um ato que, tendo o violino como seu objeto,
teria como seu sujeito a vontade de ser ou de continuar a ser
violinista. Nem sempre, é verdade, as coisas seriam tão simples.
Nem sempre seria fácil ver a vinculação do objeto com a
definição da natureza do sujeito. Poder-se-ia procurar pelo
violino sem ser violinista e, ainda que o violino sempre se
reportasse ao violinista como aquele que por fim, ao tocá-lo,
lhe daria sentido, muitos motivos poderiam interpor-se entre o
instrumento e seu executante, complicando-se a cadeia de
relações. Mas não haveria como se pensar no violino sem se ter
em mente que violino não haveria sem violinista. Os violinos só
existiriam porque haveria quem se definiria por seu uso; por seu
meio, desejando ser uma determinada pessoa e não outra.

192
Seríamos o que fôssemos — talvez não pudéssemos de outra
forma entender —, tal ou qual ser determinado, só conforme os
meios de que dispuséssemos. Eles participariam da determinação
de nossa constituição como pessoa. Assim atuariam as simples
matérias de nosso consumo e também os instrumentos de nosso uso.
As diferentes matérias dar-nos-iam a energia de que
precisaríamos; os instrumentos constituir-se-iam em mediações
necessárias entre nós e nossos objetos. A matérias que
consumiríamos participariam da definição das formas específicas
que daríamos à nossa própria constituição pessoal: alimentar-
nos-íamos de acordo com o que desejássemos conformar-nos para
virmos a ser esta ou aquela pessoa, esta e não aquela. Os bens,
não sendo os objetos materiais dotados de uma existência
independente de nós mesmos mas coisas de nosso uso, por seu
lado, em sua função instrumental mesma, ao serem por nós
conduzidos, em seu manuseio, determinariam nossas próprias
ações, dando-se, pela conformação deles, a nossa. Instrumentos
haveria que solicitariam a ação de nossas mãos; outros também de
nossos pés. E não seria só sobre esta ou aquela parte de nosso
corpo que atuariam. Todo ele deveria dispor-se da maneira que
lhe ditariam os instrumentos de que faríamos uso: conformar-se-
ia com eles. Tal conformação, fazendo-se habitual, acabaria por
atribuir características peculiares ao nosso organismo. Seriam
estes e não aqueles músculos que se desenvolveriam, seriam estas
e não aquelas habilidades que se adquiririam, etc. E já antes,
por sua simples existência, poderíamos ver os bens de que nos
utilizássemos definindo-nos um universo de possíveis
realizações. Com sua existência entenderíamos poder vir a ser o
que sem ela não seria possível. Por seu meio poderíamos vir a
ser uma certa pessoa que, sem eles, nunca poderíamos chegar a
ser. Tal universo de possibilidades poderia despertar nosso
desejo. Os bens de que disporíamos indicar-nos-iam ou
prescrever-nos-iam formas para a nossa atividade e para a
definição de nós mesmos. A percepção de suas potencialidades
reformularia nossas próprias finalidades. A posse de
determinadas matérias ou de certos instrumentos poderia mesmo
transformar todo nosso modo de vida e a nós mesmos. Por tudo

193
isso, desejá-lo-íamos; por isso diríamos serem ”bens“ e iríamos
à sua procura. Seríamos aquilo que fossemos pelas
potencialidades de sua matéria e de sua forma, por aquilo que
nos permitissem ser, e isto tal como — na maneira em que — eles
mesmos exigissem que fôssemos: conformar-nos-íamos com eles. Não
seriam uma simples exterioridade de que faríamos uso. Nós os
teríamos como meios necessários à nossa existência e, como tais,
eles, à sua própria maneira, nos determinariam. Não os teríamos
simplesmente; em parte, nós os seríamos. E, se deles pudéssemos
distinguir-nos, seria só porque poderíamos substituí-los em sua
particularidade. Seríamos por meio do traje particular que
trajássemos, podendo sê-lo com este por este ou por aquele
outro. Substituiríamos este traje por aquele. Nossa relação com
um bem particular qualquer nunca seria absolutamente necessária.
Seria, no entanto, necessária nossa relação com os bens em
geral. Substituiríamos um alimento determinado por um outro ou
esta habitação por aquela; no entanto, não poderíamos deixar de
nos alimentar com algum alimento — este ou aquele — ou de
habitar alguma habitação — esta ou então aquela. E o que quer
que fôssemos, nós o seríamos pelo alimento particular que nos
alimentasse e pelo abrigo determinado que nos abrigasse. Nossa
existência não seria indiferente ao fato de sermos abrigados por
este e não por aquele abrigo, como também ao fato de sermos
alimentados por este alimento em lugar daquele. Não seríamos
simplesmente; seríamos sempre sob uma forma concreta particular.
A particularidade concreta seria um atributo essencial de nossa
existência. Nossa existência seria necessariamente dada sob uma
forma concreta particular. E, a particularidade concreta, nós a
teríamos através dos bens de que nos servíssemos68. Nossa

68
Talvez bastasse a Marx levar a sério suas próprias afirmações:
”Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a
natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação,
impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza.
Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento
as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim
de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à
vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a,
ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as
potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das
forças naturais.“ (O capital, p. 202) — Para o pensamento de Marx
sobre o trabalho em geral: O capital, Capítulo V,1. O processo de

194
demanda de ter alguma coisa viria a ser, assim, sempre a de
querer ser uma pessoa determinada. Só por isto entraríamos em
uma relação de troca; por entendermos que por ela adquiriríamos
alguma coisa com o que, por sua vez, estaríamos dando definição
a nós mesmos. Nossa demanda seria, pois, a de ser alguém; ao
fazê-la, revelaríamos esse querer ser alguém, mesmo em sua
particularidade.

O aspecto jurídico

Nas trocas, cada qual preocupado consigo mesmo, com a


aquisição dos meios necessários à sustentação e definição de si
próprio, não se preocuparia com os outros: os outros deveriam
cuidar de si mesmos. Ali, a necessidade de cada um seria objeto
só de seu próprio cuidado; não entraria em linha de conta do
ponto de vista dos demais. O que estaria presente seriam
exclusivamente as mútuas demandas. Confrontar-se-iam duas
vontades, a vontade de um e a vontade de outro, uma e outra,
vontade da troca de um bem por outro, sem que nenhum nem outro
tivesse nada a haver com a necessidade do outro. Se alguém se
declarasse demandante de tecidos, e de tecidos de púrpura,
quando seus pés se encontrassem descalços, a ninguém se daria o
direito de dizer-lhe que deveria é procurar por calçados e não
pela púrpura dos tecidos. Cada um decidiria por si mesmo qual
deveria ser ou não o objeto de sua demanda. Certo ou errado, só
ele decidiria. Seu acerto ser-lhe-ia benéfico, seu erro,
prejudicial; mas ninguém mais teria nada a haver com isso. O que
se faria presente na relação seria só o seu arbítrio, a
manifestação de seu arbítrio em sua demanda, e não, diretamente
e propriamente, sua necessidade.
Esta seria mesmo a face jurídica das pessoas nas relações
de mercado, o aspecto de suas relações que corresponderia ao

trabalho ou o processo de produzir valores de uso, p.201-10 —


Apresentamos algumas ideias sobre o assunto em um pequeno ensaio:
Espaço, propriedade, liberdade, em Dois ensaios, São Paulo, Alice Foz,
2003.

195
conceito de direito; assim diz Kant. As necessidades de um e
outro se fariam presentes nas trocas, mas só conforme decidisse
o arbítrio de cada qual, sem que nenhum, tendo de cuidar da
satisfação do arbítrio do outro — sim, a este haveria que
satisfazer —, tivesse que, satisfazendo a demanda de seu
arbítrio, também cuidar da satisfação de sua necessidade. Da
necessidade de cada um, só mesmo cada qual cuidaria pela
definição que lhe desse em seu arbítrio. E o arbítrio de cada
qual decidiria não só o que deveria ser sua demanda, mas também
o que ofereceria em troca para satisfazê-la. Um arbítrio, por
exemplo, decidir-se-ia por tecidos de púrpura, e decidir-se-ia,
também, por oferecer ou cebolas, ou batatas, ou beterrabas, por
esses tecidos. Afora as demandas e as ofertas que se
contrapusessem, nada mais precisaria ser considerado. A relação
não seria a do arbítrio de um diretamente com a necessidade do
outro, mas a do arbítrio de um exclusivamente com o arbítrio
outro, não se tendo em conta o fim específico que cada qual
perseguiria, mas só um e outro arbítrio como livres e o fato da
ação de um poder conciliar-se livremente com a ação do outro.69
Hegel em seus Princípios da filosofia do direito, reitera
Kant. As relações contratuais, entre elas as de troca, suporiam
que os contratantes se reconhecessem como proprietários, ou

69
”Le concept du droit, dans la mesure où il se rapport à une
obligation qui lui correspond (c’est-à-dire le concept moral de
droit), premièrement ne concerne que le rapport extérieur et, plus
précisément, pratique d’une personne à une autre, em tant que leurs
actions peuvent, comme facta, avoir une influence les unes sur les
autres (immédiatement ou médiatement). Mais, deuxièmement, il ne
signifie pas la relation de l’arbitre au souhait (par conséquent pas
non plus au simple besoin) d’autrui, comme c’est le cas par exemple
dans les actions de bienfaisance ou de cruauté. Mais purement et
simplement à l’arbitre d’autrui. Troisièmement, dans cette relation
reciproque des arbitres, n’intervient pas non plus la matière de
l’arbitre, c’est-à-dire la fin que tout individu peut concevoir pour
l’objet qu’il veut — par exemple, la question n’est pas posée de
savoir si quelqu’un, avec la marchandise qu’il m’achète pour son
propre commerce, pourrait trouver aussi son bénéfice ou ne le pourrait
pas, mais c’est seulement la forme de la relation entre les arbitres
présents des deux côtés que l’on interroge, en tant qu’ils sont
considérés simplement comme libres, et cela pour savoir si l’action de
l’un des deux se laisse concilier avec la liberte de l’autre selon une
loi universelle.“ (Emmanuel Kant, Métaphysique des mœurs, Tome II,
Príncipes métaphysiques de la doctrine du droit, Introdution à la
doctrine du droit, trad. de Alain Renaut, Paris, Flammarion, 1994, p.
16, § B)

196
seja, como dispondo livremente de seus bens. Como proprietários
de seus bens, far-se-iam presentes tendo em mãos o que fosse
seu, sua propriedade; mas seria contingente do ponto de vista
jurídico o aspecto particular de que se revestiria a
propriedade, a natureza e a quantidade da posse de cada qual.
Juridicamente, a posse só importaria como afirmação de
liberdade. Constituir-se-ia, juridicamente, simplesmente no fato
de haver alguma coisa que alguém tivesse submetida a seu poder
exterior, afirmando-se com isso como pessoa livre: só isto
juridicamente importaria. O interesse particular que haveria na
posse residiria em que alguém se apoderaria de alguma coisa para
a satisfação das suas exigências ou desejos. Mas o interesse
particular não seria aquilo a que o direito se reportaria. Do
ponto de vista do direito, só importaria o fato de que, pela
posse, uma pessoa objetivar-se-ia como vontade livre. Só isto
seria ”verdadeiro e jurídico“ e constituir-se-ia na definição
jurídica de propriedade70. Assim, frisa Hegel, do ponto de vista
da carência, ter uma propriedade apareceria como um meio; mas do
ponto de vista do direito, a propriedade constituir-se-ia no
próprio fim, pois, com ela, se afirmaria alguém em sua
liberdade71. O que haveria de jurídico na relação com as coisas
exteriores seria simplesmente o fato de alguém possuir algo como
sua propriedade. O aspecto particular, exterior à relação
jurídica, abrangeria os fins subjetivos, as carências, a
fantasia, o talento, etc.; mas nada disto diria respeito ao

70
”Alguma coisa há que o eu tem submetida ao seu poder exterior. Isto
constitui a posse; e o que constitui o interesse particular dela
reside nisso de o eu se apoderar de alguma coisa para a satisfação das
suas exigências, dos seus desejos e do seu livre-arbítrio. Mas é
aquele aspecto pelo qual eu, como vontade livre, me torno objetivo
para mim mesmo na posse e, portanto, pela primeira vez real, é esse
aspecto que constitui o que há naquilo de verdadeiro e jurídico, a
definição da propriedade.“ (Princípios da filosofia do direito,
tradução de Orlando Vitorino, Lisboa, Guimarães & Cia. Editores, 1976,
p. 59, § 45)
71
”Do ponto de vista da carência, e caso esta esteja colocada em
primeiro plano, ter uma propriedade aparece como um meio. Mas é noutro
ponto de vista que reside a verdadeira situação, o da liberdade que na
propriedade tem a sua primeira existência, o seu fim essencial para
si.“ (Princípios da filosofia do direito, p. 59, nota ao § 45)

197
direito; seria contingente do ponto de vista jurídico72. E como
proprietários, continua Hegel, é que os homens estabeleceriam
suas relações contratuais, motivados, sim, em suas consciências
por uma exigência de utilidade; mas, no que valessem
juridicamente, nas relações contratuais só importaria o que
seria a motivação propriamente ”racional“, a procura de
afirmação de uma personalidade livre73. Na racionalidade
jurídica própria das relações contratuais resolver-se-ia mesmo a
antítese de ser proprietário para si excluindo os outros, na
medida em que se renunciaria à propriedade por um ato de vontade
comum com outra pessoa74. Tratar-se-ia de quando haveria a
necessidade de alienar uma propriedade para que uma vontade se
realizasse; isto porque já se haveria tornado outra, não mais a
da sustentação da posse do que se tivesse em mãos, mas a de vir
a ter a posse de alguma outra coisa. O conceito da livre
personalidade realizar-se-ia na unidade de duas vontades, sim,
distintas, mas deixando, pelo lado do direito, de ser de
diferentes; ainda que, por outro lado, o da particularidade de
cada uma, continuaria suposto que uma não fosse igual à outra e
que uma e outra para si persistissem como uma vontade própria75.

72
”O que há de racional na relação com as coisas exteriores, é que eu
possuo uma propriedade; o aspecto particular abrange os fins
subjetivos, as carências, a fantasia, o talento, as circunstâncias
exteriores. Só disso é que depende a posse. Mas neste aspecto
particular ainda não é, neste domínio da personalidade abstrata,
idêntico à liberdade. É, pois, contingente, do ponto de vista
jurídico, a natureza e a quantidade do que possuo.“ (Princípios da
filosofia do direito, p. 62, § 49)
73
”Entram os homens em relações contratuais (dádivas, trocas,
negócios) por uma necessidade que é tão racional como aquela que os
faz proprietários. Para a consciência deles, o que motiva o contrato,
é a satisfação de uma exigência geral, o gosto ou a utilidade, mas em
si é a razão, isto é, a ideia da personalidade livre e realmente
existente (quer dizer: como pura vontade). O contrato supõe que os
contratantes se reconhecem como pessoas e proprietários [...].“
(Princípios da filosofia do direito, p. 80-1, nota ao § 71)
74
Ӄ neste processo que surge e se resolve, na medida em que se
renuncia à propriedade por um ato de vontade comum com outra pessoa, a
antítese de ser proprietário para si mesmo e de excluir os outros.“
(Princípios da filosofia do direito, p. 81, § 72)
75
”Não só eu posso desfazer-me da minha propriedade como de uma coisa
exterior mas ainda sou logicamente obrigado a aliená-la como
propriedade para que a minha vontade se torne existência objetiva para
mim. Aqui, porém, a minha vontade como alienada é, no mesmo passo, uma
outra. Onde esta necessidade do conceito é real, é na unidade das
vontades diferentes que nela perdem o que têm de diferentes e de

198
A relação jurídica contratual seria uma mediação a que se
submeteria a vontade de cada qual, um meio para a realização de
seu objetivo, desfazendo-se de algo para a obtenção de algo
mais. Na mediação a que se imporia, a vontade permaneceria, no
entanto, idêntica a si mesma, mesmo com a distinção de uma posse
e depois outra. A mediação a que se submeteria a vontade
consistiria em, por um lado, abandonar uma propriedade e, por
outro lado, aceitar outra, sob a condição de coincidência entre
duas volições que só se manifestariam quando, a uma, outra
estivesse presente como contrapartida76. Isto seria verdade para
as duas partes contratantes; comportar-se-iam uma perante a
outra como duas pessoas independentes, o contrato não sendo
resultado senão do seu livre-arbítrio.77
Marx concede aos homens a mesma liberdade nas relações de
troca78. No entanto, de modo diverso do de Kant e Hegel, entende
que a relação jurídica entre simples proprietários constituir-
se-ia na verdade toda das trocas. Para Kant e Hegel, a relação

distintas. Esta identidade de vontades também, porém, implica [...]


que cada uma delas não seja idêntica a outra e para si persista como
uma vontade própria.“ (Princípios da filosofia do direito, p.81, § 73)
76
”Esta relação é, pois, a mediação de uma vontade que permanece
idêntica através da distinção absoluta de proprietários diferentes e
implica ela que cada qual, por vontade própria e pela de um outro,
deixe de ser, continue a ser ou venha a ser proprietário. A mediação
da vontade consiste em, por um lado, abandonar uma propriedade (quer
dizer: uma propriedade individual) e, por outro lado, aceitar uma
propriedade da mesma natureza (que, portanto, pertence a outrem) e
sobre isso a condição de coincidência entre uma volição que só se
manifesta quando outra volição está presente como contrapartida.“
(Princípios da filosofia do direito, , p. 81-2 § 74)
77
”As duas partes contratantes comportam-se uma perante a outra como
duas pessoas independentes imediatas.“ (Princípios da filosofia do
direito, p. 82, § 75)
78
”As mercadorias são coisas; portanto, inermes diante do homem. Se
não é dócil, pode o homem empregar força, em outras palavras,
apoderar-se dela. Para relacionar essas coisas, umas com as outras,
como mercadorias, têm seus responsáveis de comportar-se,
reciprocamente, como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de
modo que um só se aposse da mercadoria do outro, alienando a sua,
mediante o consentimento do outro, através, portanto de um ato
voluntário comum. É mister, por isso, que reconheçam, um no outro, a
qualidade de proprietário privado. Essa relação de direito, que tem o
contrato por forma, legalmente desenvolvida ou não, é uma relação de
vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo da relação
jurídica ou de vontade é dado pela própria relação econômica. As
pessoas, aqui, só existem, reciprocamente, na função de representantes
de mercadorias e, portanto, de donos de mercadorias.“ (O capital, p.
94-5)

199
jurídica entre pessoas consideradas simplesmente como
proprietários constituir-se-ia, meramente, em um dos aspectos
das relações de tipo contratual; não na verdade toda delas. Os
aspectos não jurídicos, pertinentes à particularidade dos
indivíduos, seus desejos e apetites, não são dados por eles como
propriamente não existentes nas relações de contrato; são
simplesmente entendidos como sendo ali desconsiderados de um
ponto do vista estrito do direito. O direito visaria
simplesmente salvaguardar a liberdade de cada um nas relações
contratuais, afirmando e obrigando ao reconhecimento de todos
como pessoas livres; restringir-se-ia a pensar e regrar o que
dissesse respeito ao reconhecimento da liberdade pessoal dos
partícipes das relações contratuais. Para Marx, a relação de
direito constituir-se-ia, ao contrário, em reflexo pleno de uma
relação econômica79. O conteúdo da relação jurídica ou de
vontade seria dado pela própria relação econômica de troca; a
relação econômica de troca, uma relação real entre duas
vontades, mesmo como tal, seria a própria relação jurídica, em
termos de que esta última não passaria de uma manifestação
ideal, no plano das ideias, da realidade da primeira. A
desconsideração pelo conteúdo do transacionado pelas vontades
presentes em uma relação de troca encontrar-se-ia em sua própria
factualidade; real e concretamente, nas relações de troca, não
seria considerada a concretude do desejado. Assim, a relação
jurídica, em sua desconsideração do conteúdo das vontades, não
faria senão dar expressão ideal à relação econômica; diz Marx
que a relação econômica seria o ”conteúdo“ da relação jurídica,
conteúdo no sentido do que fosse o real em relação à uma
expressão ideal. Também para Kant e Hegel, como simplesmente
igualmente proprietárias, iguais em sua liberdade de disposição
de seus bens, em desconsideração da concretude de suas
necessidades, as pessoas seriam consideradas nas relações de
direito; mas as relações econômicas não se reduziriam à relação
de direito, a esta simples igualdade de condição como livres

79
”Essa relação de direito, que tem o contrato por forma, legalmente
desenvolvida ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a
relação econômica. O conteúdo da relação jurídica ou de vontade é dado
pela própria relação econômica.“ (O capital, p. 95)

200
proprietárias. Tratar-se-iam simplesmente, igualmente, de duas
vontades — assim as tomaria simplesmente o direito —, mas de
vontades que em sua particularidade se distinguiriam e que
importariam em si mesmas, mesmo na relação econômica, ainda que
disto não cuidasse o direito. A igual condição de simplesmente
proprietários que encontraríamos nos dois lados da relação
jurídica não se constituiria na própria relação econômica;
tratar-se-ia de uma condição formal de igualdade que se lhe
imporia pelo direito. A relação jurídica seria determinação
formal. As pessoas lá, na forma jurídica das relações
econômicas, existiriam simplesmente como livres, iguais em sua
liberdade, quaisquer que fossem os conteúdos particulares de
suas posses e o aspecto particular de suas vontades. Não
interessaria à relação jurídica apreciar o conteúdo particular
das posses e das vontades, e, sim, simplesmente reconhecê-las em
seu caráter de determinações pessoais livres. Na relação
jurídica, as pessoas reduzir-se-iam à necessidade de seu
reconhecimento recíproco como livres proprietários, ou seja,
pessoas com direitos plenos sob seus bens. Mas tratar-se-ia só
de uma face sua, parte sua; não elas mesmas na totalidade dos
traços que as definiriam, mesmo na relação de troca real e
concreta, como indivíduos que estariam sempre dando conteúdo
particular a suas vontades e posses, sendo dotados de um livre-
arbítrio sempre concretamente determinado. Mesmo como tais
estariam presentes na relação econômica de troca. Frisa Kant
que, na relação recíproca dos arbítrios, do ponto de vista do
direito, não interviria em absoluto a sua ”matéria“, o fim que o
indivíduo poderia conceber para o objeto que ele desejasse; por
exemplo, adverte, a questão não seria saber se alguém, com uma
mercadoria que nos comprasse poderia ou não encontrar
propriamente seu benefício. Do ponto de vista do direito, seria
somente a forma da relação entre os arbítrios presentes que se
interrogaria, para saber se igualmente estariam sendo
considerados simplesmente como livres. A verdade do direito
seria, puramente, a de uma determinação formal. Não que, na
relação real, a ”matéria“ dos indivíduos e o caráter particular
de suas vontades fossem dados como inexistentes; haveria sim que

201
se os considerar; simplesmente não seria especificamente o
direito que os tomaria em consideração. O direito não abarcaria
a totalidade dos aspectos das relações que acabariam por ser
expressas na forma jurídica do contrato; a forma jurídica
cuidaria exclusivamente de determinações formais, aquelas dentre
estas que dissessem especificamente respeito à garantia de
liberdade. Não seria, inclusive, que as relações reais e
concretas entre os indivíduos não tivessem outras determinações
formais que não aquelas que lhes imporia o direito. Haveria
determinações, por exemplo, morais que se imporiam aos
indivíduos em suas relações, mesmo que o direito delas não
cuidasse. As relações entre as pessoas seriam regradas não só
pelo que lhes ditasse o direito, mas, por exemplo, também pela
ideia de beneficência80. Aristóteles, entendendo as relações de
troca como uma espécie de amizade por interesse, considera que,
nesse tipo de amizade, mesmo duas pessoas más poderiam ser
amigas, ou então uma pessoa boa e outra má, ou uma pessoa que
não seria nem boa nem má poderia ser amiga de outra de qualquer
espécie81. Nesse sentido, a relação jurídica não exigiria que as
pessoas fossem boas, simplesmente cuidaria para que fossem
respeitadas em sua liberdade; mas nem por isso se entenderia que
as pessoas não devessem ou não pudessem ser boas; simplesmente,
de sua bondade ou maldade, se cuidaria por meio de outras
determinações que não as do direito. Talvez não seja descabido
lembrar aqui que, já no que diria respeito a uma simples mesa,
objeto prosaico, primeiro, que nunca a poderíamos ter
simplesmente como forma, ainda que, sim, uma mesa precisaria ter
uma forma: haveria de se lhe dar também alguma matéria, por
exemplo, a madeira; e, segundo, teríamos de lembrar que, por
exemplo, a boa mesa de madeira, a mesa de madeira que fosse boa,
definir-se-ia por uma boa forma e também por uma boa madeira;
80
Métaphysique des mœurs, Tomo II, p. 16.
81
Sua discussão sobre a amizade encontra-se nos Livros VIII e IX da
Ética a Nicômacos. Em específico: ”Então, quando a amizade é por
prazer ou por interesse, mesmo duas pessoas más podem ser amigas, ou
então uma pessoa boa e outra má, ou uma pessoa que não é nem boa nem
má pode ser amiga de outra de qualquer espécie; mas pelo que são em si
mesmas é óbvio que somente pessoas boas podem ser amigas.“ (Ética a
Nicômacos 1157a, trad. de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora
Universidade de Brasília, 1985)

202
sendo que precisaríamos ter ainda em vista, mais
especificamente, que para um mesa de madeira não ser boa, mas
ruim, bastaria que tivesse só ou a sua forma ruim ou só madeira
ruim. Para a boa mesa, precisaríamos da forma e da matéria boas;
consequentemente, para a mesa ser ruim bastaria que uma das duas
coisas fosse ruim, a forma ou a matéria. Precisaríamos apreciar
a qualidade de uma e outra coisa. Definiríamos mesmo uma com
certa independência da outra; sem nunca, no entanto, imaginarmos
que uma não precisasse da outra. Em certa circunstância, por
exemplo, teríamos que a melhor forma para a mesa de que
precisaríamos, ou mesmo a forma que lhe seria absolutamente
necessária, seria a retangular, não a circular, inclusive
conforme bem especificadas dimensões; haveria, depois, que se
encontrar a melhor matéria de que poderia ser feita tal mesa. A
forma, por si só, impor-se-ia independente da matéria; mas
independente só no sentido que poderia ser definida em
independência de qualquer matéria determinada, e não, em
absoluto, é óbvio, que se imaginasse que pudéssemos vir a ter
alguma mesa sem que se desse a ela alguma matéria: haveria de
ser de madeira ou de algum outro material, desta madeira ou
daquela. O direito trataria exclusivamente de parte do aspecto
formal da relação entre as vontades, cuidando para que fossem
livres; não se preocuparia com sua matéria, seu conteúdo, a
particularidade da posse e do desejo dos envolvidos, nem sequer
com todos os aspectos formais envolvidos. O conteúdo da relação
de direito estaria fora das próprias preocupações do direito. O
conteúdo da relação de direito, o direito simplesmente não
discutiria. Não discutiria também todos os aspectos formais
envolvidos; limitar-se-ia a assegurar que as vontades, ao se
relacionarem, o fizessem em liberdade. Na relação econômica
real, ao contrário, discutir-se-iam, sim, a matéria da posse e
os modos todos de relacionamento das vontades envolvidas. A
relação econômica real seria mais rica que a relação jurídica;
esta representaria só um aspecto dos aspectos só formais
daquela. Assim, a relação de direito não seria reflexo da
relação econômica; esta não seria conteúdo daquela, nem aquela
um reflexo desta, no sentido de que uma seria só uma maneira de

203
falar da outra; uma sendo ideal e outra real e concreta. A
relação de direito seria parte da determinação formal, também
ela real e concreta, da relação econômica real e concreta,
quando se quisesse que a relação das vontades, real e
concretamente, fosse propriamente uma relação de vontades
livres. Reduzir a relação econômica à relação de direito, como
se esta fosse só uma expressão idealizada daquela, faria com se
viesse a entender que uma e outra não fossem senão uma mesma
coisa, meramente tomadas de modos distintos, uma real e
concretamente e outra só idealmente; quando a relação econômica
não seria a mesma que a relação de direito, esta sendo só um dos
aspectos daquela, uma das determinações de sua forma, quando se
impusesse que na relação econômica as vontades fossem livres.

Vontades particulares irredutíveis em sua distinção

Ofertar-se-ia algo em troca de algo. O que cada qual


ofertaria e, também, o que demandaria, seria decidido só por ele
mesmo, sem a interferência de ninguém mais. Seria sua
prerrogativa de liberdade, seu modo de afirmar-se como sujeito
livre, propriamente como tal. Ao demandar por um casaco, ninguém
precisaria dizer a que o casaco lhe serviria. Poder-se-ia
demandar pelo casaco para uso pessoal ou para presenteá-lo, até
mesmo para depois trocá-lo por algo mais. No que o casaco
serviria a seu demandante, não seria da conta de ninguém mais
senão dele mesmo: não entraria necessariamente em linha de
consideração em uma relação de troca. Assim, a princípio, ao se
demandar pelo casaco, não se estaria dizendo necessariamente
nada a respeito de si mesmo, a não ser, simplesmente, que se
estaria demandando por ele. A pessoa do demandante reduzir-se-ia
à própria demanda: estaria lá alguém a demandar por aquele
casaco. Quem seria ela? — A pessoa demandante daquele casaco.
Para que desejaria ela o casaco? Esta questão não se colocaria,
ou, se colocada, não precisaria ser respondida. Não se
entenderia também por que, nos próprios termos da relação de

204
troca, o ofertante do casaco viesse a referenciar sua oferta a
qualquer preocupação com os fins ou a felicidade do demandante.
A felicidade do demandante pouco importaria ao ofertante. A
infelicidade que lhe viesse causar um bem que adquirisse não
importaria também a quem o tivesse fornecido. Poderia este
último cuidar exclusivamente de livrar-se do seu bem em troca do
que lhe fosse mais conveniente. Restrições nestes termos não
haveria. Todos seriam entendidos como igualmente qualificados se
dados como legítimos proprietários dos bens transacionados.
Sendo algo aceito como seu, alguém poderia trocá-lo com o que
quer que fosse, de quem quer que fosse. Esta seria a feição mais
geral das pessoas nas relações econômicas de mercado. Não
importariam os motivos particulares dos sujeitos envolvidos.
Isto diria respeito à sua liberdade.
Mas já mesmo aí, no que poderíamos entender fosse a face
mais formal da relação, veríamos as pessoas apresentarem-se
concretamente como individualidades irredutíveis. A sua igual
condição de liberdade não lhes negaria enquanto individualidades
concretas diferenciadas. Relação de troca alguma haveria se não
fosse pela motivação particular dos seus sujeitos constituintes;
só por suas específicas motivações particulares se constituiria
uma relação de troca. Nela as pessoas só estariam presentes
conforme a manifestação de suas vontades, uma e outra em sua
individualidade irredutível — uma vontade, vontade de aquisição
de um valor de uso pelo despojar-se de outro; outra vontade,
aquela que fosse contraposta à primeira, vontade de aquisição do
que aquela desejaria despojar-se pelo despojar-se do que aquela
desejaria. Presentes como vontades que só viriam a ser
satisfeitas se uma e também outra o fizessem — sendo iguais
nessa condição dada tanto a uma como à outra —, uma se
distinguiria da outra por suas relações com os objetos a que se
reportassem: o que uma desejaria especificamente adquirir, a
outra teria como aquilo de que desejaria despojar-se. Assim, uma
e outra sempre seriam irredutíveis em sua particularidade
distintiva. Uma só se relacionaria com a outra por ser distinta
dela, por querer uma coisa em particular por meio de uma
específica outra, sendo que só se relacionariam se uma desejasse

205
o oposto da outra, uma e outra desejando adquirir aquilo de que
a outra desejaria despojar-se, por meio do despojar-se do que a
outra desejaria adquirir. Duas vontades iguais não se
relacionariam. Só o fariam por serem complementares em sua
distinção. As mercadorias não poderiam, assim, ser senão
consideradas como reportadas a sujeitos sociais diversamente
determinados na complementaridade de suas distintas vontades. A
troca de uma mercadoria a com uma distinta mercadoria b não
poderia efetivar-se a menos que a mercadoria a servisse de valor
de uso para o indivíduo B e a mercadoria b de valor de uso para
o indivíduo A, A distinto de B; A e B, ao mesmo tempo, servindo-
se de suas próprias mercadorias a e b como valores de troca para
aquisição de b e a, valores de uso por eles desejados. Seria
vontade de A desfazer-se de a para a obtenção de b e a vontade
de B a de desfazer-se de b para a obtenção de a. As vontades de
A e B seriam distintas e, ao mesmo tempo, uma complementar à
outra. Não haveria como se estabelecer relação entre quaisquer
mercadorias sem que se apresentassem como valores de uso e de
troca distintos. Sapatos não se trocariam com os mesmos sapatos.
Valores distintos seria aquilo que, na relação, as mercadorias
propriamente teriam de ser. Seriam valores de uso e, ao mesmo
tempo, de troca; tanto em um caso como em outro, sempre
propriamente valores — e valores distintos —, reportados a
pessoas distintas. Seriam valores distintos reportados a pessoas
distintas.
Reduzida a presença social das pessoas às figuras de um
ofertante de alguma coisa e demandante de alguma outra coisa,
estariam elas, sim, diminuídas em relação ao conjunto todo de
suas qualidades e atributos, mas não estariam, nem por isso,
sendo desprezadas em sua particularidade distintiva como quer
Marx. A relação real, na completude de seus aspectos, não seria
a meramente jurídica, ou não se reduziria àqueles seus aspectos
cuidados pela racionalidade jurídica. Mesmo que cada qual, na
relação, não se apresentasse mais do que como um demandante e
ofertante de coisas determinadas, sendo suas presenças ou faces
sociais a isto reduzidas; mesmo assim haveria ali um fazer-se
presente específico e diferenciado. Teriam ali uma face

206
individualmente diferenciada pela qual se dariam à mútua
presença; mostrando-se, sim, não na completude de suas pessoas,
mas sem que deixassem de dar-se individual e diferenciadamente à
presença do outro, propiciando que algo de si fosse apreciado.
Um mostrar-se-ia como o demandante do casaco e ofertante do
linho; outro, como demandante do linho e ofertante do casaco.
Não se saberia, talvez, o que o demandante do casaco pretenderia
fazer com ele — não precisaria ele ao menos dizê-lo —; assim
como, também, talvez não se soubesse que fim o demandante do
linho pretenderia dar-lhe — também ele nada precisaria declarar
sobre suas finalidades. Nem sempre ou necessariamente o
demandante do casaco o procuraria para proteger a si mesmo do
frio. Poderia desejá-lo para presentear alguém; talvez o
quisesse para trocar por algo mais ou teria em mente ainda algum
outro fim qualquer. Não se mostraria também necessariamente o
porquê de um estar a ofertar o casaco e o outro o linho. Cada
qual estaria ofertando o que lhe aprouvesse, demandando o que
desejasse. Um não poderia interferir nem na oferta nem na
demanda do outro. Não lhes diria respeito. Assim, cada qual
livremente se comportaria. Cada qual também nada mais revelaria
necessariamente de si. Permaneceriam velados em sua relação.
Esse velamento, no entanto, não poderia ser completo. No modo de
ser de um frente ao outro, seria verdade, cada qual não teria
diante de si senão uma outra vontade igual à sua no seu direito
de a si mesma determinar — nisto uma velando-se frente a outra —
, mas sem que, já de princípio, deixassem também de se mostrar
como pessoas distintas pelo fato de que o que seria objeto da
demanda de uma seria o objeto do despojar-se da outra, o do
despojar-se de uma o da demanda da outra. Só como tais se
mostrariam e exigiriam que assim fossem vistas e respeitadas.
Determinar-se-iam, sim, como iguais, mas só em sua liberdade de
a si mesmas definirem como distintas pela determinação
diferenciada de suas ofertas e demandas.

207
A pessoa que acabaria por se deixar ver ou se esconder na
relação de troca

Além da expressão de uma e outra vontade, na relação de


troca, nada mais se faria necessariamente presente: poderia
permanecer velado. Mas esse velamento não seria necessário e nem
precisaria ser absoluto. Observemos outra vez ainda as relações
de troca: seriam relações entre pessoas, entidades espirituais e
mentais, e também físicas e corporais. Relações entre pessoas,
dar-se-iam, muitas vezes mesmo, por meio da imediata presença
corporal dos indivíduos e da direta explicitação das vontades
particulares que caracterizariam a personalidade de cada um.
Alguém procuraria por um casaco, por exemplo; e pessoalmente
procuraria por ele. Iria pessoalmente à procura de um
determinado tipo de casaco e não outro, confeccionado com certo
tecido e não com outro, de um certo corte, este e não aquele, de
uma certa cor e não outra, e também de um certo tamanho, não
daquele mas deste. Procuraria ainda por um único casaco ou por
mais de um, mesmo muitos. Quem procurasse por um casaco para seu
próprio uso, desejá-lo-ia no tamanho que fosse o seu próprio, na
cor que fosse a de sua preferência, e, em tudo mais, em
correspondência a seu gosto e às necessidades de seu uso
pessoal. Para isso dirigir-se-ia até onde, acreditaria, poderia
munir-se de bons trajes e, lá, apreciaria um e mais outro
casaco, talvez muitos; afeiçoando-se por algum, desejaria, seria
também de se esperar, prová-lo. Em seu comportamento mesmo,
acabaria por deixar claro que desejaria o casaco para seu
próprio uso. Já alguém mais, ainda que também procurando por um
casaco pessoalmente, não exigiria que correspondesse às suas
características corporais; dada sua presença corporal, ver-se-ia
logo tratar-se, talvez, de um presente a um amigo, talvez da
satisfação da necessidade de algum familiar. Outra pessoa ainda
não procuraria por um único casaco, mas por uma boa quantidade
deles, em diferentes tamanhos e cores diversas. Certamente não
seria para usá-los todos; também, poder-se-ia ainda perceber,
não para presenteá-los todos ou vestir alguma pessoa próxima;

208
mas talvez, sim, para trocá-los depois por algo mais (desejaria
vários de cada um dos números e cores), ou acaso também usá-los
para vestir de maneira que lhe parecesse adequada a quem lhe
servisse (todos de um mesmo tecido, não dos mais caros, todos
também de mesmo corte e cor, alguns deste número, outros
daquele). Uns e outros, ao se apresentarem desta ou daquela
forma, pelo modo mesmo de se apresentarem com sua demanda,
acabariam por dizer algo a respeito de si mesmos e do uso que
fariam do casaco ou casacos pelos quais demandassem. Um diria
estar à procura da satisfação de seu amor-próprio, no que
entenderia ser o gosto refinado de seus trajes; outro se
mostraria com o desejo de vir a se fazer valer pelo presente que
daria, pessoa de posses que seria; outro mais se mostraria como
quem ao gosto dos demais buscaria satisfazer, mostrando, por
exemplo, este último até mesmo — é possível — algum aspecto
muito particular de sua personalidade, por exemplo, que, em seu
desejo de vir a agradar, atenderia o gosto dos outros sem
restrições, ou, então, que satisfaria os demais só conforme
aquilo que considerasse correspondente à sua própria dignidade.
Mostrar-se-iam, já nisto, como quer que seja, quer desta, quer
daquela maneira, como sendo esta ou aquela pessoa determinada,
possuindo estes ou aqueles traços de caráter, mesmo com um certo
entendimento, e não outro, a respeito de si mesmas e das outras
; dando, assim, cada um aos demais, a possibilidade de a ele
mesmo apreciarem em seu perdularismo, avareza ou liberalidade,
comedimento, mesquinhez ou prodigalidade, e ainda, em seu bom
gosto ou vulgaridade, modéstia ou jactância, e no que mais
pudesse ser considerado como qualidade ou defeito. Entenderiam,
assim, cada qual a si mesmo e uns aos outros, segundo seus
próprios critérios. Uns aos outros se mostrariam como fossem, a
partir mesmo do que fossem. Desfrutariam, quiçá, do prazer de se
reconhecerem como iguais em algo que mutuamente valorizassem, ou
então, vendo-se como estranhos, teriam a oportunidade de
definirem sua própria identidade, ainda que só viessem a
satisfazer a si próprios pelo desprezo dos demais.
Um violino estaria sendo trocado. Quem o ofertasse,
poderia, por ventura, estar deixando de ser o que era. Sua

209
oferta significaria o abandono do instrumento de seu deleite,
mesmo de seu trabalho e modo de ganhar a vida ou, talvez,
simplesmente de seu sonho. Como quer que fosse, o violino não
estaria lá senão como resultado de uma nova definição que seu
ofertante teria dado a si mesmo: já não poderia mais ser o
instrumentista que era; seus sonhos de glória, por desventura,
estariam desfeitos. Sem o violino, não seria mais a mesma
pessoa. Do outro lado, aquele de seu demandante, o violino acaso
representasse a realização de um sonho (aquele que se desfizera
para o outro), ou a satisfação da simples necessidade de um
profissional, alguma alegria qualquer que pudesse propiciar.
Nada disto, tristezas ou alegrias, tudo o que pudesse
representar o violino para um ou outro (quem dele se livrasse ou
quem o adquirisse), precisaria necessariamente ser explicitado
numa relação de troca. A troca não envolveria diretamente os
desejos e necessidades das pessoas, o seu particular interesse
por um objeto determinado: só a manifestação de seu arbítrio.
Sim, mas os objetos em sua simples presença em uma troca não
poderiam deixar de falar de desejos. Como poderiam deixar de
fazê-lo se só por isso lá estariam presentes? Seria sua razão de
ali estarem. Por seu meio, as pessoas dar-se-iam necessariamente
à mútua presença. Os objetos representariam as pessoas em suas
vontades. Ao serem representadas por seus objetos, as pessoas
espelhar-se-iam neles; umas mais outras menos. Talvez muitos
evitassem serem flagrados pelo seu reflexo nas coisas; outros
certamente só por isto procurariam. Poderiam, sim, muitas vezes
mostrar-se; muitas vezes não haveria como deixar de fazê-lo.
Mesmo entendendo-se que nas relações de troca algo mais
acabaria por ser mostrado, uma pessoa dizendo algo de si à
outra, haveria de se considerar que, necessariamente, só através
de suas mercadorias, é que se mostrariam. Estas seriam objeto de
avaliação, estariam dadas à presença, expostas para tal efeito;
não as pessoas, pelo menos necessariamente e em sua completude.
Nada mais se exigiria das últimas a não ser que os bens que
ofertassem, sendo seus, estivessem postos para a apreciação dos
outros. Elas mesmas poderiam resguardar-se, permanecer veladas.
Cada qual vestir-se-ia como quisesse, diria e ouviria o que

210
quisesse. Nos termos da própria relação, nada mais importaria
senão a qualidade dos bens transacionados. Buscar-se-ia avaliar
os bens, não as pessoas. Sim, mas não que as pessoas não
pudessem vir a estar presentes. Poderiam, sim, fazer-se
presente. Se nada, na própria relação, exigiria sua presença;
nada, também, definitivamente a impediria. Junto das
mercadorias, poderiam estar as pessoas; nunca estariam
totalmente excluídas. Lá poderiam estar enquanto a relação de
troca estivesse sendo processada; muitas vezes lá as veríamos.
Nenhum dos envolvidos precisaria dizer nada a respeito de si
mesmo; mas não estaria impedido de dizê-lo. Seria impossível que
nada dissesse a respeito de si? Diriam mesmo necessariamente.
Algo de si revelariam por aquilo tudo que, exatamente, não sendo
obrigados a que dissessem, não poderiam ficar sem dizê-lo. Não
poderiam simplesmente nada dizer e, algo dizendo, mostrar-se-
iam, pelo menos, no modo de dizê-lo.
Seria mesmo possível mentir a respeito de si próprio. Não
estaria excluída a possibilidade da mentira e do engodo — até
mesmo isto. Mas haveria que mentir? Mostrar-se-iam em trajes que
iludiriam sobre suas posses. Diriam de si ter qualidades que na
verdade não possuíssem. Mas não se exigiria que mentissem. E o
próprio intercurso das trocas cuidaria para que nem toda mentira
fosse possível, quando, por exemplo, o tamanho, as cores e as
características de estilo de um casaco teriam de ser verificadas
pelo seu demandante; não de outra maneira, senão simplesmente
por vesti-lo. Possível nessa circunstância dizer-se também todo
tipo de impropriedades, mas difícil não se revelar se o casaco
estaria sendo apreciado ou não como coisa que fosse própria a
quem o trajasse. Poder-se-ia sempre dizer ”levo, ainda que não
goste“. Seja lá; mas levaria e, tendo levado como quem faria uso
pessoal do casaco, teria dito que, como pessoa, teria a si mesma
como quem poderia vestir o que não gostasse. Assim teria feito
e, ao fazê-lo, ter-se-ia mostrado como sendo uma pessoa e não
outra. Haveria quem, por ventura, se recusasse a tal coisa. Algo
sempre seria mostrado de cada qual. Nem tudo seria passível de
apreciação, mas sempre haveria o que apreciar.

211
Seriam também sempre relações pontuais o que, no mercado,
teríamos; só nessa pontualidade cada qual ficaria a saber algo
dos demais. Mas não seriam poucas essas relações. Todo indivíduo
seria levado a um conjunto ou série de trocas para a satisfação
de suas necessidades e definição de um certo modo de vida que
seria o seu próprio. Na totalidade dos bens de seu uso, tê-lo-
íamos no conjunto todo de suas definições materiais. Tudo
dependeria de quanto cada um fizesse uso de bens que a princípio
seriam propriedade de outros. Dificilmente teriam junto de si,
já como coisas suas, tudo de que precisassem; dificilmente
também não teriam nada. Teriam sempre um certo tanto, às vezes
um quase tudo, às vezes um quase nada; em geral um meio termo
entre uma coisa e outra. Nem só da troca talvez dispusessem para
a aquisição do que lhes faltasse; mas, se dela dependessem,
poderíamos lá observá-los em seu comportamento, o que seria um
meio de observar a eles mesmos, no limite tudo deles, talvez uma
boa parte deles. Mais se poderia observar, quando muito do que
se servissem obtivessem por meio de trocas; menos quando delas
pouco se servissem. Mas alguma coisa, um certo tanto, pouco ou
muito, poder-se-ia sempre saber do outro observando-o em seu
comportamento nos intercâmbios mercantis. Isto, no entanto, só
como uma possibilidade, sem que se pudesse, dificilmente se o
conseguiria, mesmo nos termos das próprias trocas, conhecer todo
o conjunto ou série delas de que cada um se serviria. O conjunto
ou série de trocas de cada qual seria negócio só seu,
constituído, cada um, a sua só mesmo por si mesmo, passo a
passo; cada troca dando-se com um interlocutor determinado, às
vezes o mesmo, mas nem sempre, o conjunto das relações
envolvendo sempre um certo número de pessoas distintas. Cada um
conhecendo todos os interlocutores de seu conjunto ou série de
trocas, estes não se conheceriam entre si; ao menos todos, ao
menos sempre. Uns teriam com os outros relações sempre
individualizadas, ainda que às vezes não uma só. Assim, não
haveria como se vir a ter conhecimento da série toda ou do
conjunto todo das relações de troca dos outros e, através delas,
o conhecimento que deles, por esse meio, vir-se-ia a ter seria
sempre parcial. O conhecimento dos outros, um certo conhecimento

212
dos outros, por meio de suas relações de trocas, ainda que
possível, em grande ou pequena medida, seria sempre parcial, só
possível por apreciações sempre incompletas. Para conhecê-los
mais, haveria que, deixando o tempo correr, acompanhá-los em
seus percursos no dá lá toma cá do mercado. Dificuldades somar-
se-iam a dificuldades.
Não seria, pois, rápido e fácil, por esse meio, vir a ter
uma boa imagem dos demais. Haveria casos em que seria mesmo
impossível qualquer conhecimento dos outros, ao menos nos
limites de um mínimo de certeza. Mas fato seria que, em suas
sucessivas aparições sociais como agentes de trocas, todos
estariam dando, em diferentes graus, condições para o
conhecimento de si mesmos por parte dos demais. O quanto
mostrariam de si dependeria de si próprios. Poderiam pautar-se
pela desconfiança e pouco revelarem si. Poderiam, também, ainda
que se pautando pela prudência, mas confiantes em um modo de
sociabilidade que valorizasse o conhecimento mútuo das pessoas,
fazer questão de se mostrarem no que julgassem ser suas
qualidades e entenderem até que mesmo seus defeitos devessem ser
postos à vista. Mostrar-se-iam uns aos outros, menos ou mais
completamente, conforme decidissem. Diferentes seriam os graus
de sua mútua exposição, conforme entendessem fossem as vantagens
ou desvantagens do expor-se aos demais. Poderiam ora optar por
uma exposição maior, ora por uma menor. Caberia a cada qual,
entender-se-ia talvez, respeitar a decisão do outro, ainda que
pudesse interferir sobre ela, pela contraposição com a sua
própria e seu próprio comportamento, mesmo pelo discurso
doutrinário ou por toda sorte de apelo racional ou ainda de
outra espécie. A cada momento, a cada relação, poder-se-ia estar
discutindo o efeito do comportamento particular de cada um sobre
o conjunto todo dos relacionamentos de todos, uns e outros,
todos eles, com seu próprio modo de comportar-se determinando o
modo de comportar-se dos demais. Talvez assim chegassem até a
uma definição mais ou menos fixa de um modo de ser coletivo,
definindo suas maneiras de exposição mútua ou de velamento
recíproco por meio de definições mais precisas, aquelas de um
sistema ético para isso elaborado. Como quer que fosse, suas

213
relações não seriam deixadas por conta de determinações que não
aquelas que a partir de si mesmos, por si mesmos e para si
mesmos estabelecessem.

Desprezo e cegueira

Voltemos ao ponto em Marx: como poderia ele entender que as


mercadorias se igualariam em sua permuta se, mesmo para ele, só
por sua diversidade seriam trocadas? Observemos ainda as trocas.
Ao trocarem suas mercadorias, as pessoas diriam umas valerem as
outras. Ora, não diriam, assim, que seriam mesmo iguais e nisso
não se estaria desconsiderando sua diversidade? Diria um que sua
mercadoria valeria a do outro; o outro o mesmo diria. Quem
trocasse seu casaco por algum tecido diria seu casaco valer o
tecido ou o tecido valer o seu casaco; que o seu casaco lhe
propiciara o tecido, que teria valido desfazer-se de seu casaco
pelo tecido. Nisto, não haveria tido o casaco como igual ao
tecido? Não teria desprezado as específicas qualidades do
casaco; não haveria visto nele, casaco, só o tecido e suas
qualidades? Por meio da troca reduziria, de fato, o casaco ao
tecido. E o tecido, não teria valido o casaco, mesmo que só o
desfazer-se dele? A troca entre o casaco e o tecido, diz Marx,
poderia ser expressa por um simples a = b, nessa igualdade
negando-se propriamente toda diferença entre eles.
Mas observemos mais uma vez e com mais atenção ainda as
relações de troca a ver se de fato assim, propriamente assim, se
acaso só assim ou não assim, ou de que outras maneiras, os bens
transacionados poderiam nelas ser encarados. Trocar-se-iam duas
mercadoria, a e b; A e B trocá-las-iam. A e B, ao utilizarem
respectivamente a e b para troca teria com elas uma relação que
se poderia dizer negativa. Utilizando-as para troca, separar-se-
iam delas, esgotando-se definitivamente as possibilidades de sua
utilização por si mesmos. Os interlocutores das relações de
mercado apresentar-se-iam como estando em relação negativa com
suas próprias mercadorias. Usá-las para troca constituir-se-ia

214
em um último uso que fariam delas. Nesse uso derradeiro, a
mercadoria a acabaria por valer a mercadoria b para A e a
mercadoria b acabaria por valer a mercadoria a para B. Mas assim
— observe-se uma vez mais — nenhuma das duas mercadorias teria
valido o mesmo que a outra; as duas, distintas, teriam valido
coisas também distintas; coisas distintas para indivíduos
distintos: a teria valido b para A e b, a para B. Se
considerássemos adequadas expressões de simples igualação, para
reportar-se a tais fatos, talvez disséssemos:

mercadoria a = mercadoria b (para o indivíduo A)

mercadoria b = mercadoria a (para o indivíduo B)

A mercadoria a teria valido a mercadoria b, para o


indivíduo A, e a mercadoria b teria valido a mercadoria a, para
o indivíduo B. Diríamos a = b e diríamos b = a; não diríamos, no
entanto, simplesmente uma coisa ou outra, pois as expressões
seriam irredutíveis uma à outra, visto que cada uma das duas
teria sua validade dada em relação a pessoas distintas: a teria
sido igual a b, para A e não para B, e b igual a a, para B e não
para A. Cada uma das expressões de simples igualdade estaria
reportada a um sujeito exclusivo, sendo verdadeira só nos termos
desse reportar-se; não podendo um reportar-se a um ser
transferido a um reportar-se a outro. Não haveria entre a e b
igualdade no que teriam valido na troca para um mesmo sujeito ou
para ambos os sujeitos. Mesmo que acaso recorrêssemos a
expressões de simples igualdade para nos referirmos à sua troca,
não poderíamos ali as ver como sendo dadas com o mesmo valor,
pois, na verdade, se assim quiséssemos fazer, necessitaríamos,
não de uma única, mas de duas expressões de igualdade
(a = b e b = a), uma distinta da outra, irredutíveis entre si.
Não haveria em cada uma das duas expressões uma reversibilidade
de termos necessária para que uma fosse redutível à outra. O
sinal de igual presente em uma e outra das expressões estaria

215
ali por dizer igualmente ”valer“, mas em uma esse ”valer“ seria
um ”valer para A“ e em outra um ”valer para B“. E o que valeria
para A não valeria para B, o que valeria para B não valeria para
A.
Duas mercadorias poderiam, sim, vir a se mostrar como tendo
o mesmo valor de troca; mas para isso, haveria que se pensar, na
verdade, em uma terceira relação, além das duas em que
inicialmente as mercadorias teriam mostrado seu valor. Se a
mercadoria a se mostrasse como tendo seu valor de troca dado
pela mercadoria b, se o que em uma troca valesse fosse a
mercadoria b; e se ocorresse também que uma outra mercadoria,
uma mercadoria c, viesse a se mostrar como valendo na permuta a
mesma mercadoria b que a a teria valido, poderíamos dizer que a
mercadoria a e a mercadoria c teriam valido o mesmo, pois tanto
a a como a c teriam valido a mesma b; isto, no entanto, só por
meio de uma terceira relação que deduziríamos das duas
primeiras. Se 1 casaco houvesse sido permutado por um par de
calçados e se x metros de tecido também o tivessem sido,
mostrar-se-ia nessas duas relações que existiria uma terceira
relação, nem a do casaco com os calçados, nem a do tecido com os
calçados, mas uma outra, a do casaco com o tecido, onde estes se
mostrariam imediatamente como sendo de um mesmo valor. Nas
relações do casaco e do tecido com os calçados mostrar-se-ia que
1 casaco e x metros de tecido valeriam uma mesma coisa: um e
outro teriam valido os mesmos calçados. Deduziríamos, então, que
um valeria o outro.

1 casaco = 1 par de calçados

e também

x metros de tecido = 1 par de calçados

De onde:

1 casaco = x metros de tecido

216
Diríamos tal coisa talvez; mas com o que só se estaria
querendo mostrar que se 1 casaco houvesse valido 1 par de
calçados e se x metros de tecido houvessem também valido 1 par
de calçados, 1 casaco e x metros de tecido ter-se-iam igualado
no que teriam valido. Ter-se-ia notado, e com as expressões
anotado, que o casaco se haveria mostrado igual ao tecido ou
como valendo o mesmo que o tecido, pois, teria valido os mesmos
calçados. O tecido, igualando-se com os calçados, igualar-se-ia
ao casaco, porque também o casaco com os calçados se igualaria.
Casaco e tecido, apesar de sua patente diversidade igualar-se-
iam. Assim apreciando-se os fatos, poder-se-ia desprezar,
talvez, as distinções entre o casaco e o tecido. Do ponto de
vista de quem acaso a ambos tivesse utilizado para a aquisição
de calçados, teriam valido o mesmo.
Porém as expressões 1 casaco = 1 par de calçados, x metros
de tecido = 1 par de calçados e 1 casaco = x metros de tecido
precisariam ser pensadas em função dos fatos concretos a que se
reportariam, ou seja, em relação ao que poderiam ter sido as
efetivas relações entre o casaco, o tecido e os calçados, na sua
específica concretude e no necessário reportar-se desses bens a
seus respectivos possuidores. Para isso imaginemos que o próprio
Marx em suas agruras econômicas, por desventura, algum dia,
acaso, tivesse sido obrigado a trocar o casaco de seu uso por um
par de calçados. Talvez tivesse ficado impossível para ele
continuar a insistir no uso de velhos e surrados calçados, tendo
que substituí-los por novos; ainda que só houvesse podido fazê-
lo especificamente em troca de seu velho casaco, a que muito se
afeiçoara ao longo dos anos. Se assim fizesse, acaso pudesse ter
vindo a sentir falta do velho casaco de que teria sido obrigado
a se desfazer em troca de nova proteção e conforto para seus
pés. Consolara-se, no entanto, de pronto, pois disporia já, de
um bom tecido que sua querida Jenny, consumindo suas próprias
economias, comprara-lhe para a confecção de um novo abrigo e
zelosamente guardara à espera de quando fosse possível também
gastar com seu feitio. Acreditara talvez Marx que em breve o
tecido que lhe presenteara Jenny propiciar-lhe-ia um novo e
aconchegante casaco. Na oportunidade, acaso houvesse mesmo

217
percebido que também o tecido que sua mulher comprara poderia
vir a proporcionar-lhe os calçados: trocar-se-ia também o tecido
pelos calçados de que precisava. Acaso quem tivesse os calçados
de seu desejo também o tecido de Jenny aceitasse em sua troca.
Mas preferira Marx desfazer-se do casaco e não do tecido, pois
imaginava já, do novo tecido, um novo casaco, mais elegante do
que aquele de que se desfazia; ou quiçá pensaria que assim
agradaria mais a quem tanto amava. Mas podemos imaginar que em
algum momento tanto casaco como tecido teriam sido cogitados por
Marx como coisas que lhe valeriam os calçados de sua carência.
Teria talvez visto tanto em seu casaco como em seu tecido a
mesma possibilidade de vir a ter os calçados; e, assim, tendo as
vistas nos calçados, casaco e tecido lhe poderiam ter parecido
um tão bom como o outro. Com as vistas nos calçados, Marx não
teria visto no casaco e no tecido senão uns mesmos calçados. Por
sua necessidade de calçados, seu casaco e seu tecido teriam sido
desprezados em suas qualidades diferenciadas, perdendo mesmo o
casaco a distinção especial que pudesse ter se agaloado ou o
tecido se da mais pura e melhor lã. Por um momento, teria Marx
talvez visto o casaco e o tecido como sendo um tão bom quanto
outro porque só nos sapatos estaria interessado, só nestes vendo
algum bem. A necessidade dos calçados tê-lo-ia cegado em relação
às qualidades específicas do casaco e também àquelas do tecido.
A necessidade e o interesse pelos calçados teriam feito com que
casaco e tecido passassem a ser vistos como se nada lhe valessem
a não ser como meios de troca para a obtenção dos calçados; suas
qualidades para todos os outros usos que não esse teriam sido
desprezadas. Mas de que se trataria então? Na verdade e
propriamente seria só de uma espécie de cegueira, de um não ver.
Marx teria deixado de ver o casaco e o tecido naquilo que
propriamente seriam, em sua objetividade sensível e em tudo o
mais que pudessem significar naquilo que tivessem de únicos.
Fato, sim, possível essa cegueira, mas não havendo como
confundi-la com o comportamento necessário e obrigatório de
todos os partícipes das relações de troca, e mesmo acaso
impossível ao próprio Marx. A indiferença de Marx em relação a
trocar o casaco ou o tecido pelos calçados, acaso tivesse

218
existido, haveria mesmo de ser necessariamente desfeita. Não
haveria como ser diferente. Marx acabaria ou por trocar seu
casaco pelos calçados, e não o tecido que Jenny lhe presenteara,
ou o tecido de Jenny e não o casaco. Faria uma coisa e não
outra; se uma, não outra. Optaria necessariamente e, para sua
opção, haveria de pensar nas específicas qualidades do casaco e
também naquelas do tecido, no que em si mesmos fossem e do que
estivessem impregnados no seu reportar-se às pessoas, e, a
partir disso, na significação do despojar-se de um ou outro. Ao
optar, fosse por uma coisa ou outra, teria necessariamente de
ter levado em consideração as qualidades distintivas do casaco e
do tecido para a satisfação de suas carências e a felicidade ou
tristeza de si mesmo e de quem mais amasse. Talvez não fosse de
fato sem algum sofrimento que acabasse por se desfazer de seu
velho casaco, tanto se afeiçoara a ele; mas talvez já pensasse,
como cogitamos, em um novo e mais elegante abrigo que o tecido
do presente de sua mulher lhe poderia propiciar; acrescentando-
se ainda a isto a alegria daquela. Mas fato possível é que, em
um certo momento, casaco e tecido poderiam só ter interessado a
Marx tendo em vista os calçados. Talvez nessa oportunidade
tivesse ele também lembrado de Barbon dizendo que cem libras
esterlinas de chumbo ou de ferro valeriam tanto quanto cem
libras esterlinas de ouro ou de prata. Haveria, efetivamente,
como se vir a pensar assim, desprezando-se todas as qualidades
específicas de chumbo, ferro, prata ou ouro, ou então aquelas de
casaco e tecido. Trocando acaso casaco por calçados, só nos
calçados estaria interessado; da mesma forma, trocando tecido
por calçados, só também nos últimos estaria interessado;
entendendo até mesmo que o casaco e o tecido trocados pelos
calçados não se distinguiriam entre si como também não seriam
diferentes de qualquer outra coisa que pudesse vir a propiciar
os mesmos calçados. As qualidades do casaco ou aquelas do tecido
não importariam a quem assim os utilizasse; desprezá-las-ia,
considerando-as iguais às qualidades de qualquer outra coisa que
valesse o mesmo como meio de troca. Nada valeria o casaco, senão
os calçados; nada também valeria o tecido ou o que quer que
fosse que pudesse proporcionar os mesmos calçados, senão mesmo

219
tais calçados. Desprezadas estariam as qualidades próprias do
casaco, do tecido e de tudo mais, face ao interesse pelos
calçados. Mas, ora, seriam essas qualidades, as qualidades
próprias do casaco e do tecido e do que mais pudesse valer os
calçados, que estariam interessando a quem, do outro lado da
relação, estivesse oferecendo os calçados. Talvez só nelas, nas
qualidades do casaco e do tecido, pensasse, por exemplo, o
possuidor dos calçados desejados por Marx; só por elas ao menos
entregaria seus calçados. Desprezá-las por parte de Marx seria,
na verdade, desconsiderar o interesse de quem esperaria que lhe
cedesse os calçados, a razão pela qual este, por seu lado, teria
vindo a colocar-se em uma relação de troca com Marx. Talvez
mesmo como Marx, quem se postasse frente a ele com os calçados
como seu meio de troca estivesse também os desprezando como
valores uso, pouco se importando como Marx viria a calçá-los,
tal qual Marx desprezaria seu casaco e tecido, vendo-os já como
objetos de um consumo que não o seu próprio. Interessar-se-iam,
um como também o outro, somente pelo que pudessem obter por meio
de seus bens; um, pelo casaco ou tecido que poderia vir a ter
por meio de seus calçados; outro, pelos calçados que poderia
conseguir por meio de seu tecido ou casaco. Quem tivesse os
calçados desejados por Marx poderia estar desprezando também o
seu valor de uso para Marx, interessando-se somente pelo valor
de uso para si mesmo do que tivesse Marx. Estaria tão pouco
interessado na pessoa de Marx, como Marx na dele. Um e outro
estariam pouco se importando com o outro, desprezando os dois as
qualidades dos bens que deveriam servir ao outro em seu uso. O
que a cada um importaria seriam só as específicas qualidades do
bem do outro, exatamente aquelas que também aquele desprezaria
no recíproco desinteressar-se pelo outro. Todos estariam sendo
desprezados pelos demais em seus interesses e necessidades.
Ilusório, esse entendimento do que seriam as relações de
troca, pois para que um bem qualquer viesse a se mostrar como
útil enquanto meio de troca seria preciso que também se
mostrasse como objeto de efetiva utilidade. Para que algo viesse
a ser trocado, precisaria mostrar-se em sua utilidade: só por
ela seria desejado e só assim poderia vir a servir como meio de

220
troca. Verdade que as qualidades com que poderia apresentar-se
nem sempre precisariam ser reais. O possuidor dos calçados em
que tinha as vistas Marx só os entregaria em troca de seu velho
casaco em que, por sua vez, aquele teria as vistas. Só por seu
casaco mostrar-se como podendo prestar seu serviço é que Marx
poderia conseguir os calçados desejados. Mas a apreciação do
casaco de Marx por parte do outro talvez não viesse a ser das
melhores. Acreditando a princípio que poderia vir a agasalhar-se
com ele, acabaria por perceber que mesmo vistoso, não lhe vestia
bem, apertava-lhe aqui e ali, tolhendo-lhe a liberdade de
movimentos. Para uso em suas atividades diárias, em função do
que se interessara por ele, não lhe serviria. Mas então já teria
por ele trocado seus calçados e por mais que lamentasse não
haveria como dar por não feito o feito. Acaso assim teria
acontecido. Teria bastado a Marx que seu casaco, sem que de fato
pudesse agasalhar o outro, tivesse como tal se mostrado e por
esse engano haver bem lhe prestado o serviço da aquisição dos
calçados de que necessitava. Meramente por ter aparentado
qualificação, sem que a tivesse de fato, seu casaco prestar-lhe-
ia um serviço. Sim, haveria engano e mesmo engodo. Mas, ainda
que em falsidade, o casaco teria de ter-se mostrado como útil ao
outro. O serviço ao possuidor dos calçados seria condição para
que o casaco por eles se trocasse. Não haveria como apresentar-
se nas trocas senão na condição do serviço, com um bem que se
apresentasse na condição de prestar um serviço. Poderia alguém
enganar e iludir. Mas quer fosse para que viesse efetivamente
prestar um serviço, quer só para iludir, dizendo que o prestaria
quando na verdade não, não haveria nunca como as qualidades de
um bem em seu valor de uso serem desprezadas — fossem reais ou
só imaginárias. Já antes discutimos isto.
Haveria quem, no intercurso das trocas, se distanciasse da
verdade. Haveria mesmo quem o fizesse até em desacordo com seus
próprios interesses. As relações de mercado poderiam ser assim
estabelecidas em desconhecimento e desprezo dos interesses em
jogo, mesmo os próprios. Poderia ser assim, mas, mais uma vez,
não seria necessário que assim fosse. Por que haveria de sê-lo,
sendo mesmo do interesse de cada qual interessar-se pela

221
satisfação da demanda do outro, mesmo que só para iludi-lo? Por
que haveria de ser em desprezo da qualificação de todos os bens
como meios de troca que as relações de mercado se
estabeleceriam, se só mesmo como um valor de uso para outro,
real ou aparente, um bem poderia vir a ter algum valor para
troca? Vendo-se em algo um valor para troca, nele nada mais se
vendo do que a possibilidade de obtenção de algo mais, para que
assim prestasse seu serviço — para que fosse útil como meio de
troca, valor de troca —, seria preciso que, por outro lado,
alguém visse nesse mesmo bem algo que lhe fosse objeto de
utilidade, valor de uso. Se um bem não se apresentasse como
objeto útil para outrem, ele não poderia servir a ninguém como
meio de troca. Seria mesmo do interesse de todos que seus bens,
enquanto meios de troca, se apresentassem, ainda que só
ilusoriamente, como podendo prestar como valores de uso efetivos
serviços aos demais. Por que, então, desinteressar-se por suas
qualidades enquanto tais?

De que nos valeriam os valores

Insistamos no questionamento. Se dois bens diferentes se


mostrassem como sendo igualmente capazes de valerem um terceiro,
transação econômica de troca realizada, ato completo, haveria
ainda como considerar alguma distinção entre eles? No que teriam
valido enquanto valores de troca não teriam efetivamente se
igualado do ponto de vista de quem deles tivesse feito
exclusivamente tal uso? Um e outro teriam propiciado por meio da
troca uma mesma coisa, teriam valido na troca uma mesma coisa.
Por isso, não poderiam ser ditos iguais enquanto valores de
troca, um tendo sido tão bom como o outro? — Não, na verdade não
— tornemos a insistir —, pois já de início, ainda que tivessem
valido uma mesma coisa, para que o fizessem, seria preciso que
se tivessem feito valer também em sua distinção como valores de
uso. O casaco ou o tecido poderiam ter vindo a valer o mesmo
para Marx, propiciando-lhe igualmente os calçados; mas, para que

222
assim houvesse sido, o casaco teria se mostrado e feito valer em
suas específicas qualidades de uso, reais ou imaginárias; e o
mesmo haveria de ter feito o tecido, se ele e não o casaco,
acaso, tivesse Marx trocado pelos calçados. Acreditar que o
casaco ou o tecido pudessem ter valido os mesmos calçados em
desconsideração de suas específicas e distintivas qualidades
como valores de uso seria mesmo um engano. Um ou outro podendo
ter vindo a valer os calçados, alguém poderia deixar de
considerar que só o teriam feito por se terem mostrado e feito
valer em suas específicas qualidades para uso. Sempre se poderia
desconsiderar porque algo teria sido capaz de nos prestar um
determinado serviço. Servir-nos-íamos das coisas e depois as
desprezaríamos. Sim, poderia ser assim. Mas, mais uma vez,
tratar-se-ia de não ver, não de ver. Seria, sim, possível não
ver; mas não seria a partir de não ver que se poderia agir com
segurança, menos ainda constituir uma ciência e, com ela,
contribuir para a boa constituição de uma sociedade.
Em determinadas circunstâncias poderia haver quem, ao
utilizar-se de um bem como mero meio de troca, não levasse em
consideração as suas qualidades como valor de uso. Não sendo
tomado como objeto de uso para seu possuidor imediato, este não
se importaria com suas qualidades como objeto de utilidade no
consumo; pois o consumo em questão não seria o seu próprio, mas
de uma outra pessoa. O que unicamente importaria ao primeiro
seria que por meio de seu bem viesse a obter um outro, este sim,
não o outro, importando como objeto de seu desfrute. Mas tal
desprezo pelas qualidades dos valores de uso enquanto servissem
como valores de troca seria, bem na verdade, ilusório. Mesmo
como meros meios de intercâmbio, os bens que se pretendesse
trocar teriam de ser encarados levando-se em consideração suas
qualidades como objeto de uso, pois só por se mostrarem com tais
qualidades — em verdade ou ainda que só em falsidade — poderiam
ser objeto de alguma demanda e, enquanto tais, vir a poder
funcionar como meios de aquisição de outros bens. Só como
valores de uso poderiam vir a ser valores de troca. Não haveria
como desprezar os valores de uso nas relações de troca. Se
desprezados por quem os alienasse, estariam sendo considerados

223
por quem os adquirisse. Por que outra razão se haveria de
adquiri-los, por que outra razão em troca deles se daria alguma
coisa? Em cada transação, cada qual, mesmo que desprezando um
dos valores de uso, ao se desfazer dele, valorizaria o outro ao
adquiri-lo.

O ofertante precisaria ter em vista o demandante, sua


demanda; só a satisfazendo, seu pretenso meio de troca poderia
vir a funcionar enquanto tal. Os interlocutores de mercado
teriam necessariamente, pois, de cuidar para que os bens que
ofertassem fossem, ou ao menos aparentassem ser, valores de uso
para os seus demandantes, os ofertantes dos bens que, por sua
vez, desejassem. Sendo obrigados a isso, acabariam por se
definir em função dos meios que, para tal, utilizassem, como
antes consideramos. Quaisquer que fossem os meios pelos quais
viessem a ter a posse dos bens que viriam utilizar como meios de
troca, teriam de dedicar-se a fazê-lo. Nisto, não haveria como
deixarem de ter a sua atividade determinada pela natureza
específica de tais bens em sua específica natureza de valores de
uso determinados. Haveria que se cuidar deles no que dissesse
respeito à sua obtenção — haveria que se tomar posse deles,
produzi-los, vir a adquiri-los —, como também haveria que se
cuidar deles no que se relacionasse às condições gerais de sua
colocação em disponibilidade para as transações de troca. Nas
atividades pertinentes ao virem a ter em mãos e à transação de
seus bens para troca acabariam todos por encontrar definições
para suas próprias pessoas. A cada caso, uma pessoa definir-se-
ia por suas práticas, por seus hábitos. De uma forma ou de
outra, mas sempre de uma forma determinada, o ofertante definir-
se-ia por sua oferta.

E, mesmo que considerássemos só o aspecto privativo na


alienação de um bem; com ela, tratar-se-ia sempre de dar
determinações a si próprio. Ao separar-se de alguma coisa quando
trocada por outra, definir-se-ia também a pessoa, um conjunto de
características individuais e um específico modo de vida. Ainda
que a relação que se viria a ter com um bem que se utilizasse
como mero objeto de troca fosse sempre marcada pela
negatividade, essa negatividade possuiria sempre uma contraface

224
positiva. Não só pela posse dos bens, definir-se-iam as pessoas;
definir-se-iam também por sua privação. Ao se escolher algo como
objeto a ser tratado negativamente como valor de troca na
permuta por algo mais não haveria, pois, como tratá-lo como
objeto de um simples e mero desprezo. Haveria sempre algo que
ele representaria, quer por sua posse quer por sua privação.
Ofertantes e demandantes, demandantes ao mesmo tempo que
ofertantes ou ofertantes ao mesmo tempo que demandantes: tal
seriam as pessoas nas relações de troca. Uma de suas faces, a
face da demanda; outra, a da oferta. Mostrar-se-ia cada qual por
uma oferta sempre acompanhada de um demanda, uma e outra
igualmente condição de ali se darem uns aos outros à presença.
Uns e outros, todos, como demandantes se afirmariam pelas
escolha do que lhes seria um bem, com o que dariam uma feição
peculiar a si próprios e a suas vidas. Só por isso entrariam em
uma relação de troca. Todos também, como ofertantes, por outro
lado, definir-se-iam pela natureza específica do bem ofertado,
pelos cuidados de vir a tê-lo em mãos e de devidamente sustentá-
los no intercurso das trocas. Definir-se-iam também por isso,
pela escolha do que considerassem devesse ser o bem de sua
oferta, como já o fariam pela escolha do que seria o bem de sua
demanda. Dariam definição a si mesmos por sua oferta e também
por sua demanda. Como quem o fizesse, uma coisa e outra
fizessem, definir-se-iam nas trocas; tal qual, lá se mostrariam.
Desconsiderar a efetiva presença dos bens nas relações de troca,
em sua específica qualificação como objetos de utilidade, seria
mesmo não ver, não ver a si mesmo e aos outros; talvez um a si
mesmo ver ilusória e presunçosamente, em desprezo de tudo e de
todos. Só em relação às pessoas, no que definiriam sua
utilidade, os bens transacionados poderiam ser ditos valores.
Seriam valores porque deles se serviriam as pessoas como seus
meios, meios de seu uso; um, o uso para seu próprio consumo;
outro, o uso para troca. Tratar-se-ia, na verdade sempre de um
uso. Dar-se-iam os bens nas trocas como objetos de nosso uso;
por um lado, um uso para consumo; por outro, um uso para troca.
Só como tais, como objetos de nosso uso, ainda que utilizados
também para o uso da troca, apresentar-se-iam os bens nas

225
relações de troca. Enquanto tais far-se-iam valer só porque nós
nos valeríamos deles para a nós mesmos darmos o nosso valor.
Faríamos isso pela posse de algo desejado por outro —
apresentar-nos-íamos ao outro como o sujeito do objeto de seu
desejo —; já mesmo pela relação com o objeto de nossa posse —
nisto nos definindo como pessoa determinada, uma e não outra,
pelo nosso relacionar-se específico com as qualidades do bem de
nossa posse —; e daríamos definição ao nosso próprio valor, ou
diríamos o quanto e o que valeríamos, ao dizermos o que seria
objeto de nosso desejo, o que nos faltaria ou do que seríamos
carentes para nossa completude como pessoas.

De volta a Marx e à sua necessidade de um terceiro termo

Abstraindo as pessoas e os bens em sua existência de fato


da expressão que procura dar às troca de mercado, Marx formula
algo que, na verdade, a nada diz respeito. As mercadorias só
poderiam estar presentes em uma relação de troca como objetos de
utilidade — úteis para consumo próprio e úteis também para serem
trocadas —, reportadas, pois, a quem estariam sujeitas na
prestação desses dois serviços. Não haveria como deixar de vê-
las, em sua função mesma de meios de troca, também como objetos
de utilidade para o consumo. Só por isso que uns iriam à procura
dos outros e estabeleceriam entre si relações de intercâmbio
mercantil. Ainda que se entendesse que nas trocas os indivíduos
só se fizessem presentes por meio de suas mercadorias, assim
mesmo, essa presença seria propriamente uma face sua. As
mercadorias lá estariam definidas como coisas deles, de cada um
deles: uma, meio de troca deste, não daquele, e meio de consumo
daquele e não deste; outra, meio de troca daquele, não deste, e
meio de consumo deste e não daquele. Espelhar-se-iam as pessoas
nas mercadorias intercambiadas; far-se-iam presentes por esse
espelhamento. E mais, como vimos, as pessoas poderiam mesmo
estar junto de suas mercadorias — às vezes lá estariam

226
necessariamente — revelando a si mesmas naquilo que seriam e no
como se entenderiam.
A supressão dos indivíduos na expressão de Marx talvez não
retirasse dela toda verdade se, as pessoas, ainda que não dadas
nos termos da própria expressão, sempre fossem de fato supostas.
Mas, estando supostas, não haveria porque se procurar por uma
substância abstrata qualquer de valor nas mercadorias lá
igualadas, pois ali seus valores, quer fossem os de uso ou os de
troca, só poderiam ser entendidos como estando definidos em seu
reportar-se àquelas: o valor da mercadoria a seria igual ao
valor da mercadoria b em termos de que — só assim — a mercadoria
a, enquanto instrumento de troca, valeria a mercadoria b como
objeto de consumo para o indivíduo A, assim como a mercadoria b,
enquanto instrumento de troca para o indivíduo B, valer-lhe-ia
como objeto de consumo a mercadoria a. Seriam as pessoas o que
de substancial haveria nas mercadorias, os sujeitos aos quais
estariam reportadas. Só nas pessoas encontraríamos o porquê das
mercadorias adquirem algum valor; só por elas as mercadorias
viriam valer umas as outras. Excluindo as pessoas de sua
expressão, Marx tem de ir mais longe à procura dos modos de
determinação do que viria a ser o valor das mercadorias. Há que
se procurar por aquilo que, estando diante dos próprios olhos,
não se vê.

227
V. O enigmático terceiro termo de Marx: primeiras dificuldades

. No que se igualariam as mercadorias


. A abstração do valor trabalho
. A medição do trabalho social corporificado nas mercadorias
. Falando-se uma coisa e dizendo-se outra
. Na desconsideração dos trabalhos produtores de valores de uso em
sua diversidade, não haveria como se constituir o conceito de um
trabalho humano em geral
. Um trabalho produtor de coisa nenhuma

No que se igualariam as mercadorias

Conforme Marx, a relação de troca entre duas mercadorias


poderia ser reduzida a um simples mercadoria a = mercadoria b.
As mercadorias a e b seriam objetos distintos. As propriedades
particulares dos valores de uso em que se constituiriam as
distinguiriam e seria mesmo por suas distinções que seriam
trocadas; mas, visto que igualadas, tudo o que existisse de
diferença entre elas deveria estar ali desconsiderado, havendo
algo pelo que, ao contrário, lhes desse tal condição de
igualdade. Para que se igualassem, haveria de se encontrar algo
distinto daquilo que as distinguiria:

”Tomemos duas mercadorias, por exemplo, trigo e


ferro. Qualquer que seja a proporção em que se troquem, é
possível sempre expressá-la com uma igualdade em que dada
quantidade de trigo se iguala a alguma quantidade de ferro,
por exemplo, 1 quarter de trigo = n quintais de ferro. Que
significa essa igualdade? Que algo comum, com a mesma

228
grandeza, existe em duas coisas diferentes, em l quarter de
trigo e em n quintais de ferro.“82

Só assim se poderia explicar o modo de relacionamento das


mercadorias conforme a simples expressão mercadoria a =
mercadoria b: encontrando-se algo comum, com uma mesma grandeza
que existiria em duas coisas diferentes.
À procura de algo comum que existiria em duas mercadorias
diferentes, o que poderia vir a igualá-las nas trocas conforme a
expressão de Marx, poderíamos talvez considerar que, já mesmo
como valores de uso, apesar de sua distinção e de só por ela
entrarem em uma relação de troca, já mesmo como tais, haveria
nelas uma propriedade em comum: teriam, elas todas, a
propriedade de serem objetos de utilidade83. Como valores de uso,
as mercadorias, valendo mesmo só por sua distinção e só por ela
vindo a serem trocadas, apresentariam uma qualidade comum:
todas, sempre distintas, seriam igualmente valores de uso. Uma
valeria como objeto de utilidade para isto, para certa pessoa;
outra valeria como objeto de utilidade para aquilo, para uma
outra certa pessoa. Uma e outra, sendo distintas, valendo para
coisas diferentes e para pessoas distintas, teriam, no entanto,
a propriedade comum de valerem a alguém para alguma coisa. Seria
mesmo como igualmente coisas úteis que estariam sendo trocadas.
Nas trocas, estariam igualmente dadas como valores para uso,
ainda que só porque distintas e, como tais, capazes de
satisfazer distintas necessidades de pessoas diferentes. Valer
para uso seria algo comum a elas, e tais quais mesmo, em sua
distinção, participariam de uma relação de igualdade segundo
Aristóteles. Para ele, igualizar-se-iam os bens em sua
diversidade e as pessoas que os permutariam em sua distinção
através da expressão mercadoria a / indivíduo B =
mercadoria b / indivíduo A. As mercadorias seriam dadas nas
relações de intercâmbio mercantil como objetos distintos e
demandadas em sua distinção por pessoas também distintas.

82
O capital, p. 43.
83
Para os modos de se dizer que as coisas seriam iguais: Aristóteles,
Metafísica 1015b-1017ª e 1017b-1018a.

229
Igualar-se-iam, no entanto, as duas demandas, a de um e outro
pela mercadoria do outro. Entre umas e entre outras, mercadorias
e pessoas, haveria sempre diversidade; só mesmo assim, tanto
umas como outras, encontrariam sua maneira de ser nas relações
de trocas. A mercadoria a, distinta da mercadoria b, seria
objeto de demanda do indivíduo B, diferente do indivíduo A; a
mercadoria b, distinta da mercadoria a, seria objeto de demanda
do indivíduo A, diferente do B; distintas as mercadorias e as
pessoas, igualar-se-iam as demandas de umas pelas outras, em
termos de que o valor que o valor de uso que uma das mercadorias
teria para uma das pessoas seria igual ao que, por sua vez, o
valor de uso da outra mercadoria teria para a outra pessoa.
Haveria uma equivalência, uma igualdade de valores de uma e
outra mercadoria, de um e outro valor de uso, para uma e outra
pessoa. Uma pessoa valer-se-ia de um valor igualmente a uma
outra que se valeria de um outro. Um e outro dos valores
envolvidos seriam valores de uso, só se fazendo valer mesmo em
sua diversidade de objetos úteis, valorados conforme a
diversidade de uma e outra pessoa. O quanto valessem sendo
distintos, valeriam, entretanto, o mesmo para as duas pessoas:
uma pessoa valoraria um o mesmo tanto que a outra valoraria o
outro. Na diversidade de uns e também das outras, receberiam os
primeiros a qualificação comum de serem objetos úteis ou valores
de uso. Ver-se-ia mesmo neles uma qualidade comum, a de valerem
para uso, sendo, no entanto, distintos o uso para que valeriam:
se não fossem dados como objetos distintos, e úteis para pessoas
distintas, não se trocariam. Ainda que igualmente valores de
uso, e só por isso trocados, não seria na simplicidade dessa
identidade genérica que se trocariam; ao contrário, só se
trocariam por sua diversidade, só em sua diversidade far-se-iam
presentes em uma relação de troca. Mas ora, com isto estaríamos
nos reportando à expressão que Aristóteles dá às trocas e não
àquela que Marx a elas dá.
Marx entende também que só como valores de uso diversos as
mercadorias seriam valores de troca ou valoradas para troca.
Para ele, as mercadorias relacionar-se-iam também a partir de
suas diferenças como valores de uso — seriam também as suas

230
diferenças como valores de uso que levariam a que fossem
trocadas —; mas, de modo distinto de Aristóteles, Marx entende
que, ao serem trocadas, as mercadorias participariam de relações
dadas pela simples fórmula mercadoria a = mercadoria b, e não
pela expressão mais complexa de Aristóteles indivíduo
A / mercadoria b = indivíduo B /mercadoria a. A expressão de
Marx para as trocas não é uma, como a de Aristóteles, envolvendo
quatro termos, dois bens e duas pessoas, e sim uma mais simples,
envolvendo meramente dois termos, exclusivamente os bens
intercambiados, não as pessoas que os intercambiariam. E, pondo-
se a analisar a expressão mais simples que dá às trocas, Marx
observa que nela não haveria como deixar de desconsiderar as
mercadorias como valores de uso, visto que, enquanto tais,
seriam objetos sempre distintos, não sendo, pois, possível como
tais igualá-los. Tendo em mente as trocas como uma simples e
imediata relação de igualdade entre duas mercadorias, considera
que estas não poderiam estar ali presentes como valores de uso.
Isto, entende Marx, seria mesmo evidente. Como valores de uso,
as mercadorias teriam de ser sempre dadas como distintas e como
tais não poderiam ser simplesmente igualadas. Não seria por suas
qualidades como valores de uso, só considerados em sua
diversidade, que as mercadorias poderiam vir a ser igualadas tal
como, entende ele, elas o fariam nas trocas. Não considera Marx
a possibilidade de se pensar as mercadorias como podendo
participar de uma relação de igualdade permanecendo propriamente
em sua distinção, como faz Aristóteles. Nos valores de uso, só
vê a distinção, não a qualidade que lhes seria comum e que o
próprio termo a lhes denominar genericamente lhes estaria
atribuindo, o fato de todos serem objeto de utilidade ou
simplesmente valores de uso.
E, não considerará ainda Marx outra possibilidade de se
pensar no que se igualariam as mercadorias. Não seria também por
uma outra qualidade que teriam em comum que poderiam ser
pensadas como sendo de alguma maneira iguais: aquela de serem
igualmente simplesmente valores de troca, sendo que em comum,
efetivamente, teriam também esta outra qualidade. Uma e outra
das mercadorias presentes em uma relação de troca seriam

231
igualmente valores de troca. Não estariam ali, então, igualadas
simplesmente enquanto tais? — Também como valores de troca as
mercadorias valeriam só por sua distinção: sapatos não se
trocariam com os mesmos sapatos. Uma mercadoria valeria para uma
certa pessoa como objeto de troca para a obtenção de disto;
outra valeria como objeto de troca para a obtenção daquilo, para
uma outra certa pessoa. Uma e outra, sendo distintas, valendo
para a troca com coisas diferentes e para pessoas distintas,
teriam, no entanto, a propriedade comum de valerem a alguém para
a troca com alguma outra coisa. Seria mesmo como igualmente
coisas úteis para a troca, como valores de troca, que estariam
sendo trocadas. Nas trocas, estariam igualmente dadas como
valores para troca, ainda que só porque distintas e, como tais,
capazes de satisfazer distintas necessidades de troca de pessoas
diferentes. Valer para troca seria algo comum a elas. Tais quais
mesmo, mas só em sua distinção, no entanto, participariam de uma
relação de igualdade. Isso também ficaria claro no modo de
pensar de Aristóteles, ainda que em sua expressão para as trocas
as mercadorias se apresentassem antes de tudo como valores de
uso ou objetos de demanda, e não como valores de troca ou meios
de troca; o que poderia causar alguma estranheza. Igualizar-se-
iam os bens em sua diversidade e as pessoas que os permutariam
em sua distinção, diz ele, através de uma expressão de
igualdade: mercadoria a / indivíduo B = mercadoria b / indivíduo A. A
mercadoria a seria objeto da demanda do indivíduo B e a
mercadoria b objeto de demanda do indivíduo A. Teríamos assim,
simplificando:

a / B = b / A

Por outro lado, considerando que as mesmas mercadorias a e


b serviriam como valores de troca, respectivamente para A e B,
seríamos levados a escrever:

mercadoria a / indivíduo A = mercadoria b / indivíduo B

232
A mercadoria a serviria de meio de troca para o indivíduo
A, assim como a mercadoria b serviria de meio de troca para o
indivíduo B. Com o que teríamos, novamente simplificando:

a / A = b / B

Expressão que seria diferente da expressão anterior:

(a / A = b / B) ≠ (a / B = b / A)

Mas ora, a mercadoria a, como meio de troca do indivíduo A,


valer-lhe-ia, para si valeria, a mercadoria b: a sua mercadoria
a, por meio da troca, valer-lhe-ia a mercadoria b ou viria a
significar vir a ter para si a mercadoria b. Da mesma maneira,
poderíamos dizer que a mercadoria b, como meio de troca do
indivíduo B, valer-lhe-ia, valeria para si, a mercadoria a: a
sua mercadoria b, por meio da troca, valer-lhe-ia a mercadoria a
ou viria a significar vir a ter para si a mercadoria b. Com o
que poderíamos escrever:

a / A = b / A

b / B = a / B

Tomando a expressão anterior a / A = b / B e nela


substituindo (a / A) por (b /A) e (b / B) por (a / B), teríamos
então:

b / A = a / B

Com o que estaríamos de volta à expressão primeira de


Aristóteles, dizendo que assim como a mercadoria b valeria para
o indivíduo A, a mercadoria a valeria para o indivíduo B; que a
demanda de A por b igualar-se-ia com a demanda de B por a:

A / b = B /a

233
Assim, as mercadorias seriam dadas nas relações de
intercâmbio mercantil como meios de troca recíproca distintos de
distintas pessoas. Distintos os meios de troca e as pessoas,
igualar-se-iam, no entanto, as duas demandas, a de um e outro
pelo meio de troca do outro como meio de consumo para si
próprio. Entre umas, as mercadorias, e entre outras, as pessoas,
haveria sempre diversidade; só mesmo assim, tanto umas como
outras, encontrariam sua maneira de ser nas relações de trocas.
A mercadoria a, distinta da mercadoria b, seria objeto de troca
do indivíduo A e objeto de demanda do indivíduo B, diferente do
indivíduo A; a mercadoria b, distinta da mercadoria a, seria
objeto de troca do indivíduo A e objeto de demanda do indivíduo
A, diferente do B; distintas as mercadorias e as pessoas, suas
ofertas encontrar-se-iam e suas demandas igualar-se-iam em
termos de que o valor que o valor de uso que o valor de troca
dos dois teria para outro seriam iguais. Haveria uma
equivalência, uma igualdade do que valeriam os valores de troca
como valores de uso para uma e outra pessoa. Uma pessoa valer-
se-ia de um valor de uso, objeto de troca do outro, igualmente a
uma outra que se valeria de um outro, objeto de troca da
primeira. Um e outro dos valores envolvidos só se fariam valer
em sua diversidade de objetos úteis, valorados conforme a
específica diversidade de uma e outra pessoa. O quanto valessem
sendo distintos, valeriam, entretanto, o mesmo para as duas
pessoas: uma pessoa valoraria um o mesmo tanto que a outra
valoraria o outro. Na diversidade de uns e também das outras,
receberiam os primeiros a qualificação comum de serem objetos
úteis para as trocas por serem úteis para o uso, e só vindo a
serem úteis para uso porque vindo a estar nas mãos de um e outro
por meio da troca. Ver-se-ia mesmo neles as qualidades comuns de
valerem para troca e para uso, sendo distintos o uso para que
valeriam, tanto quanto usados para troca, como quando usados
para uso. O valor de troca de um seria a aquisição do valor de
troca do outro, o valor do valor de troca deste a aquisição do
valor de troca do primeiro. O valor de uso deste seria aquele
para o uso deste indivíduo, o valor de uso daquele aquele para o
uso do outro indivíduo, um indivíduo diferente do outro. Ainda

234
que igualmente valores de troca e de uso, não seria, no entanto,
na simplicidade dessa identidade genérica que se trocariam. Ao
contrário, só se trocariam na diversidade; só em sua diversidade
far-se-iam presentes em uma relação de troca. A faria uso para a
troca de a, distinto de b, assim como B faria uso de b, distinto
de a.
Mas com isto tornaríamos à expressão de Aristóteles:
a / B = b / A. Para Aristóteles, relacionar-se-iam, as pessoas,
pelos valores, os valores, pelas pessoas. Não se igualaria nada
conforme uma simples expressão do tipo a = b: nem as pessoas,
nem os bens; ainda que pessoas e bens pudessem, sim, ser
considerados conforme as categorias genéricas de onde receberiam
sua comum denominação, nisso igualando-se, os bens como
igualmente valores, de troca ou de uso, as pessoas como
igualmente pessoas que intercambiariam seus bens. Marx, como
Aristóteles, insiste em que, se não fossem qualitativamente
diversas, duas mercadorias não poderiam de modo algum se
encontrar em uma relação de troca: se não fosse por sua
diversidade, não se trocariam. Mas não seria por sua diversidade
que poderiam vir a se igualar conforme a fórmula de Marx
mercadoria a = mercadoria b. Sustentando a validade de sua
fórmula, Marx pergunta, então, como as mercadorias a e b, sendo
distintas, poderiam ali igualar-se? Seriam distintas como
valores de uso, mas entende Marx, como valores de troca, ao
contrário, igualar-se-iam. Igualar-se-iam, no entanto, de uma
maneira peculiar, não na simples generalidade dos valores.
Igualar-se-iam mantendo-se na forma diversa de seus valores de
uso. A diversidade de termos na sua fórmula acusá-lo-ia: um a
mercadoria a e outro a mercadoria b, valores de uso distintos.
Mesmo ali, no entanto, negar-se-ia essa diversidade.
Apresentadas ali como valores de uso distintos, ali mesmo, as
mercadorias se igualariam como valores de troca. Sem que
deixassem de se apresentar como coisas distintas, só mesmo como
tais ali presentes, mesmo ali, igualar-se-iam. Para Marx, seria
propriamente o que estaria mostrando sua expressão: o fato de
valores de uso distintos estranhamente se igualarem como valores
de troca. Ainda que ali se apresentassem sob a figura de valores

235
de uso em sua diversidade, relacionar-se-iam não como tais e,
sim, como valores de troca, estes estranhamente se igualando.

A abstração do valor trabalho

Marx insiste em que, como valores de troca, as mercadorias


se igualariam em desprezo de sua diversidade como valores de
uso. Mas de que modo se igualariam as mercadorias como valores
de troca, visto que ali mesmo, em sua fórmula mesmo, mostrar-se-
iam como distintas, uma se apresentando como sendo a mercadoria
a e outra a mercadoria b? Sua distinção, considera Marx, diria
respeito exclusivamente à sua diversidade como valores de uso.
Apresentando-se na diversidade da figura de seus valores de uso,
haveria de se encontrar, na própria figura de seus valores de
uso, algo que as pudesse igualar, alguma qualidade que lhes
fosse comum ou de que igualmente participariam. Esta, para ele,
não seria, no entanto, a simples qualidade de uma e outra serem
valores de uso e de ali serem também igualmente valores de
troca, mas algo a que, na figura mesma de seus valores de uso,
lhes poderia ser atribuído em comum. Pergunta qual seria o
significado da igualação das mercadorias na figura de seus
valores de uso:

”Que significa essa igualdade? Que algo comum, com a


mesma grandeza, existe em duas coisas diferentes, em um
quarter de trigo e em n quintais de ferro. As duas coisas
são portanto iguais a uma terceira que por sua vez delas
difere. Cada uma das duas, como valores de troca, é
reduzível, necessariamente, a essa terceira.“84

Dada sua resposta, procura de imediato ser mais claro


através de um exemplo:

84
O capital, p. 43.

236
”Evidencia-se isto com um simples exemplo geométrico.
Para determinar e comparar a área dos polígonos, decompomo-
los em triângulos. O próprio triângulo pode converter-se,
também, numa expressão inteiramente diversa de sua figura
visível — a metade do produto da base pela altura. Do mesmo
modo têm os valores de troca de ser reduzíveis a uma coisa
comum, da qual representam uma quantidade maior ou
menor.“85

Haveria que se prescindir das específicas qualidades das


mercadorias como valores de uso para encontrar o que lhes fosse
comum como valores de troca; ainda que, como valores de troca,
só se apresentassem como valores de uso:

”Essa coisa comum não pode ser uma propriedade das


mercadorias, geométrica, física, química ou de qualquer
outra natureza. As propriedades materiais só interessam
pela utilidade que dão às mercadorias, por fazerem destas
valores de uso. Põem-se de lado os valores de uso das
mercadorias, quando se trata da relação de troca entre
elas. É o que evidentemente caracteriza essa relação. Nela,
um valor de uso vale tanto quanto outro, quando está
presente na proporção adequada. Ou como diz o velho Barbon:

”Um tipo de mercadoria é tão bom quanto outro,


se é igual o valor de troca. Não há diferença ou
distinção em coisas de igual valor de troca.“

Como valores de uso, as mercadorias são, antes de


mais nada, de qualidade diferente; como valores de troca,
só podem diferir na quantidade, não contendo portanto
nenhum átomo de valor de uso.“86

85
O capital, p. 43-4.
86
O capital, p. 44. Não parece apresentar maiores dificuldades o fato
de que Marx considere aqui as mercadorias só como objetos matérias.

237
E, ato contínuo, afirma Marx, a qualidade que seria comum
às mercadorias como valores de troca — que não aquela de
simplesmente serem valores de troca ou mesmo aquela de também
simplesmente serem valores de uso na figuração em que ali se
apresentariam —, essa qualidade que lhes seria comum, afirma
Marx — simplesmente postula —, seria aquela de serem todas,
igualmente, resultado de trabalho. Ainda que objetos distintos,
todas as mercadorias seriam igualmente produtos de algum
trabalho.

”Se prescindirmos do valor de uso da mercadoria, só


lhe resta ainda uma propriedade, a de ser produto do
trabalho.“87

Além das propriedades específicas das mercadorias como


valores de uso só lhes restaria a qualidade ou propriedade de
serem produtos de algum trabalho, propriedade que lhes seria
comum e no que poderiam igualar-se ao modo de uma simples
fórmula do tipo a = b. Tratar-se-ia de um terceiro termo a dar
razão à expressão das trocas pela simples igualdade mercadoria a
= mercadoria b. À procura de algo que pudesse explicar o que
seria a igualação das mercadorias nos termos dessa simples
igualdade, Marx entende, então, que, apesar de sua diversidade
como valores de uso, elas todas seriam sempre produtos de
trabalho. Nisto haveria algo a que reduzi-las para que se
estabelecesse uma simples relação de igualdade entre elas.
Mas, observe-se, por uma única qualidade comum, qualquer
que fosse, não poderíamos dizer, ao menos muito simplesmente,
que duas mercadorias se igualassem. Só se igualariam
propriamente se tivessem em comum o conjunto todo de suas
qualidades. É verdade, no entanto, que, por uma só ou só por
algumas de suas qualidades, duas mercadorias, ainda que
propriamente distintas, em determinadas circunstâncias, pudessem
vir, sim, a ser dadas como iguais; isto se suas outras
qualidades ou propriedades, que não a que ou as que lhes fossem
comuns, viessem a ser consideradas desprezíveis. Se as

87
O capital, p. 44.

238
mercadorias a e b, sendo diversas, tivessem em comum uma ou
algumas qualidades; tendo-se em mente só essas qualidades, acaso
poderiam vir a ser dadas como iguais em certas condições
específicas. Fossem dois agasalhos, ainda que de lãs diversas e
de cores também diversas, mas capazes de igualmente manterem o
corpo em certa temperatura e, talvez ainda, capazes, igualmente
os dois, de proverem a quem viesse a vesti-los de certa
titulação por serem da mesma maneira ornados de insígnias
dignificantes; poderiam, estes dois casacos, ser acaso dados
como iguais para uso de quem estivesse interessado meramente em
aquecer-se ou simplesmente se promover por meio das insígnias de
que estariam dotados os dois, sem que se levasse em consideração
suas cores ou demais outras características quaisquer, no que os
dois seriam diversos. Seria, para tal pessoa, indiferente vir a
ter o casaco a ou o casaco b; na verdade, um distinto do outro,
mas que, do específico ponto de vista daquela pessoa, se
igualariam. Haveria mesmo quem se preocupasse exclusivamente com
a temperatura em que seria mantido seu corpo, sem ligar para os
galões que poderiam ornar o casaco de que viesse a se servir,
entendendo que um e outro daqueles casacos, igualmente aquecendo
seu corpo, valer-lhe-iam propriamente o mesmo. E haveria,
talvez, mesmo quem pudesse preocupar-se só com a titulação que
mostraria aos demais pelas insígnias de seu casaco e não com o
calor ou frio de que um ou outro melhor lhe protegesse ou que
acabasse por obrigá-lo a suportar; pessoa que se dispusesse
mesmo a padecer certa condição de desconforto, preocupando-se só
com sua distinção social. Para esta pessoa ainda, aqueles dois
agasalhos valeriam outra vez o mesmo. Para diversas pessoas os
dois casacos poderiam valer uma mesma coisa, valendo para cada
uma delas por qualidades distintas ou por uma distinta
associação de qualidades. Tudo isto seria bastante trivial e
fácil de entender.
Mas se nos encontrássemos em uma situação diferente, não
como quem teria aqueles dois casacos em mãos e saberia quais
seriam as suas propriedades em comum e quais aquelas
diferenciadas, sendo capaz, assim, uma pessoa, de dizer pelo que
poderiam ou não, aqueles dois casacos, por ela ser tomados como

239
iguais; mas encontrássemo-nos em uma outra situação, onde
tivéssemos à nossa frente — como no caso de Marx em seu modo de
apreciar as relações de troca — dois bens dados como valores de
uso distintos que veríamos simplesmente igualados, e sem, em sua
igualação, que se pudesse ver aquilo porque se igualariam.
Igualados os dois, só poderiam tê-lo feito não propriamente,
pois sua distinção não o permitiria; mas sim, talvez, como pensa
Marx, estariam dados como iguais por uma ou algumas qualidades
que tivessem em comum. Poderiam ter em comum uma só qualidade ou
mais de uma. Havendo entre eles mais de uma qualidade em comum,
haveria de se verificar se por algumas ou só por uma delas, ter-
se-iam igualado; o que poderia envolver alguma dificuldade.
Seria mais fácil ver pelo que poderiam ter-se igualado no caso
de possuírem uma única qualidade em comum: neste caso, só por
ela poderiam ter-se igualado. Simplesmente se sabendo qual fosse
essa sua única qualidade em comum, saber-se-ia pelo que se
teriam igualado. Para a facilitação da pesquisa, esperar-se-ia,
talvez, que assim fosse. Poupar-se-ia, acaso, um bocado de
trabalho. Por sorte ou conveniência de Marx, nos termos em que
ele considera os fatos, este último seria o caso das
mercadorias. Marx entende que, prescindindo-se das propriedades
das mercadorias como específicos valores de uso, tal como não
poderia deixar de ser feito para efeito de sua igualação nas
trocas, visto que, por estas, aquelas só se distinguiriam e
tratar-se-ia de sua igualdade e não de sua distinção;
prescindindo-se das suas qualidades como valores de uso, só lhes
restaria, afirma Marx, uma outra propriedade, uma única. Só por
esta, então, poderiam vir a igualar-se visto que única.

”Se prescindirmos do valor de uso da mercadoria só


lhe resta ainda uma propriedade, a de ser produto do
trabalho.“88

Haveria nas mercadorias, além das qualidades pertinentes à


sua diversidade enquanto valores de uso, uma única outra
qualidade, só pela qual poderiam vir a igualar-se, nada mais

88
O capital, p. 44.

240
restando pelo que pudessem fazê-lo: o fato de serem produtos de
trabalho. E ser produto de trabalho ser-lhes-ia uma qualidade
comum. No que restava de propriedades das mercadorias, para além
daquelas que elas teriam como valores de uso, mesmo lhes
restando uma só propriedade, Marx encontra no que poderiam
igualar-se, visto que, como que para sua sorte, esta única
qualidade que lhes restaria, além daquelas que lhes seriam
próprias como valores uso, nesta única qualidade a que se
poderia recorrer, encontrar-se-ia exatamente o tipo de
qualificação pela qual se procurava, uma qualificação comum, uma
qualidade comum, a de serem igualmente produto de trabalho. E
considera então, de pronto, Marx, sem que em nada se explique,
que assim como nas relações de troca estariam abstraídas as
diferenças das mercadorias enquanto valores de uso, estariam
também abstraídas as diferenças específicas dos diversos
trabalhos de que seriam os produtos.

”Mas, então, o produto do trabalho já terá passado por


uma transmutação. Pondo de lado seu valor de uso,
abstraímos, também, das formas e elementos materiais que
fazem dele um valor de uso. Ele não é mais mesa, casa, fio
ou qualquer outra coisa útil. Sumiram todas as suas
qualidades materiais. Também não é mais o produto do
trabalho do marceneiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de
qualquer outra forma de trabalho produtivo. Ao desaparecer
o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece
o caráter útil dos trabalhos neles corporificados,
desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho
concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas
reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o
trabalho humano abstrato.“89

Não se trataria mais de mesa, casa, fio ou qualquer outra


coisa útil: os valores de uso deixariam de ser considerados em
sua diversidade, sumiriam todas as suas qualidades diferenciadas
e, com isto, também não se trataria mais do produto do trabalho

89
O capital, p. 44-5.

241
do marceneiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro
artífice em particular. Ao desaparecer o caráter útil dos
produtos do trabalho enquanto valores de uso, desapareceria
também o caráter particular dos trabalhos neles corporificados;
desvanecer-se-iam as diferentes formas de trabalho, não mais se
distinguindo umas das outras. Reduzir-se-iam, todos os
trabalhos, a um único e mesmo indistinto trabalho humano.
Sendo casaco e linho valores de uso qualitativamente
diversos, também difeririam qualitativamente os trabalhos
particulares de que teriam sido os produtos específicos: o
trabalho do alfaiate e aquele do tecelão. O ofício do alfaiate e
o do tecelão representariam trabalhos concretos qualitativamente
diversos. Mas tendo-se em vista as relações de troca, embora
atividades produtivas diversas, os diferentes trabalhos
corporificados nas mercadorias teriam de ser igualmente
considerados como mero dispêndio humano de cérebro, músculos,
nervos, mãos, etc. Desse modo seriam tidos como trabalho humano
simplesmente, sem consideração por sua diferenciação de espécie.
Seriam tratados apenas como formas diversas de despender uma
mesma força humana de trabalho. Nos valores de troca nada mais
restaria dos diversos trabalhos do que uma ”objetividade
impalpável“, uma ”massa pura e simples“ do trabalho humano em
geral:

”Nada deles resta a não ser a mesma objetividade


impalpável, a massa pura e simples do trabalho humano em
geral, do dispêndio de força de trabalho humana, sem
consideração pela forma como foi despendida. Esses
produtos passam a representar apenas a força de trabalho
humana, gasta em sua produção, o trabalho humano que neles
se armazenou.“90

Assim as mercadorias poderiam igualar-se: porque seriam


igualmente produtos de um único e mesmo trabalho humano. Seriam
dadas nas trocas como trabalho humano corporificado,
simplesmente isto. E haveria mesmo de ser assim para que a

90
O capital, p. 45.

242
fórmula de Marx se sustentasse. Como produtos de trabalho
concretos diversos, os bens transacionados seriam sempre dados
como distintos e como tais não poderiam igualar-se na
simplicidade da expressão que ele dá às trocas. Para que não
fossem considerados em sua distinção e pudessem simplesmente
igualar-se, haveria que se desconsiderar, além de sua própria
diversidade, aquela dos trabalhos concretos de que seriam os
produtos.

”Ao considerar os valores do casaco e do linho,


prescindimos da diferença dos seus valores de uso e,
analogamente, ao focalizar os trabalhos que se representam
nesses valores, pomos de lado a diferença entre suas
formas úteis, a atividade do alfaiate e a do tecelão. Os
valores de uso casaco e linho resultam de atividades
produtivas, subordinadas a objetivos, associadas com pano
e fio, mas os valores casaco e linho são cristalizações
homogêneas de trabalho; os trabalhos contidos nesses
valores são considerados apenas dispêndio de força humana
de trabalho, pondo-se de lado sua atuação produtiva
relacionada com o pano e o fio. O trabalho do alfaiate e o
do tecelão são os elementos que criam valores de uso,
casaco e linho, exatamente por força de suas qualidades
diferentes; só são substância do valor do casaco e do
valor do linho quando se põem de lado suas qualidades
particulares, restando a ambos apenas uma única e mesma
qualidade, a de serem trabalho humano.“91

Para que duas mercadorias distintas fossem simplesmente


igualadas na permuta como quer Marx que elas o fossem, para que
sua permuta pudesse ser expressa por uma simples fórmula do tipo
a = b — retomemos — precisaria haver, considera Marx, um
terceiro termo a que fossem redutíveis. Este terceiro termo a
que seriam redutíveis seria dado pelo trabalho de que seriam o
produto, o trabalho humano nelas corporificado. Mas o próprio
trabalho, se encarado como produtor de valores de uso seria

91
O capital, p. 52.

243
sempre um trabalho diferenciado. Os trabalhos úteis
corporificados nas mercadorias seriam distintos, assim como
diversos seriam os seus valores de uso. Para quem se colocasse
perante a expressão mercadoria a = mercadoria b como a verdade
das relações de troca, haveria que se resolver a dificuldade da
igualação de coisas distintas e, como tais, também produtos de
trabalhos diversos. Encontrar-se-ia como fazê-lo só por meio da
desconsideração de uma e outra dessas diferenças, uma dependente
da outra. Primeiro, apercebe-se Marx da necessidade de negação
dos aspectos diferenciados dos valores uso e, depois, dá-se
conta de que, para isso, seria também necessária a negação da
especifica diferenciação dos trabalhos de que seriam o
resultado. Uma e outra negação, a primeira levando à segunda,
seriam necessárias para a consistência de sua fórmula: para que
as mercadorias fossem simplesmente igualadas como valores de
troca em sua fórmula, a diversidade dos valores de uso e também
aquela dos trabalhos de que seriam os produtos, vinculada a
diversidade de uns e outros, deveriam necessariamente, a de uns
e também a dos outros, ser desprezadas. A argumentação de Marx
segue conforme as operações de negação necessárias para que as
mercadorias pudessem vir a ser reduzidas aos termos de uma
relação de simples igualdade.
Os produtos do trabalho enquanto mercadorias passariam a
representar apenas a força de trabalho humana gasta em sua
produção. Nas relações de troca, não se consideraria senão a
quantidade de trabalho social contido nas mercadorias. Tratar-
se-ia da única substância a ser considera nas permutas. A ela
denominar-se-ia valor.

”Esses produtos passam a representar apenas a força


de trabalho humana, gasta em sua produção, o trabalho
humano que neles se armazenou. Como configuração dessa
substância social que lhes é comum, são valores, valores-
mercadorias.“92

92
O capital, p. 45.

244
O valor de uma mercadoria representaria a quantidade de
trabalho social nela armazenado. Revelar-se-ia isto na própria
relação de permuta das mercadorias — acredita Marx ter
demonstrado.

”O que se evidencia comum na relação de permuta ou no


valor de troca é, portanto, o valor das mercadorias.“93

E assim, o valor de uma mercadoria seria determinado pela


quantidade de trabalho gasto em sua produção. As mercadorias
estariam presentes nas trocas na forma de seus valores de uso,
mas os valores de uso só seriam trocados, só se constituiriam em
valores de troca, igualando-se como corporificações de uma mesma
substância, de um trabalho onde estivesse desconsiderada toda a
diferenciação de suas espécies concretas. Ao se considerar os
valores das mercadorias, prescindiríamos da diferença dos seus
valores de uso e, analogamente, ao focalizar os trabalhos que se
representariam nesses valores, poríamos de lado a diferença
entre suas formas úteis. Os diferentes valores de uso
resultariam de atividades produtivas subordinadas a distintos
objetivos, mas seus valores seriam cristalizações homogêneas de
trabalho.

”Ao considerar os valores do casaco e do linho,


prescindimos da diferença dos seus valores de uso e,
analogamente, ao focalizar os trabalhos que se representam
nesses valores, pomos de lado a diferença entre suas formas
úteis, a atividade do alfaiate e a do tecelão. Os valores
de uso casaco e linho resultam de atividades produtivas,
subordinadas a objetivos, associadas com pano e fio, mas os
valores casaco e linho são cristalizações homogêneas de
trabalho; os trabalhos contidos nesses valores são
considerados apenas dispêndio de força humana de trabalho,
pondo-se de lado sua atuação produtiva relacionada com o
pano e o fio. O trabalho do alfaiate e o do tecelão são os
elementos que criam valores de uso, casaco e linho,

93
O capital, p. 45.

245
exatamente por força de suas qualidades diferentes; são só
substância do valor do casaco e do valor do linho quando se
põem de lado suas qualidades particulares, restando a ambos
apenas uma única e mesma qualidade, a de serem trabalho
humano.“94

A medição do trabalho social corporificado nas mercadorias

As mercadorias como valores de troca passariam a ser


corporificações de um mesmo trabalho. Seriam valores de uso,
sempre distintos e por sua distinção permutados, mas nunca
igualados propriamente; seriam também valores de troca, sempre
iguais em sua substância, sempre materializações de um mesmo e
indiferenciado trabalho humano, então quantitativamente
igualados. Do ponto de vista da troca, de seu valor de troca,
não haveria nas mercadorias diferença qualitativa alguma. Só a
partir dela poderiam igualar-se. Igualar-se-iam quando fosse
igual a quantidade nelas existente desse mesmo trabalho.
Distinguir-se-iam ou igualar-se-iam em termos exclusivamente
quantitativos, pela quantidade de uma mesma substância neles
contida, o que definiria seu valor. Para que duas mercadorias se
igualassem, haveria, pois, que se medir a grandeza de seu valor.
Como?

”Como medir a grandeza do seu valor? Por meio da


quantidade da ”substância criadora de valor“ nele contida,
o trabalho.“95

E especifica Marx:

94
O capital, p. 52.
95
O capital, p. 45.

246
”A quantidade de trabalho, por sua vez, mede-se pelo
tempo de sua duração, e o tempo de trabalho, por frações do
tempo, como hora, dia, etc.“96

A grandeza de valor das mercadorias seria medida pela


quantidade da substância criadora de valor nelas contida: o
trabalho humano sem distinção de espécie. A quantidade de
trabalho medir-se-ia pelo tempo de sua duração, e o tempo de
trabalho, por sua vez, por frações de tempo, como hora, dia,
etc. Mas, sendo assim, observa Marx, o valor de uma mercadoria
estando determinado pela quantidade de trabalho gasto durante
sua produção, poderia parecer que quanto mais preguiçosa ou
inábil fosse uma pessoa, tanto maior o valor do produto
resultante de seu trabalho, pois ela precisaria de mais tempo
para produzi-lo.

”Se o valor de uma mercadoria é determinado pela


quantidade de trabalho gasto durante sua produção, poderia
parecer que quanto mais preguiçoso ou inábil um ser humano,
tanto maior o valor de sua mercadoria, pois ele precisa de
mais tempo para acabá-la.“97

Depara-se Marx com mais uma adversidade para a verdade de


sua expressão mercadoria a = mercadoria b: a diversidade entre
os próprios trabalhadores. Não haveria como deixar que
permanecesse. Haveria ainda aqui de se eliminar toda distinção
para que uma expressão do tipo a = b fosse válida para as
trocas. Adverte, então, o trabalho que constituiria a substância
do valor não seria o de nenhum trabalhador em particular, quer o
deste mais operoso ou o daquele mais preguiçoso. Tratar-se-ia,
no que se reportasse ao valor, de um trabalho humano homogêneo
dado por sobre a diversidade encontrada entre os trabalhos dos
indivíduos em sua particularidade. O trabalho criador do valor
constituir-se-ia de um dispêndio ou do exercício de uma força de
trabalho humana em geral.

96
O capital, p. 45.
97
O capital, p. 45.

247
”Todavia, o trabalho que constitui a substância dos
valores é o trabalho humano homogêneo, dispêndio de
idêntica força de trabalho. Toda a força de trabalho da
sociedade — que se revela nos valores do mundo das
mercadorias — vale, aqui, por força de trabalho única,
embora se constitua de inúmeras forças de trabalho
individuais.“98

Toda a força de trabalho da sociedade, procura explicar


Marx, valeria como uma força de trabalho única, embora se
constituísse de inúmeras forças de trabalho individuais. Só o
tempo de trabalho para a produção das mercadorias desta força de
trabalho única, sempre a mesma, contaria como substância do
valor.

”Cada uma dessas forças individuais de trabalho se


equipara às demais, na medida em que possua o caráter de
uma força média de trabalho social, e atue como essa força
média, precisando, portanto, apenas do tempo de trabalho em
média necessário ou socialmente necessário para a produção
de uma mercadoria.“99

O tempo de trabalho a contar na produção das mercadorias


enquanto valores seria só aquele de uma força média de trabalho
social, que precisaria apenas de um tempo em média necessário ou
socialmente necessário para a produção de uma mercadoria. O
tempo de trabalho socialmente ou em média necessário para a
produção das mercadorias, procura então esclarecer Marx, seria o
tempo de trabalho requerido para produzi-las nas condições
socialmente normais e com o grau social médio de destreza e
intensidade do trabalho.

”Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo


de trabalho requerido para produzir-se um valor de uso
qualquer, nas condições de produção socialmente normais,

98
O capital, p. 45.
99
O capital, p. 45.

248
existentes, e com o grau social médio de destreza e
intensidade do trabalho.“100

Na Inglaterra, exemplifica, após a introdução do tear a


vapor o tempo de trabalho empregado para transformar determinada
quantidade de fio em tecido teria diminuído aproximadamente de
metade. O tecelão inglês que persistisse na utilização do tear
manual continuaria gastando nessa transformação o mesmo tempo
que despendia antes, mas o produto de sua hora individual de
trabalho só passaria a representar meia hora de trabalho social,
ficando o valor de seu produto reduzido à metade101. Uma força
individual de trabalho considerada isoladamente só contaria como
criadora de valor acaso possuísse já o caráter de uma força
média de trabalho social, e que atuasse como essa força média.
Na verdade, só esta última contaria quando se tivesse em vista o
valor das mercadorias.

”O que determina a grandeza do valor, portanto, é a


quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de
trabalho socialmente necessário para a produção de um valor
de uso. Cada mercadoria individual é considerada aqui
exemplar médio de sua espécie. Mercadorias que contem
iguais quantidades de trabalho, ou que podem ser produzidas
no mesmo tempo de trabalho, possuem, consequentemente,
valor da mesma magnitude. O valor de uma mercadoria está
para o valor de qualquer outra, assim como o tempo de
trabalho necessário à produção de uma está para o tempo de
trabalho necessário à produção de outra.“102

E explica ainda Marx, procurando excluir da sua expressão


de igualdade qualquer traço contraditório de diversidade: o
trabalho humano a ser contado como o socialmente necessário
medir-se-ia para efeito de comparações pelo dispêndio de uma
força de trabalho simples. Com o trabalho humano ocorreria,

100
O capital, p. 46.
101
O capital, p. 46.
102
O capital, p. 46.

249
compara Marx, algo análogo ao fato de que, na sociedade
burguesa, um banqueiro desempenharia um papel importante e
ficaria reservado ao simples ser humano uma função inferior.
Atribuir-se-ia um papel importante ao trabalhador qualificado e,
ao não qualificado, um inferior. Trabalho humano, no entanto,
medir-se-ia sempre pelo dispêndio de uma força de trabalho
simples, que, em média, todo homem comum, sem educação especial,
possuiria em seu organismo. Este trabalho simples e médio seria
sempre dado em uma determinada sociedade e o trabalho complexo
ou qualificado valeria meramente como trabalho simples
potenciado, de modo que uma quantidade dada de trabalho
qualificado seria igual a uma quantidade maior de trabalho
simples. A experiência demonstraria que essa redução sucederia
constantemente. Por mais qualificado que fosse o trabalho que
geraria a mercadoria, seu valor a equipararia a um produto de
trabalho simples e representaria, por isso, uma determinada
quantidade de trabalho simples.

”Com o trabalho humano ocorre algo análogo ao que se


passa na sociedade burguesa, onde em geral um banqueiro
desempenha um papel importante e fica reservado ao simples
ser humano uma função inferior. Trabalho humano mede-se
pelo dispêndio da força de trabalho simples, a qual, em
média, todo homem comum, sem educação especial, possui em
seu organismo. O trabalho simples médio muda de caráter com
os países e estágios de civilização, mas é dado numa
determinada sociedade. Trabalho complexo ou qualificado
vale como trabalho simples potenciado ou, antes,
multiplicado, de modo que uma quantidade dada de trabalho
qualificado é igual a uma quantidade maior de trabalho
simples. A experiência demonstra que essa redução sucede
constantemente. Por mais qualificado que seja o trabalho
que gera a mercadoria, seu valor a equipara ao produto de
trabalho simples e representa, por isso, uma determinada
quantidade de trabalho simples.“103

103
O capital, p. 51-2.

250
Haveria um trabalhado qualificado, ou complexo, e um
simples. O trabalho complexo seria uma mera potenciação ou
multiplicação do simples. O trabalho corporificado na
mercadoria, mesmo que complexo ou qualificado, valeria sempre só
como trabalho simples, pois aquele que fosse qualificado seria
sempre reduzido ao que fosse simples como sua unidade de medida,
uma certa quantidade de trabalho qualificado valendo um certo
tanto de trabalho simples. Assim, a distinção entre os
diferentes trabalhos desvanecer-se-ia em sua redução a uma mesma
unidade de medida. Essa unidade de medida estaria dada pelo
dispêndio de uma força de trabalho que, em média, todo homem
comum, possuiria em seu organismo. Tal força de trabalho, a do
trabalho simples, mudaria de caráter com os países e estágios da
civilização, mas seria dada numa determinada sociedade. O
trabalho simples seria, assim, já uma média, o dispêndio de uma
força de trabalho média que um homem sem educação especial
possuiria em seu organismo. Haveria um homem comum, sem educação
especial. Nele encontraríamos uma força ou potência de trabalho
média. O dispêndio desta força de trabalho que todo homem comum,
sem educação especial, em média, possuiria, seria o trabalho
simples. Deparando-se com mais uma diversidade, aquela de um
trabalho mais complexo e mais produtivo e um mais simples e
menos produtivo, Marx, mais uma vez, acaba por negá-la,
reduzindo o que seria o complexo a uma mera multiplicação do que
seria o simples. Sua fórmula de igualação do tipo a = b assim o
exige; nela não há lugar para qualquer diversidade.
Com todas as suas reduções, Marx acaba, ao fim, por se ver
como quem possa dar alguma concretude histórica e
operacionalidade à sua fórmula. A grandeza de valor de uma
mercadoria, expõe, permaneceria invariável se fosse constante o
tempo de trabalho requerido para sua produção, mudando com
qualquer variação da produtividade do trabalho; sendo esta, por
sua vez, determinada pelas mais diversas circunstâncias, entre
elas a destreza média dos trabalhadores, o grau de
desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a
organização social do processo de produção, o volume e a
eficácia dos meios de produção e, já antes, mesmo as próprias

251
condições naturais. Quanto maior a produtividade do trabalho,
tanto menor o tempo de trabalho requerido para produzir uma
mercadoria, e quanto menor a quantidade de trabalho que nela se
cristalizasse, tanto menor seu valor. Inversamente, quanto menor
a produtividade do trabalho, tanto maior o tempo de trabalho
necessário para produzi-la e tanto maior seu valor. A grandeza
de valor de uma mercadoria variaria na razão direta da
quantidade e na inversa da produtividade do trabalho que nela se
corporificasse.

”A grandeza do valor de uma mercadoria permaneceria,


portanto, invariável, se fosse constante o tempo do
trabalho requerido para sua produção. Mas este muda com
qualquer variação na produtividade (força produtiva) do
trabalho. A produtividade do trabalho é determinada pelas
mais diversas circunstâncias, entre elas a destreza média
dos trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e
sua aplicação tecnológica, a organização social do processo
de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção, e
as condições naturais. [...] Generalizando: quanto maior a
produtividade do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho
requerido para produzir uma mercadoria, e quanto menor a
quantidade de trabalho que nela se cristaliza, tanto menor
seu valor. Inversamente, quanto menor a produtividade do
trabalho, tanto maior o tempo de trabalho necessário para
produzir um artigo e tanto maior seu valor. A grandeza do
valor de uma mercadoria varia na razão direta da
quantidade, e na inversa da produtividade, do trabalho que
nela se aplica.“104

Falando-se uma coisa e dizendo-se outra

A expressão mercadoria a = mercadoria b mostrar-nos-ia dois


valores de uso distintos: um a mercadoria a, outro a mercadoria

104
O capital, p. 46-7.

252
b. Nela, no entanto, se negaria contraditoriamente essa
diversidade, pois ali mesmo a mercadoria a e a mercadoria b se
igualariam. Igualar-se-iam os valores de uso mostrando-se que,
como valores de troca, as mercadorias desprezariam qualquer
diversidade. Ao serem trocados, igualar-se-iam. E a igualdade
entre os valores de troca, expressa na igualdade das figuras de
seus valores de uso, dar-se-ia, procura mostrar Marx, na base de
um substrato, o trabalho humano nelas contido. Duas mercadorias
enquanto valores de troca igualar-se-iam quando a quantidade
desse substrato — seu valor — fosse a mesma. Mas a igualdade da
quantidade de trabalho humano contida em duas mercadorias não
estaria dada imediatamente à presença no simples mercadoria a =
mercadoria b. A expressão falaria de uma igualdade, mas não
revelaria sua substância ou o que seria aquilo que nela estaria
sendo dado como igual. O que mostraria seriam valores de uso
distintos, valores de uso que só mesmo por sua expressa
distinção seriam permutados; porém que, estranhamente, estariam
em uma relação de igualdade. A expressão mercadoria a =
mercadoria b estaria dizendo que a quantidade de trabalho humano
contido na mercadoria a seria igual à quantidade de trabalho
humano contido na mercadoria b; não diria, no entanto,
diretamente isso; não o diria em seus próprios termos. O que
diretamente estaria dizendo seria que dois objetos, sendo
distintos, contraditoriamente, igualar-se-iam. Sendo isto um
absurdo (não há mesmo como escapar à constatação deste absurdo),
sendo absurdo dizer que duas coisas diferentes sejam iguais,
haveria de se entender que a expressão mercadoria a =
mercadoria b, para que de alguma maneira viesse a ser válida, só
poderia sê-lo dizendo algo diferente do que imediatamente
enunciaria. Deveria haver como que algo escondido nela. Dir-se-
ia que a mercadoria a igualar-se-ia à mercadoria b; mas ao se
enunciar isto não se estaria dizendo que as mercadorias a e b,
sendo distintas, seriam iguais e sim — é como procura explicar
Marx — que os trabalhos nelas contidos, apesar da distinção de
seus produtos ali presentes e de sua própria diferença como
atividades úteis diversas, apesar dessas suas diferenças, seriam
iguais; desde que — acrescenta Marx — fossem considerados

253
simplesmente como mero trabalho humano, sem que se levasse em
conta sua distinção em espécies. Dir-se-ia, então, uma coisa e
falar-se-ia de outra. A expressão mercadoria a = mercadoria b
conteria em si uma outra; seria uma maneira de dizer uma outra
coisa. Dir-se-ia mercadoria a = mercadoria b e falar-se-ia que
uma mesma quantidade de um trabalho humano sem distinção de
espécie estaria contido nas mercadorias a e b. Quer Marx que uma
expressão valha pela outra:

mercadoria a = mercadoria b

valeria por

trabalho humano sem distinção de espécie contido na mercadoria a


=
trabalho humano, também sem distinção de espécie, contido na
mercadoria b

Seria como se, para nos reportarmos à igualdade de área


entre dois triângulos diferentes, simplesmente utilizássemos a
expressão triângulo A = triângulo B, como parece que Marx
aceitaria. Para ele, evidenciar-se-ia o que estaria acontecendo
na relação de troca entre duas mercadorias com um simples
exemplo geométrico:

”Evidencia-se isto com um simples exemplo geométrico.


Para determinar e comparar a área dos polígonos, decompomo-
los em triângulos. O próprio triângulo pode converter-se,
também, numa expressão inteiramente diversa de sua figura
visível — a metade do produto da base pela altura. Do mesmo
modo têm os valores de troca de ser reduzíveis a uma coisa
comum, da qual representam uma quantidade maior ou
menor.“105

Para determinar e comparar a área dos polígonos, decompo-


lo-íamos, sim, como ele diz, em triângulos; assim como, também

105
O capital, p.43-4.

254
como diz Marx, o próprio triângulo poderia converter-se numa
expressão inteiramente diversa de sua figura visível: a metade
do produto da base pela altura. Mas nada disto nos autorizaria a
utilizar a expressão triângulo A = triângulo B para expressar a
eventual igualdade de suas áreas, ou a utilizar em substituição
ou como equivalente à expressão área do triângulo A = área do
triângulo B. Se assim fizéssemos todos concordariam com a
incorreção de nossa sentença. A igualdade de áreas de dois
triângulos só poderia ser corretamente expressa por uma sentença
onde estivesse dito exatamente do que se tratasse. Não se
poderia dizer triângulo A = triângulo B, quando os dois, acaso
tivessem a mesma área, não fossem propriamente iguais ou iguais
em tudo o mais. Mas, entende Marx, para se falar da permuta das
mercadorias usar-se-ia esse modo de se expressar. Havendo a
igualdade da quantidade do trabalho humano que duas mercadorias
corporificassem, dir-se-ia uma ser igual à outra, ou, dizendo-se
iguais duas mercadorias, dir-se-iam iguais as quantidades de
trabalho humano nelas contidas. Na expressão da permuta de duas
mercadorias, dada em termos de uma simples igualdade do tipo
a = b, haveria um dizer algo, expressando-se algo distinto, algo
distinto que estaria, então, recoberto. Ao se dizer que duas
mercadorias, dadas pelas distintas figuras de seus valores de
uso, seriam iguais quando patentemente mostrar-se-ia sua
diferença, não se diria tal absurdo; mas, sim, outra coisa, que
as duas teriam corporificadas em si quantidades iguais de um
mesmo trabalho humano indiferenciado; nisto constituindo-se o
seu valor, igual, então, em uma e outra. O modo de ser da
expressão que Marx dá às trocas é, na verdade, o de um enigma.
Haveria de se ver se o seu modo de resolvê-lo não apresenta
dificuldades.

255
Na desconsideração dos trabalhos produtores de valores de uso em
sua diversidade, não haveria como se constituir o conceito de um
trabalho humano em geral

Quando utilizadas como meros meios de troca, desprezar-se-


iam as qualidades das mercadorias como valores de uso. Assim se
explicaria sua igualação nas trocas conforme a expressão para
elas utilizada por Marx. Mas ao se desprezar as qualidades das
mercadorias enquanto valores de uso, e com isso a distinção dos
específicos trabalhos que lhes teriam dado origem, seria
possível — interroguemos — que nelas restasse ainda a qualidade
de serem produtos de algum trabalho? Entende Marx que as
qualidades das mercadorias enquanto valores de uso teriam de ser
desprezadas quando fossem tidas como valores de troca, pois,
ainda que só por essas qualidades fossem trocadas, não seria por
elas que poderiam ser igualadas; visto que, como valores de uso,
valeriam só mesmo por suas diferenças e não seria por suas
diferenças que se igualariam tal como na simplicidade de sua
fórmula. As mercadorias igualar-se-iam em sua expressão, não por
suas qualidades como valores de uso, estas sempre as
distinguindo, mas por uma qualidade que, ao contrário destas,
lhes seria comum, aquela de serem produto de um trabalho humano
em geral, se este fosse considerado na indistinção de suas
espécies, desprezando-se todas as suas específicas determinações
enquanto diferenciadas atividades concretas. Porém,
desconsiderando-se as mercadorias como valores de uso, seria
possível tê-las ainda como resultado de algum trabalho?
Desconsiderando-as como valores de uso, não estaria também
desconsiderado o fato de serem resultado de qualquer trabalho?
Para que se haveria de considerá-las como produtos de trabalho,
se para uso determinado algum deveria definir-se qualquer
produto e, consequentemente, trabalho algum que lhe desse
existência?
Quem tivesse algum bem como um mero instrumento de troca,
veria nele um mesmo trabalho que aquele presente no outro bem
pelo qual desejaria trocá-lo? Teria mesmo de ver em seu meio de

256
troca algum trabalho? Por exemplo, quem tivesse um casaco como
um simples meio de troca, e não visse nele senão alguns calçados
pelos quais acaso desejasse trocá-lo, não veria em seu casaco um
mesmo trabalho que nos calçados. Estaria interessado nos
calçados, preocupar-se-ia só com os calçados. Acaso não só com
que lhe calçassem bem, mas, pessoa atenta a seus próprios
interesses, talvez tivesse em vista a qualidade das matérias de
que teriam sido feitos e as sucessivas transformações nelas
efetuadas pelos diferentes trabalhos que envolveria sua
confecção. Interessando-se pelos calçados, talvez viesse a
considerar o trabalho que lhes teria dado existência. Mas,
pessoa pragmática que seria, poderia ver nos calçados,
simplesmente, no que lhe servissem. Talvez só assim é que os
veria, neles não vendo trabalho nenhum; ainda que pudesse ver
algum. E se acaso, por outro lado, visse no seu casaco, não tão
simplesmente a possibilidade da obtenção dos calçados, bastando
que aquele fosse aceito em troca destes, mas que, estando
preocupado com a satisfação de quem viesse a vesti-lo, sendo,
pois, o possuidor do casaco dotado de algum interesse pelos
outros, que, por esse seu modo de ser altruísta, entendesse que
seu casaco devesse ser efetivamente qualificado por meio da
qualidade das matérias com que teria sido confeccionado e de uma
perfeita execução; poderia, por isso, também o possuidor do
casaco, nele ver o trabalho de que teria sido resultado. Talvez
pudesse ver, sim, no seu casaco o trabalho de confeccioná-lo;
particularmente, talvez, se ele próprio é que o tivesse feito.
Mas poderia também não ver trabalho nenhum, bastando tê-lo em
mãos e vê-lo aceito em troca dos calçados que desejava. Algo
similar se passaria com quem, em posse dos calçados, estivesse
interessado no casaco. Fato é que, nem nos calçados, nem no
casaco, em nenhum nem outro, por parte de um ou outro dos
envolvidos em sua troca, precisar-se-ia ver necessariamente
qualquer trabalho. Talvez se visse trabalho em só um deles,
talvez nos dois, mas talvez também em nenhum. Porém se, por
ventura, se visse trabalho nos dois, não se veria certamente
nunca um mesmo trabalho. Ninguém, em sã consciência, veria no
casaco o trabalho de confecção dos calçados ou, nos calçados,

257
aquele de feitura do casaco. Ninguém veria em uns a
corporificação do trabalho que teria dado origem ao outro.
Haveria, sim, no casaco e nos calçados, trabalho; e ele poderia
ser visto, ainda que também não se pudesse vê-lo. Visto o
trabalho, no entanto, como deixar de entender que aquele de
feitura de um seria diferente do trabalho de confecção dos
outros? Um e outros, casaco e calçados, se em sã consciência, se
neles algum trabalho se visse, seriam necessariamente trabalhos
distintos.
Poderia alguém se fazer cego em relação às qualidades
específicas de um bem determinado quando o visse exclusivamente
como um meio seu de troca, sim; mas assim deixaria de ver nele o
que quer que fosse a não ser o objeto pelo qual desejaria trocá-
lo. Ver-se-ia no casaco só os calçados ou nos calçados só o
casaco, nada mais. O casaco não seria de cambraia ou lã, negro
ou branco, longo ou curto, engalanado ou despojado de símbolos
de distinção. Seria simplesmente uma coisa qualquer que poderia
ser trocada pelos calçados; estes, sim, para quem os desejasse
obter em troca daquele, pretos e não marrons, macios e não
duros, etc. Com os calçados, quando tidos mera e exclusivamente
como meios de troca, seria o mesmo. Como meros meios de troca,
as coisas, se assim exclusivamente pudessem ser entendidas, não
seriam senão aquilo pelo que se trocassem. Não seriam elas
próprias; elas mesmas já seriam outras. Seriam simplesmente
outras, não teriam características que fossem suas; e o ser
resultado de algum trabalho, qualquer que este fosse, já lhes
seria atribuir uma característica determinada, quando todas as
suas características particulares não estariam sendo levadas em
consideração. Quaisquer que fossem suas características
próprias, não importariam, visto que o que exclusivamente
importaria seriam as características do objeto pelo qual se
trocariam. Quando utilizadas só tendo em vista seus valores de
troca, as mercadorias poderiam mesmo ser encaradas em desprezo
de seus valores de uso. Tratar-se-ia de ilusão; não de uma
ilusão necessária, porém, sim, possível. Mas se acaso assim
acontecesse, no entanto, não haveria mais como as ter enquanto
produtos de qualquer trabalho. Desconsiderando-se suas

258
qualidades como valores de uso e os trabalhos específicos que
teriam corporificado, não haveria como nelas ver resíduo de
trabalho algum a ser considerado como a substância de que seriam
manifestações particulares.
O trabalho não se dá nunca em sua forma geral; só pode
existir em suas formas particulares — assim o entendemos. Em
suas formas particulares poder-se-ia ver uma substância comum
que em todos eles haveria, é verdade; mas, sem a sua existência
em suas formas particulares, não haveria onde se ver uma
generalidade qualquer ou como se dar existência a categoria
abstrata nenhuma. Esta só poderia constituir-se a partir da
existência efetiva dos diferentes trabalhos concretos.
Desconsiderando-se os trabalhos particulares e concretos, não
haveria a partir do que se abstrair um conceito de trabalho em
geral. Um trabalho abstrato, em geral, onde não se considerassem
suas distinções em espécies, não poderia existir senão como
atributo geral dado no interior de um conjunto de trabalhos
concretos particulares. O que existiria seria o trabalho do
tecelão e aquele do alfaiate, e ainda aquele de quem quer mais
que algo fizesse, sempre trabalhos específicos, produtores de
particulares valores de uso; necessariamente, pois, trabalhos
determinados, produtores de valores de uso particulares. O
trabalho do alfaiate, aquele do tecelão e o de quem quer mais
que fosse teriam em comum o atributo de serem, todos, trabalho;
o trabalho podendo ser, pois, definido como a substância comum
ao ofício do tecelão, àquele do alfaiate e de toda e qualquer
outra atividade humana produtiva: uma substância presente em um
conjunto de entidades particulares concretas, obtida, no
entanto, por meio de uma mera abstração de pensamento. Podendo
existir no pensamento, não poderia fazê-lo senão a partir da
existência dos diferentes entes particulares e concretos que
existiriam fora do mero pensamento, do que se expressaria a
generalidade ou o que neles houvesse de comum, no caso, o ser um
trabalho. Desprezando-se os trabalhos concretos, desprezar-se-ia
todo e qualquer trabalho, não havendo como se falar de trabalho
algum. Desprezando-se o fato das mercadorias serem valores de
uso e deixando de entendê-las como produtos de específicos e

259
diferenciados trabalhos, não haveria mais como considerá-las
como produtos de trabalho humano algum.
Poder-se-ia desconsiderar as mercadorias como valores de
uso, tendo-as só como meios de troca — não poderíamos talvez
impedir que se o fizesse —; mas desprezar-se-ia, assim, não só a
sua diversidade como valores de uso e aquela dos trabalhos de
que seriam produtos, mas também, necessariamente, o fato mesmo
de serem produtos de qualquer trabalho. Assim, teríamos que:

(1) tendo-se as mercadorias como valores de troca, poder-


se-ia desprezar seus valores de uso e o fato de serem
produtos de diferenciados trabalhos, mesmo de um
trabalho qualquer;

(2) mas poder-se-ia também, mesmo tendo as mercadorias


como valores de troca, considerá-las não só como tais,
mas também como sendo valores de uso e produtos de
trabalhos diferenciados.

Poderíamos tê-las destas duas maneiras. Podendo-se tê-las


dessas duas formas, precisemos, o que não se poderia, como
acabamos de ver, seria:

(3) não as ter como valores de uso e, ao mesmo tempo,


considerá-las como produtos de algum trabalho, mesmo
de um trabalho em geral ou em abstrato.

Não seria possível deixar de ter as mercadorias como


valores de uso e, ao mesmo tempo, considerá-las como produtos de
algo como um trabalho em geral ou abstrato, pois este, mesmo
enquanto abstração, não poderia existir senão como substrato de
um conjunto de diferentes trabalhos concretos. Só se se tivesse
em mente as mercadorias como valores de uso diversos e, como
tais, produtos de trabalhos diferentes, poder-se-ia, só então —
ainda que se tendo os diferentes trabalhos como irredutíveis
concretamente uns aos outros — acreditar em uma possível
redutibilidade deles todos a uma abstração de pensamento de um

260
trabalho em geral. E especifiquemos mais: tendo-se as
mercadorias como valores de troca e também valores de uso, tê-
las-íamos sempre como produtos de trabalho diferenciados
(anterior caso 2); podendo-se, no entanto, ao assim as ter,
entendê-las, por um lado, como não podendo ser reduzidas à
condição de serem, simplesmente, igualmente produtos de
trabalho; ou então, por outro lado, entendê-las como sendo a tal
abstração, sim, redutíveis em pensamento, ainda que permanecendo
sempre em sua condição concreta de produtos de trabalhos
diferenciados. Entendendo-se sempre que as mercadorias seriam
produtos de trabalhos diferenciados, poder-se-ia:

(a) sempre as ter meramente como tais, sem que os distintos


trabalhos produtores de valores de uso deixassem de
ser considerados em sua particular diversidade;

(b) ou, entendendo ainda que as mercadorias seriam produtos


de trabalhos diferenciados particulares, poder-se-ia,
também acreditar, contrariamente ao caso anterior, que
os distintos trabalhos concretos poderiam ser
reduzidos em pensamento a um único e mesmo trabalho
enquanto categoria geral e abstrata, definidora de um
gênero: um trabalho humano em geral.

No primeiro dos dois últimos casos, com a irredutibilidade


dos distintos trabalhos a uma única categoria abstrata —
mantendo-se sempre nossa atenção no fato de que eles sempre
seriam atividades específicas, umas diferentes das outras,
produtoras de valores de uso também uns distintos dos outros —
nesse caso, patentear-se-ia a impossibilidade das mercadorias
imediata e simplesmente virem a se igualar pelo trabalho nelas
contido por meio de uma simples fórmula como mercadoria a =
mercadoria b. Uma mercadoria a seria sempre considerada como
distinta de uma b, assim como distintos os trabalhos que as
tivessem produzido. Mesmo assim, no entanto, tenhamos em vista,
mantendo-se as mercadorias enquanto valores de uso diversos,
resultantes de trabalhos necessariamente distintos e

261
irredutíveis a uma categoria genérica; poderíamos, mesmo assim,
como vimos, pensar em sua participação em uma relação de
igualdade nas trocas. Isto, no entanto, só conforme o modo de
pensar de Aristóteles, segundo a expressão
mercadoria a / indivíduo B = mercadoria b / indivíduo A. Na
expressão de Aristóteles, assim como a mercadoria a de A — mesmo
como um particular valor de uso resultante de um específico e
diferenciado trabalho — valeria para B, a mercadoria b de B —
também esta como um particular valor de uso produto de um
trabalho especificamente diferenciado — valeria para A. Na
expressão de Aristóteles, as mercadorias a e b estariam dadas
como distintas, não se igualando, ainda que a e b participassem
de uma relação de igualdade; mas de uma outra relação de
igualdade que não do tipo de um a = b, uma outra com a
participação de A e B, as pessoas que delas fariam uso:
A / b = B / a; a e b participariam de uma relação de igualdade,
ainda que não se igualassem em si mesmas enquanto valores de
uso.
Mas mesmo assim, ainda que as mercadorias só fossem
entendidas como valores de uso distintos, observe-se, nas
próprias expressões que utilizássemos para designá-las, estaria
contida a ideia de que nelas haveria algo de comum e igual. Nas
trocas, tratar-se-ia de uma mercadoria como um valor de uso a,
de uma como um valor de uso b, de outra como um c, etc., assim
como do trabalho que teria dado origem ao primeiro valor de uso,
do trabalho que teria dado origem ao segundo valor de uso, ao
terceiro e aos demais; tratando-se, as primeiras, as
mercadorias, sempre de valores de uso, um a, um b, um c, etc., e
os segundos sempre de trabalhos, digamos, um x, um y, um z, etc.
Tanto no caso de uns como no caso dos outros, um termo comum
estaria designando a ideia geral que abarcaria uma certa
totalidade de coisas: tratar-se-iam de valores de uso e de
trabalhos. Bastaria que se tomasse atenção nisto para que se
deixasse de dizer, ao menos muito simplesmente, que estar-se-ía
tomando as mercadorias e os trabalhos de que seriam os produtos
em uma total irredutibilidade de umas e outros a categorias
gerais. Com o que recairíamos no segundo dos casos referidos, o

262
caso b, e melhor seria começar já por pensar que, mesmo
entendendo que os valores de uso não seriam redutíveis uns aos
outros em sua concretude de bens a serviço dos homens, e que os
trabalhos de que resultariam também não seriam redutíveis uns
aos outros em sua particularidade concreta; mesmo assim, uns e
outros, os valores de uso e os trabalhos de que seriam o
resultado, estariam sempre sendo abarcados por categorias
generalizadoras, uma para os primeiros e outra para os segundos.
Melhor seria entender desde o princípio que, as mercadorias
sendo sempre valores de uso distintos e produtos de trabalho
diversos, os diferentes valores de uso de que se constituiriam e
os diversos trabalho de que seriam o resultado estariam sempre
sendo reduzidos às suas específicas categorias gerais: a dos
valores de uso e a dos trabalhos. Abstrair-se-ia em pensamento,
a partir dos distintos valores de uso e dos diversos trabalhos
concretos, a substância presente em um e outro caso. Em todos os
valores de uso, tratar-se-ia sempre de algum valor de uso; em
todos os diferentes trabalhos, sempre de algum trabalho. O valor
de uso casaco e o valor de uso tecido, qualquer outro mais,
seriam igualmente entendidos como bens a serviço dos homens, ou,
simplesmente, valores de uso. O trabalho do alfaiate e aquele do
tecelão, qualquer outro trabalho mais, seriam igualmente
entendidos como uma atividade humana produtora de valores de uso
ou, simplesmente, trabalhos.
Mas, ainda que igualmente valores de uso e produtos de
trabalho humano, sendo sempre redutíveis, os valores de uso e os
trabalhos, às substâncias de pensamento que os definiria, as
mercadorias continuariam sendo irredutíveis a substâncias
concretas únicas, visto que, concretamente, sua substância seria
sempre dada na forma de sua particular diversidade. As
mercadorias a e b seriam igualmente valores de uso e
consubstanciações de trabalho humano, mas só presentes nas
trocas pela diversidade de seus valores de uso, esta resultante
da diversidade dos trabalhos de que seriam os produtos. Teriam
sempre de existir como entidades concretas distintas, produtos
de trabalhos diversos. Tratando-se concretamente dos valores de
uso e dos trabalhos de que seriam os produtos, não haveria nunca

263
como igualá-las. Em nível menor de generalização poderíamos
dizer, por exemplo, que haveria o que fosse o alimento em geral,
mas alimentos — que seriam alimento porque alimentariam —,
lembremos, seriam a carne e os cereais, sendo que a carne e os
cereais, por sua vez, seriam a carne bovina ou a carne suína, as
batatas ou beterrabas; e sendo que, com toda propriedade, na
verdade, só seriam propriamente alimento — ou propriamente o que
alimentaria — aquela específica carne bovina ou suína, ou
aquelas específicas batatas ou beterrabas, que viessem a ser
concretamente processadas pelos específicos aparelhos digestivos
de cada um dos distintos indivíduos que com tais coisas se
alimentariam. O alimento não alimentaria a humanidade em geral
se os diversos alimentos particulares não alimentassem os
indivíduos de que aquela se constituiria. Os indivíduos que
constituiriam a humanidade em geral não seriam alimentados senão
por alimentos que os alimentassem em sua própria
particularidade, nas específicas qualidades e nas específicas
quantidades necessárias à satisfação de seus específicos
processos digestivos. A humanidade, para efeito da alimentação,
não seria senão o conjunto dos indivíduos que precisariam
alimentar-se em sua irredutível concretude individual, sempre
por alimentos particulares em sua irredutível especificidade,
tanto qualitativamente como quantitativamente. Algo só poderia
ser posto sob a categoria geral de alimento se com a específica
qualidade concreta de alimentar um ou alguns particulares e
específicos indivíduos. E o mesmo teria de ser necessariamente
considerado com os diversos trabalhos que teriam dado origem aos
alimentos todos. A categoria genérica de um trabalho criador de
valores de uso em geral não passaria de uma abstração de
pensamento, sem existência concreta, sendo que sua criação só
poderia dar-se a partir da existência dos diferentes trabalhos
concretos criadores da diversidade dos valores de uso. A
categoria abstrata não poderia existir por si mesma; só poderia
existir em sua referência aos elementos concretos a partir dos
quais teria sido criada. Só nos elementos concretos
encontraríamos a propriedade de que se constituiria a definição
da categoria abstrata; no caso, a propriedade comum a todos os

264
diferentes trabalhos de se constituírem em atividades produtoras
de valores de uso. Um trabalho produziria sempre um determinado
valor de uso; outro trabalho, outro determinado valor de uso: o
trabalho em geral seria só a imagem em pensamento de uma
atividade produtora dos valores de uso em sua generalidade.
Na fórmula de Aristóteles bem se veem dois valores de uso
distintos que se relacionam, no entanto, em uma mesma condição
de prestadores de serviços aos homens; condição que, sendo igual
nos dois, se expressa na utilização de um mesmo termo na
denominação de um e outro, um uma mercadoria a e outro uma
mercadoria b, uma tendo um valor de uso distinto do da outra,
mas uma e outra tendo igualmente um valor de uso. Também em Marx
há um termo comum designando os objetos trocados, é verdade.
Marx igualmente trata da troca de uma mercadoria a com uma
mercadoria b, a e b dadas pois como igualmente mercadorias. Mas
as trocas processar-se-iam no entendimento de Marx de outro modo
que o de Aristóteles. São diferentes as expressões que os dois
dão às trocas. Na de Aristóteles não há mistério algum. Valores
de uso distintos participando de uma mesma denominação, que
expressaria sua condição comum de meios de troca, mostram-se
também como se distinguindo enquanto prestadores de serviços
distintos a pessoas diversas:

mercadoria a / indivíduo B = mercadoria b / indivíduo A

Na fórmula de Aristóteles, as mercadorias, sendo valores de


uso distintos, ainda que igualmente mercadorias e valores de
uso, não se igualariam simplesmente por meio de uma fórmula do
tipo a = b, como em Marx. Participariam, sim, de uma relação de
igualdade de valor entre duas demandas, a de um A por uma
mercadoria b e a de um B por uma mercadoria a; mas não se
igualariam direta e simplesmente. Uma demanda, A / b, igualar-
se-ia a uma outra demanda, B / a ; a unidade de que se trataria
sendo, pois, a da demanda de alguém por alguma coisa com a
demanda de alguém mais por uma outra coisa. Seria a força ou
valor da demanda de um que se igualaria à força ou valor da
demanda de um outro, sem que as pessoas ou os objetos demandados

265
se igualassem entre si mesmos. Não haveria mesmo mistério nenhum
a ser desvendado: um desejaria o objeto do outro, assim com o
outro o seu. Ao contrário, em Marx, com o seu simples mercadoria
a = mercadoria b, haveria de se desvendar o mistério de como as
mercadorias a e b se igualariam apesar de sua distinção. Para
isso, Marx acaba por entender que haveria de se desprezar os
valores de uso das mercadorias, entendendo-as, no entanto, como
se igualando enquanto produtos de um mesmo trabalho humano. Mas,
desconsiderados os valores de uso, de que trabalho estaria
falando Marx, visto que trabalho não poderia ser entendido senão
como a atividade humana produtora de valores de uso?

Um trabalho produtor de coisa nenhuma

Um modo de pensar seria o de se ver as mercadorias sempre


como valores de uso determinados, resultados de trabalhos sempre
concretamente determinados; isto ainda que os valores de uso e
os trabalhos pudessem ser reduzidos a categorias genéricas
únicas de um valor de uso em geral e de um trabalho humano em
geral; sendo estas, no entanto, sempre reportadas aos primeiros,
dos quais seriam simplesmente expressões de generalidade. Quando
falássemos de trabalho, tratar-se-ia, então, sempre de uma
atividade produtora de valores de uso, mesmo quando estes
viessem a se transformar em valores de troca, e tanto quando do
reportar-se aos diferentes trabalhos concretos, como também
quando de sua definição genérica. Os primeiros e também o
segundo seriam sempre considerados como produtores de valores de
uso; aqueles dos valores de uso em sua particularidade, este dos
valores de uso em sua generalidade. Todas as mercadorias
enquanto valores de uso seriam produtos de algum trabalho. Uma
seria produto deste, outra, produto daquele, mas tanto uma como
outra, produto de trabalho; todas elas tendo em comum, pois, a
característica de serem, igualmente, simplesmente produtos de
trabalho humano. Outro modo de pensar seria o de se ver nas
mercadorias meros valores de troca, sem nelas ver valores de

266
uso. Para nada importaria o valor de uso dos bens quando
trocados, tratando-se simplesmente de que se trocassem. Não se
tendo em vista valor de uso nenhum ou utilidade nenhuma, também
trabalho algum seria tido em vista. Para nada importaria que as
mercadorias corporificassem ou não trabalho, qualquer trabalho,
quer fosse um concreto ou um abstrato, desde que desempenhassem
bem o seu papel de instrumentos de troca. Tratar-se-ia
simplesmente de se livrar de alguma coisa por meio da troca e
não de tê-la como objeto de utilidade. Ainda um outro modo de
pensar seria o de Marx, distinto dos dois primeiros, ainda que
se identificando em parte com o segundo, acreditando ele que,
embora só se permutando por serem valores de uso, as mercadorias
não se igualariam como tais nas trocas, os valores de uso sendo
então desconsiderados. Para que se igualassem, excluir-se-ia a
consideração de seus valores de uso. Por estes, as mercadorias
seriam de qualidade diversa. Haveria que se desconsiderá-los
para que se igualassem. Marx considera, no entanto —
encontrando-se aqui a especificidade de seu pensamento —, que,
mesmo na desconsideração de seus valores de uso, mesmo assim, as
mercadorias, quando igualadas nas trocas, deveriam ser
consideradas como consubstanciações de um certo trabalho, de um
trabalho humano em geral. Marx difere nisto de quem,
considerando as mercadorias como meros valores de troca,
desprezando-as como valores de uso, nelas também não veria
nenhum trabalho. Tratar-se-ia para Marx de se as considerar na
sua igualação nas trocas também só como valores de troca e não
valores de uso, mas, ainda assim, como sendo cristalizações de
trabalho; não de um trabalho produtor de valores de uso, mas de
um trabalho que não esse, de um simples dispêndio de força
humana de trabalho, sem que lhe fosse atribuída qualquer
finalidade ou forma específica, que seriam exclusivamente
pertinentes ao trabalho enquanto atividade produtora de valores
de uso.
Para Marx, o trabalho a ser considerado como corporificado
nas mercadorias quando igualadas não poderia ser aquele produtor
de qualquer valor de uso em sua particularidade; e, insistamos,
não seria também considerado um trabalho que seria um que fosse

267
o produtor dos valores de uso em geral. Marx não considera a
possibilidade de se ver implicado na igualação das mercadorias
nas trocas o conceito de um trabalho produtor dos valores de uso
em sua generalidade. Não que não houvesse para ele esse
conceito:

”Chamamos simplesmente de trabalho útil aquele cuja


utilidade se patenteia no valor de uso do seu produto ou
cujo produto é um valor de uso“106

O trabalho como criador de valores de uso em geral seria


mesmo indispensável à existência do homem, tratar-se-ia da
necessidade natural de estabelecer-se um intercâmbio entre ele e
a natureza:

”O trabalho como criador de valores de uso, como


trabalho útil, é indispensável à existência do homem —
quaisquer que sejam as formas de sociedade —, é necessidade
natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o
homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida
humana.“107

Mas, quando se tratasse da igualação das mercadorias nas


relações de troca, pôr-se-ia mesmo de lado o desígnio do
trabalho, o que o definiria como útil, restando-lhe apenas o
caráter de ser um dispêndio de força humana:

”Pondo-se de lado o desígnio da atividade e, em


consequência, o caráter útil do trabalho, resta-lhe apenas
ser um dispêndio de força humana de trabalho. O trabalho do
alfaiate e o do tecelão, embora atividades produtivas
qualitativamente diferentes, são ambos dispêndio humano
produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos, etc., e,

106
O capital, p. 48-9.
107
O capital, p. 50.

268
desse modo, são ambos trabalho humano. São apenas duas
formas diversas de despender força humana de trabalho.“108

O ofício do tecelão e do alfaiate seriam trabalhos


qualitativamente diversos e tal diversidade não poderia ser
considerada para efeito da igualação de seus produtos em uma
troca. Como atividades produtivas diversas existiriam como
responsáveis pela produção do traje e do tecido, valores de uso
diferentes. Na igualação das mercadorias nas trocas, no entanto,
ter-se-ia de por de lado a diversidade dos valores de uso e,
assim, também a diversidade das atividades que explicariam sua
existência. O trabalho do tecelão e o do alfaiate criariam o
tecido e o traje em função de suas qualidades diversas:

”O trabalho do alfaiate e o do tecelão são elementos


que criam valores de uso, casaco e linho, exatamente por
força de suas qualidades diferentes [...]“109

Mas, para efeito de sua igualação em uma troca, haveria que


se desconsiderá-los em sua diversidade e entendê-los meramente
em sua universalidade de criadores de valor, só o que então
interessaria:

”[...] só são substância do valor do casaco e do


valor do linho quando se põem de lado suas qualidades
particulares, restando a ambos apenas uma única e mesma
qualidade, a de serem trabalho humano.“110

Entender-se-ia talvez, no entanto, que, para Marx, a


atividade do alfaiate e do tecelão, enquanto criadoras de valor,
seriam simplesmente trabalho humano no sentido de que estariam
sendo reduzidas à sua definição de gênero, meramente se
desprezando seus traços distintivos, sendo consideradas, uma e
também outra, simplesmente como atividades produtoras de valores

108
O capital, p. 51.
109
O capital, p. 52.
110
O capital, p. 52.

269
de uso, não deste ou daquele em particular, mas deles em geral:
este trabalho, entender-se-ia talvez, seria o produtor do valor
para Marx. Não é assim que ele pensa; acredita, distintamente,
que, quando da consideração da igualação dos valores de troca,
igualando-se estes pelo seu valor, tratar-se-ia de um outro
trabalho que não um produtor de valores de uso; nem de um que
fosse produtor dos valores de uso em sua particularidade, nem de
um que viesse a ser dado como produtor dos valores de uso em sua
generalidade. Para Marx, ainda que se apresentando nas trocas
como valores de uso, as mercadorias igualar-se-iam exatamente
por serem desprezadas enquanto tais, no que lhes fosse
particular e, também, no que lhes fosse geral; devendo então ser
tomadas, tão somente, como valores de troca e produtos de um
mesmo trabalho humano, aquele que lhes atribuiria valor, sem se
levar em conta, não só a diversidade dos valores de uso de que
se constituiriam, mas também, mesmo simplesmente, o fato de que
seriam valores de uso; tendo-se como consequência que deveriam
ser ainda desconsiderados os trabalhos que a estes teriam
produzido, os trabalhos concretos especificamente diferenciados,
não somente ainda em sua diversidade, mas também mesmo como
sendo, em geral, simplesmente a atividade que os produziria.

”Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do


trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos
neles corporificados [...]“111

Para Marx, na relação de igualdade das mercadorias nas


trocas, o valor de troca mostrar-se-ia mesmo em independência do
valor de uso:

”Na própria relação de permuta das mercadorias, seu


valor de troca revela-se, de todo, independente de seu
valor de uso.“112

111
O capital, p. 44.
112
O capital, p. 45.

270
Mesmo assim, por essa independência dos valores de troca em
relação aos valores uso nas trocas, explicar-se-ia ali a
igualdade das mercadorias: só pelo fato dos valores de troca se
fazerem independentes dos valores de uso é que poderiam vir a
igualar-se. Desprezando-se os últimos, encontrar-se-ia a razão
de sua igualação no fato de serem igualmente corporificações de
um outro trabalho que não o que os produziria, um trabalho que
não teria nada a ver com a sua produção, que não teria mesmo por
finalidade sua produção. Marx não abstrai, como alguém talvez
fosse propenso a entender, a partir dos diferentes trabalhos
concretos cuja finalidade seria a produção dos diferentes
valores de uso, uma ideia geral de trabalho como a atividade da
qual a finalidade seria sua produção; ao contrário, dá como se
mostrando nos processos de intercâmbio um trabalho em
independência de qualquer finalidade útil ou de qualquer
produção de valores de uso.
O procedimento de Marx de definição de uma categoria de um
trabalho sem finalidade ou utilidade segue conforme a
necessidade de dar sentido à sua expressão para as trocas:
mercadoria a = mercadoria b. A expressão, ele próprio considera,
ficaria a nos dever a explicação de como nela se estariam
igualando coisas diversas. Haveria que se encontrar a razão da
igualação contraditória de valores de uso distintos, que é como
as mercadorias ali se apresentam. Na procura de uma explicação
para essa igualação contraditória é que Marx acaba por entender
que as mercadorias só poderiam ali estar se negadas enquanto
valores de uso; só com o que se poderia ver nelas uma
propriedade comum, a de serem produtos de um mesmo trabalho
humano. No entanto, considera ainda ele, não seriam iguais
enquanto produtos de um mesmo trabalho humano se este também,
como já antes os valores de uso, não fosse, também ele, negado
em sua diversidade. Para efeito da igualação das mercadorias,
conforme uma simples expressão do tipo a = b, não haveria como
ver as mercadorias como cristalizações de trabalhos diversos;
havendo de se as considerar como produtos de um trabalho onde
diversidade não existiria. Haveria, pois, que se fazer abstração
da diversidade existente entre os trabalhos concretamente

271
determinados. Esta decorreria necessariamente do fato de serem
produtores de valores de uso. Não se poderia, então, considerá-
los como tais, mesmo em sua generalidade. Haveria que se fazer
abstração de tudo que dissesse respeito aos valores de uso e,
consequentemente, dos trabalhos que lhes corresponderiam, quer
em sua diversidade, quer em sua caracterização geral. Mas,
assim, como vimos, não haveria mais nenhum trabalho a ser
considerado. Se abstraíssemos o fato das mercadorias serem
valores de uso, trabalho mais algum haveria como se ver nelas;
pois trabalho, ter-se-ia de entender, não poderia ser outra
coisa senão a atividade que os teria produzido. Ou as
mercadorias seriam entendidas como valores de uso e, enquanto
tais, nelas se poderia encontrar trabalho; ou, não sendo
entendidas como valores de uso, nenhuma consubstanciação de
trabalho nela poderíamos encontrar. Para entendê-las como tendo
a propriedade de serem produtos de trabalho, Marx teria
necessariamente de mantê-las enquanto valores de uso. Não o
fazendo, ele acaba por ver nelas um trabalho que, não sendo
atividade produtora de qualquer utilidade, não seria mais,
propriamente, um trabalho, mas um inútil ”dispêndio de músculo,
nervos e cérebro humanos“. Ao entender que as mercadorias seriam
dadas nas trocas como produtos de trabalho sem serem valores de
uso, constituir-se-ia a estranha categoria de um trabalho sem
finalidade, produtor de coisa nenhuma. Marx insiste a respeito:

”Ao desaparece o caráter útil dos produtos do


trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos
neles corporificados [...]“113

”Pondo-se de lado o desígnio da atividade produtiva


e, em consequência, o caráter útil do trabalho, resta-lhe
apenas ser um dispêndio de força humana de trabalho.“114

”Os valores de uso caso e linho resultam de


atividades produtivas, subordinadas a objetivos, associadas

113
O capital, p. 44.
114
O capital, p. 51.

272
com pano e fio, mas os valores casaco e linho são
cristalizações homogêneas de trabalho; os trabalhos
contidos nesses valores são considerados apenas dispêndio
de força humana de trabalho, pondo-se de lado sua atuação
produtiva relacionada com o pano e o fio.“115

Poderíamos entender, como vimos, o trabalho enquanto uma


categoria geral, uma mera abstração: a ideia de uma atividade
produtiva humana para a satisfação das necessidades da vida —
este sempre o mesmo em sua generalidade. Poderíamos também
entender o trabalho enquanto atividade produtiva concreta: a
ideia dos diferentes trabalhos produtores de valores de uso —
estes sempre múltiplos e diversos. O primeiro diria respeito à
atividade produtora de valores de uso em sua generalidade; os
segundos, às diversas atividades produtoras de valores de uso em
suas específicas particularidades. Considerando um e outros, no
entanto, teríamos de entender que a abstração do primeiro, de um
trabalho em geral, não se poderia constituir senão a partir da
própria diversidade dos segundos, dos diversos trabalhos
concretos; naquele, então, simplesmente se vendo a qualidade
comum a estes, a qualidade de serem, todos eles, sempre
igualmente trabalho, sempre uma atividade cuja finalidade seria
a produção de valores de uso. A categoria geral daria meramente
expressão a uma propriedade comum que existiria em certo
conjunto de elementos, com relação a outros aspectos, uns
diferentes dos outros. Os vários e diversos trabalhos teriam a
característica comum de serem todos simplesmente trabalho, a
atividade humana voltada para a produção dos bens necessários à
sustentação da vida. Serem simplesmente trabalho humano
constituir-se-ia na substância definidora da categoria geral, do
gênero, de que participariam — mesmo no que se igualariam. As
mercadorias, assim, poderiam ser entendidas como resultantes de
específicos e distintos trabalhos — o trabalho produtor de uma,
diferente do trabalho produtor de outra —, e também todas,
igualmente, produtos do trabalho humano. Negadas seriam em sua
diversidade pelo que lhes fosse uma propriedade comum e com o

115
O capital, p. 52.

273
que se lhes daria uma definição genérica. Negar-se-ia com a
categoria abstrata a diversidade particularista dos valores de
uso e também aquela dos trabalhos responsáveis por sua
existência. Os diferentes trabalhos, executados como tarefas
específicas de distintos indivíduos particulares, deixariam de
ser tidos exclusivamente em sua especificidade e mostrar-se-iam
em seu caráter comum de serem, sim, ”dispêndio de força humana,
de músculos, nervos e cérebro humanos“, mas sempre se tendo em
conta que tal dispêndio ocorreria para a realização de um fim
útil aos próprios homens — que não seria inútil. A
particularidade dos diferentes trabalhos mostrar-se-ia como
forma necessária de uma mesma força social produtora de riqueza,
que haveria sempre, é verdade, de se determinar conforme a
particularidade das diferentes necessidades a que precisaria
satisfazer. O caráter social geral da potência criadora de
riqueza, de valores de uso, afirmar-se-ia sobre suas diferentes
formas particulares como meio de tê-las solidarizadas por sua
definição como partes de um mesmo esforço humano pela
sustentação da vida. Não seriam negadas simplesmente; pelo
contrário, pela categoria geral de pensamento que as abarcaria
seriam mesmo reafirmadas pela compreensão de que umas se
sustentariam pelas outras, havendo um mesmo objetivo para que se
voltariam e de que fariam parte na realização. Sim, uma operação
de pensamento, pois as diversas necessidades humanas, não sendo
dadas senão em sua particularidade, teriam de ser
especificamente satisfeitas, cada qual por um trabalho também
sempre específico em sua particular concretude. Porém a
categoria abstrata ajudar-nos-ia a entender como se
solidarizariam os homens por meio de seus trabalhos. Por ela os
diferentes trabalhos mostrar-se-iam como contribuições a um
mesmo esforço coletivo pela sustentação da vida humana; seus
produtos, como porções de uma mesma riqueza social. Como tais
participariam das trocas. Em sua individualidade particularista,
em sua existência isolada como riqueza individual, os bens
teriam uma existência vinculada a indivíduos determinados na
especificidade de suas necessidades. Em sua particularidade,
como dispêndio de força de trabalho pessoal, os trabalhos

274
individuais teriam sua existência vinculada à particularidade
dos bens que produziriam. Ao serem trocados, os bens mostrar-se-
iam como porções do resultado do solidário esforço humano pela
sustentação da vida; os diferentes trabalhos, como partes desse
esforço.
Se, diferente de Marx e de seu trabalho que não teria por
finalidade a produção de valores de uso, aplicássemos para a
compreensão das relações de troca a categoria geral de um
trabalho à qual pertenceriam todos os diferentes trabalhos
concretos como atividades voltadas para sua produção, este
trabalho em geral não seria produtor de nenhum valor de uso em
particular, mas seria, sim, ainda produtor de valores de uso,
dos valores de uso em sua generalidade. Haveria um trabalho que,
simples abstração, seria produtor de um valor de uso também uma
simples abstração. Tratar-se-ia de uma categoria genérica que
designaria a propriedade comum a todos os trabalhos: aquela de
serem produtores de bens que valeriam para algum uso, aquela de
serem de alguma utilidade. Conforme esta categoria em sua
generalidade, as mercadorias não seriam frutos de um dispêndio
de energia humana cuja utilidade seria nenhuma; não se
encontraria em sua produção um trabalho sem finalidade, como
acaba por fazer Marx: um mero dispêndio de cérebro, músculos e
nervos humanos, sem que tal dispêndio fosse considerado como
sendo de alguma humana utilidade. Poder-se-ia, assim, deste
outro modo que não o de Marx, encontrar no que se igualassem as
mercadorias sem se pôr de lado seus valores de uso e os
trabalhos úteis nelas corporificados.
É difícil entender como Marx não veja o que parece tão
óbvio. É que acaso se pusesse a considerar a pertinência de uma
categoria geral para o trabalho como atividade produtora de
valores de uso ao pensar sua própria expressão para as trocas,
observando que, mesmo lá, as mercadorias a e b, sendo distintas,
estariam igualadas pelo gênero enquanto valores de uso, talvez
ele acabasse por se ver na obrigação de transformá-la, sua
própria expressão, entendendo que de algum modo haveria de nela
se incluir a efetiva definição de a e b como igualmente valores
de uso. Só assim não se desprezaria o suposto e condição mesmos

275
de sua existência em uma troca: o fato de que só como igualmente
valores de uso diversos seriam objeto de demanda, esta por parte
de pessoas também igualmente pessoas diversas. Os valores de uso
só poderiam estar ali como igualmente objetos de demanda; as
pessoas, só como igualmente sujeitos de demanda. Os valores de
uso e as pessoas, uns e outras, não poderiam ali estar a não ser
nos termos de que algo estaria servindo a alguém ou, a alguém,
algo servindo. Um valor de uso a só se faria presente em uma
relação de troca, só se transformaria na mercadoria a, se face a
um indivíduo B, alguém que o tomasse efetivamente como objeto de
seu desejo; um valor de uso b só se transformaria na mercadoria
b se face a um indivíduo A, alguém que também o tomasse
efetivamente como objeto de seu desejo. Os valores de uso só se
definiriam como tais com a determinação dos sujeitos de sua
demanda. Definidos como tais, o objeto do desejo de um estaria
nas mãos do outro: a estaria em mãos de A e não de B, b estaria
em mãos de B e não de A. Para satisfação de seus desejos, teriam
que obter o objeto que estaria nas mãos do outro. Suas demandas,
no entanto, seriam complementares e, acaso encontrassem como
igualá-las bem equilibrando seus termos, efetuar-se-ia uma
troca. Cada um acabaria por vir a obter o bem de seu desejo por
meio de uma relação de troca, onde a demanda de um igualar-se-ia
à demanda do outro, um e outro dos valores envolvidos mostrando-
se em sua igualdade de objetos úteis e uma e outra das pessoas
mostrando-se na igualdade de serem demandantes do bem em mãos do
outro. Assim pensa Aristóteles. Nas trocas, uma mercadoria a
estaria dada como prestando a um indivíduo B um serviço de mesmo
valor que o daquele que uma mercadoria b estaria prestando a um
indivíduo A. A servir-se-ia de b assim como B de a:

A / b = B/ a

Expressão que não seria tão simples como aquela de Marx:


mercadoria a = mercadoria b, ou:

a = b

276
Mas, na expressão de Aristóteles, dificuldade alguma,
segredo algum, haveria; ao contrário do mistério que envolve a
simplificação de Marx, sendo que na tentativa de resolvê-lo ele
acaba por querer que venhamos a crer na existência de um
trabalho que seria da mais absoluta inutilidade.

277

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