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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PLANEJAMENTO URBANO E
REGIONAL

ECONOMIA E TERRITÓRIO I
PROF. CARLOS BRANDÃO
ALUNO: FAUSTO CAFEZEIRO

Resenha de HARVEY, D. O segredo da acumulação primitiva. In Para


entender o capital. Livro I. São Paulo: Boitempo , 2013 (pp. 303-327)
O capítulo relê os capítulos 24 e 25 do Capital de Marx, buscando construir uma
leitura marxista da produção social do espaço em tempos de neoliberalismo. Não é
nenhuma novidade o esforço de Harvey e de outros autores de sua geração (Edward
Soja, Neil Smith, Yves Lacoste, Max Sorre, Pierre George; Ruy Moreira, Armando
Corrês da Silva e Milton Santos no Brasil) em produzir leituras possíveis de uma
economia política do espaço (geográfico). Tendo a Geografia Crítica ambições no
sentido de interpretar a realidade para nela interferir, também não surpreende a filiação
marxista dos autores dessa corrente.
O objetivo central do livro é compreender a obra central de Marx diante do
contexto pós-crise de Wall Sreet. Nesse sentido, é preciso reinterpretar o capitalismo,
identificar continuidades e rupturas com aquele cenário análisado por Marx em meados
do século XIX. Neste capítulo, que tem a acumulação primitiva como objeto,
desconstrói-se o surgimento do capitalismo industrial como processo natural de
evolução da sociedade. O que se tem é um violento processo de alienação dos meios de
produção imposto para fins de acumulação. Desta forma, a acumulação primitiva, em
Marx, significaria a separação absoluta entre a força de trabalho e os meios de
produção, clivagem não tão profunda nos períodos pré-capitalistas. Marx afastou-se da
economia política clássica quando recusou a possibilidade do laissez-faire. A rigor, a
economia capitalista só pode existir depois da expropriação, não sendo obra da livre
iniciativa. Assim, a denominação como acumulação primitiva ou original deve-se a ser
esta a primeira etapa do desenvolvimento das forças produtivas em direção ao
capitalismo.
Especialmente no século XVI, o processo de acumulação primitiva se dá pela
expropriação da terra. Tanto no modelo do capitalismo inglês, em que o Estado emerge
como executor dos cercamentos de campos, quanto nos outros países europeus, onde era
preciso corroer os vestígios do feudalismo nas recentes sociedades mercantis. O
esquema é, grosso modo, expropriar vassalos para que estes não tenham outra
alternativa senão vender sua força de trabalho – e não mais o trabalho na terra
propriamente dito, trocado com o senhor feudal. Forma-se uma classe social de
trabalhadores composta por despossuídos, ao mesmo tempo em que se aliam os
capitalistas rurais, financeiros, comerciais e manufatureiros (p. 309), compondo uma
classe burguesa. Pode-se perceber a importância desse axioma marxiano em outros
autores, como Gramsci em A questão Meriodional, quando trata dos blocos de
hegemonia que costuram alianças na Itália, por exemplo.
Harvey faz menção às transformações espaciais que o capitalismo vai
promovendo conforme se desenvolve, localizando indústrias e funcionalizando áreas de
acordo com as melhores condições para a acumulação e a circulação de dinheiro e
mercadorias (p. 312). A situação descrita é análoga ao movimento do capital sob o
neoliberalismo, em que o mínimo de regulação e a submissão do Estado aos agentes do
capital também é flagrante. A colonização também é considerada, na obra de Marx, uma
forma da acumulação primitiva, ou melhor, seria uma “alavanca” do desenvolvimento
do capitalismo da época. Graças ao sistema colonial, o sistema de créditos mundial e a
transformação do dinheiro expropriado nas colônias em valor pela movimentação do
próprio dinheiro é que o sistema capitalista se funda. Seria este o primeiro “segredo da
acumulação” a que o autor se refere no título do capítulo. É nesse sentido que Marx
critica Adam Smith (por ignorar o papel do Estado e exaltar o papel da livre iniciativa) e
Hegel (para quem a colonização era fruto do amadurecimento da sociedade civil).
A parte final do capítulo constitui num comentário crítico de Harvey à ideia da
acumulação primitiva tal como foi pensada por Marx. É apontado um certo exagero por
parte de Marx em relação à natureza violenta da acumulação primitiva, seguido por
exemplos de processos menos conflituosos (p. 318). De minha parte, não concordo que
o processo de migração de populações inteiras atraídas por melhores condições de vida
seja um exemplo de processo de expropriação pouco violento, levando em conta que
tais condições não são garantias, e sim algo a ser conquistado (ou não) à custa de
trabalho. Pode ser – e aí eu concordaria – que se trate de violências distintas, a primeira
mais no sentido físico e a segunda mais coercitiva, por assim dizer. De qualquer modo,
pode-se tratar de processos tão ou mais violentos que a expropriação descrita por Marx.
Talvez faltasse a Harvey falar de um caso concreto, através do qual se pudesse
compreender melhor essa forma de acumulação primitiva menos violenta.
O comentário em relação às questões de gênero me parece bem pertinente. A
expropriação realmente muda a organização e a divisão do trabalho, gerando novas
expectativas e papéis sociais no que tange às relações de gênero. Outro apontamento
pertinente diz respeito ao papel dado por Marx à acumulação primitiva como etapa do
desenvolvimento das forças produtivas. Uma vez ultrapassada, ela só interessaria como
fase histórica numa sequência linear de fatos. É digno de nota que Harvey sustenta sua
argumentação em Rosa Luxemburgo, autora bastante criticada por ele em outras
ocasiões, quando apontou problemas em relação à derivação que a autora faz para
compreender o imperialismo. Luxemburgo propõe, n’A Acumulação do Capital, que o
imperialismo decorre da impossibilidade de o capital se estabelecer de forma uniforme e
linear em todos os lugares ao mesmo tempo, necessitando sempre de metabolizar-se
com o não-capitalismo. Dessa forma, o que Marx chamou de acumulação primitiva seria
o próprio movimento essencial da reprodução: a expropriação contínua. É nesse sentido
que se dá a expansão imperialista e a criação do mercado mundial. Harvey, em artigo
originalmente publicado em 1975 na revista Antipode1, prefere a análise de Lenin, para
quem seria o imperialismo uma “fase superior do capitalismo”. Parece que, ao longo das
décadas que separam um texto do outro, houve uma mudança de ponto de vista, ou,
talvez, a própria crise de Wall Street tenha feito Harvey abrir-se a outras perspectivas.
Em qualquer um dos casos, o “novo” entendimento sobre o caráter contínuo da
acumulação primitiva mostra-se potencialmente explicativo no contexto atual, quando o
que vemos é o crescimento do lucro a taxas exorbitantes, aumento vertiginoso das
desigualdades e a ocorrência das expropriações num cenário de capitalismo global, ou
neoliberal. Harvey chama, agora, a isso de “acumulação por despossamento”. Não deixa
de ser um outro nome para velhos fenômenos – basta ver que entre Marx e Luxemburgo
já há uma divergência de entendimentos em relação ao mesmo ponto – mas o que o
autor quer marcar é a generalização do processo sob vigência do neoliberalismo.
A obra tem méritos no que diz respeito à atualidade do pensamento marxiano e
no seu pontencial explicativo. A interpretação de Harvey não é do tipo ortodoxa, presa
às amarras das obras clássicas de Marx, apesar de, como mostrado anteriormente, vez
ou outra, pecar pela crítica sem muita precisão – caso dos processos “menos” violentos,
se é que se podem caracterizar assim, de expropriação. Trata-se, porém, de obra

1
HARVEY, D. A geografia da acumulação capitalista: uma reconstrução da teoria marxista. In:
A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
fundamental à compreensão da produção social do espaço e do mecanismo de ajuste
espacial – outro conceito componente da obra de Harvey.

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