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ARGAMASSA DE PÓ DE PEDRA: Protagonista invisível do Centro

de São Paulo

CUNHA, FERNANDA C. (1); OLIVEIRA, MIRIAN C. B. (2)


1. Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Mestrado Profissional de Habitação: Tecnologia em
Construção de Edifícios / Maria Luiza Dutra & Associados Arquitetura e Restauro.
R. João Lopes, nº 334. CEP 04115-080. Vila Mariana. São Paulo/ SP
fernanda@mld.arq.br

2. Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Centro de Tecnologia de Obras de Infraestrutura –


Laboratório de Materiais de Construção Civil
Av. Prof. Almeida Prado, nº 532. CEP 05508-901 Cidade Universitária – Butantã. São Paulo/ SP.
miriancr@ipt.br

RESUMO
O início da Era dos arranha-céus e a consolidação da produção do cimento Portland em São Paulo
proporcionaram a popularização de um revestimento até então pouco conhecido dos paulistanos: a
argamassa de pó de pedra. Este revestimento de caráter decorativo era produzido a partir de cimento,
cal, areia, pó de pedra, pigmento e mica. Um de seus grandes apelos, além do quesito estético, era o
fato de dispensar as onerosas pinturas periódicas, sobretudo em arranha céus, que exigiam instalação
de altos andaimes. Entretanto, sua aplicação era notoriamente trabalhosa e demandava mão- de- obra
especializada. Estima-se que aproximadamente 20% das cerca de 500 edificações tombadas pelo
município de São Paulo nos distritos da Sé e da República apresentem este tipo de revestimento, mas,
não raro, a argamassa de pó de pedra passa despercebida pelos transeuntes que circulam na região
central da cidade. Apesar de amplamente empregado, principalmente entre as décadas de 1930 e 1950,
sua técnica de aplicação foi sendo pouco a pouco esquecida. A escassez de estudos e pesquisas sobre
argamassa de pó de pedra em fachadas de edifícios históricos motivou o tema de dissertação de
mestrado, ainda em fase inicial de elaboração, cujo primeiro fruto é o presente artigo.

Palavras-chave: argamassa de pó de pedra; símile pedra; pedra fingida; revestimento; São Paulo.
Introdução

O ano de 1924 pode ser considerado como um dos grandes marcos na utilização do cimento
Portland em São Paulo, pois apenas então foi iniciada sua produção sistemática com a
implantação de uma fábrica no distrito de Perus, fundada pela Companhia Brasileira de
Cimento Portland (BATAGIN, 2013).

Evidentemente, a importância do cimento para a construção civil já havia se consolidado no


Brasil, mas o fato de, até meados da década de 1920, ser importado fazia com que sua
utilização fosse, de certa forma, limitada, sendo empregado principalmente em edifícios
institucionais e, no caso de edifícios privados, quase que exclusivamente para fins estruturais,
usado na composição do concreto.

Um dos primeiros edifícios altos da cidade de São Paulo foi o Edifício Guinle (figura 1A), na
Rua Direita, inaugurado em 1913 com 10 pavimentos. Mas, coincidentemente ou não, a
chamada Era dos Arranha- céus paulistana foi iniciada apenas no emblemático ano de 1924
com a conclusão do Edifício Sampaio Moreira (figura 1B), localizado na Rua Líbero Badaró,
com 14 andares e cerca de 54 metros de altura, alcançando o título de construção mais alta da
cidade até o ano de 1929, quando foi suplantado pelo edifício Martinelli (figura 1C), também
na Rua Líbero Badaró, com 30 andares e 130 metros de altura.

Figura 1 – Edifícios com revestimento de pó de pedra no Centro de São Paulo

Fonte: Autor, 2012.

3º SEMINÁRIO IBERO-AMERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO


Belo Horizonte, de 12 a 14 de novembro de 2013
ISSN 1983-7518
O início da Era dos arranha-céus aliado à consolidação da produção do cimento Portland em
São Paulo proporcionaram condições adequadas para a popularização do uso de um
revestimento até então pouco conhecido dos paulistanos: a argamassa de pó de pedra.

Trata-se de revestimento de caráter decorativo utilizado com a intenção de simular


revestimentos pétreos, especialmente granitos. Produzido a partir da mistura de cimento
Portland ou cimento branco, cal, areia, pó de pedra, mica e pigmento, dispensava a
necessidade de pintura posterior “porque esta pintura já é feita na própria argamassa na
ocasião de ser executado o serviço” (ALBUQUERQUE, 1957, p. 187).

Os três edifícios supra citados foram revestidos por argamassa de pó de pedra, assim como
tantos outros no centro de São Paulo. Apesar de amplamente empregada, especialmente
entre a década de 1930 e início dos anos 1950, período em que foi vinculada a construções de
viés art-déco, sua técnica de aplicação foi sendo pouco a pouco esquecida, especialmente
quando da valorização da arquitetura moderna e, sobretudo em São Paulo, do brutalismo,
iniciado em meados dos anos 1950, que preconizava a verdade estrutural e o despojamento
de ornamentos. Junte-se a isso o surgimento de novas técnicas e materiais no período do
pós-guerra, a começar pela implantação gradual das fábricas de tintas comerciais que
substituíram satisfatoriamente a consagrada caiação nas fachadas pintadas, proporcionando
maior facilidade de aplicação e maior durabilidade que as tintas a base de cal. Houve ainda, a
partir do final da década de 1940, a popularização das pastilhas de porcelana como
revestimento de fachada, introduzidas por marcas como a Indústria Paulistana de Porcelana
Argilex e Pastilhas Jatobá, rapidamente absorvidas pela nova linguagem modernista.

Atualmente, são escassos os estudos e pesquisas acerca desse revestimento. Salvo sucintas
referências sobre sua composição geral em manuais de construção civil, breves menções em
pesquisas e artigos sobre o art-déco e raros estudos de caracterização executados pelo
Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), foi encontrada apenas uma pesquisa acadêmica
que aborda especificamente o revestimento de pó de pedra1. Dentre os estudos realizados
pelo IPT sobre este revestimento, destaca-se a caracterização das argamassas de pó de
pedra das fachadas do Edifício Adriano Marchini, o primeiro edifício administrativo da Cidade
Universitária de São Paulo, inaugurado em 1954 (OLIVEIRA; CAVANI, 2008).

1
Trata-se de dissertação de mestrado elaborada por Gizela Barbosa do Nascimento em 2008, que aborda a
restauração da argamassa de pó de pedra aplicada a fachadas em estilo art-déco de Belo Horizonte, adotando
como estudo de caso o Edifício Thibau.
A pedra fingida

A argamassa de pó de pedra era aplicada bem comprimida (estucada) diretamente sobre o


paramento ou sobre o emboço, e constituía-se de cimento Portland, cal extinta em obra e
descansada por pelo menos três meses, areia de granulometria fina bem lavada e queimada,
pó de pedra, pigmentos e, por vezes, mica, responsável por conferir-lhe cintilação. O cimento
branco também era utilizado e permitia maior diversificação de cores, mas foi menos
empregado por se tratar de material importado até meados da década de 1950, quando foi
iniciada sua produção no Brasil pela antiga Fábrica de Cimento Irajá, implantada no Rio de
Janeiro.

Um detalhe característico das fachadas com argamassa de pó de pedra são os sulcos


conhecidos como estereotomia, que fornecem à superfície o almejado aspecto de bossagem
de pedra. Além de função estética, estes sulcos exercem importante papel quando da
aplicação da argamassa, pois, assim como alguns revestimentos de argamassa colorida
atuais, o de pó de pedra necessitava ser aplicado de modo que cada plano fosse finalizado em
um mesmo dia de trabalho, terminando no encontro a outro plano ou sulco, de forma a se
evitar qualquer diferença de tonalidade e textura em uma mesma superfície.

O tratamento final a que era submetido o revestimento de pó de pedra, normalmente 24 horas


após a aplicação, lhe conferia diversos aspectos. Os tratamentos mais comuns podem ser
ilustrados da seguinte maneira:

Existem diversos métodos de trabalhá-lo: uns visam por o agregado à mostra,


mediante raspagem com escova de aço após 24 horas, e lavagem com uma
solução ácida, o que lhe dá aspecto rústico; outros dão à superfície os mais
diversos acabamentos, como o penteado, que é feito com pente de aço e
deixa a superfície toda hachurada; o rústico, parcialmente desempenado, é
de efeito belíssimo devido ao contraste, e o ondulado é feito com a
desempenadeira. (PIANCA, 1977, p. 202)

Conforme o tratamento de acabamento recebido, o revestimento recebia alcunhas variadas


como: cimento raspado, massa raspada, reboco raspado, massa lavada, cimento penteado,
pedra artificial de cimento, granito artificial, pedra falsa, pedra fingida, símile pedra, símile
granito, etc.

A partir dos anos 1950 foram disponibilizados no mercado revestimentos prontos que
substituíam a argamassa de pó de pedra feita em obra, oferecendo diversas cores e texturas.
Curioso acompanhar as publicações da Revista Politécnica (1952) que exibem, entre artigos e

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ensaios, anúncios (Figura 2) de marcas como Argamax, Quartzolit e Cirex, a mais
disseminada em São Paulo. Além destas, havia outras marcas de massas pré-fabricadas
como: Itacreto, Pancreto, Durite, Revestin, Revestec e Rebotex (TELES, 2010, p. 250).

Figura 2 – Anúncios de revestimentos prontos

Fonte: Revista Politécnica, 1952.

Um dos grandes apelos para a aplicação da argamassa de pó de pedra entre as décadas de


1920 e 1950, além do quesito estético, era o fato de dispensar as pinturas periódicas sempre
onerosas, sobretudo em arranha céus, que exigiam a instalação de altos andaimes.
Entretanto, sua aplicação era notoriamente trabalhosa e demandava mão de obra
especializada, os chamados frentistas (PIANCA, 1977, p. 202).

Argamassa de pó de pedra no centro de São Paulo

Estima-se que pelos menos 20% das cerca de 500 edificações tombadas pelo município de
São Paulo localizadas nos distritos da Sé e da República apresentem argamassa símile pedra
em suas fachadas. Entretanto, não raro, este revestimento passa despercebido pelos
transeuntes que circulam na região central da cidade.

Além das icônicas construções elencadas no início do artigo, tem-se outros inúmeros edifícios
como o Centro Cultural Banco do Brasil, na R. Álvares Penteado; a Faculdade de Direito do
Largo São Francisco, que recebeu um bloco inteiro de argamassa de pó de pedra na grande
reforma da década de 1930; o Edifício Sulacap na Rua Anchieta; o Palacete São Jorge na R.
Carlos de Souza Nazaré; o Ed. Da Bolsa de Mercadorias & Futuro na R. João Brícola; o
Mosteiro de São Bento no Largo de mesmo nome; a escadaria do Anhangabaú e o Mercado
de Flores, ambos na R. Líbero Badaró.

Vale, ainda, lembrar que algumas ruas concentram numerosos exemplares: dos treze
edifícios tombados na R. Barão de Itapetininga, sete deles apresentam revestimento de pó de
pedra. Já na Rua Marconi, todos os edifícios protegidos são de argamassa de pedra fingida,
apesar de muitos deles terem recebido posteriormente pinturas inadequadas.

Se tão praticado entre as décadas de 1920 e 1950, por quais pretextos deixou de ser
empregado? Um dos motivos para o abandono do uso do revestimento de pó de pedra talvez
tenha sido, até mais importante que mudanças estilísticas, o lançamento de novos materiais e
o incremento tecnológico de outros já consagrados, como pastilhas de porcelana, cerâmicas e
tintas comerciais.

Ainda, se tão presente dentre os importantes exemplares de edificações protegidas pelo


tombamento municipal, porque pouco estudado e divulgado? Talvez por ter já há muitas
décadas caído em desuso ou, talvez, por exercer com mérito a função que lhe foi concedida:
fingir ser pedra.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Alexandre. Construções Civis. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais
Ltda, 1957. 569 p.

BATTAGIN, Arnaldo Forti. Uma breve história do cimento Portland. Disponível em


<www.abcp.org.br/conteudo/basico-sobre-cimento/historia/uma-breve-historia-do-cimento-po
rtland>. Acesso em 30 de julho de 2013.

CORREIA, Telma. de Barros. Art déco e indústria no Brasil, décadas de 1930 e 1940. Anais
do Museu Paulista, São Paulo, v. 16, n. 2, p.47-104, jul./ dez. 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-47142008000200003&script=sci_arttext>.
Acesso em: 10 jul. 2013.

NASCIMENTO, Gizela Barbosa do. Caracterização e utilização de pó-de-pedra em


revestimentos para restauração de edificações históricas em estilo art déco. 2008. 188
f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação de Construção Civil, Escola de
Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
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Belo Horizonte, de 12 a 14 de novembro de 2013
ISSN 1983-7518
OLIVEIRA, Mirian Cruxên Barros de; CAVANI, Gilberto de Ranieri. Avaliação integrada do
estado de conservação do edifício Adriano Marchini, IPT, São Paulo. Revista CPC, São
Paulo, n. 7, p.143-172, nov. 2008/ abr. 2009. Disponível em:
http://www.usp.br/cpc/v1/imagem/conteudo_revista_resenhas_arquivo_pdf/mcboliveira_grca
vani.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2013.

PIANCA, João Baptista. Manual do Construtor. Porto Alegre: Globo, 1977. 2v.

REVISTA POLITÉCNICA. São Paulo: Grêmio Politécnico, n. 166, maio-jun. 1952.

REVISTA POLITÉCNICA. São Paulo: Grêmio Politécnico, n. 168, set-dez. 1952.

TELES, Carlos Dion de Melo. Inspeção de Fachadas Históricas: Levantamento de materiais


e danos de argamassas de revestimento. 322 f. Tese (Doutorado) – Escola de Engenharia de
São Carlos, Universidade de São Carlos, São Carlos,2010.

TINOCO, Jorge Eduardo Lucena. Argamassa Raspada, Simili-Granito, Pedra Fingida e


Cirex. 2. ed. Olinda: Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI), 2013.
2 p. (Boas Práticas - Gestão de Restauro). Disponível em:
<http://www.ceci-br.org/ceci/br/publicacoes/96-boas-praticas.html>. Acesso em: 08 out. 2013.

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