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E AS PESSOAS
Educação deve orientar-se por valores e por projetos com autonomia
financeira e pedagógica para enraizar-se na comunidade
língua materna, a primeira língua que se quer nem ver. Uma revista, um livro já é
fala, e a matemática. Sou professor por diferente. Com a Internet é mais rápido.
vocação, por opção. Saí da engenharia, Em menos de uma hora o que está na rede
vim para cá e nunca fiz outra coisa a não pode perder o valor. A informação é me-
ser trabalhar com educação. O meu inte- nos também do que o conhecimento' . Fa-
resse é que foi se deslocando, aos poucos, lar de conhecimento é falar de teoria, de
de uma disciplina específica para as ques- compreensão. Teoria, no sentido mais no-
tões educacionais em sentido mais amplo, bre da palavra, como uma visão que leva
indo pela porta da filosofia. Sou e perma- à compreensão, uma visão articulada, or-
neço professor de Matemática, mas a mi- ganizada. As informações têm que estar
nha disciplina tem que estar a serviço de interconectadas e correlacionadas. Falar
coisas maiores, estabelecer pontes com de conhecimento é falar de um outro ní-
outras áreas. Este tem sido o cerne do meu vel de articulação das informações dispo-
trabalho aqui. níveis que estão circulando. A educação,
por sua vez, está uma oitava acima disto
RCE: Fala-se muito em crise, crise de tudo. O conhecimento do mundo se legi-
valores, crise social, crise moral. Como tima ou se justifica na medida em que ele
pensar na educação dentro deste quadro pode ser mobilizado para a realização dos
geral? Épossível pensar em valores numa projetos pessoais.
sociedade tão caótica como a nossa?
Níison:Vivemos em uma sociedade que As pessoas é que contam, elas é
se diz a sociedade da informação, do co- que são importantes. O
nhecimento. Mas, acho que, em grande conhecimento, tratado de uma
parte, é uma sociedade banco de dados. Ou maneira técnica, de uma maneira
seja, o que se tem mesmo em abundância
são bancos de dados cada vez maiores, cada disciplinar, não chega à
vez mais abrangentes. Eles não nos possibilidade da rnobilização para
instrumentam, não nos ajudam de um modo realização do projeto das pessoas.
natural. O natural é vivermos soterrados
por estes bancos de dados. Educação exis- Isto está sendo pouco levado em consi-
te quando há pessoas interessadas. É esse deração, em termos educacionais. Não dá
interesse que transforma um dado em uma para separar projetos de valores. Não pos-
informação. Mas falar de informação ain- so ficar feliz se um adolescente, um aluno
da não é falar de educação. A informação de algum nível tem como projeto ser o
circula, comunica-se, fala-se, passa-se maior traficante, o maior bandido. Proje-
adiante, ouve-se, mas ela é efêmera, é frag- to é ter metas, é ter vontade para ir buscar
mento. Os tempos mudam de um veículo estas metas. Ter competência técnica para
para outro. O jornal de ontem, hoje não se planejar a realização desta ação que está
1. Sobre o assunto ver BACCEGA, M. A. Conhecimento, informação e tecnologia. Comunicação & Educação. São
Paulo: CCA-ECA-USPIModerna.n. 1 1, jan./abr. 1998. p.7-12. (N. Ed.)
Comunicação & Educação, São Paulo, (20): 75 a 90, jan./abr. 2001
aí prefigurada. Mas só que não é qualquer cífica, usando muita tecnologia. Mas tudo
meta que vale. Essas metas são eleitas num isso sem uma preocupação igualmente
cenário de valores e esses valores são so- forte com os valores. Não é por acaso que
cialmente acordados. Este cenário de va- nunca se falou tanto, de um lado, de Pro-
lores é historicamente situado e é neste jeto Genoma e, de outro, de bioética, éti-
cenário que tenho os meus projetos. A ca na medicina. A preocupação com a apli-
grande questão da educação é que ela está cação técnica do conhecimento deve ser
estruturada em projetos e valores, ambos, acompanhada do tratamentc de questões
por sua vez, totalmente vinculados ao co- como a aplicação ética do cf~nhecimento.
nhecimento, à informação, aos dados. Te-
nho que mobilizar o conhecimento para RCE: Um exemplofoi a própria ques-
realizar projetos. Não se adquire conheci- tão da bomba atômica. Nós já passamos
mento pelo conhecimento nem se pode por isto.
pensar sonhadoramente no projeto como Níison: A Ciência usurpou a palavra
se não dependesse do estudo das matérias. conhecimento. Se você estivesse num ce-
Li, recentemente, Desenvolvimento como náno como o da Grécia Antiga, falar de
Liberdade, do economista indiano conhecimento era diferente. Há formas e
Amartya Sen2, que ganhou o prêmio formas de conhecer. A arte é uma forma
Nobel de economia de 98. É um livro fun- de conhecer. Com a Ciência moderna, fa-
damental, pela mensagem que transmite: lar de conhecimento é falar de conheci-
o grande problema do mundo, da econo- mento científico. É um modo de conhe-
mia, palavras dele, é que o desenvolvimen- cer. A forma de conhecer mudou ainda
to, no sentido de crescimento econômico, mais nos últimos 100, 150 anos, afu-
passou a ser um fim em si mesmo. Todos nilando o conhecimento científico para o
buscam o crescimento econômico, o de- conhecimento disciplinar. Para se ter uma
senvolvimento. Mata-se a população mas idéia, a palavra cientista passou a ser usa-
tem que haver crescimento. Ele diz que da por volta de 1840. Falar que Newton
temos que buscar o crescimento econômi- era um cientista é tentar enquadrá-lo numa
co, o desenvolvimento, mas isso é meio categoria do século XIX. Newton está
para a promoção da liberdade. muito mais para a filosofia. A física era
uma ciência, uma filosofia natural, e o
O desenvolvimento deve servir conhecimento, a sabedoria era associada
para promover a liberdade, no à filosofia; ela dava suporte ao trabalho
técnico que ele fez em física, em mecâni-
sentido de possibilitar que as ca. Progressivamente a ciência se desco-
pessoas realizem seus projetos. lou, passou a ter um valor em si. A pri-
meira grande dúvida veio com a bomba
Pode-se tomar como exemplo o Proje- atômica. O desembocar na questão ética
to Genoma, que é um trabalho científico aconteceu realmente a partir da bomba atô-
de competência técnica afunilada, espe- mica. Recentemente a questão disciplinar
2. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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Educação:os valores e as pessoas
ficou ainda mais aguda. O sucesso disci- servar nada é perder-se. Tanto é assim que
plinar subiu à cabeça de alguns, então es- educação e cultura caminhamjuntas. A edu-
tudar determinada matéria transformou-se cação é constantemente atacada por este fas-
em um valor em si. Não há projeto, no cínio da transformação. Fica a impressão de
mundo, mais financiado que o Genoma. Há que o espaço da educação seria aquele que
muito dinheiro disponível, muita disputa está entre o presente e o futuro; e o espaço da
etc. Mas, no fundo, ninguém sabe o que cultura entre o passado e o presente, como o
está fazendo. Porque é um movimento sem espaço a se conservar. No entanto, não dá para
a reflexão sobre a ética. Quando esta refle- separar estas coisas por uma razão muito sim-
xão ocorre, são outras pessoas que a estão ples. Ninguém sabe o que é o presente. Se o
fazendo. Os envolvidos no Projeto Genoma presente fosse um pontinho...mas não dá para
estão muito distantes desta questão maior. pensar no presente como um ponto, isso não
Aí está o problema dos valores. se sustenta porque esse ponto é móvel. Aca-
bei de falar e ele já não está mais aqui.
RCE: Percebo algumas discussões no
sentido de que, como no exemplo do Pro- O presente é urna grande bolha
jeto Genoma, os valores sociais ou a dis- e nessa grande bolha sempre
cussão sobre a ética são empecilhos para
o desenvolvimento da ciência. estão o passado e o futuro. A
Nílson: É como se quem quisesse pen- transforinação que se busca e o
sar nas conseqüências, nos valores, nos que sustenta essa conservação,
usos e aplicações da ciência fosse um au-
O que se conserva.
toritário, alguém que quisesse segurar o
desenvolvimentocientífico. Isso é interes-
sante porque aí se tem uma questão edu- RCE: A partir dessesprinclpios, como
cacional típica. É a questão da transfor- pensar concretamente as transformações
mação e da conservação. Há um fascínio mais recentes que tivemos na educação,
pela transformação e uma resistência à com a nova LDB, os Parâmetros
conservação. Há um grande mal-enten- Curriculares? Como pensar os proble-
dido porque a educação é tanto transfor- mas da educação no país? Para onde
mação quanto conservação. Não dá para estamos caminhando?
separar estas coisas. Transformação é lan- Níison: Falar de crise é falar de ausên-
çar-se em busca do novo. Por outro lado, cia ou de mudança, mas falar de projetos.
não há projeto que não eleja metas sem Ou se está sem projeto, sem saber para
conservar, porque eleger uma meta é es- onde se vai ou se está mudando aquilo em
colher aquela que para você tem valor. Ao que se acreditava, ou seja, os projetos. A
associar projeto com valores estou casando idéia de crise sempre está ligada a isso.
indissoluvelmente a transformação com a No nosso caso, o que tem acontecido, com
conservação, o novo e o velho. Porque lan- certa regularidade, é que não se discute
çar-se em busca de alguma coisa sem con- muito sobre projetos, no sentido coletivo.
Comunicação & Educação, São Paulo, (20): 75 a 90, jan./abr. 2001
Mas isso no ensino básico é triste, pois o Digo que a visão do governo é equivo-
tempo extra-sala-de-aula é mínimo. Na cada porque sempre se coloca a capacita-
escola privada é pior ainda. Receber por ção como pressuposto para melhorar as
aula é quase que a regra, há poucas condições de trabalho. E não se sai do lu-
exceções. Quando falo de condições de gar. Digo mais: essa visão é duplamente
trabalho, incluo o regime de trabalho. O equivocada. O segundo equívoco é que,
discurso do governo, nos diversos níveis, mantidas as condições de trabalho, um pro-
a respeito disso, é um discurso equi- fessor que se toma mais competente cai
vocado. A posição é a de que o professor fora. Por exemplo, aqui na Faculdade de
é mal-formado, mal-preparado, de que ele Educação, temos um programa de pós-gra-
não tem competência técnica. O próprio duação muito grande, um deles é o
ministro atual cansou de falar, em matérias Mestrado em ensino de Física, que existe
de jomal, que o ensino vai mal porque o há mais de 20 nos. A quantidade de mes-
professor não sabe ensinar. Segundo esse tres e doutorandos em ensino de Física é
raciocínio, ele não pode ganhar bem. Para grande. Então, o ensino de Física na escola
ganhar bem ele precisa antes ser básica do Estado de São Paulo e no Brasil
capacitado, ser reciclado. Isso é um deveria ser uma maravilha. Isso é uma balela.
equívoco, uma cegueira total. Porque Duvido que mais de 2% ou 3% destes pro-
professores capacitados, competentes fessores que se formaram aqui estejam no
tecnicamente foram progressivamente ensino básico. Foram procurar outra coisa
expulsos da sala de aula por causa das para fazer que não dar aula na escola básica.
condições de trabalho. Muita gente boa se É aí que está a base do equívoco. E tem de
desiludiu, desistiu e foi fazer outra coisa ter paciência porque o processo de expul-
ainda que tivesse gosto, vocação, vontade são de pessoas competentes da sala de aula
de ensinar. O equívoco está em pensar que foi um processo longo, e ainda permanece.
é preciso capacitar antes para poder pagar A reversão também vai ser longa. Tem de
bem depois. Se as condições de trabalho melhorar as condições e ir atraindo as pes-
forem diferentes, muita gente que sumiu soas para o trabalho. Uma outra dimensão
da sala de aula vai querer voltar. desse equívoco é a desconsideração dos
professores atuais. Mesmo do jeito que as
coisas estão, existem professores excelen-
O trabalho de professor sempre tes, fazendo coisas maravilhosas, nos mais
será um trabalho duro. Algo a distantes cantos deste país.
que se dedica só quem
realrnente tem vontade,
vocação, interesse pelo RCE: Dentro dessas mudanças recen-
magistério. tes na educação, como você encara a
questão da aprovação ou promoção auto-
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mática? O que isso tem a ver com os ín- longo do trabalho, é uma coisa diferen-
dices necessários para serem mostrados ciada para os diversos alunos. Nas déca-
às grandes instituições que fornecem ji- das de 50,60 havia o exame de admissão
nanciamento a projetos, como o Banco ao ginásio. Era uma época em que havia
Mundial e outras? Por que os índices de um funil, era tão importante como é o ves-
aprovação não são bons no nosso país? tibular, na passagem do primário para o
Como é que se relaciona este sistema de ginásio. Os ginásios estaduais eram esco-
avaliação, de promoção, com o fato da las boas, porque não deixavam todo mun-
aquisição das informações ou do conhe- do entrar. O funil estava antes. A reforma
cimento pela criança e este outro, que é que acabou com o exame de admissão ao
um problema político-econômico, da nos- ginásio foi uma decisão política, e abso-
sa relação com os órgãos internacionais? lutamente correta, mas não foi acompa-
Nilson: Na imprensa, vêem-se, frequen- nhada das condições materiais, nas esco-
temente, declarações de governadores, de las, para ser realizada. Dizem que baixou
prefeitos sobre o "absurdo que é a promo- o nível do ginásio. Não baixou o nível. A
ção automática", o "absurdo de todo mun- quantidade de ginásios bons que havia
do ser aprovado". Estas declarações são antes continuou a existir depois, só que se
essencialmente equivocadas. Eles não têm antes havia meia dúzia de alunos, depois
obrigação de abordar o assunto tecnica- passou a haver 600. Diluiu-se a qualidade.
mente, não é o caso. Não se criaram as condições para que to-
dos fossem bons ginásios. Não foi e não é
O absurdo é não se dar condições algo que se resolve por decreto. Por de-
efetivas para que a aprovação creto, acabaram legitimamente com o fu-
automática seja natural! Absurdo nil. Por decreto, pode-se acabar com esta
forma de reprovar, de se ter índices de re-
é não existirem condições provação vergonhosos.
efetivas para isso: condições de Mas e as condições? Aí é que deveria
trabalho, condições na escola. residir a preocupação. Mas a preocupação
não tem sido com o defunto e sim com o
É absolutamente natural que as crian- atestado de óbito. O defunto mesmo não
ças sejam aprovadas, ou mudem de ano está interessando, mas o atestado de óbi-
como mudam de idade. Todo mundo pas- to está ficando cada vez mais bonito. Por-
sa de 8 para 9 anos, e todo mundo passa que os índices de reprovação estão ótimos.
da segunda para a terceira série. Isso é o Isso no papel. Na realidade, não mudou
normal. Mas não pode ser por decreto. muito o trabalho com o aluno. E precisa-
Precisam existir condições para que isso ria mudar. Mudar o sentido do que se ava-
ocorra. Esta história de recuperação com lia, levando em consideração o espectro
hora marcada não faz sentido. A recupe- de competências que as pessoas têm e de-
ração vem com o acompanhamento ao senvolvem, e não exclusivamentebaseado
Educação: os valores e as pessoas
dito que a aprovação direta tirou dele o Nesse sentido, a reforma está numa di-
direito ou o poder de decidir sobre o reção correta, ou seja, tirar da mão do pro-
aproveitamento do aluno, fazendo com fessor o que está sendo um instrumento
que ele perca a importância em sala de de medida no âmbito de uma disciplina.
aula. O professor tem se ressentido com Outra vez, o grande problema é que está
essa promoção automática, vendo nisso sendo só tirado, não está havendo um in-
uma medida que piorou suas condições cremento das relações interpessoais, a
de trabalho. O que você tem a dizer so- aproximação professor-aluno. Estão man-
bre isso? tidas as demais condições.
Níison: O fato é que a relação profes-
sor-aluno inclui os processos de avalia- MEIOS DE COMUNICA@~O
ção. É uma relação mediada muito dire- E ESCOLA
tamente, quase que exclusivamente pela
disciplina que se ensina. Então o professor RCE: Como você vê o papel dos meios
de Matemática, o professor de Português, de comunicação na inter-relação escola-
o professor de História avaliam não o alu- sociedade-família-aluno-professol; já que
nolpessoa. Eles avaliam o aluno de Mate- hoje os meios de comunicação são media-
mática, o aluno de Português..., o que é dores privilegiados da realidade?
insatisfatório. A relação professor-aluno, Níison:A questão central desta pergunta
em todos os níveis, da creche à universida- é a questão do papel da escola.A escola não
de tem de ser uma relação entre pessoas, pode ser o único espaço, o único responsá-
uma relação interpessoal, uma relação inter- vel pela questão dos projetos, dos valores.
subjetiva, entre sujeitos, e não uma relação A questão dos valores, por exemplo, tem de
condicionadapor uma matéria. Praticamen- ser partilhada na escola, na família, nos
te o professor conhece o aluno como aluno meios de comunicação. A mídia em geral
da sua matéria. Isso é altamente limitante tem responsabilidadesem relação aos valo-
num processo de avaliação. Nenhuma ma- res. Não dá para aceitar, por exemplo, este
téria é fim em si mesma, na escola básica. joguinho que os pais estão correndo para
Não posso fazer da matéria um fim. Ela é comprar nos EUA, que tem uma cadeira elé-
um meio para a promoção da liberdade, no trica onde a criança põe um boneco, e vai
sentido de Amartya Sen. Meio para os alu- controlando para matá-lo rápido, mais len-
nos realizarem os projetos que têm. to, etc. A criança coloca forças diferentes e
Comunicação & Educação,São Paulo, (20): 75 a 90, jan./abr,2001
3. Sobre o assunto ver TORIELLO, Luciano Biagio. Videogame, escola e conto popular. Comunicação & Educação.
São Paulo: CCA-ECA-USPModerna, n.8, jan./abr. 1997. (N. Ed.)
Educação: os valores e as pessoas
4. REICH, Robert O trabaiho das nações. Preparando-nospara o capitalismodo século 21. São Paulo: Educator, 1994.(N. Ed.)
Comunicação & Educação, São Paulo, (20): 75 a 90, jan./abr. 2001
de coisas e vão trabalhar em outras tare- 1997, uma questão como esta me foi pro-
fas que não são ligadas diretamente àque- posta por uma revista portuguesa, uma
la em que se formaram. E não há como revista de educação em Matemática. Re-
consertar isso. digi, então, um artigo que tem como títu-
lo Educação: seis propostas para o pró-
Quem tem de entrar em sintonia ximo milênio5.O artigo é uma paráfrase
com o mundo do trabalho é o ao livro do Ítalo Calvino. O artigo foi tam-
bém publicado pelo Instituto de Estudos
espectro de formação das Avançados da USP. São seis valores da
universidades, não no sentido educação. O primeiro é a cidadania. A
de mudar as carreiras e formar educação como o espaço de construção da
outras específicas. O problema cidadania. Uma outra idéia é o profis-
sionalismo, mas o profissionalismo como
reside na especificidade. espaço que reúne uma competência
técnica, um compromisso público e uma
Necessita-se de uma formação muito auto-regulação. Então, se sou um profis-
mais abrangente, transdisciplinar, inter- sional de educação não é o governo, o
disciplinar, uma formação muito mais governador ou o meu diretor que vai me
ampla do que esta formação excessiva- dizer exatamente o que tenho de fazer na
mente especializada que se tem na uni- sala de aula. Se você é um médico, não é
versidade. Na engenharia, nunca vão se porque você trabalha numa empresa
estudar coisas da faculdade de filosofia. privada que você vai vender a alma, você
Fiz Matemática, e desde o início somos é profissional. A contrapartida disso é uma
obrigados a optar ou por licenciatura ou auto-regulação, que toda categoria
por bacharelado, matemática aplicada ou profissional tem de ter. Os destinos da
computação. Quer dizer, o aluno já entra educação, da medicina não podem ser
numa sub-carreira. Isso é um descompasso decididos pelo governo ou por uma
entre as carreiras para as quais as pessoas empresa. Os profissionais têm de ter a
estão sendo formadas e o modo que o uni- palavra. Outro valor é a tolerância, a idéia
verso do trabalho se organiza. O mundo da tolerância no sentido da consideração,
do trabalho aponta no sentido de uma for- do respeito pela diversidade do projeto,
mação que diz muito mais às competên- dos projetos pessoais, projetos coletivos.
cias pessoais, num sentido bem amplo, e A integridade no sentido de haver um
muito menos em matérias específicas. compromisso entre discurso e ação. Ter
um quadro de valores muito arrumadinho
RCE: Quais são os grandes desafios no nível do discurso e a ação não ter nada
da educação para o próximo milênio? a ver com isso é pura falta de integridade.
Níison: Há uns três anos, no fim de O equilíbrio tem a ver com tudo isso que
5. MACHADO, Níison José. Educação: seis propostas para o próximo milênio. Coleção Documentos. São Paulo/
IEA-USP, n. 16, outubro/l998.
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Educação: os valores e as pessoas
foi falado, mas tem a ver especificamente pessoa ao cidadão. Votar e ser votado é
com o pacto entre a transformação e a um instrumento de cidadania. É um
conservação, porque o discernimento do direito, mas não deveria ser uma
que tem de mudar e o que se tem de obrigação. É uma decisão pessoal, e esta
conservar é absolutamente crucial. questão da pessoalidade é mal-entendida.
Finalmente, a pessoalidade. A pessoa é É vista com uma questão de indivi-
mais do que um cidadão e essa educação dualidade, individualismo. Mas no fundo,
tem de ser educação para a pessoalidade. o que conta são as pessoas. Há um espaço
Não se pode resumir o cidadão ao que é seu, pessoal, onde nenhuma
consumidor. O consumidor é uma autoridade no mundo pode ser maior que
dimensão da cidadania. Se o cidadão é a sua. Então, estes valores para a educação
reduzido a consumidor é uma tragédia, deveriam marcar nossas preocupações
mas acho que é também trágico reduzir a para o próximo milênio.
Resumo: Nílson José Machado, professor Abstract: Nílson José Machado,professor of the
doutor da Faculdade de Educação da USP, em College of Education at USP, in an exclusive
entrevista exclusiva a Comunicação & Educa- interview to Comunicação & Educação, talks
ção, fala de sua trajetória intelectual, de seu about his intellectual trajectory, about his interest
interesse pela Matemática, pela Filosofia e, in Mathematics, Philosophy and, most
principalmente, pela Educação. Discute a na- especially, in Education. He discusses the
tureza da crise do sistema educacional e afir- nature of the educational system crisis and
ma que grande parte do problema está na fal- claims that a major part of the problem lies in
ta de clareza e de discussão, com a socieda- the lack of clarity and discussion, with the
de, sobre os valores e o projeto que se quer society, about the values and on the project that
para a Educação. Critica o excesso de docu- is desired for Education. He criticizes the
mentos que pretendem orientar a ação do pro- excessive amount of documents aimed at
fessor em sala de aula e realça a importância guiding the teacher's performance in the
de a escola estar enraizada em sua comuni- classroom and stresses the importance of the
dade. Destaca, ainda, a valorização profissio- school being rooted into its community. He also
nal do professor, do ponto de vista do regime stresses the need there isto valuing the teacher
de trabalho e do salário, como caminho para professionally, from the point of view of both
a melhoria da qualidade do ensino. Ele apóia work and wages, as a way to improve teaching
a promoção automática dos alunos, mas dis- quality. He supports automatic promotion for the
corda da forma como tal medida foi implanta- student, but disagrees with the manner in which
da. Para ele, a Educação para o trabalho deve this measure was implanted.To him, Education
pautar-se pela importância da formação inte- for work must be guided by the irnportance of
gral, abrangente, condenando a especializa- integral and complete training, condemning
ção. Finaliza suas declarações falando sobre specialization. He finalizes his statements
cidadania e os pontos importantes a serem talking about citizenship and about the important
levados em conta pela Educação para o ter- points to be considered by Education for the
ceiro milênio. third millennium.