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EDUCAÇAO: OS VALORES

E AS PESSOAS
Educação deve orientar-se por valores e por projetos com autonomia
financeira e pedagógica para enraizar-se na comunidade

ílson José Machado, profes- Educação, onde é responsável pelo pro-


sor de Matemática e filóso- grama de Ensino de Física. Como filó-
fo, em entrevista à Comuni- sofo da Educação tem contribuído para
cação & Educação, dá seu ponto de pensar a Educação em relação ao tra-
vista sobre a crise na educação e indi- balho, à cidadania e aos desafios para
ca os pressupostos para superá-la. Ele o próximo século.
formou-se em Matemática pelo Institu-
to de Matemática e Estatística da USP
e fez pós-graduação na Faculdade de Por Roseli Fígaro

Revista Comunicação & Educação: Completei o curso e fiquei trabalhando no


Gostaria que inicialmente você fizesse Instituto de Matemática e Estatística -
uma auto-apresentação. Fale do seu tra- IME durante dez anos, até dar uma outra
balho, de como você chegou aqui. guinada e vir fazer pós-graduação na Fa-
Níison José Machado: Vim da Enge- culdade de Educação. Desde 84 estou
nharia Eletrônica do Instituto Tecnológico aqui. Mas, de fato, a Filosofia sempre fez
da Aeronáutica - ITA. No terceiro ano vi parte de meu interesse e isso me levou, de
que engenharia não era o meu interesse e um modo muito natural, ao tema do meu
aí vim para a Matemática aqui na USP. doutorado: a impregnação mútua entre a
Educação: os valores e a s pessoas

língua materna, a primeira língua que se quer nem ver. Uma revista, um livro já é
fala, e a matemática. Sou professor por diferente. Com a Internet é mais rápido.
vocação, por opção. Saí da engenharia, Em menos de uma hora o que está na rede
vim para cá e nunca fiz outra coisa a não pode perder o valor. A informação é me-
ser trabalhar com educação. O meu inte- nos também do que o conhecimento' . Fa-
resse é que foi se deslocando, aos poucos, lar de conhecimento é falar de teoria, de
de uma disciplina específica para as ques- compreensão. Teoria, no sentido mais no-
tões educacionais em sentido mais amplo, bre da palavra, como uma visão que leva
indo pela porta da filosofia. Sou e perma- à compreensão, uma visão articulada, or-
neço professor de Matemática, mas a mi- ganizada. As informações têm que estar
nha disciplina tem que estar a serviço de interconectadas e correlacionadas. Falar
coisas maiores, estabelecer pontes com de conhecimento é falar de um outro ní-
outras áreas. Este tem sido o cerne do meu vel de articulação das informações dispo-
trabalho aqui. níveis que estão circulando. A educação,
por sua vez, está uma oitava acima disto
RCE: Fala-se muito em crise, crise de tudo. O conhecimento do mundo se legi-
valores, crise social, crise moral. Como tima ou se justifica na medida em que ele
pensar na educação dentro deste quadro pode ser mobilizado para a realização dos
geral? Épossível pensar em valores numa projetos pessoais.
sociedade tão caótica como a nossa?
Níison:Vivemos em uma sociedade que As pessoas é que contam, elas é
se diz a sociedade da informação, do co- que são importantes. O
nhecimento. Mas, acho que, em grande conhecimento, tratado de uma
parte, é uma sociedade banco de dados. Ou maneira técnica, de uma maneira
seja, o que se tem mesmo em abundância
são bancos de dados cada vez maiores, cada disciplinar, não chega à
vez mais abrangentes. Eles não nos possibilidade da rnobilização para
instrumentam, não nos ajudam de um modo realização do projeto das pessoas.
natural. O natural é vivermos soterrados
por estes bancos de dados. Educação exis- Isto está sendo pouco levado em consi-
te quando há pessoas interessadas. É esse deração, em termos educacionais. Não dá
interesse que transforma um dado em uma para separar projetos de valores. Não pos-
informação. Mas falar de informação ain- so ficar feliz se um adolescente, um aluno
da não é falar de educação. A informação de algum nível tem como projeto ser o
circula, comunica-se, fala-se, passa-se maior traficante, o maior bandido. Proje-
adiante, ouve-se, mas ela é efêmera, é frag- to é ter metas, é ter vontade para ir buscar
mento. Os tempos mudam de um veículo estas metas. Ter competência técnica para
para outro. O jornal de ontem, hoje não se planejar a realização desta ação que está

1. Sobre o assunto ver BACCEGA, M. A. Conhecimento, informação e tecnologia. Comunicação & Educação. São
Paulo: CCA-ECA-USPIModerna.n. 1 1, jan./abr. 1998. p.7-12. (N. Ed.)
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aí prefigurada. Mas só que não é qualquer cífica, usando muita tecnologia. Mas tudo
meta que vale. Essas metas são eleitas num isso sem uma preocupação igualmente
cenário de valores e esses valores são so- forte com os valores. Não é por acaso que
cialmente acordados. Este cenário de va- nunca se falou tanto, de um lado, de Pro-
lores é historicamente situado e é neste jeto Genoma e, de outro, de bioética, éti-
cenário que tenho os meus projetos. A ca na medicina. A preocupação com a apli-
grande questão da educação é que ela está cação técnica do conhecimento deve ser
estruturada em projetos e valores, ambos, acompanhada do tratamentc de questões
por sua vez, totalmente vinculados ao co- como a aplicação ética do cf~nhecimento.
nhecimento, à informação, aos dados. Te-
nho que mobilizar o conhecimento para RCE: Um exemplofoi a própria ques-
realizar projetos. Não se adquire conheci- tão da bomba atômica. Nós já passamos
mento pelo conhecimento nem se pode por isto.
pensar sonhadoramente no projeto como Níison: A Ciência usurpou a palavra
se não dependesse do estudo das matérias. conhecimento. Se você estivesse num ce-
Li, recentemente, Desenvolvimento como náno como o da Grécia Antiga, falar de
Liberdade, do economista indiano conhecimento era diferente. Há formas e
Amartya Sen2, que ganhou o prêmio formas de conhecer. A arte é uma forma
Nobel de economia de 98. É um livro fun- de conhecer. Com a Ciência moderna, fa-
damental, pela mensagem que transmite: lar de conhecimento é falar de conheci-
o grande problema do mundo, da econo- mento científico. É um modo de conhe-
mia, palavras dele, é que o desenvolvimen- cer. A forma de conhecer mudou ainda
to, no sentido de crescimento econômico, mais nos últimos 100, 150 anos, afu-
passou a ser um fim em si mesmo. Todos nilando o conhecimento científico para o
buscam o crescimento econômico, o de- conhecimento disciplinar. Para se ter uma
senvolvimento. Mata-se a população mas idéia, a palavra cientista passou a ser usa-
tem que haver crescimento. Ele diz que da por volta de 1840. Falar que Newton
temos que buscar o crescimento econômi- era um cientista é tentar enquadrá-lo numa
co, o desenvolvimento, mas isso é meio categoria do século XIX. Newton está
para a promoção da liberdade. muito mais para a filosofia. A física era
uma ciência, uma filosofia natural, e o
O desenvolvimento deve servir conhecimento, a sabedoria era associada
para promover a liberdade, no à filosofia; ela dava suporte ao trabalho
técnico que ele fez em física, em mecâni-
sentido de possibilitar que as ca. Progressivamente a ciência se desco-
pessoas realizem seus projetos. lou, passou a ter um valor em si. A pri-
meira grande dúvida veio com a bomba
Pode-se tomar como exemplo o Proje- atômica. O desembocar na questão ética
to Genoma, que é um trabalho científico aconteceu realmente a partir da bomba atô-
de competência técnica afunilada, espe- mica. Recentemente a questão disciplinar

2. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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Educação:os valores e as pessoas

ficou ainda mais aguda. O sucesso disci- servar nada é perder-se. Tanto é assim que
plinar subiu à cabeça de alguns, então es- educação e cultura caminhamjuntas. A edu-
tudar determinada matéria transformou-se cação é constantemente atacada por este fas-
em um valor em si. Não há projeto, no cínio da transformação. Fica a impressão de
mundo, mais financiado que o Genoma. Há que o espaço da educação seria aquele que
muito dinheiro disponível, muita disputa está entre o presente e o futuro; e o espaço da
etc. Mas, no fundo, ninguém sabe o que cultura entre o passado e o presente, como o
está fazendo. Porque é um movimento sem espaço a se conservar. No entanto, não dá para
a reflexão sobre a ética. Quando esta refle- separar estas coisas por uma razão muito sim-
xão ocorre, são outras pessoas que a estão ples. Ninguém sabe o que é o presente. Se o
fazendo. Os envolvidos no Projeto Genoma presente fosse um pontinho...mas não dá para
estão muito distantes desta questão maior. pensar no presente como um ponto, isso não
Aí está o problema dos valores. se sustenta porque esse ponto é móvel. Aca-
bei de falar e ele já não está mais aqui.
RCE: Percebo algumas discussões no
sentido de que, como no exemplo do Pro- O presente é urna grande bolha
jeto Genoma, os valores sociais ou a dis- e nessa grande bolha sempre
cussão sobre a ética são empecilhos para
o desenvolvimento da ciência. estão o passado e o futuro. A
Nílson: É como se quem quisesse pen- transforinação que se busca e o
sar nas conseqüências, nos valores, nos que sustenta essa conservação,
usos e aplicações da ciência fosse um au-
O que se conserva.
toritário, alguém que quisesse segurar o
desenvolvimentocientífico. Isso é interes-
sante porque aí se tem uma questão edu- RCE: A partir dessesprinclpios, como
cacional típica. É a questão da transfor- pensar concretamente as transformações
mação e da conservação. Há um fascínio mais recentes que tivemos na educação,
pela transformação e uma resistência à com a nova LDB, os Parâmetros
conservação. Há um grande mal-enten- Curriculares? Como pensar os proble-
dido porque a educação é tanto transfor- mas da educação no país? Para onde
mação quanto conservação. Não dá para estamos caminhando?
separar estas coisas. Transformação é lan- Níison: Falar de crise é falar de ausên-
çar-se em busca do novo. Por outro lado, cia ou de mudança, mas falar de projetos.
não há projeto que não eleja metas sem Ou se está sem projeto, sem saber para
conservar, porque eleger uma meta é es- onde se vai ou se está mudando aquilo em
colher aquela que para você tem valor. Ao que se acreditava, ou seja, os projetos. A
associar projeto com valores estou casando idéia de crise sempre está ligada a isso.
indissoluvelmente a transformação com a No nosso caso, o que tem acontecido, com
conservação, o novo e o velho. Porque lan- certa regularidade, é que não se discute
çar-se em busca de alguma coisa sem con- muito sobre projetos, no sentido coletivo.
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cimento, de informação, de dados, preci-


so planejar. Existem as etapas, as metas
intermediárias. No entanto, reduzir o pro-
jeto ao planejamento, dar o projeto como
se estivesse pronto, este é o problema.

Ninguém está discutindo com o


país, com o meio educacional,
o rumo está dado.
Prof Dr. Nilson Jose Machado O desenvolvimento
deveria ser um meio para a felicidade das pessoas.
Estamos discutindo só o planejamento,
A verdadeira idéia de cidadania tem a ver ou seja, a realização, a etapa operatória
exatamente com esta articulação entre o do projeto. Mas queremos discutir o pro-
pessoal e o coletivo. Mas isso entre nós jeto. Só que no projeto não se fala, fala-se
não existe. Quando é que se discute isso, do planejamento. E pior ainda: planeja-
quais são os espaços em que se discute mento é necessário, mas ele é uma coisa
um projeto coletivo? Praticamente, esta viva, é uma coisa para estar sendo
discussão é reduzida, muitas vezes se res- corrigida continuamente, não é fixo, duro.
tringe ao período eleitoral. E isso é péssi- No momento em que se reduz a questão
mo, pois deveria ser permanente, estar em do planejamento à legislação, à lei, aíche-
todos os espaços: na universidade, nas ga-se a um paroxismo, porque a lei é o
escolas ... De modo geral, em todos os ní- que é rígido, o que é fixo. Por exemplo,
veis em que se trabalha com educação, esta fixar na Constituição de 1988, como está
é a questão crucial: a articulação entre o fixado, que haverá um plano nacional de
pessoal e o coletivo. Mas isso, frequente- educação, é uma coisa entre o óbvio e o
mente, tem sido reduzido ao momento de caricato. Discute-se pouco sobre projetos
eleição. E quando alguém ganha uma elei- e aí está o cerne da crise, da grande crise.
ção parece, para o grupo que ganhou, que Só se discute sobre as etapas operatórias,
o projeto não se discute mais. Só se dis- planejar é uma preocupação que beira à
cutem planos, plano de governo, planeja- caricatura de transformar tudo em lei. In-
mento. Plano é o que vem depois do pro- cluo nisso a vinculação orçamentária. Por
jeto. Quer dizer, o projeto é o crucial, acho que fixar 30% do orçamento municipal
que é o que caracteriza a ação humana em para educação? Pode haver ano em que se
si. Sem ilusão não se faz projeto, sem es- usem 50% ou 60%, ou anos em que não
perança, sem vontade. O projeto é mais são necessários nem os 30%, porque um
do que um sonho porque é a antecipação projeto já implantado necessita apenas de
de uma ação que depende do sujeito que manutenção. No entanto, a desconfiançado
está projetando. Não basta ter vontade para descumprimento leva a uma fixação na lei.
poder realizar projetos. Preciso de conhe- Desconfia-se das pessoas e, por isso, im-
Educação: os valores e a s pessoas

põe-se a lei. E esse caminho é inteiramente Não há exemplos de escolas


equivocado porque a coisa mais simples
neste país é burlar a lei. As pessoas usam bem sucedidas em nenhum
estes 30% para asfaltar ruas próximas às lugar, que não sejam escolas
escolas, para comprar estrume para pôr nas enraizadas numa cultura, numa
praças próximas às escolas, e tudo isto é comunidade.
verba gasta com educação! Então é uma
ilusão, no pior sentido da palavra ilusão,
de que colocando na lei está garantido.... Desse enraizamento é que nasce o
projeto da escola. E não há porque pre-
LDR E PLANEJAMENTO tender que as escolas sejam todas iguais.
As escolas não são iguais, como as pessoas
RCE: E os planos, as perspectivas não são iguais. E essa diferença tem de
apontadas pela LDB, do ponto de vista ser considerada. É importante que haja
até do planejamento disciplinal; das in- uma escola do tipo ortodoxa judaica, ou
formap5es que vão circular na escola: uma escola do tipo Waldorf, um colégio
como é que você vê isso? Como você en- como o Bandeirantes, uma escola marista,
xerga os Parâmetros Curriculares dentro católica etc ... Cada uma tem um quadro
da nossa realidade? diferente de valores. E o pai escolhe onde
Níison:A situação é ambígua. Há uma pôr o filho em função da sintonia com o
intenção interessante, uma perspectiva até projeto da escola. As escolas públicas
correta, bem orientada, mas uma intenção também são diferentes. Não pela cultura
realizada da maneira mais inadequada ou pela religião, mas porque estão enrai-
possível. Qualificando esta afirmação: zadas em comunidades diferentes. E isso
haver dez volumes de Parâmetros não é um problema, ao contrário, deve ser
Curriculares da primeira à quarta séries, estimulado, é a condição da possibilidade
dez volumes de Parâmetros da quinta à de elas serem bem sucedidas. É claro que
oitava séries e mais quatro volumes para vivemos num país e é salutar que se tenha
o ensino médio, isso dá uma parafernália um quadro de valores para as escolas do
de documentos, de textos e não é por aí. A país inteiro. Mas, esse quadro de valores
pressuposição é a de que o professor não não pode ser uma coisa com este nível de
é competente para realizar as orientações pormenor que vem nos documentos
maiores. Os documentos deveriam limi- oficiais. Os professores acabam sentindo-
tar-se a orientações, a realização deveria se incompetentes. Chegam a pedir mais
ser local. A autonomia da escola não pode documentos para explicar como realizar
ser limitada à autonomia financeira. A es- as tarefas. É um absurdo pedir mais. Já há
cola tem de ter autonomia de projeto. muitos outros documentos visando a uma
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operacionalização. São "Os Parâmetros que especificam até que o constnitivismo


em Ação", que são documentos para pôr é o modo de se trabalhar em sala de aula, e
os Parâmetros em sala de aula. como deve ser feita a avaliação.

Há documentos demais, tem de RCE: Como dar autonomia às escolas,


para que elas possam ser parte da comu-
reduzir a quantidade de coisas
nidade, se as escolas de fato estão
escritas como orientação para desvinculadas da comunidade? O profes-
as escolas, reduzir a 10%,a 5% sor não tem vínculo com a sua própria
escola, trabalha três períodos em escolas
do que existe. diferentes. Ele não tem tempo para aten-
der um pai que querfalar sobre o aprovei-
Houve uma reforma educacional no tamento do aluno, e nem o aluno. Ele se-
Canadá, em 1997. E essa reforma foi quer tem tempo para preparar as aulas de
abrangente, pegou crianças desde o ensino acordo com a classe e seu respectivo apro-
primário até fim do ensino secundário. O veitamento. Como resolver esta questão?
documento norteador desta reforma tinha Nílson: A visão do ministério, do
46 páginas. É o que dá o norte, a nova governo a esse respeito é totalmente
direção para as escolas. E são questões equivocada. A condição de trabalho do
cruciais: os valores, o papel da informática professor é insatisfatória, sobretudo da
etc. e um quadro de disciplinas para cada escola básica. Essa condição de trabalho
ciclo, um quadro sumário. Tem o nome da inclui, obviamente, a remuneração, mas
disciplina e cinco linhas sobre a proposta. não pára na remuneração. Estou falando,
A realização é local e não foi preciso por exemplo, do regime de trabalho, que
escrever um volume inteiro para dizer qual é até mais importante do que a
o conteúdo de cada disciplina. Essa remuneração. As escolas particulares
reforma, na verdade, teve dois documentos: ainda não atentaram para isso, quando
esse de 46 páginas; e outro, com 56 páginas, atentarem, e otimisticamente supondo que
dirigido aos pais. Este último procurou atentem, elas vão crescer muito de
explicar o sentido daquela reforma aos pais, importância. Professor ganhar por aula é
porque a participação dos pais é uma aberração. Na universidade, de um
fundamental na escola. Não na parte modo geral, dão-se menos aulas do que
pedagógica. Está tratando da vida da escola, se deveria. Dão-se oito ou seis aulas, isso
que vai muito além desta parte pedagógica. é insignificante, deveria ser mais.
O documento aponta o rumo. Isso pode ser Principalmente, diante das limitações
um extremo. Mas estamos em outro orçamentárias em que se vive, não mata
extremo, o de produzir milhares de páginas, ninguém dar 10 ou 12 aulas por semana.
Educação: os valores e as pessoas

Mas isso no ensino básico é triste, pois o Digo que a visão do governo é equivo-
tempo extra-sala-de-aula é mínimo. Na cada porque sempre se coloca a capacita-
escola privada é pior ainda. Receber por ção como pressuposto para melhorar as
aula é quase que a regra, há poucas condições de trabalho. E não se sai do lu-
exceções. Quando falo de condições de gar. Digo mais: essa visão é duplamente
trabalho, incluo o regime de trabalho. O equivocada. O segundo equívoco é que,
discurso do governo, nos diversos níveis, mantidas as condições de trabalho, um pro-
a respeito disso, é um discurso equi- fessor que se toma mais competente cai
vocado. A posição é a de que o professor fora. Por exemplo, aqui na Faculdade de
é mal-formado, mal-preparado, de que ele Educação, temos um programa de pós-gra-
não tem competência técnica. O próprio duação muito grande, um deles é o
ministro atual cansou de falar, em matérias Mestrado em ensino de Física, que existe
de jomal, que o ensino vai mal porque o há mais de 20 nos. A quantidade de mes-
professor não sabe ensinar. Segundo esse tres e doutorandos em ensino de Física é
raciocínio, ele não pode ganhar bem. Para grande. Então, o ensino de Física na escola
ganhar bem ele precisa antes ser básica do Estado de São Paulo e no Brasil
capacitado, ser reciclado. Isso é um deveria ser uma maravilha. Isso é uma balela.
equívoco, uma cegueira total. Porque Duvido que mais de 2% ou 3% destes pro-
professores capacitados, competentes fessores que se formaram aqui estejam no
tecnicamente foram progressivamente ensino básico. Foram procurar outra coisa
expulsos da sala de aula por causa das para fazer que não dar aula na escola básica.
condições de trabalho. Muita gente boa se É aí que está a base do equívoco. E tem de
desiludiu, desistiu e foi fazer outra coisa ter paciência porque o processo de expul-
ainda que tivesse gosto, vocação, vontade são de pessoas competentes da sala de aula
de ensinar. O equívoco está em pensar que foi um processo longo, e ainda permanece.
é preciso capacitar antes para poder pagar A reversão também vai ser longa. Tem de
bem depois. Se as condições de trabalho melhorar as condições e ir atraindo as pes-
forem diferentes, muita gente que sumiu soas para o trabalho. Uma outra dimensão
da sala de aula vai querer voltar. desse equívoco é a desconsideração dos
professores atuais. Mesmo do jeito que as
coisas estão, existem professores excelen-
O trabalho de professor sempre tes, fazendo coisas maravilhosas, nos mais
será um trabalho duro. Algo a distantes cantos deste país.
que se dedica só quem
realrnente tem vontade,
vocação, interesse pelo RCE: Dentro dessas mudanças recen-
magistério. tes na educação, como você encara a
questão da aprovação ou promoção auto-
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mática? O que isso tem a ver com os ín- longo do trabalho, é uma coisa diferen-
dices necessários para serem mostrados ciada para os diversos alunos. Nas déca-
às grandes instituições que fornecem ji- das de 50,60 havia o exame de admissão
nanciamento a projetos, como o Banco ao ginásio. Era uma época em que havia
Mundial e outras? Por que os índices de um funil, era tão importante como é o ves-
aprovação não são bons no nosso país? tibular, na passagem do primário para o
Como é que se relaciona este sistema de ginásio. Os ginásios estaduais eram esco-
avaliação, de promoção, com o fato da las boas, porque não deixavam todo mun-
aquisição das informações ou do conhe- do entrar. O funil estava antes. A reforma
cimento pela criança e este outro, que é que acabou com o exame de admissão ao
um problema político-econômico, da nos- ginásio foi uma decisão política, e abso-
sa relação com os órgãos internacionais? lutamente correta, mas não foi acompa-
Nilson: Na imprensa, vêem-se, frequen- nhada das condições materiais, nas esco-
temente, declarações de governadores, de las, para ser realizada. Dizem que baixou
prefeitos sobre o "absurdo que é a promo- o nível do ginásio. Não baixou o nível. A
ção automática", o "absurdo de todo mun- quantidade de ginásios bons que havia
do ser aprovado". Estas declarações são antes continuou a existir depois, só que se
essencialmente equivocadas. Eles não têm antes havia meia dúzia de alunos, depois
obrigação de abordar o assunto tecnica- passou a haver 600. Diluiu-se a qualidade.
mente, não é o caso. Não se criaram as condições para que to-
dos fossem bons ginásios. Não foi e não é
O absurdo é não se dar condições algo que se resolve por decreto. Por de-
efetivas para que a aprovação creto, acabaram legitimamente com o fu-
automática seja natural! Absurdo nil. Por decreto, pode-se acabar com esta
forma de reprovar, de se ter índices de re-
é não existirem condições provação vergonhosos.
efetivas para isso: condições de Mas e as condições? Aí é que deveria
trabalho, condições na escola. residir a preocupação. Mas a preocupação
não tem sido com o defunto e sim com o
É absolutamente natural que as crian- atestado de óbito. O defunto mesmo não
ças sejam aprovadas, ou mudem de ano está interessando, mas o atestado de óbi-
como mudam de idade. Todo mundo pas- to está ficando cada vez mais bonito. Por-
sa de 8 para 9 anos, e todo mundo passa que os índices de reprovação estão ótimos.
da segunda para a terceira série. Isso é o Isso no papel. Na realidade, não mudou
normal. Mas não pode ser por decreto. muito o trabalho com o aluno. E precisa-
Precisam existir condições para que isso ria mudar. Mudar o sentido do que se ava-
ocorra. Esta história de recuperação com lia, levando em consideração o espectro
hora marcada não faz sentido. A recupe- de competências que as pessoas têm e de-
ração vem com o acompanhamento ao senvolvem, e não exclusivamentebaseado
Educação: os valores e as pessoas

em provas. Avalia-se em relação a provas O processo de avaliação deve levar


mas também em relação a muitas outras
coisas. Essa é uma situação complexa, mas
em consideração valores pessoais,
a meta é absolutamente correta, beirar os interpessoais, sem lirnitar-se à
100% de aprovação. avaliação como medida de urn
conhecimento disciplinar.
RCE: O professor em sala de aula tem - --

dito que a aprovação direta tirou dele o Nesse sentido, a reforma está numa di-
direito ou o poder de decidir sobre o reção correta, ou seja, tirar da mão do pro-
aproveitamento do aluno, fazendo com fessor o que está sendo um instrumento
que ele perca a importância em sala de de medida no âmbito de uma disciplina.
aula. O professor tem se ressentido com Outra vez, o grande problema é que está
essa promoção automática, vendo nisso sendo só tirado, não está havendo um in-
uma medida que piorou suas condições cremento das relações interpessoais, a
de trabalho. O que você tem a dizer so- aproximação professor-aluno. Estão man-
bre isso? tidas as demais condições.
Níison: O fato é que a relação profes-
sor-aluno inclui os processos de avalia- MEIOS DE COMUNICA@~O
ção. É uma relação mediada muito dire- E ESCOLA
tamente, quase que exclusivamente pela
disciplina que se ensina. Então o professor RCE: Como você vê o papel dos meios
de Matemática, o professor de Português, de comunicação na inter-relação escola-
o professor de História avaliam não o alu- sociedade-família-aluno-professol; já que
nolpessoa. Eles avaliam o aluno de Mate- hoje os meios de comunicação são media-
mática, o aluno de Português..., o que é dores privilegiados da realidade?
insatisfatório. A relação professor-aluno, Níison:A questão central desta pergunta
em todos os níveis, da creche à universida- é a questão do papel da escola.A escola não
de tem de ser uma relação entre pessoas, pode ser o único espaço, o único responsá-
uma relação interpessoal, uma relação inter- vel pela questão dos projetos, dos valores.
subjetiva, entre sujeitos, e não uma relação A questão dos valores, por exemplo, tem de
condicionadapor uma matéria. Praticamen- ser partilhada na escola, na família, nos
te o professor conhece o aluno como aluno meios de comunicação. A mídia em geral
da sua matéria. Isso é altamente limitante tem responsabilidadesem relação aos valo-
num processo de avaliação. Nenhuma ma- res. Não dá para aceitar, por exemplo, este
téria é fim em si mesma, na escola básica. joguinho que os pais estão correndo para
Não posso fazer da matéria um fim. Ela é comprar nos EUA, que tem uma cadeira elé-
um meio para a promoção da liberdade, no trica onde a criança põe um boneco, e vai
sentido de Amartya Sen. Meio para os alu- controlando para matá-lo rápido, mais len-
nos realizarem os projetos que têm. to, etc. A criança coloca forças diferentes e
Comunicação & Educação,São Paulo, (20): 75 a 90, jan./abr,2001

matar ou não matar é um jogo. A propa- trabalho da educação formal e o do pai - é


ganda é: "leve a morte para sua casa", ou sempre um trabalho de construir um mapa,
qualquer coisa deste tipo. Chegou, pela In- um mapa de relevância. Porque nos meios
ternet, uma carta irada de uma pessoa de- de comunicação encontra-se todo tipo de
nunciando isso. E outrosjogos eletrônicos informação, lixo com coisa valiosa, é tudo
nos quais quanto mais se mata, atropela, a mesma coisa. Quem é que organiza mini-
mais pontos se ganha3.A questão dos va- mamente isso? Não há organização padrão,
lores não pode ser restrita ao âmbito da que sirva para todo mundo. Essa organiza-
escola. A escola tem de dividir isso, tem ção sempre depende do projeto que você
de partilhar essa responsabilidade sobre os tem, dos valores que partilha, em função
valores, os projetos com a família. A esco- do que se busca é que se seleciona. Essa é a
la precisa estar enraizada numa comuni- função da escola. Também deveria ser dos
dade e relacionar-se com os meios de co- meios de comunicação. Com níveis dife-
municação. No mundo inteiro, estão cres- rentes. Porque também os jornais, as re-
cendo programas que usam jornais, revis- vistas têm os projetos das empresas que
tas, filmes ou materiais não didáticos na os sustentam. Uma coisa é ler a Folha de
escola. Cada vez mais cresce a importân- S. Paulo, outra coisa é ler o O Estado de
cia dos computadores, das nets, Internet S. Paulo. Enquanto projetos de empresas
etc. E aí fica a questão: qual é mesmo o familiares, são nítidos. Não há neutralidade,
papel da escola ou do pai ou do professor? absolutamente.Mapeia-se segundo um cer-
Esse papel está cada vez mais relacionado to projeto que se tem. A escola mapeia e
com a idéia de mapa. O nosso trabalho - o orienta segundo um projeto, o pai também.

3. Sobre o assunto ver TORIELLO, Luciano Biagio. Videogame, escola e conto popular. Comunicação & Educação.
São Paulo: CCA-ECA-USPModerna, n.8, jan./abr. 1997. (N. Ed.)
Educação: os valores e as pessoas

RCE: E quando uma sociedade elege distribuição de dinheiro, de renda e, agora,


como parâmetro fundamental estar no de conhecimento. O que compromete
mercado, onde tudo é válido? A pergunta particularmente a educação é que sempre
que me fazem sempre é: professora, vai foi possível distribuir terra por decreto.Isso
vender? Isso que você está me ensinando nunca foi feito no Brasil, mas a possibi-
vende? O que você pensa sobre estefato ? lidade existe. A divisão de dinheiro
Níison: Isso é o que mais me interessa também. O PIB mundial é da ordem de 34
em termos pessoais, em termos de proje- trilhões e a população da ordem de seis
to, de pesquisa individual, de estudo. Não bilhões. Dividem-se 34 trilhões por seis
adianta falar de valor sem se deter na pró- bilhões temos cerca de cinco mil de renda
pria idéia de valor. Você falou do merca- per capita e daqui para a frente todo mundo
do e o mercado confunde valor com pre- vai ter esta renda por decreto. Isso nunca
ço. Pode ser o de uma obra de arte, pode foi feito e nunca será, mas teoricamente é
ser o da honra. Isso, de uma forma ou de possível. Ao mesmo tempo que estes
outra, existe há muito tempo ... A produ- números são mais ou menos verdadeiros,
ção da Enciclopédia francesa de Diderot 45% ou dois bilhões e 800 milhões de
e D'Alembert, no século XVIII, e também pessoas no mundo vivem com renda de
a sua venda são considerados o maior menos de dois dólares por dia, menos de
empreendimento comercial da época, ren- 700 dólares/ano. E um bilhão e 200 milhões
deu muito dinheiro, foram milhões de li- vivem com menos de um dóladdia, então a
bras. Aquilo significou o nascimento da distribuição é uma doidice. Quando o
transformação do conhecimento em mer- conhecimento se transforma no principal
cadoria. De lá para cá só progrediu. Nos fator de produção, e isso não é retórica, isso
últimos 50 anos, com computador e tudo, é fato, aí é impossível distribuir por decreto,
o conhecimento é que se transformou no não dá para baixar um decreto e dizer que
principal fator de produção. daqui para frente quem não sabe vai saber.
Não há duas formas de se tratar da
Atualmente, o principal fator distribuição desse bem. Não é distribuição
de produção não é a matéria- mas é circulação. Só há uma forma que é a
prima, é o conhecimento. Aí a educação. Não é que o capitalista ficou
questão educacional fica bonzinho. É que a educação tornou-se
muito mais aguda. crucial neste processo. Sem mudar os
grandes princípios, sem mexer neste grande
projeto não haverá conhecimento para
O problema da desigualdade - porque todos, é aí que está o problema.
esta questão do valor explode é na Sou um pouco otimista em relação ao
desigualdade - está crescendo no mundo futuro. Os problemas práticos estão explo-
inteiro. Desigualdade na distribuição de dindo em todo o lugar. Nas reuniões do
renda, de conhecimento. A desigualdade Fundo Monetário Internacional - FMI -
sempre existiu, na distribuição de terra, na não há uma clara consciência sobre qual é
Comunicação & Educação. São Paulo, (20):75 a 90, jan./abr. 2001

o problema, mas se sabe que há um pro- cesso de apreendel; de conhecer?


blema. Ou seja, se sabe que não dá para Níison: Essas tecnologias são todas
tratar o conhecimento como se trata uma extremamente importantes, fundamentais.
mercadoria em sentido industrial. Não é Tem de trazer essas tecnologias para a es-
por uma questão religiosa, de moral, é por cola. Isso é bom, no sentido de que as tec-
uma questão prática. Porque o conheci- nologias mudam o significado de estar
mento dou, vendo, troco e não fico sem. próximo, mudam a idéia de vizinhança, a
A economia endoida com isso. O conhe- idéia de proximidade. Não há nada de mais
cimento não é um bem fungível, que se equivocado do que a idéia de educação a
gasta como a mercadoria, que se fica tor- distância. Só há educação quando há um
cendo para gastar logo e comprar outro. sistema de proximidade, de inter-subjeti-
Quanto mais uso, mais novo fica. Para o vidade. Quando se fala em educação a dis-
conhecimento não tem sentido a palavra tância, é educação a distância geográfica,
estoque. A economia fica controlando o mas de proximidade num outro sentido.
estoque para que o preço vá lá para cima. Quer dizer, as tecnologias alteram o sig-
Com o conhecimento não funciona assim. nificado de estar próximo, favorecem a
Quem é que controla o estoque? Os prin- aproximação interpessoal. A tecnologia é
cípios são outros. Isso vai estourar de uma ótima para isso.
forma ou de outra. A grande crise, em ter-
mos mundiais, é a crise da idéia de valor. Por outro lado, as tecnologias não
Não se está lidando com o valor do co- têm nada a nos dizer a respeito dos
nhecimento de um modo adequado. Está fins da educação, das metas, dos
se lidando com o conhecimento como se
lida com um sabonete ou com um auto- projetos. Tecnologia não é
móvel. E não funciona. Isso tem tudo a projeto, serve ao projeto.
ver com educação, com os meios de co-
municação. Justamente porque o conhe- O que se está buscando nenhum com-
cimento é o principal fator de produção, putador vai dizer. Se não discuto a ques-
na escola é a matéria a ser mobilizada a tão dos fins, e recorro a um instrumental
serviço dos projetos das pessoas; e o co- tecnológico sofisticado, posso estar esco-
nhecimento nos meios é o que orienta toda lhendo a maneira mais eficiente de ir para
a circulação de informações, o que se bus- o inferno. Tenho de discutir para onde es-
ca é a organização das informações que tou querendo ir. Definir para onde se vai,
levam ao conhecimento. vem antes e o equipamento não tem nada
para dizer. Outro aspecto relativo às tec-
RCE: A escola desprovida dos novos nologias - que têm de vir para a escola e
equipamentos tecnológicos ou que não têm de ser usadas - é um outro tipo de
sabe operar com estas novas tecnologias analfabetismo. Não lidar com a tecnolo-
está fadada ao fracasso? De que gia é criar uma outra classe de analfabe-
parâmetro redimensiona-se o próprio pro- tos. Mas é preciso cautela num outro sen-
Educação: os valores e as pessoas

tido. A tecnologia tem uma característica analista simbólico. Um médico produtor


que, se transferida acriticamente para a de rotina ou um médico analista simbóli-
educação, é um desserviço. Um equipa- co. Analista simbólico é o que tem espaço
mento novo aposenta o velho, o velho fica para criar, inclusive criar novas rotinas. A
ultrapassado. O novo é mais rápido, mas grande perspectiva do trabalho é a da área
ninguém sabe para que se precisa da rapi- da criação, a busca do espaço para criar.
dez. Essa idéia de que é bom porque é O complicador da questão é que ninguém
novo, não pode ser transportada para a é produtor de rotina ou analista simbólico
educação. A escola vira caricatura, a dimen- o tempo todo. Num trabalho criativo têm-
são conservação que tem que existir na es- se rotinas e, paradoxalmente, a pessoa que
cola vira caricatura. O novo é bom pelas é um grande criador é um grande criador
novas possibilidades que abre e não porque inclusive de rotinas que os outros vão se-
é novo. É preciso estar atento a estas coisas guir. Não há esta separação em duas cate-
que se referem diretamente a valores. gorias, uma de produtor de rotinas, outra
de analista simbólico. Aliás, isso é algo
que se pode criticar desta caracterização
do Robert Reich. Porque o tempo todo
RCE: Pensando nas mudanças que estão estamos fazendo parcialmente as duas
se operando a partir das novas tecnologias, coisas, estamos criando e estamos traba-
como pensar a educaçãopara o trabalho? lhando rotineiramente. Essa é a grande
Nilson: A questão é pensar a natureza bifurcação no universo do trabalho. Há
do trabalho. O trabalho hoje não é o tra- médicos, engenheiros, administradores,
balho do período industrial. As caracte- professores fazendo as duas coisas. A es-
rísticas são outras. Esse nomadismo que cola continua formando para ocupações
se percebe em termos culturais se reflete muito específicas. Por exemplo, onde se
no trabalho. Formar-se em uma determi- está aprendendo, num curso de graduação,
nada área e acabar trabalhando em outra a produzir software? A Índia, por exem-
parece que não tem nada a ver, só parece. plo, tem cursos de graduação de produ-
Fazia engenharia, como falei, e vim para ção de software e em conseqüência eles
a Matemática. O que há de fato é que o têm hoje um papel importantíssimo nesse
universo do trabalho está se modernizan- mercado, que é um mercado crescente.
do em termos de dois parâmetros: os pro- Eles são pessoas altamente qualificadas
dutores de rotinas e os analistas simbóli- para isso. O fato é que a organização dos
cos, uma expressão que Robert Reich4, cursos - as ocupações para as quais os
que foi Secretário do Trabalho america- cursos de formação preparam - não tem
no, utiliza para generalizar a idéia do ana- uma relação direta com as ocupações e o
lista de sistemas. Você pode ser um pro- modo que o mundo do trabalho se organi-
fessor produtor de rotina ou um professor za. As pessoas se formam em um monte

4. REICH, Robert O trabaiho das nações. Preparando-nospara o capitalismodo século 21. São Paulo: Educator, 1994.(N. Ed.)
Comunicação & Educação, São Paulo, (20): 75 a 90, jan./abr. 2001

de coisas e vão trabalhar em outras tare- 1997, uma questão como esta me foi pro-
fas que não são ligadas diretamente àque- posta por uma revista portuguesa, uma
la em que se formaram. E não há como revista de educação em Matemática. Re-
consertar isso. digi, então, um artigo que tem como títu-
lo Educação: seis propostas para o pró-
Quem tem de entrar em sintonia ximo milênio5.O artigo é uma paráfrase
com o mundo do trabalho é o ao livro do Ítalo Calvino. O artigo foi tam-
bém publicado pelo Instituto de Estudos
espectro de formação das Avançados da USP. São seis valores da
universidades, não no sentido educação. O primeiro é a cidadania. A
de mudar as carreiras e formar educação como o espaço de construção da
outras específicas. O problema cidadania. Uma outra idéia é o profis-
sionalismo, mas o profissionalismo como
reside na especificidade. espaço que reúne uma competência
técnica, um compromisso público e uma
Necessita-se de uma formação muito auto-regulação. Então, se sou um profis-
mais abrangente, transdisciplinar, inter- sional de educação não é o governo, o
disciplinar, uma formação muito mais governador ou o meu diretor que vai me
ampla do que esta formação excessiva- dizer exatamente o que tenho de fazer na
mente especializada que se tem na uni- sala de aula. Se você é um médico, não é
versidade. Na engenharia, nunca vão se porque você trabalha numa empresa
estudar coisas da faculdade de filosofia. privada que você vai vender a alma, você
Fiz Matemática, e desde o início somos é profissional. A contrapartida disso é uma
obrigados a optar ou por licenciatura ou auto-regulação, que toda categoria
por bacharelado, matemática aplicada ou profissional tem de ter. Os destinos da
computação. Quer dizer, o aluno já entra educação, da medicina não podem ser
numa sub-carreira. Isso é um descompasso decididos pelo governo ou por uma
entre as carreiras para as quais as pessoas empresa. Os profissionais têm de ter a
estão sendo formadas e o modo que o uni- palavra. Outro valor é a tolerância, a idéia
verso do trabalho se organiza. O mundo da tolerância no sentido da consideração,
do trabalho aponta no sentido de uma for- do respeito pela diversidade do projeto,
mação que diz muito mais às competên- dos projetos pessoais, projetos coletivos.
cias pessoais, num sentido bem amplo, e A integridade no sentido de haver um
muito menos em matérias específicas. compromisso entre discurso e ação. Ter
um quadro de valores muito arrumadinho
RCE: Quais são os grandes desafios no nível do discurso e a ação não ter nada
da educação para o próximo milênio? a ver com isso é pura falta de integridade.
Níison: Há uns três anos, no fim de O equilíbrio tem a ver com tudo isso que

5. MACHADO, Níison José. Educação: seis propostas para o próximo milênio. Coleção Documentos. São Paulo/
IEA-USP, n. 16, outubro/l998.

89
-
Educação: os valores e as pessoas

foi falado, mas tem a ver especificamente pessoa ao cidadão. Votar e ser votado é
com o pacto entre a transformação e a um instrumento de cidadania. É um
conservação, porque o discernimento do direito, mas não deveria ser uma
que tem de mudar e o que se tem de obrigação. É uma decisão pessoal, e esta
conservar é absolutamente crucial. questão da pessoalidade é mal-entendida.
Finalmente, a pessoalidade. A pessoa é É vista com uma questão de indivi-
mais do que um cidadão e essa educação dualidade, individualismo. Mas no fundo,
tem de ser educação para a pessoalidade. o que conta são as pessoas. Há um espaço
Não se pode resumir o cidadão ao que é seu, pessoal, onde nenhuma
consumidor. O consumidor é uma autoridade no mundo pode ser maior que
dimensão da cidadania. Se o cidadão é a sua. Então, estes valores para a educação
reduzido a consumidor é uma tragédia, deveriam marcar nossas preocupações
mas acho que é também trágico reduzir a para o próximo milênio.

Resumo: Nílson José Machado, professor Abstract: Nílson José Machado,professor of the
doutor da Faculdade de Educação da USP, em College of Education at USP, in an exclusive
entrevista exclusiva a Comunicação & Educa- interview to Comunicação & Educação, talks
ção, fala de sua trajetória intelectual, de seu about his intellectual trajectory, about his interest
interesse pela Matemática, pela Filosofia e, in Mathematics, Philosophy and, most
principalmente, pela Educação. Discute a na- especially, in Education. He discusses the
tureza da crise do sistema educacional e afir- nature of the educational system crisis and
ma que grande parte do problema está na fal- claims that a major part of the problem lies in
ta de clareza e de discussão, com a socieda- the lack of clarity and discussion, with the
de, sobre os valores e o projeto que se quer society, about the values and on the project that
para a Educação. Critica o excesso de docu- is desired for Education. He criticizes the
mentos que pretendem orientar a ação do pro- excessive amount of documents aimed at
fessor em sala de aula e realça a importância guiding the teacher's performance in the
de a escola estar enraizada em sua comuni- classroom and stresses the importance of the
dade. Destaca, ainda, a valorização profissio- school being rooted into its community. He also
nal do professor, do ponto de vista do regime stresses the need there isto valuing the teacher
de trabalho e do salário, como caminho para professionally, from the point of view of both
a melhoria da qualidade do ensino. Ele apóia work and wages, as a way to improve teaching
a promoção automática dos alunos, mas dis- quality. He supports automatic promotion for the
corda da forma como tal medida foi implanta- student, but disagrees with the manner in which
da. Para ele, a Educação para o trabalho deve this measure was implanted.To him, Education
pautar-se pela importância da formação inte- for work must be guided by the irnportance of
gral, abrangente, condenando a especializa- integral and complete training, condemning
ção. Finaliza suas declarações falando sobre specialization. He finalizes his statements
cidadania e os pontos importantes a serem talking about citizenship and about the important
levados em conta pela Educação para o ter- points to be considered by Education for the
ceiro milênio. third millennium.

Palavras-chave:Educação, escola, professor, Key words: Education, school, teacher, values,


valores, projeto, trabalho, cidadania project, work, citizenship

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