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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

1. O Mistério Pascal centro e fundamento da Mariologia

O mistério pascal, centro do anúncio e do testemunho da Igreja, como também

da teologia cristã, é o ponto no qual Balthasar concentra a unidade fundamental de

todo o seu pensamento cristológico e mariológico. Neste contexto supera o

contencioso tomasiano-escotista no motivo da incarnação, através da correlação entre

a incarnação e a redenção, dentro do omnipresente motivo trinitário que se funda na

acção soteriológica a qual é finalizada na missio do Filho. Existe a necessidade de

compreender a morte de Cristo em relação ao mistério trinitário, que é o horizonte

hermenêutico fundamental para poder ler o mistério pascal.1

A mariologia assume um relevo real no Triduum mortis, a dimensão intrínseca

do dar-se da verdade de Deus, pois na forma (Gestalt) do Crucifixo actua plenamente

a manifestação do UniTrino2, precisamente no qual Balthasar define a “glória do seu

1
“Es ist nicht nur so daβ die volle Trinitätslehre sich erst von einer Theologie des Kreuzes her entfalten läβt
(wenn hier und im folgenden vom Kreuz geredet wird, so immer im paulinisch-johanneischen und auch
synoptischen Sinn unter Einschluβ der Auferstehung) und davon keinen Augenblick ablösbar ist, sondern so,
daβ die Trinitätslehre als die stets gegenwärtige innere Voraussetzung der Staurologie zu fassen ist, wie,
symmetrisch dazu, die Bundes – oder Kirchenlehre (bis hinein in die Lehre von den Sakramenten ) nicht als
ein bloβes Ergebnis des Kreuzesereignisses aufgefaβt werden darf, sondern als ein ihm innerliches Moment.”
[tradução minha] “E não é apenas de forma que toda a doutrina da Trindade se pode desenvolver só a partir
de uma teologia da cruz (agora e depois, quando se fala de cruz, sempre se entende no sentido paulino-
joânico e também sinóptico incluindo a ressurreição) sem poder desligar-se nem um momento, mas também a
doutrina da Trindade pode conceber-se como o íntimo pressuposto constante e intrínseco da estaurologia, do
mesmo modo que, em boa simetria, a doutrina da aliança e a eclesiologia (e até inclusive a doutrina dos
sacramentos) não deve entender-se como o simples resultado do acontecimento da cruz, mas antes como um
momento que lhe é intrínseco. ” Theodramatik: die Handlung. [THD III] Einsiedeln: Johannes, 1973. vol.3,
296 [Trad. castelhana: Teodramática: la acción. Madrid: Ediciones Encuentro, 1995. vol.4, 295].
2
O Crucifixo torna-se a ligação entre o pulchrum e a glória da revelação, é a beleza que irradia da kenose de
Cristo. No mistério do nascimento, que se sujeita ao evento da cruz, desvela-se o véu do Deus Trindade.
Pode-se reconhecer na obra de Balthasar o contributo da reflexão de K. Barth em Dogmatik Kirchlicher, que
coloca as bases para uma reflexão sobre o belo partindo de S. Anselmo“Gott in der Einheit seiner
Erniedrigung und Erhöhung selbst seine eigene Form und Schönheit mitbringt, dass das iesaianische «Er
hatte weder Gestalt noch Schönheit» gerade der Ort ist, wo die eigentümliche Schönheit Gottes aufleuchtet:
«Man suche die Schönheit Christi in einer Christusglorie, die nicht die des Gekreuzigten wäre: man wird sie
dann immer vergeblich suchen»” [tradução minha] “Deus, na unidade da sua humilhação e da sua exaltação,

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morrer”. Este relevo reconhece primariamente o facto de que a liberdade finita

humana3 considerada na eterna vontade salvífica do Pai não é nunca demitida, até

mesmo no momento do verdadeiro hiatus da cruz, no qual Cristo sofre a morte e o

abandono em „representação‟ de todos os pecadores, ou na extrema kenosis da descida

aos infernos. A liberdade não decai da sua íntima condição de “ter que decidir”4, de ter

de compreender o dom da salvação no tempo e na história, não é isenta do ser

chamada a participar, a responder e a corresponder àquela aliança nunca revogada da

parte de Deus, mas antes é libertada a finalidade de fazer efectivamente possível a

resposta da parte do homem.

Maria é esta referência5 completamente humana, a qual Deus não quer fazer

humilhar mas exaltar. Maria, pronuncia o sim6, por graça e na força deste

consentimento, Ela é inserida no espaço dramático de Cristo, e rendida participa do

doloroso espinho entre o pecado mysterium iniquitatis e a justiça de Deus, na pessoa

do Filho. A oferta sacrificial que a Mãe é chamada a fazer do Filho na Cruz (Jo. 19,

25-27) fá-la participar de uma expropriação de si em favor da humanidade e da Igreja:

leva consigo a sua própria forma e beleza, e que o dito “não tinha forma nem beleza” de Isaías, é justamente
o lugar donde resplandece a peculiar beleza de Deus: «Buscar a beleza de Cristo numa glória de Cristo que
não seja a do Crucificado é buscá-la em vão».” H I, 52 = 55.
3
A liberdade finita que é o homem está constituída por dois pilares fundamentais que não podem ser
anulados um no outro, mas antes estão mutuamente referidos: 1) autoexousion o ser-se; e 2) o dar-se. Cfr.
PÉREZ, C. – Hans Urs von Balthasar: una vocación y existência teológicas. Salamanticensis. 48 (2001), 62-
63.
4
A relação entre liberdade finita e liberdade infinita, vem desenvolvida particularmente por von Balthasar
em: HUB - Theodramatik: die Personen des Spiels: der Mensch in Gott. [THD II/1] Einsiedeln: Johannes,
1976. vol.2/t.1, 170-305 [Trad. castelhana: Teodramática: las personas del drama: el hombre en Dios.
Madrid: Ediciones Encuentro, 1992. vol.2, 183-316].
5
“Na Nova Aliança a fecundidade dada à Virgem Maria, tem um fim diverso em relação à antiga
prefiguração à qual faltava a decisiva profundidade adequada à revelação: ela não é vista a partir da morte,
mas a partir da vida eterna” HUB - Credo: meditações sobre o Símbolo dos Apóstolos. Coimbra: Gráfica de
Coimbra, 1997, 40.
6
Cfr. GIROLAMO, L. – Il «sí» di Maria nella prospettiva di Hans Urs von Balthasar. Miles Immaculatae. 37
(2001), 435-440.

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é isto que faz reconhecer nela concretamente e simbolicamente o mistério pessoal da

Igreja7.

Neste contexto emerge para Balthasar, de um modo nunca radical, o primeiro

referente de cada discurso mariológico e realmente deduz-se na pessoa de Cristo o

hermeneuta fundamental da figura de Maria como Virgem, Mãe e Esposa. Na luz do

Crucifixo e na relação com Ela, a pessoa e a função de Maria desdobra-se não

simplesmente como funcional para a vida terrena do Filho de Deus, mas em todo o seu

significado interno da missio de Jesus Cristo na sua componente soteriológica e

escatológica, que lança o olhar sobre a retrospectiva protológica. O pensamento de

Balthasar supera a incerteza à volta da possibilidade de atribuir um super-papel a

Maria, sinal de um maximalismo mariano que levaria consigo qualquer coisa do único

Redentor Cristo8. Não é de mais considerar que isto pertence à Mãe de modo singular

por graça e isto que d‟Ela perpassa na Igreja e na humanidade com a força de redenção

salvífica. Maria coloca-se no cumprimento do mistério da aliança, sendo a companhia

da humanidade para o Cristo que sofre. A personificação concreta e ideal de Maria,

como personalidade corporativa aos pés da cruz9 frente ao olhar do Filho, realiza a

aliança esponsal que faz de Cristo e de Maria o primeiro par, a relação finalmente

realizada que por obra do Pai restitui a vida ao género humano.

7
Cfr. BORDINI, M. - La madre di Gesù presso la croce e il «principio mariano» della Chiesa. Theotókos. 7
(1999), 452.
8
O Cristo crucificado e ressuscitado, apresenta-se claramente como o único mediador desta nova aliança,
Balthasar não mostra hesitação em aceder aos títulos e méritos de Maria e a partir destes à figura do Filho.
Todavia, o problema da cooperação de Maria na missio Christi, evidencia-se no contexto do mistério pascal
em toda a sua problemática. Este motivo coloca-se no centro do desenvolvimento teológico actual,
estimulado pela última petição dogmática à volta do papel de Maria, sustentada pela vontade de introduzir
por exemplo os títulos de Coredemptrix, Mediatrix e Advocata. Cfr. CALABUIG, I. - Riflessioni sulla
richiesta della difinizione dogmática di, «Maria corredentrice, mediatrice, avvocata». Marianum. 61 (1999),
129- 175.
9
Cfr. VALENTINI, A. - Personalitá corporativa e principio di totalità. Theotókos. 8 (2000), 492.

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A originalidade da perspectiva balthasariana referente à relação entre Cristo-Maria-

Igreja-Cruz é sem dúvida devida ao célebre enriquecimento intuitivo conquistado,

graças ao influxo intrínseco que a sua teologia, de modo especial no Mysterium

Paschale, retira do encontro com a pessoa e com a experiência mística de Adrienne

von Speyr.

Na realidade, só aparentemente é que Balthasar no tratado do Triduum mortis se

aproxima da teologia da participação de Deus na dor10, desenvolvida na área

protestante e católica. Isto exprime a ideia de um Deus que sofre com a intenção de

estabelecer uma união entre o amor trinitário e o sofrimento da cruz, como drama que

envolve Deus no seu íntimo. Na realidade isto deve-se à patrística oriental (Máximo o

Confessor), ao confronto com o protestantismo (K. Barth) e à ortodoxia russa no exílio

(S. Bulgakov), à figura de Przywara mas sobretudo a Adrienne von Speyr e à sua

experiência mística. Por isso se compreende porque é que Balthasar introduz

explicitamente reservas sobre posições, ainda que diferenciadas, de autores como J.

Moltmann, K. Kitamori, B. R. Brasnet, J. Galot, aos quais contesta “a redução do

processo intradivino ao processo histórico salvífico”11. A tentativa destes teólogos é

10
No âmbito teológico várias foram as tentativas de aprofundamento tendo em vista o aspecto misterioso da
kenose da cruz. A reflexão sobre a kenose já está presente na disputa kenótica dos séculos XVI-XVII, depois
da aproximação luterana à escola de Giessen e à escola de Tubingen, conhece a tentativa hegeliana da Sexta-
feira santa especulativa e a incompleta reflexão da teologia kenótica do século XIX-XX, na área germânica e
anglicana. A reflexão sobre o tema da Paixão e do Gólgota, em relação à glória do amor trinitário, trazem de
volta vigor no ambiente da ortodoxia russa contemporânea com V. Solovjev, S. Bulgakov, N. Berdiaev, P.
Evdokimov, D. Staniloae, também permanecem e conservam de certa maneira o peso da categoria hegeliana
mediada através das ideias de Böhme e de Schelling. No âmbito da teologia protestante e católica, com a
devida distinção entre os vários autores, estes apontam do pensamento para o aprofundamento da relação
entre cruz e a vida íntima de Deus, entre autores representativos destacamos: K. Kitamori, J. Moltmann, K.
Rahner, H. Mühlen, C. Duquoc, J. Galot, H. Küng, W. Kasper, E. Jüngel, C. Nigro, B. Forte. Cfr. BORDINI,
M. - Gesù di Nazaret Signore e Cristo : saggio di cristologia sistemática: il Cristo annunciato dalla Chiesa.
Barcelona: Herder-PUL, 1986. vol. 3, 512-533.
11
Cfr. HUB - Teologia dei tre giorni: mysterium paschale. Introd. di Giuseppe Ruggieri. Brescia:
Queriniana, 1990, 21-22.

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certamente a de superar uma imagem apática de Deus que encontra a sua ascendência

na filosofia estóica com o seu ideal de aphateia, isso corresponde sob o perfil

metafísico ao Deus immutabilis, que torna Deus inconciliável com o sofrimento da

Cruz e propõe, portanto, na vida intradivina das relações a-pessoais fundadas nas

propriedades da substância divina (intelecto e vontade). A chave para superar de uma

teologia tipicamente estática, observa Balthasar, encontra-se no considerar como tarefa

prioritária o pensar, por um lado, “a realidade de Cristo como a coisa

insuperavelmente máxima, id quod maius cogitari nequit , porque precisamente é a

palavra humana de Deus para o mundo, é o humilde serviço de Deus que é levado a

cabo por cima de cada limite humano, é o último amor de Deus na glória do seu

morrer, de forma que todos os outros possam viver por Ele”12, e por outro lado, o

mistério da cruz como acção do Deus trinitário13. Só deste modo se compreende a

Páscoa como mistério sacrificial redentor e se intui Deus como Amor absoluto.

O influxo decisivo a respeito da elaboração do mistério pascal, sendo

individualizado no encontro e na convivência, por volta dos anos 40, com a

experiência mística de Adrienne von Spyer, em particular com a experiência de

12
“das Christliche als das uneinholbar Gröβte, id quo maius cogitari nequit, zu erweisen, weil es Gottes
Menschenwort für die Welt ist, Gottes demutsvoller Dienst, der alles Menschenstreben überholend vollendet,
Gottes letzte Liebe in der Herrlichkeit seines Sterbens, damit Alle jenseits ihrer selbst für Ihn leben.” HUB -
Rechenschaft 1965. [RS] Einsiedeln: Johannes, 1965, 6-7 [Trad. italiana: Il filo di Ariana attraverso la mia
opera. Milano: Jaca Book. 1979, 7].
13
A intenção fundamental de mostrar o axioma da centralidade de Cristo, a cruz do Filho como revelação do
amor do Pai e a efusão do Espírito no coração de cada homem, provém do encontro de Balthasar com Erich
Przywara, do contacto com o génio da reforma protestante, Lutero e o cristocentrismo de Karl Barth, mas
também da relação com Karl Rahner e Hugo Rahner. A respeito do pensamento de Lutero é evidente que
Balthasar não evita de o considerar limitado, dado que a sua posição se torna extrema no aspecto
estaurológico, onde aparece o paradoxo absoluto constituído a partir hiato da revelação sub specie contrari
que se manteve na radicalidade inacessível do escondimento, segundo o pensamento dialéctico, que conduz
consequentemente para Hegel. Cfr. Idem, 6-7 = 7; HUB - Theologie der drei Tage. [TDT] Einsiedeln:
Johannes, 1969, 51 [Trad. castelhana: El misterio pascual. In Mysterium Salutis, Madrid: Cristiandad, 1992.
vol. 3, 687].

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abandono que Ela experimenta no dia de sábado santo. A intuição desta mística vem

sendo seriamente considerada ao ponto de o próprio von Balthasar afirmar

explicitamente acerca do papel de von Speyr na elaboração do seu pensamento, o autor

relata que se inspirou em von Speyr directamente para escrever os livros: O coração

do mundo (Das Herz der Welt) (1945), Teologia dos três dias (Theologie der drei

Tage) (1969), e diversos outros que essencialmente são uma transcrição teológica

daquilo que aprendeu com esta mística.14 Não podemos esquecer que O coração do

mundo (Das Herz der Welt) juntamente com as suas conferências sobre a dramática do

cristianismo têm nos anos 1946-1947 o ponto central onde se encontra a extraordinária

experiencia mística, que constituirá o núcleo originário da Teodramática


15
(Theodramatik) , juntamente com a Mysterium Paschale (Theologie der drei Tage)
16
. Este texto, unido ao Gloria VII, Novo Testamento (Herrlichkeit: II/2. Theologie: 2.

Neuer Bund ) (1969), apresenta a exposição mais completa da cristologia

balthasariana, que pode ser considerada a preparação para a segunda porta da trilogia,

a soteriologia. Temos ainda de mencionar o facto de que muitas das considerações que

pretendemos propor derivarão de algumas das intuições formuladas por von Balthasar,

a maior parte presentes em volume da Teodramática IV: A acção (Theodramatik IV.

Das Endspiel) e no Mysterium Paschale.

O drama da redenção, evidencia von Balthasar, situado no evento central da acção

salvífica de Deus nos confrontos do homem desdobra-se num dramático jogo das

14
Cfr. RS, 59 = 74.
15
Cfr. UA, 62= 63-64.
16
Este texto veio a tornar-se um contributo à colectânea de teologia dogmática Mysterium Salutis, na secção
que concerne ao mistério pascal delineado segundo o enquadramento dos três dias da paixão. Cfr.
GUERRIERO, E. - L‟estremo amore di Dio nella gloria del suo morire: la teodrammatica. Communio.
Milano .120 (1991), 61.

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partes. A liberdade finita e a liberdade infinita alcançam-se no conflito que pesa sobre

o Filho de Deus, o peso do não do mundo, face ao peso que Ele traz do sim dito ao

Pai no Espírito17. A acção salvífica desenvolve-se até à substituição vicária

(Stellvertretung) do Filho, o qual se dirigiu até ao abismo profundo, às trevas do

estado pecaminoso.

O Decensus ad infernos recupera a mesma lógica da incarnação, a qual é originada

na mesma vida trinitária: neste momento desenvolve-se toda a raiz trinitária da kenose

do Filho através do acto fundamental da sua existência e obediência ao Pai, a qual

pode ser definida como a natureza íntima do seu ser Filho; a obediência até ao

abandono divino e deste modo o sim de Deus ao homem18, no anúncio da vida eterna

mediante a ressurreição.

Em tal contexto, podemos afirmar explicitamente que a própria esperança mística

de Adrienne von Speyr ajuda Balthasar a ligar a esperança da máxima kenose do Filho

com o amor trinitário, é fundamental para o tema mariológico. Na verdade, muitos

aspectos que são inerentes à pessoa de Maria, contemplada sob a cruz, deriva da

própria meditação de von Speyr19, a qual introduz imagens sobre o papel de Maria de

inegável profundidade e densidade teológica, que aparecem agora mais originais ao se

17
Para aprofundamentos sobre esta questão sugerimos T‟JOEN, M. - Marie et l‟Esprit dans la théologie de
Hans Urs von Balthasar. Marianum. 49 (1987) 162-195.
18
O texto de MARTINELLI P. - La morte di Cristo como rivelazione dell’amore trinitario nella teologia di
H. U. von Balthasar. Milano: Jaca Book, 1996, considera o amor kenótico de Jesus Cristo como revelação do
amor trinitário, no qual se encontra o fundamento da leitura do verdadeiro sentido da cruz, da morte e da
ressurreição do Filho.
19
Pode-se notar, como a reflexão sobre Maria que Balthasar expõe no quarto volume da Teodramática, é
fortemente influenciado por A. von Speyr ao se confrontar com texto de SPEYR, A. von – Ancilla Domini:
María en la redención. Rafaela: Fundación San Juan, 2005.

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ter presente que foram compostas antes do Concílio Vaticano II20. Tendo isto em

conta, não renunciaremos a introduzir ao longo do nosso trabalho os textos mais

significativos desta mística para compreender o relevo mariológico relativo ao único

Redentor que é Cristo, que na Cruz manifestou plenamente a glória de Deus.

1.1 O consumatum est da missio do Filho e a Mãe.

Maria é introduzida na economia salvífica, quando actua nela a missio de Cristo,

com a Anunciação. O cumprimento de tudo isto é representado por Deus, pela

Humanidade e pela Igreja, pela sua participação na cruz e na glória do Unigénito Filho

de Deus. Nesta experiência concretíssima de participação no sofrimento salvífico de

Cristo até ao consumatum est, cruzaram-se e alternaram-se de modo complementar a

figura da Mãe de Jesus e da Igreja. Mas tal relação não dissolve, por fim, Maria na

Igreja. Desde então é o núcleo realizado (e como tal escatológico) do inteiro desígnio

de Deus, predisposto para cada crente, com uma função específica e pessoal em

relação a Cristo e à Igreja.

20
Também é de referir que von Balthasar, na linha com a então futura Lumen Gentium, e de certa maneira
antecipando-se aos desenvolvimentos sucessivos feitos por João Paulo II, respondendo àqueles que
afirmavam o desenvolvimento da mariologia como um excesso escrevera: “Il senso ecclesiale dei dogmi
mariani è ormai noto: Maria è seno e prototipo della Chiesa; è la stessa fecondità della Chiesa, la sua forma
interiore in quanto Sposa di Cristo. Maria è più vicina a Cristo di Pietro e degli apostoli: mentre Pietro
impersona il ministero della Chiesa, Maria incarna il tutto della Chiesa; Pietro governa, Maria è l'umile
ancella che pronuncia il suo “fiat”, che si fa guidare e governare dallo Sposo stesso; Pietro deve esigere
l'obbedienza, Maria è la Vergine-Sposa, vaso di ogni obbedienza, da cui discende non solo l'obbedienza del
cristiano, ma la stessa esigenza di Pietro. L'antagonismo tra Pietro e il suo gregge, tra la gerarchia e il
laicato è superato in Maria in una realtà più profonda, fondamentale e comune a entrambe le parti: la realtà
della Chiesa-Sposa”. [tradução minha] “O sentido eclesial dos dogmas marianos é agora bem conhecido:
Maria é o coração e o protótipo da Igreja; è a mesma fecundidade da Igreja, a sua forma interior enquanto
Esposa de Cristo. Maria é a mais próxima de Cristo, de Pedro e dos apóstolos: enquanto Pedro personifica o
mistério da Igreja, Maria incarna o todo da Igreja; Pedro governa, Maria é a humilde serva que pronuncia o
seu „fiat‟, que se deixa guiar e governar pelo Esposo; Pedro deve exigir a obediência, Maria é a Virgem-
Esposa, vaso de obediência, da qual descende não só a obediência do cristão, mas a própria exigência de
Pedro. O antagonismo entre Pedro e o seu rebanho, entre a hierarquia e o laicado é superado em Maria numa
realidade profunda, fundamental e comum entre ambas as partes: a realidade da Igreja-Esposa.” HUB -
Abbattere i bastioni. Roma: Borla, 2008, 51-52.

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Os muitos contributos teológicos ao pensamento mariano21 de Balthasar chegam

às vezes a reflectir uma tensão, também largamente presente na sua obra, que se

exprime no inclinar-se muito para a figura de Maria na sua função “corporativa”22 e

eclesial. O motivo vem dito pelo facto de o mistério pascal apresentar a figura de

Maria numa forte reciprocidade com a Igreja. Ela na realidade, até ao seu

consentimento de fé, dilatou as notas individualizantes de “Mãe de Jesus” (Mc 3,31;

Lc 2, 48; Jo 2, 1-12; 19,25), a virgindade, a maternidade, o mistério, para toda a

Igreja23. Todavia, não obstante isto, parece-nos que em igualdade de circunstâncias

21
O aspecto antropológico-eclesiológico, ligado à reflexão mariológica é um dos contributos mais inovadores
e significativos à reflexão teológica, este tema inspirou autores que se ocuparam especificamente deste tema
do pensamento balthasariano. Cfr. ROMANI, A. – L’immagine della Chiesa «Sposa del Verbo» nelle opere
di HUB. Roma: Lateranense, 1979; J. G. ROTEN, Im Zeichen der Ellipse: Ein Beitrag zur theologischen
Anthropologie Hans Urs von Balthasar unter besonderer Berücksichtigung seines marianischen Denkens, in
«Marian Library Studies» 24 (1992-95). B. LEAHY, LEAHY, B. - O princípio mariano na Igreja, São
Paulo: Ed. Cidade Nova, 2005.
22
Aplica-se de modo especial à figura de Maria a noção de “personalidade corporativa” ou de “princípio de
totalidade” (ganzheitliche Denken), como outros autores hoje preferem, dado que vêm a primeira definição
apenas como um aspecto da segunda. Na realidade à parte de algumas imprecisões os dois conceitos
praticamente convergem. O primeiro termo, isto é “personalidade corporativa”, está presente na Escritura não
como locução específica mas como o concreto fundamental ligado à Aliança. O termo usado em tempos mais
recentes, no ano de 1936 por W. Wheeler Robinson, encontra aplicação concreta a respeito da figura
fundamental da história em relação à Aliança entre Deus e o seu povo. Deste modo podemos definir:
“personalidade corporativa: Adão, Abraão, Moisés, os reis e os profetas de Israel, mas também o Servo de
IHWH, o Filho do homem, entre outros. Para a mariologia este conceito tem a sua peculiar importância,
enquanto permite focalizar o aspecto mariano da Igreja. Todavia será bom reafirmar que o termo
personalidade cooperativa sublinha dois aspectos: por uma parte indica a personalidade particular, individual
que ao nível operativo se identifica com a comunidade; e por outro lado tratando-se realmente de uma pessoa
particular “age sem dissolver-se na comunidade mas identificando-se com essa” e também noutro caso
individua a singularidade da pessoa de Maria. Portanto podemos definir a personalidade corporativa, como
fazendo parte de um “grupo uma entidade real, inteiramente actualizada em cada um dos seus membros”. Isto
também vai ao encontro do presente pois compreende o passado e também o futuro. De facto, a
personalidade corporativa apresenta-se como uma realidade flexível que passa do aspecto individual para o
colectivo e vice-versa, e essa persiste também se o indivíduo passa para uma fase nova da sua vida. Cfr.
VALENTINI, A. - Personalitá corporativa e principio di totalità. Theotókos. 8 (2000), 485-497. Tal noção é
particularmente importante para a mariologia, enquanto permite uma leitura eclesiológica da figura de Maria,
mas também isto não deve tornar-se um princípio exclusivo com o risco de absorver a pessoa da Mãe. Na
verdade, Maria é chamada a articular a sua missão com a do Filho, ainda que com linhas próprias, que são
reconquistadas do discurso cristológico e que certamente atravessam a Igreja. Parece-nos que Balthasar
esteve implicitamente atento a este processo, no momento em que percepcionou como a missio de Cristo se
tornou omnicompreensiva em cada missão.
23
Quando falamos acerca da incarnação como evento antropológico devemos ter sempre em conta que a
instituição da epifania do Ser, é encontrado a partir dos seus atributos transcendentais como é a beleza,

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

Balthasar considera a visão cristotípica e a visão eclesiotípica num movimento

complementar, que consegue juntar na relação Cristo-Maria, de modo implícito

primeiramente e de modo explícito depois, uma síntese da mesma relação entre Cristo-

Igreja-Cruz24.

A pessoa de Maria, observa Balthasar, na participação da paixão do Filho

recorda, por excelência, a “mulher nas dores do parto” à qual se faz referência no

Evangelho de João (16,21), a qual sofre porque é chegada a sua hora. Ela recorda

contemporaneamente em primeiro plano a dor e a alegria que um novo nascimento

traz consigo, e também o drama da redenção, a dinâmica da morte e da ressurreição

em função da nova criação. Na realidade é em primeiro lugar a missio de Jesus Cristo

compreensiva pela acção soteriológica e pela perfeita união com o Pai e com o

Espírito, a dirigir-se para o resultado da paixão.

O termo hora25 vem introduzido por Balthasar, segundo o sentido joanino, em

primeiro lugar para Cristo e depois partindo d‟Ele para Maria, não como simplesmente

uma fase temporal, mas seguramente segundo a ascensão de um tempo teológico,

através do qual Balthasar define o papel central do Triduum mortis por toda a

primariamente através da doação da Mãe. O eu e o tu na relação existencial deste par, torna-se a condição
para o revelar-se e o abrir recíproco ao Outro, numa instituição completa e imediata, focalizada no momento
a partir do qual a criança recebendo o amor da mãe responde com o primeiro sorriso. O amor entre os dois
revela o mundo na sua absoluta infinitude e plenitude o Ser Absoluto como harmonia, como justiça, e em
breve como verdade que coincide com o bem. Cfr. MARINI, V. – Maria e il Mistero di Cristo nella teologia
di Hans Urs von Balthasar. Vaticano: Pontificia Academia Mariana Internationalis. 2005, pp. 150-161; HUB
- Unless you become like this Child. San Francisco: Ignatius, 1991, 14-18.
24
Para aprofundar a relação entre Maria e a Igreja Cfr. GHERARDINI – Igreja. In DE FIORES; MEO, S.,
eds. - Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, 584-597. Ver também MILITELLO, - Chiesa In
DE FIORES, ed. – Mariologia. Milano: San Paolo, 2009, 257-267. Nos primeiros escritos, Balthasar parece
antecipar em algumas linhas a visão do Concílio Vaticano II olhando para a missão pessoal de Maria, que se
estende depois a toda a vida da Igreja.
25
Ao evento da Hora, Balthasar dedica diversas páginas, cfr. Theodramatik: die Handlung. [THD III]
Einsiedeln: Johannes, 1973. vol.3, 212-220 [Trad. castelhana: Teodramática: la acción. Madrid: Ediciones
Encuentro, 1995. vol.4, 213-231]; TDT, 85-91= 706-709.

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

economia salvífica. O culminar do agir, operar e irradiar do Filho unigénito que se

manifesta na Hora encontra aí a única razão no “dom e sacrifício voluntário da sua

vida” (Jo 10,18), para reconciliar o mundo com Deus. Tanto que Balthasar define a

paixão de Cristo como “o cume da acção”, a fraqueza da cruz como “o cume” da sua

força, a impotência como a expressão da sua omnipotência, o falhanço máximo como

o optimum da sua eficácia mais alta. No seu corpo Eucarístico a missio de Cristo,

forçada nos limites do tempo, faz-se acção universal na Igreja26.

A cruz é revelação máxima da glória do Filho, como anuncia o Evangelho de

João para o qual a hora da paixão antecede um tempo de glorificação27; mas é também

manifestação do rosto do Pai, sendo já na vida intratrinitária expressão do constante

consentimento ao cumprir-se a Sua vontade28. Em tal evento o mundo alcança o seu

fim dentro da dimensão salvífica, e Deus “alcança uma autêntica revelação e

glorificação”29.

Alguns importantes temas, que na obra balthasariana têm já encontrado uma

antecipação preparatória na entrada trinitária do Teodrama, encontram-se e

concretizam-se à volta da reflexão sobre o Mysterium Paschale, considerando a

continuidade dinâmica entre a incarnação e a cruz. Realmente aparece em primeiro

plano o ser sempre virado para o “seio do Pai” da parte de Cristo, e uma obediência

que é o eterno sim incondicional do Filho ao Pai no Espírito, o qual encontra a plena
26
Cfr. VC, 254 = 300.
27
Para confrontar o papel de Maria ao longo do Evangelho de João ver os estudos apresentados em SERRA,
A - Testimonianze in Luca e Giovanni Storia della mariologia. In COVOLO, E. ; SERRA, A., eds. - Dal
modello biblico al modello letterario. Vol 1. Roma: Città Nuova, 2009 p. 104-138; DEISS, L. – Maria, hija
de Sion. Madrid: Cristiandad, 1967, 277-316; BROWN, R.; DONFRIED, K. – Maria en el Nuevo
Testamento: una evaluacion conjunta de estudiosos catolicos y protestantes. Salamanca: Sigueme, 1982,
200-269.
28
Cfr. VC, 254 = 300.
29
“…Offenbarung und Verherrlichung gelangt…”. TDT, 19 = 668.

33
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

consumação na resposta da superobediência (Übergehorsam)30. A relação entre Jesus

e o Pai no momento da cruz não sofre qualquer tipo de interrupção, que cada ser

humano experimenta como vazio trágico, assente em cada sentido e em cada relação.

Pelo contrário, no evento da paixão e da morte não se fala agora de revelação, de

manifestação de Deus. Como diria Lutero, “na cruz Deus revela-se escondendo-se”

(sub contrario). A chave desta revelação está toda na missio do Filho, O qual, observa

Balthasar “não assume o peso desta existência d‟Ele (isto seria contraditório com o

estado kenótico) mas aceita apenas deixar-se carregar na hora firme no Pai”31. Nesta

questão Balthasar assume a posição dos Padres da Igreja os quais sustentavam que a

incarnação estava em ordem à paixão, isto em última análise é dito por Balthasar entre

a vida (activa) de Jesus e a sua hora reina uma perfeita unidade”32.

O Evangelho de João, faz de contraponto e desde logo é inspiração para a

teologia balthasariana. Dado que evidencia como Jesus vivia desde o princípio e agia

em vista à Hora. Deste modo, a sua proximidade ou distância torna-se critério para

valorizar cada uma das suas acções33 e a medida da sua existência34. Naturalmente

resta uma certa tensão entre a vida e a Hora, e contudo a existência de Jesus tende para

30
P. Martinelli sublinha que o choque de Jesus é essencialmente a passagem de uma acção para uma paixão
que ele vem carregando do peso da Cruz, (Cfr. HUB - Herrlichkeit: eine theologische Ästhetik: Neuer Bund.
[H III/2/2] Einsieldeln: Johannes, 1969. vol.3/2/t.2, 187-196 [Trad. castelhana: Gloria: Nuevo Testamento.
Madrid: Ediciones Encuentro, 1998. vol.7, 167-174]), da parte dos homens, dos cristãos hebreus e pagãos
finalmente da parte Pai tornando-se evidente “que Deus age de modo decisivo na hora de Jesus”. Cfr.
MARTINELLI P. - La morte di Cristo como rivelazione dell’amore trinitario nella teologia di H. U. von
Balthasar. Milano: Jaca Book, 1996, 296-297.
31
“aber die dieser Existenz zugedachte Last bürdet er sich nicht selber auf – das widerspräche gerade dem
kenotischen Zustand -, er ist nur bereit, sie sich in der «Stunde» die der Vater bestimmt hat, aufbürden zu
lassen”. H III/2/2, 200 = 200.
32
“…daβ zwischen dem (aktiven) Leben Jesu und seiner Stunde eine vollkommene Einheit herrscht” THD
III, 217 = 214; Cfr. TDT 16-27 = 666-673.
33
Jo 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 16,32; 17,1.
34
Mc 13,32.

34
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

este momento, tanto que essa se pode dizer contida entre as duas expressões

cristológicas do “ser mandado” (Gesendetsein) e do “ter vindo” (Gekommensein). A

missão da hora (die Sendung der Stunde) explicita-se como parte essencial e tendo

como propósito a finalidade da sua existência, revelando uma super-acção

(Überaktion) e uma super-exigência (Überforderung)35.

Na Hora revela-se a unicidade irrepetível de Cristo, afirma Balthasar, o que é

não em relação ao mundo. Na realidade, não se é capaz de explicar em função do

mundo, tanto menos no momento sumamente dramático da paixão e da cruz. É capaz

de ser todavia cultivada no mundo como irradiação da glória do Unigénito, enquanto

unicidade irrepetível de Deus, o qual irradia e comunica tal glória segundo o modo

inesperado (e horrivelmente temido pelo homem) do sofrimento e da morte de cruz36.

A acção de Maria, desde sempre em sintonia perfeita com a do Filho, já havia

manifestado por natureza e por graça toda a sua atenção ao desígnio do Pai no Filho,

no momento da anunciação. Mas nos pouquíssimos testemunhos do Evangelho sobre a

presença da Mãe na vida pública do Filho, o momento da Hora concretiza

definitivamente a ideia de que Maria é no desígnio do Pai qualquer coisa de mais

importante do que uma simples companhia materna para o Filho do Deus incarnado. A

tarefa (Auftrag) que à Mãe é destinada a desenvolver é capaz de aparecer diversa aos

olhos do mundo a respeito da vida de Jesus Cristo, diverso como pode ser a palavra e o

silêncio; mas a Hora deixa cair cada distinção e ascender o destino do ser virado para

uma acção comum, porque é de frente à paixão que a Hora da Mãe comunicada na

35
THD III, 218 = 215.
36
Cfr. VC, 184 = 222.

35
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

infância de Jesus se completa na Hora do Filho37. Mantendo aquele dado irrenunciável

e irredutível da diferença entre Criador e criatura, Balthasar sublinha que a

disponibilidade criatural para acolher a vontade do Pai no momento da Hora

distingue-se daquela de Cristo pelo facto de que no Verbo permanece sempre a

realidade insuperavelmente maior: é por isso que Ela deverá acolher no Espírito38,

com a prontidão de uma única contudo dúplice obediência de fé39, à vontade do Pai na

pessoa do Filho.

Maria experimenta em si mesma, no seu dever-se preparar para ser companhia

para o Filho no seu definitivo momento da morte pro nobis (centro da teodramática e o

âmago mais íntimo, diz Balthasar, do jogo complexo entre Deus e o homem), tal como

a incarnação, ambas são a mesma verdade, e não um exemplo, fazendo por um lado a

37
Cfr. Idem, 255-256=302-303.
38
A presença do Espírito Santo e de Maria é considerada por Balthasar dentro de uma visão tripla: A) na
visão cristã do homem, o Espírito é a força misteriosa que, não obstante o pecado, prevalece no coração
humano produzindo assim fruto na reconciliação completada por Cristo. O encontro entre a luz/graça de
Deus e a resposta da pessoa humana é completado sobretudo em Maria. B) na visão teológica da Igreja o
Espírito Santo estabelece a unidade entre a Igreja hierárquico-Petrina e a Igreja amor, é o Espírito que com
suprema liberdade, conduz cada comunidade cristã. Em Maria dá-se a transformação do eu-pessoal em eu-
eclesial. No contexto eclesiológico, esta presença tem o nome de princípio mariano, que é o factor de
feminilidade cristã por meio da qual a Igreja, enquanto Esposa fiel de Cristo é também plenamente
disponível e receptiva da Palavra. C) segundo a teologia da história de Balthasar, depois da vinda de Cristo é
essencialmente uma história sacra. Agora a história não é mais um fenómeno científico ou antropológico
mas essencialmente teológico. Nesta visão teológica da história o princípio mariano da existência cristã e da
Igreja atinge o seu cume quando Balthasar apresenta a relação misteriosa que entrelaça a obediência do Filho
à vontade do Pai e a missão de Maria no Espírito Santo como o verdadeiro centro teológico da história do
mundo e da humanidade e como o local da integração de cada ulterior acto de obediência cristã no único
sacrifício de Cristo. Cfr. MASINI, M. – Percorsi di mariologia nella cristologia contemporanea. Marianum.
44 (2002), 326-329.
39
“…der den Erlösungsgehorsam Jesu einfordert, liegt aber auch das Dabeisein derer, die hier stellvertreten
werden: wenn es wirklich um die Vollendung des Bundes geht, kann es mit passiver Stellvertretung sein
Bewenden nicht haben, die Stellvertretenen müssen in aktiver Weise miteinbezogen sein (jedoch so, daβ der
Vorrang Christi vor den ihm Nachfolgenden oder mit ihm Mitwirkenden in keiner Weise verwischt wird).”
[tradução minha] “[A Hora] reclama a obediência salvífica de Jesus, mas interpela também a presença das
pessoas aqui representadas; se realmente se trata do cumprimento da Aliança, isso não é capaz de levar a
cabo numa vicariedade passiva, os representantes devem ser envolvidos numa maneira activa (todavia de
modo que a proeminência de Cristo a respeito dos seguidores ou cooperadores não venha de modo nenhum
atenuada).” THD III, 220 = 217. Tal proeminência de Cristo a respeito dos seguidores e cooperadores não é
colocada.

36
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

dolorosa experiência natural materna de haver entregue uma carne para a morte, e por

outro lado fazendo fé que no momento da ressurreição de haver dado uma carne para a

vida, para o omnipotente desígnio de salvação.

Os Padres da Igreja na sua reflexão intuíram segundo as categorias teológico-

filosóficas esta verdade experiencial de Maria no momento em que releram a

incarnação na sua relação com a paixão; “Christus mori missus nasci quoque

necessario habuit ut mori posset”.40 O papel central do Triduum mortis, observa

Balthasar, não é tanto o efeito de fazer depender a incarnação do pecado ou de reduzir

Deus a um instrumento para conseguir a criação, mas de fazer coincidir os dois

aspectos, pelos quais a incarnação adquire já o carácter da paixão41, revelando no

sofrimento e na morte o aspecto profundo da sua divindade e da sua glória.

1.2 A Hora como tempo da acção

O testemunho do Novo Testamento mostra uma diástase na vida de Jesus, no

momento em que essa se dirige para a Hora. Nos Evangelhos Sinópticos é visível esta

diástase, como o é a relativa projecção deste estado de vida para a fase final

(Endphase), bem distinta e separada do tempo da acção (Zeit des Handelns), do

ensinamento (des Lehrens), dos milagres (des Wunderwirkens). No Evangelho de João

40
Tertuliano, De Carne Christi 6, 32-34 [http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_0160-
0220__Tertullianus__De_Carne_Christi__LT.doc.html online no dia 1 do 10 de 2009].
41
A tal propósito, pode-se evidenciar que “O termo paixão tem um duplo significado de sofrimento e ardor, e
exactamente nesta dúplice acepção está o acto de exprimir a verdade central da fé cristã. Esta vive do
sofrimento de um grande ardor e é esse estado de paixão disposto a sofrer pela vida”. MOLTMANN, Jürgen
- Trindade e reino de Deus: uma contribuição para a teologia. Petrópolis: Vozes, 2000, 32.

37
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

amplia-se a particularidade desta locução temporal, a qual vem da expressão escondida

do profundo sentido teológico omnidecisivo, desta palavra e da obra de Jesus Cristo42.

Se consideramos o tema da Hora no seu estado dentro da Escritura, isso indica

um particular momento de tempo favorável (Lc 1, 10; 14, 17; Mt 10, 19; Act 3, 1) ou

no Apocalipse, um tempo preestabelecido por Deus (14, 7; 14, 15; 18, 10). Os

Sinópticos conhecem certamente a palavra, mas usam-na raramente e em relação ao

sofrimento de Jesus43. Em particular a hora tem porém uma dúplice referência: por um

lado o tempo destinado pelo Pai à paixão (Mc 14, 35); por outro lado o momento em

que os discípulos são chamados a vigiar e orar com Jesus (Mt 26, 40). A Hora de

Jesus é uma condição (Zuständligkeit) que faz saltar cada esquema cronológico de

tempo, observa Balthasar, e também é apoiada no tempo terreno (irdische Zeit) como

expectativa e vinda.

O Evangelho de João faz da Hora um tema típico seu, e neste sentido Balthasar,

recupera-o em toda a sua significativa intensidade. Mesmo que na verdade não seja um

tema original porque nele se reencontra um significado escatológico em raros textos

do Antigo Testamento (como por exemplo Dn 11, 40-45 onde se fala sobre a luz de

uma intervenção messiânica em favor do Povo de Israel da “hora do cumprimento”)44,

João distingue-se dos Sinópticos porque desde o início fala da Hora, individualizada

“… das Kreuz, das er nicht antizipiert, dessen Kenntnis er dem Vater anheimstellt (Mc 13, 32), ist Maβ
seiner Existenz”. [tradução minha] “A cruz que Jesus não antecipa, a consciência que ele remete para o Pai
(Mc 13, 32) é a medida da sua existência”. TDT, 89 = 709.
43
Por exemplo, os Sinópticos usam-na a propósito da agonia de Jesus no Getsémani: “É chegada a hora: o
Filho do homem é entregue nas mãos dos pecadores” (Mc 14, 41).
44
Cfr. LA POTTERIE, Ignace de - La pasión de Jesús según San Juan: texto y espíritu. Madrid: BAC, 2007,
13; DILLENSCHNEIDER, C. – El misterio de nuestra señora y nuestra devocion mariana. Salamanca:
Sigueme, 1965, 176-194.

38
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

como o ápice da vida terrena de Jesus Cristo, distinta da Hora das trevas, da entrega

do Filho nas mãos dos pecadores.

Neste Evangelho o conceito de Hora subentende o momento da elevação sobre a

cruz unido ao da glorificação. Jesus, no Evangelho de João, fala desde o início sobre

isso, mas no final do cap. 12 apenas para dizer que ela ainda não chegou, pois Ele

assinala na sua palavra a chegada deste momento: a hora está próxima, até na primeira

palavra da oração sacerdotal na qual Jesus declara a vinda da hora: “Pai, é chegada a

hora; glorifica a teu Filho, para que também o Filho te glorifique” (Jo 17, 1) 45. Esta

perspectiva joanina é particularmente aceitável na sensibilidade balthasariana, que

reflecte (será melhor dizer contempla) o Cristo na glória do seu morrer46.

Balthasar, tendo em consideração a vida Jesus antes da Hora, não a percebe

simplesmente como um átrio (Vorraum) que seria capaz de envolver ao máximo a

conversão, a salvação, o grupo de Israel, enquanto uma vontade universal de salvação

que teria a possibilidade de manifestar-se apenas indirectamente (enquanto a missio é

aqui limitada na força, no espaço do tempo e do lugar). Mas no tempo limitado Jesus é

a luz do mundo da qual precisa valer-se (Jo 8, 12; 12, 35) antes que venha a hora das

trevas (Lc 22, 53). É o mestre da verdade que reúne os insanos47. O movimento

temporal-definitivo (Mc 1, 15; 13, 29), iniciado imediatamente a partir da incarnação,

45
A. GEORGE num comentário a Jo 17, chama a oração sacerdotal de “a oração da Hora”, essa é lida em
paralelo com a oração do Getsémani, em que o assunto seria o mistério da invisível unidade entre sofrimento
e glorificação. Cfr. GEORGE, A. - L “heure” de Jean 17. Revue Biblique. 61 (1954), 392-397.
46
Von Balthasar apresenta a soteriologia na segunda parte da sua trilogia, segunda uma perspectiva joanina,
dando relevo, ao contexto revelativo da cruz e do morrer de Cristo.
47
O nosso autor sublinha como “Das ungeheure Übergewicht einer überzeitlichen Werttafel, die unfaβliche
Un-vorsichtigkeit, die vom Mitgehenden verlangt wird, zeigt, wie sehr das Leben Jesu […] auf eine zeitlose
Zeit hinstrebet, von ihr angezogen wird, von ihr her denkt und baut”. [tradução minha] “O peso
preponderante de uma tábua de valores supra-temporais, a incompreensível falta de cautela que pede aos que
o rodeiam, mostra até que ponto a vida de Jesus […] aponta a um tempo sem tempo, pelo qual é seduzido, a
partir do que pensa e constrói.” THD III, 214 = 211.

39
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

tem o seu curso direccionado para aquilo que será o conteúdo da hora, que Jesus não

antecipa nem no tempo, nem no conteúdo, mas concebe como “uma realidade de

inalterável estabilidade de Deus” (Zeit und Inhalt, als eine bei Gott unabänderlich

festgelegte) , para a qual o Filho se estende com todo o seu ser48.

O conteúdo da Hora representa o centro, o foco da sua missão, e certamente o

lugar onde se justifica a sua exousia e a sua pretensão de ser o Filho de Deus. Mas, ao

mesmo tempo, o facto de que Ele não possa antecipar o conhecimento da hora indica

que essa pertence à dimensão particular de obediência de Filho (Gehorsam des

Sohnes). É a própria obediência, sublinhada com força no Evangelho de João, a fazer

com que o Filho aguarde a imprevisível hora (unvorhersehbare Stunde), como um

homem qualquer (gewöhnlicher Mensch) e torne manifesta a vinda ou a não vinda da

Hora.

O tempo dentro do qual se desenvolve a missio assume, como Balthasar

sublinha, uma relação especial com Jesus49. Para Jesus a existência terrena não é

simplesmente, observa Balthasar, um heidegeriano ser-lançado ou um ser-para-a-

morte (Sein-zum-Tode) mas é dom do Filho no Espírito ao Pai, é decisão da sua

vontade50.

48
Cfr. Idem, 215= 212.
49
Balthasar dedicou muitas páginas da sua obra directamente à análise do tempo eterno e tempo finito. Cfr.
HUB - Homo creatus est: Skizzen zur Theologie. [HC] Einsiedeln: Johannes, 1986. vol.5, 38-51 [Trad.
Italiana: Homo creatus est: saggi teologici. Brescia: Morcelliana, 1991. vol.5, 41-56]; H III/2/2, 150-186 =
135-166.
50
Balthasar no seu texto da Teologia dos três dias e no quarto volume da Teodramática, sublinha como a
dimensão da Hora revela o envolvimento Trinitário. Ou melhor, o pro nobis introduziu uma estrutura
trinitária, tal como conclui P. Martinelli: “Pensiamo non sai temerario affermare che il modo con il quale
Balthasar presenta il “pro nobis”, che esprime la dimensione constitutiva dell’“ora” di Gesù, rivela una
strutura trinitaria; infatti, pur nel continuo riferimento a tutte le persone divine, ci sembra che il contenuto
della morte sai baricentrata sul Figlio, il frutto di essa sull’ opera dello Spirito e la descrizione della

40
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

Jesus Cristo não faz qualquer tentativa de se evadir do tempo ou de fechá-lo51, deste

modo, afirma o teólogo suíço, pode-se dizer que, como enviado do Pai na existência

temporal, o caminho seguro para todos é Ele; mas dado que tal acção está em relação

com o desígnio do Pai, o Filho está sempre virado para Ele, assim continua a “morar

junto do Pai”. Cada coisa que Ele faz no tempo é segundo a vontade do Pai. Para além

disso, o “seu ser-para-a-morte é um ser-para o cumprimento da sua missão divina”,

de tal modo que, observa Balthasar, Cristo tem sucesso ao fazer da própria morte uma

acção no pleno sentido da palavra52.

A passagem de Cristo que se coloca entre a saída (exivi a Patre) e o retorno

(vado ad Patrem) ao Pai, a razão da assunção da carne que pela lei do Pecado, da

Morte e do Juízo a que se sujeita a caro peccati (Fleisch der Sünde) acontece de modo

cruel. De tal modo que o retorno ao Pai por parte do Filho passa, através da porta da

morte e do juízo da Cruz, entre a manifestação da ira (Zorn Gottes) e do amor de Deus

(Liebe Gottes).

Portanto, seguindo esta óptica, podemos afirmar “que entre a vida activa de

Jesus e a sua Hora reina uma perfeita unidade”, como já havia sido dito, que Balthasar

distingue de uma pura continuidade, como seria capaz de ser aquela da “solidariedade

para com os pecadores”. A vida de Jesus corre para a Hora e nessa nota-se o “agir

próprio de Jesus”, ao qual não é escondido o facto de que os inimigos conspiram

contra Ele. Pelo contrário, Hora é o domínio do ser-entregue pelos homens e pelo Pai

sorgente sul mistero del Padre” (MARTINELLI P. - La morte di Cristo como rivelazione dell’amore
trinitario nella teologia di H. U. von Balthasar. Milano: Jaca Book, 1996, 318).
51
Deste modo, afirma Balthasar, Cristo não pretende abolir o tempo, ao contrário de um grande número de
propostas religiosas, que tentam fugir perante a insensatez do tempo, à sua vanidade, ao seu destino directo
para a morte. Cfr. HC, 40 = 44.
52
“…kann er drittens seinen Tod zu einer wahrhaftigen Tat machen”. Idem, 46 = 50.

41
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

em última análise. Ainda que isto pareça um deixar andar aparentemente passivo, que

requer uma certa luta (no Getsémani), porém revela uma super-acção (Überaktion),

um concordar com uma super-exigência (Überforderung), que só a Ele podia ser

proposta53 pelo Pai.

Nesta Hora, sustenta Balthasar, realiza-se e vem evocada a acção conjunta do

Pai e do Filho, ambos na comunhão do Espírito, que é também acção entre Cristo e os

pecadores que lançaram sobre Ele os seus pecados, todavia é necessária agora uma

figura para que os pecadores possam participar da graça reconciliadora e adquirir a

liberdade dos Filhos de Deus. Esta figura é individualizada na humilde Serva (niedrige

Magd), cujo consentimento (Jawort) já no início, observa Balthasar, tinha sido tão

puro, aberto, acolhedor, incluindo quase antecipadamente “todos os destinos do Filho

que Ela aceitou incluídos”54. Neste momento, Maria tem a função de reunir em si toda

a fé de Israel, para além de toda a humanidade caduca, também a dos principais

protagonistas do Antigo Testamento e da Igreja.

A Hora de Maria inicia-se na sabedoria da obediência na qual é introduzida pelo

Espírito. Esta é uma sabedoria que cumpre perfeitamente a acção do deixar acontecer,

também na não compreensão e na profunda angústia do destino do seu Filho. Ela está

aqui, em comunhão perfeita com o Filho que deixa ao Pai o saber quando virá a Hora

e o cumprimento definitivo da sua missão. No cumprimento do mistério pascal, a

forma da obediência assume os contornos deste deixar-se conduzir para a via Crucis

53
Cfr. THD III, 218= 215. Confrontar também com o sétimo volume de Glória: “Peso da Cruz” H III/2/2,
187-217 = 167-192.
54
“alle Schicksale des bejahten Sohnes miteinschloβ” THD III, 328 = 328.

42
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

que termina sob a cruz, como o aspecto de uma maturação angustiante que parte de

Maria, em função da Igreja para qual é destinada para ser o centro.

“Sob a cruz, sucede-se a conclusão das duas coisas: a coincidência das duas

“horas” finalmente alcançada (Jo 2, 4): Jesus abandonado pelo Pai abandona a sua

Mãe de forma que ambos os abandonos sejam uma coisa só, seja a perfeita separação

da Mãe dirigida à Igreja. Mulher, eis o teu filho (Jo 19, 26). De agora em diante Ela

torna-se o centro daquilo que será o corpo e a esposa de Cristo”55.

1.3 A inclusão trinitária da soteriologia

A doutrina da reconciliação (Versöhnungslehre) e como tal do mistério pascal, do

ponto de vista mariológico, propõe uma complexa variedade de questões trinitárias,

cristológicas, antropológicas e eclesiológicas, dado que penetra no núcleo mais interno

da teodramática. O dado soteriológico no evento da cruz e na ressurreição, observa

Balthasar, deixa entrar a pessoa teológico-dramática verdadeiramente no actuar (Spiel)

intenso enquanto drama56. Enquanto a dimensão do mistério vem a situar-se num

campo visual (Blickfeld), no momento da Hora Deus age de um modo tão decisivo e

55
“Unter dem Kreuz vollendet sich beides gleichzeitig: sowohl das endlich erreichte Zusammenfallen der
beiden «Stunden» (Jo 2,4): Jesus, vom Vater verlassen, verläβt seine Mutter, damit beide in der
Verlassenheit eins seien, wie die vollkommene Abscheidung der Mutter in die Kirche hinein zeigt (Jo 19, 26
«Weib, siehe da deinen Sohn»): sie wird fortan Mitten dessen, was «Leib» und «Braut» Christi sein wird”.
HC, 146 = 157.
56
“Vom Kern der Versöhnungslehre her kommen die im vorigen Band geschilderten theologischen Personen
erst eigentlich ins Spiel.” [tradução minha] “As pessoas teológicas mencionadas no volume anterior só
entram realmente em jogo quando partem do núcleo do ensaio sobre a reconciliação.” THD III, 211 = 208.
Interessante a este propósito é a reflexão de A. Von Speyr: “Inicialmente [Maria] não pronuncia o seu sim em
vista de uma agradável recepção nem com o intuito de uma morte terrível. O seu sim não é dado a mais nada
que não seja a vontade de Deus, e não acontece mais do que a uma particular situação do Filho, nem tanto
menos do que da sua particular condição. É um sim indiferente que pode ser planeado por Deus seja num
sentido de uma grande alegria, seja num sentido de uma dor profunda. Ela mesma não deseja influenciar em
nada a vontade Deus, somente aceita-a.” SPEYR, A. von – Ancilla Domini: María en la redención. Rafaela:
Fundación San Juan, 2005, 134.

43
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

crucial ao abrir um espaço ulteriormente manifesto para poder acolher adequadamente

a missio do Filho.

O horizonte soteriológico evidencia na obra de Balthasar a acção do Pai e do

Filho no Espírito, mas além do tempo da manifesta acção de Cristo no cumprimento

do pro nobis em favor dos pecadores, é evidenciada a figura da Igreja-Maria que é o

local onde os pecadores recebem de Deus a fé que traz consigo a justificação. A

articulação deste papel que a dramática figura de Maria desenvolve no drama não é

fácil, especialmente no momento em que o admirabile commercium resgata a essência

da substituição vicarial que actua sobre a cruz57.

A interpretação da morte de Cristo torna-se fundamental para delinear e

circunscrever a função Mãe do Senhor. Em relação a isto von Balthasar, realizando

uma escolha do campo que vai ao encontro da Tradição da Igreja, impõe um sentido

novo e certamente radical. A consequência desta escolha é de colocar em relação o

mistério pascal com o tema do admirabile commercium.

Poderia parecer, segundo a visão de Balthasar, que não se pode alcançar uma

adequada articulação da figura de Maria sem uma interpretação trinitária e cristológica

do evento da cruz. Há como que a impressão de que a soteriologia em relação à

mariologia seria dificilmente pensável segundo uma visão unitária do mistério

cristológico, se não fosse considerada, partindo deste fundo trinitário, que evidencia

como “Deus, já em si, como o amor absoluto [Pai] deu e sacrificou ao mundo o Filho

por amor ”58. Maria é pois parte integrante e em certo sentido necessária para a

57
Cfr. NICHOLS, A. – No bloodless myth: a guide through Balthasar’s dramatics. Washington: The
Catholic University of America Press, 2000, 107-118.
58
“…daβ Gott (der Vater) den Sohn aus Liebe zur Welt preisgegeben hat…” THD III, 297 = 296.

44
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

actuação da economia salvífica, segundo a decisão trinitária de incluir a humanidade

como parte activa no evento, não só como fruto dos frutos da redenção, não só através

da natureza humana de Jesus, mas também através da figura representativa, da qual

Maria representa a actuação mais singular e única.

Neste ponto, pensar Maria na perspectiva do mistério pascal requer realmente

considerar o mistério de Cristo e da salvação a partir do cume do Teodrama, em

relação ao qual o drama cósmico de Deus (Weltspiel Gottes), concentrado sobre esta

cena, decide o Teodrama. Este é um evento no qual não só o mundo, mas também

Deus se coloca completamente em jogo, através da interacção da liberdade absoluta,

como o Um que não é puro espectador fechado na sua inalterabilidade e imutabilidade,

e a liberdade criada do homem culpado (shuldige Mensch), ao qual é requerido não

estar passivo.

A obra de Balthasar evidência na soteriologia, nas páginas dedicadas ao evento a

cruz, a estrutura unitária e circular de toda a sua reflexão, de toda a sua Denkform, tal

pode observar-se no Novo Testamento, o sétimo volume de Gloria, no quarto volume

da Teodramática e no texto de Mysterium Paschale que foi o seu contributo a

Mysterium Salutis. De facto, no cume do Teodrama está incluído o acto final,

escatológico, já presente desde sempre na existência terrena do Filho enquanto relação

para com a inclusividade universal da sua missão, da qual faz parte o tudo está

consumado da cruz59 e o anúncio da ressurreição. A esperança da hora (paixão e

ressurreição) dilata de modo imensurável a missão de Cristo.

59
Cfr. Idem, 102-111 = 107-114.

45
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

O movimento da reconciliação, onde no centro se encontra Cristo, revela a sua

dramaticidade no interior de Deus, entre Deus e o homem60. Nesta acção salvífica a

pessoa de Maria é incluída segundo o movimento obediencial da acção do Filho. Mas

como a paixão e a morte de Jesus sofrida pro nobis não é simplesmente o identificar-

se com um qualquer sofrimento, um puro sofrer, mas é sua super-acção na qual Ele

obediente ao Pai presume uma actuação por cima de toda a medida humana, até à

substituição vicária (Stellvertretung) dos pecadores. A Mãe é envolvida na dimensão

crística-universal de uma nova tarefa. Portanto entre os dois temas joaninos da

exaltação (Jo 3, 14-15; 8, 28; 12,32) e a Hora de Jesus (7, 30; 8, 20; 12, 20-28; 13, 1;

16, 13-14) nos quais se desvela o mistério da reconciliação, a Escritura mostra o

mistério da Mater dolorosa, em paralelo com Cristo, o homem das dores (Is 53, 3).

Esta comparticipação com os sofrimentos de Cristo na qual se desvela a cooperação

de Maria, que desde a Anunciação persiste e se completa no calvário, revela o seu

pleno motivo na análise do tríptico Canã-Calvário-Apocalipse.

Volvendo para primeiro plano a inclusão trinitária, se for permitido usar tal

nome, esta contribui para uma interpretação inovadora, se não mesmo original do

conceito anselmiano de substituição vicária, de modo a chamar de mudança de lugar

(Platztausch) reunindo o pressuposto ontológico da Trindade imanente61. O mesmo

60
Cfr. Idem, 110 = 112.
61
Balthasar preferindo reavaliar o modelo da substituição vicária traça uma via entre dois extremos,
renunciando a definir o mistério e procurando superar no fundo a interpretação tomista, que deixa, segundo o
nosso autor, a Trindade Imanente. “daβ diese nicht gleichsam «unbehelligt» oberhalb des Kreuzesgeschehens
schweben blieb (Christus oberhalb seiner Gottverlassenheit noch die Visio beatifica genieβt), sie aber auch
nicht im Sinn einer moltmannschen oder hegelschen Prozeβtheologie in eine mythologisch-tragizistische
Verstrickung mit der Sünde geriet”. [tradução minha] “que não ficou “salvo” a pairar por cima do evento da
cruz (com Cristo acima do abandono do Pai ainda a gozar da visio beatifica) ” nem entre numa fusão
mitológico-trágica com o pecado segundo a teologia do processo na linha moltmanniana ou hegeliana.” Idem,
310 = 309.

46
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

abandono do Filho por parte de Deus (Gottverlassenheit) e a participação de Maria e

até mesmo o não da criatura ressoa no lugar da diferença intradivina (innergöttliche

Differenz) entre o Pai e o Filho eternamente confirmada e superada pelo Espírito.

Balthasar procurou a diferença das Hipóstases que sustém o motivo da kenose, da

autodesapropriação intratrinitária (innertrinitarische Selbstenteignung) de Deus Pai a

favor do Filho, compreendendo a kenose da cruz como a última auto-doação

(Selbstentäuβerungen) de Deus, acentuando fortemente o facto de que a cruz é um

evento de toda a Trindade62.

1.4 - O Akme (cume) do Teodrama (excursus sobre o tema do admirabile commercium).

Com base nos temas antecedentes, a escolha de um modelo histórico-teológico da

parte de Balthasar procura o significado a dar ao evento da cruz na doutrina da

redenção, dado que parece-nos determinar a ideia de um envolvimento da parte da

Mãe do Senhor como algo essencial e significativo. Portanto no acontecimento em que

vê Maria aos pés da cruz, é evocada certamente a relação humana mãe-filho, mas

também se trata de ver por dentro, ao mesmo tempo, o contributo compassivo (no

sentido de compatiens de pati-cum, sofrer com) no evento pascal de Maria e o seu

sentido profundamente teológico e soteriológico.

Por tal motivo, expomos um breve excursus que Balthasar propõe analisando as

cinco categorias (ou cinco perspectivas) que reúnem alguns aspectos fundamentais da

reconciliação nos escritos neotestamentários, notando que são cinco motivos que

permanecem sempre abertos uns para os outros. Sinteticamente a afirmação

62
Cfr. Idem, 291 = 290-291. Onde vem considerada a ideia de S. Bulgakov de kenose intratrinitária como
havemos já visto precedentemente.

47
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

fundamental da fé eclesial Crucifixus etiam pro nobis63 e propter nostram salutem

descendit de caelis vem desenvolvida por Balthasar em cinco conteúdos que

determinam a interpretação do pro nobis. Na verdade a reconciliação (Versöhnung)

com o mundo supõe devoção (Dahingabe), a entrega (Überliefert) de Cristo, o dar-se

(Dahingegeben) mediante o Pai por todos nós (für uns alle). Em segundo lugar este

dom de si, recordando em certas alturas o primeiro motivo, torna-se uma verdadeira

troca de lugares entre o inocente e o pecador64. Os frutos do evento da reconciliação

são intensos em Balthasar como o ser colocado em liberdade do homem, e que

sublinha que o dom da liberdade inclui um momento expiativo-reconciliativo no

sangue de uma morte violenta (Heb 9, 22) como o de Cristo. Mas a libertação do

homem65 é também expressa em termos positivos como introdução na vida divina

intratrinitária, que acontece na graça por obra do Espírito Santo e que coloca na

condição de filhos com Cristo (Ef 1, 5). De facto, se a situação de pecado do homem

recorda na Escritura o tema da ira de Deus, o acontecimento deve ser lido por inteiro

no âmbito do amor misericordioso de Deus, e da sua graça66.

A respeito destes cinco motivos existe, segundo Balthasar, uma unidade precisa,

que todavia ergue uma impossibilidade de ser reduzido a um sistema, dado que a todos

e a cada um dos cinco aspectos são concedidos na reflexão eclesial um espaço

63
DS, nº150.
64
Cfr. THD III, 222 = 218-219. A troca de lugares bem acolhida em linha de princípio pelos Padres da Igreja,
é desenvolvida até às últimas consequências apenas nas variações modernas na teoria da substituição vicária.
Cfr. Idem, 295 = 292.
65
Balthasar sustenta que: “«Erlösung durch sein Blut, Vergebung der Sünden» nur ein Moment innerhalb des
umfassenden göttlichen Ratschlusses, uns durch Gnade der Mit-Sohnschaft mit Christus teilhaft zu machen”
[tradução minha] “a redenção mediante o seu sangue, a remissão dos pecados é apenas um aspecto do
desígnio divino que encontra o seu cumprimento na vontade divina de que o homem se torne filho no Filho.”
Idem, 223 = 220.
66
Isto não significa, afirma Balthasar, que o evento pascal não tenha a ver com o fazer justiça (Gerechtigkeit)
à Aliança de Deus. Cfr. Idem, 223 = 220.

48
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

adequado, mostrando uma íntima coerência, sem que um se eleve perante o outro,

evitando o absolutizar dos modelos culturais, sintetizando aparentemente a perca da

intensidade das afirmações bíblicas67.

Na base destes cinco aspectos fundamentais da reconciliação presentes no Novo

Testamento, são desenvolvidos três modelos histórico-teológicos que propõem cada

um deles uma interpretação da morte de Jesus. Esses são modelos epocais, como os

define Balthasar.

O primeiro modelo é o dos Padres, em que o significado e a expressão fundamental

da cruz é lida segundo a troca de lugar, ao qual vêm reconduzidos os outros quatro

aspectos68. O admirabile commercium69 além das várias posições patrísticas assume

um significado constante, que acima de tudo contém a ideia de incarnação de Deus,

por meio da qual o homem alcança a divinização. Apenas num segundo momento,

depois do Concílio de Niceia é que se desenvolve em primeiro plano a ligação entre

incarnação e paixão70. Se entrarmos no valor das posições singulares dos Padres, pode-

se observar que também na avaliação do desenvolvimento da fórmula de commercium

os Padres, por causa das concepções cristológicas e das relativas disputas, defenderam

67
Cfr. Idem, 221-224 = 217-221.
68
Para a descrição do modelo teológico patrístico e as diversas problemáticas que se desenvolvem à volta
disso, remetemos às seguintes páginas da Teodramática: Idem, 224-234= 221-231.
69
O termo commercium usado depois do Concílio de Éfeso, substitui outros termos menos adequados como
mixis, usado por exemplo por Tertuliano (Apologeticum nº21,14), por Cipriano (De Vanitate Idolorum nº11)
por Gregório de Nazianzo, que por sua vez usa o termo krasis (Orationes 38,13). O tema da representação
vicária encontra-se também abordada na obra de Balthasar, por exemplo nos Skizzen zur Theologie. como é o
caso do capítulo referente à substituição vicária em HUB - Pneuma und Institution: Skizzen zur
Theologie.[PI] Einsiedeln: Johannes, 1974. vol.4, 401-409 [Tradução italiana: Lo Spirito e l’Istituzione: saggi
teologici. Brescia: Morcelliana, 1979. vol.4. 344-351]; e em HUB - Theodramatik: die Personen des Spiels:
die Personen in Christus. [THD II/2] Einsiedeln: Johannes, 1976. vol.2/t.2, 218-225 [Trad. castelhana:
Teodramática: las personas del drama: el hombre en Cristo. Madrid: Ediciones Encuentro, 2007. vol.3, 222-
231].
70
A Incarnação significa, como já havia sido dito, não apenas o acto de entrada na humanidade, mas a
aceitação da dolorosa vida humana, tendo em vista, desde o princípio a paixão e a morte. Cfr. THD III, 227 =
224.

49
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

a impecabilidade de Jesus, encontrando-se a sustentar que “ao assumir «a semelhança

da nossa natureza pecadora» (Rom 8, 3), o perfeito sem pecado não pode tomar dela

mais do que as consequências do pecado, isto é, as pathe (affectus) que, enquanto tal,

são realmente debilidades mas inocentes, e isto, como se diz de vários modos é aquilo

naquilo que nos actualiza em si”71. Então sem querer fazer a relação de Cristo com o

pecado do homem “circunscrita nas consequências e nos castigos do pecado, enquanto

o pecado em si não é trazido (nicht übernommen); razão pela qual o admirabile

commercium se fecha para um limite”72.

O modelo medieval é considerado por Balthasar a partir da obra de Anselmo e S.

Tomás, individualizados como os maiores expoentes do desenvolvimento de um

significativo esboço de uma soteriologia sistemática. Na realidade, Anselmo é o

primeiro73 que tenta recolher num sistema racional os cinco motivos soteriológicos da

Escritura. No centro da sua reflexão encontramos uma variante do terceiro motivo do

resgate, da redemptio mediante o pagamento de um preço, a satisfatio até se tornar a

mudança de posição em função do resgate da humanidade74. S. Anselmo entrelaça

com este motivo o tema da autodoação do Filho e da misericórdia de Deus onde a

71
“Der vollkommen Sündelose kann, «die Ähnlichkeit unserer sündigen Natur» annehmend (Röm 8,3), aus
dieser nur jene ihr anhaftenden Sündenfolgen mitübernehmen, jene pathe (affectus), die als solche zwar
Schwächen, aber schuldlose sind, und dies – wie vielfach gesagt wird – auch bloβ, in dem er «uns in sich»
vergegenwärtigt”. Idem, 230 = 226.
72
Perante as preciosas reflexões dos Padres, Balthasar vê-as do seguinte modo: “Der auf der Weltbühne
agierende Erlöser füllt die Rolle, den Sünder vor Gott stellzuvertreten, nicht voll aus.” [tradução minha] “o
Salvador na acção sobre o teatro do mundo não executa na íntegra o seu papel de representar os pecadores
diante Deus”. Idem, 229 = 225.
73
Cfr. HUB - Herrlichkeit: eine theologische Ästhetik: Fächer der Stile: klerikale Stile. [H II/1] Einsiedeln:
Johannes, 1962.vol.2/t.1, 217-263 [Trad. castelhana: Gloria: estilos eclesiásticos. Madrid: Ediciones
Encuentro, 2007. vol.2, 191-234]
74
“ein Gottmensch muβ in der Tat den Platz des Menschen einnehmen, um diesen, der durch die Sünde
insolvent geworden ist, zu entlasten.” [tradução minha] “É Um Homem-Deus o que de facto tem que ocupar
o lugar do homem para libertá-lo, dado que se tornou insolvente por causa do pecado.” Idem, 236 = 232.

50
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

introdução na vida trinitária está presente, mas não é expressamente tematizada.

Estamos perante uma autodelimitação metodológica atenta e sobretudo indispensável,

que olha Jesus Cristo longe do contacto efectivo com o pecado das pessoas pelo qual

morre inocente75, tanto que em S. Anselmo não se pode falar de dores expiatórias

substitutivas pelos pecados de cada homem na paixão de Cristo, dado que essa é

entendida apenas como exemplum. Considerando, contudo, o valor desta reflexão,

perde no entanto, segundo Balthasar, uma íntima conexão entre Cristo e a humanidade

pela qual Ele sofre.

S. Tomás retoma o conceito fundamental de S.Anselmo 76, para o qual o

“empreendimento” de Cristo representa a perfeita satisfação (paixão e ressurreição

vistas como superabundans satisfactio) por todos os pecados do mundo, e coloca-o no

centro da sua síntese cristológica. A diferença de Anselmo está no facto de englobar

todos os possíveis motivos presentes na Escritura e nos Padres, abordando os diversos

aspectos: meritum, satisfactio, sacrificium, redemptio, com a consciência explícita que


75
“…der unschuldig Sterbende darf, wenn sein Werk wirksam sein soll, mit der Sünde der übrigen nicht in
Berührung kommen. Christi Tod liegt in der einen Waagschale, die ob der Freiwilligkeit und des göttlichen
Wertes dieses Todes ein Übergewicht erhält über die andere, mit den Sünden der Welt beladene Schale.
Weniger als je ist Jesus «Träger der Sünde». (…) aber ungeklärt bleibt das Verhältnis zwischen dem
souveränen Selbstentschluβ der Gottheit zum leiden und dem Gehorsam der Menschheit daran: es fehlt die
Verbindung der trinitarischen missio des Sohnes durch den Vater aufgrund seiner processio. So kann Anselm
nicht erklären, weshalb der Gehorsam Jesus sich betont an den Vater und Nicht na die Trinität in ganzen
wendet. Es fehlt aber auch die von den Vätern so stark betonte, aufgrund der Menschwerdung hergestellte
organische Verbindung zwischen Christus und allen übrigen Menschen; daβ er der neue Adam ist und gratia
capitis hat, bleibt mehr vorausgesetzt als ausgesprochen”. [tradução minha] “ o que morre inocente, para que
a sua obra seja eficaz, não pode entrar em contacto com o pecado dos outros. A morte de Cristo situa-se
naquele prato da balança que pelo carácter voluntário e o valor divino desta morte tem um peso maior que
aquele outro prato que está carregado com os pecados do mundo. Menos que nunca é Jesus o que carrega os
pecados. (…) mas a relação entre a decisão soberana da divindade de aceitar a paixão e a obediência da
humanidade de Jesus continua sem ser aclarada: falta a ligação entre a missio trinitária do Filho pelo Pai a
partir do seu processio. Por isso não pode aclarar Anselmo porque a obediência de Jesus se dirige
principalmente ao Pai e não a toda a Trindade. Falta também o laço orgânico, tão fortemente sublinhado
pelos Padres, que estabelece a incarnação entre Cristo e todos os outros homens; a realidade do novo Adão,
que possui a gracia capitis, é mais uma suposição do que uma afirmação explícita»”. Idem, 240-241 = 236-
237.
76
A posição de S. Tomás de Aquino é evidenciada por Balthasar em Idem, 241-245 = 237-241.

51
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

esses são como que aproximações em direcção ao mistério. Coloca em evidência o

amor misericordioso de Deus, mas refuta a ideia de um preço a pagar ou de uma acção

punitiva que satisfaça a ira de Deus.

Sem entrar no mérito específico da posição de Tomás, pode-se dizer que se de uma

parte Tomás tem em grande conta o fundamento dos Padres da “mudança de posição”,

por outra, sustenta Balthasar, também na sua reflexão, “não se adverte nem o mais

leve rasto de um estreito contacto entre Jesus e a realidade do pecado como tal”. Cristo

é visto como a eficácia medidora entre Deus e o homem, e as dores de Cristo têm

certamente um valor satisfatório, mas a paixão é considerada um processo físico77,

pelo qual não se assinala o abandono da parte de Deus como o centro da paixão. De

acordo com Balthasar, S. Tomás sublinha várias vezes que também durante a paixão

permaneceu em Cristo a Visio beatifica.

No que concerne às tentativas propostas na idade moderna, elas são caracterizadas,

por um lado, pela necessidade de superar a linguagem de carácter expiatório, olhando

para termos como vítima, satisfação e outros semelhantes, dado que são inadequadas

para o homem de hoje; por outro lado a possibilidade de superar a diástasis entre a

pessoa e a acção de Jesus. Como tal, propõe Balthasar a reconsideração da intuição

originária patrística do commercium, entendida como “a unificação de Deus e do

77
Praticamente afirma Balthasar que “Gewirkt wird die leidende Genugtuung durch die Menschheit der
zweiten göttlichen Person; diese Menschheit ist das «Organ» (instrumentum), durch welches der Gottmensch
sie vollbringt, wobei die Schwachheit des leidenden Menschen nach Paulus (1 Kor 1,25) eben das Mittel und
der Erweis der größeren Stärke Gottes ist.” [tradução minha] “a satisfação mediante o sofrimento vem
operada pela humanidade da segunda pessoa divina; esta humanidade é o órgão (instrumentum) pelo que o
Deus-homem se realiza, com o que a debilidade do homem paciente é precisamente, segundo Paulo (1 Cor
1,25) o meio e a prova de força ainda maior de Deus.” Idem, 245 = 240-241.

52
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

homem mediante a mudança de posto”78. Apesar do esforço substancial para se

alcançar uma reflexão teológica aprofundada e sistemática sobre o tema da

reconciliação, frequentemente os autores não passaram além dos cinco fundamentos

neotestamentários. Contudo, hodiernamente, duas estradas se cruzam: a que coloca a

solidariedade de Jesus para com os homens no centro79, e o outro modelo que valoriza

a completa substituição80 no sentido mais radical, a partir da interpretação Paulina da

cruz, reassumida por Lutero e pelos protestantes por um lado, e pelos católicos por

outro, passando-se para uma interpretação radical da II Carta aos Coríntios81, trazendo

de volta a posição agostiniana que Jesus Cristo é vítima por causa do pecado.

Uma posição singular, particularmente apreciada por Balthasar, é recolhida no

pensamento de S. Bulgakov, o qual interpreta a kenose da cruz (Kreuzeskenose) como

uma das últimas auto-doações de Deus82, que encontra a sua origem na kenose

intratrinitária, na qual o Pai se auto-desapropria em favor do Filho, e na kenose da

criação (Schöpfungskenose)83. Também a posição de A. Feuillet, na sua reflexão à

volta dos relatos do Horto das Oliveiras, é tida em consideração: ele demonstra como

“No Deus Uno e Trino, que criou o homem à sua imagem e semelhança […] no êxtase

78
Idem, 246=242.
79
Cfr. Idem 247-263= 243-259.
80
Cfr. Idem, 263-276= 260-273.
81
E por isso, gememos nesta tenda, ansiando por revestir-nos daquela habitação celeste. 2 Cor 5, 2.
82
Balthasar apresenta a ideia Bulgakoviana do altruísmo das Pessoas divinas no interior da vida trinitária,
que se manifestam como puras relações na vida do amor intradivino (und die «Selbstlosigkeit» der göttlichen
Personen als reiner Relationen im innergöttlichen Leben der Liebe zur Grundlage von allem nehmen.”)
[tradução minha] (E assumir como fundamento de tudo o altruísmo das Pessoas divinas no interior da vida
trinitária, que se manifestam como puras relações na vida do amor intradivino). O teólogo suíço utiliza como
base esta intuição para fundar uma primeira forma de kenose, aquele que diz respeito ao momento da criação
e da cruz, e esta última como já inscrita na criação do mundo. Cfr. H III/2/2, 198 = 176.
83
Cfr. THD III, 291-293 = 289-291.

53
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

doloroso da cruz aparece a entrega total de Deus na sua vida trinitária e no seu amor

pelas criaturas”84.

Todavia todos os percursos histórico-teológicos acima analisados olham para a

interpretação da morte de Jesus, na realidade, segundo Balthasar, não dando suficiente

importância ao Teodrama85. Acima de tudo tal incapacidade verifica-se na dificuldade

de realizar um sistema equilibrado, que harmonize todas as afirmações concernentes à

doutrina da salvação, evidenciadas a partir dos testemunhos escriturístico.

Consequentemente essa dificuldade manifesta-se na incapacidade ou numa certa

fraqueza para considerar a realidade do pecado como efectivamente suportada por

Cristo sobre a Cruz. Cria-se tal impossibilidade de dar à mudança de posição a

efectiva densidade dramática que merece. O evento da cruz não cai verticalmente do

céu, mas pressupõe uma história na qual Deus na sua liberdade infinita não é puro ou

inalterável espectador e o homem envolvido na sua liberdade criatural. Não é um ser

puramente passivo no acto da salvação, como se a sua culpa viesse toda numa acção

vicária pela colisão entre a liberdade infinita e a liberdade criatural que não responde

ao amor de Deus86. Balthasar especifica que “o pro nobis cristológico, contra o que se

84
Cfr. Idem, 294 = 292.
85
Acerca da soteriologia dramática de Balthasar ver: MARCHESI, G. - La cristologia di Hans Urs von
Balthasar: la figura di Gesù Cristo, espressione visibile di Dio. Roma: Università Gregoriana Editrice, 1977,
546-569.
86
“Über das Mysterium des auch in diesem Werk der Versöhnung und Erlösung der abgewendeten Welt
Umgreifenden der Liebe Gottes wird noch eigens zu reden sein. Dieses Umgreifen muβ die in der Schöpfung
gesetzte Freiheit des Menschen respektieren; keinesfalls kann es um eine machtmäβige Überwältigung des
Menschen durch eine stärkere Freiheit Gottes gehen. Aber zweierlei darf nicht vergessen werden: daβ dem
Menschen Freiheit nur innerhalb eines «vor Grundlegung der Welt» schon gefaβten Ratschlusses Gottes,
sich die Welt im «Blut» Christi zu versöhnen (Ef. 1,7) gegeben wurde, und daβ die dreieinige Liebe Gottes
Macht nur in Gestalt der Hingabe (und der in hier liegenden Wehrlosigkeit und «Ohnmacht») besitzt”.
[tradução minha] “O mysterium da realidade envolvente deste amor de Deus […] deve necessariamente
respeitar a liberdade do homem colocada no acto da criação; não se pode tratar em caso nenhum de uma
superação do homem pela via da potência de uma liberdade mais forte de Deus. Mas duas coisas não se
deveriam esquecer: que ao homem a liberdade é dada no âmbito de um conselho ou desígnio de Deus já

54
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

esperaria racionalmente, não quer dizer que um morreu em lugar de todos para que os

outros não tivessem que morrer, mas antes que insere os outros numa comunidade

mística da morte, em virtude da qual a morte recebe um significado diverso e inclusive

transformada87. A tentativa de Balthasar será então a de delinear uma essência da

substituição vicária a partir da relação entre a Cruz e a Trindade, pela qual a Trindade

é o íntimo pressuposto da cruz e esta da definitiva auto-revelação e auto-doação de

Deus UniTrino, a qual não se pode concluir sem a cruz88. O fundo trinitário ilumina

deste modo a auto-doação do Filho, que se é realmente carregado com todos os

pecados do homem, qual super-exigência (Überforderung) de obediência, então aceita

como vontade do Pai até à treva mais extrema, como adesão da missão recebida do

Pai. O tema trinitário é isto que sustém o motivo da mudança de posição patrística e

permite não dever integrar a posição luterana89.

concebido desde a fundação do mundo, e que é reconciliado através do sangue de Cristo (Ef. 1,7), e que o
amor uno e trino de Deus possui poder apenas na forma da dedicação, do dar-se (e na condição inofensiva,
indefesa e na impotência que lhe é implícita)».” PI, 422 = 363.
87
“das christologische Pro nobis nicht, wie man vernünftigerweise erwarten sollte, besagt, einer sei anstelle
aller gestorben, damit die übrigen nicht zu sterben brauchen sondern daβ es die übrigen in eine mystische
Sterbegemeinschaft hineinzieht, in der der Tod freilich eine andere, umgewendete Bedeutung erhält.” THD
II/2, 225 = 227
88
Balthasar, evita a dissolução do processo intradivino no processo histórico-imanente, por isso contesta a
posição de Rahner e Moltman, os quais aparentam caminhar em sentido contrário a Balthasar. Cfr. THD III,
295-305 = 295-304.
89
“Das (zweite) Commerciummotiv basiert jetzt vollständig auf dem (ersten) der Preisgabe des Sohnes,
sofern diese die ökonomische Darstellung der trinitarischen liebenden Selbstpreisgabe des Vaters (fünftes
Motiv) ist. Diese Einbettung macht sowohl das dritte Schriftthema (Erlösung als befreiender Loskauf)
zugänglich, das im Zusammenhang mit dem Tauschmotiv behandelt werden soll, wie schlieβlich auch das
vierte (Einführung in das trinitarische Leben), das sich unmittelbar aus dem Vorausgesetzten ergibt”.
[tradução minha] “O segundo motivo, do commercium, aparece completamente apoiado sobre o primeiro, o
da entrega do Filho, desde que este seja a manifestação económica da auto-entrega do dom amoroso da
Trindade, cuja fonte é o Pai (quinto motivo). Esta inclusão abre caminho aos dois temas restantes: ao terceiro,
o da Escritura (a redenção como resgate libertador), que deve ser estudado na relação com o tema de
intercâmbio, e o quarto (a introdução da vida trinitária) que se deduz directamente dos precedentes.” Idem,
309 = 308.

55
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

1.5 A Überforderung90 (super-exigência) obediencial de Cristo e o papel teológico de

Maria

Na Cruz e como tal na acção soteriológica de Deus em Cristo, relacionam-se a

kenose do Filho, que reencontra a kenose intratrinitária, e a extrema tragicidade da

vida do homem, que oscila entre a estrutura enigmática e o pecado, trespassando a

realidade da carne. A realidade de uma inclusão trinitária é radicada no próprio evento,

sem todavia ser confusa ou identificada “num processo único” com o momento

económico. Por isso, o fundamento da auto-entrega (Selbsthingabe) soteriológica

encontra-se no altruísmo (Selbstlosigkeit) do UniTrino. A partir da auto-doação

trinitária que se revela como amor absoluto entre as pessoas divinas, e a mesma

“distância intradivina” entre a pessoa, é possível a auto-doação de Deus ao mundo até

à Cruz.91

A realidade do pecado e a elevação deste por parte do Filho, observa Balthasar,

torna-se determinante para a modalidade de desenvolvimento do Teodrama, pela

forma da kenose do Filho a respeito do Pai e a respeito dos pecadores, e finalmente

pela modalidade da expressão do co-envolvimento de Maria92. O pano de fundo aberto

90
Com o termo überforderung, Balthasar entende a super-exigência, contida na obediência ao Pai, que se
refere directamente à substituição vicária, à elevação do pecado da parte de Cristo, no cumprimento da sua
missão. Uma substituição pela qual “…am Kreuz hat der vom Vater verlassene Sohn grundsätzlich für alle
Sünde aller Menschen gebüβt und die Gottverlassenheit aller Sünder stellvertretend ausgelitten. Das
Nichtverstehen-Wollen der Liebe Gottes durch die Menschen ist voll eingeholt im Nichtverstehen des Sohnes,
warum der Vater ihn verlassen hat”. [tradução minha] “Sobre a cruz o Filho abandonado ao Pai expiou, em
linha de princípio, por todos os pecados de todos os homens, suportando e sofrendo no fundo, em
representação vicária, o abandono por Deus de todos os pecadodores. O não querer compreender o amor de
Deus, da parte de cada homem, é completamente retomado e absorvido dentro da incompreensão, da parte do
Filho, do motivo por que o Pai o havia abandonado”. (PI, 423 = 363).
91
Cfr. THD III, 300-301 = 299-300.
92
No contexto do mistério pascal a referência imprescindivelmente cristológica requer também uma
consideração proporcional sobre a questão antropológica. Um aprofundamento sobre esta relação, relativa ao

56
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

do horto até à cruz é seguramente esta reciprocidade dialógica entre a liberdade finita

culpável e a liberdade infinita que se dá agora de uma forma estaurológica. O núcleo

de acção, para o teólogo suíço, é o jogo interno da possibilidade dialógica de uma

liberdade libertada (befreiten Freiheit) face a uma liberdade infinita (dimensão

escatológica)93; onde o momento escatológico, presente como evento cristológico

definitivo, reata a dimensão horizontal histórica do Teodrama com a dimensão

vertical, que deste modo não desce como acção desconectada da história. O dado

escatológico, finalmente, evidencia um entrelaçamento paradoxal entre a acção do

Cordeiro que veio para sempre e o não agora da batalha decisiva em curso94. Desde

então o tudo está consumado é oferecido em Cristo à história, através da dinâmica do

juízo e salvação95 da cruz. O evento escatológico de Deus, que no Filho mostra toda a

sua compaixão pelo mundo e pelo pecador, na realidade introduz a aporia de um

crescendo do conflito e da oposição da parte dos pecadores. Aqui, no desenvolvimento

pecado e à acção salvadora de Deus em Cristo, pode-se encontrar na obra: CARELLI, R. – La libertà
colpevole: perdono e peccato nella teologia di H. U. von Balthasar. Milano: Glossa, 1999.
93
Cfr. THD III, 185 = 184; “… a contemplação da figura de Maria é partir do núcleo essencial da
eclesialidade: a relação da liberdade infinita de Deus com a finita liberdade humana…” CARVALHO, Maria
Manuela - A centralidade cristológica do Eschaton nos escritos de Hans Urs von Balthasar. Porto: Fac.
Teologia da UCP, 1993. (Humanística e Teológica; 6), p. 229.
94
Idem, 20 = 22.
95
“Neuteestamentliche Theologie versteht das Kreuz als jenes Geschehen, auf das die ganze frühere
Heilgeschichte vorlief, um überhaupt eine solche zu sein, und von dem her alles Nachchristliche immer neu
herkommt, so daβ keiner vom Kreuz her leben kann, der nicht zugleich auf das Kreuz zu, ja im Kreuz (als
«mitgekreuzigt», Gal 2, 19) lebt. Indem es innerhalb des theodramatischen Geschehens als Zentrum und
Höhepunkt erscheint, wird es zu einem Inbegriff – der Liebe Gottes wie der Sünde der Welt, des Gerichts wie
des Heils, der Verhüllung und der Offenbarkeit des trinitarischen Gottes und der Welt vor ihm -, einem
Inbegriff, der für alle Handlung Rahmen und Horizont bleibt”. [tradução minha] “A teologia
neotestamentária compreende a cruz como esse facto para o qual a história da salvação que o antecede vai
avançado para poder ser a tal história da salvação, e como o facto do qual continua a derivar todo o post-
cristão, de tal maneira que ninguém pode viver da cruz que não esteja a viver para a cruz, inclusive na cruz
(como co-crucificados Gal 2,19); dado que a cruz faz a sua aparição no marco do acontecimento
teodramático como centro e cume, converte-se num compêndio (do amor de Deus tanto como do pecado do
mundo, do juízo tanto como da salvação, do encobrimento e da manifestabiliade do Deus trinitário e do
mundo na sua presença), compêndio que se mantém como âmbito e horizonte de toda a actividade”. THD
II/2, 46 = 55-56.

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

do desígnio de salvação, é estabelecido que Cristo abraçou “na cruz trinitária a

alienação do mundo pecador” e deste modo vence96. O mistério desta kenose dolorosa

de Cristo comporta o suportar em si mesmo também uma insurreição titânica do

homem precisamente contra a sua inclusão no mistério da cruz97, na sua pretensão de

auto-soteria, de acordo com a auto-conclusão que ignora a culpa e ignora a graça.

A visão balthasariana individua o culminar do drama entre homem e Deus neste

encontro soteriológico com o pecado, no qual a perversa liberdade finita lança toda a

sua culpa sobre Deus, tanto que o aspecto redentivo toma a forma de uma substituição

vicária (Stellvertretung). O tema da substituição, que pressupõe a mudança entre o

inocente e o pecador conserva agora a dimensão trinitária, enquanto a missio, com o

seu último fundamento no processio, envolve neste desmascaramento do pecado o

UniTrino, que permanece ferido “não apenas na humanidade de Cristo, mas também

na sua missão trinitária (trinitarische Sendung). Aqui, no mistério tenebroso da

alienação entre Deus e o Filho que suporta os pecados pode ser o autêntico lugar da

representação vicária, onde se revela a impotência toda-poderosa do amor de Deus”98.

Precisamente no contexto da substituição vicária, pensamos poder dizer que

Balthasar continua a evidenciar a importância do homem. Na perspectiva da kenose de

Cristo, na forma de substituição vicária na qual Deus entra em acção sobre a cena do

patético teatro do mundo (pathetische Weltbühne), não se realiza para colocar

definitivamente de parte o adversário vencido, mas para completar uma acção “que o

homem não podia suspeitar e que o situa ao lado para poder ajudá-lo desde dentro a

96
Cfr. THD III, 97 = 96.
97
Idem, 11 = 15.
98
Idem, 312 = 312.

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

caminhar até à justiça e à liberdade”99. Podemos então concluir que existe um esforço

de Balthasar para incluir em relação no aspecto soteriológico uma adequada reflexão

antropológica100.

O íntimo co-dirigir (Mit-Erfahren) junto dos pecadores disso que representa a

“atracção do pecado” (Lockung der Sünden), evoca pois o tema da analogia101. A

kenose realiza o cumprimento da analogia, dado que tal experiência tem o seu ponto

de diferença no ser Filho de Deus para assumir o pecado do mundo, não portanto um

pecador que odeia Deus. Deste ponto de vista a experiência do Crucifixo, “é mais

profunda e mais obscura” e a analogia exprime maior diferença a respeito dos

pecadores, enquanto se desenvolve no interior da relação entre as hipóstases divinas.

Dado que a recusa da criatura ressoa na diferença intradivina, o Filho que entra na

99
Idem, 186 = 184.
100
Elio Guerriero, afirma que na terceira parte do quatro volume da Teodramática, há uma impressão que a
decisão fundamental já estava como que tomada. Desta forma, segundo Guerriero, o drama, que também
interessa deste modo directamente à criatura, já se desenvolve no céu. Também a descida aos infernos numa
profundidade do homem inacessível para recuperar cada distância e abraçar cada um que não estava no sim
de Deus, dificilmente pode evitar a conclusão de uma apocatástase universal na qual também Balthasar não
quer cair. Deste ponto de vista parece pertinente a referência ao movimento de emersão e de retorno em Deus
que caracteriza o pensamento teológico de Plotino do qual Balthasar não esconde a sua simpatia. Cfr.
GUERRIERO, E. - Hans Urs von Balthasar. Cinisello Balsamo: Paoline, 1991, 344-345.
101
“Balthasar’s theology is centered on Christ as the perfection of creation manifesting his divinely ordained
relationship to God, the concrete analogy of being revealing all of God’s attributes. He is the standard with
which every philosophical analogy of being must be measured: “Theological analogy sheds definitive light
on what the philosophical analogy is as such.” In his perfect humanity Christ manifests our proper
relationship of similarity and dissimilarity to God. The analogy of faith that comes through Christ is so
important because creation’s proper analogy to God is obscured by sin; “only Christ, as both divine Son and
man, can express absolute Being within a worldly form”. [tradução minha] A teologia de Balthasar está
centrada em Cristo como perfeição da criação manifestando a sua relação divinamente ordenada com Deus, a
concreta analogia de ser a revelação de todos os atributos de Deus. Ele é o padrão através da qual todas as
analogias filosóficas devem ser medidas: a analogia teológica lança a luz definitiva sobre aquilo que é a
analogia filosófica enquanto tal. Na sua perfeita humanidade Cristo manifesta a nossa adequada relação de
semelhança e de dissemelhança para com Deus. A analogia da fé que vem através de Cristo é tão importante
porque a analogia própria da criação para com Deus é obscurecida pelo pecado; apenas Cristo,
simultaneamente Filho e homem, pode expressar o absolutamente o Ser dentro de uma forma mundana. Cfr.
BLANKENHORN, B. - Balthasar‟s method of divine naming. Nova et Vetera. 1:2 (2003), 245-268.

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

treva deste não, observa Balthasar, está na posição adequada para poder substituir

(stellvertreten) o mundo, carregando os pecados102.

A cruz é um evento trinitário, mas existe uma ligação estreita entre os homens

que carregaram os seus pecados no Filho e a exigência que por sua vez o Filho aceite

(entgegennehmen) voluntariamente os pecados de cada homem. Tal vontade não pode

vir lhe da sua missão, muito mais radicalmente da diástase entre a vida que prepara e a

hora para a qual tende como para um cumprimento. A hora que vem aguardada,

afirmada e levada sobre si mesmo como Filho está contida na missão, mas traz

consigo o paradoxo da íntima assunção (innere Übernahme) sem a qual e contra Deus,

ou melhor, nas trevas onde os pecadores se juntam com o seu não.

Naturalmente isto deverá ser lido e experimentado como uma superexigência

(Überforderung) da obediência do Filho ao Pai, que inclui o chegar “ao fim da treva

mais extrema”. O Filho não pode desejar por si mesmo identificar-se com o pecado do

mundo, diz Balthasar, mas deseja apenas cumprir até ao fundo a missão que lhe foi

dada. Seria isto o sentido do sponte (vontade) de que fala Anselmo103. A obediência do

Filho não é um simples gesto funcional no qual o Filho torna-se na forma de Servo,

mas é antes a sua atitude eterna frente ao Pai, ou melhor a tradução kenótica do seu

amor para com o Pai104. Balthasar fala de uma obediência que é o “constraste do Filho

102
Cfr. SCOLA, A. - Hans Urs von Balthasar: un estilo teológico. Madrid: Encuentro, 1991, 95-97.
103
Cfr. THD III, 312 = 311.
104
“Die grenzenlose Bereitschaft des christologischen Gehorsams dem väterlichen Willen gegenüber ist die
ersmalige Einführung in die Welt einer überweltlichen, aus dem Innenbereich Gottes stammenden Offenheit
für das geliebte Du”. [tradução minha] “A disponibilidade ilimitada da obediência cristológica no
cumprimento da vontade paterna é a introdução, completa pela primeira vez no mundo, de uma abertura ao tu
amado, a qual deriva do âmbito íntimo de Deus, e é portanto supermundana”. (PI, 226 = 194-195).

60
A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

na liberdade” (Zusammenballung des Sohnes in Freiheit)105, para aderir à missio do

evento pascal, no qual se realiza a revaloração do morrer humano106, dado que a

morte é abstracta, na compreensão da humilhação e potência da kenose da cruz.

O experimentar o cálice da vertigem (Taumelkelch) da ira de Deus, da parte do

Filho em lugar do pecador, assume dois significados, quer a respeito de Deus, quer a

respeito do homem. De um lado reafirma-se a ideia de que o Crucifixo “carrega sobre

si a carga não como algo exterior” em lugar das pessoas. Isto envolve uma distância

soteriologicamente significativa: por uma lado a absoluta gratuidade do não livre do

homem, por outro o sim do amor divino totalmente gratuito. Da parte do homem, este

deveria esperar a cólera divina, contudo o abandono do Filho supera de modo divino

aquilo que caberia esperar ao pecador107. Da parte de Deus, a ira como traço essencial

de Deus, testemunhado no Antigo e no Novo Testamento, não denota uma paixão

irracional, mas mais o amor de Deus como a outra face da misericórdia108, pela qual na

história da aliança Deus tenta reconduzir a si o seu povo. A ira mostra a absoluta

oposição de Deus contra tudo o que viola o amor.

A respeito disto, Balthasar afirma a analogia entre castigo (Strafe) merecido do

pecador e o abandono (Gottverlassenheit) do Filho pela parte de Deus, nos quais a ira

e o amor de Deus se tocam, onde se torna possível no facto de que o objecto da justa

ira está inserido na eterna relação de amor entre o Pai e o Filho, e o Filho na adesão à

vontade do Pai não se desvia nem d‟Ele, nem da solidariedade com todos os seus

irmãos pecadores.

105
Cfr. TDT 38 = 680.
106
“umwertung des menschlichen sterbens”. THD II/2, 44 = 54.
107
Cfr. THD III, 314 = 314.
108
Cfr. Idem, 315-327 = 315-327.

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

O entrelaçamento Trindade-Cruz-Pecado revela inteiramente o pathos de Deus

em Cristo, sempre manifestado na sua incarnação, que atinge com o sofrer do Filho o

cume do conflito entre Deus e homem, que Cristo assume inteiramente seu entre

ambos: de Deus ofendido pelos pecadores, e dos pecadores, enquanto assume a carne

do pecado e por nós é feito pecado109. Então apresenta-se também como homem

ameaçado de morte da parte de Deus e caído no poder da morte, perante o juízo de

Deus110, até à absoluta inutilidade (absolute Vergeblichkeit) que aparece no momento

do abandono, brotando a eucaristia e o perdão.

O tema da vicariedade, observa Balthasar, envolve directamente o dado da

inclusão da humanidade em Cristo; de um lado, como diferenciação das pessoas do

Teodrama e, por outro lado, como acção do agir e do agonizar do portador,

vicariedade esta que incide intimamente sobre as pessoas das quais ele assume o

lugar111.

Nesta perspectiva abre-se uma dialéctica entre a exclusividade desta substituição,

que claramente está determinada pelo facto da necessidade de troca, enquanto a

liberdade culpável é incapaz de por si mesma operar a reconciliação, e a possibilidade

de uma irradiação eficaz da substituição vicária de Cristo (Stellvertretung Christi)

“Der Sohn trägt die Sünder in sich mitsamt der hoffnungslosen Undurchlässigkeit ihrer Sünder in sich
mitsamt der hoffnungslosen Undurchlässigkeit ihrer Sünde für das göttliche Liebeslicht. Deshalb erfährt er
in sich – nicht ihre Sünde, sondern das Hoffnungslose ihres Widerstands gegen Gott und das gnadenlose
Nein der göttlichen Gnade gegen diesen Widerstand. Der Sohn, der sich ganz auf den Vater ver-lassen hat
(bis zur Identifikation mit den Brüdern in ihrer Verlorenheit), muβ gerade jetzt vom Vater verlassen sein”.
[tradução minha] “O Filho suporta em si os pecadores com o seu pecado desesperadamente impenetrável à
luz divina do amor. Daí que chegue a experimentar, não o seu pecado, mas antes o desespero da resistência
contra Deus e o não implacável da graça divina contra esta resistência. O Filho que se abandonou totalmente
ao Pai (até à identificação com os seus irmãos na sua perdição) tem que ser precisamente agora abandonado
pelo Pai.” Idem, 325 = 325.
110
Cfr. Idem, 322 = 322 “Das wirkliche Gericht Gottes ist doch die Kreuzigung Christi ganz allein”.
[tradução minha] “O verdadeiro juízo de Deus não é senão a crucifixão de Jesus em si.”
111
THD II/2, 110 = 118.

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

sobre os pecadores. Em concreto abre-se o interrogativo da possibilidade que a

essência e o sentido do carácter inclusivo, transitivo disto que Jesus garante por nós na

cruz possa efectivamente completar-se.

Neste ponto compara a figura de Maria, que introduzirá aquilo que Balthasar

chamará de mediação eclesial (kirchliche Vermittlung), a qual leva a cabo na sua fé

singular a colaboração singular do desígnio de Deus, surgindo na humanidade pelo sim

anterior da mãe112, expresso no lugar de todo o género humano, não obstante, o

homem singular possa na sua liberdade opor uma recusa da salvação. Na visão

balthasariana a figura e a acção de Maria torna óbvio o perigo do homem estar a

esperar uma mudança de cena como espectador de um drama incompreensível, na

impossibilidade de seguir até ao fundo para os infernos que se tornaram a não-

palavra113.

A ideia de um momento co-humano, certamente no interior da pessoa do Filho

como assunção da natureza humana, e também como inclusão do seio no qual ele se

compromete114, é afirmado por Balthasar com dinamismo e estende-se desde a

incarnação até ao cumprimento no evento da cruz. A partir daqui o ser de Maria

define-se como ser pessoal da participação na missão de Cristo115, e em particular

define-se a partir da singular participação no pro-nobis soteriológico do Filho.

112
“Für diese alle (ob sie aufnehmen warden oder nicht) steht das vorausliegende Jawort der Mutter gut”.
[tradução minha] “Para todos estes (o recebam ou não) o sim anterior da Mãe figura como aval”. THD III,
331 = 331.
113
“Denn es scheint in jener Unzeit auch keine Nachfolge dessen zu geben, der zum Unwort geworden ist”
[tradução minha] “Nesse não-tempo não parece que exista sucessão Àquele que se tornou não-Palavra.”
TDT, 50 = 687.
114
Cfr. THD III, 335 = 335.
115
A missão de Cristo abre a possibilidade a uma participação humana (um espaço personificante de amor) a
Maria, à Igreja e ao homem, que revela a vocação enquanto missão personalizante em Cristo. A missão
(Sendung) no seu aspecto ontológico-antropológico, faz de um sujeito espiritual humano uma pessoa

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A Estaurologia eclesial de Maria nos escritos de Hans Urs von Balthasar

Aqui a participação de Maria é salvaguardada dispersando todos os enganos que

possa esconder o termo co-redenção; isto pode acontecer, segundo Balthasar,

mantendo vivo o paradoxo no conceito de abandono, inutilidade, de pobreza, de

impotência que necessitou de ser elevado em Cristo numa nupcial-fecundidade.

teológica. Cfr. MYCEK, S. – Cristianesimo come amore dialogante: la visione teodrammatica della missione
in Hans Urs von Balthasar. Asprenas. 52 (2005), 486-487.

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