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RESUMO ABSTRACT
A afirmação do cristianismo The Christianity affirmation about
sobre a unidade trinitária que carac- the Trinitarian unit that characterize
teriza o Deus revelado faz parte do the disclosed God, take part of the
conteúdo nuclear da fé cristã. Esta nuclear content of the Christian faith.
não é uma asseveração abstrata, This is not an abstract affirmation but,
mas, resultante de uma experiência resultant of a historical experience
histórica que foi sendo elaborada ao that was being worked out along
longo de séculos conforme o cami- centuries in accordance with the
nhar da Igreja. Nesta nossa reflexão Church path. In this reflection, we
queremos colocar em destaque a want to highlight the intrinsic relation
intrínseca relação entre a teologia tri- between the Trinitarian theology, and
nitária e a mística trinitária partindo da the Trinitarian mystic from the con-
convicção de que teologia e mística viction that theology and mystic are
são distintas, porém, inseparáveis na distinct, however, un-separable in the
tradição do pensamento cristão. tradition of the Christian though.
Palavras-Chave: mística trinitá- Key-words: Trinitarian mystic,
ria, revelação, teologia trinitária. revelation and Trinitarian theology.
Introdução
Revelação de Deus que pode ser experienciada pelo ser humano tem uma
estrutura trinitária implícita e explícita, latente e patente. Certamente que
todo este caminho experiencial da Revelação do Deus trinitário tem como
ponto de arranque o fato histórico-salvífico radicado na pessoa de Jesus
Cristo como evento revelador da identidade do Deus Uno e Trino. É por
isso que a evolução histórico-digmática dos primeiros séculos se dá em
torno da definição da identidade de Jesus Cristo e, concomitantemente da
definição do Mistério Trinitário. É a conhecida co-implicação entre o dogma
cristológico e o dogma trinitário, – vale dizer entre cristologia e teologia
trinitária. Neste sentido, se o cristianismo é fundamentalmente cristocêntrico
e cristológico, se o seu núcleo de conteúdo experiencial e doutrinário é
resultante da emergência histórica de Jesus de Nazaré, dele mesmo se
abre um horizonte caracterizado por um tipo de unidade e circularidade do
Mistério Trinitário. Só assim é possível que seja afirmada a unidade trinitária
e a diversidade una em Deus. Nesta linha de pensamento podemos afirmar
que entre o Deus revelado em Jesus Cristo como Pai, Filho e Espírito Santo
e as sucessivas formulações dogmáticas condensadas na expressão “uma
natureza, três pessoas”, há um longo caminho que caracteriza o processo
de elaboração doutrinária.
Na linha do nosso pensamento, na história do cristianismo e no cris-
tianismo histórico se dá a passagem de um cristocentrismo a um “unotri-
nocentrismo” ou “triunocentrismo”, verificando-se assim a possibilidade de
se afirmar que o Mistério da Santíssima Trindade é o Mistério central da fé
cristã. Esta centralidade do Mistério Trinitário na experiência histórica da fé
Nesta perspectiva é bastante pertinente a afirmação de Leonardo Boff: “A doutrina trinitária
representa a elaboração humana e sistemática acerca da realidade transubjetiva da Santís-
sima Trindade. A doutrina supõe a revelação da Santíssima Trindade enquanto Trindade e
significa o esforço humano e rigoroso de aprofundamento deste mistério. Neste sentido, a
doutrina trinitária possui sua longa história, com várias tendências, caracterizado pelo acúmulo
imenso de reflexões, desvios e definições dogmáticas que a comunidade de fé estabeleceu
durante os séculos”, Cf., BOFF, Leonardo. A Trindade e a sociedade, Petrópolis: Vozes,
1987, p. 40.
“De modo muito geral podemos dizer aqui: O mistério trinitário é simplesmente o mistério
central do cristianismo, enquanto o próprio Deus se exprimiu a si mesmo na revelação salvífica
definitiva, de tal modo que na experiência e no conhecimento conseqüente sobre a ação
salvífica definitiva de Deus (no evento de Cristo), conheçamos ao mesmo tempo o próprio
Deus, como ele é ‘em si’. Pois a presença salvífica de Deus (‘Emanuel’) comunicada a nós
no evento (total) de Cristo, é ao mesmo tempo a autocomunicação definitiva de Deus em
sentido absoluto enquanto esse Deus-para-nós, respectivamente Deus-conosco, é realmente
também o Deus em sua plenitude. A revelação da Trindade, da qual se trata na fé cristã, e
Na linha desta proposta compreensiva é sumamente importante a afirmação seguinte:
“Enquanto a revelação de Deus não é entendida como auto-revelação, ainda não surge
expressamente o problema da autodiferenciação em Deus, refletida na doutrina da Trin-
dade que apenas age poderosamente na História, mas está presente como ele mesmo.
Em perspectiva sistemática, a fé no Deus triúno é conseqüência da auto-revelação e
autocomunicação de Deus na História; ela se articula onde se percebe, de forma mais
ou menos expressa, que Deus se encontra com os seres humanos como ele mesmo
– na Palavra humanizada – e lhes revela nesse encontro, o seu mais íntimo ser, onde se
concebe, além disso, que no agir do Espírito se consuma essa auto-revelação de Deus
com a concessão de participação na redentora comunhão com Deus, o próprio Deus se
dá aos seres humanos. Quando se fala da auto-revelação de Deus, tem que se dizer que
Deus é sua comunicação, que em comunicações meramente criaturais ele não se pode
mostrar como ele mesmo”, Cf., WERBICK, Jürgen. O Deus Trino como plenitude da vida
in SCHENIDER, Theodor (Org.). Manual de Dogmática, Vol. II, Petrópolis: Vozes, 2001,
p. 433s.
“Devemos sempre opor-nos ao equívoco intelectualístico como se Jesus mesmo tivesse
fornecido à doutrina cristã apenas inícios fracos pouco claros, ao passo que a verdade
genuína e plena apenas teria sido definida pela Igreja posterior. Na realidade vale o con-
trário: Jesus revelou por sua palavra e obra, toda a verdade definitiva, sendo que todas
explicações posteriores não passam de tentativas para melhor exprimir em conceitos um e
outro aspecto parcial do processo da revelação”, Cf., SCHIERSE, Franz Josef. A revelação
trinitária neotestamentária, in Misterium Salutis II/1, Petrópolis 1978, p. 85.
Esta experiência mística da fé cristã e trinitária seria resultante do seguinte itinerário: “A
experiência da fé contemplou o Pai, viu o Filho e saboreou o Espírito Santo, auto-comu-
nicando-se com Jesus. Chamou aos três de Deus. Com isso não quis multiplicar Deus,
mas mostrar o caráter de comunhão, presente na realidade divina. A Igreja antiga não se
apercebeu logo dos problemas que estavam aí implicados, especialmente como combinar
a unidade com a trindade. Sem a pretensão de aprofundar a questão, importa reter esta
constatação: a experiência da fé não partiu da unidade de Deus. Experimentou a diversidade
em Deus. Viveu Deus como família, como comunhão e inter-retro-relação de Pai, Filho e
Espírito Santo. Venerou os Três como Deus. Não especulou ainda em termos concisos o
relacionamento entre eles”, Cf., BOFF, Leonardo. Experimentar Deus. A transparência de
todas as coisas, Campinas: Verus Editora, 2002, p. 133s.
Cf., SCHILLEBEECKX, Edward. Interpretación de la fé. Aportaciones a una teología herme-
néutica y crítica, Salamanca: Sígueme, 1973, p. 19.
Cf., GOFFI, Tullo. La experiencia espiritual, hoy, Salamanca: Sígueme, 1987, pp. 115-116;
118-119.
Tullo Goffi percebemos mais uma vez o nexo inarredável entre experiência,
mística e teologia.
Para este ponto seguimos as sugestões de PIKAZA, Xabier. Enchiridion Trinitatis. Textos bá-
sicos sobre el Dios de los cristianos, Salamanca: Secretariado Trinitário, 2005, pp. 449-488.
das fontes de sua inspiração. Eis parte de uma de suas belas orações
elevadas à Trindade:
Ó meu Deus, Trindade que adoro, ajudai-me a esquecer-me
inteiramente para firmar-me em Vós, imóvel e pacífico, como
se a minha alma já estivesse na eternidade: que nada consiga
perturbar a minha paz nem fazer-me sair de Vós, ó meu Imutável,
mas que a cada minuto me leve mais longe na profundidade do
vosso Mistério! Pacificai a minha alma! Fazei dela o vosso céu,
vossa amada morada e o lugar do vosso repouso. Que nela eu
nunca vos deixe só, mas que eu esteja aí, todo inteiro, comple-
tamente vigilante na minha fé, todo adorante, todo entregue à
vossa ação criadora (Catecismo da Igreja Católica, 260).
Segundo Ponto: Unidade E Pluralidade Na Experiência Trinitária De Deus
E Suas Configurações Históricas Como Desdobramento Filial-Fraterno
O Mistério Trinitário de Deus é por antonomásia o núcleo unificador da
mística trinitária, no entanto, tal unidade é sempre configurada na varieda-
de das expressões históricas da espiritualidade cristã. A busca do sentido
mais profundo da experiência de Deus é de fundamental importância para
se compreender a unidade e a pluralidade das configurações históricas da
espiritualidade cristã-fraternal. A experiência de Deus é algo vital e exis-
tencial que acompanha o dinamismo do cristianismo na história e está no
substrato da teologia martirial, ascética, mística, espiritual e experiencial. A
experiência fraternal-libertadora é inerente à experiência do Deus-Pai feita
por Jesus Cristo. Ele é aquele que liberta para a fraternidade e, esta é um
sinal original de liberdade, irmandade, solidariedade, partilha e comunhão. A
experiência de Deus, de cunho profundamente comunitária inaugurada pelo
Filho-Irmão, é o que fundamenta o sentido da fraternidade radicada Nele.
Seus gestos são eminentemente fraternais e indicam para a inauguração de
uma prática religiosa, a qual quer vincular as pessoas através das várias
dimensões da comunhão. É Ele propriamente o referencial da fraternidade
comunitária que se manifesta através da sua autoridade de chamar um grupo
de pessoas para segui-Lo10.
Para os pontos que seguem ver PRATES, Lisaneos. Fraternidade libertadora. Uma leitura
histórico-teológica das Campanhas da Fraternidade da Igreja no Brasil, São Paulo: Paulinas,
2007, pp. 487-523, onde desenvolvemos amplamente o conteúdo apresentado aqui.
10
“Se cremos que em Jesus de Nazaré se dá a plena revelação pessoal e histórica de Deus,
é lógico que “os adoradores de Deus em espírito e verdade” (Jo 4,23) procuremos ser
seguidores em espírito e em verdade desse Jesus. A Deus ninguém viu (Jo 1,18), exceto
o Filho, que é Jesus. Ninguém “praticou” plenamente a Deus na história exceto esse Filho
histórico. Seguir a Jesus é portanto, em última instância, “praticar o Deus de Jesus”, prati-
cando pelo seguimento o próprio Jesus de Nazaré. [Dentre as atitudes do cristão, na linha
do seguimento feita por estes autores, duas vão na linha da experiência paterno-fraternal
de Deus]: a constante comunhão de confiança filial com o Pai, com o “Paizinho, Abba” e a
partilha familiar (fraterna) com todos, mas sobretudo com os pobres, os marginalizados, os
não-cidadãos, os não-pessoas, os proibidos, os “subversivos” das várias (des)ordens esta-
belecidas”, cf. P. Casaldáliga – J.M. Vigil. Espiritualidade da libertação, Petrópolis: Vozes,
1983, pp. 123.128-129.
11
Para Jon Sobrino Jesus Cristo é por excelência o “irmão”, sobretudo dos pobres da sua
época e dos pobres de hoje: “os pobres de hoje vêem, no processo de aproximação de
Jesus aos pobres de seu tempo, a maneira como Jesus foi se tornando irmão dos pobres,
realmente partícipe de uma humanidade composta em sua imensa maioria de pobres; por
isso os pobres de hoje podem chamá-lo de irmão – do qual dirão, ademais, que é o irmão
“mais velho” –, mas em primeiro lugar irmão, alguém como eles. Entendem muito bem a
afirmação da Carta aos Hebreus de que Jesus não se envergonha de chamar os homens
de irmãos”, cf., Sobrino, Jon. Espiritualidade da libertação. Estruturas e Conteúdos, São
Paulo: Loyola, 1992, p. 202.
12
Neste contexto imperial, “o martírio é o testemunho sangrento ante os poderes imperiais; é
o testemunho da fé defendida com a entrega da própria vida, a afirmação absoluta de que
o único verdadeiramente importante é Cristo. As fontes históricas são as “Acta” dos mártires
e os tratados de Inácio de Antioquia, Cipriano, Orígenes e Tertuliano. Em tais escritos, a
espiritualidade centra-se na cruz gloriosa, considerada epifania do amor extremo de Deus
pelos seres humanos: o martírio é considerado o ápice da perfeição cristã: a morte não é
mais uma negatividade trágica, uma derrota, mas um dom aceito livremente e um modo de
assimilar-se ao Cristo vencedor; o mártir cristão não é um simples herói (exemplar humano
dotado de fortaleza para assumir seu trágico destino), pois não busca a própria glória, mas
o triunfo de Cristo nele”, cf., Mondoni, Danilo. Teologia da Espiritualidade Cristã, Loyola,
2000, p. 31s.
13
“Bento foi o verdadeiro fundador do monaquismo ocidental (antes dele foram fundadas er-
midas e comunidades monásticas). Ele aperfeiçoou com certa independência, as regras de
Pacômio e Basílio. A união de trabalho e oração constitui o aspecto novo do monaquismo
beneditino (no oriente o trabalho apenas preenchia os momentos livres do monge). Os
principais componentes da espiritualidade monástica que emergem da Regra e da vida de
Bento podem ser reunidos em torno da escuta, da oração, da humildade e da figura do
Abade”, cf., Mondoni, Danilo, op. cit., p. 41.
14
“A espiritualidade teresiana é a espiritualidade da intimidade divina, porque procura alimen-
tar o ideal da intimidade com Deus; tal finalidade atinge-se principalmente por meio da
oração mental. É também doutrinal pois, Teresa desejou e procurou que a vida ascética
e mística tivesse como base uma doutrina sólida”. “João da Cruz (1542-1591) exprimiu
sua mística em dois níveis: tradução de sua vida interior no plano lírico (poemas) por um
jogo de símbolos; visão especulativa sobre a teologia mística mediante comentários de
três de seus poemas. Sua mística é antiintelectual, ou antinocional, e sobretudo mística da
negação (niilismo vertiginoso): Deus é o absoluto e não pode ser medido pelo criador; a
única preparação à união mística é uma atividade negativa de aniquilação (esvaziamento
de todas as faculdades da alma; união à alma de Cristo)”, Mondoni, Danilo, op. cit., p.
61 e 62.
15
“Não se deve esperar dos documentos conciliares um tratado sistemático da espiritualidade
(termo que aparece neles apenas quatro vezes – UR 6 e 15; AG 29; PC 6 –; muito mais
amplo é o uso de expressões como: “vida espiritual”, “perfeição”, “santidade”).O Vaticano II
não busca definições, mas adota um discurso de teor descritivo e afirmativo. Talvez por isso
faltem ainda abordagens mais completas sobre sua espiritualidade. [A seguir este autor indica
as seguintes dimensões da espiritualidade conciliar]: espiritualidade litúrgica, espiritualidade
bíblica e cristocêntrica, espiritualidade no meio do mundo, espiritualidade eclesial-comunitária,
espiritualidade ecumênica e espiritualidade missionária”, cf., de Fiores, Stefano. A “nova”
espiritualidade. As novas espiritualidades na Igreja desafiam o futuro, São Paulo: Cidade
Nova/Paulus, 1999, p. 35ss.
16
Sobre a relação de pertença mútua entre a teologia e a espiritualidade é significativa a
seguinte asseveração: “Ao assumir uma vocação esperançosa e práxica, a teologia já foi
se tornando teologia espiritual. O que ocorreu depois, foi o fato de que a própria teologia
se conscientizou de seu estatuto espiritual, por ação ou omissão. Está tratando de temas
convencionalmente espirituais, mas, sobretudo, está reconhecendo a necessidade de que
deveria ser feita com espírito e com o Espírito de Deus para comunicar espírito e o Espí-
rito de Deus. Com o objetivo de trazermos aqui à baila algumas afirmações de teólogos
europeus mais lúcidos, já em 1969 Urs von Balthasar, ao falar precisamente da incipiente
teologia política, reinterpretava-a como redescobrimento da “espiritualidade bíblica” e acres-
centava: “Não cortemos as asas de uma geração que teve a sensibilidade para descobrir
como insuportável a separação entre teologia e espiritualidade, entre contemplação e ação,
entre Igreja e mundo”. K. Rahner, aludindo ao exemplo de Santo Tomás, empenhava-se em
superar “aquela horrível divisão que se pode observar, na teologia posterior, entre teologia e
vida espiritual”. J. B. Metz, promotor da teologia política, falou da “mística e da política do
seguimento”. Estas citações não são apenas indicativas; mostram a necessidade de integrar
a espiritualidade na teologia como uma de suas dimensões essenciais”, cf., Sobrino, Jon,
op. cit., p. 61s.
17
“A liturgia é ação da fraternidade eclesial. Com as indicações que oferecem os textos li-
túrgicos atuais e do passado poder-se-ia elaborar a antologia da fraternidade ao longo da
tradição [...]. Na missa para pedir a caridade suplica-se “amar a Deus nos irmãos”; na missa
por quem está triste ou aflito, invoca-se o “vínculo da fraternidade” [...]. Na solene oração
universal da sexta-feira santa,o único grupo de pessoas qualificadas como “irmãos” são todos
aqueles que crêem em Cristo; é uma homenagem ao ecumenismo [...]. E irmãos são todos
os orantes, como manifestam os numerosíssimos convites à oração e as admoestações
que começam justamente com o apelativo de “irmãos” nas renovadas liturgias eucarísticas,
das horas, dos sacramentos etc.”, cf., de Candido, Luigi. “Fraternidade”, In: DE FIORES, S.
– GOFFI, T. Dicionário de Espiritualidade, São Paulo: Paulus, 1993, p. 469.
18
Cf. Cnbb. A serviço da vida e da esperança, Texto Base da Campanha da Fraternidade de
1998, n. 136.
19
Cf. Cnbb. Terra de Deus, terra de irmãos, Texto Base da Campanha da Fraternidade de
1986, n. 159c.
20
“Esta é a boa-nova de Jesus Cristo: Deus infundiu seu amor em nós, dando-nos possibi-
lidade na existência [...]. Com Jesus Cristo, manifesta-se definitivamente o amor de Deus
a todos os homens (Tt 3,4). A ternura e a compaixão eficaz, traços do verdadeiro Deus,
segundo a revelação bíblica, se interiorizaram na humanidade de Jesus e teve início uma
nova etapa: no amor intra-histórico daquele homem que foi capaz de viver e morrer sem
egoísmo e para o bem de todos, a Igreja descobriu e proclamou a divindade de Jesus
[...]. [Se através da humanidade de Jesus] o amor misericordioso de Deus foi infundido
nas pessoas humanas de carne e osso que ainda caminham na terra, devemos concluir
que o amor de Deus age neste mundo e através de nós. O fato de nos sentirmos amados
não deve ser interpretado só como emoção pessoal, mas como responsabilidade para que
todos os seres humanos e toda a criação, experimentem eficazmente esse amor encarnado
em nossa conduta histórica”, cf., Espeja, Jesus. Espiritualidade cristã, Petrópolis: Vozes,
1995, p. 227s.
manifestou a caridade de Deus por nós; Deus enviou o seu Filho único ao
mundo...” (1Jo 4,9). É através da caridade encarnada na pessoa do Filho-
Irmão que acontece a instauração do Reino da fraternidade-libertadora no
coração do mundo e da história. A vocação e a missão da Igreja deve
continuar sendo a instauração do Reino da fraternidade-libertadora através
da caridade. Assim, celebrar e instaurar não são ações estanques, mas co-
implicativas. O conteúdo da Celebração Eucarística como expressão da fé
no Deus-Pai protagonizado pela assembléia comunitária, é o compromisso
e a prática da instauração assumida pela mesma comunidade, a qual é
seguidora do Filho-Irmão21.
A caridade é, sobretudo, gesto concreto, obra de misericórdia a favor do
irmão/ã, solidariedade, aposta pela vida e pela existência; como inferimos, a
caridade é vista na mediação da prática, da ação. No entanto, a densidade
semântica do termo “caridade” e o seu uso no âmbito religioso e teológico
requer uma elucidação do seu significado na nossa meditação. A primeira
aproximação de significado é que a caridade está sendo entendida a partir
de sua vinculação inseparável com o binômio fraternidade-libertadora. Um
outro significado decorre da sua semântica bíblico-teológica onde a caridade
é sinônimo de amor-agápico22. Na trilha de uma caridade-fraternal-libertadora
por excelência, “o sinal do cristão é o mandamento novo: “Amai-vos uns
aos outros, como eu vos amei!” diz Jesus. E acrescenta: “é nisto que todos
saberão que sois meus discípulos” (cf. Jo 13,34-35). É a vivência deste
mandamento que dá sentido ao amor de Deus (cf. 1Jo 4,7-25) e garante a
vida eterna feliz (cf. Mt 25,31-46). “O amor é vínculo da perfeição” no dizer
21
“A Eucaristia aparece inseparavelmente ligada à criação e à consumação de uma real fra-
ternidade humana [...]. Um texto de Mateus é claro a respeito da relação entre o culto e
fraternidade humana (cf. Mt 5,23-24) [...]. Desligar sacrifício e amor ao próximo é a razão
da drástica crítica que Jesus, situando-se em firme tradição profética, dirige a todo culto
puramente externo. É que se “nossa relação de serviço ao próximo no mundo (relação que
se expressa profundamente na oração e na liturgia) estivesse realmente ausente, neste
caso a oração e toda a liturgia, como também nosso falar de Deus... cairiam no vazio e
degenerariam em superestrutura inútil e falsa”. Assim entendia Paulo, que antes de relatar
a instituição da Eucaristia, assinala a condição necessária para ter parte nela, ao reprovar
a falta de caridade fraterna dos coríntios quando de suas reuniões para celebrar a ceia do
Senhor (1Cor 11,17-34; cf. Tg 2,1-4)”, cf., Gutiérrez, Gustavo. Teologia da libertação, São
Paulo: Loyola, 2000, p. 322s.
22
Para uma compreensão da riqueza polissêmica da caridade e sua especificidade na espiritu-
alidade cristã, cf., Sbaffi, Maio, “Caridade”, In: DE FIORES, S.–GOFFI, T., op. cit., pp. 78-88.
Ver ainda: Josaphat, Carlos. Crer no amor universal. Visão histórica, social e ecumênica do
‘creio em Deus-Pai’. São Paulo: Loyola, 2001, pp. 171-206.
de São Paulo (Cl 3,14) e através dele, os homens poderão acreditar que
Deus enviou seu Filho para salvá-los (cf. Jo 17,19)”23.
Esta forma de conceber e definir a caridade está profundamente
sintonizada com o gesto amoroso do Deus-Pai, o qual entrega o Fi-
lho-Irmão para revelar ao mundo a fraternidade-libertadora através da
paixão-morte-ressurreição. A entrega do Filho-Irmão feita pelo Deus-Pai
como expressão supremamente plena da caridade, afasta todo tipo de
compreensão da mesma como esmola. A esmola pode ser: um paliativo às
necessidades dos irmãos/ãs que estão em situação de exclusão; dar do
supérfluo que nos sobra; um tipo de assistência imediata a uma situação
desumana premente. A caridade-fraternal-libertadora é: uma ação eficaz
que deve libertar aos irmãos/ãs das situações de exclusão; uma ação
na gratuidade que oferece tudo e o de mais precioso para o próximo,
a exemplo do Deus-Pai que gratuitamente, oferece o Filho-Irmão como
o mais precioso que possa ser oferecido; uma ação permanentemente
contínua que devolve aos necessitados a condição de serem sujeitos de
sua própria dignidade.
23
Cf. Cnbb. Terra de Deus, terra de irmãos, Texto Base da Campanha da Fraternidade de
1986, n. 161.
24
“Só esperança – confiança, paciência, criatividade e audácia – pode ser meio satisfatório
para as pessoas humanas que trazem inscrita em seu ânimo a tensão antropológica entre
o que são e o que desejam ser. Nessa tensão entre o que já tem e o que ainda se deseja,
inscreve-se a esperança cristã que é uma virtude teologal. Por essa virtude experimentamos
a densidade teológica do tempo e abrimos o coração para além do aparente, certos de que
nosso esforço não será inútil. Brota de uma promessa sobre o futuro feita no passado e
realizada pelo Espírito nos fiéis”, cf., Espeja, Jesus, op. cit., p. 262s.
25
Cf. Cnbb. Para onde vais?, Texto Base da Campanha da Fraternidade de 1980, n. 7c.
26
“A partir dos pobres, a Igreja-comunidade pode refazer e formular a esperança de que a vida,
a justiça, a dignidade, a família humana são possíveis; a esperança de que o carrasco não
triunfará sobre a vítima. E, mais radicalmente ainda, esperar que a esperança seja sempre
uma realidade. A partir da realidade excludente do nosso mundo é que temos de voltar à
Eucaristia para encontrar nela uma luz no mais profundo da nossa fé e da nossa esperança
e um estímulo ao compromisso. Para os pobres e excluídos, a Eucaristia é seu lugar. E
todos (as) devemos trabalhar para que assim seja: uma mesa partilhada e de gente feliz,
na solidariedade; contraposta ao exemplo de um modelo de sociedade que se alegra com o
acúmulo de riquezas e se conforma com a exclusão da maioria dos seres humanos”, cf. Aa.Vv.
Eucaristia: fonte da missão e vida solidária, São Paulo: Paulus, 2001, nn. 151 e 156.
Conclusão
Bibliografia
Cnbb. A serviço da vida e da esperança, Texto Base da Campanha da Frater-
nidade de 1998, n. 136.
Cf. Cnbb. Terra de Deus, terra de irmãos, Texto Base da Campanha da Frater-
nidade de 1986, n. 159c.
Espeja, Jesus. Espiritualidade cristã, Petrópolis: Vozes, 1995, p. 227s. Sobri-
no, Jon. Espiritualidade da libertação. Estruturas e Conteúdos, São Paulo:
Loyola, 1992, p. 202.