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CTCH - Departamento de Teologia

Programa de Pós-graduação em Teologia -PPG/Teo


Disciplina: Questões Especiais Sobre Deus I (TEO 2253)
Prof.ª Dr.ª: Maria Clara Lucchetti Bingemer

JOHNSON, Elizabeth. El Dios Libertador: La búsqueda del Dios vivo: trazar las
fronteras de la teología de Dios. Sal Terrae, 2007.

Capítulo 10 - La Trinidad: El Dios Vivo del Amor


(pp.259-289)

- Antônio José Corguinha Gripp


- Pedro Henrique Teixeira Pires Veiga

1. Introdução
O propósito da linguagem trinitária é aclamar o Deus vivo como o mistério da
salvação. Essa bênção, transmitida desde os tempos do século I e ainda proferida nas
assembléias litúrgicas do século XXI, traz à tona uma compreensão singular do Deus
que os cristãos e as cristãs adoram. Apesar de sua estrutura triádica, não deve ser
confundida com uma crença em três deuses separados, mas sim em um Deus único. O
cerne dessa fé é a crença de que este Deus único, por meio da graça e do amor, se
revelou ao mundo na pessoa de Jesus Cristo, com o objetivo de redimir, libertar e, em
última análise, salvar a humanidade.

Essa experiência de salvação, que emana de Deus por meio de Jesus e pelo poder
do Espírito Santo, leva a um encontro profundo com o Divino, tão impactante que exige
uma linguagem especial, uma linguagem trinitária. Essa linguagem não é uma definição
estrita, mas sim uma interpretação da natureza de Deus à luz da realidade da salvação.
Ela enaltece as maneiras pelas quais a graça de Deus age no mundo por meio de Jesus e
do Espírito, revelando o coração altruísta do amor de Deus.
Essa ênfase na Trindade, embora tenha sido negligenciada e mal compreendida ao
longo dos séculos no Ocidente, é fundamental para a fé cristã. No passado, filósofos e
filósofas como Friedrich Schleiermacher relegaram a doutrina da Trindade a um
segundo plano, considerando-a de pouco valor prático. No entanto, o cerne da fé cristã
reside na compreensão da Trindade como uma expressão do monoteísmo cristão, pois a
Trindade é o cerne da ideia cristã de Deus, originada da experiência espiritual. Como
Walter Kasper afirma, a Trindade é a forma cristã do monoteísmo.

Nas últimas décadas, a teologia trinitária ressurgiu como um campo de estudo


prático e esperançoso, enriquecido por estudos bíblicos e históricos. Esse renascimento
da importância da Trindade na teologia sistemática contemporânea oferece uma visão
renovada e prática desse conceito central da fé cristã.

2. História de uma Lacuna

A noção trinitária sobre Deus foi concebida em diferentes momentos da história


do Cristianismo. É uma jornada que nos leva das origens do Cristianismo aos
complexos debates filosóficos da Idade Média e à crise de compreensão que a Teologia
da Libertação trouxe consigo. Abre-se, então, um espaço para questionar como a visão
inicial e a prática do Deus trino, centradas na experiência de salvação, se distanciaram
de sua essência original. A ideia da Trindade surgiu em um contexto de encontro com a
misericórdia salvadora de Deus em Jesus Cristo e na influência do Espírito Santo, e esse
encontro foi o ponto de partida para a reflexão trinitária.

Os primeiros cristãos e cristãs estavam estritamente relacionados à compreensão


judaica monoteísta, que adorava o Deus de Israel, aquele que libertou seu povo da
escravidão no Egito. No entanto, através do ministério de Jesus e a presença do Espírito
Santo, eles experimentaram uma nova dimensão desse Deus. A salvação em Jesus
Cristo tornou-se um encontro profundo com um Deus único, que se manifestou em três
formas: como transcendência absoluta, como presença histórica em Jesus e como
habitação no Espírito Santo na comunidade. Essa experiência levou ao desenvolvimento
da fórmula trinitária que conhecemos hoje: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o
amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam sempre convosco.” Essa fórmula
se tornou uma parte central das primeiras cartas e evangelhos cristãos, transmitindo a
boa nova da salvação.

Entretanto, ao longo dos séculos, a reflexão teológica perdeu o contato com a


experiência fundamental da salvação. A distinção entre uma “Trindade para nós” e uma
“Trindade em si” se desenvolveu, separando a compreensão de Deus da realidade de
redenção. A teologia medieval aprofundou essas divisões e adotou uma abordagem
filosófica que resultou em conceitos complexos e abstratos sobre a Trindade.

No século IV, surgiu uma controvérsia liderada por Ário, um sacerdote egípcio,
que argumentou que Jesus era uma criatura divina e não igual a Deus. Para defender a fé
cristã na divindade de Jesus, o Primeiro Concílio de Niceia em 325 elaborou o Credo
Niceno, que afirmava a igualdade de Jesus com Deus. Cinquenta anos depois, o
Concílio de Constantinopla em 381 expandiu o Credo Niceno para incluir uma
confissão semelhante sobre o Espírito Santo.

Credos como esses formalizavam as crenças trinitárias e ajudavam a transmitir a


doutrina da Trindade, mas não explicavam completamente como a Trindade funcionava.
A teologia trinitária continuou a se desenvolver, com diferentes abordagens no Oriente e
no Ocidente. Os teólogos e teólogas orientais enfatizaram a monarquia do Pai, de quem
procediam o Filho e o Espírito, enquanto teólogos e teólogas ocidentais consideravam a
natureza divina que todas as três pessoas compartilhavam igualmente.

No entanto, ao longo do tempo, a teologia trinitária se tornou cada vez mais


abstrata, complexa e elitista, afastando-se da experiência religiosa. A teologia
escolástica medieval, em particular, se envolveu em detalhes técnicos e abstrações que
eram difíceis de compreender e não se relacionavam diretamente com a salvação. Para
essa perspectiva trinitária Deus se diferencia internamente graças as suas relações de
origem, utilizando-se de uma série de termos especializados: as duas procissões de
geração e inspiração deram origem a quatro relações, a saber, a da paternidade, a da
filiação, a da inspiração, a da procissão, que por sua vez constituem as três pessoas do
Pai, do Filho e do Espírito Santo, que são pessoas no sentido de que mantêm relações
subsistentes que contêm a única natureza divina. Esta forma de teologia delineou com
algum detalhe como os três são pessoas que se relacionam através das referidas
procissões e do amor mútuo. Praticamente da mesma forma que os seres humanos
relacionam-se entre si por geração-nascimento e em amor concomitante.

Já com o Iluminismo, foi desenvolvida uma abordagem mais racional e filosófica


à teologia, resultando em uma visão de Deus como uma entidade solitária com infinitos
atributos, que tinha pouco a ver com a experiência religiosa cristã. A distinção entre a
Trindade revelada na história da salvação (economia da salvação) e a “Trindade em si”
tornou-se mais evidenciada.

Com uma teologia distante da experiência religiosa, e a falta de compreensão por


parte do imaginário popular, a Trindade enfrentou críticas justificadas de que a imagem
patriarcal de Deus Pai se sobrepôs a uma compreensão mais profunda da Trindade, e a
reflexão teológica se afastou da realidade da redenção, se tornando ininteligível para o
público em geral.

Para superar essa “lacuna”, a teologia trinitária deve retornar à sua base na
experiência da salvação e à compreensão de Deus como uma comunhão de amor
igualitária. A ideia de uma Trindade “libertária” busca reconciliar a complexa tradição
teológica com a visão original de um Deus que age de maneira solidária e libertadora na
vida de todos e todas. A Trindade deve ser vista como um símbolo de igualdade, amor e
relacionamentos, e não como um conceito distante e complicado. A reflexão trinitária
deve novamente se conectar com a vida cristã e com a experiência da salvação para ser
significativa e relevante.

3. Três Tarefas para a Superação da “Lacuna”

A compreensão da Trindade no Cristianismo vai muito além de um conceito


abstrato de divindade. Pois os cristãos e as cristãs creem em um Deus que se revela em
Jesus Cristo, e a compreensão da Trindade desempenha um papel crucial nessa
revelação. Ignorar a Trindade, como alertado por Calvino, resultaria em uma concepção
vazia e superficial de Deus. Portanto, nossa busca por compreender a Trindade não é
meramente acadêmica, mas tem implicações profundas em nossa relação com Deus e
com o mundo.
Hoje, estamos testemunhando um renascimento na teologia trinitária, onde se
destacam pelo menos três tarefas distintas e interconectadas. Essas tarefas são
fundamentais para aprofundar nossa compreensão da Trindade e, por consequência,
nossa vivência da fé cristã. Isto é, envolver e conectar Trindade à vida cristã.

3.1. Enraizado na Experiência da Salvação

A primeira tarefa crucial na compreensão da Trindade seria a necessidade de


conectar a experiência religiosa da salvação com a compreensão teológica da Trindade.
Essa tarefa visa estabelecer uma ponte entre a experiência vivencial da fé e o
pensamento teológico, a fim de fundamentar o símbolo trino na vivência da salvação.

Uma chave para essa tarefa é o axioma de Karl Rahner, que proclama que “a
Trindade econômica é a Trindade imanente, e vice-versa”. A “Trindade econômica”
refere-se à obra de salvação de Deus na história, enquanto a “Trindade imanente” está
relacionada à concepção de Deus como uma entidade distinta do mundo, não
influenciada por ele. Esse axioma resume a ideia de que conhecemos Deus a partir de
como Ele agiu na história, especialmente por meio da encarnação do Verbo e da
renovação pelo Espírito Santo. Ele afirma que o Deus que conhecemos através desses
eventos é o Deus real, não sujeito a ilusões ou equívocos, e não esconde uma divindade
cruel ou indiferente por trás da revelação das Escrituras.

A compreensão trinitária, como destacada, é baseada na revelação de Deus em


três formas distintas na história: como criador, chamado de “Pai”; como Salvador
encarnado, chamado de “Filho”; e como presença contínua e amorosa no mundo,
chamado de “Espírito Santo”. Embora todos sejam uma única divindade, essas três
formas refletem a maneira como Deus se comunicou na história da salvação.

Atualmente, a teologia está progressivamente focando em falar de Deus a partir da


lente da história salvífica. No entanto, o desafio reside em transmitir plenamente essa
compreensão nas práticas religiosas, pregações e educação da igreja, a fim de evitar que
o símbolo trino se torne obsoleto e sem relevância, ressaltando a importância de ancorar
a Trindade na experiência da salvação.
3.2. Mencionado Implicitamente

A segunda tarefa necessária na teologia trinitária é lembrar que o mistério de Deus


é incompreensível e maior do que nossos pensamentos. A Trindade é um símbolo
doutrinário que deve ser interpretado indiretamente, analogicamente e não por meio de
uma descrição literal. Por isso a importância de se entender que a linguagem trinitária
não deve ser excessivamente técnica, mas sim sugerir o mistério do amor salvífico de
Deus. A noção chave de “pessoa” e os números “um” e “três” ilustram bem como isso
pode ser feito.

3.2.1. Pessoa

O conceito de “pessoa” na doutrina da Trindade é complexo e evoluiu ao longo do


tempo. Inicialmente, a palavra “hipóstase” era usada para se referir a cada membro da
Trindade divina, traduzida posteriormente como “pessoa”. No entanto, a evolução
semântica da palavra levou a diferenças entre o significado original e o entendimento
contemporâneo de “pessoa”. Pois, de início, “hipóstase” carregava a ideia de uma “base
sólida sobre a qual algo se sustenta e existe” ou “uma forma diferente de subsistência”.
Com o tempo, o termo “pessoa” passou a representar um indivíduo com consciência
própria e liberdade em relação aos outros, significando algo diferente da ideia original.

A aplicação do termo “pessoa” à Trindade divina cria desafios, e pode levar à


concepção errônea de três deidades distintas, conhecida como triteísmo. Isso dificulta a
tarefa de explicar a Santíssima Trindade em sermões e ensinamentos. Santo Agostinho,
em sua obra “Sobre a Trindade”, reconheceu a dificuldade de encontrar a linguagem
apropriada para descrever a Trindade. Mesmo assim, ele sugere o uso da palavra
“pessoa” como a melhor escolha, embora reconheça suas limitações e que não deva ser
entendida literalmente, mas como uma forma de falar que permite alguma compreensão
do mistério trinitário. A fórmula “três pessoas” não foi cunhada para exaurir todas as
questões, mas para nos silenciarmos diante do mistério.

Pode-se também mencionar o debate sobre a substituição da palavra “pessoa” por


“modo de subsistência”. Karl Rahner sugere que essa terminologia seria mais fiel ao
significado original da palavra hipóstase, mas a crítica argumenta que as pessoas não
entenderiam essa linguagem. No entanto, Rahner defende que, embora seja difícil de
compreender, ao menos evita a ideia errônea de “três pessoas” sem qualquer
qualificação.

É preciso enfatizar a complexidade da linguagem trinitária e a necessidade de


abordá-la com cuidado, lembrando que a Trindade é um mistério que vai além das
palavras e conceitos humanos. A palavra “pessoa” é usada não de forma literal, mas
como uma tentativa de capturar o mistério da tripla unidade que habita em Deus.

3.2.2 - Os Números “Um” e “Três”

Na doutrina da Trindade, os termos “um” e “três” não têm conotações


quantitativas, mas sim expressam a natureza do divino. A afirmação de que Deus é
“um” destaca a unidade e a indivisibilidade do ser divino, rejeitando qualquer ideia de
divisão ou separação. A alegação de que existem “três pessoas” realça a comunhão e a
vida relacional divina, eliminando a ideia de solidão ou isolamento de Deus. Assim, a
Trindade não é uma entidade rígida, mas sim uma manifestação viva de uma vida
relacional que transborda para o mundo.

A noção de perichorésis, que descreve a vida interna de Deus como um


movimento dinâmico e circular de interação entre as três pessoas da Trindade, deve ser
mencionada. Pois essa metáfora sugere que cada pessoa da Trindade se move em torno
das outras em um fluxo contínuo de vida divina, mantendo sua distinção enquanto há
partilha em comunhão de amor. Alguns teólogos e teólogas veem isso como uma dança
divina, evocando a imagem de uma dança folclórica em que os participantes giram em
um movimento mútuo e dinâmico. Essa imagem representa a ideia de que Deus não é
estático, mas a plenitude do amor que se doa, um mistério de salvação que se estende ao
mundo para curar, redimir e libertar. O objetivo final dessa relação de Deus com o
mundo é trazer o mundo de volta à comunhão da dança divina da vida.

Conclui-se que a linguagem usada para descrever a Trindade é evocativa e


indireta, seja interpretada como analogia, metáfora ou símbolo. Ela aponta para o ser de
Deus como uma comunhão de amor, reconhecendo ao mesmo tempo que a diferença
entre Deus e tudo o que conhecemos é sempre maior, pois o Deus insondável não pode
ser completamente expresso por qualquer linguagem humana.

3.3 - Expressado com Conceitos do Nosso Tempo

Reafirmar a Trindade na experiência da salvação e recuperar sua referência ao


Deus vivo de forma não literal abre caminho para a terceira missão da teologia, que
consiste em expressar novamente o mistério na linguagem contemporânea. Seja
ancorada na rica tradição ou na compreensão típica de nosso tempo, a teologia
atualmente está desenvolvendo abordagens inovadoras. Uma obra que apresenta duas
características distintas: primeiro, foca principalmente no Deus trinitário engajado com
o mundo, o único que se revela como “Deus para nós”. Segundo, ao refletir sobre a
Trindade independente do mundo, adota uma abordagem salvífica e mantém uma
postura reservada, garantindo que quaisquer afirmações metafísicas sobre a vida interna
de Deus estejam diretamente relacionadas à economia da salvação.

O teólogo irlandês James Mackey sugere que a teologia trinitária deveria se


contentar com uma fórmula mais concisa. É essencial afirmar que o Deus único existe
em três modos de subsistência distintos e mutuamente relacionados. Contudo, uma vez
que essa verdade esteja firmemente estabelecida, seria pertinente dispensar quaisquer
novas tentativas de investigar as relações entre os três, e continuar a pregar sobre a vida
cristã à luz do Deus que está presente e ativo em todo o mundo, desde sua origem até o
fim, através do Verbo encarnado e dos dons do Espírito.

Na sua obra revolucionária “God for Us”, Catherine LaCugna expressa sua
concordância com o que foi mencionado acima. Ela apresenta que a revelação do “Deus
por nós” nos oferece bases suficientes para pensar que não há um Deus que
simplesmente exista sem estar simultaneamente em relação. Para Deus, “ser” significa
“estar em relacionamento”.

É importante salientar que qualquer análise aprofundada da vida interna da


Trindade que não leve em consideração o seu interesse salvífico em relação à criação
seria mera especulação. Caso contrário, a alegre verdade transmitida pelo monoteísmo
trinitário estaria comprometida.

Comparativamente à teologia anterior ao século XX, estamos presenciando um


renascimento na teologia trinitária nos dias atuais. Segundo Johnson, R. Kendall Soulen
prestou um valioso serviço ao propor que a própria linguagem sobre a Trindade deveria
ser trinitária, ou seja, manifestar-se de maneira tripla. Sua tese seria a seguinte: o nome
da Santíssima Trindade possui três inflexões. De acordo com o dicionário, inflexão
pode ser uma alteração na modulação da voz ao falar ou cantar, ou uma modificação de
uma palavra para indicar uma mudança em sua função gramatical. A Trindade é um
nome com três inflexões, três modos distintos nos quais essa verdade é expressa. Cada
inflexão se refere ao Deus trino como um todo, mas o faz de maneira única, em uma
modulação característica de uma pessoa trinitária e das relações próprias dessa pessoa.
A exploração dessa tese possibilitará revelar a riqueza do trabalho teológico
contemporâneo.

3.3.1 - A Inflexão Teológica

No cerne dessa inflexão está o santo nome revelado a Moisés diante da sarça
ardente, no início da narrativa do Êxodo: “Deus disse a Moisés: YHWH”, que foi
traduzido de diversas maneiras como “Eu sou quem sou” ou “Eu estarei com você”
(Êxodo 3.14). Técnica e popularmente conhecido como Tetragrama, esse nome de
quatro letras, YHWH, é o nome pessoal do Deus de Israel, como LaCugna descreve, é
“o nome auto-imposto” de Deus. Longe de ser meramente um rótulo superficial, o nome
representa a singularidade incomparável do Único, revelado na história do povo da
Aliança por meio de palavras de amor e fidelidade inabaláveis. Este é o nome mais
sagrado de Deus no Judaísmo e é comumente encontrado nas Escrituras de Israel.

O Tetragrama entrou no Novo Testamento como um nome imbuído da história da


Aliança de Deus com Israel. Nesse novo contexto, ele orientou a lógica da identificação
cristã de Deus da mesma forma que o norte magnético orienta a agulha de uma bússola.
Quando o Novo Testamento se refere a Deus, está mencionando o Santo de Israel
conhecido por esse nome.
Como um judeu praticante, Jesus orou a esse Deus e instruiu seus discípulos e
discípulas a fazerem o mesmo. Na Oração do Pai Nosso, observamos a primeira petição:
“santificado seja o teu nome”. O uso da voz passiva – “santificado seja” - reflete o
respeito dos judeus pelo nome de Deus. Esse emprego reverente da voz passiva por
Jesus não implica ambiguidade quanto à identidade daquele que é invocado, mas, no
contexto da devoção inspirada pelo Nome em Israel, serve como um sinal de reverência.

O Novo Testamento adota essa forma indireta de discurso, característica tanto da


pregação quanto da oração de Jesus, e usa uma ampla gama de expressões para
incorporar Jesus e o Espírito na identidade do único Senhor. O grandioso hino de
Filipenses 2:5-11, por exemplo, faz a surpreendente observação de que o “nome acima
de todo nome” é dado ao Jesus crucificado e exaltado. O Espírito também é identificado
como o “Espírito do Senhor”, ou seja, o Espírito de YHWH (Atos 5:9).

Essa é a inflexão teológica do nome Trinitário. Centrada na primeira “pessoa”, ela


modula o discurso sobre a Trindade na chave da aliança com Israel. Longe de sugerir
uma posição substitutiva na qual o Deus do Antigo Testamento seria anulado ou
substituído pelo Deus do Novo Testamento, como se fosse uma evolução, essa inflexão
demanda que toda a história de Deus com Israel conduza à concepção cristã do Deus
Triúno.

3.3.2 - A Inflexão Cristológica

A segunda inflexão é expressa na conhecida fórmula “o Pai e o Filho e o Espírito


Santo”. Aqui, o nome de Deus emerge da experiência particular da vida, morte e
ressurreição de Jesus Cristo, conforme foi recebido e testemunhado pela Igreja
primitiva. Esse nome dá centralidade à Palavra cuidadosa: Cristo é o filtro através do
qual ela se revela. A segunda inflexão identifica Deus de forma simples, estável e
completamente pronunciável, tornando-se essencial para a missão cristã. No Novo
Testamento, os discípulos foram instruídos a batizar em nome desse Deus, um
mandamento que continua vigente até hoje. Por ser uma fórmula destinada ao uso
litúrgico, estabelece o referente da oração em uma única frase coordenada.
Embora única em sua gramática cristológica, essa inflexão está intrinsecamente
entrelaçada com a inflexão teológica que identifica as mesmas três pessoas em uma
expressão diferente, centrada no Tetragrama. Na oração que Jesus ensinou a seus
discípulos e discípulas, a primeira frase – “Pai nosso, que estás nos céus, santificado
seja o teu nome” - não é uma expressão redundante, como se “Pai” agora fosse o nome
de Deus por si só. Em vez disso, as palavras “Pai” e “nome” apontam para duas
dimensões da identificação de Deus por Jesus, ambas essenciais e interpretadas
mutuamente. Como bom judeu, Jesus acreditava no Deus de Israel, identificado pelo
nome impronunciável de YHWH; como judeu singular e único, ele chamava a esse
Deus de Abba. Aquele que ensinou essa oração praticava a santificação do nome de
Deus, se dirigindo a Ele precisamente como “Pai”, em vez de utilizar o nome sagrado
impronunciável.

Ambas as inflexões teológicas e cristológicas identificam a mesma realidade


divina, mas a partir de perspectivas diferentes. A inflexão teológica, centrada no
Tetragrama, serve para identificar Jesus e o Espírito em relação ao Deus de Israel. A
inflexão cristológica, centrada no Verbo feito carne, serve para identificar o Deus de
Israel e o Espírito em relação a Jesus Cristo. Em sua diferença e mútua relação, ambas
as gramáticas ou tonalidades musicais apontam para o mesmo Deus trino de amor que
se comunica.

3.3.3 - A Inflexão Pneumatológica

Essa inflexão opera de modo distinto das outras duas, sempre referindo
explicitamente as três pessoas - se é adequado chamá-las assim. Enquanto a presença e a
ação de Deus de fato alcançam e afetam o mundo, o Espírito constantemente chama a
atenção para a fonte inatingível e para aquilo que emana dessa fonte. A presença do
Espírito testemunha que a Fonte de tudo se comunica efetivamente e que essa palavra é
verdadeiramente eficaz. O Espírito é fundamentalmente inseparável do dinamismo da
manifestação do amor divino.

Revelando uma constância no dom da vida proveniente do Deus vivo, essa


inflexão não possui um vocabulário fixo e imutável, mas ao longo dos séculos adota
formas de expressão características dos discursos de diversos povos, tribos e nações,
trazendo uma nova luz ao serviço do evangelho. Poderia-se dizer que o vocabulário
técnico da Igreja primitiva (“pessoa”, “natureza”, “substância”, “subsistência”...) e a
forma como o integra numa teologia trinitária é um notável exemplo dessa inflexão,
uma vez que representa uma expressão da crença numa filosofia não-bíblica própria da
cultura helenística.

Hoje, múltiplas e diversas representações da Trindade são eloquentemente


expressas no tom dessa inflexão pneumatológica, entoando em notas tríplices ao único
Deus de maneiras muito distintas.

Em termos ontológico-existenciais, John Macquarrie desenvolve a noção de que o


ser divino é a energia que se permite existir e se doa; “Deixar ser” aqui significa
permitir que outros vivam, concedendo vida aos outros. O discurso trinitário das três
“pessoas” aponta para os “movimentos” dessa energia do ser divino, a saber: o Ser
Primordial, como fonte profunda e transbordante de todas as coisas; o Ser Expressivo,
que media esse permitir ser e esse auto sacrifício em seu movimento em direção ao
mundo; e o Ser Unitivo, que fecha o ciclo para concretizar uma rica unidade no amor.

Ao interpretar a Trindade na linguagem da modalidade, Karl Barth escreve sobre


o triplo modo de ser de Deus, revelado na triplicidade de Deus no evento da revelação,
permitindo-nos conhecer Deus como o Revelador, a Revelação e o Revelado.

Construindo o conceito de Deus, Gordon Kaufman concebe o caráter absoluto do


divino, a humanidade divina e a presença divina como três dimensões do único Deus
vivo, um conceito que relativiza todos os ídolos e julga toda a desumanidade humana.

Ciente da tripla experiência que está no cerne da fé hindu e da fé cristã, Raimundo


Panikkar interpreta o mistério sagrado como fonte, ser e retorno ao ser, o que é análogo
à afirmação bíblica de que Deus “torna-se tudo, age para tudo e está em todos” (Hebreus
4:6).

Voltando-me para a forma mais prolífica de dar vida no mundo natural, Johnson
sugere a ideia de uma espiral tripla em constante processo de recombinação para dar à
luz, curar, reparar e criar formas sempre novas no próprio coração do universo.
Walter Kasper imagina três maneiras pelas quais o amor divino subsiste: como
doador, como receptor e doador, e como receptor; ou seja, como fonte, como mediação
e como termo de amor.

Tanto Jürgen Moltmann como Leonardo Boff, utilizando um modelo social, falam
de um Pai materno ou de uma Mãe paterna, de um Jesus solidário com os pobres e
marginalizados, de um Espírito semelhante aos símbolos femininos da Sabedoria e da
Shekinah. Todos esses elementos formam uma comunidade de relações mútuas e
igualitárias que serve de modelo para o objetivo almejado pela comunidade humana e
cósmica.

Em uma abordagem mais pitoresca de um “experimento mental”, Sallie McFague


apresenta a interpretação de Deus como Mãe, Amante e Amigo do mundo, que é o
corpo de Deus. Essas “pessoas” trinitárias estão relacionadas com as três formas de
amor descritas no pensamento grego clássico. A primeira pessoa expressa ágape, a
forma altruísta de amor que não espera ser retribuída, mas permite aos outros viver e
prosperar. A segunda atua segundo o eros, o amor apaixonado pelo outro entrelaçado ao
desejo, que pode trazer sofrimento. O terceiro atua com philía, o amor da amizade que
ultrapassa até as fronteiras da natureza para criar laços nutritivos de unidade.

Uma série de textos bíblicos descreve a obra de Deus usando o simbolismo


feminino da Sabedoria-Sophia, que cria, redime e santifica o mundo. Ao voltar-se para
estes textos, Elizabeth Johnson sugere usar a linguagem que fala do Espírito Sophia, de
Jesus Sophia e da Mãe Sophia, o único Deus que é em Si mesmo a Sabedoria Sagrada:
fonte sem origem de tudo, Sabedoria encarnada no meio do sofrimento da história,
presença móvel e benevolente em todo o mundo.

Os Três não param de girar em torno de si mesmos, em constante inter-relação.


Quaisquer que sejam as categorias utilizadas, o que se pretende é exprimir a presença
em Deus de uma vida que transcende, acompanha e integra o mundo e sua história; um
sentido do Santo, a partir do qual, pelo qual e no qual todas as coisas existem,
proliferam, buscam corajosamente a liberdade e se unem. Usando um modelo oferecido
pela teóloga do século XII Hildegarda de Bingen, há um brilho, um clarão ofuscante e
um fogo, e os três são uma coisa que invade compassivamente toda a criação.
Em última análise, a inflexão pneumatológica não pode ser fixada numa única
forma de linguagem ou num nome específico. Sua tarefa específica é expressar a
plenitude inesgotável do mistério do Deus vivo, uma plenitude para a qual nenhuma
expressão será jamais plenamente adequada.

O nome da Santíssima Trindade é um nome com três inflexões. Juntas, a inflexão


teológica, que se expressa no tom do tetragrama sagrado YHWH, a inflexão
cristológica, que utiliza a gramática do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e a inflexão
pneumatológica, que fala a língua de diferentes povos e tempos, explicitam a fé
trinitária da Igreja de uma forma cuja importância nunca será suficientemente
ponderada. No amplo andaime desta tese, a altura e a amplitude do pensamento criativo
contemporâneo que procura compreender o Deus triúno podem dar a sua própria
contribuição.

Conclui-se que o mistério insondável de Deus é uma comunhão de amor


transbordante que envolve o mundo em graciosa compaixão. “Deus é amor”, escreveu
numa carta um dos primeiros autores cristãos (1 João 4:8), resumindo nesta frase a
experiência da salvação que vem de Deus, falando brevemente de Deus como Amor
numa linguagem típica da história cristã. Por outro lado, o símbolo da Trindade
salvaguarda a experiência cristã de Deus.

4 - Uma Doutrina Muito Prática

Uma teologia trinitária racionalista e disfuncional, divorciada da vida e da ética


cristãs, tem pouco efeito prático. Por outro lado, uma teologia trinitária revitalizada tem
importantes consequências na vida real. A frase com a qual Catherine LaCugna inicia o
seu influente ensaio “Deus para nós” expressa com força esta declaração surpreendente:
“A doutrina da Trindade é, em última análise, uma doutrina prática com consequências
radicais para a vida cristã”. A lógica desta afirmação é muito clara. Deus vive como o
mistério do amor. Os seres humanos são criados à imagem deste Deus. Portanto, uma
vida plena é impossível se não entrarmos também na dinâmica do amor e da comunhão
com os outros.
Em termos práticos, LaCugna propõe que a chave está no Reino de Deus, que
Jesus pregou e pôs em prática. Como se deduz das suas parábolas e da sua práxis, o
Reino de Deus é o governo benéfico do amor salvífico e da comunhão. Como lugar
onde a vontade de Deus é feita na terra como no céu, estabelece um novo tipo de
comunidade que inclui “os menores destes” irmãos e irmãs, onde também estão em casa
a mulher samaritana, o cobrador de impostos e o leproso. Nesta comunidade, a tirania é
proibida à luz do estilo altruísta de Deus; homem e mulher são parceiros iguais, tal
como os judeus e os gregos. O objetivo é a justiça, a paz e o bem-estar de todas as
criaturas. Conhecer a Deus é impossível se você não viver uma vida de amor e
comunhão com os outros.

Dizer que a Trindade é intrinsecamente prática não significa que esta crença
ofereça soluções imediatas para a guerra e a violência, receitas para eliminar a fome ou
soluções concretas para acabar com a desigualdade. Pelo contrário, funciona como fonte
de visão para moldar a nossa ação no mundo, como critério para medir a fidelidade das
nossas vidas e como base para resistir a todas as formas de opressão que minam a
comunidade.

Tanto na Igreja como na sociedade a estratificação de poder, pela qual uns


dominam e outros são subordinados, dá origem a instituições racistas, sexistas, clericais
e predatórias no planeta, além de outros pecados não menos perniciosos. A ideia
revitalizada da Trindade mostra que, longe de existir como um monarca que governa
isolado no seu esplendor e domina pessoas, o Deus vivo é uma comunhão transbordante
de amor altruísta. A importância prática desta noção reside na forma como expõe a
perversão do patriarcado, do racismo e de outros padrões pecaminosos.

Chamada a ser sacramento da salvação do mundo, a Igreja deve ser um símbolo


vivo da comunhão divina derramada sobre o mundo com um amor inclusivo e
compassivo. Somente uma comunidade de pessoas iguais que se relacionam em
profunda reciprocidade e abundam em louvor a Deus e preocupação pelo mundo
necessitado, somente uma Igreja assim responde ao Deus triúno que procura servir.

A teologia trinitária revitalizada deixa bem claro que um Deus concebido como
um monarca soberbamente isolado, observador imparcial e descomprometido, um Deus
que precisa ser convencido a cuidar de suas criaturas simplesmente não existe. “Deus é
Amor”, relaciona-se com o mundo numa tríplice modalidade de comunhão. Assimilar
esta verdade permite-nos reunir novas energias para imaginar o mundo de uma forma
amorosa e agir para contrariar a autodestruição da violência.

A aliança de YHWH com Israel, o ministério e a vida de Jesus Cristo e os laços


nutritivos de comunidade na terra criados pelo Espírito são todos ícones que revelam a
natureza insondável, trina e relacional do Deus único, direcionado compassivamente
para o mundo. À luz do Deus Trinitário, podemos modificar mais uma vez o axioma de
Irineu e afirmar que a glória de Deus é a comunhão de todas as coisas plenamente vivas.
Onde o coração humano é curado, a justiça ganha terreno, a paz torna-se duradoura e o
habitat ecológico é protegido.

5 - Conclusão

Apoiados pela “graça de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo amor de Deus e pela
comunhão do Espírito Santo”, comprometemo-nos com um futuro frutífero que inclua
todos os povos, tribos e nações, todas as criaturas da terra. O Reino de Deus ganha uma
posição firme na história.

A teologia emerge agora de múltiplos centros de vida e de pensamento, tanto


geográficos como existenciais. A universalidade da Igreja é promovida precisamente
pela fidelidade destes centros à busca do Deus vivo nas suas circunstâncias concretas.
Lendo os sinais dos tempos e chamando toda a Igreja ao discipulado, cada um deles
descobre algo da amplitude e comprimento, altura e profundidade do amor de Deus, que
ultrapassa todo o conhecimento, incluindo o dos sistemas teológicos. A busca
continuará enquanto o mistério insondável do Deus vivo convocar a humanidade para o
futuro prometido, mas desconhecido.

Concluímos com a inquietação e busca do poeta e compositor brasileiro Renato


Junior Manfredini, que parece clamar por entendimento do Deus trino em sua
experiência de ser transpassado pelo sofrimento humano, especialmente de seu povo.
Ele busca na experiência do encontro com um Deus imperceptível por aqueles que o
oprimem, o lugar sonhado e possível àqueles e àquelas que percebem com gratidão esse
Deus agindo em suas histórias, pois, no final, é só o Deus trino que em amor se revela e
se relaciona conosco e “me entende do início ao fim”.

“Quem me dera ao menos uma vez


Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha
Quem me dera ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano de chão
De linho nobre e pura seda
Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente
Quem me dera ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
Fala demais por não ter nada a dizer
Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixaram Deus tão triste
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi
Quem me dera ao menos uma vez
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes
Quem me dera ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado
Quem me dera ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi
Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.”

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