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Escatologia e Revelação em Jürgen Moltmann

MIGUEL CABEDO E VASCONCELOS


Faculdade de Teologia, UCP

1. Moltmann começa a sua reflexão por identificar a razão pela qual o redescobrir
da centralidade da Escatologia para a Teologia e a para a fé cristã, que teve início nos
finais do século XIX, não foi capaz de ter a sequência que se exigia. Com efeito,
mesmo com os contributos de Johannes Weiss e Albert Schweitzer, e mais tarde com
o pensamento moderno kantiano, a Escatologia continuava a ser pensada a partir da
noção grega de verdade, quer se tratasse da Escatologia entendida no âmbito da
economia da salvação, da Escatologia entendida como epifania histórica do eschaton,
ou da Escatologia entendida do ponto de vista existencial, como eveação do autêntico
si-mesmo do homem. Para Moltmann, é necessário que se leia tanto o Antigo como o
Novo Testamento à luz da noção bíblica de verdade, enraizada, por sua vez, na noção
de promessa. E deste modo, só deste modo, se poderá superar um cristianismo como o
actual, tantas vezes esvaziado da sua força escatológica, acomodado ao mundo,
instalado como coroa da sociedade, com uma esperança doente, reduzida a uma
retórica estéril ou, pior, a um tratado dogmático.
2. É a partir desta noção de promessa que podemos chegar, na senda de
Moltmann, ao significado originário do vocábulo “revelação”: já não se trata de
querer saber de que modo o Deus eterno de revela epifenomenicamente no temporal,
trata-se de querer saber de que modo o Deus da promessa comprova a sua fidelidade
no presente, revelando-se. Pelo contrário, se nos afastamos de uma tal noção de
promessa, acabamos por cair no dualismo de clara raiz helénica entre razão e
revelação e entre natureza e graça e, por conseguinte, a teologia perde pertinência no
que diz respeito à relação do homem com a realidade. Numa tal lógica, o modo
kantiano de pensar, com o assim chamado método transcendental, leva a uma
escatologia em que é vão reflectir sobre o que é a revelação, porque se encontra
absolutamente fora do nosso campo de visão. Assim, o homem tornar-se-ia consciente
de si mesmo meramente no âmbito prático, e restar-nos-ia apenas postular um
significado ético da revelação e da escatologia, limitando a sua aplicação à moral.
Com efeito, quando nos afastamos da noção de promessa, em vez de uma escatologia
cosmológica ou histórica, ficamos diante de uma escatologia prática de onde sai pelo
menos um caminho para uma escatologia imanente e mecanicista, senão mesmo
materialista; sem a consciência histórica que a noção de promessa transporta, a
história de Cristo passa a ser, para a teologia, uma verdade histórica contigente, e a fé
torna-se uma visão imediata de verdades racionais eternas, em que se nega ou, pelo
menos, se evita a compreensão da realidade como história, impedindo a permanência
das condições de possibilidade da transmissão do evangelho ao mundo.

3. Procurando superar esta limitação, Moltmann prossegue o seu raciocínio


sistematizando a teologia da subjectividade transcendental de Deus e a teologia da
subjectividade transcendental do homem. Trata-se, na realidade, de tomar em
consideração, em primeiro lugar, que Deus não pode ser demonstrado nem por via
cosmológica, nem por via da contigencia e falta de fundamento da existência humana.
Com efeito, Deus apenas se pode demonstrar por si mesmo, naquilo a que Rahner
chamaria ‘autocomunicação’ divina; por essa razão, de Deus não se pode fazer
recomendação nem defesa, apenas se pode crer, porque Ele se faz a si mesmo digno
de fé, por meio apenas da sua Palavra que é Ele mesmo, no acontecimento histórico
do seu filho Jesus Cristo. Este acontecimento de Jesus Cristo, promessa cumprida,
torna-se então, na história, não epifania do presente eterno, mas revelação do futuro
prometido, ainda não ocorrido, mas assim mesmo garantido. A consequência de uma

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tal teologia é a percepção de que nem todos os tempos seriam igualmente imediatos a
Deus, estando Deus mesmo submetido a um processo temporal, ainda que distinto do
da humanidade.

4. Em segundo lugar, no que toca à toelogia da subjectividade trasncendental do


homem, Moltmann procura o caminho de uma demonstração existencial de Deus,
que demanda Deus como o o autêntico “interrogado” correspondente à pergunta que
é a existência humana: não se trata de uma demonstração da existência de Deus, mas
de uma demonstração de Deus pelo existir do homem. Recuperando Agostinho (noli
foras ire, in te ipsum redi; in interiore homine habitat veritas), reconhece-se a imediatez que o
homem tem de si mesmo, por se encotrar dado directamente a si mesmo, de tal modo
que é a sua única segurança reside no facto de que é, conhece e ama. O homem está,
por isso, implantado e suportado na pergunta por Deus que ele mesmo é. Com tudo
isto, estamos, na realidade, diante de um aprofundar e de um prolongar da prova
moral da razão prática e de Deus pode-se dizer que é objectivamente indemonstrável,
mas demonstra-se a si mesmo ao “si-mesmo” que crê. Por isso, só na fé se manifesta o
objecto da fé. Neste sentido, e como consequência, a revelação é o acontecimento da
pregação e da fé, não apenas por aquilo que a pregação afirma e a fé assimila, mas
pelo simples facto de que a pregação acontece, como interpelação e promessa.

5. Depois destas considerações, Moltmann aborda a noção de revelação


progressiva, bem como a ideia de uma escatologia baseada na história da salvação.
Quer no contexto do movimento pietista, quer no período do Iluminismo, a noção de
revelação progressiva estava enraizada na ideia de que a revelação de Deus começara
com a criação e o pecado original, tinha um momento decisivo em Cristo, mas
continuava para além deste momento, algo que tinha paralelismos evidentes com as
concepções deístas e científico-naturais dos séculos XVII e XVIII. A verdade desta
teologia, afirma Moltmann, está no facto de levar a sério a tendência interna e o
horizonte escatológico da revelação histórica de Deus, mas têm como tentação e
limitação a tentativa de interpretar a progressividade escatológica prescindindo da
cruz e da ressurreição, passando a história a ser um substituto de Deus, à maneira
deísta. Consiste, no entanto, num renascimento necessário de um esperar e de um
pensar embuídos de tensão escatológica que permitem o desenvolvimento de uma
autêntica escatologia da revelação.

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6. Com esse fim, partimos do facto de que a teologia cristã fala de revelação
quando predica a identidade do ressusctiado com o crucificado, na lógica de que a
ressurreição acontece no crucificado, e vê nessa identidade um acontecimento de
fidelidade do Pai à sua promessa. Neste sentido, as aparições do ressuscitado são
antecipações da glória ainda não chegada e da soberania de Deus ainda não
realizada: os discípulos vêem em Jesus ressuscitado não uma presença do eterno, mas
daquele que há-de vir (ἐρχόμενος), alguém que é futuro para si mesmo, um futuro
oculto porque ainda não chegado. E é a este futuro que a fé e a esperança se dirigem.

Palma de Cima, 13 de Outubro de 2018

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