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Introdução
Rica em contradições, cheia de tensões culturais, sociais, políticas e religiosas, a Europa
é o lugar em que, nas palavras de Steiner, «o jardim de Goethe quase faz fronteira com
Buchenwald, onde a casa de Corneille con na com o mercado onde Joana d’Arc foi
horrivelmente assassinada»1. O presente documento, inserido no contexto do curso sobre
Igreja de Democracia, pretende aprofundar a identidade da Europa, naquilo que faz dela
algo mais do que mera circunscrição geográ ca e territorial, e considerar o lugar do
cristianismo nessa mesma identidade. Na persecução de um tal objectivo, optámos por
partir de um pequeno ensaio de George Steiner intitulado A ideia de Europa, em que se
distinguem dois momentos distintos. Com efeito, Steiner começa por apontar alguns
elementos que permitem captar as particularidades do continente europeu, para depois
apontar um caminho a seguir. Etnicamente judeu, o olhar de Steiner pareceu-nos relevante
não apenas pela sua eminência intelectual, mas porque Steiner é talvez o pensador mais
destacado – e, em certo sentido, contra-corrente – capaz de recapitular a herança cultural
grega e hebraica, com a liberdade própria de quem, não se inserindo na linhagem crente
1 Cf. George STEINER, A Ideia de Europa, trad. José Miguel Silva, Relógio d’Água, Lisboa, 2017, 33.
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cristã, nos pode falar do Cristianismo de um ponto de vista algo distante, coisa a que, no
contexto da teologia cristã, estamos pouco habituados.
Por outro lado, e porque Steiner apresenta neste ensaio uma visão do Cristianismo que,
em certo sentido, é controversa – como perceberemos, vê com bons olhos a chegada de
uma Europa pós-cristã –, pareceu-nos adequado contrapor o seu pensamento com uma
visão interna do Cristianismo e do modo como a tradição cristã lidou com as culturas que a
precederam e envolveram. Assim, recorremos às contribuições de João Paulo II, Bento XVI
e Francisco, para quem – como também compreenderemos – a ideia de Europa é
indissociável do seu legado cristão.
1.1. A cafetaria
«Desenhe-se o mapa das cafetarias e teremos uma das marcas essenciais da “ideia de
Europa”»2. A Europa é, segundo Steiner, feita de cafés, esses lugares onde há sempre espaço
para mais um, abertos a todos, que funcionam socialmente como uma espécie de clube ou
de porto de abrigo, tornando-se auditório para poetas, tela para artistas, sede de opositores
políticos mais ou menos clandestinos, casa para o debate de ideais, gérmen da loso a e do
pensamento. De Lisboa a Odessa, de Copenhaga a Palermo, os cafés são a ágora ateniense
alargada continentalmente. E encontros históricos, que modelaram a experiência europeia,
tiveram lugar precisamente em cafés.
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em parte, também cultural, e nenhum na América do Norte, se se excluir Nova Orleães
com a sua ligação ao mundo francófono. O bar americano, na sua meia-luz, faz nascer o
jazz, mas não permite escrever tratados losó cos. O pub inglês tem raízes conjunta com a
literatura britânica, mas não disponibiliza jornais aos clientes. E aquilo que se aproxima
dos cafés, em Moscovo, é algo descaracterizado e impessoal.
1.2. A transponibilidade
A Europa tem uma escala humana, perceptível e transponível. Ao contrário da América
do Norte, com o Vale da Morte, os pântanos da Florida ou o Grand Canyon, em contraste
com a América do Sul, com a Amazónia e o Sertão, diferentemente da Austrália, com os
grandes desertos do interior, para não falar de grande parte dos continentes africano e
asiático, a Europa, por seu lado, pode ser percorrida a pé. Os obstáculos existem, mas todos
se ultrapassam. A história da Europa está repleta de peregrinações (de Compostela a
Jerusalém) e de passeios solitários e deambulastes que inspiram poetas, prosadores,
lósofos – recorde-se os peripatéticos – e teólogos, bem como de marchas militares que
atingem distâncias intermináveis (pense-se em Napoleão ou na Wehrmacht). A cultura
europeia, talvez por essa razão, é ritmada quase sempre numa relação íntima com o corpo
humano e, em certo sentido, é, pelo menos em parte, o retomar da vivência daquilo a que
se pode chamar a arte de caminhar.
1.3. O memorial
Um outro elemento que dá corpo à ideia de Europa, na perspectiva de George Steiner, é
a insistência no memorial. Com efeito, as casas, ruas e praças europeias são sempre
designadas com o intuito de preservar a memória de alguém, sejam estadistas, militares,
artistas, lósofos, compositores, poetas, bem como da sua obra. Percorrer as ruas europeias
é um encontro constante com as pequenas tabuletas que recordam os feitos culturalmente
relevantes de tantos homens e mulheres que nos precederam. Esse é aliás um costume que
se mantém em vigor, com novas praças e arruamentos a tomarem o nome de guras
contemporâneas. Há, no entanto, um lado obscuro neste elemento tipicamente
europeudesta, uma vez que não é apenas de feitos heróicos que as pequenas placas
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comemorativas nos recordam. Na realidade, as placas a xadas em tantos lugares na Europa
«também comemoram séculos de massacre e sofrimento, de ódio e de sacrifício humano»3.
Uma vez mais, não é assim na América do Norte, em que as ruas, não raras vezes, são
simplesmente numeradas, como em Nova Iorque, ou têm denominações sem referência
histórica: Sunset Boulevard, Pine Street, Central Park. Neste simples facto reside uma das
distinções mais signi cativas entre Europa e América do Norte. Enquanto a Europa se
a rma como lugar da memória, o Novo Mundo e, concretamente, os Estados Unidos,
autode nem-se como o lugar da futuridade e do nascer do sol e entendem-se como uma
Terra Prometida – é aliás este o título da recente autobiogra a de Barack Obama4 –, sempre
ainda por cumprir. É certo que a Guerra do Vietnam e o 11 de Setembro trouxeram às terras
americanas uma necessidade de estabelecer memorial; mas, aos olhos de Steiner, essa até
essa historiogra a edi cada será de curta vida.
Do outro lado,
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Para Steiner, pode ser lugar comum dizer-se que Karl Marx, Sigmund Freud e Albert
Einstein são os criadores da modernidade como a conhecemos. Mas é certo que a paixão de
Marx pela justiça social e pelo messianismo histórico estava já em Amós e em Jeremias.
Como é também adequado pensar que a hipótese freudiana do assassinato do pai como
crime original tem a sua raiz no pecado original do Génesis. Como é ainda verdadeiro que
a con ança na ordem cósmica de que Einstein parte para as suas investigações tem muito
em comum com a promessa dos salmos de uma harmonia plena e universal.
Porém, a síntese entre judeus e gregos nunca foi fácil, como se vê nos problemas das
comunidades paulinas do Novo Testamento, ou no próprio discurso de Paulo em Atenas
que os Actos dos Apóstolos nos zeram chegar. Com efeito, como a rmou Leo Strauss,
seremos continuamente herdeiros de dois legados e a Europa será perenemente a «história
de duas cidades», porque o sincretismo da Hélade e de Isreal, por engenhoso que tenha
sido ou que possa vir a ser, é e será sempre parcial.
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referido
No seu ensaio O Castelo do Barba Azul, Steiner já se tinha a este « m à vista» da ideia de
Europa, justamente a partir dos efeitos da Segunda Guerra Mundial, naquilo a que
chamou os três «irreparáveis»:
Mas será que o m da Europa é um destino também ele irreparável? Essa é a pergunta a
que só os Europeus de hoje podem responder.
8 George STEINER, O Castelo do Barba Azul, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio d’Água, Lisboa,
1992, 87.
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9 Max WEBER, Science as a Vocation, publicado originalmente como Max WEBER, «Wissenschaft als
Beruf» in Gesammlte Aufsaetze zur Wissenschaftslehre, Duncker & Humblodt, Munique, 1919. A
edição portuguesa da obra de Steiner que neste estudo analisamos pareceu-nos traduzir
erradamente esta citação. Propomos aqui uma tradução alternativa que nos parece mais
correcta.
10 A este propósito, vale a pena ter em conta o pensamento de Raimon Panikkar relativamente ao
binómio Mythos-Logos. Cf. Raimon PANIKKAR, Myth, Faith and Hermeneutics, Paulist, Nova
Iorque, 1979.
11 George STEINER, A Ideia de Europa, 45.
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No mesmo sentido, pressentindo uma indiferença aos con itos antigos entre cristãos e
judeus, olhados cada vez mais como anacrónicos e arcaicos, Steiner vê com pasma
esperança a onda de agnosticismo e de ateísmo que hoje se veri ca no continente europeu.
Uma Europa pós-cristã pode, na sua perspectiva, confrontar e expurgar o anti-semitismo
dos tempos antigos, e alcançar um «humanismo secular» que possa servir como guia
espiritual e intelectual de um mundo actualmente preso a um fundamentalismo homicida,
como o do sul e centro dos Estados Unidos, ou o do Islão. Um tal humanismo secular passa
pelo redescobrir da dignidade humana, que Steiner identi ca com a busca desinteressada
pela sabedoria, pelo conhecimento e pela beleza.
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estranha ironia. Com efeito, é justamente como advogado de um humanismo secular,
radicado na luta pela justiça social, que Marx propõe a sua interpretação da história como
perene luta de classes e a consequente tomada de posse dos «meios de produção» pelo
proletariado.
Com efeito, Steiner advoga, com o intuito de dar continuidade à ideia de Europa, um
humanismo pós-cristão e secular, radicado na herança helénica e hebraica, em termos de
produção cultural e pensamento losó co-cientí co, artístico e moral. Mas humanista,
helénico e hebraico é também o Cristianismo autenticamente considerado, que assim pode
ser, na persecução da continuidade da ideia de Europa, não obstáculo a superar, mas força
a integrar.
14 A expressão pretende ser entendida no seu étimo: «Teo-logia» do amor signi ca a fé num Deus
que se diz – e se entende – como amor.
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Nos três apontamentos que se seguem, procuraremos, pela mão dos últimos três Sumos
Pontí ces, individuar alguns elementos do contributo do Cristianismo para a estruturação
da ideia de Europa, à contra-luz do pensamento de Steiner.
Ao tratar da Europa, por que é que começamos a falar de Evangelização? A razão talvez
esteja simplesmente no facto de ter sido a evangelização que formou a Europa, que deu
início à civilização dos seus povos e às suas culturas. A difusão da fé no continente
favoreceu a formação dos vários povos europeus, colocando neles os gérmenes de culturas
com características diversas, mas interligadas por um património de valores comuns, ou
seja, os valores radicados no Evangelho. Deste modo, desenvolvia-se o pluralismo das
culturas nacionais baseado numa plataforma de valores partilhados pelo continente
inteiro; assim aconteceu no primeiro milénio e, em certa medida, não obstante as
lacerações havidas, também no segundo: a Europa continuou a viver, no pluralismo das
culturas nacionais, a unidade dos valores fundamentais16.
15 Cf. JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, trad. António Ferreira da Costa, Bertrand Editora,
Lisboa, 2005.
16 JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, 90.
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longe dos seus tempos áureos da Atenas lósofa. Depois da primeira evangelização
europeia, os pensadores cristãos são étnica e culturalmente gregos, pelo que o cristianismo,
pensado e dito pelos gregos, opera uma transmutação da célebre paideia grega em paideia
crista. Werner Jaeger, nome incontornável no contexto do cristianismo primitivo e da sua
relação com a civilização grega, a rma:
O longo processo de formação da Europa cristã estende-se por todo o primeiro milénio
e, em parte, também pelo segundo; pode-se a rmar que, durante esse processo, não
apenas se consolidou o carácter cristão da Europa, mas plasmou-se o espírito europeu18.
17 Werner JAEGER, Cristianismo primitivo e paideia grega, Edições 70, Lisboa, 1991, 94.
18 JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, 90-91.
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dois textos: um excerto da monogra a A Igreja e a Nova Europa19, de 1993, onde Ratzinger,
em certo sentido, advoga pela estruturação de uma União Europeia; e o discurso do Papa
Bento XVI no Bundestag20, em 2011.
Na verdade, elas [as fronteiras] serão tanto mais fáceis de respeitar quanto forem
simultaneamente estradas abertas; mais as minorias, de um lado e dei outro, possam viver
a sua peculiar identidade, fecundante inseridas no complexo social; quanto mais deixem
de dominar, seja onde for, os exclusivismos, substituídos em toda a parte pelo vivo
intercâmbio, pelo reconhecimento do pluralismo e pela comunidade que sobre este
último se pode edi car22.
Uma vez mais, o problema do uno e do múltiplo; uma vez mais, a unidade na
diversidade, que aqui aparece como caminho apontado para a preservação da fecundidade
europeia. Assim, aquilo que Steiner apontava como caminho a começar é, em certo sentido,
para Ratzinger, caminho já começado. Do mesmo modo, depois do cair da cortina de ferro,
o processo de reconciliação entre Leste e Oeste pôde nalmente ter continuidade. E,
novamente, é sob a comum participação na ideia de Europa que ele teve pleno
cumprimento, na medida em que, do ponto de vista político, houve disponibilidade
intelectual para aderir à ideia de que aquilo que potencia cada nação não é a contraposição
mas a justaposição, isto é, a consciência de que existem uma ao lado da outra.
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Mas Ratzinger aponta também as contradições deste ideal europeu, sintetizadas em
duas ideias: o nacionalismo, por um lado, e a a rmação unilateral da razão instrumental e a
consequente destruição do ethos, por outro. Para compreender devidamente o primeiro
erro, o do nacionalismo, é necessário recuarmos até ao inicio da Modernidade, em que,
como consequência de sucessivas adaptações políticas e sociais, se estrutura aquilo a que se
dá o nome de «nação». A Revolução Francesa é o acontecimento inaugural, ao operar a
transição da unidade política e social da base monárquica para a base da nacionalidade,
logo seguida pela Alemanha e a Itália, e acompanhadas de perto pela Espanha e pela
Inglaterra, estas últimas motivadas sobretudo pelo peso da expansão colonial, que já tinha
feito surgir a consciência da própria diversidade nacional. A Polónia e a Rússia seguiram o
mesmo caminho, por razões algo distintas que aqui não nos cabem abordar. Mas, recorda
Ratzinger, depois da formação prussiana do Estado nacional alemão, tinha-se conservado
com o Império Austro-húngaro um último reduto de relações políticas não baseadas na
nacionalidade. E é precisamente esse vínculo que a Primeira Guerra destrói.
Com efeito, o princípio da nacionalidade estrita fez que cada nação reconhece em si
mesma o paradigma único da realização do humano, querendo impor a todo o mundo a
sua forma de civilização e o seu poder.
Quanto ao segundo erro, ele tem que ver com três aspectos: a mitização do progresso, a
absolutização da ciência e da tecnologia, e a promessa de uma nova humanidade. Trata-se
de um esquema tríplice que encontra a sua síntese mais coerente no marxismo, também na
medida em que este se propõe como messianismo imanente. No entanto, esta estrutura de
pensamento é uma «estranha trindade» que sobrevive para lá do marxismo e que ocupa o
lugar de Deus, excluindo-o necessariamente, conduzindo inexoravelmente à destruição da
ética.
De volta a Steiner, recordemos que a sua proposta para a preservação da ideia de Europa
consiste na promoção de uma Europa pós-cristã, puri cada do anti-semitismo (que, aos
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Para Ratzinger, porém, se é certo que o itinerário futuro passa pela recusa da fé no
progresso, na medida em que esta investe os recursos de hoje em favor de um amanhã
meramente imaginário, dando corpo ao mito de uma escatologia intra-histórica, não é
menos verdadeiro que urge restituir à ética o seu primado sobre a técnica e sobre a política.
Neste sentido, Ratzinger a rma que a ética não pode prescindir da ideia de Deus, citando
Robert Spaemann:
Se a Europa não exporta a sua fé, a fé em que – para usarmos as palavras de Nietzsche
– «Deus [é] a verdade, a verdade é divina», então exporta inexoravelmente a sua
incredulidade, isto é, a convicção de que não existem de facto verdade nem justiça, que
não existe o bem. […] Sem a ideia de incondicionado, «Europa» não ca a ser mais que
uma noção geográ ca. Aliás, nada mais que um termo para indicar a pátria de origem da
abolição do Homem24.
Uma última nota, para notar que, em conjunto com a sua racionalidade, a Europa deve
comunicar o seu horizonte máximo de signi cado: o conhecimento do Logos como
fundamento último do real25. Anos mais tarde, já como Papa, Ratzinger havia de se referir à
identidade europeia do seguinte modo:
Aqui deveria vir em nossa ajuda o património cultural da Europa. Foi na base da
convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos
humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da
inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade
dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória
cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa
cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do
encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a
24 Robert SPAEMANN, «Universalismus oder Eurozentrismus?» in K. Michalski et al., Europa und die
Folgen, Estugarda, 1988, 322, citado por Joseph RATZINGER, A Igreja e a Nova Europa, 96.
25 Cf. Joseph RATZINGER, A Igreja e a Nova Europa, 97.
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razão losó ca dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma
a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de
Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este
encontro xou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico26.
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Europa passa por compreender a Europa como comunidade de pessoas, e a pessoa como
uma forma eminente de ser, à qual está associado um determinado estatuto irrenunciável,
cuja razão última é a criação à imagem e semelhança de Deus. Com efeito, como se pode
recuperar o primado da ética sobre a política, como propunha Ratzinger, sem esta
referência ao Criador e à condição criatural do homem? Do mesmo modo, se não é por ser
capaz de Deus e, por conseguinte, o único interlocutor do Criador, como poderá o ser
humano distinguir-se dos outros seres?
Numa última nota, queremos ainda acrescentar que, ao olhos do Cristianismo, ser
pessoa é ser redimido, isto é, ter como horizonte último a relação com o absoluto, o que se
opõe tanto à visão optimista e vitalista do bom selvagem, como em Rousseau29,
fundamento do marxismo, embora com aplicação quase exclusiva ao proletariado, como à
visão pessimista em que o homem é o lobo do homem – homo homini lupus – como em
Hobbes.
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Conclusão
A ideia de Europa que George Steiner apresenta é, a nosso ver, profícua e pertinente.
Com efeito, os cinco axiomas que compõem a primeira parte da sua re exão trazem uma
luz nova sobre aquele tecido multi-facetado de causas e raízes do que podemos chamar o
espírito europeu, tal como dão conta da grande potencialidade europeia, isto é, dos
universos de possibilidade que um tal espírito europeu encerra em si mesmo. Em certo
sentido, é fácil reconhecermo-nos no interesse algo vintage pela atmosfera dos cafés
europeus, como é simples identi carmo-nos como peregrinos europeus; de Compostela a
Jerusalém, nunca somos completamente estrangeiros. No mesmo sentido, não tendíamos,
pelo menos até há poucas dezenas de meses, a fazer resistência à história ou a procurar
cancelá-la, e mesmo se hoje derrubamos estátuas e destruímos placas comemorativas é por
importação directa e cega da América do Norte.
No entanto, quanto aos últimos dois elementos da ideia de Europa que Steiner
apresenta, talvez haja mais para dizer. Homero e Moisés serão sempre nossos pais. Mas
Jesus Cristo não é apenas mais um herdeiro da tradição mosaica, e parece-nos redutor não
ver no Cristianismo mais do que uma nota de rodapé da moralidade hebraica. Quando as
autoridades judaicas condenam Jesus à morte, ou quando, depois da guerra judaica do ano
70, os cristãos são expulsos das sinagogas, isso também se deveu à presença algo incómoda
de uma autêntica originalidade cristã. Enraizada sem complexos nem reservas na fé bíblica
véterotestamentária, esta originalidade pode ser vista sob dois aspectos. O primeiro deles é
que o Cristianismo desliga Deus da identi cação com uma Lei de nitiva, dada de uma vez
por todas e válida em qualquer situação histórica ou humana. O refrão do Sermão da
Montanha segue precisamente esta linha: «Ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém,
digo-vos…» (Cf. Mt 5, 21+). Assim, para o Cristianismo, a fé hebraica é certamente herança
recebida, mas não é necessariamente legado transmitido intactamente ou sem
recon guração. Por conseguinte, mais do que nota de rodapé do Judaísmo, o Cristianismo é
um seu desenvolvimento orgânico, e merece ser considerado como tal.
30 Cf. Paul RICOEUR, Sobre a Tradução, trad. Maria J. V. de Figueiredo, Cotovia, Lisboa, 2005.
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fazer? A opção paulina tornou-se metodologia para a evangelização, até aos dias de hoje, e
não passa por trair a língua de partida deixando que algo do seu conteúdo se perca ao
longo do caminho até à língua de chegada, mas antes por procurar criar na língua de
chegada – que, no nosso caso, é o mundo grego – uma hospitalidade para o estrangeiro que
é a língua e partida e uma disponibilidade para reconhecer nesse estrangeiro uma mediação
salví ca. Com efeito, traduzindo-se a partir destes critérios, o Cristianismo foi capaz de se
apresentar como mediação, isto é, como experiência-suporte da síntese entre fé bíblica e
cultura helénica. E, vale a pena dizer, a mesma metodologia continua hoje disponível,
ainda que como algo esquecido que urge recuperar.
31 Paul VALADIER, Cartas a um Cristão Inquieto, trad. António Pinto Ribeiro, Círculo de Leitores,
Lisboa, 1994, 34.
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Bibliogra a
Estudos e artigos
JAEGER, W., Cristianismo primitivo e paideia grega, Edições 70, Lisboa, 1991.
OBAMA, B., A Promised Land, Crown Publishing Group, Nova Iorque, 2020.
PANIKKAR, R., Myth, Faith and Hermeneutics, Paulist, Nova Iorque, 1979.
RATZINGER, J./BENTO XVI, A Igreja e a Nova Europa, trad. Henrique Ruas, Editorial
Verbo, Lisboa, 2005.
RICOEUR, P., Sobre a Tradução, trad. Maria J. V. de Figueiredo, Cotovia, Lisboa, 2005.
ROUSSEAU, J.-J., O Contrato Social, trad. Mário Franco de Sousa, Público, Lisboa, 2010.
STEINER, G., A Ideia de Europa, trad. José Miguel Silva, Relógio d’Água, Lisboa, 2017.
_______, O Castelo do Barba Azul, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio d’Água, Lisboa, 1992.
VALADIER, P., Cartas a um Cristão Inquieto, trad. António Pinto Ribeiro, Círculo de
Leitores, Lisboa, 1994,
Recursos digitais
BENTO XVI, Discurso no Parlamento Federal, acedido a 2 de Maio de 2021 em http://
www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/september/documents/hf_ben-
xvi_spe_20110922_reichstag-berlin.html.
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