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O Cristianismo e a idea de Europa

MIGUEL CABEDO E VASCONCELOS


Faculdade de Teologia, UCP

Introdução
Rica em contradições, cheia de tensões culturais, sociais, políticas e religiosas, a Europa
é o lugar em que, nas palavras de Steiner, «o jardim de Goethe quase faz fronteira com
Buchenwald, onde a casa de Corneille con na com o mercado onde Joana d’Arc foi
horrivelmente assassinada»1. O presente documento, inserido no contexto do curso sobre
Igreja de Democracia, pretende aprofundar a identidade da Europa, naquilo que faz dela
algo mais do que mera circunscrição geográ ca e territorial, e considerar o lugar do
cristianismo nessa mesma identidade. Na persecução de um tal objectivo, optámos por
partir de um pequeno ensaio de George Steiner intitulado A ideia de Europa, em que se
distinguem dois momentos distintos. Com efeito, Steiner começa por apontar alguns
elementos que permitem captar as particularidades do continente europeu, para depois
apontar um caminho a seguir. Etnicamente judeu, o olhar de Steiner pareceu-nos relevante
não apenas pela sua eminência intelectual, mas porque Steiner é talvez o pensador mais
destacado – e, em certo sentido, contra-corrente – capaz de recapitular a herança cultural
grega e hebraica, com a liberdade própria de quem, não se inserindo na linhagem crente

1 Cf. George STEINER, A Ideia de Europa, trad. José Miguel Silva, Relógio d’Água, Lisboa, 2017, 33.

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cristã, nos pode falar do Cristianismo de um ponto de vista algo distante, coisa a que, no
contexto da teologia cristã, estamos pouco habituados.

Por outro lado, e porque Steiner apresenta neste ensaio uma visão do Cristianismo que,
em certo sentido, é controversa – como perceberemos, vê com bons olhos a chegada de
uma Europa pós-cristã –, pareceu-nos adequado contrapor o seu pensamento com uma
visão interna do Cristianismo e do modo como a tradição cristã lidou com as culturas que a
precederam e envolveram. Assim, recorremos às contribuições de João Paulo II, Bento XVI
e Francisco, para quem – como também compreenderemos – a ideia de Europa é
indissociável do seu legado cristão.

1. George Steiner e a ideia de Europa


No ano de 2004, numa conferência na Holanda organizada pelo Nexus Instituut, o
lósofo cultural e crítico literário George Steiner (1929 - 2020) apresentava a sua «Ideia de
Europa», procurando sistematizar em redor de cinco axiomas a idiossincrasia do velho
continente, tendo particularmente em conta os processos sociais, políticos e culturais que o
continente europeu atravessou nos últimos três séculos.

1.1. A cafetaria
«Desenhe-se o mapa das cafetarias e teremos uma das marcas essenciais da “ideia de
Europa”»2. A Europa é, segundo Steiner, feita de cafés, esses lugares onde há sempre espaço
para mais um, abertos a todos, que funcionam socialmente como uma espécie de clube ou
de porto de abrigo, tornando-se auditório para poetas, tela para artistas, sede de opositores
políticos mais ou menos clandestinos, casa para o debate de ideais, gérmen da loso a e do
pensamento. De Lisboa a Odessa, de Copenhaga a Palermo, os cafés são a ágora ateniense
alargada continentalmente. E encontros históricos, que modelaram a experiência europeia,
tiveram lugar precisamente em cafés.

Em contraste, já não há cafés em Moscovo, que para Steiner é já um subúrbio asiático,


muito poucos em Inglaterra, cuja insularidade é não apenas geográ ca mas, pelo menos

2 George STEINER, A Ideia de Europa, 26.

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em parte, também cultural, e nenhum na América do Norte, se se excluir Nova Orleães
com a sua ligação ao mundo francófono. O bar americano, na sua meia-luz, faz nascer o
jazz, mas não permite escrever tratados losó cos. O pub inglês tem raízes conjunta com a
literatura britânica, mas não disponibiliza jornais aos clientes. E aquilo que se aproxima
dos cafés, em Moscovo, é algo descaracterizado e impessoal.

1.2. A transponibilidade
A Europa tem uma escala humana, perceptível e transponível. Ao contrário da América
do Norte, com o Vale da Morte, os pântanos da Florida ou o Grand Canyon, em contraste
com a América do Sul, com a Amazónia e o Sertão, diferentemente da Austrália, com os
grandes desertos do interior, para não falar de grande parte dos continentes africano e
asiático, a Europa, por seu lado, pode ser percorrida a pé. Os obstáculos existem, mas todos
se ultrapassam. A história da Europa está repleta de peregrinações (de Compostela a
Jerusalém) e de passeios solitários e deambulastes que inspiram poetas, prosadores,
lósofos – recorde-se os peripatéticos – e teólogos, bem como de marchas militares que
atingem distâncias intermináveis (pense-se em Napoleão ou na Wehrmacht). A cultura
europeia, talvez por essa razão, é ritmada quase sempre numa relação íntima com o corpo
humano e, em certo sentido, é, pelo menos em parte, o retomar da vivência daquilo a que
se pode chamar a arte de caminhar.

1.3. O memorial
Um outro elemento que dá corpo à ideia de Europa, na perspectiva de George Steiner, é
a insistência no memorial. Com efeito, as casas, ruas e praças europeias são sempre
designadas com o intuito de preservar a memória de alguém, sejam estadistas, militares,
artistas, lósofos, compositores, poetas, bem como da sua obra. Percorrer as ruas europeias
é um encontro constante com as pequenas tabuletas que recordam os feitos culturalmente
relevantes de tantos homens e mulheres que nos precederam. Esse é aliás um costume que
se mantém em vigor, com novas praças e arruamentos a tomarem o nome de guras
contemporâneas. Há, no entanto, um lado obscuro neste elemento tipicamente
europeudesta, uma vez que não é apenas de feitos heróicos que as pequenas placas

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comemorativas nos recordam. Na realidade, as placas a xadas em tantos lugares na Europa
«também comemoram séculos de massacre e sofrimento, de ódio e de sacrifício humano»3.

Uma vez mais, não é assim na América do Norte, em que as ruas, não raras vezes, são
simplesmente numeradas, como em Nova Iorque, ou têm denominações sem referência
histórica: Sunset Boulevard, Pine Street, Central Park. Neste simples facto reside uma das
distinções mais signi cativas entre Europa e América do Norte. Enquanto a Europa se
a rma como lugar da memória, o Novo Mundo e, concretamente, os Estados Unidos,
autode nem-se como o lugar da futuridade e do nascer do sol e entendem-se como uma
Terra Prometida – é aliás este o título da recente autobiogra a de Barack Obama4 –, sempre
ainda por cumprir. É certo que a Guerra do Vietnam e o 11 de Setembro trouxeram às terras
americanas uma necessidade de estabelecer memorial; mas, aos olhos de Steiner, essa até
essa historiogra a edi cada será de curta vida.

1.4. A dupla herança de Atenas e Jerusalém


O peso da memória no panorama europeu deve-se, pelo menos em parte, àquilo que
Steiner chama uma «dualidade primordial», tão sincrética como con itual. Desde tempos
remotos, os pensadores europeus sempre se esforçaram por elaborar, em termos morais,
intelectuais e existenciais, a síntese possível entre a herança da Hélade e a do mundo
hebraico. De um lado, a herança grega está na trilogia composta por música, matemática e
pensamento especulativo, talvez as três declinações do Logos de Heraclito, que originam
um mapeamento da realidade propriamente europeu. Neste sentido, «somos todos gregos»
na medida em que o Ocidente é uma nota de rodapé a Platão, Aristóteles, Plotino,
Parménides e Heraclito.

Do outro lado,

o desa o monoteístico, a de nição de nossa humanidade como estando em diálogo


com o transcendente, o conceito de um Livro supremo, a noção de lei como inseparável de
mandamentos morais, o nosso próprio sentido da história como tempo signi cativo têm
origem na engimática singularidade e dispersão de Israel5.

3 George STEINER, A Ideia de Europa, 33.


4 Cf. Barack OBAMA, A Promised Land, Crown Publishing Group, Nova Iorque, 2020.
5 George STEINER, A Ideia de Europa, 39.

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Para Steiner, pode ser lugar comum dizer-se que Karl Marx, Sigmund Freud e Albert
Einstein são os criadores da modernidade como a conhecemos. Mas é certo que a paixão de
Marx pela justiça social e pelo messianismo histórico estava já em Amós e em Jeremias.
Como é também adequado pensar que a hipótese freudiana do assassinato do pai como
crime original tem a sua raiz no pecado original do Génesis. Como é ainda verdadeiro que
a con ança na ordem cósmica de que Einstein parte para as suas investigações tem muito
em comum com a promessa dos salmos de uma harmonia plena e universal.

Porém, a síntese entre judeus e gregos nunca foi fácil, como se vê nos problemas das
comunidades paulinas do Novo Testamento, ou no próprio discurso de Paulo em Atenas
que os Actos dos Apóstolos nos zeram chegar. Com efeito, como a rmou Leo Strauss,
seremos continuamente herdeiros de dois legados e a Europa será perenemente a «história
de duas cidades», porque o sincretismo da Hélade e de Isreal, por engenhoso que tenha
sido ou que possa vir a ser, é e será sempre parcial.

1.5. A consciência escatológica


Num último elemento, Steiner recorda que a Europa é marcada também pela
autoconsciência do seu m, mais ou menos próximo. A escatologia iminente do
Cristianismo primitivo que esperava o m do tempo como o conhecemos e advogava a
transitoriedade do «esquema deste mundo» (1 Cor 7, 31)6 nunca se perdeu por completo.
Talvez de uma forma secularizada, também Newton se adentrava em numerologias que
permitissem determinar o m. A teoria da história de Hegel e o seu «sentimento de m»,
bem como a arte romântica e as suas curiosas panorâmicas das cidades europeias em
ruínas e em plena destruição, inserem-se igualmente nesta expectativa terminal. As duas
Guerras Mundiais, que podem ambas ser vistas como guerras civis europeias, acentuaram
fortemente esta intuição de que o colapso da Europa havia de chegar, e o cenário de morte
de Auschwitz ou do Gulag são claros indicadores que o m pode mesmo ter chegado. Que
direito temos nós, pergunta Steiner, de sobreviver à nossa suicidária inumanidade7?

6 παράγει γὰρ τὸ σχῆμα τοῦ κόσμου τούτου.


7 George STEINER, A Ideia de Europa, 42.

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referido
No seu ensaio O Castelo do Barba Azul, Steiner já se tinha a este « m à vista» da ideia de
Europa, justamente a partir dos efeitos da Segunda Guerra Mundial, naquilo a que
chamou os três «irreparáveis»:

A ignorância das potencialidades inumanas do homem civilizado, que nós hoje


conhecemos, foi um privilégio imenso. Nas gerações que vão de Voltaire a Arnold, a
ausência deste conhecimento não era a inocência mas antes aquilo que permitia um
projeto de civilização. Talvez possamos agrupar todos estes «irreparáveis» numa rubrica
global. A perda de centralidade geográ co-sociológica, o abandono ou extrema
relativização do axioma do progresso histórico, o nosso sentimento de um fracasso ou de
uma pesada inadequação do saber e das humanidades relativamente à ação social: todos
estes pontos signi cam o termo de uma hierarquia de valores comummente aceite8.

Mas será que o m da Europa é um destino também ele irreparável? Essa é a pergunta a
que só os Europeus de hoje podem responder.

2. George Steiner e o caminho a seguir


Ainda no Nexus Instituut, Steiner alude a duas intuições que, do coração da Europa,
podem apontar um caminho de sobrevivência da ideia de Europa, mesmo depois dos
desastres culturais e humanitários da Primeira Guerra e do Terceiro Reich. A primeira
dessas intuições chega-nos do Inverno de 1918-19 pela voz de Max Weber. A educação
liberal, que até aí representara o momento mais elevado das humanidades, tinha-se
revelado impotente diante da demência política, tal como havia de acontecer nos tempos
do Nacional Socialismo alemão. A gura do intelectual e do pensador urgia ser recuperada.
Weber propõe um caminho:

A democracia deve ser exercida somente onde é apropriado fazê-lo. A formação


cientí ca, porém, […] implica a existência de um certo tipo de aristocracia intelectual. […]
A quem faltar a capacidade para colocar antolhos a si mesmo, por assim dizer, e de se
convencer de que o destino da sua alma depende da correcta interpretação de uma

8 George STEINER, O Castelo do Barba Azul, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio d’Água, Lisboa,
1992, 87.

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particular passagem num manuscrito, será sempre alheio à ciência e ao trabalho


académico9.

Com efeito, o pensador e o professor precisam de estar comprometidos com um espírito


de sacrifício que os preserve da tendência burocrática americana e os concilie com o
intelecto especulativo de primeira ordem – é este o génio europeu, e é precisamente a este
propósito que nos chega uma outra intuição, desta vez pela voz de Edmund Husserl. O
mestre de Edith Stein entende a ideia de Europa a partir da unidade de uma vida espiritual
e de uma actividade criadora com origem na « loso a-ciência» da Grécia antiga. É certo
que outras culturas protagonizaram acontecimentos cientí cos relevantes, e é digna de
referência a estrutura mítico-prática dos modelos extremo-orientais e indianos, mas só os
gregos partiram do espanto para desenvolverem a busca da teoria pela teoria, do
pensamento especulativo e desinteressado, lógico-teórico10. Neste sentido, segundo Steiner,
«a Europa esquece-se de si própria quando se esquece de que nasceu da ideia de razão e do
espírito da loso a»11.

A tendência de americanizar a experiência europeia é tentadora, porque é de facto


substantivo o sucesso daquele federalismo que se estende a perder de vista de Nova Iorque
a Los Angeles. No entanto, à monotonia cultural norte-americana a Europa deveria talvez
responder com a insistência na diversidade linguística, cultural e social que lhe é
característica, porque é certo que o mapa europeu, estilhaçado como sempre foi, tem sido
de uma fecundidade inesgotável. Joga-se aqui, uma vez mais, o célebre problema do uno e
do múltiplo. Levando em conta o que a Europa foi até agora, o futuro credível de uma
união europeia talvez passe pela capacidade de construir uma unidade na diversidade, que
recuse tanto os uniformismos à moda americana, como as pulverizações fragmentárias (e
estas também se têm visto, em ódios étnicos, nacionalismos chauvinistas, e aspirações
regionalistas que, como a rma Steiner, têm constituído o pesadelo europeu).

9 Max WEBER, Science as a Vocation, publicado originalmente como Max WEBER, «Wissenschaft als
Beruf» in Gesammlte Aufsaetze zur Wissenschaftslehre, Duncker & Humblodt, Munique, 1919. A
edição portuguesa da obra de Steiner que neste estudo analisamos pareceu-nos traduzir
erradamente esta citação. Propomos aqui uma tradução alternativa que nos parece mais
correcta.
10 A este propósito, vale a pena ter em conta o pensamento de Raimon Panikkar relativamente ao
binómio Mythos-Logos. Cf. Raimon PANIKKAR, Myth, Faith and Hermeneutics, Paulist, Nova
Iorque, 1979.
11 George STEINER, A Ideia de Europa, 45.

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O assunto complexi ca-se quando chegamos à questão religiosa. Dois milénios de


Cristianismo marcaram decisivamente a ideia de Europa, que jamais lhe será alheia. Para
Steiner, o Cristianismo traz consigo, entre muitas coisas admiráveis, um anti-semitismo
seminal, patente na responsabilização dos judeus pela morte de Jesus Cristo, e na
identi cação de judeu com deicida.

É em nome da vingança sagrada pelo Gólgota que os primeiros pogrons abrasam a


Renânia no início da Idade Média. Desses massacres ao Holocausto vai uma linha
indubitavelmente complexa, por vezes subterrânea, mas também inconfundível. O
isolamento, a perseguição, a humilhação política e social do Judeu têm sido parte
integrante da presença cristã, que tem sido axiomática, no esplendor e abjecção da
Europa. Os campos de morte são fenómenos europeus localizados, por um monstruosa
intuição, na mais católica das nações europeias. Uma vez mais, cruci xos ridicularizam o
perímetro de Auschwitz12.

No mesmo sentido, pressentindo uma indiferença aos con itos antigos entre cristãos e
judeus, olhados cada vez mais como anacrónicos e arcaicos, Steiner vê com pasma
esperança a onda de agnosticismo e de ateísmo que hoje se veri ca no continente europeu.
Uma Europa pós-cristã pode, na sua perspectiva, confrontar e expurgar o anti-semitismo
dos tempos antigos, e alcançar um «humanismo secular» que possa servir como guia
espiritual e intelectual de um mundo actualmente preso a um fundamentalismo homicida,
como o do sul e centro dos Estados Unidos, ou o do Islão. Um tal humanismo secular passa
pelo redescobrir da dignidade humana, que Steiner identi ca com a busca desinteressada
pela sabedoria, pelo conhecimento e pela beleza.

Com o colapso do marxismo na tirania bárbara e na nulidade económica, um grande


sonho, o de que, como proclamava Trotsky, o homem comum seguisse na esteira de
Aristóteles e Goethe, desvaneceu-se. Libertos de uma ideologia falida, esse sonho pode
ser, tem de ser retomado. É só na Europa, talvez, que os necessários alicerces da literacia e
a noção da trágica vulnerabilidade da condition humaine poderiam fornecer uma base. É
entre os lhos de Atenas e Jerusalém – amiúde cansados, confusos, divididos – que
poderíamos retornar à convicção de que uma «vida não examinada» é de facto indigna de
ser vivida13.

No entanto, a nosso ver, a referência ao socialismo e às suas mais bárbaras notas de


rodapé, os comunismos soviético e chinês, como sonho que se desvaneceu assume uma

12 George STEINER, A Ideia de Europa, 49.


13 George STEINER, A Ideia de Europa, 53.

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estranha ironia. Com efeito, é justamente como advogado de um humanismo secular,
radicado na luta pela justiça social, que Marx propõe a sua interpretação da história como
perene luta de classes e a consequente tomada de posse dos «meios de produção» pelo
proletariado.

3. O Cristianismo como elemento fundante da ideia de Europa


As curtas e escassas alusões ao Cristianismo na obra de Steiner que aqui estudamos são,
em certo sentido, surpreendentes. Fará isso sentido? A história da Europa é inseparável da
história da Cristandade, e é inegável o papel do Cristianismo como força viva, orgânica e
espiritual da construção da identidade europeia.

Do mesmo modo, a perspectiva de George Steiner relativamente ao papel negro do


Cristianismo na desgraça europeia suicida do Holocausto é algo em que, previsivelmente,
não nos revemos. É certo que o anti-semitismo fez parte do cânone cristão e que os Pogrons
são episódios de que a Europa cristã precisa de se retratar. Mas será só assim? Na realidade,
o Cristianismo, na medida em que se entende sobretudo como teologia do amor14, inclusive
aos inimigos, tem dentro de si mesmo a cura para as históricas di culdades em lidar com a
diferença (religiosa e não só). Com efeito, estamos em crer que um real sentido de reforma,
como busca de uma delidade evangélica e cristológica sempre maior, tem capacidade para
apresentar um Cristianismo que se puri ca e se torna antídoto e caz, ainda que de forma
lenta e gradual, contra as cada vez mais frequentes ameaças à dignidade humana, sem cair
no risco algo neo-gnóstico em que uma secularidade pós-cristã em busca do conhecimento
e da beleza sempre incorreria.

Com efeito, Steiner advoga, com o intuito de dar continuidade à ideia de Europa, um
humanismo pós-cristão e secular, radicado na herança helénica e hebraica, em termos de
produção cultural e pensamento losó co-cientí co, artístico e moral. Mas humanista,
helénico e hebraico é também o Cristianismo autenticamente considerado, que assim pode
ser, na persecução da continuidade da ideia de Europa, não obstáculo a superar, mas força
a integrar.

14 A expressão pretende ser entendida no seu étimo: «Teo-logia» do amor signi ca a fé num Deus
que se diz – e se entende – como amor.

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Nos três apontamentos que se seguem, procuraremos, pela mão dos últimos três Sumos
Pontí ces, individuar alguns elementos do contributo do Cristianismo para a estruturação
da ideia de Europa, à contra-luz do pensamento de Steiner.

3.1. João Paulo II e o Cristianismo como garante da unidade na diversidade


No último texto que escreveu, Memória e Identidade15, João Paulo II aborda directamente
o contributo do Cristianismo para a génese cultural e social do continente europeu. Para o
papa polaco, a evangelização cristã – que entra na Europa pela mão de Paulo através da
Macedónia (cf. Act 16, 10-15) e mais tarde também pela Península Itálica, a Península
Ibérica, as Ilhas Britânicas e a Escandinávia, a Ocidente, e pelo Bósforo para o mundo
eslavo, a Oriente – é a razão primordial do surgimento da civilização europeia.

Ao tratar da Europa, por que é que começamos a falar de Evangelização? A razão talvez
esteja simplesmente no facto de ter sido a evangelização que formou a Europa, que deu
início à civilização dos seus povos e às suas culturas. A difusão da fé no continente
favoreceu a formação dos vários povos europeus, colocando neles os gérmenes de culturas
com características diversas, mas interligadas por um património de valores comuns, ou
seja, os valores radicados no Evangelho. Deste modo, desenvolvia-se o pluralismo das
culturas nacionais baseado numa plataforma de valores partilhados pelo continente
inteiro; assim aconteceu no primeiro milénio e, em certa medida, não obstante as
lacerações havidas, também no segundo: a Europa continuou a viver, no pluralismo das
culturas nacionais, a unidade dos valores fundamentais16.

Quando acima nos referíamos ao célebre problema do uno e do múltiplo, a propósito do


qual Steiner sugere, por parte dos europeus, uma reacção na diversidade à uniformidade
Norte-americana, podemos ver nesta proposta de João Paulo II talvez não uma solução,
mas um caminho real e consistente. Diante destas considerações, no entanto, o Papa João
Paulo II não esquece nem pretende subestimar a herança helénica, mas reconhece na
acção evangelizadora cristã o papel de assunção, e posterior recon guração, das categorias
propriamente helénicas a nível ético, estético e noético. Com efeito, o cristianismo
primitivo, algo rudimentar do ponto de vista cultural mas dotado de uma energia pulsante,
encontra uma civilização helénica portadora de um legado de uma riqueza ímpar, mas já

15 Cf. JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, trad. António Ferreira da Costa, Bertrand Editora,
Lisboa, 2005.
16 JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, 90.

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longe dos seus tempos áureos da Atenas lósofa. Depois da primeira evangelização
europeia, os pensadores cristãos são étnica e culturalmente gregos, pelo que o cristianismo,
pensado e dito pelos gregos, opera uma transmutação da célebre paideia grega em paideia
crista. Werner Jaeger, nome incontornável no contexto do cristianismo primitivo e da sua
relação com a civilização grega, a rma:

Ao retomar esta ideia central [a ideia de paideia] e ao dar-lhe a sua própria


interpretação, a religião cristã mostrou-se capaz de dar ao mundo mais do que
simplesmente outra seita religiosa. Deixou de se limitar a defender-se e ofereceu a sua
própria loso a positiva como base para uma reconciliação entre o mundo antigo e o
novo17.

Na linha de João Paulo II, podemos compreender como o Cristianismo se helenizou e,


em sentido inverso, como a Hélade se deixou cristianizar, num autêntico diálogo. Porém,
esta intuição fundamental não cou pelos primeiros séculos da era cristã. Se é certo que
nos seus momentos emergentes, o Cristianismo assumiu e modelou segundo novas formas
o património cultural que o precedeu (a herança de Atenas e de Roma), não é menos
verdade que o mesmo aconteceu no que toca aos povos que ele ia encontrando na sua
expansão pelo continente.

O longo processo de formação da Europa cristã estende-se por todo o primeiro milénio
e, em parte, também pelo segundo; pode-se a rmar que, durante esse processo, não
apenas se consolidou o carácter cristão da Europa, mas plasmou-se o espírito europeu18.

No mesmo sentido, a unidade na diversidade, que é seminal da experiência cristã, como


o Pentecostes deixa claro (cf. Act 2, 1-11), pode fazer do Cristianismo uma força activa e
produtora de cultura, pertinente e potenciadora de transformação e conversão nos dias de
hoje, capaz de promover essa mesma fecunda diversidade perorada por Steiner.

3.2. Joseph Ratzinger/Bento XVI e a Nova Europa


O pensamento de Joseph Ratzinger acerca da ideia de Europa e da sua identidade é
extenso e pormenorizado. Por uma questão metodológica, centrar-nos-emos apenas em

17 Werner JAEGER, Cristianismo primitivo e paideia grega, Edições 70, Lisboa, 1991, 94.
18 JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, 90-91.

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dois textos: um excerto da monogra a A Igreja e a Nova Europa19, de 1993, onde Ratzinger,
em certo sentido, advoga pela estruturação de uma União Europeia; e o discurso do Papa
Bento XVI no Bundestag20, em 2011.

No primeiro escrito, Ratzinger, embora tenha o mesmo ponto de partida de Steiner – «o


prestígio da ideia de Europa está hoje ensombrado»21 –, tem uma visão radicalmente
diferente quanto à vitalidade do espírito europeu ao tempo do Segundo pós-guerra. Com
efeito, para o cardeal alemão, em vez de uma hora de «irreparáveis», a hora de a ição foi
aquela em que mais se recordou a ideia de Europa como raíz uni cadora, tanto religiosa e
moral, como civilizacionalmente, tendo «Europa» signi cado uma energia orgânica,
positiva e construtora de paz. E, num tal contexto, a ideia de Europa foi capaz de fornecer
às fronteiras um signi cado mais profundo do que mera separação identitária e
nacionalista.

Na verdade, elas [as fronteiras] serão tanto mais fáceis de respeitar quanto forem
simultaneamente estradas abertas; mais as minorias, de um lado e dei outro, possam viver
a sua peculiar identidade, fecundante inseridas no complexo social; quanto mais deixem
de dominar, seja onde for, os exclusivismos, substituídos em toda a parte pelo vivo
intercâmbio, pelo reconhecimento do pluralismo e pela comunidade que sobre este
último se pode edi car22.

Uma vez mais, o problema do uno e do múltiplo; uma vez mais, a unidade na
diversidade, que aqui aparece como caminho apontado para a preservação da fecundidade
europeia. Assim, aquilo que Steiner apontava como caminho a começar é, em certo sentido,
para Ratzinger, caminho já começado. Do mesmo modo, depois do cair da cortina de ferro,
o processo de reconciliação entre Leste e Oeste pôde nalmente ter continuidade. E,
novamente, é sob a comum participação na ideia de Europa que ele teve pleno
cumprimento, na medida em que, do ponto de vista político, houve disponibilidade
intelectual para aderir à ideia de que aquilo que potencia cada nação não é a contraposição
mas a justaposição, isto é, a consciência de que existem uma ao lado da outra.

19 Joseph RATZINGER/BENTO XVI, «A Europa entre esperanças e perigos» in A Igreja e a Nova


Europa, trad. Henrique Ruas, Editorial Verbo, Lisboa, 2005, 76-96.
20 BENTO XVI, Discurso no Parlamento Federal, acedido a 2 de Maio de 2021 em http://
www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/september/documents/hf_ben-
xvi_spe_20110922_reichstag-berlin.html.
21 Joseph Ratzinger/BENTO XVI, A Igreja e a Nova Europa, 76.
22 Joseph Ratzinger/BENTO XVI, A Igreja e a Nova Europa, 78.

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Mas Ratzinger aponta também as contradições deste ideal europeu, sintetizadas em
duas ideias: o nacionalismo, por um lado, e a a rmação unilateral da razão instrumental e a
consequente destruição do ethos, por outro. Para compreender devidamente o primeiro
erro, o do nacionalismo, é necessário recuarmos até ao inicio da Modernidade, em que,
como consequência de sucessivas adaptações políticas e sociais, se estrutura aquilo a que se
dá o nome de «nação». A Revolução Francesa é o acontecimento inaugural, ao operar a
transição da unidade política e social da base monárquica para a base da nacionalidade,
logo seguida pela Alemanha e a Itália, e acompanhadas de perto pela Espanha e pela
Inglaterra, estas últimas motivadas sobretudo pelo peso da expansão colonial, que já tinha
feito surgir a consciência da própria diversidade nacional. A Polónia e a Rússia seguiram o
mesmo caminho, por razões algo distintas que aqui não nos cabem abordar. Mas, recorda
Ratzinger, depois da formação prussiana do Estado nacional alemão, tinha-se conservado
com o Império Austro-húngaro um último reduto de relações políticas não baseadas na
nacionalidade. E é precisamente esse vínculo que a Primeira Guerra destrói.

O principal resultado político da Primeira Guerra Mundial foi exactamente a


liquidação deste último resto de um antigo ordenamento de Estados e a tentativa de
reestruturar de nitivamente a Europa sobre a base de uma rigorosa aplicação do princípio
de nacionalidade. Tratava-se de um processo recheado de contradições, que veio a achar o
seu terrível epílogo no paroxismo da loucura nacional-socialista23.

Com efeito, o princípio da nacionalidade estrita fez que cada nação reconhece em si
mesma o paradigma único da realização do humano, querendo impor a todo o mundo a
sua forma de civilização e o seu poder.

Quanto ao segundo erro, ele tem que ver com três aspectos: a mitização do progresso, a
absolutização da ciência e da tecnologia, e a promessa de uma nova humanidade. Trata-se
de um esquema tríplice que encontra a sua síntese mais coerente no marxismo, também na
medida em que este se propõe como messianismo imanente. No entanto, esta estrutura de
pensamento é uma «estranha trindade» que sobrevive para lá do marxismo e que ocupa o
lugar de Deus, excluindo-o necessariamente, conduzindo inexoravelmente à destruição da
ética.

De volta a Steiner, recordemos que a sua proposta para a preservação da ideia de Europa
consiste na promoção de uma Europa pós-cristã, puri cada do anti-semitismo (que, aos

23 Joseph Ratzinger/BENTO XVI, A Igreja e a Nova Europa, 82-83.

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olhos do pensador franco-austríaco é intrínseco ao cristianismo), que possa servir como


guia de um humanismo secular que anuncie ao mundo que a dignidade humana reside na
compreensão do que seja a sabedoria, na procura desinteressada de conhecimento, e na
criação de beleza. À luz do pensamento de Ratzinger, uma tal proposta pode ser vista,
então, como uma «trindade» alternativa, em que, como no marxismo, está presente a
promessa de uma nova humanidade e a absolutização da ciência, mas em que se substitui a
crença no progresso pela fé na beleza.

Para Ratzinger, porém, se é certo que o itinerário futuro passa pela recusa da fé no
progresso, na medida em que esta investe os recursos de hoje em favor de um amanhã
meramente imaginário, dando corpo ao mito de uma escatologia intra-histórica, não é
menos verdadeiro que urge restituir à ética o seu primado sobre a técnica e sobre a política.
Neste sentido, Ratzinger a rma que a ética não pode prescindir da ideia de Deus, citando
Robert Spaemann:

Se a Europa não exporta a sua fé, a fé em que – para usarmos as palavras de Nietzsche
– «Deus [é] a verdade, a verdade é divina», então exporta inexoravelmente a sua
incredulidade, isto é, a convicção de que não existem de facto verdade nem justiça, que
não existe o bem. […] Sem a ideia de incondicionado, «Europa» não ca a ser mais que
uma noção geográ ca. Aliás, nada mais que um termo para indicar a pátria de origem da
abolição do Homem24.

Uma última nota, para notar que, em conjunto com a sua racionalidade, a Europa deve
comunicar o seu horizonte máximo de signi cado: o conhecimento do Logos como
fundamento último do real25. Anos mais tarde, já como Papa, Ratzinger havia de se referir à
identidade europeia do seguinte modo:

Aqui deveria vir em nossa ajuda o património cultural da Europa. Foi na base da
convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos
humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da
inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade
dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória
cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa
cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do
encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a

24 Robert SPAEMANN, «Universalismus oder Eurozentrismus?» in K. Michalski et al., Europa und die
Folgen, Estugarda, 1988, 322, citado por Joseph RATZINGER, A Igreja e a Nova Europa, 96.
25 Cf. Joseph RATZINGER, A Igreja e a Nova Europa, 97.

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razão losó ca dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma
a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de
Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este
encontro xou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico26.

3.3. Francisco e o futuro da Europa


A posição do Papa Francisco sobre o contributo do Cristianismo para o futuro da Europa
está, a nosso ver, bem sintetizada no seu discurso aos participantes da conferência
«(Re)Thinking Europe», promovida pela Comissão das Conferências Episcopais da
Comunidade Europeia27. Ali, Francisco re ecte acerca de São Bento e da sua Regra, cujo
prólogo, citando o Salmo 33, supera o classicismo greco-romano no que toca à
compreensão do ser humano. Na Regra, o homem não se de ne a partir da sua função,
quer seja o de cidadão, de militar, ou de servo, mas a partir da sua natureza própria,
tornando-se assim pessoa, constituída à imagem de Deus. A noção de pessoa é, pois, o
primeiro contributo que os cristãos podem dar à ideia de Europa, para a tornar pertinente
uma vez mais. De modo semelhante, enquanto pessoa, o ser humano reconhece-se
intimamente relacional e político (habitante da polis), e tem então condições para se
estabelecer como comunidade, num sentido de mútua pertença inter-pessoal.

Compreende-se mal o conceito de liberdade, interpretando-o quase como se fosse o


dever de estar sós, desvinculados de qualquer laço, e por conseguinte construiu-se uma
sociedade desenraizada e desprovida de sentido de pertença e de herança. […] pessoa e
comunidade são as bases da Europa para cuja construção, enquanto cristãos, queremos e
podemos contribuir28.

O conceito de pessoa é, na realidade, uma descoberta propriamente cristã, que de


Tertuliano chega a Tomás de Aquino, passado pelo menos por Agostinho e Boécio. O
âmbito deste documento não nos permite acompanhar este percurso de fecunda produção
linguística, losó ca e teológica. No entanto, na linha do Papa Francisco, podemos a rmar
que o contributo que, por meio da noção de pessoa, o Cristianismo pode dar à ideia de

26 BENTO XVI, Discurso no Parlamento Federal, acedido a 18 de Maio de 2021 em http://


www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/september/documents/hf_ben-
xvi_spe_20110922_reichstag-berlin.html.
27 FRANCISCO, Discurso aos participantes da Conferência «(Re)Thinking Europe», acedido a 22 de Maio
de 2021 em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/october/documents/papa-
francesco_20171028_conferenza-comece.html
28 Ibid.

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Europa passa por compreender a Europa como comunidade de pessoas, e a pessoa como
uma forma eminente de ser, à qual está associado um determinado estatuto irrenunciável,
cuja razão última é a criação à imagem e semelhança de Deus. Com efeito, como se pode
recuperar o primado da ética sobre a política, como propunha Ratzinger, sem esta
referência ao Criador e à condição criatural do homem? Do mesmo modo, se não é por ser
capaz de Deus e, por conseguinte, o único interlocutor do Criador, como poderá o ser
humano distinguir-se dos outros seres?

No mesmo sentido, ser pessoa é, à luz do pensamento cristão, ocupar no mundo um


lugar que é, em si, radicalmente diverso da oposição entre individualistas e colectivistas – e
ainda outra vez o problema do uno e do múltiplo. Não é que o ser humano, enquanto
pessoa, esteja num equilíbrio entre individualismo e colectivismo; ele está, na verdade, fora
dessa equação, na medida em que individualismo e colectivismo pressupõem ambos um
con ito na relação do homem com a sociedade.Intima e necessariamente referentes um ao
outro, pessoa e comunidade, como recorda Francisco, são os conceitos que permitem
superar esta peleja, recusando, por um lado, a ideia de que o homem se deve defender da
sociedade, e rejeitando, por outro lado, a entronização de uma ideia abstrata de
humanidade, habitualmente futura e idílica – eis uma pista para trazer luz sobre a questão
problemática do humanismo social de Steiner –, em função da qual se sacri ca o homem
concreto, a pessoa devidamente considerada. Na realidade, partir da ideia de indivíduo
humano e não de pessoa humana é ignorar o carácter radicalmente social da pessoa.

Numa última nota, queremos ainda acrescentar que, ao olhos do Cristianismo, ser
pessoa é ser redimido, isto é, ter como horizonte último a relação com o absoluto, o que se
opõe tanto à visão optimista e vitalista do bom selvagem, como em Rousseau29,
fundamento do marxismo, embora com aplicação quase exclusiva ao proletariado, como à
visão pessimista em que o homem é o lobo do homem – homo homini lupus – como em
Hobbes.

29 Num contexto de emergência do Romantismo, Jean-Jacques Rousseau desenvolve a sua teoria


sobre a bondade do homem, que se pode resumir na a rmação com inicia o seu Contrato Social:
«o homem nasceu livre, e em toda a parte está a ferros». Cf. Jean-Jacques ROUSSEAU, O Contrato
Social, trad. Mário Franco de Sousa, Público, Lisboa, 2010, 17.

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Conclusão
A ideia de Europa que George Steiner apresenta é, a nosso ver, profícua e pertinente.
Com efeito, os cinco axiomas que compõem a primeira parte da sua re exão trazem uma
luz nova sobre aquele tecido multi-facetado de causas e raízes do que podemos chamar o
espírito europeu, tal como dão conta da grande potencialidade europeia, isto é, dos
universos de possibilidade que um tal espírito europeu encerra em si mesmo. Em certo
sentido, é fácil reconhecermo-nos no interesse algo vintage pela atmosfera dos cafés
europeus, como é simples identi carmo-nos como peregrinos europeus; de Compostela a
Jerusalém, nunca somos completamente estrangeiros. No mesmo sentido, não tendíamos,
pelo menos até há poucas dezenas de meses, a fazer resistência à história ou a procurar
cancelá-la, e mesmo se hoje derrubamos estátuas e destruímos placas comemorativas é por
importação directa e cega da América do Norte.

No entanto, quanto aos últimos dois elementos da ideia de Europa que Steiner
apresenta, talvez haja mais para dizer. Homero e Moisés serão sempre nossos pais. Mas
Jesus Cristo não é apenas mais um herdeiro da tradição mosaica, e parece-nos redutor não
ver no Cristianismo mais do que uma nota de rodapé da moralidade hebraica. Quando as
autoridades judaicas condenam Jesus à morte, ou quando, depois da guerra judaica do ano
70, os cristãos são expulsos das sinagogas, isso também se deveu à presença algo incómoda
de uma autêntica originalidade cristã. Enraizada sem complexos nem reservas na fé bíblica
véterotestamentária, esta originalidade pode ser vista sob dois aspectos. O primeiro deles é
que o Cristianismo desliga Deus da identi cação com uma Lei de nitiva, dada de uma vez
por todas e válida em qualquer situação histórica ou humana. O refrão do Sermão da
Montanha segue precisamente esta linha: «Ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém,
digo-vos…» (Cf. Mt 5, 21+). Assim, para o Cristianismo, a fé hebraica é certamente herança
recebida, mas não é necessariamente legado transmitido intactamente ou sem
recon guração. Por conseguinte, mais do que nota de rodapé do Judaísmo, o Cristianismo é
um seu desenvolvimento orgânico, e merece ser considerado como tal.

O segundo aspecto da originalidade do Cristianismo reside na sua capacidade de se


traduzir. Paulo é uma gura de charneira justamente porque é o grande tradutor de Jesus
Cristo para o mundo grego. Paulo sabia, no entanto, que há em todos os textos, e sobretudo
quando esses «textos» são uma pessoa, zonas de intraduzibilidade30. Diante delas, o que

30 Cf. Paul RICOEUR, Sobre a Tradução, trad. Maria J. V. de Figueiredo, Cotovia, Lisboa, 2005.

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fazer? A opção paulina tornou-se metodologia para a evangelização, até aos dias de hoje, e
não passa por trair a língua de partida deixando que algo do seu conteúdo se perca ao
longo do caminho até à língua de chegada, mas antes por procurar criar na língua de
chegada – que, no nosso caso, é o mundo grego – uma hospitalidade para o estrangeiro que
é a língua e partida e uma disponibilidade para reconhecer nesse estrangeiro uma mediação
salví ca. Com efeito, traduzindo-se a partir destes critérios, o Cristianismo foi capaz de se
apresentar como mediação, isto é, como experiência-suporte da síntese entre fé bíblica e
cultura helénica. E, vale a pena dizer, a mesma metodologia continua hoje disponível,
ainda que como algo esquecido que urge recuperar.

A partir destas considerações, podemos ver no Cristianismo um humanismo, mas um


humanismo não secular, mas que se a rme «contra todos os transcendentalismos que
crêem honrar ou engrandecer tanto mais Deus quanto mais humilham ou abaixam o
homem»31. Embora também ele helénico e hebraico, o Cristianismo é um humanismo, por
isso, capaz de se auto puri car, segundo a célebre ideia de reforma, a m de se assumir
como se assumira nos primórdios: uma loso a-teologia não académica mas existencial.
Só um tal humanismo pode ser – é essa a nossa conclusão – capaz de dar continuidade à
ideia de Europa.

31 Paul VALADIER, Cartas a um Cristão Inquieto, trad. António Pinto Ribeiro, Círculo de Leitores,
Lisboa, 1994, 34.

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Bibliogra a

Estudos e artigos
JAEGER, W., Cristianismo primitivo e paideia grega, Edições 70, Lisboa, 1991.

JOÃO PAULO II, Memória e Identidade, Bertrand Editora, Lisboa, 2005.

OBAMA, B., A Promised Land, Crown Publishing Group, Nova Iorque, 2020.

PANIKKAR, R., Myth, Faith and Hermeneutics, Paulist, Nova Iorque, 1979.

RATZINGER, J./BENTO XVI, A Igreja e a Nova Europa, trad. Henrique Ruas, Editorial
Verbo, Lisboa, 2005.

RICOEUR, P., Sobre a Tradução, trad. Maria J. V. de Figueiredo, Cotovia, Lisboa, 2005.

ROUSSEAU, J.-J., O Contrato Social, trad. Mário Franco de Sousa, Público, Lisboa, 2010.

STEINER, G., A Ideia de Europa, trad. José Miguel Silva, Relógio d’Água, Lisboa, 2017.

_______, O Castelo do Barba Azul, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio d’Água, Lisboa, 1992.

VALADIER, P., Cartas a um Cristão Inquieto, trad. António Pinto Ribeiro, Círculo de
Leitores, Lisboa, 1994,

WEBER, M., «Wissenschaft als Beruf» in Gesammlte Aufsaetze zur Wissenschaftslehre,


Duncker & Humblodt, Munique, 1919.

Recursos digitais
BENTO XVI, Discurso no Parlamento Federal, acedido a 2 de Maio de 2021 em http://
www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/september/documents/hf_ben-
xvi_spe_20110922_reichstag-berlin.html.

FRANCISCO, Discurso aos participantes da Conferência «(Re)Thinking Europe», acedido a


22 de Maio de 2021 em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/
october/documents/papa-francesco_20171028_conferenza-comece.html.

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