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POR
CURITIBA
2016
2
CDD 230.042
3
CURITIBA
2016
4
5
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................................... 7
ABSTRACT ........................................................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 9
1 O APÓSTOLO PAULO: UM HOMEM EM CRISTO................................................................... 14
1.1 Saulo de Tarso ......................................................................................................................... 14
1.2 Perseguidor da igreja .............................................................................................................. 16
1.3 O encontro com Cristo ............................................................................................................ 17
1.4 Paulo, um servo de Cristo ...................................................................................................... 18
1.5 O entendimento paulino da reconciliação de Deus com a humanidade em Cristo....... 22
1.6 A experiência de Paulo de perder e ganhar em Cristo ...................................................... 23
1.7 O viver e o morrer em Cristo segundo Paulo ...................................................................... 25
2 A EXPRESSÃO “EM CRISTO” NAS CARTAS PAULINAS ...................................................... 28
2.1 Reflexões preliminares............................................................................................................ 28
2.2 O uso paulino das expressões “em Cristo” e “em Adão” na carta aos Romanos ......... 30
2.3 O uso paulino das expressões “em Cristo” e “em Adão” nas cartas aos Coríntios....... 36
2.4 Principais diferenças entre os que estão “em Cristo” e os que estão “em Adão” nas
cartas aos Romanos e aos Coríntios .......................................................................................... 45
2.5 O uso paulino da expressão “em Cristo” na carta aos Gálatas........................................ 48
2.6 O uso paulino da expressão “em Cristo” na carta aos Efésios ........................................ 49
2.7 O uso paulino da expressão “em Cristo” na carta aos Filipenses.................................... 52
2.8 O uso paulino da expressão “em Cristo” na carta aos Colossenses............................... 53
2.9 O uso paulino da expressão “em Cristo” na primeira carta aos Tessalonicenses ........ 54
2.10 O uso paulino da expressão “em Cristo” nas cartas a Timóteo ..................................... 55
2.11 O uso paulino da expressão “em Cristo” na carta a Filemom ........................................ 55
3 O INDIVÍDUO EM CRISTO SEGUNDO PAULO: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
............................................................................................................................................................... 57
3.1 O entendimento paulino sobre Jesus Cristo........................................................................ 57
3.2 O entendimento paulino sobre o ser humano justificado em Cristo ................................ 60
3.3 O entendimento paulino sobre o ser humano santificado em Cristo ............................... 62
3.4 A vida em Cristo segundo Paulo ........................................................................................... 64
3.5 A identidade cristã a partir da expressão paulina “em Cristo”: uma proposta de
construção ....................................................................................................................................... 67
6
CONCLUSÃO ..................................................................................................................................... 73
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 80
7
RESUMO
A expressão “em Cristo” é muito utilizada pelo apóstolo Paulo em suas cartas
e surge numa variedade de contextos. Uma expressão similar é “em Adão”, a qual
Paulo utiliza para comparar e contrastar não somente as obras de Cristo e Adão,
mas também as consequências de suas obras na raça humana. Paulo foi um grande
pensador e é considerado por muitos eruditos como o maior teólogo do cristianismo.
A tradição cristã atribui a ele a autoria de treze cartas do Novo Testamento:
Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2
Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito e Filemom. Muitos pesquisadores, no entanto,
levantam dúvidas quanto a autoria paulina de algumas dessas cartas. Neste
trabalho, as treze cartas acima listadas são consideradas de autoria do apóstolo.
Paulo, em suas cartas, emprega a expressão “em Cristo” em diversos contextos e
situações. Ela abrange mais de um significado, dependendo de cada contexto,
porém cada significado pode ser conectado com os demais, formando um conjunto
de ideias acerca da identidade do indivíduo em Cristo. O conceito paulino sobre a
pessoa de Jesus Cristo e sua obra de salvação, incluindo justificação e santificação,
repercute em seu entendimento sobre o ser humano e a sua nova identidade em
Cristo. Ele estabelece parâmetros pelos quais se pode obter uma maior
compreensão do que significa ser humano em Cristo segundo Paulo.
ABSTRACT
The expression "in Christ" is widely used by the apostle Paul in his letters and
comes in a variety of contexts. A similar expression is "in Adam," which Paul uses to
compare and contrast not only the works of Christ and Adam, but also the
consequences of his works in the human race. Paul was a great thinker and is
considered by many scholars as the greatest theologian of Christianity. The Christian
tradition attributes to him the authorship of thirteen letters of the New Testament:
Romans, 1 and 2 Corinthians, Galatians, Ephesians, Philippians, Colossians, 1 and 2
Thessalonians, 1 and 2 Timothy, Titus and Philemon. Many researchers, however,
raise doubts about the Pauline authorship of some of these letters. In this work, the
thirteen letters listed above are considered to be written by the apostle. Paul, in his
letters, uses the expression "in Christ" in different contexts and situations. It covers
more than one meaning, depending on each context, but each meaning can be
connected with the other, forming a set of ideas about the individual's identity in
Christ. The Pauline concept of the person of Jesus Christ and his work of salvation,
including justification and sanctification, reflected in their understanding of the human
being and his new identity in Christ. It establishes parameters by which one can gain
a greater understanding of what it means to be human in Christ according to Paul.
INTRODUÇÃO
A expressão “em Cristo” aparece nada menos do que 86 vezes nas cartas
paulinas, sem contar expressões análogas que empregam um pronome (“nele”, “no
qual”) e que em seus contextos referem-se a Cristo. Geralmente ocorre na forma
“em Cristo” ou “em Cristo Jesus”, ou ainda “no Senhor” (referindo-se a Cristo) e “no
Senhor Jesus Cristo”.1 Certamente era uma expressão querida para Paulo e de
grande importância para ele. Compreender seu significado em sua totalidade,
apesar dos vários e diversos contextos em que ela se encontra, é uma tarefa
monumental.
Outra expressão utilizada por Paulo é “em Adão”, cujo significado é
contrastado com o da expressão “em Cristo”, resultando numa compreensão mais
ampla do ocorrido aos que pertencem a Cristo.2 Devido a isso, a expressão “em
Adão” é analisada, neste trabalho, de acordo com o contraste que Paulo faz da
mesma com a expressão “em Cristo”.
A pergunta principal cuja resposta esta dissertação visa encontrar é a
seguinte: O que significa a expressão “em Cristo” nos escritos paulinos? Trabalha-se
com a hipótese principal de que estar “em Cristo”, segundo o apóstolo Paulo,
remodela a vida humana em todas as suas esferas e aspectos, à imagem do próprio
Cristo. Tem-se, então, como resultado de estar “em Cristo”, homens e mulheres que
vivem de acordo com os parâmetros do caráter do próprio Cristo, tal como manifesto
em o Novo Testamento. Da pergunta principal derivam-se outros questionamentos,
quais sejam: Como a trajetória do próprio apóstolo Paulo influenciou o seu
pensamento a respeito de viver em Cristo? Como o entendimento paulino da
expressão “em Cristo” pode contribuir para a construção de uma identidade cristã?
Paulo, em seus escritos, fornece inúmeros elementos que auxiliam na busca
pelas respostas. O presente trabalho de pesquisa tem por objetivo investigar a
expressão “em Cristo” no tocante ao seu potencial na construção de uma identidade
cristã que esteja de acordo com o pensamento de Paulo. Para tanto, visa
1
DUNN, James D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 454.
2
RIDDERBOS, Herman. A teologia do apóstolo Paulo: a obra clássica sobre o pensamento do apóstolo dos
gentios. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 59-65.
10
compreender o modo como o apóstolo fez uso da expressão “em Cristo” em suas
cartas.
Para os fins a que se propõe este trabalho, são consideradas como de autoria
do apóstolo Paulo as treze cartas tradicionalmente atribuídas a ele e que fazem
parte do Novo Testamento: Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses,
Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito e Filemom. Não obstante,
obras de autores de diversas vertentes teológicas foram consultadas e utilizadas,
sendo que muitas delas não reconhecem como genuínas algumas dessas cartas. A
pesquisa limita-se às treze cartas paulinas acima alistadas e a diversas obras
teológicas relevantes ao tema, tais como comentários bíblicos, teologias do Novo
Testamento, biografias do apóstolo Paulo, entre outros. A pesquisa, portanto, é
basicamente de cunho teórico, embora trabalhe também com aspectos práticos dos
ensinos paulinos, lidando, igualmente, com assuntos relacionados ao tema da
identidade do ser humano em Cristo de acordo com o pensamento do apóstolo.
Algumas obras foram escolhidas como referenciais teóricos, por serem
pertinentes ao tema proposto na presente dissertação, dedicando capítulos inteiros
ao tema da expressão “em Cristo” nos escritos paulinos. Dentre elas, destacam-se
quatro que se ocupam, em grande parte, do sentido que o apóstolo Paulo faz da
expressão “em Cristo” no tocante à identidade cristã. Os autores dessas quatro
obras, que mais chamaram a atenção do pesquisador, foram os seguintes: Thomas
R. Schreiner, Udo Schnelle, Herman Ridderbos e George Eldon Ladd. Oriundos de
vertentes cristãs diversas, cada um deles apresenta grande quantidade de
informações sobre o pensamento do apóstolo Paulo.
Thomas R. Schreiner é professor da disciplina Interpretação do Novo
Testamento no Southern Baptist Theological Seminary, na cidade de Louisville,
estado do Kentucky, Estados Unidos da América. É autor de diversos livros, dentre
eles, “Teologia de Paulo: o apóstolo da glória de Deus em Cristo”, publicado no
Brasil por Edições Vida Nova.3 Nesse livro, Schreiner trata as treze cartas de Paulo
como autênticas, isto é, escritas (ou ditadas!) pelo próprio apóstolo. Ele aponta a
centralidade de Deus em Cristo como o ponto focal da teologia paulina, para o qual
todos os demais temas (justificação, evangelho, entre outros) convergem. Assim
3
SCHREINER, Thomas R. Teologia de Paulo: o apóstolo da glória de Deus em Cristo. São Paulo: Vida Nova,
2015.
11
sendo, trabalha com temas como o viver para Cristo, a centralidade de Cristo na
história universal, a vida em Cristo e o contraste entre Adão e Cristo. Discorre sobre
o significado da expressão “em Cristo” em diversos contextos. De fato, conecta a
justificação, a santificação e outros componentes da salvação ao “estar em Cristo”.
Também faz ligação entre a doutrina da igreja e a expressão paulina “em Cristo”.
Lançado nos Estados Unidos no ano de 2001 e no Brasil em 2015, é uma obra
recente e de amplo alcance em seu escopo, lidando como mencionado acima, com
o pensamento teológico de todas as treze cartas tradicionalmente atribuídas a
Paulo.
Udo Schnelle é professor de Novo Testamento na Universidade de Halle-
Wittenberg, Alemanha, autor do livro “Paulo: vida e pensamento”,4 publicado no
Brasil pelas editoras Academia Cristã e Paulus em 2010. Trata-se de uma obra
monumental, com mais de 800 páginas, mas de leitura muito agradável e
compensadora. Nela, Schnelle almeja trazer, para a época contemporânea, o
pensamento do apóstolo Paulo, que define o ser humano unicamente a partir do seu
relacionamento com Deus. Isso torna o livro de Schnelle indispensável para a
presente pesquisa. Schnelle trabalha magistralmente com os temas da liberdade e
da ética como oriundas de um fundamento externo, Deus, e não do ser humano em
si mesmo. Assim, estabelece bases para a descoberta da identidade da pessoa
humana em Cristo, o Deus-homem.
Herman Ridderbos foi pastor durante oito anos da Igreja Reformada de
Rotterdam, nos Países Baixos, e professor de Novo Testamento do Seminário
Teológico de Kampen, Alemanha, por quase quarenta anos. Seu livro “A teologia do
apóstolo Paulo”, em sua segunda edição, foi publicado no Brasil pela editora Cultura
Cristã no ano de 2013.5 Nessa obra, Ridderbos lida com o pensamento paulino
trazendo elementos da teologia reformada (calvinista) tradicional. Para Ridderbos, o
ponto de partida para o estudo da teologia paulina deve ser o caráter histórico-
redentor escatológico da proclamação de Paulo, ou seja, a essência da proclamação
paulina está nos atos históricos de Deus por meio de Jesus Cristo. Deus invadiu a
história em Cristo, trazendo uma parte do futuro para o presente, mas a consumação
plena e final em Cristo ainda está por vir. O advento, a vida, morte e ressurreição de
4
SCHNELLE, Udo. Paulo: vida e pensamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
5
RIDDERBOS, 2013.
12
6
LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003.
13
Tarso era a capital da província romana da Cilícia e uma das maiores cidades
do Império. Cidade cosmopolita, possuía escolas famosas onde se ensinava
retórica, matemática, ética, gramática e música. Tinha um grande teatro ao ar livre e
muitos prédios públicos. O famoso general Marco Antônio tivera residência em Tarso
durante algum tempo e permitiu que a cidade tivesse suas próprias leis. O imperador
Augusto, por sua parte, permitiu à cidade que nomeasse seus próprios tribunais e
magistrados. Entreposto comercial, possuía um porto movimentado, aproveitando o
rio Cnido que, ali, desembocava no Mediterrâneo. Gregos, romanos, judeus,
africanos, cretenses, cipriotas e uma infinidade de outras culturas e etnias conviviam
7
HEYER, C. J. den. Paulo: um homem de dois mundos. São Paulo: Paulus, 2009, p. 5-7.
15
em Tarso. Foi nessa cidade que nasceu Saulo, aquele que mais tarde viria a ser
conhecido como o apóstolo Paulo.8 Nascido numa família judaica, de pai fariseu
(Atos dos Apóstolos 23.7), ele era “circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente
ao povo de Israel, à tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu” (Filipenses 3.5),9 mas
também cidadão romano, e por direito de nascimento (Atos dos Apóstolos 22.22-
29).10 Ao longo de sua história, a província da Cilícia havia caído diversas vezes nas
mãos de generais romanos, como Pompeu e Marco Antônio. A concessão de
cidadania romana para indivíduos ou famílias que prestavam algum serviço especial
para Roma era um costume antigo. Talvez esse tenha sido o caso do pai ou do avô
de Saulo. De qualquer modo, sua família fazia parte de uma elite social.11 É com o
nome romano que ele se identifica em suas cartas, e provavelmente a noção popular
de que ele assumiu esse nome após a sua conversão ao cristianismo está
equivocada. Naquela cultura, era comum as pessoas terem mais de um nome. Seu
nome judeu, Saulo, provavelmente era uma homenagem ao mais famoso membro
da tribo de Benjamim, o primeiro rei de Israel, Saul. Além do nome judaico, ele tinha
também um nome romano, Paulo.12
Em algum momento de sua infância ou adolescência, Saulo foi enviado a
Jerusalém, a fim de estudar com Gamaliel, um dos mais conceituados rabinos da
Judeia (Atos dos Apóstolos 22.3). Lá ele aprendeu a debater no estilo de perguntas
e respostas chamado de “diatribe”,13 bem como aprofundou seus estudos das
Escrituras hebraicas, preparando-se para ser um futuro rabino ou, quem sabe,
membro do Sinédrio, o tribunal religioso supremo dos judeus. Ele se tornou um
fariseu14 zeloso e “irrepreensível” (Filipenses 3.6).15 Tempos depois ele aparece no
contexto do martírio de Estêvão, cuidando das roupas daqueles que apedrejavam o
8
BALL, Charles Ferguson. A vida e os tempos do apóstolo Paulo. Rio de Janeiro: CPAD, 1998, p. 7-11.
9
Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2000. Todas as
citações bíblicas deste trabalho serão feitas a partir dessa versão, salvo indicação em contrário.
10
BORNKAMM, Günther. Paulo: vida e obra. Santo André: Academia Cristã, 2009, p. 44-46.
11
BRUCE, F. F. Paulo: o apóstolo da graça, sua vida, cartas e teologia. São Paulo: Shedd, 2003, p. 33-34.
12
BORNKAMM, 2009, p. 46-47.
13
“Diatribe” significa “passatempo”, “entretenimento”. É um estilo de discussão que evita reflexões filosóficas,
morais ou religiosas e linguagem técnica elevada, preferindo uma forma vivaz de diálogo, com sentenças curtas
e objeções de um adversário fictício (BORNKAMM, 2009, p. 52).
14
O farisaísmo foi um movimento surgido a partir da revolta dos macabeus contra os governantes helenistas da
Palestina, em 167-164 a.C. Eles entendiam que eram chamados para se opor à helenização dos costumes
judaicos, e lutavam pelo que consideravam uma religião e uma nação purificadas. Viviam de forma austera
observando rigorosamente a lei mosaica e os preceitos dos rabinos. Nunca foram muito numerosos, mas sempre
foram muito influentes (HEYER, 2009, p. 23-26).
15
SWINDOLL, Charles R. Paulo: um homem de coragem e graça. São Paulo: Mundo Cristão, 2003, p. 20-21.
16
seguidor de Cristo (Atos dos Apóstolos 7.58; 8.1). Sua participação indicava o nível
de seu comprometimento com o judaísmo.16
“Eu também estava convencido de que deveria fazer todo o possível para me opor
ao nome de Jesus, o Nazareno. E foi exatamente isso que fiz em Jerusalém. Com
autorização dos chefes dos sacerdotes lancei muitos santos na prisão, e quando eles
eram condenados à morte eu dava o meu voto contra eles. Muitas vezes ia de uma
sinagoga para outra a fim de castigá-los, e tentava forçá-los a blasfemar. Em minha
fúria contra eles, cheguei a ir a cidades estrangeiras para persegui-los” (Atos dos
Apóstolos 26.9-11).18
Foi nesse zelo perseguidor que ele decidiu perseguir os cristãos na cidade de
Damasco, e para lá partiu, munido de autorização do sumo sacerdote (Atos dos
Apóstolos 9.1,2). Damasco era uma cidade importante, com uma grande população
de judeus. Fazia parte da província romana da Síria e de Decápolis, uma liga de
cidades-estado. Saulo queria impedir que o “Caminho”, como o cristianismo era
conhecido então, se alastrasse naquela metrópole.19
16
LOPES, Hernandes Dias. Paulo: o maior líder do cristianismo. São Paulo: Hagnos, 2009, p. 21.
17
BRUCE, 2003, p. 65-67.
18
LOPES, 2009, p. 18.
19
MARSHALL, I. Howard. Atos dos apóstolos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 162-
163.
17
20
SCHNELLE, 2010, p. 31.
21
STOTT, John R. W. A mensagem de Atos: até os confins da terra. São Paulo: ABU, 1994, p. 189-194.
22
SWINDOLL, 2003, p. 42-43.
23
SCHNELLE, 2010, p. 100-107.
18
Paulo agora pertencia a Cristo. Segundo Gálatas 1.17, ele rumou para a
“Arábia” logo após recuperar a visão por meio de Ananias (Atos dos Apóstolos 9.10-
19), “por isso talvez sua pregação nas sinagogas de Damasco deva ser colocada
depois que ele retornou da sua viagem à Arábia (sobre a qual Lucas não tem nada a
dizer)”24, conforme Atos dos Apóstolos 9.19-30. Seja como for, Paulo morrera para a
velha vida sob a lei e sob o farisaísmo, e agora desejava consagrar-se a uma vida
de serviço a Cristo. Ao cair diante da sua glória, se tornara servo de Cristo para todo
o sempre.25 Jesus Cristo se tornou o centro de sua vida, e Paulo deixou isso bem
claro em seus escritos, anos depois.
Paulo compreendeu que a lei mosaica era um recurso temporário até a vinda
de Cristo (Gálatas 3.24). Cristo é a única semente de Abraão, e a entrada na família
de Abraão se dá por meio de Cristo, unicamente (Gálatas 3.16). Agora todos, judeus
e gentios, podem fazer parte da família de Abraão em Cristo Jesus, pela fé (Gálatas
3.26-29).26 Por isso ele diz, em outra carta, que os gentios, que antes estavam
afastados do povo de Deus, foram aproximados mediante o sangue de Cristo.
Judeus e gentios constituem, em Cristo, uma só família (Efésios 2.11-22), pois
“Jesus conseguiu criar, de fato, uma nova sociedade, uma nova humanidade, em
que a alienação cedeu lugar à reconciliação, e a hostilidade à paz. E esta nova
união humana em Cristo é o penhor e a antevisão daquela união final sob a
soberania de Cristo”,27 que Paulo alude em Efésios 1.10, “de fazer convergir em
Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos
tempos”. “Jesus Cristo é o cumprimento da história da salvação, pois, para todas as
promessas de Deus, nele está o sim”28 (2 Coríntios 1.20).
Na carta aos Filipenses, Paulo, preso, sem saber se vai viver ou morrer,
afirma que deseja engrandecer a Cristo, de um jeito ou de outro, fazendo a célebre
declaração: “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Filipenses 1.21).
24
BRUCE, 2003, p. 76.
25
BALL, 1998, p. 67-68.
26
SCHREINER, 2015, p. 20.
27
STOTT, John R. W. A mensagem de Efésios. 2. ed. São Paulo: ABU, 2007, p. 61.
28
SCHREINER, 2015, p. 23.
19
Se morrer, ele estará com Cristo; se viver, ele estará em Cristo, pregando o
evangelho.29
Em Efésios 1.3-14 são relatadas as bênçãos espirituais que pertencem aos
crentes em Cristo. Eles são escolhidos antes da fundação do mundo para serem
santos e adotados como filhos por meio de Jesus Cristo (Efésios 1.4,5), tudo isso
para o louvor da sua gloriosa graça (Efésios 1.6). “Nele”, isto é, em Cristo, os crentes
têm a redenção, o perdão dos pecados (Efésios 1.7) e conhecem o mistério da
vontade de Deus, cujo centro é Cristo (Efésios 1.9,10). Recebem a herança que lhes
foi predestinada para que suas vidas glorifiquem a Deus em Cristo (Efésios 1.11,12).
Quando creram, foram selados em Cristo com o Espírito Santo, para o louvor da
glória de Deus (Efésios 1.13,14). Tudo o que os crentes recebem de Deus, eles
recebem “em Cristo”.30 Paulo não concebe mais a existência fora de Cristo. Ele se
gloria em Deus e glorifica a Deus somente por meio de Cristo (Romanos 5.1,2,11).31
Viver em Cristo inclui o sofrimento, o sofrer por Cristo, e Paulo sabia disso
muito bem. Na carta aos Filipenses escreveu: “Pois a vocês foi dado o privilégio de
não apenas crer em Cristo, mas também de sofrer por ele” (Filipenses 1.29),
aludindo que ele, Paulo, também estava sofrendo por Cristo (Filipenses 1.30). Em
Cristo, até o sofrimento é uma honraria, no serviço a ele. Em sua carta mais
autobiográfica, Paulo defende seu apostolado apresentando o sofrimento como uma
das principais credenciais (2 Coríntios 6.3-10),32 algo que os falsos apóstolos
desconhecem. Mais adiante (2 Coríntios 11.16-33), ele fornece mais um catálogo de
sofrimentos pelos quais passou em seu labor apostólico. Começa de modo geral,
citando encarceramentos, açoites, perigo de morte (2 Coríntios 11.23), mas logo
torna-se mais específico: foi açoitado cinco vezes pelos judeus, três vezes fustigado
com varas,33 uma vez apedrejado, três vezes sofreu naufrágio, passou uma noite e
29
HAHN, Eberhard; BOOR, Werner de. Cartas aos Efésios, Filipenses e Colossenses. Curitiba: Esperança,
2006, p. 195.
30
SCHREINER, 2015, p. 29.
31
PIPER, John. Em busca de Deus: a plenitude da alegria cristã. 2. ed. São Paulo: Shedd, 2008, p. 55-57.
32
KRUSE, Colin G. II Coríntios: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 143-144.
33
Os judeus castigavam com açoitamento de acordo com o mandato de Deuteronômio 25.1-5, que estipulava um
número máximo de 40 açoites. Para não correr o risco de cometer um erro e passar desse número, os judeus
aplicavam “menos um”, isto é, 39 açoites. Os romanos não conheciam tais limitações, seja com açoites, seja com
varas (LOPES, 2009, p. 97-98).
20
um dia à deriva no mar (2 Coríntios 11.24, 25).34 Além disso, enfrentou diversos
outros perigos em suas viagens, nos rios, nos desertos, no mar, na cidade,
ameaçado ora por assaltantes, ora por gentios, ora por seus próprios compatriotas
judeus, e, o mais terrível, por falsos irmãos (2 Coríntios 11.26). Apesar disso,
sempre trabalhou arduamente, passou noites sem dormir, muitas vezes ficou sem ter
o que comer ou beber, passou frio e privação até de vestuário. Mas o que lhe
preocupava mesmo era a situação das igrejas (2 Coríntios 11.27-29). Ele não omite
nem mesmo a humilhação que passou, ao ser descido da muralha de Damasco, por
alguns irmãos, num cesto, a fim de escapar das autoridades locais (2 Coríntios
11.30-33). Por tudo isso, Paulo podia dizer: “Sem mais, que ninguém me perturbe,
pois trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gálatas 6.17). Isso não era
misticismo, mas de fato Paulo carregava em seu corpo inúmeras cicatrizes
adquiridas em seu serviço a Cristo, que ele chamava de “marcas de Jesus”. Até
mesmo suas cicatrizes pertenciam a Cristo. Mais do que isso, eram marcas de sua
pertença a Cristo, como as marcas de um escravo.35
Paulo tinha consciência de que era um “homem em Cristo” e que Jesus tinha
sofrido na terra para libertar seu povo do cativeiro do pecado e da morte espiritual. O
Cristo exaltado estava, agora, imune a esses sofrimentos, porém ainda contava
como seus os sofrimentos de seu povo – como Paulo descobriu na estrada de
Damasco, ao ouvir a pergunta do Cristo ressurreto: “Saulo, Saulo, por que você me
persegue?” (Atos dos Apóstolos 9.4). Portanto, Paulo assumiu o sofrimento como
parte integrante, ainda que dolorosa, de sua vida em Cristo. Assim, ele podia se
gloriar nas tribulações (Romanos 5.3), a fim de participar dos sofrimentos de Cristo
(Filipenses 3.10,11), não para a salvação de alguém (isso somente Cristo poderia
fazer, e ele já tinha feito), mas para levar a palavra da salvação àqueles que ainda
não a haviam recebido (2 Coríntios 1.6). Ele também sabia que, quanto mais desses
sofrimentos recebesse pessoalmente, menos deles restariam para seus
companheiros cristãos.36 “Agora me alegro em meus sofrimentos por vocês”, ele
escreveu aos colossenses, “e completo no meu corpo o que resta das aflições de
34
Mesmo naqueles tempos, nem toda viagem marítima acabava em catástrofe. Paulo deve ter viajado muito para
ter sofrido “três naufrágios” até a época da redação de 2 Coríntios. Tempos depois, ainda sofreria um quarto
naufrágio, descrito em Atos dos Apóstolos 27.27-44, por ocasião de sua viagem a Roma (BOOR, Werner de.
Cartas aos Coríntios. Curitiba: Esperança, 2004, p. 461).
35
STOTT, John R. W. A mensagem de Gálatas: somente um caminho. São Paulo: ABU, 2007, p. 164-165.
36
BRUCE, 2003, p. 133.
21
Cristo, em favor do seu corpo, que é a igreja” (Colossenses 1.24). Paulo não sofreu
pelos pecados dos outros como Cristo sofreu, contudo, os sofrimentos do apóstolo
foram o meio pelo qual o evangelho foi levado aos gentios e, nesse sentido, foram
uma consequência dos sofrimentos de Cristo.37 A proclamação apostólica da
salvação acarretava sua dose de sofrimento para os proclamadores, assim como a
salvação em si causou sofrimento no Salvador. Paulo via no sofrimento mais um elo
de sua ligação com Cristo.38
Mas a alegria também faz parte da vida em Cristo, e mesmo em meio a
tribulações, quem está em Cristo ainda pode viver com alegria. Paulo testifica disso
especialmente em sua carta aos Filipenses, a qual escreveu numa prisão, a fim de
convencer seus leitores a se alegrarem naquilo que realmente importa, a saber,
Jesus Cristo e o progresso do evangelho.39 Ao conclamar os filipenses para que se
alegrem (por exemplo, Filipenses 3.1; 4.4), Paulo não fundamenta essa alegria num
otimismo cego e alienado, mas a fundamenta “no Senhor”. É em Cristo que Paulo e
todo aquele que está em Cristo podem e devem se alegrar, pois “perto está o
Senhor” (Filipenses 4.5) e a confiança que o crente tem em Cristo faz com que ele
se alegre em Cristo, apesar das circunstâncias adversas pelas quais possa estar
passando.40 A prisão e até mesmo a possibilidade de martírio não impedem Paulo
de se alegrar no Senhor e de convocar os filipenses a se alegrarem, igualmente, em
Cristo.41
Portanto, em Cristo, Paulo se libertou do peso da obediência à lei mosaica
como condição para a salvação, bem como das regras e costumes do farisaísmo.
Entendeu que todas as bênçãos espirituais eram suas em Cristo. Isso revolucionou
o seu modo de pensar e de agir. Perdeu a confiança em seus próprios méritos
baseados na observância da lei de Moisés. Paulo compreendeu, igualmente, que o
sofrimento no presente fazia parte dessa nova vida, mas que, em Cristo, ele poderia
se alegrar mesmo em meio a aflições.
37
SCHREINER, 2015, p. 449.
38
LOPES, Augustus Nicodemus. A supremacia e a suficiência de Cristo: a mensagem de Colossenses. São
Paulo: Vida Nova, 2013, p. 48-50.
39
THIELMAN, Frank. Teologia do Novo Testamento: uma abordagem canônica e sintética. São Paulo: Shedd,
2007, p. 382-383.
40
MARTIN, Ralph P. Filipenses: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 168-169.
41
SCHNELLE, 2010, p. 479.
22
Depois que Cristo morreu vicariamente na cruz, a sentença condenatória de Deus não atinge
mais os crentes em Cristo. Isto vale porque Deus se voltou de uma vez por todas aos homens
ao reconciliar o mundo consigo mesmo (2Co 5.18-20). A doutrina das sinagogas judaicas
ensinava que Deus precisaria ser reconciliado – por exemplo, por meio de um sacrifício a ser
oferecido pelo homem. Aqui não é assim! Deus mesmo se reconcilia com o homem. A
remoção da sentença condenatória é um ato de Deus. A sentença foi executada em Cristo.45
42
LADD, 2003, p. 615.
43
STURZ, Richard J. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 439.
44
LADD, 2003, p. 616.
45
HÖRSTER, Gerhard. Teologia do Novo Testamento. Curitiba: Esperança, 2009, p. 180.
46
RIDDERBOS, 2013, p. 210.
23
uma salvação meritória, por meio das obras da lei. A seguir, ele declara que o
verdadeiro povo de Deus é formado por aqueles que adoram pelo Espírito de Deus,
se gloriam em Cristo Jesus e não têm confiança alguma na carne, isto é, em si
próprios, em sua pretensa justiça diante de Deus (Filipenses 3.1-3).51
A partir daí Paulo começa a falar um pouco sobre a sua própria vida, num tom
biográfico. Ele começa dizendo que, se alguém poderia ter razões para confiar em si
mesmo, esse seria ele mesmo, Paulo (Filipenses 3.4). Afinal, ele havia sido
“circuncidado no oitavo dia de vida” e fazia parte do povo de Israel e da tribo de
Benjamim, sendo “hebreu de hebreus”, e, além disso, fariseu (Filipenses 3.5). Havia
perseguido a igreja em seu zelo, sendo irrepreensível no tocante à lei (Filipenses
3.6). Isso deixaria qualquer judeu orgulhoso. De fato, seria considerado como lucro.
Ser circuncidado, israelita da tribo de Benjamim e filho de pais hebreus eram
grandes vantagens, mas ele não as tinha escolhido. Simplesmente tinha nascido
assim. Mas ter escolhido ser fariseu, e fariseu zeloso, observador das minúcias da
lei, era resultado de seu esforço pessoal.52 Porém, para Paulo, tudo isso agora era
perda, “por causa de Cristo” (Filipenses 3.7).
Ele passou a considerar “tudo” como perda, em comparação com a “suprema
grandeza do conhecimento de Cristo Jesus”, o seu Senhor. Chegou a considerar
tudo aquilo do qual outrora se orgulhara como refugo, como “esterco” (Filipenses
3.8).
Refugo (gr. skybala) é um termo vulgar, que significa excrementos humanos, ou restos de
alimento destinados à lata de lixo. A palavra “estrume” (ARC, esterco) transmite o significado,
a um leitor moderno, embora nem mesmo tal termo expresse repugnância, de maneira
enfática. Assim, todos os privilégios cerimoniais, religiosos, do passado, são
desdenhosamente jogados de lado, como lixo.53
51
HENDRIKSEN, William. Filipenses. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 193-199.
52
SHEDD, Russell P.; MULHOLLAND, Dewey M. Epístolas da prisão: uma análise de Efésios, Filipenses,
Colossenses e Filemom. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 167.
53
MARTIN, 1985, p. 145.
25
Queria conhecer a Cristo cada vez mais, inclusive o poder da sua ressurreição e a
participação em seu sofrimento, para, de alguma forma (martírio, morte natural ou
transformação na volta de Cristo) “alcançar a ressurreição dentre os mortos”
(Filipenses 3.10,11).54
Paulo reconheceu que ainda não havia alcançado tudo isso, mas prosseguia
rumo ao alvo, a fim de ganhar o prêmio do seu chamado em Cristo, e ele fazia isso
esquecendo o que ficava para trás e avançando, resolutamente, para adiante
(Filipenses 3.12-14). Esse prêmio não era algo etéreo e inatingível, mas tratava-se
da ressurreição para fora dos mortos, da vida indestrutível que ele receberia um dia,
em Cristo (Filipenses 3.20,21).55
Portanto, Deus chama para a salvação “em Cristo” (Filipenses 3.14), e
concede a justiça aos crentes mediante a fé “em Cristo” (Filipenses 3.9). Por tudo
isso, Paulo exorta seus leitores para que se gloriem somente em Cristo (Filipenses
3.3).56 Para ele, Cristo eclipsa tudo o mais. Estar em Cristo é deixar para trás a velha
vida sem Deus e avançar, com entusiasmo e dedicação, para o prêmio do chamado
celestial de Deus em Cristo. A vida cristã começa em Cristo e avança para Cristo.
54
SHEDD; MULHOLLAND, 2005, p. 173-176.
55
HAHN; BOOR, 2006, p. 243-247.
56
MARSHALL, I. Howard. Teologia do Novo Testamento: diversos testemunhos, um só evangelho. São Paulo:
Vida Nova, 2007, p. 305.
57
SCHNELLE, 2010, p. 489.
58
Nessa carta Clemente refere-se várias vezes a Paulo, tornando-se uma das fontes antigas a respeito do período
intermediário entre as duas prisões que o apóstolo sofreu em Roma (CAIRNS, Earle E. O cristianismo através
dos séculos: uma história da igreja cristã. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 57).
59
BRUCE, 2003, p. 434-435.
26
60
SCHNELLE, 2010, p. 485.
61
BRUCE, 2003, p. 436. Outros eruditos arriscam datas diferentes, como 62 ou 64 d.C. (SCHNELLE, 2010, p.
491).
62
MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Jesus e Paulo: vidas paralelas. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 120.
63
MacARTHUR, John. O livro sobre liderança. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 156.
64
MURPHY-O’CONNOR, 2008, p. 124.
65
LOPES, 2009, p. 148-149.
66
SCHNELLE, 2010, p. 489.
67
STOTT, John R. W. A cruz de Cristo. São Paulo: Vida, 2006, p. 22.
27
Paulo era cidadão romano, e, segundo a tradição, foi decapitado num lugar
chamado Aquae Salviae (hoje Tre Fontane), perto do terceiro marco da estrada para
Óstia.68
Foi por meio de Paulo que o evangelho chegou à Europa.69 E foi a Paulo que
Deus confiou a missão de anunciar que em Cristo havia terminado a longa espera
da qual testemunhavam as Escrituras hebraicas, que aspiravam a uma renovação
total do homem e do mundo por meio de uma nova criação. Foi a Paulo que coube
demonstrar que em Cristo se cumpriu a esperança dos profetas.70
68
BRUCE, 2003, p. 437.
69
STOTT, 1994, p. 291.
70
REY, Bernard. Nova criação em Cristo no pensamento de Paulo. São Paulo: Academia Cristã, 2005, p. 313.
28
Uma simples observação preliminar do uso que Paulo faz dessa expressão,
em contextos variados no desenrolar de suas argumentações em suas diversas
epístolas, já revela elementos importantes e detalhes interessantes. Às vezes a
expressão pode ter mais de um sentido e mais de um significado. Numa das
passagens mais conhecidas em relação a esse tema, por exemplo, no mínimo dois
sentidos podem ser detectados: “Portanto, se alguém está em Cristo, é nova
criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!” (2 Coríntios
5.17). Ao afirmar que alguém que está em Cristo é uma “nova criação”, Paulo aponta
para o futuro escatológico do crente, cujo corpo será transformado em um corpo
glorificado, plenamente adaptado para a vida na eternidade com Deus, nos novos
céus e nova terra.71 Ao mesmo tempo, porém, não há que se duvidar que o apóstolo
também está pensando – e o contexto, especialmente o versículo anterior, sugere
claramente isso – na vida “aqui e agora” que o cristão deve levar neste mundo ainda
decaído, em seu corpo ainda sujeito à corrupção e à destruição, no sentido de ser
uma “nova criação” porque vive a sua vida de um modo inteiramente novo e em
oposição às pessoas “sem Cristo”, visto que é uma vida que foi renovada,
reconciliada com Deus.
Essa nova criatura não é acrescentada à velha natureza, mas a repõe – ocorre uma
substituição. A pessoa transformada é completamente nova. Contrastando com o antigo amor
71
REY, 2005, p. 306-312.
29
ao mal, o novo ser – a profunda e verdadeira parte de um cristão – agora ama a lei de Deus,
deseja o cumprimento de suas justas reivindicações, odeia o pecado e anseia pela libertação
da carne não redimida em que habita o pecado. O pecado não mais o controla como antes,
mas ainda o tenta a obedecê-lo em vez de ao Senhor.72
Para Paulo, “o viver é Cristo” (Filipenses 1.21), pura e simplesmente. Ele foi
batizado em Cristo (Romanos 6.3); ele fala a verdade em Cristo (Romanos 9.1); se
gloria em Cristo (Romanos 15.17); tem esperança em Cristo (1 Coríntios 15.19); ama
seus irmãos em Cristo (1 Coríntios 16.24); permanece firme em Cristo (2 Coríntios
1.21); fala diante de Deus como alguém que está em Cristo (2 Coríntios 12.19); tem
liberdade em Cristo (Gálatas 2.4); crê em Cristo para ser justificado em Cristo
(Gálatas 2.16); é abençoado sobremaneira em Cristo (Efésios 1.3); espera em Cristo
(Efésios 1.12); assenta-se nos lugares celestiais em Cristo (Efésios 2.6); é criação
de Deus realizada em Cristo (Efésios 2.10); se gloria não em si mesmo, mas em
Cristo (Filipenses 3.3); tem a promessa da vida (eterna) em Cristo (2 Timóteo 1.1);
recebeu graça, desde a eternidade, em Cristo (2 Timóteo 1.9); possui o
conhecimento do supremo bem em Cristo (Filemom 6) e seu coração somente pode
ser reanimado em Cristo (Filemom 20). De fato, Paulo vive e morre para o seu
Senhor Jesus Cristo (Romanos 14.8). Esses são apenas alguns exemplos de como
estar “em Cristo” é absolutamente essencial para o apóstolo. Quem não está em
Cristo ainda está nas trevas, está sob o domínio do pecado e da morte, sem Deus e
sem esperança no mundo. Porque quem não está em Cristo ainda está “em Adão”,
debaixo da condenação que alcançou toda a raça humana.
Além da expressão “em Cristo”, o apóstolo Paulo fala sobre estar “com
Cristo”, uma expressão cognata. Ele a utiliza a fim de demonstrar a centralidade da
obra de Cristo na cruz para a salvação, em passagens nas quais assevera que o
indivíduo crente “morreu com Cristo” (Romanos 6.8; Colossenses 2.20; 2 Timóteo
2.11), tendo sido “crucificado com Cristo” (Gálatas 2.19,20) – com efeito, afirmando
que “o nosso velho homem foi crucificado com ele” (Romanos 6.6). Além disso,
Paulo enfatiza a importância da identificação dos cristãos com a morte de Cristo,
especialmente no batismo (Romanos 6.4; Colossenses 2.12). Ele também identifica
o cristão com a ressurreição de Cristo (Colossenses 2.12; 3.1), devido ao fato de ter
72
MacARTHUR, John. O poder da integridade. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 16.
30
sido vivificado juntamente com Cristo (Efésios 2.5; Colossenses 2.13).73 “Com Cristo
é, portanto, uma expressão análoga e complementar à expressão “em Cristo”.
2.2 O uso paulino das expressões “em Cristo” e “em Adão” na carta aos
Romanos
não pode ser reduzida a termos menos significativos do que o resgate obtido por Cristo
através do derramamento de seu sangue e da entrega de sua vida. Em adição a isso,
deveríamos notar que o apóstolo concebe esta redenção como algo que se reveste de
constante permanência em Cristo; é a “redenção que há em Cristo Jesus”. A redenção não
consiste somente naquilo que possuímos em Cristo (Ef 1.7), mas é a redenção da qual Cristo
é a incorporação. A redenção não somente foi realizada por Cristo, mas também reside no
73
MORRIS, Leon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 65.
74
SHELLEY, Bruce L. História do cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da
igreja cristã através dos séculos. São Paulo: Shedd, 2004, p. 267.
75
NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 177.
31
Redentor em sua plena virtude e eficácia. A redenção concebida desta forma provê o meio
pelo qual a justificação, por intermédio da gratuita graça de Deus, é aplicada.76
Assim, Paulo concebe a justificação pela fé como algo que está “em Cristo” –
fora dele, não existe nenhum outro acesso a tal justificação. É preciso estar em
Cristo, viver em Cristo, para, pela graça de Deus e por meio da fé, alguém ser
justificado perante Deus. Fora de Cristo não há justificação. A espantosa diversidade
de usos que Paulo faz da expressão “em Cristo” pode ser mais bem compreendida
quando contrastada com outra expressão, “em Adão”.77
Em Romanos 5.12-19, Paulo está comparando e contrastando a vida e a obra
de dois homens que afetaram toda a humanidade. O primeiro, Adão, legou para a
sua descendência o pecado e a morte (aqui Paulo segue de perto a narrativa de
Gênesis 3, considerando Adão como já caído em pecado, e não em seu estado
anterior de inocência). O segundo, Cristo, trouxe o perdão, a justiça e a imortalidade.
Em primeiro lugar, Cristo e Adão são apresentados:
Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a
morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram; pois antes de
ser dada a Lei, o pecado já estava no mundo. Mas o pecado não é levado em conta quando
não existe lei. Todavia, a morte reinou desde o tempo de Adão até o de Moisés, mesmo sobre
aqueles que não cometeram pecado semelhante à transgressão de Adão, o qual era um tipo
daquele que haveria de vir (Romanos 5.12-14).
76
MURRAY, John. Romanos. São José dos Campos: Fiel, 2003, p. 143.
77
LADD, 2003, p. 654.
32
graça de um só, Jesus Cristo, transbordou ainda para muitos! Não se pode comparar a
dádiva de Deus com a consequência do pecado de um só homem: por um pecado veio o
julgamento que trouxe condenação, mas a dádiva decorreu de muitas transgressões e trouxe
justificação. Se pela transgressão de um só a morte reinou por meio dele, muito mais a
aqueles que recebem de Deus a imensa provisão da graça e a dádiva da justiça reinarão em
vida por meio de um único homem, Jesus Cristo (Romanos 5.15-17).
Desse modo, em Romanos 5.12-19, Adão e Cristo são colocados lado a lado
um com o outro, porém com diferenças singulares e significativas entre si.Em
primeiro lugar, Paulo deixa claro que o pecado e a morte vieram ao mundo por meio
de Adão, do qual descende toda a espécie humana. Em segundo lugar, Paulo
observa que enquanto muitos morreram devido à transgressão de um só homem
(Adão), por outro lado muitos são justificados por outro homem (Cristo). Em terceiro
lugar, Paulo compara o ato de desobediência de Adão, que condenou toda a
humanidade, com o ato de obediência de Cristo, que traz justificação. A
humanidade, portanto, está imersa em Adão, mas pode ser resgatada em Cristo. A
diferença entre estar em Adão ou estar em Cristo é uma diferença de vida ou
morte.79
Ao menos duas outras diferenças são pertinentes. A primeira consiste em que
toda a raça humana é condenada pelo pecado de Adão – não apenas por
imputação, mas porque, de acordo com a Bíblia, cada ser humano, de fato, já nasce
pecador (Salmo 51.5; Romanos 3.10-18; 5.12; entre outros) e inimigo de Deus
78
A ideia da apresentação, contraste e comparação entre Cristo e Adão em Romanos 5.12-19 encontra-se em
STOTT, John R. W. A mensagem de Romanos. São Paulo: ABU, 2000, p. 173-174.
79
BRUCE, F. F. Romanos: introdução e comentário. 5. ed. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 105-108.
33
É evidente que pecamos por opção, por causa de nossa natureza pecaminosa. Alguém pode
alegar que não somos responsáveis por nosso pecado porque a natureza decaída nos foi
impingida, ou que fomos criados para nos conformar a um contexto social corrupto. Paulo,
porém, insiste que nossa natureza pecaminosa é consequência da escolha que fizemos com
Adão (Rm 5.12). O fato é que ninguém nos força a pecar. Pelo contrário, escolhemos cedo e
de bom grado dentre os pecados que são colocados à nossa frente (Tg 1.14,15).80
Mas a justiça de Cristo resgata os que nele creem de outro modo: mesmo
sem serem justos em si mesmos, a justiça de Cristo lhes é imputada (como numa
decisão judicial) ou creditada (como numa transação financeira) por Deus pela fé
(esse é o argumento paulino em Romanos 3.21-26). Ou seja, se o ser humano é
merecidamente condenado pelos seus pecados, ele é imerecidamente justificado
por Deus, em Cristo, pela fé. O pecado é algo intrínseco a todo ser humano; a
justiça de Deus é algo exterior, que é concedida aos que creem pela graça de Deus
em Cristo. O indivíduo não se torna justo ao crer, mas sim justificado – ele é tratado
como se fosse justo. O tornar-se justo – o processo da santificação – começa na
justificação, mas se perpetua por toda a vida. Justificação é“o ato de Deus pelo qual
Ele declara justo aquele que crê em Cristo”,81 ou seja, “é um ato instantâneo e legal
da parte de Deus pelo qual ele (1) considera os nossos pecados perdoados e a
justiça de Cristo como pertencente a nós e (2) declara-nos justos à vista dele”.82 É,
portanto, um ato judicial, que não produz mudança interior na pessoa. É um ato
externo que modifica a posição legal do indivíduo perante Deus, mas não transforma
o caráter do indivíduo. Santificação, por outro lado, é “a obra contínua de Deus na
vida dos cristãos, tornando-os realmente santos (...) é o processo pelo qual a
condição moral de uma pessoa é levada à conformidade com sua posição legal
diante de Deus”.83 A justificação tem a ver com a situação legal do indivíduo perante
Deus, enquanto a santificação tem a ver com o caráter do indivíduo perante Deus.
A segunda diferença é o meio pelo qual cada ser humano obtém de Adão e
de Cristo, respectivamente, condenação e justificação. Desde o primeiro homem
80
STURZ, 2012, p. 365.
81
THIESSEN, Henry Clarence. Palestras introdutórias à teologia sistemática. São Paulo: Batista Regular do
Brasil, 1987, p. 346.
82
GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 604. Itálicos no original.
83
ERICKSON, Millard J. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 938.
34
O homem não nasce moralmente neutro ou bom. Nasce corrompido e culpado. Ele herda a
sua corrupção de Adão por transmissão natural, através dos seus progenitores; e o pecado e
a culpa por imputação legal, em virtude da solidariedade do gênero humano com Adão.
Portanto, o pecado e a culpa de Adão são considerados nossos. Além disso, somos culpados
por nossos próprios pecados individuais.84
Porém, para alguém ser inserido na graça de Deus que traz a justificação e o
perdão dos pecados, precisa exercer fé consciente e genuína em Cristo. A fé não é
obra, “porque a fé não é trabalho, nem mérito, nem esforço; mas sim a interrupção
de todas essas coisas e, em lugar dessas coisas, a aceitação daquilo que foi
realizado por outro”.85 Isso exclui a muitos indivíduos, “pois a fé não é de todos” (2
Tessalonicenses 3.2), isto é, nem todos são capazes de abrir mão de seus supostos
méritos a fim de crer somente em Cristo e seus méritos, confessando-o como
Senhor e Salvador. Em Adão encontra-se toda a humanidade, mas em Cristo se
encontram tão-somente aqueles que “nasceram de novo” ou “nasceram do alto”
(parafraseando João 3.3).86
Assim, pode-se dizer que há duas humanidades: aquela que está em Adão e
aquela que está em Cristo, em virtude da fé. A primeira está condenada, a segunda
está redimida. Nem mesmo a lei pode prover redenção àqueles que estão em Adão,
somente Cristo pode.
É por isso que a Bíblia ensina claramente que estar bem com Deus não é questão de
guardar a lei. “Ninguém será justificado diante dele por obras da lei” (Rm 3.20). “O
homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus” (Gl2.16). Não
existe esperança de estar em paz com Deus por guardar a lei. A única esperança está no
sangue e na justiça de Cristo, que é nossa somente pela fé. “Concluímos, pois, que o homem
é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Rm 3.28).87
84
ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Imago Dei: antropologia reformada. Ananindeua: Knox, 2013, p. 126.
85
BONAR, Horatius. A justiça eterna: como o homem será justo diante de Deus? São José dos Campos: Fiel,
2012, p. 73-74.
86
CALVINO, João. Romanos. 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, p. 201-202.
87
PIPER, John. A paixão de Cristo. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 86.
35
entre a antiga e a nova aliança. Na antiga aliança, a lei de Moisés não conseguiu
suprimir o pecado. O motivo disso é a incapacidade humana de cumprir a lei de
Deus, como Paulo deixa bem claro em diversas passagens, tais como Romanos
8.3,4: “Porque, aquilo que a Lei fora incapaz de fazer por estar enfraquecida pela
carne, Deus o fez, enviando seu próprio Filho, à semelhança do homem pecador,
como oferta pelo pecado. E assim condenou o pecado na carne, a fim de que as
justas exigências da Lei fossem plenamente satisfeitas em nós, que não vivemos
segundo a carne, mas segundo o Espírito”. A lei não pode salvar não porque seja
falha ou imperfeita, mas porque o indivíduo pecador não consegue cumpri-la.88 Na
nova aliança, no entanto, é apresentada ao pecador a graça de Deus em Cristo,
fundamentada em sua encarnação, morte e ressurreição, a qual proporciona o
perdão dos pecados e a justificação, levando os que creem à vida eterna.
A segunda consideração diz respeito à morte obediente de Cristo na cruz, a
qual venceu o pecado e a morte, provendo para a humanidade justificação e vida
espiritual no presente, e vida eterna no futuro. Em contraste, a desobediência de
Adão, em vida, gerou morte espiritual e eterna para a antiga humanidade, com ele
identificada.89
O argumento central do apóstolo, em Romanos 5.12-19, é que estar em
Cristo é essencial e infinitamente superior do que estar em Adão. Estar em Cristo
não apenas supera todas as deficiências e resolve todos os problemas de estar em
Adão, mas faz muito mais do que isso, dotando o indivíduo em Cristo de uma nova
natureza, muito diferente da velha natureza em Adão.90
Uma afirmação surpreendente em Romanos 5é a seguinte: “Portanto, da
mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a
morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram”
(Romanos 5.12). Uma interpretação que condiz com o texto de Romanos 5.12-19
sugere que todos pecaram em Adão,91 que todos estavam presentes em Adão
quando ele pecou, uma vez que toda a natureza humana existia, sem divisões, no
88
HENDRIKSEN, William. Romanos. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 327.
89
PATE, C. Marvin. Romanos. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 132.
90
POHL, Adolf. Carta aos Romanos. Curitiba: Esperança, 1999, pp. 98-99.
91
STOTT, 2001, p. 175-182. Ver também CALVINO, 2001, p. 193; MURRAY, 2003, pp. 208-213; e BRUCE,
1988, pp. 105-106. Para opiniões divergentes, consultar PATE, 2015, pp. 123-124; CRANFIELD, C. E. B.
Comentário de Romanos versículo por versículo. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 116; e HENDRIKSEN, 2001,
pp. 233-237.
36
primeiro casal.92 De qualquer modo, o fato é que Adão, por meio de sua
desobediência, envolveu toda a humanidade em seu pecado e culpa. Por isso toda a
raça humana é visualizada estando “em Adão”, compartilhando com ele não
somente seu pecado e sua culpa, mas também a morte resultante desse pecado. É
por isso que o texto afirma que “a morte reinou desde o tempo de Adão até o de
Moisés, mesmo sobre aqueles que não cometeram pecado semelhante à
transgressão de Adão” (Romanos 5.14), isto é, que não desobedeceram a uma
ordem específica de Deus como Adão desobedeceu. Além disso, a lei divina havia
sido inscrita no “coração” humano, sendo constantemente transgredida pelo mesmo
motivo pelo qual a lei mosaica era transgredida: a natureza pecaminosa do ser
humano (Romanos 2.14,15).
Adão é o cabeça da humanidade caída; Cristo é o cabeça da humanidade
redimida. A partir daqui o contraste entre ambos torna-se cada vez mais evidente, ou
seja: todos os que estão em Adão estão condenados, assim como todos os que
estão em Cristo estão justificados, perdoados e livres de condenação. Além disso,
Paulo deixa claro que a graça e a dádiva da justiça em Cristo trazem consequências
muito superiores à transgressão de Adão sobre aqueles que recebem tais dons de
Deus (Romanos 5.16,17). A humanidade em Cristo não somente recupera o estado
de inocência que Adão desfrutou antes da queda – ao contrário, recebe muito mais:
recebe a justiça de Cristo. Ela não é colocada num estado de neutralidade diante de
Deus, mas num estado de perfeita justiça, a justiça de Cristo. Em toda essa
passagem fica evidente a superioridade da graça de Deus em Cristo sobre as
consequências do pecado de Adão.93
2.3 O uso paulino das expressões “em Cristo” e “em Adão” nas cartas
aos Coríntios
92
STURZ, 2012, p. 353-357.
93
HENDRIKSEN, 2001, p. 252-253.
37
A palavra “ser vivificado” contém aquela expressão para “vida” (zoe) que por si só pode
designar no NT, até mesmo sem a adição de “eterna”, a vida verdadeira, genuína, que não é
refém da morte. Também os “perdidos” precisam “continuar vivendo” após sua morte física,
porém essa vida “lá fora” (Ap 22.15) nas “trevas” (Mt8.12; 22.13; 25.30), “banidos da face do
Senhor e da glória do seu poder” (2Ts 1.9) não é verdadeira “vida”, e sim morte eterna.94
encontra a confirmação, quando Paulo escreve que serão vivificados em Cristo “os
que lhe pertencem”, qualificando, assim, os “todos” do versículo anterior).95
De fato, “em Adão” descreve o estado da pessoa não regenerada (o indivíduo
não nascido de novo, sem Cristo e sem o Espírito), ainda sob a escravidão do
pecado e espiritualmente morta (inimiga de Deus, conscientemente ou não),
absolutamente incapaz de agradar a Deus. Quando Adão pecou, toda a raça
humana caiu com ele, passando a herdar a natureza destruidora do pecado: a
ausência de Deus na vida e a contaminação da corrupção na totalidade da natureza
humana. Isso não significa que o ser humano é totalmente perverso à parte de
Cristo, mas que a totalidade da natureza humana está contaminada, em maior ou
menor grau, pelo pecado.96 A consequência do pecado é a morte, em três aspectos:
morte física (separação de alma e corpo), morte espiritual (indiferença a Deus,
ausência de comunhão com Deus) e finalmente, para aqueles que passam pela
morte física sem Cristo, a morte eterna (ausência eterna e definitiva de comunhão
com Deus).97
“Em Cristo”, porém, descreve a posição da pessoa remida, livre da tirania do
pecado (1 Coríntios 10.13). Tal pessoa está capacitada para amar e obedecer a
Deus voluntariamente, sendo participante de todos os benefícios da pessoa e da
obra de Cristo e receptora do dom do Espírito e da vida eterna.98
Novamente, em ambas as expressões – “em Adão” e “em Cristo” – denota-se
o conceito da unidade da raça, do fazer parte integrante de uma coletividade de
morte ou de vida. Todos os seres humanos estão “em Adão”, até que passam a
estar “em Cristo”. Obviamente, nem todos passam por essa transição, pois basta
pertencer à espécie humana para estar “em Adão”, mas é preciso algo mais para
estar “em Cristo”: a fé.
Os que estão “em Cristo” se relacionam com ele por meio da fé. Desse modo,
ele se torna seu representante e faz por eles e neles o que eles próprios jamais
poderiam fazer por si mesmos. Romanos 5.8 diz: “Mas Deus demonstra seu amor
por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores”, isto é, ele
95
MORRIS, Leon. 1 Coríntios: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1981, p. 172.
96
FERREIRA, Franklin. Curso Vida Nova de teologia básica: teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova,
2013, p. 110-111.
97
COSTA, Hermisten Maia Pereira da.Creio: no Pai, no Filho e no Espírito Santo. São José dos Campos: Fiel,
2014, p. 333.
98
MacARTHUR, John. Sociedade sem pecado. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 125.
39
favoreceu aqueles que lhe pertencem quando eles ainda eram incapazes de ajudar
a si próprios, pois eram “pecadores”. Papel semelhante é desempenhado por Adão,
o arquétipo de todos os homens, por ser o primeiro. Ele comprometeu toda a sua
descendência – toda a humanidade – na velha era, enquanto Cristo veio para
inaugurar uma nova era para aqueles que “lhe pertencem” (1 Coríntios 15.23).99
Verifica-se, portanto, o entendimento paulino das duas humanidades, uma em
Adão por nascimento e a outra em Cristo pela fé (“não por obras”, como Paulo deixa
claro em Efésios 2.9).100 Cada uma dessas duas humanidades forma uma unidade
orgânica, uma comunidade viva e única. Tal conceito pode parecer estranho para o
indivíduo pós-moderno,101 mas faz todo o sentido no pensamento paulino e bíblico,
calcado no pensamento semítico tal como encontrado no Antigo Testamento.102 Os
antigos hebreus reconheciam e valorizavam sua individualidade, mas ao mesmo
tempo eram cientes de pertencer a uma entidade maior, seja a família, o clã, a tribo
ou a nação, muitas vezes partilhando dos mesmos sonhos, aspirações e até do
mesmo destino de sua comunidade.103 Paulo, portanto, não está criando novos
conceitos, mas utilizando as Escrituras a fim de explicar o fenômeno Cristo.104
Vivemos numa época que enfatiza o indivíduo e a responsabilidade individual. Por causa
disso, é difícil aceitar a idéia de que o pecado de Adão nos torna pecadores. Queremos
pensar que as ações e decisões das outras pessoas não podem nos afetar. Mas isso não é
verdade. As ações do pai afetam a família. As ações do pastor afetam a igreja. Cada dia, de
milhares de diferentes maneiras, fazemos diferença para o bem ou para o mal na vida das
outras pessoas. (...) Quando nos perguntamos por que todos pecam é difícil evitar a
conclusão de que alguma coisa aconteceu, quando Adão pecou, que tornou o pecado uma
parte inevitável da vida de cada pessoa. Realmente não temos a mesma escolha que Adão
teve. Parece injusto para nossa época individualista, mas podemos dizer a mesma coisa
sobre a morte de Cristo em nosso lugar. Precisamos aceitar que não podemos existir
99
SHEDD, Russell P. A solidariedade da raça: o homem em Adão e em Cristo. São Paulo: Vida Nova, 1995, p.
110.
100
“Toda a Bíblia ensina claramente que a justificação é pela fé somente, sem obras” (CULVER, 2012, p. 979).
101
O pós-modernismo, embora surgido no âmbito do modernismo, é uma rejeição a este e a seus valores. Em
síntese, o pensamento pós-moderno sustenta que não existem absolutos, que a realidade não possui somente um
significado e nenhum centro transcendente. Cada indivíduo possui sua própria perspectiva da realidade, a qual
lhe confere um significado, que se torna válido para ele a despeito de outras perspectivas e significados que
outros indivíduos possam reivindicar. Cf. GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a
filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 1997, pp. 15-28. Para SCHNELLE (2010, p. 772) o pós-
modernismo tem em comum, com o iluminismo e o modernismo, o fato de definir-se “desde um ponto de vista
antropocêntrico”.
102
MERRILL, Eugene H. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd, 2009, pp. 188-201.
103
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, pp. 323-333.
104
SHEDD, 1995, p. 121-122.
40
sozinhos. Adão teve um lugar especial, mas nós também afetamos uns aos outros, e este é
um fato da vida.105
105
FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para
o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 454.
106
MOULTON, Harold K. Léxico grego analítico. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 132.
107
MULHOLLAND, Dewey. Teologia da igreja: uma igreja segundo os propósitos de Deus. São Paulo: Shedd,
2004, pp. 23-25.
108
FEE, Gordon D. Paulo, o Espírito e o povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 93-95.
41
com as diferenças pessoais. “A unidade do corpo de Cristo, segundo ele, não deve
ser entendida como igualdade dos membros, mas como aquela solidariedade que
resiste à tensão existente entre a sua diversidade, os seus dons e as suas
fraquezas”.109
Havia outro motivo para a existência de uma nova humanidade em Cristo. De
algum modo, Israel havia falhado em seu propósito para com Deus. Adão introduziu
o pecado e a morte no mundo ao transgredir o mandamento divino, e todos os seres
humanos, na condição de descendentes de Adão, encontram-se sob o domínio do
pecado e da morte, e Israel não era, nem é exceção. Vivendo sob o jugo romano e
ainda esperando as promessas de libertação e salvação, sem dúvida Israel fazia
parte integrante da velha humanidade em Adão. Por isso, Paulo afirma que Jesus, o
Cristo, é o novo Adão, que inaugura uma nova era de ressurreição e vida para os
que lhe pertencem, formando um novo Israel, uma nova humanidade. Adão
inaugurou a era da morte, Cristo inaugurou a era da ressurreição (não somente no
sentido escatológico, mas no sentido de uma nova vida). A ressurreição era uma das
promessas que Israel esperava no futuro escatológico. Mas a era futura invadiu a
era presente na ressurreição de Cristo, sinalizando os tempos do fim, os últimos
dias. Porém, os crentes em Cristo ainda morrem e aguardam a ressurreição futura,
quando serão “vivificados em Cristo” (1 Coríntios 15.22).110 Portanto, os coríntios
estavam equivocados ao afirmar que não há ressurreição. Paulo demonstra que os
que estão em Cristo triunfarão sobre a morte, ao contrário daqueles que estão em
Adão.111
Mesmo uma leitura superficial das epístolas de Paulo aos Coríntios torna
manifesto o fato de que alguns membros daquela igreja discordavam do apóstolo em
diversas questões. Mais do que isso, alguns nem mesmo estavam de acordo com
Paulo em suas reivindicações apostólicas. 1 Coríntios foi escrita para responder a
vários questionamentos e objeções que os membros da igreja de Corinto haviam
apresentado a Paulo.112 Dentre esses questionamentos, estava a doutrina da
ressurreição dos mortos, algo deveras problemático para pessoas oriundas da
cultura greco-romana. Para elas, a morte nada mais era do que a libertação da alma
109
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. 2. ed. São Paulo: Teológica, 2003, p. 14-15.
110
DUNN, 2003, p. 528-535.
111
SCHREINER, 2015, p. 139-140.
112
BOOR, 2004, p. 22-23.
42
Não podemos negar a ressurreição física de Cristo sem impugnar a veracidade dos
escritores da Escritura, visto que, sem dúvida, eles a descrevem como um fato. Quer dizer
que afeta a nossa crença na veracidade da Escritura. Além disso, a ressurreição de Cristo é
descrita como tendo valor de prova. É prova culminante de que Cristo foi um mestre enviado
por Deus (o sinal de Jonas), e de que ele é o verdadeiro Filho de Deus, Rm 1.4. É também o
supremo atestado do fato da imortalidade. Mais importante ainda, a ressurreição entra como
um elemento constitutivo da própria essência da obra de redenção e, portanto, do Evangelho.
É uma das grandes pedras do alicerce da Igreja de Deus. Se, afinal, a obra expiatória de
Cristo devia ser eficaz, tinha de terminar, não na morte, mas na vida. Além disso, foi o selo do
Pai aplicado à obra consumada de Cristo, foi a declaração de que ele a aceitou. Nela, Cristo
saiu de sob a lei. Finalmente, foi seu ingresso numa nova vida, como ressurreta e exaltada
Cabeça da Igreja e Senhor universal. Isto o habilitou a fazer aplicação dos frutos da sua obra
redentora.114
113
THIELMAN, 2007, pp. 357-361.
114
BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. 4. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 321.
115
MARSHALL, 2007, p. 231-232.
43
corpo “espiritual” – não um fantasma etéreo e sem substância, mas um corpo físico,
plenamente adaptado para a vida eterna, capacitado pelo enchimento total do
Espírito, um corpo semelhante ao do Cristo ressurreto (1 Coríntios 15.35-49).
116
HUGHES, Archibald. Um novo céu e uma nova terra: estudo introdutório ao segundo advento do Senhor
Jesus Cristo. São Paulo: PES, 2009, p. 178.
117
A perspectiva teológica de que alma e espírito não são duas partes, mas nomes diferentes para a mesma coisa,
sendo o ser humano constituído de corpo e alma/espírito, é chamada de dicotomia. A perspectiva de que alma e
espírito são duas coisas diferentes, sendo o ser humano constituído de corpo, alma e espírito, é chamada de
tricotomia. Cf. CULVER, Robert D. Teologia sistemática: bíblica e histórica. São Paulo: Shedd, 2012, p. 372.
118
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: exposição da primeira epístola aos coríntios.
São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 798.
44
119
MORRIS, 1981, p. 183.
120
BOOR, 2004, p. 264-265.
121
Considera-se, naturalmente, o Adão “pós-Queda”, já em pecado e como pecador.
45
2.4 Principais diferenças entre os que estão “em Cristo” e os que estão
“em Adão” nas cartas aos Romanos e aos Coríntios
122
STURZ, 2012, p. 319.
123
STURZ, 2012, p. 319.
46
assegurou a redenção. Por isso, os que estão em Adão perecerão, mas os que
estão em Cristo viverão para sempre.124 A justiça de Cristo está unida aos que
pertencem a ele.125
Em quarto lugar, a humanidade em Adão está “na carne”, enquanto a
humanidade em Cristo está “no Espírito”. A discussão paulina em Romanos 8.1-17
deixa isso bem claro. Estar “na carne” significa viver num estado de inimizade contra
Deus, enquanto viver “no Espírito” significa viver num estado de total reconciliação
com Deus, o que permite andar em obediência e santidade.
Estar “na carne”, em Romanos 8, é pertencer à velha era do pecado, da
escravidão e da morte. Nesse estado encontram-se aqueles que estão em Adão.
Por outro lado, os que estão “no Espírito” pertencem à nova era de paz com Deus
(Romanos 5.1) onde não há mais condenação (Romanos 8.1) nem escravidão ao
pecado (Romanos 6.11,14; 8.9). Esses que estão no Espírito estão, igualmente, em
Cristo (Romanos 8.9). Em vez da escravidão ao pecado que caracteriza os que
estão em Adão, os que estão em Cristo recebem um espírito de adoção (Romanos
8.5). Os primeiros são escravos do pecado em Adão e por causa de Adão, os
últimos são filhos de Deus em Cristo e por causa de Cristo.126
Em quinto lugar, como foi observado acima, a velha humanidade em Adão e a
nova humanidade em Cristo habitam num mesmo mundo, mas pertencem a eras
diferentes. O ser humano em Adão é o ser humano da velha era, da velha ordem de
coisas que está fadada a desaparecer. O novo ser em Cristo, no entanto, pertence à
nova era que permanecerá para sempre. Atualmente vive-se numa justaposição das
duas eras, mas esse é um estado temporário que deixará de existir quando Cristo
voltar. Em outras palavras: não há futuro para quem está “em Adão”, porque entre
Adão e Cristo (e consequentemente entre aqueles que estão em Adão e aqueles
que estão em Cristo) reina uma oposição existencial, limitada e restringida pelo
tempo e pelo espaço (não para sempre, não em todo o universo). O caráter do ato
de Adão é um caráter de fatalidade, pois determina implacavelmente todo um modo
de vida que se encaminha, invariavelmente, para a finitude, para a transitoriedade e
finalmente para a morte. Essa é a característica da velha era, mergulhada na
124
MURRAY, 2003, p. 233-234.
125
CERFAUX, Lucien. Cristo na teologia de Paulo. São Paulo: Teológica, 2003, p. 187-188.
126
LADD, 2001, p. 450-451.
47
127
SCHNELLE, 2010, p. 414-415.
128
THIELMAN, 2007, p. 435-436.
129
BRUCE, 1988, p. 132.
130
HORTON, Michael. Bom demais para ser verdade: encontrando esperança num mundo de ilusões. São José
dos Campos: Fiel, 2013, p. 151.
131
FERNANDO, Ajith. A supremacia de Cristo: uma apologética ao alcance de todos. São Paulo: Shedd, 2002,
p. 179-180.
48
Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, pois os que em Cristo foram
batizados, de Cristo se revestiram. Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem
nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus. E se vocês são de Cristo, são descendência
de Abraão e herdeiros segundo a promessa (Gálatas 3.26-29).
132
HENDRIKSEN, William. Gálatas. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 285.
133
BRUCE, 2003, p. 177.
134
PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática. Volume III. Santo André, São Paulo: Academia Cristã,
Paulus, 2009, p. 294.
49
aspectos da vida humana: nacional, racial, social, rompendo até mesmo barreiras de
gênero ou condição econômica. No entanto,
É preciso acrescentar uma palavra de cautela. Essa grande declaração do versículo 28 não
significa que as diferenças raciais, sociais e sexuais foram de todo apagadas. Os cristãos não
são literalmente “daltônicos”, a ponto de não perceberem se a pele de uma pessoa é negra,
morena, amarela ou branca. Nem tampouco são inconscientes dos antecedentes culturais e
educacionais das pessoas. Também não ignoram o sexo de uma pessoa, tratando as
mulheres como se fossem homens ou os homens como se fossem mulheres. É claro que
cada pessoa pertence a uma determinada raça e nação, foi criada em uma determinada
cultura, e é homem ou mulher. Quando dizemos que Cristo aboliu essas diferenças, não
queremos dizer que elas não existem, mas que não importam. Continuam existindo, mas já
não criam barreiras à comunhão. Reconhecemo-nos como iguais, irmãos e irmãs em
Cristo. Pela graça de Deus, resistimos à tentação de desprezar uns aos outros, pois
sabemos que somos “todos... um só” por estarmos “unidos com Cristo Jesus”.135
Em sua carta aos Gálatas, Paulo aprofunda a doutrina da adoção dos crentes
por Deus. A adoção é efetivada graças à revelação do Filho (Gálatas 4.4) e ao
recebimento do Espírito (Gálatas 4.6). “Cristo é aquele, no qual, para todos os que
nele foram incluídos, foi concedido esse novo estado redentor”.136 Por isso, as
distinções humanas, embora ainda existentes, já não podem impedir a comunhão
dos filhos de Deus (Gálatas 6.15).
135
STOTT, 2007, p. 93.
136
RIDDERBOS, 2013, p. 221.
137
COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Efésios: o Deus bendito. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 17.
50
138
LOPES, Hernandes Dias. Efésios: igreja, a noiva gloriosa de Cristo. São Paulo: Hagnos, 2009, p. 29.
139
HAHN; BOOR, 2006, p. 57.
140
STOTT, 2007, p. 65.
51
141
HENDRIKSEN, William. Efésios e Filipenses. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 137.
142
STOTT, 2007, p. 69.
143
REY, 2005, p. 167.
52
144
SHEDD, 1995, p. 119.
145
MARTIN, 1985, p. 99.
146
SHEDD; MULHOLLAND, 2005, p. 133.
53
Cristo (Filipenses 3.3). Sabe que não tem justiça própria, mas confia na justiça que
vem mediante a fé em Cristo (Filipenses 3.9).
Cada vez mais, Paulo deixa claro em seus escritos que os que creem estão
em Cristo (Colossenses 1.2) e que sua fé deve estar, igualmente, em Cristo
(Colossenses 1.4; 2.5). É isso o que o apóstolo deseja, apresentar “todo homem
perfeito em Cristo” (Colossenses 1.28), isto é, maduro, adulto, e que pode conduzir
outros à maturidade.150 A maturidade cristã é para todos os que estão em Cristo, e
não somente para uma elite.
Em Colossenses 2, Paulo argumenta que Cristo deve ser o único e suficiente
objeto da fé dos colossenses, pois ele é superior à filosofia mundana, ao
147
HENDRIKSEN, 1992, p. 198.
148
Na narrativa de Gênesis 19, Deus destrói duas cidades, Sodoma e Gomorra, devido à sua impiedade. Mas
antes envia anjos para retirar de Sodoma a Ló, sobrinho de Abraão, e sua família. Ao sair da cidade, porém, a
mulher de Ló olha para trás, algo que os anjos haviam dito para não fazer (v. 17). No mesmo instante, ela é
transformada numa coluna de sal (v. 26). Do mesmo modo, o crente é chamado para sair do mundo (a velha vida
sem Deus) sem hesitar, avançando para a nova vida em Cristo Jesus. Essa história tornou-se proverbial também
no sentido de o indivíduo não ficar se lamentando pelo passado, mas de avançar rumo às coisas novas que a vida
oferece.
149
CHANDLER, Matt; WILSON, Jared C. Viver é Cristo, morrer é lucro. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 215-
216.
150
SHEDD; MULHOLLAND, 2005, p. 245-246.
54
151
HENDRIKSEN, William. 1 e 2 Tessalonicenses, Colossenses e Filemom. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p.
362.
152
MARSHALL, 2007, p. 317.
153
GUNDRY, Robert Horton. Panorama do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 505-506.
154
MARTIN, Ralph P. Colossenses e Filemon. São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 89-90.
155
LOPES, 2013, p. 63.
156
HAHN; BOOR, 2006, p. 338-339.
55
crentes que estiverem vivos na ocasião. Estando “em Cristo” e tendo morrido como
nele viveram, nada pode separá-los dele, nem mesmo a morte.157 Paulo esperava
que, na volta gloriosa de Cristo, os cristãos mortos ressuscitariam e os cristãos vivos
seriam transformados, uns e outros recebendo um “corpo espiritual”, adaptado para
a vida eterna, a fim de estarem para sempre com Cristo.158 Até que isso aconteça,
os cristãos devem se alegrar, orar constantemente e dar graças em toda e qualquer
circunstância, pois essa é a vontade de Deus para eles “em Cristo Jesus” (1
Tessalonicenses 5.16-18). Até mesmo a vontade de Deus se revela e se manifesta
na vida dos crentes “em Cristo Jesus”.
Pode-se observar nas cartas a Timóteo que salvação, fé, graça e amor
somente podem ser encontrados “em Cristo” (1 Timóteo 1.14; 3.13; 2 Timóteo
1.9,13; 2.1,10; 3.15). A “promessa da vida”, termo análogo à salvação e à vida
eterna, também só pode ser encontrada em Cristo (2 Timóteo 1.1).159 A vida piedosa
somente existe em Cristo, e Paulo deixa claro que isso inclui algum grau de
perseguição (2 Timóteo 3.12), sendo parte integrante da união do crente com ele.160
Porém, também inclui a promessa da vida eterna para aqueles que permanecem
“em Cristo” apesar de todo o sofrimento e perseguições que o mundo possa lhes
causar.161
Em sua mais breve carta canônica, o apóstolo ainda tem algo a dizer sobre a
vida em Cristo: ela produz comunhão (Filemom 6)162 e passa por cima de antigas
barreiras sociais (Filemom 16). Ela concede a Paulo o direito ou a “liberdade” de até
157
WILSON, Geoffrey B. 1 & 2 Tessalonicenses: compilação de comentários reformados. São Paulo: PES,
2013, p. 75.
158
KÜMMEL, Werner Georg. Síntese teológica do Novo Testamento. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1983, p.
270.
159
STOTT, John R. W. A mensagem de 2 Timóteo. 5. ed. São Paulo: ABU, 2001, p. 15.
160
KELLY, J. N. D. I e II Timóteo e Tito: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 183-184.
161
STOTT, 2001, p. 99.
162
Nas citações de um livro bíblico não dividido em capítulos, como Filemom, só é indicado o número do(s)
versículo(s) (GUNDRY, 2008, p. 500).
56
mesmo ordenar a Filemom que receba Onésimo, o escravo fugitivo, de volta como
irmão em Cristo (Filemom 8-10). Se o fizer, reanimará o coração do velho apóstolo
“em Cristo” (Filemom 20). É justamente por estarem todos em Cristo – Paulo,
Filemom, Onésimo – que o apóstolo não usa de sua autoridade numa questão tão
delicada e pessoal, mas apela para a comunhão que há em Cristo, chamando
Filemom de “irmão” e tratando-o como um igual, e não como um subalterno. Se
Filemom atender ao pedido de seu irmão Paulo e receber Onésimo não como um
escravo fugitivo, mas como outro irmão em Cristo, “o conforto fluirá das experiências
de Filemom no Senhor e trará ânimo e consolo àqueles cuja vida está oculta em
Cristo”.163 O perdão e a reconciliação entre Filemom e Onésimo somente pode ser
possível pelo fato de ambos terem sido transformados por Cristo.
163
SHEDD; MULHOLLAND, 2005, p. 309.
57
164
DUNN, 2003, p. 25.
165
KÜMMEL, 1983, p. 157.
166
BORNKAMM, 2009, p. 187-188.
167
BALL, 1998, p. 69.
168
LOPES, 2009, p. 31-33.
169
WARFIELD, Benjamin B. El Salvador del mundo. Moral de Calatrava: Peregrino, 2006, p. 107-111.
170
HURTADO, L. W. Senhor Jesus Cristo: devoção a Jesus no cristianismo primitivo. Santo André, São Paulo:
Academia Cristã, Paulus, 2012, p. 121-130.
171
Bíblia Sagrada. Versão Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1993.
58
humano? Ou que a humanidade de Cristo já não lhe importava mais? Paulo de fato
pouco fala sobre a atuação terrena de Jesus, antes da ressurreição (como em 1
Coríntios 7.10; 9.14), mas a melhor interpretação para 1 Coríntios 5.16 é que a
expressão “segundo a carne” não deve ser atribuída a Cristo, mas ao entendimento
paulino a respeito de Cristo. Paulo não julga a Cristo como o mundo o julga (como
um reles criminoso morto na cruz), mas julga a Cristo como o Senhor ressurreto e
exaltado, o Filho de Deus.172
Que Jesus Cristo era um ser humano, Paulo deixou isso bem claro em seus
escritos. Mais do que isso: para Paulo, Cristo é o ser humano de fato, o modelo
perfeito, o ideal supremo, o único critério pelo qual toda a humanidade deve ser
julgada.173 Como ser humano perfeito, Jesus morreu (embora não devesse morrer)
por todos, revelou o verdadeiro amor e viveu como a imagem perfeita de Deus.174
Paulo entendia que Cristo veio ao mundo como homem, “nascido de mulher,
nascido debaixo da Lei” (Gálatas 4.4), aquele que, “como homem, era descendente
de Davi” (Romanos 1.3). Ele sabia que Deus enviara seu Filho em carne, “à
semelhança do homem pecador” (Romanos 8.3); sabia, inclusive, que ele e Jesus
tinham aproximadamente a mesma idade.175 Para Paulo, era absolutamente
necessário que Jesus Cristo fosse plenamente humano, a fim de levar a bom termo
a obra de salvação. Ele nascera “de mulher” e “debaixo da Lei” para redimir a
humanidade, que estava debaixo da lei.176 Em sua carta aos Filipenses, o apóstolo
explorou ainda mais o conceito da humanidade de Jesus Cristo,
que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a
si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na
forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte e morte de
cruz(Filipenses 2.6-8).177
172
HÖRSTER, 2009, p. 123.
173
MURPHY-O’CONNOR, Jerome. A antropologia pastoral de Paulo: tornar-se humanos juntos. São Paulo:
Paulus, 1994, p. 45-57.
174
MURPHY-O’CONNOR, 1994, p. 47-48.
175
MURPHY-O’CONNOR, 2008, p. 11-19.
176
CERFAUX, 2003, p. 132.
177
Bíblia Sagrada. Versão Revista e Corrigida de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1995.
59
que se pensa, não transmite a ideia de ago exterior, como o contorno ou o aspecto
de algo, mas transmite o oposto disso, como nas “formas” de Platão (as substâncias
da realidade última, tais como beleza, verdade, justiça), as quais ele pensava que
existissem eternamente de modo imaterial. Assim, entende-se que “forma”, em
Filipenses 2.6, significa “a substância interior ou a própria natureza de uma coisa, e
não a sua aparência ou forma exterior”.178 Cristo é Deus (pois somente Deus é igual
a Deus), mas também é o único representante humano (além do primeiro casal
antes de cair em pecado) da verdadeira imagem de Deus. Ele é o preexistente e a
pura imagem de Deus, o homem perfeito.179 Ele assumiu a plenitude da natureza
humana e, como homem, aceitou as limitações humanas, inclusive a obediência
humilde ao Pai, a vida de servo e a morte numa cruz romana.180 Em tudo ele foi
humano – exceto no pecado, como Paulo deixou claro em 2 Coríntios 5.21: “Deus
tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos
justiça de Deus”. Paulo tinha consciência do fato de que Jesus não possuía uma
natureza pecaminosa, e isso era justamente o que o qualificava para redimir a
humanidade.
Assim, esse homem entrou na raça humana para redimi-la. Paulo conceituou Jesus como um
ser igual a nós, e ao mesmo tempo diferente de nós: Deus enviou “seu próprio Filho em
semelhança da carne do pecado” (Rm 8.3). Aqui, “carne do pecado” refere-se à natureza
humana caída que todos os filhos de Adão têm. Jesus assumiu essa natureza humana, mas
não na forma decaída. Nós todos já nascemos com nossa natureza decaída. Aos Filipenses,
Paulo indica que, na encarnação, Jesus se tornou “semelhante aos homens” (Fp 2.7). A
semelhança consiste justamente em não assumir a natureza caída. Assim, ele é ao mesmo
tempo igual e bem diferente!181
Paulo tem muito mais a dizer, em suas cartas, sobre a natureza divina de
Cristo. Aos Colossenses, ele fala de Jesus Cristo como “a imagem do Deus invisível”
(Colossenses 1.15), aquele por meio de quem tudo foi criado e é mantido na
existência (Colossenses 1.16,17), aquele em quem “foi do agrado de Deus que nele
habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1.19), isto é, aquele em quem “habita
corporalmente toda a plenitude da divindade” (Colossenses 2.9). Paulo também
apresenta Jesus como o juiz de toda a humanidade (2 Timóteo 4.1), fala do “tribunal
178
WARE, Bruce. Cristo Jesus homem: reflexões teológicas sobre a humanidade de Cristo. São José dos
Campos: Fiel, 2013, p. 24-25.
179
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008, p. 232-233.
180
WARE, 2013, p. 35-40.
181
STURZ, 2012, p. 274.
60
Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da Lei, da qual
testemunham a Lei e os Profetas, justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos
os que creem. Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus,
sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo
Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue,
demonstrando a sua justiça. Em sua tolerância, havia deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos; mas, no presente, demonstrou a sua justiça, a fim de ser justo e
justificador daquele que tem fé em Jesus (Romanos 3.21-26).
Aqui, Paulo declara que Cristo morreu a fim de que Deus justificasse os
pecadores sem deixar de ser justo. Em Cristo, o pecado dos remidos foi castigado,
pública e definitivamente. Em Cristo, Deus remove dos remidos a ira judicial de Deus
(“propiciação” é um sacrifício que remove a ira) ao sofrer o castigo pelo pecado no
lugar deles, inclusive daqueles que aparentemente haviam ficado “impunes” no
passado, antes da morte de Cristo na cruz.186 Justificação é “a aceitação de crentes
como justos à vista de Deus, pela justiça de Jesus Cristo lançada em seu favor”.187 É
o ato instantâneo e legal da parte de Deus pelo qual ele considera os pecados dos
que estão em Cristo perdoados e a justiça de Cristo como pertencente a eles,
declarando-os justos.188 Trata-se de um termo legal ou jurídico, oriundo da
linguagem forense. O contrário de justificação é condenação. Os dois são
pronunciamentos de um juiz. No contexto cristão eles são os veredictos finais,
escatológicos, que Deus anunciará no dia do juízo. Mas em Cristo, Deus antecipa
seu julgamento, trazendo para o presente o que faz parte da consumação dos
séculos.189
Houve, portanto, uma “troca” na cruz,190 a qual Paulo descreve em 2 Coríntios
5.21: “Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos
tornássemos justiça de Deus”. Isso “significa que Deus fez um julgamento a nosso
favor, e colocou-nos em comunhão perfeita consigo mesmo”, e também “significa
que Deus fez um julgamento contra Cristo (porque o Senhor levou sobre si mesmo o
186
LEITER, Charles. Justificação e regeneração. São José dos Campos: Fiel, 2015, p. 37-38.
187
LOVELACE, Richard F. Teologia da vida cristã: as dinâmicas da renovação espiritual. São Paulo: Shedd,
2004, p. 66.
188
GRUDEM, 1999, p. 604.
189
STOTT, 2000, p. 124.
190
BOOR, 2004, p. 399-400.
62
peso de nossos pecados, cf. Is 53:4-6, 12)”.191 “O inocente é morto, porque leva a
nossa carne pecadora; é odiado e amaldiçoado por Deus e pelos homens, feito
pecado por causa de nossa carne. Nós, porém, encontramos, em sua morte, a
justiça de Deus”.192
Segundo o entendimento protestante (evangélico) tradicional, a justificação,
sendo um ato legal ou jurídico de Deus (pelo qual ele, graciosamente, declara os
pecadores justificados em Cristo, mediante a fé), não altera a condição dos
pecadores, mas sim a sua posição ou estado diante de Deus. Envolve o perdão dos
pecados e a posição de justos diante de Deus (Romanos 5.1; 8.1). A justificação
acontece de uma vez por todas, não se repete e não é um processo.193
191
KRUSE, 1994, p. 138.
192
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1989, p. 172.
193
BERKHOF, 2012, p. 473-474.
194
RIDDERBOS, 2013, p. 295.
195
MURRAY, John. Redenção consumada e aplicada. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 127.
196
PACKER, J. I. O conhecimento de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 204.
63
Paulo fala desse tipo de santificação em diversas passagens, tais como 1 Coríntios
1.30 (“É, porém, por iniciativa dele que vocês estão em Cristo Jesus, o qual se
tornou sabedoria de Deus para nós, isto é, justiça, santidade e redenção”) e 1
Coríntios 6.11 (“Assim foram alguns de vocês. Mas vocês foram lavados, foram
santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de
nosso Deus”).197
O segundo aspecto, que aparece em outros contextos, é o da santificação
como um processo pelo qual os justificados em Cristo tornam-se, de fato, justos.198
Em Romanos 6, Paulo exorta seus leitores a morrer para o pecado e viver para
Deus em Cristo Jesus, a libertarem-se da escravidão do pecado e tornarem-se
escravos da justiça de Deus, que leva à santidade.
Como Romanos 6 esclarece, o alicerce da santificação é nossa união com Cristo em sua
morte e ressurreição, na qual a velha natureza foi destruída e uma nova natureza foi criada,
com o poder de crescer em novidade de vida. O Espírito Santo começa, na regeneração, a
aplicar essa obra completa na vida do crente e continua a fazer isso numa esfera
progressivamente maior de renovação da personalidade. Essa renovação será completa só
na ressurreição final.199
197
GARDNER, Calvin. Soteriologia: a doutrina da salvação. Presidente Prudente: Palavra Prudente, 2012, p.
189-190.
198
SHEDD, Russell P. Lei, graça e santificação. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 56.
199
LOVELACE, 2004, p. 73.
200
BENTON, John. Cómo enderezar una iglesia centrada en sí misma. Moral de Calatrava: Peregrino, 2000, p.
122-123.
201
RYLE, J. C. Santidade: sem a qual ninguém verá o Senhor. 2. ed. São José dos Campos: Fiel, 2009, p. 44-46.
64
mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2 Coríntios 5.14,15). A fé
justificadora é a mesma fé santificadora.202 Quem está em Cristo foi justificado e está
sendo santificado.
202
LOVELACE, 2004, p. 192.
203
SCHREINER, 2015, p. 237-239.
204
LADD, 2003, p. 655.
205
SCHREINER, 2015, p. 232-233.
206
HEYER,2009, p. 157.
207
KRUSE, 1994, p. 134.
208
REY, 2005, p. 139-144.
65
pecaminosa dentro de si: “os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne,
com as suas paixões e os seus desejos” (Gálatas 5.24). Isso equivale à
“mortificação”, a determinação contínua, em Cristo e pelo poder do Espírito Santo,
de fazer morrer os feitos e os desejos da carne, a fim de viver em comunhão com
Deus.209
Paulo descreve o antigo estilo de vida como algo desaparecido, morto e sepultado, de acordo
com a simbologia do batismo (Rm 6.1-4): “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu
quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de
Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20). Paulo se refere à nova condição como
“Cristo nele”, “em Cristo”, “no Espírito” e com o Espírito de Deus habitando nele (Rm 8.9).
Paulo reúne as alterações nessas palavras e imagens, e todas elas se referem a passar da
vida “segundo a carne” para a vida “de acordo com o Espírito” (Rm 8.4), da lei para a graça,
da morte para a vida, das trevas para a luz e da perda para o ganho. Mediante o Espírito
Santo, Deus torna todas essas mudanças possíveis.210
A vida em Cristo é, para Paulo, vida no Espírito. É o Espírito Santo que aplica
no crente todos os benefícios da salvação em Cristo.211 É ele quem capacita o
indivíduo a viver em Cristo. Como isso acontece? Paulo trabalha, em suas epístolas,
com a noção de que aqueles que recebem a salvação em Cristo passam a viver de
acordo com o caráter de Cristo. Às vezes isso é chamado de o indicativo e o
imperativo segundo Paulo. O indicativo é o dom gratuito da salvação dada por Deus
em Cristo. O imperativo é a tarefa de cada cristão de viver uma vida consagrada a
Cristo. As afirmações de Paulo sobre a atuação de Deus no ser humano estão no
indicativo, e as afirmações sobre as respostas do ser humano estão no imperativo.
O indicativo fundamenta o imperativo.212 Ou, dito de outra forma, o imperativo deriva
do indicativo e essa ordem não pode ser invertida.213 Alguns exemplos: em
Romanos 6.2, Paulo argumenta que aqueles que morreram para o pecado não
podem continuar vivendo no pecado. A seguir, ele exorta seus leitores a
considerarem a si mesmos mortos para o pecado (Romanos 6.11s). Ele afirma aos
cristãos de Roma que a lei do Espírito de vida o libertou da lei do pecado e da morte
(Romanos 8.2), ao mesmo tempo em que os desafia a mortificarem os atos
209
STOTT, 2006, p. 282-283.
210
WELLS, David F. Volte-se para Deus: a conversão cristã como única, necessária e sobrenatural. São Paulo:
Shedd, 2016, p. 66.
211
FERREIRA, Franklin. Avivamento para a igreja: o papel do Espírito Santo e da oração na renovação da
igreja. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 37-38.
212
SCHNELLE, 2010, p. 705-707.
213
RIDDERBOS, 2013, p. 289.
66
pecaminosos do corpo, para que vivam (Romanos 8.13). Ele assegura aos gálatas
que os mesmos se revestiram de Cristo (Gálatas 3.27), e aos romanos ele ordena
que se revistam de Cristo (Romanos 13.14). Aos filipenses, ele resume o conceito
da seguinte forma: “(...) ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor,
pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com
a boa vontade dele (Filipenses 2.12,13).214
Desse modo, Paulo lembra seus leitores de que eles ainda vivem no velho
mundo do pecado e da morte, o que fatalmente os levará a conflitos e provações,
mas agora, em Cristo, eles possuem a capacitação do Espírito para que possam
viver de acordo com o caráter de Cristo. Não estão isentos de pecado, mas também
não são pecadores incorrigíveis. Paulo não é perfeccionista, mas ao mesmo tempo
não aceita que o pecado continue dominando aqueles que estão em Cristo porque
agora, pelo Espírito, eles possuem mecanismos para se libertar dos velhos hábitos
da vida sem Deus.
Ao salvar-nos por meio de Cristo e do Espírito, Deus criou um povo escatológico, que vive a
vida do futuro no presente, uma vida que reflete o caráter de Deus, o qual se fez presente
primeiro em Cristo e depois por seu Espírito. Como presença renovada de Deus, o Espírito,
tendo dado vida a seu povo, agora o conduz pelos caminhos da retidão por amor de seu
nome.215
214
HÖRSTER, 2009, p. 281-282.
215
FEE, 2015, p. 130.
216
HÖRSTER, 2009, p. 283-284.
67
Espírito como aquele que preenche o corpo (1 Coríntios 12.13). Pertencer ao corpo
de Cristo significa ter parte no Espírito.217 A vida em Cristo é ao mesmo tempo
individual e corporativa. Por isso Paulo insiste no amor fraternal, condição
indispensável para a vida daqueles que estão em Cristo (Romanos 12.10-13;
Filipenses 2.3,4; 1 Tessalonicenses 4.9). Esse amor se revela na prática,
compartilhando os recursos com os necessitados (2 Coríntios 8.1-5) e praticando a
hospitalidade (Romanos 12.13; 1 Timóteo 3.2; Tito 1.8).218
O indivíduo em Cristo é capacitado pelo Espírito Santo a viver uma nova vida.
Porém, a obra de Deus em Cristo não anula a responsabilidade individual. O
indicativo é a base do imperativo, e Paulo exorta seus leitores a viver em Cristo e
segundo o caráter de Cristo.219
217
RIDDERBOS, 2013, p. 248-249.
218
MacARTHUR, 2013, p. 112-113, 118-119.
219
SCHREINER, 2015, p. 248.
220
WARE, 2013, p. 48.
68
O homem depois da queda não pode reencontrar nem reassumir a imagem de Deus. Por isso
existe somente um caminho: O próprio Deus assume a forma de homem e vem a ele. O Filho
de Deus, subsistindo em forma de Deus junto ao Pai, renunciou a essa sua forma de
subsistência, assumiu a forma de servo e assim vem aos homens (Fp 2.5ss). A metamorfose
da forma, impossível no homem, realiza-se no próprio Deus. (...) Em Jesus Cristo se fez
presente, em nosso meio, a imagem de Deus, na semelhança da forma da carne
pecaminosa. Sua imagem revela-se em sua doutrina, em suas obras, em seu viver e morrer.
Nele Deus criou nova sua imagem na terra. Encarnação, palavra e obra de Jesus e sua morte
na cruz, fazem inseparavelmente parte dessa imagem. É uma imagem diferente da de Adão
na original maravilha do Paraíso. É a imagem daquele que se coloca no meio do mundo do
pecado e da morte, que toma sobre si a miséria da carne humana, que, em humildade, se
sujeita à ira e ao juízo de Deus sobre o pecado, que, na morte e no sofrimento, permanece
em obediência à vontade de Deus, o nascido em pobreza, o amigo e conviva dos publicanos
221
ANGLADA, 2013, p. 280-282.
222
STURZ, 2012, p. 282.
223
MacARTHUR, John. Colunas do caráter cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 17.
69
e pecadores, o que, na cruz, é rejeitado e abandonado por Deus e pelos homens – isso é
Deus na forma de homem, esse é o homem como nova imagem de Deus!224
A obra do Espírito de unir-nos a Cristo faz de nós não meros imitadores, mas membros vivos
do seu corpo. Nós somos incorporados – batizados – na morte, sepultamento e ressurreição
de Cristo. Paulo não diz: “Sê como Jesus”. Ele diz: “Tu és como Jesus. Ele é a cabeça, e tu a
parte de seu corpo; ele é as primícias e tu, o resto da colheita. Como vai a cabeça, também
vão os membros. Foste agora arrebatado pelo teu precursor para a nova criação. Então,
como podes continuar vivendo como se nada disso tivesse acontecido?”.227
Para Paulo, tudo está “em Cristo”. Somente depois de estabelecer essa
verdade é que ele emite o imperativo de viver uma vida que seja consistente com
isso. Mais ainda, por estar em Cristo, o cristão pode experimentar de modo
antecipado a vida futura com Cristo. O estado futuro, para o cristão, é a ressurreição
num corpo físico semelhante ao do Cristo ressurreto (Filipenses 3.20,21). O futuro
povo de Deus será formado por pessoas reais, seres humanos genuínos. O Cristo já
está assentado nos lugares celestiais – e os que estão em Cristo também já se
encontram lá, diz Paulo (Efésios 2.6). Assim, o estilo de vida que devem ter no
presente é o da vida futura que terão com Cristo, e que, num certo sentido, já
224
BONHOEFFER, 1989, p. 190.
225
HORTON, Michael. A vida segundo o evangelho. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 142.
226
STOTT, John R. W. Mentalidade cristã. 5.ed. São Paulo: Vinde, 1997, p. 55.
227
HORTON, 2012, p. 142.
70
Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos,
por meio de todos e em todos” (Efésios 4.4-6). A vida em Cristo é enriquecida pela
comunhão com os membros do corpo de Cristo.
Quem é, então, o indivíduo em Cristo? Que tipo de ser humano ele é? Qual a
sua identidade? Um breve resumo do que foi exposto acima pode começar a
responder essas questões:
Em primeiro lugar, a identidade cristã tem sua origem no próprio Jesus Cristo.
Paulo ensina que esse é o fruto da operação de Deus na vida dos cristãos (o
indicativo, Romanos 8.29; 2 Coríntios 3.18; Colossenses 3.9,10) e que eles devem
esforçar-se conscientemente para que isso aconteça em suas vidas (o imperativo, 1
Coríntios 11.1; Efésios 5.1,2; Filipenses 2.5).
Em segundo lugar, o engajamento na missão da igreja é essencial na vida
daquele que está em Cristo. “O mundo atual está aguardando o aparecimento de
crentes autênticos, e deles precisa desesperadamente”.234 Paulo não aconselha a
abandonar o mundo ou a fugir dele. Ele sabe que tudo aqui é transitório, mas espera
que os crentes sejam cidadãos responsáveis e úteis para a sociedade. Não devem
tentar transformar este planeta num paraíso, porque isso acontecerá somente
quando Cristo voltar. Mas também não devem cruzar os braços diante da injustiça e
da desigualdade. Mais importante ainda, devem sempre levar a mensagem da
salvação em Cristo a todas as pessoas, sem medir esforços, como o próprio Paulo
sempre fez.235 Para ele, cada cristão deve evangelizar, discipular, aconselhar e
ensinar as Escrituras às pessoas (Romanos 15.14; Colossenses 3.16; 1
Tessalonicenses 1.6-10).236 Isso promove um ambiente de confiança mútua, onde as
pessoas aprendem a cuidar e amar umas às outras, como indivíduos que se
propõem a buscar entender, juntos, as implicações de viver em Cristo e para
Cristo.237
Em terceiro lugar, a pessoa em Cristo é parte de uma comunidade viva, da
qual recebe inúmeros benefícios ao mesmo tempo em que doa e entrega seus dons
e talentos para a mesma. Direitos lhe são outorgados, e responsabilidades lhe são
234
LLOYD-JONES, D. Martyn. Estudos no sermão do monte. 4. ed. São José dos Campos: Fiel, 1999, p. 17.
235
SCHREINER, 2015, p. 379-382.
236
KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no
evangelho. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 328.
237
DEVER, Mark; ALEXANDER, Paul. Igreja intencional: edificando seu ministério sobre o evangelho. 2. ed.
São José dos Campos: Fiel, 2015, p. 53.
72
238
DEVER, Mark. Igreja: o evangelho visível. São José dos Campos: Fiel, 2015, p. 88-90.
239
RIDDERBOS, 2013, p. 235-242.
73
CONCLUSÃO
240
WELLS, 2016, p. 65-66.
241
KÜMMEL, 1983, p. 245.
74
Por um lado, em virtude de sua comunhão com Cristo, os crentes pertencem à nova criação,
foram redimidos da era presente e passaram para o reino de Cristo (2Co 5.17; Gl 1.4; Cl
1.13); por outro lado, ainda estão na carne e, consequentemente, com seu atual modo de
existência pertencem ao mundo presente (Gl 2.20; 1Co 5.10). Fica claro que essa relação
dupla da igreja com o mundo no qual ela vive, também deve determinar sua conduta ética.242
Paulo baseia sua concepção de estar “em Cristo” na fé. Cristo reina no crente
pelo Espírito por meio da fé, o que habilita o crente a fazer atos justos.243 A
identidade cristã, portanto, é baseada na nova vida em Cristo por meio da fé. Essa
identidade se manifesta no trato com o mundo (a “era presente”) mediante a
liberdade que o crente desfruta em Cristo e mediante o processo contínuo de
mudança que essa nova vida produz, ou seja, a santificação (tanto positiva, no
sentido de dedicação cada vez maior a Deus, quanto negativa, no sentido de
abandonar cada vez mais os velhos hábitos pecaminosos).244 O crente em Cristo
pertence à era futura, mas ainda vive na era presente. Este é o tempo da fé. Por
isso, Paulo fundamenta todas as suas exortações éticas naquilo que Deus fez em
Cristo pelos crentes, recordando-lhes que foram batizados na morte de Cristo
(Romanos 6.3), são membros do corpo de Cristo (1 Coríntios 12.27) e que devem
fazer bom uso de sua liberdade, pois a liberdade em Cristo não insiste em seus
próprios direitos, mas está sempre pronta a renunciá-los por amor às outras
pessoas, especialmente aos crentes mais fracos na fé (Romanos 14.1 – 15.6; 1
Coríntios 8.1-13; 10.23-33).245
Igualmente, o indivíduo em Cristo não deve ter qualquer comunhão com as
obras das trevas (Efésios 5.11), porque agora ele é luz no Senhor (Efésios 5.8).246
Deve fazer morrer o que pertence à natureza terrena, pecaminosa, porque já morreu
e ressuscitou com Cristo (Colossenses 3.1-11).
Assim, pois, o indivíduo em Cristo vive pela fé, mas essa fé encontra a sua
expressão numa vida transformada, completamente diferente da antiga forma de
viver sem Cristo.
O capítulo 2 discutiu o uso paulino da expressão “em Cristo” em suas cartas.
Estar “em Cristo” ou “em Cristo Jesus” é, segundo o apóstolo Paulo, o fundamento
242
RIDDERBOS, 2013, p. 333.
243
KÜMMEL, 1983, p. 249-251.
244
RIDDERBOS, 2013, p. 333.
245
BORNKAMM, 2009, p. 317-318.
246
RIDDERBOS, 2013, p. 336.
75
247
HENDRIKSEN, 2001, p. 329-330.
248
BRUCE, 1988, p. 136.
76
Os que creem que o propósito de Deus é tornar a vida humana mais tolerável
e confortável acabam por baratear o que Cristo fez na cruz. Afinal, ele poderia ter
agido de outro modo, se quisesse simplesmente tornar a vida mais agradável para
os seres humanos. No entanto, seu propósito é tornar seu povo cada vez mais
parecido com Cristo, para o louvor de sua glória (2 Coríntios 3.18; Efésios 1.4-6).
Isso modifica bastante a perspectiva humana sobre o sofrimento nesta vida, pois
tudo o que acontece, acontece para tornar os que estão em Cristo mais parecidos
com Cristo.249 Dessa forma, o crente está capacitado a enfrentar o sofrimento, não
com um otimismo pueril, irreal, mas com a força de uma esperança arraigada em
Cristo.
De fato, para os que estão em Cristo, será um privilégio sofrer pelo seu
Mestre (ver, por exemplo, Atos dos Apóstolos 5.41). Tal perspectiva já os diferencia
sobremaneira daqueles que estão em Adão. “Quando a mente está cheia de
pensamentos sobre as glórias ora invisíveis da eternidade com Cristo, é então
possível entender que até esse sofrimento é ‘momentâneo’ (2 Coríntios 4:17)”.250
No entendimento de Paulo, a vida em Cristo na presente era é caracterizada
por contradições. O mundo ainda está debaixo da maldição do pecado, e por isso
não é o lugar ideal para se viver.
Ainda há outros fatores que Paulo aponta como causadores de dificuldades
na vida em Cristo, nesta que ele chama de “presente era perversa” (Gálatas 1.4).
Paulo não ensina que o mundo seja mau em si mesmo (ver 1 Coríntios 10.26, onde
ele cita o Salmo 24.1: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe”), mas ele é
perspicaz o suficiente para compreender que alguma coisa está terrivelmente errada
com a criação (Romanos 8.20-22, por exemplo).251 Ele sabe que este mundo, esta
era, não é nenhum acampamento de férias, mas um campo de batalha (Efésios
6.10-18). Todo aquele que está em Cristo deve estar ciente disso também, sabendo
que lutas e dificuldades sempre existirão, e mais: que é um privilégio sofrer por
Cristo e em Cristo (Filipenses 1.29).252
249
TOZER, A. W. A vida crucificada: como viver uma experiência cristã mais profunda. São Paulo: Vida, 2013,
p. 227-228.
250
OWEN, John. Pensando espiritualmente. São Paulo: PES, 2005, p. 37.
251
MORRIS, 2003, p. 78.
252
PIPER, John; TAYLOR, Justin. O sofrimento e a soberania de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 74.
77
Paulo sabe que o mundo foi criado por Deus e é sustentado por Deus
(Colossenses 1.17). A corrupção e a maldade que grassam no mundo não fazem
parte de sua essência (1 Timóteo 4.4). O que torna o mundo perverso é o pecado,
que afetou o mundo.253 Na era por vir, o mundo será redimido assim como aqueles
que estão em Cristo (Romanos 8.19-21).254 Até lá, os que estão em Cristo não
devem voltar a assumir a forma deste mundo em suas vidas. Embora pertençam a
Cristo, sua transformação ou submissão total a Deus ocorre à medida que adotam
novas formas de pensar, alicerçadas na Bíblia. Precisam ser informados pela
verdade das Escrituras, de modo que possam compreender e obedecer a vontade
de Deus. Há um aprendizado que leva tempo, o qual varia de indivíduo para
indivíduo. Enquanto isso, os que estão em Adão continuam adorando a criatura em
lugar do Criador, alheios em seu entendimento daquele que é o verdadeiro Deus e a
vida eterna.255 A experiência cristã, portanto, é viver em Cristo, mas ainda no mundo
de Adão. A perfeição ainda não chegou, por isso a pregação paulina está repleta de
apelos à vigilância e avisos para que os cristãos se preparem para o sofrimento e as
provas.256
As igrejas cristãs fariam bem em ensinar seus membros a respeito desses
aspectos do sofrer em Cristo, a fim de os fortalecer e capacitar para os desafios da
vida.
O capítulo 3 mostrou que o ponto de partida de Paulo, na construção da
identidade cristã, é o próprio Cristo. A identidade cristã se desenvolve no estar em
Cristo, no viver em Cristo. O que é, então, viver em Cristo, ou estar em Cristo,
segundo Paulo? A vida em Cristo, para Paulo, evita tanto a submissão ao mundo
quanto a fuga do mundo. A fé liberta o fiel do mundo, mas ao mesmo tempo o obriga
a dar testemunho ao mundo. Em virtude de ser uma nova criação e viver uma nova
vida, o crente não pertence mais ao mundo, às potências e seduções mundanas
(Gálatas 1.4), mas sim a Cristo crucificado e ressuscitado (Romanos 14.7-9).257
Paulo nos ensina que, da mesma forma que Deus nos incluiu na morte de Cristo, e assim
morremos para o pecado, ele nos incluiu na sua ressurreição, para que agora “andemos nós
253
SHEDD, Russell P. O mundo, a carne e o diabo. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 11-12.
254
SHEDD, Russell P. Escatologia do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 40.
255
SCHREINER, 2015, p. 232-233.
256
BORNKAMM, 2009, p. 363.
257
BORNKAMM, 2009, p. 319.
78
também em novidade de vida”, ou seja, para que, agora, vivamos a nova vida de ressurreição
em Cristo (Rm 6.4). Tais verdades nos remetem ao fato de que, no momento em que cremos,
morremos para a velha vida – ao sermos unidos com Cristo na semelhança da sua morte – e
ressuscitamos para uma nova vida – ao sermos unidos com ele na semelhança de sua
ressurreição.258
258
FERREIRA, 2013, p. 177.
259
SCHREINER, 2015, p. 380.
260
MacARTHUR, John. Crer é difícil. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 123.
79
algum, mas sim a fé que atua pelo amor” (Gálatas 5.6).261 Caem todas as barreiras
sociais, raciais, políticas, econômicas e religiosas.
A pessoa em Cristo depende do Espírito Santo, no qual foi selada em Cristo
(Efésios 1.13), batizada em Cristo (1 Coríntios 12.13) e adotada por Deus em Cristo
(Romanos 8.15-17). É guiada pelo Espírito (Romanos 8.12-14) e inserida no corpo
de Cristo pelo Espírito (1 Coríntios 12.12-27). Portanto, viverá integrada a uma
comunidade viva e interdependente, dinamizada pelo Espírito.
Portanto, as igrejas devem incentivar seus membros a serem pessoas
dependentes de Cristo e não do mundo, amantes de Cristo e não do mundo, a
seguirem o exemplo de Cristo em cada pequeno gesto ou hábito do cotidiano,
vivendo cheias de uma esperança viva, arraigada nas promessas de Deus em
Cristo.
Para Paulo, a união com Cristo em sua morte e ressurreição, o habitar de
Cristo e o habitar do Espírito nos crentes, o dom da vida eterna e a paz com Deus,
são diferentes maneiras de descrever a mesma coisa, a saber, a real situação
daqueles que, pela fé, tornaram-se nova criação em Cristo e entraram na nova era
da salvação e da vida. O desempenho prático dessa vida se dá na tensão entre o
indicativo e o imperativo, entre o que foi feito na pessoa em Cristo e o que a pessoa
faz, como ela deve viver, em Cristo. A morte do “velho homem” não quer dizer que
ele não deve ser levado em conta na experiência cristã. O indivíduo em Cristo nunca
será a pessoa que ele deseja ser – livre da tentação, da luta contra o pecado e da
tensão que ela provoca. O velho ego sempre estará presente, a carne adâmica
ainda está aí, e somente pode ser sobrepujada por meio de um constante andar no
Espírito, viver deliberadamente em Cristo e para Cristo.262 O cristão vive para o outro
– para Deus, para Cristo, para outros seres humanos, assim como Paulo pregou e
viveu: “Mas não pregamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo, o Senhor, e a nós
como escravos de vocês, por causa de Jesus” (2 Coríntios 4.5).
261
BORNKAMM, 2009, p. 335.
262
LADD, 2003, p. 664-666.
80
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