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MANGUALDE
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MENSAGEM DO
PRESIDENTE
O património cultural de um povo é, nas suas Estas intervenções envolvem uma multiplicidade condições para que os mangualdenses se
múltiplas expressões, a massa moldadora da de técnicos especialistas e de práticas peculiares revejam neste resgatado pedaço da história
sua identidade. Do domínio do imaterial, que determinam grande empenho financeiro do seu território, que se identifiquem, que se
aparentemente invisível, ao material, é a por parte da Autarquia. É o recurso ao mecenato enriqueçam cultural e socialmente.
diversidade dos seus bens que lhe confere a empresarial e aos fundos comunitários que as Também o turismo cultural encontra mais um
sua especificidade, a sua singularidade. tem viabilizado. forte motivo de permanência nesta terra que
Arreigadas à sua memória coletiva, num ímpeto Foi através de uma candidatura ao programa sempre soube ser hospitaleira e acolhedora.
de necessidade de satisfação intrínseca, as PRODER que a autarquia pôs em marcha a Esta obra que hoje laudamos constitui,
comunidades cada vez mais se procuram a si requalificação e valorização patrimonial e indubitavelmente, a marca d’água de um
próprias. turística das ruínas romanas da Quinta da processo que almejamos continuar pelo futuro.
Compete aos poderes políticos locais preservar, Raposeira, beneficiando de uma comparticipação Gostaria de louvar, em meu nome pessoal e do
valorizar, divulgar e dar a fruir às suas populações de 60% num investimento de 150.000€. executivo, todos aqueles que tornaram
e àqueles que demandam os territórios o seu De facto, tirante a rápida, fugaz e longínqua possível, direta e indiretamente, esta obra
património cultural. Lega-se às gerações intervenção arqueológica de finais do século XIX, que em tudo contribui, e contribuirá, para o
vindouras uma herança reforçada e um caminho foram feitas, a partir de 1983, e por mais de uma desenvolvimento integral do homem e do
de desenvolvimento cultural, social e económico. década, escavações na Quinta da Raposeira, território mangualdenses.
Consciente da obrigação, do dever e do direito tendo colocado à vista estruturas várias.
em agir proativamente e em função destas Votado, durante anos, a uma mera manutenção João Azevedo
premissas, este executivo tem vindo a de sítio arqueológico, os recentes trabalhos de Presidente da Câmara Municipal de Mangualde
desenvolver políticas consistentes de gestão valorização patrimonial permitiram interpretar
do património que passam pela recuperação, este conjunto arquitetónico como sendo uma
salvaguarda, pesquisa, inventariação, estalagem romana.
divulgação e promoção. Com a Estalagem Romana da Raposeira criámos
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A IMPORTÂNCIA
DO PATRIMÓNIO
CULTURAL
Consequentemente, garantir a perpetuidade
do património cultural, ou seja, caucionar a
continuidade de nós próprios, é, pois, um
Âncora de memórias, referência de identidade, imperativo ético.
legado que se herda e a legar, testemunho
material e imaterial da ação humana, o As maneiras novas de entender o património
património cultural manifesta, continuamente, cultural compreendem modelos de gestão
a sua existência nos vários territórios. É, por que visam a sua preservação, mas também a
isso mesmo, um ativo intrinsecamente presente fruição das suas múltiplas funcionalidades e
e transversal na vida das comunidades. usos pelas populações. Em sintonia com a
evolução conceptual de património cultural, a
Jamais o património se ausentará da sua gestão, enquanto prática técnico-científica,
condição de legado a herdar. Esta herança, possuidora de um quadro teórico próprio,
tacitamente outorgada a todo o ser humano, desenvolve, hoje, um conjunto de tarefas que
torna-nos herdeiros. Todos nós somos liga, de forma íntima, os bens patrimoniais e o
herdeiros! Nunca ao herdeiro assistirá a homem.
possibilidade de expulsar de si próprio essa
condição inata. Todavia, esta herança não é Num primeiro momento, a gestão centrava-se
passiva: herda-se o bem, mas com ele todo o essencialmente nas atividades de identificação,
conjunto de direitos, mas de igual modo, estudo, inventariação e restauro, tendo como
deveres e obrigações. Apresentando-se, na objetivo fundamental a salvaguarda e a
maior parte das vezes, em fragmentos, em conservação de uma herança destinada às
pedaços, fingidamente “morto”, o património gerações futuras. É-lhe subjacente a visão
cultural interpela o herdeiro a que o torne social do património cultural, explorando o
vivo, a que o capitalize, a que o reinvente. seu uso sociocultural e de difusor de cultura.
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Abrangia uma larga área a poente do Monte do projeto daquela via, fiquei profundamente
Senhora do Castelo, sabendo-se desde 1889 preocupada com a muito provável destruição
que apareciam testemunhos de ocupação de bens arqueológicos por desconhecimento da
romana nos terrenos das quintas da Raposeira, sua localização. Assim, como vice-presidente
Fonte do Púcaro e Campas, considerando as da ACAB, envidei todos os esforços no sentido
breves pesquisas levadas a cabo por Alberto de se desenvolver um programa de pesquisas
Osório de Castro, naquele ano. A partir daí, com apoio estatal que permitisse sondagens
nada mais se fez para trazer à realidade a arqueológicas em vários locais. Foram estes
história do local. trabalhos que permitiram a descoberta das
ruinas que agora se podem observar, já
Por volta de 1982 começou a germinar em finalmente restauradas. Foram 12 árduas
Mangualde a ideia de se construir uma avenida campanhas de escavações (1986 a 1998) focadas
que ligaria o Mercado Municipal ao escadório naquele sítio. No entanto, sabemos que a área
da Senhora do Castelo, rasgando a denominada de ocupação romana é bastante mais vasta,
Citânia da Raposeira. A esse tempo encontrava-me tendo-se obtido muitas evidências quando
empenhada em fortalecer a Associação Cultural houve necessidade de se fazerem sondagens
Azurara da Beira (ACAB), recém-criada por prévias em vários locais destinados a construção.
cidadãos de Mangualde, e a lutar pela sua Infelizmente as pesquisas não tiveram
afirmação. A Arte, a História, a Arqueologia e o continuidade. Por isso mesmo, a História da
Património Cultural do País e do concelho origem de Mangualde deu apenas um passo
sempre foram os alvos de investigações que muito pequenino.
fui desenvolvendo ao longo da minha vida,
empenhando-me permanentemente na sua Clara Portas
defesa e promoção. Prevendo-se a concretização Diretora do Campo Arqueológico da Raposeira
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Mas este povoamento romano não surgiu do proximidade em relação a duas estradas
nada. Embora rompa com a estratégia de romanas que cruzavam este espaço. Em época
ocupação anterior, adaptando-se às exigências romana, portanto, ter-se-á assistido a uma
de uma nova época, encerra algumas alteração substantiva das formas de ocupação
A ESTALAGEM ROMANA DA RAPOSEIRA permanências, tendo na origem um primitivo e exploração deste território, refletida também
cenário que não se apaga por completo face na deslocalização do seu principal centro
ao domínio romano. populacional, doravante situado nas terras
baixas que têm como principal pano de fundo,
Recuemos no tempo cerca de 2000 anos. Qual passando pela Quinta da Raposeira, Fonte do O monte da Nossa Senhora do Castelo terá carregado de memórias, o monte da Senhora
seria a imagem que nos proporcionaria então Púcaro e Campas, poderá encontrar restos sido um povoado amuralhado em época do Castelo.
a área entre a atual cidade de Mangualde, a dispersos desta antiga ocupação. O olhar proto-histórica. Ter-se-á mantido como lugar
Raposeira e a Senhora do Castelo? De que forma treinado do arqueólogo conseguirá identificar habitado durante a época romana, como O sítio romano da Raposeira parece ser um de
é que poderemos esboçar essa paisagem de estes vestígios singelos que, a espaços, numa revelam algumas das cerâmicas, moedas e vários sítios desta época situados entre o atual
outrora com base nos vestígios identificados courela cultivada ou entre matos e giestas, se pedras almofadadas que aí se encontraram. núcleo urbano central de Mangualde e a
hoje pela arqueologia? Esse instante não será vão mostrando. Pedaços de tijolo que sabemos Talvez então fosse designado como Castellum Senhora do Castelo. Vestígios romanos
fácil de captar, mas alguns indicadores surgem identificar como telha romana, restos de escória Araocelum, se aqui localizarmos o povoado dispersos observaram-se na Quinta do Prazo,
como pistas de investigação a explorar, reveladores de antigas fundições, pedras referido numa inscrição romana encontrada em Tojal d’Anta, Fonte do Púcaro, Quinta do
permitindo mesmo aproximarmo-nos do que facetadas que ergueram uma antiga parede S. Cosmado. Mas também nos parece provável Albuquerque e Lavandeira. Embora quase
seria esse outro mundo que não é o nosso mas ou que configuram uma mó, testemunham que, a partir da mudança de era, este castro sempre pouco expressivos à superfície, estes
que está na origem de muito daquilo que marca também essa intensa ocupação de outrora. tenha deixado de assumir a importância que restos de outro tempo parecem denunciar a
o quotidiano das nossas vidas. Mas também relatos de agora em torno do até então tinha conhecido. Algumas famílias presença de pequenos grupos de casas e
achado imprevisto de potes e moedas ou ainda nativas, descendentes dos seus anteriores casebres de habitar, com anexos para gado e
Antes de mais, podemos afirmar que a área de sepulturas – a História também se encontra ocupantes, poderão ter aí mantido as suas para recolha dos produtos da cultura, espaçados
arqueológica da Raposeira é, por enquanto, a na memória. Estes vestígios, descobertos ainda habitações. No entanto, ao tempo do imperador entre si e à vista uns dos outros, ligados e
mais importante que se conhece no concelho quando se rasga o chão ou se repara no material Augusto, sobretudo a partir dos primeiros confortados pelos laços sociais de vizinhança.
de Mangualde com vestígios da época romana. reaproveitado num muro, sugerem mesmo que anos do séc. I d.C., o grosso da sua população Poderia ser, de algum modo, um conjunto de
A área com materiais arqueológicos à superfície toda esta área, nas imediações de Mangualde, ter-se-á transferido e instalado no sopé deste famílias que foi formando um povoado
é vasta. Quem percorrer estes terrenos, desde terá sido ocupada em época romana por uma monte, dispersando-se por quintas e casais descerrado, crescendo progressivamente em
o sopé ocidental e meridional do Monte da mancha extensa de casario, ainda que que gravitariam, como veremos, em torno do torno da Raposeira e ao longo das estradas
Senhora do Castelo até à Ribeira da Lavandeira, aparentemente descontínua. sítio da Raposeira, beneficiando também da romanas.
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Tal obrigava a uma manutenção constante seleção de alguns materiais utlizados na interpretação. Mas conservam ainda o essencial
deste espaço. Seria necessária a presença de construção e revestimento de chãos e paredes para que, em desenho, se ensaie a sua
criados para manter limpos os aposentos, (o designado opus signinum, por exemplo, reconstituição, mostrando-se assim como seriam.
providenciando por um lado, que a água limpa empregue enquanto argamassa impermeável), Alguns dos materiais recolhidos aquando da
corrente não faltasse e, por outro, que a água como pelo desenho de uma rede de canalizações, sua escavação (referimo-nos, por exemplo, à
suja fosse devidamente escoada através das formadas por canais graníticos que cruzam chamada terra sigillata de tipo itálico – uma
canalizações em pedra que ainda podemos esta zona, tendo como origem nascentes louça fina de servir à mesa, importada e
observar no local. Mas seria também particularmente caudalosas. fabricada possivelmente na península itálica),
imprescindível alimentar o fogo com lenha também sugerem que as termas terão sido
que ia sendo guardada na cave. Assim sendo, o O que hoje resta destas termas não permite a construídas logo aquando da fundação deste
funcionamento diário das termas requeria sua clara leitura. Não se conseguem identificar lugar, talvez nos primeiros anos do séc. I d.C.
atenção constante e acabava por ser algo alguns dos elementos que lhe possam conferir
dispendioso. Exigiu, logo à partida, um total sentido. Reconstruções ou remodelações O espaço das termas que se observa na Raposeira
investimento relativamente considerável em época romana e, sobretudo, destruições será um dos que caracterizará melhor a presença
aquando da sua edificação: tanto pela cuidada posteriores, acabam por dificultar a sua romana neste local – no mundo romano a ida
às termas (balnea) era não só uma forma de
higiene pessoal mas também um hábito social,
na medida em que o espaço termal era lugar de
encontro e descanso. Servia, acima de tudo,
para afugentar o cansaço e debelar as maleitas
e seria sobretudo frequentado, no final de uma
árdua jornada de viagem, por todos aqueles
que por aqui passavam ao serviço de Roma.
Conversas em dia, histórias contadas, negócios
fechados, também tiveram lugar nos diferentes
compartimentos que compunham estas termas,
pelos quais corria tanto água fria, como água
quente. Em suma, nestas termas da Raposeira
também se revelava o modo de vida romano –
um modo de vida sofisticado.
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Reintegrações de lacunas
Vãos de circulação
Condutas
How can we imagine this building today? In stay overnight or for short stops during a
the first part built, was the area of services, travel, where horses could recover and
with one or two kitchens and other rooms, travelers could relax their body at the spa and
reserved for the family (who took care of this their spirit in the tavern.
place) and their servants. On the other side of
the courtyard, was another building where the The thermal area observed in Raposeira is one
guests stayed overnight; between these two of the places that best characterize the
roofed areas, was the spa with its heated Roman presence at this location – above all, it
space and current water. At the back of this reflects a form of personal hygiene but it is
area was another larger and open courtyard, also a place of meeting, entertainment and a
with porticoes, which was used for the beasts social habit, deeply rooted in the roman
of burden. In the background stood a walled society.
town of protohistoric origin that still
continued inhabited during roman times – the This thermal area was mainly used to ward off
hill of Our Lady of the Castle. fatigue and overcome ailments and it would
mostly be frequented at the end of a difficult
The location of this site Raposeira at the journey by all those who were passing through
junction of two roman roads helps to explain in the service of Rome. This was also a place
its interpretation as a support station for for conversations, telling stories and closing
whom transited through these routes linking deals in the different compartments of the
the roman city (civitas) of Vissaium (Viseu) to spa in which both cold and hot water ran. In
other neighbors. short, in this spa of Raposeira was revealed the
This probable roman inn, built in the early first roman way of life – a sophisticated way of life.
century AD, was probably equipped with the
necessary facilities for the performance of its This resort Raposeira was relatively small. It
function as a rest and supply area. It had a was dimensioned according to the scale of
thermal area, kitchens and bedrooms, local needs. It presents, however, some of the
warehouses and stables and even a forge key design characteristics that clearly identify
(wisely built a little away from the other the roman baths and its spaces reflecting
buildings). This would, therefore, be a place to some of the steps required for the ritual bath.
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ALARCÃO, Jorge de (1996): “As origens do povoamento Título A Estalagem Romana da Raposeira (Mangualde)
da região de Viseu”, Conímbriga, Coimbra, vol. 35, Autor ArqueoHoje, Ldª
p. 5-35. Promotor Município de Mangualde e Associação de
Desenvolvimento do Dão
GOMES, Luís Filipe Coutinho e CARVALHO, Pedro Coordenação Luís Filipe Coutinho Gomes, Joaquim Garcia,
Sobral de, (1992): “O Património Arqueológico do Carla Santos, Marco Bento e João Perpétuo
Concelho de Mangualde”, Mangualde, Câmara Textos Pedro C. Carvalho, Carla Santos, Joaquim Garcia,
Municipal de Mangualde. Clara Portas e António Tavares
Equipa Técnica de Campo Carla Santos, Marco Bento, Rui
PORTAS, Clara (1986): “Citânia da Raposeira”, Barbosa, João Perpétuo, Sónia Cravo, Nádia Figueira, Helena
Informação Arqueológica, 7, Lisboa, p. 96-98. Barranhão, Eugénio Mendes, António Felgueiras, Rui Óscar
Rodrigues, Sérgio Moya Gil, Helena Barbosa e Rafaela Alves
TAVARES, António (2012): “Uma ‘nova via’ na velha Assessoria Científica Pedro C. Carvalho e Clara Portas
rede viária romana de Mangualde”, Atas do V Congresso Traduções Fernando Correia
de Arqueologia do Interior Norte e Centro de Portugal, Créditos Fotográficos ArqueoHoje, Ldª
Meda, Foz Côa e Figueira de Castelo Rodrigo, Ilustrações José Luís Madeira
p. 273-292. Projecto e Concepção Gráfica Daviduarte Design
VAZ, João L. Inês, (1997): A Civitas de Viseu – Espaço e Execução Gráfica Tipografia Rainho & Neves
Sociedade, CCRC: Comissão de Coordenação da Região Depósito Legal
Centro, Coimbra. Tiragem 2.000 exemplares
Editor Município de Mangualde / ArqueoHoje, Ldª