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Aula 4

PATRIMÔNIO A política federal de salvaguarda do


IMATERIAL patrimônio cultural imaterial: diretrizes,
resultados e principais desafios.
Profa. Marcia Sant’Anna1

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: OS ANTECEDENTES DAS POLÍTICAS DE SALVAGUARDA DO PATRI-


MÔNIO CULTURAL IMATERIAL ........................................................................... 2

ANTECEDENTES INTERNACIONAIS .............................................................. 2

ANTECEDENTES NACIONAIS ........................................................................ 4

PREMISSAS GERAIS E PRINCÍPIOS DE ATUAÇÃO ................................................ 5

ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS .......................................................................... 7

LEGISLAÇÃO E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO ............................................... 8

UM NOVO OBJETO PATRIMONIAL: A DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA ................... 10

SALVAGUARDA E AÇÕES SUSTENTÁVEIS .......................................................... 11


1. Arquiteta e urbanista,
Mestre em Conservação COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NA IMPLEMENTA-
e Restauro e Doutora em ÇÃO DA CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMA-
Urbanismo pela Universidade
Federal da Bahia. Coorde-
TERIAL . ............................................................................................................ 12
nou o Grupo de Trabalho
do Patrimônio Imaterial ARTICULAÇÃO, AMPLIAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SALVA-
(GTPI) que propôs as bases GUARDA . ......................................................................................................... 13
da atual política federal de
salvaguarda e, dede 2004, é
Diretora do Departamento DESAFIOS E PERSPECTIVAS .............................................................................. 15
do Patrimônio Imaterial do
IPHAN. DEBATES .......................................................................................................... 16
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Introdução: os antecedentes das políticas de salvaguarda do


patrimônio cultural imaterial.
Antecedentes internacionais
Nos anos de 1960, como um dos efeitos da política de preservação de sítios
urbanos deflagrada numa Europa recém destruída pela Segunda Grande Guer-
ra, a noção de patrimônio histórico e artístico sofreu uma primeira expansão
conceitual. Em substituição a uma idéia historicamente calcada nas noções de
belo e de grandioso, a Carta de Veneza, de 1964, propôs uma nova perspecti-
va: a de ampliar o conceito de “monumento” também para os sítios urbanos
e rurais e, nesses contextos, englobar não somente as grandes criações, mas
também as “obras modestas” com significação cultural.2 Essa perspectiva per-
mitiu identificar e valorizar como “patrimônio” os pequenos povoados, toda
uma arquitetura vernacular, enfim, criações populares até então excluídas das
políticas de preservação. Por essa via, a chamada “cultura tradicional e popu-
lar” foi se tornando, no Ocidente, um objeto patrimonial. Nos anos de 1970 e
80, uma noção mais ampla de patrimônio já se encontrava incorporada a várias
recomendações internacionais, estabelecendo a necessidade de valorização de
“modos de vida”, das “criações anônimas” e, por fim, das “obras materiais e não
2. Carta Internacional sobre materiais que expressam a criatividade do povo”.3
conservação e restauração
de monumentos e sítios, Um outro marco do processo de introdução e consolidação da idéia de pa-
resultante do II Congresso trimônio cultural imaterial no discurso e na prática de salvaguarda ocidental foi
Internacional de arquitetos
e técnicos dos monumentos
a reação liderada pela Bolívia e outros países em desenvolvimento ao conceito
histórico, realizado em Ven- de patrimônio expresso na Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Na-
eza em maio de 1964. Deste tural (Unesco, 1972). Este conceito, visto então como muito estrito e voltado
congresso resultou também
a criação do ICOMOS –
para a preservação dos bens e vestígios materiais das culturas, foi considerado
Conselho Internacional dos pouco aplicável em países, como os da África e da América Latina, cuja grande
Monumentos e Sítios. Ver riqueza patrimonial é produto da criatividade das culturas populares. A partir
Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
dessas gestões junto a Unesco, foi aprovada em 1989, a Recomendação sobre a
(Brasil). Cartas Patrimoniais. Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, primeiro documento internacional
2a ed. rev. aum. – Rio de Ja- a estabelecer diretrizes para a valorização e salvaguarda do que atualmente se
neiro: IPHAN. 2000, p. 91-95.
denomina patrimônio cultural imaterial. Em seguida, foi criada no âmbito da
3. Declaração do México, Unesco, uma Seção de Patrimônio Imaterial que se dedicou, durante os anos de
1985, resultado da Conferên- 1990, à preparação de uma nova convenção e ao desenvolvimento e divulgação
cia Mundial sobre as Políticas
Culturais, promovida pelo
de dois programas: o Sistema Tesouros Humanos Vivos e a Proclamação das
ICOMOS. Ver também Obras Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
a respeito desse proc-
esso de ampliação da noção O Sistema Tesouros Humanos Vivos estruturou-se como um programa de
ocidental de patrimônio, apoio à transmissão de conhecimentos tradicionais a novas gerações, inspirado
Françoise Choay, L’Allégorie na experiência desenvolvida pelo Japão a partir dos anos de 1950 e adotada por
du Patrimoine. Paris: Édi-
tion du Seuil, 1996 e Márcia outros países asiáticos como Coréia, Filipinas e Tailândia. O objetivo do sistema é
Sant’Anna, “Patrimônio preservar tradições orais ameaçadas de desaparecimento por meio do reconhe-
imaterial: do conceito ao cimento e da titulação de indivíduos e grupos detentores desses saberes como
problema da proteção”. Re-
vista Tempo Brasileiro, out. “Tesouros Humanos Vivos”, e da articulação do seu conhecimento a programas
- dez , n. 147. Rio de Janeiro: de transmissão e formação de aprendizes. Para tanto, as pessoas e grupos laure-
Tempo Brasileiro ed., 2001, p ados recebem apoio financeiro para o desenvolvimento dessas atividades, bem
151-162.

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como para a aquisição dos equipamentos e outros insumos. A Unesco divulgou


mundialmente esse sistema e incentivou sua adoção pelos países membros a
partir de 1996. No Brasil, sete estados promulgaram legislações nesse sentido,
cujos resultados serão comentados adiante.4
O programa “Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e Imaterial
da Humanidade” teve três edições e foi montado com a função de sensibilizar
os países membros da Unesco a ratificar a Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada em 2003, e de gerar subsídios para sua
aplicação. O programa se destinava também a incentivar esses países a cria-
rem mecanismos de salvaguarda, com foco especial nas expressões culturais
em situação de fragilidade e que contassem com base social e territorial defini-
da. Esse último requisito era considerado essencial porque o programa visava
também a difundir uma noção de salvaguarda que envolvesse, além das ações
de identificação e reconhecimento patrimonial, iniciativas destinadas a apoiar
as condições sociais, econômicas e ambientais que permitem a continuidade
desses bens culturais. Com isso, a Proclamação ajudou a consolidar e difundir
uma noção mais ampla de salvaguarda ao exigir que as candidaturas apresenta-
das à Unesco fossem acompanhadas de Planos de Ação contendo as iniciativas
destinadas a fortalecer as comunidades e indivíduos detentores das expressões
que almejavam o título de patrimônio da humanidade. O Brasil participou da se-
gunda edição desse programa com a candidatura da arte gráfica e pintura cor-
poral dos indígenas Wajãpi do Amapá, e da terceira com a do samba de roda do
Recôncavo baiano, o que ajudou a desenvolver aqui o instrumento denomina-
do Plano de Salvaguarda.5 A Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral
e Imaterial da Humanidade foi extinta com a entrada em vigor da Convenção
para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial em 20066, sendo substituí-
4. Alagoas, Bahia, Ceará, da pela Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade e
Minas Gerais, Paraíba, Per-
nambuco e Santa Catarina.
pela dos Bens em Perigo, ambas criadas pela Convenção.
Ver a esse respeito Pesquisa No momento em que a Unesco iniciou os encontros de especialistas para
Educarte/Unesco: Patrimônio
Cultural Imaterial no Brasil: discutir o tema da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, o governo bra-
legislações estaduais. Rio de sileiro havia recém-promulgado o Decreto n° 3.551, de 04 de agosto de 2000, e
Janeiro, dez. 2007. concluído o teste piloto da metodologia do Inventário Nacional de Referências
5. Essas candidaturas foram Culturais – principais instrumentos da política de salvaguarda no âmbito federal.
aprovadas e esses bens Os especialistas que participaram ativamente desse processo no Brasil estavam,
culturais foram declarados portanto, há algum tempo, envolvidos com as questões conceituais, técnicas e
“patrimônio oral e imaterial
da humanidade”, respectiva- metodológicas que esse tipo de salvaguarda suscita. Levaram essa experiência
mente, em 2003 e 2005. Ver aos encontros da Convenção, contribuindo, assim, decisivamente para o avanço
mais sobre os Planos de Sal- das discussões. A contribuição brasileira promoveu a incorporação à Convenção
vaguarda no item deste texto
denominado “Salvaguarda e de idéias e princípios com os quais já se estava trabalhando aqui, o que explica a
ações sustentáveis”. notável adequação da nossa abordagem às recomendações desse documento
internacional.
6. Embora a convenção tenha
sido aprovada, como visto,
pela Assembléia Geral da
Unesco em 2003, só entrou
em vigor em 2006 após ter
sido ratificada por 50 países.

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Antecedentes nacionais
O reconhecimento do papel das expressões da cultura popular na formação
da identidade cultural brasileira data das primeiras décadas do século XX e se
relaciona com o contexto político e cultural que levou à criação, em 1937, do an-
tigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje instituto. A ampla
e complexa noção de patrimônio cultural que estava presente no anteprojeto
dessa instituição foi suplantada, contudo, ainda no nascedouro, por uma idéia
de proteção do patrimônio histórico e artístico aplicável apenas a sítios urbanos
e naturais, a monumentos e a obras de arte. Esse estreitamento do conceito ini-
cial deveu-se a, pelo menos, dois fatores. Primeiramente ao fato de que a noção
de patrimônio então vigente no mundo ocidental era indissociável da cultura
material e das noções de belo, de excepcional, de grandioso e perene. Assim,
a abordagem defendida por Mário de Andrade no anteprojeto do SPHAN, de
viés mais artístico e antropológico, era avançada demais para a época e não
encontrava abrigo nem na prática e nem na imaginação jurídica do período. Em
segundo, ao fato de que os sítios, monumentos históricos e obras de arte do pe-
ríodo colonial encontravam-se, à época, sob grave ameaça de desaparecimento
devido ao processo de modernização urbana das nossas cidades. Assim, sua
preservação tornou-se uma prioridade incontornável.
A documentação das expressões da cultura tradicional e popular na primei-
ra metade do século XX não constituiu, contudo, uma preocupação apenas do
campo da preservação do patrimônio. Folcloristas como Câmara Cascudo e Sil-
vio Romero, além de algumas instituições focalizaram esse tema, destacando-
se nesse contexto a antiga Campanha Nacional do Folclore, criada em 1947. A
Campanha realizou importante trabalho de documentação, promoção, apoio e
divulgação da cultura popular. Nos anos de 1950, o Centro Nacional de Folclore
7. Em 2003 o CNFCP, que
antes pertencia à Funarte, e Cultura Popular (CNFCP) assumiu suas funções, atualizou e ampliou os horizon-
está vinculado ao Departa- tes do seu trabalho.7
mento do Patrimônio Imate-
rial do IPHAN. Ao longo dos anos de 1970 e 80, um conceito de patrimônio cultural mais
amplo e mais próximo da concepção andradiana foi retomado, no bojo de uma
8. Maria Cecília Londres
Fonseca, “The Registry of
visão dos bens culturais como recursos para o desenvolvimento social e econô-
Intangible Heritage”. In: Mu- mico do país.8 Ao patrimônio foi ainda associada a missão de fortalecer a noção
seum International. p.169. de cidadania e de gerar insumos para a construção de uma idéia de Brasil como
Paris:UNESCO, 2004.
um país de muitas culturas e etnias. Esse conceito mais amplo permitiu, sob a
9. Designer e homem de batuta de Aloísio Magalhães9, a realização de algumas experiências significativas
cultura, Aloísio Magalhães de salvaguarda de técnicas tradicionais e de artesanatos. O principal resultado
dirigiu o Centro Nacional
de Referências Culturais
do período foi, contudo, a incorporação dessa noção mais larga de patrimônio
(CNRC) e o sistema SPHAN - cultural aos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Nestes, se introduz a
Fundação Nacional Pró- noção de direito cultural e se consolida a idéia de que patrimônio também diz
Memória até 1982 quando
faleceu. Foi responsável
respeito aos conhecimentos tecnológicos e aos modos de fazer, viver e criar dos
pela retomada da idéia an- vários grupos que compõem a sociedade brasileira.
dradiana de patrimônio
cultural e pelas experiências O Decreto n. 3.551, de 04 de agosto de 2000, que criou o Registro de bens
de salvaguarda do que hoje culturais de natureza imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial,
denominamos de patrimônio é resultado desse longo percurso, busca concretizar os princípios estabelecidos
imaterial nos anos 70.

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pela Constituição de 1988 e corresponde ao primeiro instrumento legal brasilei-


ro, adaptado à natureza dinâmica do que Aloísio Magalhães chamava de “bens
culturais vivos”. Juntamente com o Inventário Nacional de Referências Culturais
e com os Planos de Salvaguarda, constitui o principal marco e alicerce da polí-
tica federal de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. O objetivo desde
texto é, em suma, apresentar os princípios, diretrizes, mecanismos, resultados
e desafios dessa política.

Premissas gerais e princípios de atuação


A política salvaguarda desenvolvida atualmente no governo federal se es-
trutura em torno de conceitos, princípios e instrumentos que correspondem à
reflexão contemporânea sobre o tema, mas também diz respeito à história das
iniciativas brasileiras nesse campo. É essa característica, ou seja, a de resgatar
idéias e experiências anteriores, o que confere especificidade e fortalece esse
modo de organizar a ação governamental. Atuação que se fundamenta nos se-
guintes pressupostos:
1. O patrimônio cultural é uma construção social que diz respeito a
todos, ou seja, não é fruto apenas da ação do Estado e dos especialistas
aos quais sempre se delegou a tarefa de atribuir valor patrimonial aos
bens da cultura. Diz respeito, sobretudo, aos sujeitos sociais que produzem
e mantêm esse patrimônio. Essa visão mais ampla da competência para
atribuir valor decorre da percepção de que o universo do chamado patri-
mônio cultural imaterial é composto, principalmente, de fatos, atividades
e conhecimentos que estão enraizados no cotidiano das pessoas, possuem
valor diferenciado para elas e constituem suas principais referências cultu-
rais. É, em suma, e por envolver saberes e habilidades, um patrimônio cujo
suporte é essencialmente o ser humano, seu corpo e sua mente. Assim, o
reconhecimento dessas artes, saberes, ofícios e formas de expressão como
patrimônio deve fazer sentido e ter significado, antes de tudo, para os seus
detentores, ou seja, para aqueles que são, em última análise, os responsá-
veis por sua existência e continuidade.
2. A natureza dos bens culturais imateriais é dinâmica e mutável, ou seja,
esses bens são permanentemente reiterados e recriados. Com isso, a idéia
de autenticidade, tal como tradicionalmente utilizada no campo do patri-
mônio e relacionada à perenidade de uma forma, da matéria ou da confi-
guração geral do bem, não é aplicável a este universo. Os instrumentos de
identificação, reconhecimento e fomento do sistema de salvaguarda do
patrimônio cultural imaterial devem, portanto, ser formulados e aplicados
tendo em conta essa dinâmica.
3. O critério básico que orienta a seleção do que deve ser reconhecido e
declarado como patrimônio cultural imaterial é o da representatividade e
não o da excepcionalidade. Representatividade relacionada aos grupos e
segmentos sociais que constituem a sociedade brasileira e também aos di-

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versos contextos culturais que nosso território abriga. Esse critério orienta,
ainda, a identificação dos interlocutores locais e comunitários que partici-
pam dos processos de salvaguarda.
O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), o Registro e o Pro-
grama Nacional do Patrimônio Imaterial foram construídos a partir desses pres-
supostos e permitiram a institucionalização dessas idéias. Constituem, atual-
mente, as ferramentas por meios das quais o Ministério da Cultura e o IPHAN
implementam a política federal de salvaguarda, a qual está, ainda, ancorada nos
seguintes princípios de atuação:
• A adesão e a participação dos atores que mantêm e produzem esses bens
culturais nos processos de identificação, valorização e gestão desse patrimônio,
é condição sine qua non do processo de salvaguarda.
• O conhecimento detalhado dos processos de transmissão, produção e re-
produção que são constitutivos desses bens culturais é o fundamento das ações
de valorização, de apoio e de fomento que buscarão fortalecer sua continuida-
de e capacidade de permanência.
• A descentralização e a socialização dos métodos e procedimentos neces-
sários à produção de conhecimento; à instrução técnica de processos de re-
conhecimento patrimonial; ao acesso e uso de fontes de financiamento e ao
conhecimento do funcionamento do Estado são medidas essenciais para a pro-
moção da autonomia dos atores sociais que produzem esse patrimônio e que
devem ser vistos como os principais protagonistas da salvaguarda.
• A articulação da política de reconhecimento e valorização do patrimônio
cultural imaterial com outras políticas públicas, especialmente, nas áreas da
educação, do desenvolvimento social, do trabalho, da indústria, comércio, do
turismo e da ciência e tecnologia. Este princípio defende a centralidade da cul-
tura na formulação e articulação das políticas públicas como um passo decisivo
para que incorporem efetivamente a idéia de respeito à diversidade cultural
do país. Em outras palavras, sejam adequadas a essa diversidade e, ao mesmo
tempo, estimulem sua manutenção.
• Visão abrangente da expressão cultural objeto de reconhecimento e sal-
vaguarda, incluindo os atores que delam participam e o território em que se
desenvolve, permitindo identificar os problemas que a enfraquecem e atuar
em todos os aspectos que a fortalecem. Essa abordagem global permite agir
de modo estratégico, cuidadoso, discreto e, ao mesmo tempo, consistente na
melhoria e no fortalecimento das condições sociais, materiais e ambientais que
propiciam a existência e continuidade dos bens culturais imateriais. Permite
também diagnosticar e impulsionar as potencialidades econômicas e de benefí-
cio social que essas expressões contêm.
• Promoção e divulgação como modo de valorizar e ampliar a base social
comprometida com a continuidade dos bens culturais imateriais. Assim, a polí-
tica de salvaguarda do governo federal prevê a constituição e manutenção de
bases de dados para sistematização e difusão do conhecimento produzido so-

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bre essas manifestações culturais10, com observância dos limites de divulgação


apontados pelas comunidades envolvidas e dos direitos culturais e de proprie-
dade intelectual coletiva que possam estar imbricados num tal trabalho de di-
fusão.
• Por fim, valorização das pessoas que detêm e transmitem esse patrimônio
durante todo o processo de salvaguarda, o que inclui as etapas de identificação
do bem, do seu reconhecimento como patrimônio e a que corresponde ao de-
senvolvimento das ações de apoio e fomento à sua continuidade.

Estruturas institucionais
A estrutura do governo federal que tem a missão de liderar a implementa-
ção da política de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial é o Departamen-
to do Patrimônio Imaterial do IPHAN (DPI).11 O departamento é responsável pela
coordenação e supervisão, em nível nacional, das iniciativas de mapeamento,
inventário, registro, apoio e fomento que são realizadas ou promovidas pelas
unidades descentralizadas do IPHAN e por outras instituições parceiras.
O DPI está composto por uma Gerência de Identificação, responsável pela
10. O Departamento do coordenação dos mapeamentos e inventários de referências culturais; uma
Patrimônio Imaterial do Gerência de Registro, para avaliação, coordenação e supervisão das propostas
IPHAN (DPI) tem enfrentado de Registro de bens culturais imateriais; e uma Gerência de Apoio e Fomento,
dificuldades técnicas no
desenho e na implantação destinada à elaboração e implementação das ações e Planos de Salvaguarda
dessas bases, devido ao necessários para apoiar a continuidade, a transmissão e a melhoria das condi-
seu ineditismo e também à ções de produção e reprodução de bens inventariados e registrados. A Gerên-
complexidade do tema. De
todo o modo, até o final de cia de Apoio e Fomento é também responsável pela coordenação e supervisão
2008, estarão disponíveis na do acompanhamento dos editais públicos do Programa Nacional do Patrimônio
internet, através do portal do Imaterial (PNPI).
IPHAN, as bases de dados do
INRC e a dos Bens Cultur- Além desses setores, o departamento conta com um Comitê Gestor12 que
ais Registrados. O DPI vem também atua na avaliação geral do PNPI, e com a colaboração estreita do Cen-
desenvolvendo essas bases
desde 2005. tro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Conta, ainda, com as 21
superintendências regionais e com as 06 sub-regionais do IPHAN localizadas em
11. O Departamento do todos os estados do país, bem como com o apoio de parceiros governamentais
Patrimônio Imaterial do
IPHAN (DPI) foi criado pelo e não governamentais.
Decreto n. 5.040, de 07 de Outra importante estrutura relacionada à política de salvaguarda é a Câ-
abril de 2004.
mara do Patrimônio Imaterial do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural,
12. O Comitê Gestor do DPI é criada em 2005. Este foi um importante passo no sentido do compartilhamento
um colegiado composto pela das decisões relativas à política de salvaguarda do patrimônio cultural imate-
direção do departamento,
por um membro de cada
rial com a instância que representa a sociedade junto ao IPHAN. Composta por
uma de suas gerências e pela quatro membros do Conselho Consultivo, assistidos por dois representantes do
direção do CNFCP. DPI, a Câmara do Patrimônio Imaterial delibera sobre a pertinência e a priori-
13. Ver Os sambas, as
dade de instrução dos pedidos de registro encaminhados ao instituto, sobre a
rodas, os bumbas, os meus indicação de instituições capacitadas a realizar a instrução técnica desses pro-
e os bois: a trajetória da cessos, além de colaborar na formulação dos critérios para a avaliação periódica
salvaguarda do patrimônio
cultural imaterial no Brasil.
do registro de bens culturais imateriais, conforme determinação do Decreto n.
Brasília: IPHAN, 2006. 3.551/2000.13

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Legislação e produção de conhecimento


O Decreto n. 3.551/2000 instituiu o registro como uma forma de reconhe-
cimento dos saberes, celebrações, formas de expressão e lugares de produção
e reprodução desses bens que fazem parte do patrimônio cultural brasileiro, e
como uma maneira de incentivar sua valorização e de estabelecer o compromis-
so do Estado em documentar, produzir conhecimento e apoiar sua continuida-
de. Os bens culturais imateriais, como já foi observado, possuem uma dinâmica
de criação, atualização e transformação que faz com que o registro seja sempre
o retrato de um momento e, por isso, deva ser refeito periodicamente com a
finalidade de se acompanhar as adaptações ou mudanças que os processos so-
ciais, econômicos e de trocas culturais imprimem nessas manifestações. Esse
re-exame também é importante para se avaliar os impactos promovidos pelo
processo de patrimonialização nesses bens. Considerando essas peculiaridades
e questões, o Decreto 3.551/2000 determina que a documentação etnográfica
do bem cultural registrado seja atualizada, no máximo, a cada 10 anos e que seu
registro como patrimônio cultural seja re-avaliado e confirmado.
O Decreto n. 3.551/2000 também determina que as propostas de registro
sejam sempre coletivas e encaminhadas por estruturas governamentais ou da
sociedade. Uma vez enviadas ao IPHAN, são avaliadas em caráter preliminar
e, se julgadas procedentes pela Câmara do Patrimônio Imaterial, são encami-
nhadas para instrução. A instrução técnica dos processos de registro consiste
na reunião, sistematização e produção de documentação histórica, etnográfi-
ca e audiovisual sobre o bem cultural, podendo ser realizada pelas unidades
do IPHAN ou do Ministério da Cultura, pelos próprios proponentes do registro
ou por instituições que detenham conhecimento específico sobre a matéria. A
intenção dessa disposição legal é dar agilidade aos processos e possibilitar a
participação das comunidades e interessados na salvaguarda dos bens que con-
sideram parte de seu patrimônio cultural. O conhecimento produzido durante o
processo de registro é o que permite identificar, de maneira precisa, as formas
mais adequadas de apoio à continuidade do bem cultural.
O Decreto 3.551/2000 tem inspirado algumas unidades da federação a
adotar mecanismos semelhantes ou complementares. Ainda que a salvaguar-
da do patrimônio imaterial seja uma prática recém adotada no país, estados
brasileiros como Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba,
Pernambuco, Santa Catarina e o Distrito Federal promulgaram leis inspiradas
nesse decreto e/ou no Sistema Tesouros Humanos Vivos da Unesco. O resulta-
do da aplicação dessas legislações estaduais, contudo, tem se revelado insufi-
ciente e ainda muito distante dos seus objetivos.14 Na totalidade dos estados
onde o Sistema Tesouros Humanos Vivos foi adotado, por exemplo, os critérios
de seleção estão vinculados principalmente à situação de carência econômica
dos detentores do saber e não ao seu papel na manutenção das tradições e
ao reconhecimento coletivo desse papel junto às comunidades e grupos que
14. Ver conclusões da pesqui-
as mantêm. Esses mestres, uma vez titulados pelos governos estaduais, tam-
sa realizada pela UNESCO e pouco estão articulados, em caráter permanente, a programas de transmissão
Educarte, op. cit, 2007.

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dos seus saberes e habilidades para as novas gerações. Assim, boa parte desses
programas vem se configurando mais como um conjunto de ações de caráter as-
sistencialista do que como programas capazes de promover, numa visão ampla,
a continuidade dos bens culturais praticados e mantidos pelos mestres laurea-
dos.
Em 1998, quando se discutia as formas de salvaguarda do patrimônio cul-
tural imaterial15, avaliou-se que o Sistema Tesouros Humanos Vivos encontraria
esse tipo de dificuldade para se implantar adequadamente no Brasil. Assim, de
modo diverso, o Decreto n. 3.551/2000 e o INRC focalizam a expressão cultural
em toda a sua complexidade, incluindo não somente os responsáveis pela sua
transmissão – ou seja, os mestres –, mas também todos os demais atores so-
ciais que se relacionam com ela, o território onde ocorre e as condições sociais,
materiais e ambientais que propiciam sua existência. Na opção por um sistema
voltado para a valorização da expressão cultural em seu contexto, levou-se tam-
bém em consideração, além das questões acima apontadas, a tradição dos regis-
tros etnográficos e documentais feitos pelos pioneiros dessas reflexões no país.
Assim, um dos principais desafios do governo federal nesse campo é incentivar
uma maior aproximação entre o sistema federal e os estaduais, articulando-os
num sistema nacional coerente e integrado.
15. Ver O Registro do Até o momento, foram registrados e declarados Patrimônio Cultural do Bra-
Patrimônio Imaterial: dos-
siê final das atividades da sil, por meio da aplicação do Decreto n. 3.551/2000, doze bens culturais16. Além
Comissão e do Grupo de desses processos concluídos, 38 outras propostas de registro se encontram em
Trabalho Patrimônio Imate- fase de análise preliminar ou em andamento.
rial, Brasília, IPHAN, 2000
(1ª ed.). Paralelamente aos estudos que culminaram na promulgação do Decreto
16. O Ofício das Paneleiras
n. 3.551/2000, o IPHAN investiu também na elaboração de uma metodologia
do distrito de Goiabeiras, no de inventário que fosse adequada à natureza e à dinâmica dos bens culturais
Estado do Espírito Santo; a imateriais. O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), que investiga
Arte Kusiwa, pintura corporal
e arte gráfica dos indíge-
os diversos domínios da vida social que são marcos de identidade para deter-
nas Wajãpi, do Estado do minado grupo social, está estruturado em consonância com as categorias que
Amapá; o Samba de Roda do descrevem, segundo o Decreto n. 3.551/2000, o universo do patrimônio cultural
Recôncavo baiano; o Círio de
Nazaré, de Belém do Pará;
imaterial – saberes ou ofícios, celebrações, formas de expressão e lugares. Além
o Modo de Fazer Viola de dessas categorias, também são inventariadas edificações associadas a determi-
Cocho, nos Estados de Mato nados usos, a significações históricas e a imagens de certos lugares, indepen-
Grosso e Mato Grosso do
Sul; o Ofício das Baianas de
dentemente de sua qualidade arquitetônica ou artística.
Acarajé, tendo como refer- Até o momento, 25 inventários foram concluídos pelo IPHAN, por intermé-
ência essa prática na cidade
de Salvador, Bahia; o Jongo dio de suas Superintendências Regionais e do Centro Nacional de Folclore e Cul-
do Sudeste do país; o lugar tura Popular. Outros 24 estão em andamento em vários estados do país, even-
sagrado da Cachoeira de tualmente em parceria com outras instituições. Além dos inventários realizados
Iauaretê, no Estado do Ama-
zonas; a Feira de Caruaru, com base no método do INRC, várias iniciativas do gênero estão sendo imple-
no Estado de Pernambuco; mentadas por organizações não-governamentais e investigadores independen-
o Frevo de Recife e Olinda, tes, com patrocínios viabilizados pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura
também em Pernambuco; o
Tambor de Crioula do Estado (Pronac), instituído pela Lei n. 8.313/91, ou, ainda, fomentados pelos editais do
do Maranhão; e, por fim, as Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.
matrizes do Samba na cidade
do Rio de Janeiro.

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Aula 4
PATRIMÔNIO A política federal de salvaguarda do
IMATERIAL patrimônio cultural imaterial: diretrizes,
resultados e principais desafios.
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Um novo objeto patrimonial: a diversidade lingüística


Em 2001, o IPHAN recebeu um pedido inusitado: o registro de uma língua
que nasceu da mistura dos falares dos imigrantes provenientes da região do
Vêneto, na Itália, o talian – língua falada hoje por cerca de três milhões de bra-
sileiros que vivem, em sua maioria, no Sul do país.
O pedido de registro do talian impulsionou a discussão sobre as línguas
como patrimônio cultural, contribuindo para provocar a realização, em março
de 2006, do “Seminário sobre a criação do Livro de Registro das Línguas”, pro-
movido pelo IPHAN, pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Depu-
tados e pelo Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística
– Ipol. Como recomendação desse seminário foi criado, sob a coordenação do
Departamento do Patrimônio Imaterial do IPHAN, o Grupo de Trabalho da Di-
versidade Lingüística (GTDL), composto por especialistas e representantes de
várias áreas de governo17, com o objetivo de propor medidas de reconhecimen-
to, preservação e promoção da diversidade lingüística existente no país.
De grande alcance social, cultural e político, as propostas do GTDL, após 18
meses de trabalho, encaminham, em primeiro lugar, a ampliação e sistematiza-
ção do conhecimento sobre nossa riqueza lingüística e sua divulgação por meio
do Inventário Nacional da Diversidade Lingüística (INDL). Em segundo, a institui-
ção desse inventário como um instrumento de reconhecimento patrimonial, na
medida em que cada língua nele incluída fará jus ao título de “Referência Cultu-
ral Brasileira” e às iniciativas de valorização e promoção por parte do poder pú-
blico, conforme cada situação encontrada. Assim, além de se constituir em um
instrumento de gestão desse aspecto fundamental de nossa diversidade cultu-
ral, o INDL será também uma forma de reconhecimento e salvaguarda suficien-
temente ampla e capaz de adequar-se ao papel fundamental que cada língua
17. O grupo de trabalho exerce no seu contexto territorial e social. Paralelamente, propõe-se a criação
reuniu especialistas de
notório saber, além de insti-
de um Sistema de Documentação e Informação, a ser gerenciado pelo IPHAN,
tuições como a Secretaria com o apoio das instituições parceiras, que reunirá os dados sistematizados no
de Educação Continuada, INDL. Por meio desse sistema, os dados do inventário estarão à disposição dos
Alfabetização e Diversidade,
do Ministério da Educação;
vários níveis e áreas de governo para subsidiar a formulação e implementação
o IBGE; a Funai, através do de políticas de promoção e preservação lingüística.
Museu do Índio; a Fundação
Cultural Palmares; a Unesco; Uma vez implantado o INDL, e logo que apresente seus primeiros resultados,
o Conselho Consultivo do propõe-se criar o Livro de Registro das Línguas, conforme possibilidade estabe-
Patrimônio Cultural e a lecida pelo Decreto n. 3.551/2000.18 Esse novo livro possibilitará um aprofun-
Comissão de Educação e
Cultura da Câmara. damento da análise patrimonial das línguas inventariadas e considerará, entre
outros aspectos, sua representatividade no quadro da nossa diversidade social
18. O Decreto n. 3.551/2000 e étnica. Por fim, mas de importância capital, o GTDL propôs que essa política
estabelece em seu artigo 1º,
parágrafo 3º, a possibilidade nacional de reconhecimento e valorização da diversidade lingüística brasileira
de abertura de novos livros seja integrada e constitua um compromisso de várias áreas de governo, em es-
de registro para a inscrição pecial as da Cultura, da Educação, da Justiça, da Ciência e Tecnologia e do Plane-
de bens que constituam
patrimônio cultural brasileiro jamento e Gestão. Além disso, que seja executada com a estreita participação
e não se enquadrem nos das comunidades lingüísticas e compartilhada com a sociedade. Para tanto, está
livros criados no 1º parágrafo também prevista a criação de um fundo constituído por recursos oriundos dos
deste artigo.

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Aula 4
PATRIMÔNIO A política federal de salvaguarda do
IMATERIAL patrimônio cultural imaterial: diretrizes,
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Profa. Marcia Sant’Anna

vários setores governamentais envolvidos, de doações e de parcerias. Os recur-


sos desse fundo serão disponibilizados por meio de editais públicos aos quais
entidades capacitadas a realizar esse tipo de levantamento poderão concorrer
submetendo seus planos de trabalho à avaliação de uma comissão técnica com-
posta por especialistas e representantes das áreas governamentais envolvidas,
a ser instituída pelo Ministro da Cultura.
Uma importante conquista do GTDL foi articular junto ao IBGE a possibili-
dade de inclusão de quesito sobre as línguas maternas faladas por comunidades
brasileiras no censo populacional de 2010. Com isto, um primeiro mapeamento
da situação lingüística no país será realizado, o que permitirá afinar e ampliar a
política de inventário e reconhecimento nessa matéria.
O GTDL concluiu suas atividades em novembro de 2007 e no dia 13 de de-
zembro foi realizada uma Audiência Pública, na Comissão de Educação e Cultura
da Câmara dos Deputados para a apresentação dessas propostas e para sua dis-
cussão e validação junto a especialistas e comunidades falantes. A acolhida foi
extremamente positiva e, em breve, o processo que contém essa nova política
setorial de valorização será encaminhado ao Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural e ao Ministério da Cultura. A expectativa é que em 2008, esses novos
instrumentos de salvaguarda estejam criados e em início de implementação.19

Salvaguarda e ações sustentáveis


A salvaguarda de um bem cultural imaterial se desenvolve, basicamente, se-
gundo três eixos: o das ações de inventário e registro; o que trata da implemen-
tação de ações de promoção e de apoio à continuidade da expressão cultural, e
o que diz respeito à proteção dos direitos coletivos ou difusos vinculados a esse
tipo de patrimônio.
As ações de promoção e apoio são de natureza muito variada. O conheci-
mento produzido durante os trabalhos de inventário e registro é, em última aná-
lise, o que permite identificar, com precisão, a forma de apoio mais adequada
e capaz de promover a continuidade desse bem. A idéia central é favorecer a
permanência dessas expressões, a partir de uma intervenção de apoio cuidado-
sa e, sobretudo, discreta por parte do Estado. Assim, as ações de fortalecimento
vão desde o apoio à transmissão de conhecimentos tradicionais e à divulgação
desses bens, até a facilitação do acesso a matérias primas e a públicos e mer-
cados. Esta diretriz geral organiza também os Planos de Salvaguarda que são
desenvolvidos no IPHAN para os bens culturais já registrados, assim como para
bens inventariados que se encontram em situação de risco de desaparecimento.
O objetivo final é gerar processos sustentáveis de fortalecimento e continuida-
de desse patrimônio, conduzidos, de modo autônomo, por seus detentores e
19. Ver Relatório de Ativi- criadores.
dades do Grupo de Trabalho
da Diversidade Lingüística. A utilização ou a comercialização indevida de conhecimentos tradicionais; a
Brasília: IPHAN: Comissão modificação de produtos artesanais para comercialização e consumo rápidos; a
de Educação e Cultura da
Câmara: Ipol, 2007. desagregação de contextos culturais provocada por impactos gerados por mi-

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IMATERIAL patrimônio cultural imaterial: diretrizes,
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grações, problemas econômicos, pelo turismo não planejado ou pela implanta-


ção de grandes empreendimentos são algumas das ameaças que pesam sobre o
patrimônio cultural imaterial. Entre essas, a falta de disposições legais que prote-
jam, de modo amplo, os conhecimentos tradicionais contra utilizações indevidas
ou exploração econômica é, sem dúvida, um dos problemas mais importantes.
Comunidades sofrem constantemente com a pirataria de seus conhecimentos
ancestrais e, por esse motivo, o Ministério da Cultura está desenvolvendo estu-
dos, juntamente com outras áreas de governo, para a criação de mecanismos
legais de proteção dos direitos coletivos relacionados a esses bens.
Os conhecimentos tradicionais vinculados à proteção de nossa biodiversi-
dade vêm sendo tratados no âmbito do Conselho de Gestão do Patrimônio Ge-
nético (CGEN), do Ministério do Meio Ambiente, com base na Medida Provisória
n. 2186-16. O Ministério da Cultura tem assento no CGEN e por meio desse
dispositivo legal se tem controlado o acesso a esse tipo de conhecimento, me-
diante a assinatura de Termos de Anuência Prévia por parte das comunidades
que detêm técnicas e saberes associados à biodiversidade. Esse dispositivo tam-
bém estabelece a assinatura de Contratos de Repartição de Benefícios entre as
comunidades e os que poderão vir a auferir benefícios econômicos com o uso
autorizado desses conhecimentos.

Cooperação internacional e participação do Brasil na imple-


mentação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cul-
tural Imaterial
O Brasil faz parte do Comitê Inter-Governamental destinado a por em mar-
cha a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial
e a divulgar seus princípios.20 Baseada na experiência acumulada na implemen-
tação da política de salvaguarda desenvolvida pelo IPHAN (e também nas inicia-
tivas de instituições estaduais, municipais, e de organismos públicos e privados),
a atuação brasileira nesse Comitê tem sido reconhecida e se pautado na defesa
da participação mais ampla e ativa possível dos produtores e transmissores do
patrimônio cultural imaterial nas ações de implementação da Convenção.
20. Em junho de 2006, du- Uma vez que o patrimônio intangível ultrapassa fronteiras nacionais, consi-
rante a 1ª Assembléia Geral dera-se importante a união e a cooperação entre os países de América Latina.
dos Estados-Parte da Con-
venção para a Salvaguarda
Por essa razão, o Brasil apoiou desde o começo a instalação de um centro latino-
do Patrimônio Cultural americano dedicado ao tema. O Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimô-
Imaterial, o Brasil foi um dos nio Cultural Imaterial da América Latina (CRESPIAL), sediado em Cuzco, no Peru,
24 países eleitos para inte-
grarem o seu Comitê Inter-
é auspiciado pela Unesco e tem como principais missões divulgar e colaborar
Governamental. Em sorteio, na implantação dos princípios e recomendações da Convenção para a Salva-
foi também um dos países guarda do Patrimônio Cultural Imaterial e articular projetos e ações regionais
selecionados para o mandato
de dois anos. A Conselheira
de salvaguarda desse patrimônio na América Latina. O governo brasileiro consi-
Maria Cecília Londres Fon- dera importante o fortalecimento desse centro, pois este poderá configurar um
seca foi nomeada represen- importante espaço de intercâmbio e de coordenação de projetos regionais de
tante do Brasil neste Comitê
com o apoio da Delegação
salvaguarda, como o que já está sendo articulado entre Brasil, Argentina, Bolívia
Brasileira junto à Unesco. e Paraguai para valorização da cultura Guarani. Muitos outros projetos dessa

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amplitude podem vir a ser acordados, o que é importante para a continuidade


de expressões culturais que demandam uma abordagem mais ampla daquela
que é possível no nível nacional.
O projeto de valorização da cultura Guarani foi sugerido pelo Brasil ao
CRESPIAL com base nos resultados do inventário de referências culturais reali-
zado com comunidades M’Byá-Guarani da região das Missões Jesuíticas do Rio
Grande do Sul. Desenvolvido pela 12ª Superintendência Regional do IPHAN, o
inventário foi concluído em 2007 e seus resultados serviram de base para a
identificação de várias ações de salvaguarda junto às comunidades inventaria-
das, bem como para a ampliação desse trabalho para os demais estados brasi-
leiros onde a presença M’Byá-Guarani é expressiva – Santa Catarina, Paraná,
São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
A realização desses inventários estaduais é um dos componentes da atuação
do Brasil no projeto latino-americano e conta com o apoio técnico do Instituto
Andaluz de Patrimônio Histórico – IAPH e com o apoio financeiro da Agência
Espanhola de Cooperação Internacional (AECI). Por ter se tornado referência
no plano internacional há a recomendação, no âmbito do CRESPIAL, de que a
metodologia do INRC seja utilizada ou adaptada pelos demais países que par-
ticiparão do projeto de valorização da cultura Guarani, o que já foi confirmado
pela Argentina.
Com esse projeto regional, o Brasil e os demais países latino-americanos
que dele participam estarão realizando ação pioneira e concretizando princípios
fundamentais da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imate-
rial, como a participação das comunidades detentoras nos projetos de salva-
guarda e a cooperação internacional.

Articulação, ampliação e descentralização da política de sal-


vaguarda
Um dos principais desafios da política federal de salvaguarda do patrimônio
cultural imaterial é, sem dúvida, sua articulação com as políticas públicas das
áreas da educação, do trabalho, da ciência e tecnologia e do meio ambiente.
Não menos importante é também sua ampliação e nacionalização por meio do
envolvimento e da integração com as esferas estadual e municipal, assim como
mediante a sensibilização da sociedade para o desempenho do seu papel fun-
damental nessa tarefa.
Embora o governo federal venha implementando uma política bem funda-
mentada e de resultados significativos, sua articulação com outras políticas go-
vernamentais ainda carece de avanços, assim como são cada vez mais necessá-
rios e urgentes os investimentos para que seus princípios, instrumentos e metas
sejam compartilhados com as demais esferas governamentais. Assim, uma das
principais tarefas do IPHAN em 2008 será a divulgação do “Balaio do Patrimônio
Imaterial” – conjunto de publicações que orientam a estruturação de sistemas
de salvaguarda nos planos estadual e municipal, a ser distribuído numa série de

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reuniões regionais nas quais estarão presentes organismos de cultura dos esta-
dos e municípios. Tais encontros visam também a consolidar as unidades regio-
nais do IPHAN como pontos articuladores e multiplicadores desse processo de
ampliação da política federal.
Alguns passos fundamentais, contudo, já foram dados em 2007 no que toca
à articulação da política de salvaguarda com outros programas do Ministério
da Cultura e do governo federal, destacando-se o que vincula os Planos de Sal-
vaguarda de bens registrados com o Programa Cultura Viva, da Secretaria de
Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura.
Reconhecendo-se a legitimidade social dos processos de registro e a parti-
cipação dos detentores desses bens culturais nos seus Planos de Salvaguarda,
criou-se uma nova modalidade de pontos e “pontões” de cultura vinculados à
montagem de redes de centros de referências dessas expressões. Para tanto,
seis convênios já foram celebrados para a implantação de “pontões” de cultura
relacionados ao Círio de Nazaré, ao samba de roda, ao ofício de baiana de aca-
rajé, ao jongo, à arte kusiwa Wajãpi e à Cachoeira de Iauaretê.
Outra importante articulação ocorreu com a celebração de convênio entre
a Associação de Amigos do Museu de Folclore Edson Carneiro, que apóia o Cen-
tro Nacional de Folclore e Cultura Nacional (CNFCP), e o Programa de Desenvol-
vimento da Economia da Cultura do MinC para a implantação do Programa de
Promoção do Artesanato de Tradição Cultural – Promoarte. Este programa per-
mitirá a ampliação das ações de apoio às comunidades artesanais desenvolvidas
há vários anos pelo CNFCP, por meio do desenvolvimento de oficinas voltadas
para realçar o valor cultural, organizar e melhorar a infra-estrutura de produ-
ção, bem como para capacitar artesãos e implantar estruturas qualificadas de
escoamento e distribuição.
Ainda em 2007, também teve início a articulação da política federal de sal-
vaguarda do patrimônio cultural imaterial à Política Nacional de Desenvolvi-
mento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais, do Ministério do
Meio Ambiente – MMA. Mediante projetos que serão desenvolvidos no âmbito
do “Eixo Povos e Comunidades Tradicionais” – linha de atuação que reúne as
ações do MMA na Agenda Social do governo federal – o IPHAN e o Instituto
Chico Mendes realizarão o mapeamento das referências culturais de comunida-
des que habitam 53 reservas extrativistas, a partir da experiência realizada pelo
IPHAN na reserva de Xapuri, no Acre.21 Com base nesses mapeamentos será de-
finida a implantação de pontos de cultura e de ações de apoio às comunidades
artesanais dessas reservas.
No âmbito do Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac, cabe des-
tacar a produção de documentários para televisões públicas, através do Etno-
doc – Edital de Apoio a Documentários Etnográficos sobre Patrimônio Cultural
Imaterial – uma parceria entre o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular,
21. Esta experiência foi Associação de Amigos do Museu de Folclore Edson Carneiro e Petrobrás. Lança-
desenvolvida em parceria
com a Fundação Elias Mansur
do em 2007, na abertura da Mostra Internacional do Filme Etnográfico, o edital
do Estado do Acre. teve excelente acolhida, registrando a marca de mais de 500 projetos encami-

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nhados. Num processo de seleção extremamente difícil devido à qualidade das


propostas, foram selecionados 15 documentários cuja produção e lançamento
ocorrerão ao longo de 2008.

Desafios e perspectivas
Apesar das conquistas e avanços registrados até o momento, os principais
desafios da política federal de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial se-
guem sendo:
1. promover a incorporação de seus princípios, instrumentos e metas pelas
instâncias estaduais e municipais;
2. avançar na implantação de projetos regionais que articulem ações entre
o Brasil e os países da América Latina que conosco compartilham heranças e
contextos culturais;
3. articular a política de salvaguarda e seus programas com os outros setores
governamentais – como educação, meio ambiente, trabalho, desenvolvimento
social, turismo e indústria e comércio – que são estratégicos para a melhoria e
fortalecimento das condições sociais, ambientais e econômicas que permitem a
transmissão e continuidade dos bens culturais imateriais;
4. desenvolver ações de sensibilização da sociedade para que sua participa-
ção na tarefa de salvaguarda seja ampliada;
5. concluir o mapeamento de referências culturais no território nacional
como base para ações integradas de reconhecimento e valorização;
6. formular mecanismos e instrumentos que garantam direitos de proprie-
dade coletiva e outros associados ao uso e difusão dessa dimensão do patrimô-
nio cultural;
7. formular e implantar indicadores de avaliação dos resultados da política
de salvaguarda;
8. alimentar e tornar disponível para a sociedade em geral as base de dados
sobre bens culturais inventariados e registrados.
Brasília, abril de 2008.

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DEBATES
1) O que é uma política pública? A política federal de salvaguarda do patri-
mônio cultural imaterial já possui os elementos básicos para se configurar como
tal?
2) As premissas, princípios e instrumentos dessa política são adequados aos
seus objetivos de promover a salvaguarda sustentada do patrimônio cultural
imaterial no Brasil?
3) Que elementos seriam centrais para se promover uma avaliação dos re-
sultados dessa política?
4) Como ampliar a participação da sociedade brasileira na tarefa de salva-
guarda do patrimônio cultural imaterial?

realização produção

EADDUO

apoio institucional

Secretaria da Identidade Ministério


e da Diversidade Cultural da Cultura

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