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ISBN 978-85-275-0694-6
Q vidanova.com.br
O /vidanovaedicoes
9 788527 506946
VIDA NOVA Q @edicoesvidanova
UM MODELO
deMATU
RIDADE
CRISTÃ
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS REPROGRÁFICOS
° DIRE.I10
Carson, D. A.
Um modelo de maturidade cristã: exposição de 2Coríntios 10—13 /
D. A. Carson; tradução de Mareia B. Medeiros; Vanderson Moura da
Silva; Marcos Vasconcelos. - São Paulo: Vida Nova, 2017.
192 p.
Bibliografia
1SBN 978-85-275-0694-6
Título original: A model of Christian maturity: an expoiition of
2 Corinthiam 10—13
□0
VIDA NOVA
®1984, de Baker Book House Company
Título do original: A model of Christian maturity: an exposition of2 Corinthians 10—13,
edição publicada pela Baker Books,
uma divisão do Baker Publishing Group (Grand Rapids, Michigan, EUA).
1 .a edição: 2017
Direção executiva
Kenneth Lee Davis
Gerência editorial
Fabiano Silveira Medeiros
Edição de texto
Marisa K. A. de S. Lopes
Revisão de tradução
e preparação de texto
Mareia P. Barrios Medeiros
Revisão de provas
Ubevaldo G. Sampaio
Gerência de produção
Sérgio Siqueira Moura
Diagramação
Luciana Di Iorio
Capa
Souto Crescimento de Marca
Para Pete e Gail Golz.
Sumário
Mazinho Rodrigues!
Prefácio................................................................................................................................ 9
Comentários utilizados
Como este livro não é um comentário técnico, evitei as referências detalhadas
típicas desse gênero. Mas, quando foram publicados nos Estados Unidos os
dois primeiros volumes da série a que este volume pertence originalmente,
vários leitores sugeriram que eu fornecesse uma lista de comentários. Acatei a
sugestão e, ocasionalmente, cito certos trechos desses comentários, identificando
a obra apenas pelo nome do autor. Evitei ao máximo referências explícitas a
obras, artigos de periódicos e outras fontes semelhantes em língua estrangeira,
embora tenha com frequência interagido com seu conteúdo. Há dois comen
tários em língua estrangeira, porém, que não pude eliminar da lista a seguir
de fontes citadas.
PREFÁCIO
Allo, E. B. Saint Paul: Seconde Epitre aux Corinthiens (Paris: Gabalda, 1956).
Barrett, C. K. The second Epistle to the Corinthians (London: Black, 1973).
Beet, J. A. II Corinthians (London: Hodder and Stoughton, 1982).
Bengel, J. A. Gnomon of the New Testament (Edinburgh: T and T Clark,
1857). vol 3.
Bruce, F. F. 1 and 2 Corinthians (London: Oliphants, 1971).
Calvin, John. II Corinthians—Philemon (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1964).
Denney, James. II Corinthians (London: Hodder and Stoughton, 1984).
Fausset, A. R. II Corinthians. Commentary on the Bible (London: Collins, 1874).
Goudge, H. L. II Corinthians (London: Methuen, 1927).
Harris, M. J. 2 Corinthians. The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids:
Zondervan, 1976). vol 10.
Henry, Matthew. Commentary on the whole Bible (London: Fisher, 1845).
Hodge, Charles. II Corinthians (London: Banner of Truth, 1959).
Hughes, Philip E. PauPs second Epistle to the Corinthians (Grand Rapids:
Eerdmans, 1962).
Lietzmann, H. An die Korinther I, II (Tuebingen: J. C. B. Mohr, 1969). (Obra
ampliada por W B. Kuemmel.)
Mengies, Allan. II Corinthians (London: Macmillan, 1912).
Meyer, H. A. W Criticai and exegetical handbook to the Epistles to the Corinthians
(Edinburgh: T and T Clark, 1964).
Robertson, A.; Plummer, A. II Corinthians (Edinburgh: T and T Clark, 1915).
Waite,J. II Corinthians (London: John Murray, 1881).
Wilson, Geoffrey. 2 Corinthians: a digest of reformed comment (Edinburgh:
Banner of Truth, 1973).
1 Orientações para 2Coríntios 10—13
sua sintaxe, fragmentada (como de imediato sugere um relance por várias ver
sões bíblicas em torno, por exemplo, de 2Co 13.2!). Logo, a sabedoria impõe
que façamos um trabalho de reconhecimento do texto adiante de nós, esse é o
propósito deste capítulo. Alguns leitores podem preferir ir direto para o capí
tulo 2, mas uma leitura da exposição sem conhecimento adequado do contexto
pode se mostrar desnecessariamente frustrante.
Levantamos duas questões:
também como ele viveu; e seu exemplo ainda ajuda cristãos zelosos a viverem
em maior conformidade com o supremo padrão, o Senhor Jesus.
Em um nível superficial, aprendemos muitíssimo mais sobre os sofrimentos
de Paulo com esses capítulos do que no livro de Atos. Lucas nos relata sobre um
naufrágio; Paulo nos informa (2Co 11.25) sobre três outros que ocorreram antes
daquele mencionado em Atos. Lucas jamais menciona os açoites que o apóstolo
recebeu dos judeus; Paulo enumera as cinco vezes em que foi açoitado (v. 24).
Lucas narra de forma bastante sucinta a fuga de Paulo de Damasco (At 9.23-25),
obviamente vendo no acontecimento algo da graciosa providência de Deus;
Paulo olha retrospectivamente para a mesma experiência com um profundo
senso de vergonha (2Co 11.30-33). Todavia, esses e outros fragmentos de
informação não são, afinal de contas, superficiais, pois nos capacitam a apreciar
um lado do apostolado que somos propensos a ignorar: a imensa capacidade
de sofrer por amor a Jesus.
Isso nos leva a considerar a segunda característica da vida de Paulo destacada
nitidamente aqui: seu estilo de liderança, a maneira que exercia sua autoridade
apostólica. Vemos um Paulo capaz de ameaçar (2Co 13.2), explicar (12.10),
amar (11.11), repreender (12.11) e até usar de sarcasmo (v. ló). Mas quando? E
por quê? Esses recursos apostólicos são reflexos de uma autoridade arrogante
ou de um servo de Cristo que está relutante em usar o pleno poder com o
qual Deus o equipou? Em que sentido Paulo é um exemplo normativo para a
liderança cristã de hoje?
Outra área digna da mais rigorosa imitação, não há dúvida, é a forma de
Paulo lidar com a vangloria. Esse é um tema tão central aqui que retornaremos
a ele diversas vezes. Por ora basta dizer que Paulo normalmente é muito reti
cente em falar sobre as maravilhosas coisas que Deus realiza por meio dele ou
lhe revela. Seu axioma é, “quem se gloriar, glorie-se no Senhor” (2Co 10.17).
No entanto, nesses capítulos descobrimos Paulo se gloriando, ainda que se sinta
intensamente desconcertado ao ser forçado a falar assim (e.g., 11.16-18). O que
o leva a adotar tais medidas? De que forma a autopromoção cristã de nosso
tempo imita Paulo nesse aspecto, e de que forma diverge dele?
Por fim, Paulo alerta a igreja em Corinto sobre os perigos da falsa liderança.
Se os coríntios podiam ser enganados por gente que Paulo descreve como “falsos
apóstolos, obreiros enganosos, fingindo-se apóstolos de Cristo” (2Co 11.13),
não podemos ser enganados de igual modo? Quais perspectivas nos preservarão
desse perigo? Como devemos fazer para aplicar a nós mesmos (da forma que
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ
Dessa vez, Paulo não permaneceu por muito tempo. Deixou Priscila e Áquila
ali e rumou para Jerusalém apressadamente, esperando chegar a tempo para a
festa (a Páscoa ou o Pentecoste). Após uma curta estada em Jerusalém, Paulo
viajou para o norte, em direção à Antioquia, na Síria, sua “igreja de origem”,
reatando a comunhão e a amizade com muitos amigos, e depois regressando
a Efeso. E assim começou ali um ministério de dois anos e meio imensamente
frutífero (que se estendeu provavelmente do outono de 52 d.C. à primavera de
55 d.C.); foi nesse período que as cartas para a igreja de Corinto foram escritas.
A certa altura (não sabemos exatamente quando) Paulo enviou a seus
convertidos de Corinto uma carta, hoje perdida, a qual poderiamos designar
Coríntios A. Paulo faz menção a essa carta anterior em ICoríntios 5.9-11, em
que o contexto deixa claro que Paulo faz uma distinção entre Coríntios A e nossa
carta de ICoríntios (que se torna, então, Coríntios B, na ordem sequencial).
Na primeira carta, ele alertou seus convertidos contra a fornicação e a outras
depravações, dizendo-lhes para não se associarem àqueles que praticam tais
coisas; porém, depois, em ICoríntios, ele também explica que não pretendia
com essa proibição forçar uma separação total entre os cristãos e “[os] imorais
deste mundo, nem [os] avarentos, [os] ladrões ou [os] idólatras. Se assim fosse,
vocês precisariam sair deste mundo” (lCo 5.10). Antes, explica o apóstolo,
está lhes dizendo na primeira carta que não deviam se associar “com qualquer
que, dizendo-se irmão, seja imoral, avarento, idólatra, caluniador, alcoólatra ou
ladrão” (v. 11). Paulo acrescenta que com “tais pessoas vocês nem devem comer”
(v. 11). Em outras palavras, Paulo exigia que houvesse disciplina na igreja, e até
mesmo excomunhão, se necessário, e não o afastamento completo provocado
por um isolamento austero.
Houve razões mais amplas para que Paulo escrevesse ICoríntios em algum
momento, durante seu ministério em Efeso. Ele recebera relatos verbais feitos
“por alguns da casa de Cloe” (lCo 1.11) acerca das facções que se formaram
dentro da igreja de Corinto; e a essa medonha divisão estava aliada à arrogância
(que é sempre uma ameaça ao poder do evangelho). Ressentimentos mútuos
acabaram resultando em processos judiciais, e até mesmo em tolerância para
com a promiscuidade sexual crassa que estava ocorrendo. Além disso tudo, três
homens, Estéfanas, Fortunato e Acaico (16.17), foram enviados como delegados
oficiais da igreja de Corinto; e junto com presentes, eles (ao que parece) leva
ram uma carta (cf. 7.1) da igreja com uma série de perguntas sobre casamento,
sexo, ingestão de alimento oferecido aos ídolos, as características necessárias
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 19
desastrosa que tenha sido a visita que causou tristeza, o apóstolo não considerava
aquela igreja como fundamentalmente renegada e apóstata, mas, sim, como
uma igreja vacilante, incerta de suas lealdades, com metade de seus membros
muito seguros de si e excessivamente propensa à divisão e à tolerância não só
em relação a pecadores manifestos, mas também àqueles que se autointitula-
vam líderes e se opunham tanto a Paulo quanto a seu evangelho. É por essa
razão que Paulo ainda pode se gloriar da generosidade dessa igreja para com
Tito (7.14) e mesmo para com os macedônios (9.2), embora em certos outros
aspectos a igreja estivesse em uma situação espiritualmente perigosa. (Devemos
nos lembrar, porém, que era prática do apóstolo ser grato e transmitir generoso
encorajamento sempre que possível a suas igrejas, mesmo quando o quadro
geral não fosse tão brilhante: ICo 1.4-7 é testemunha disso!) Mas, por mais
que façamos essas ressalvas, a situação levou Paulo a escrever a severa e dolorosa
carta que acabamos de descrever.
Enquanto isso, Paulo continuava seu ministério na Ásia Menor, sem dúvida
dedicando atenção a Éfeso. Como se não bastasse o esgotamento emocional
causado pela igreja de Corinto, durante esse período ele enfrentou algumas das
piores oposições e os mais assustadores perigos pelos quais já havia passado. Mais
tarde ele escreveu: “Irmãos, não queremos que vocês desconheçam as tribulações
que sofremos na província da Ásia, as quais foram muito além da nossa capaci
dade de suportar, ao ponto de perdermos a esperança da própria vida. De fato,
já tínhamos sobre nós a sentença de morte, para que não confiássemos em nós
mesmos, mas em Deus, que ressuscita os mortos. Ele nos livrou e continuará
nos livrando de tal perigo de morte” (2Co 1.8-10). Não sabemos detalhes
desses perigos; porém, sabemos, sim, que logo após o tumulto de Demétrio
(At 19.23—20.1) Paulo deixou Éfeso rumo a Trôade (2Co 2.12,13; a expressão
pode ser uma referência ou ao porto de Trôade ou à região em que este ficava.
Cf. At 20.6) onde esperava ao mesmo tempo encontrar Tito retornando com
notícias de Corinto e pregar o evangelho. A segunda esperança foi concreti
zada: ele viu que o Senhor lhe “havia aberto uma porta” (2Co 2.12). Sua outra
esperança, contudo, não se cumpriu; e Paulo foi forçado a escrever “não tive
sossego em meu espírito, porque não encontrei ali meu irmão Tito” (v. 13).
Ao que parece Paulo e Tito tinham feito planos para possivelmente se
encontrarem na Macedônia (talvez em Filipos), caso o encontro em Trôade
não ocorresse; pois foi para lá que Paulo se dirigiu em seguida, provavelmente
tão logo o tempo permitiu a navegação, ainda na esperança de encontrar Tito
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
é tão central nos primeiros capítulos? Mesmo que o problema tivesse sido
resolvido na época em que foram escritos os capítulos 1 a 9, por que tal fato
não foi registrado, ao passo que a solução dos outros problemas, supostamente
menos importantes, foi devidamente registrada? Devemos rejeitar a tese de que
2Coríntios 10 a 13 deve ser identificada como Coríntios C.
Segundo: Muitos outros defendem a unidade essencial de 2Coríntios. Isso
obviamente se encaixa com a evidência textual; porém, é preciso encontrar
alguma razão sólida para a demonstrável mudança de tom entre as duas porções
da carta, ou seja: de um lado, os capítulos 1 a 9, e de outro, os capítulos 10 a 13.
As soluções propostas variam enormemente. Talvez Paulo tenha tido uma noite
de insônia, sugere Lietzmann; quem sabe o apóstolo esteja finalmente revelando
suas emoções profundas sobre tais assuntos, até então reprimidas (Menzie,
Robertson); talvez essa mudança reflita nada mais do que os altos e baixos do
temperamento de Paulo (Goudge); ou pode ser que as diferenças entre os capí
tulos 1 a 9 e os capítulos 10 a 13 tenham sido imensamente exageradas e de fato
não haja problema algum a ser resolvido (Hughes — que faz comparações entre
1.13 e 10.11; 1.17 e 10.2; 2.1 e 12.14,21 e 13.1-2; 2.17 e 12.19; 3.2 e 12.11;
6.13 e 11.2 e 12.14; 8.6,8,22 e 12.17,18).
No entanto, listas semelhantes de comparações podem ser feitas entre
2Coríntios 10 a 13 e 1 Coríntios (e algumas dessas conexões serão analisadas nesta
exposição); mas ninguém defende que tais paralelos provem que os capítulos
10 a 13 de 2Coríntios sejam realmente uma parte de ICoríntios. A mudança de
tom entre os capítulos 1 a 9 e os capítulos 10 a 13 é perceptível demais para ser
ignorada, e as explicações comumente dadas não são muito satisfatórias. Será que
Paulo era tão emocionalmente imaturo que não conseguia se conter? Seu tem
peramento era tão volátil quanto sugerem alguns? Afinal de contas, a mudança
de tom estende-se à sua postura pastoral para com os coríntios; os capítulos 1
a 9 mostram Paulo essencialmente edificando os coríntios; construindo pontes
até eles, e até as repreensões são parte desse intento; ao passo que os capítulos
10 a 13 mostram Paulo demolindo os coríntios com ironia, censurando-os
com severidade, e até mesmo as breves palavras de encorajamento fazem parte
desse padrão. No mínimo, parece necessário supor que houve uma mudança
na questão pastoral que Paulo estava confrontando.
Essa possibilidade sugere algo mais em linha com a próxima explicação:
Terceiro: Muitos comentaristas sugerem que 2Coríntios 10 a 13 foi escrito um
tanto depois dos capítulos 1 a 9. Conforme esse ponto de vista, Tito encontrou
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13
mantido mais ou menos a mesma postura para com seus leitores do começo
ao fim de sua carta.
Porém, talvez possamos juntar os pontos fortes da segunda e da terceira
explicações. Se Paulo estava tão ávido quanto parece ter estado por ouvir as
notícias trazidas por Tito, fica difícil acreditar que ele pudesse ter partido para
outras viagens pastorais e evangelísticas sem preparar absolutamente nenhuma
resposta aos coríntios. Grato por sua carta severa não ter causado o dano que
ele temia, alegre pelo fato de que o arrependimento e a obediência foram res
tabelecidos na igreja de Corinto e encorajado a pensar que os relacionamentos
saudáveis estavam sendo restaurados, ele imediatamente começou a escrever
(ou a ditar) sua carta. Mas 2Coríntios é uma carta razoavelmente longa: poucos
poderíam conseguir escrevê-la em uma única e longa sessão. E Paulo estava na
época (como será lembrado) excessivamente pressionado por seu ministério na
Macedônia; não seria fácil encontrar tempo para longas sessões em que pudesse
compor seus pensamentos. Talvez a conclusão da carta tenha sido repetidamente
adiada, por semanas ou até por mais tempo. Afinal, a maioria de nós ocasio
nalmente já protelou o término de uma carta, e sem dúvida uma carta muito
mais curta do que 2Coríntios. Nesse caso, entretanto, Paulo pode perfeitamente
ter recebido notícias adicionais, notícias ruins a respeito da igreja de Corinto,
antes de ter acabado de escrever a carta; e nesse caso, isso explicaria a abrupta
mudança de tom no começo do capítulo 10. Em suma, depois de finalizar os
nove primeiros capítulos, mas antes de realmente terminar a carta e enviá-la,
Paulo recebe más notícias adicionais, e por isso acrescenta mais quatro capítulos
de reprimenda. A segunda carta aos Coríntios é assim uma epístola unificada
do ponto de vista formal, todavia certamente reflete uma mudança substancial
de perspectiva nos últimos quatro capítulos.
Quatro objeções principais frequentemente levantadas contra essa recons
trução merecem breve consideração.
ter deixado de mencionar a chegada dessa nova informação não são difíceis de
imaginar. Se, por exemplo, tal informação da igreja de Corinto tivesse chegado
por meio de um relato (conhecido por muitos membros da igreja) que acusasse
Paulo, entre outras coisas, de agir com excessiva “mansidão e bondade”, e não
com a energia demandada de um genuíno apóstolo, então as palavras do após
tolo na abertura de 2Coríntios 10.1 seriam suficientes para chamar a atenção
para tal relato: “Eu, Paulo, pela mansidão e pela bondade de Cristo, apelo para
vocês...”. Esse mesmo argumento poderia ser ainda mais reforçado se o relato
com as más notícias incluísse, por exemplo, insinuações de que Paulo não se saiu
bem em comparação com os tais intrusos causadores de intrigas (cf. 10.12-18),
de que ele não era lá grande coisa como mestre porque se recusava a cobrar por
seus serviços (cf. 11.7-12; 12.13) ou de que sua condição apostólica era inferior
porque raramente ele parecia falar de gloriosas visões sobrenaturais das quais
muitos outros podiam falar com tanto apreço (cf. 12.1-10). Se Paulo estivesse
respondendo a ataques desse tipo, o que parece provável, essa mesma resposta
era indicação suficiente de que o novo relato chegara até ele. Chamar ainda mais
atenção para isso teria sido um esforço redundante.
No todo, portanto, parece melhor concluir que 2Coríntios 10 a 13 é for
malmente parte de 2Coríntios (= Coríntios D), ainda que seu tom e sua ênfase
destoem um pouco do restante do livro. Em vários passos na argumentação, a
evidência sofre de ambiguidade suficiente para nos impedir de sermos dema
siadamente dogmáticos nos pontos delicados; contudo, ela também é suficiente
para nos habilitar a tratar 2Coríntios 10 a 13 como uma unidade conceituai
digna de estudo atento. Isso é tudo que precisamos estabelecer aqui: esses
quatro capítulos ficam numa posição ligeiramente à parte e constituem uma
demonstração impressionante da reação do apóstolo Paulo sob fogo cerrado.
Assim, chegamos à segunda questão:
^obre esse contexto, vejaj. Munck, Paul and the salvation of mankind (London: SCM, 1959),
p. 158; S. H. Travis, “Paul’s boasting in 2Corinthians 10—12”, Studia Evangélica VI (Berlim:
Akademic-Verlag, 1973): 527-32, e a literatura ali citada; e esp. esses três artigos de E. A.
Judge, “The early Christians as a scholastic community: Part \Y\Journal of Reiigious History
I (1960-61): 125-37; “The conflict of aims in NT thought”, Journal oj Christian Education 9
(1966): 32-45, “Paul’s boasting in relation to contemporary professional practice”, Australian
Biblical Revieiv 16 (1968): 37-50.
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 31
2. A identidade dos opositores. Tanto já foi dito sobre eles que até come
çaram a tomar certa forma; todavia, três observações complementares trarão
mais nitidez a seu retrato.
Priintiro, os termos “intrusos” e “forasteiros” não foram escorregões inad
vertidos. Os principais opositores de Paulo em 2Coríntios 10 a 13 não eram
naturais da igreja de Corinto, mas pessoas que nela entraram como novatos e
rapidamente galgaram posições de liderança e autoridade. Isso fica claro não
apenas por fortes indícios em várias passagens (e.g., 10.13-15; 11.4; 12.11), mas
também pelo tema da recomendação; ao que parece, os intrusos se deleitavam em
exibir cartas de apresentação e recomendação. E insinuavam que as credenciais
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13
de Paulo eram questionáveis porque ele não seguia a mesma prática. Para se
apresentarem dessa forma, os opositores de Paulo devem ter sido indivíduos
vindos de fora.
Isso significa que não se deve identificá-los com nenhuma das facções
problemáticas retratadas em 1 Coríntios, onde os grupos que lutavam entre si
eram todos de dentro da igreja e naturais dela (mesmo que cada facção adotasse
o nome de algum líder de outra origem). Sem dúvida, pode haver uma ligação
entre os intrusos de 2Coríntios 10 a 13 e uma ou mais das facções descritas em
1 Coríntios 1.11 (Alio sugere os “que são de Cristo”, Barrett, os “que são de
Pedro”); mas são meras especulações.
Segundo, ainda que, como vimos, os intrusos fossem grandemente influen
ciados pelo que podemos chamar de uma mentalidade sofista, não é menos
certo, no entanto, que fossem judeus: nada pode ficar mais claro com base em
2Coríntios 11.22. Alguns estudiosos, portanto, sugerem que eles eram pregadores
judeus helenistas que se diziam cristãos, mas, na realidade, estavam tentando
implantar na comunidade cristã a própria doutrina deles, alegando serem
“homens divinos”. Porém, há problemas com a categoria “homem divino”;2
e mesmo se tal categoria fosse bem consolidada, o perfil normal desses que se
autoproclamam líderes não nos encorajaria a suspeitar que ostentariam cartas de
recomendação. Longe disso: alegariam independência dos homens e exibiríam
suas proezas miraculosas como as únicas credenciais necessárias.
A melhor suposição é que esses forasteiros fossem uma espécie de judai
zantes. Isso não é difícil de aceitar, se nos lembrarmos de quatro coisas:
(1) À medida que a igreja primitiva alcançava mais e mais gentios com
as boas-novas de Jesus Cristo, muitos judeus devotos que estavam preparados
para aceitar a Jesus como Messias, mas não para vê-lo como o cumprimento
da lei mosaica, começaram a insistir com estridência cada vez maior que todo
gentio que quisesse seguir a Jesus, o Messias, tinha de obedecer a lei de Moisés.
Aqueles que defendiam essa posição, com o tempo vieram a ser chamados
de judaizantes. A natureza precisa de suas exigências variava: na Galácia, por
2Frequentemente se argumenta que o theios aner (“homem divino”) era uma categoria comum
e compreendida do autoproclamado herói religioso e pregador itinerante no mundo helenístico;
porém, a evidência é escassa, e a designação inconsistente em seu referente: cf esp. Carl H.
Holladay, Theios Aner in HelleuisticJudaism: a critique of the use of this category in Neiv Testament
Christology (Missoula: Scholars, 1977).
34 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Esses forasteiros podem ser como aqueles judeus que antes haviam invo
cado a autoridade dos Doze sem na verdade ter a aprovação destes (At 15.24).
Afinal de contas, uma facção em Corinto já havia usado o nome de Pedro
(cf. ICo 1.12). Para os coríntios, semelhante autoridade teria grande peso. Se o
evangelho de Paulo fosse subvertido, a autoridade de Paulo teria de ser posta em
dúvida. Que melhor forma de atingir tal fim, do lado judaico, do que apelar para
todas as associações de Jerusalém que soariam com autoridade aos ouvidos de
todos os cristãos primitivos, e, do lado grego, do que promover uma falange
de objeções contra Paulo que instantaneamente pareceríam plausíveis devido
ao viés cultural assimilado?
A terceira observação complementar que trará mais nitidez ao retrato dos
opositores de Paulo é que há discordância quanto ao número de grupos aos quais
Paulo alude. Vários comentaristas recentes argumentam em favor da existência
de três grupos. Em primeiro lugar, naturalmente, estão os próprios coríntios.
Paulo às vezes fica aborrecido e constantemente se zanga com eles; mas, por
reconhecer que são vítimas dos forasteiros, ele nunca os trata com tanta aspereza
quanto trata seus principais opositores. Esses opositores formam o segundo grupo
— os “falsos apóstolos” (2Co 11.13) que introduziu “um evangelho diferente”
(11.4). Eles seduziram os coríntios e conseguiram plantar sementes de suspeita
em suas mentes quanto ao status e à integridade de Paulo. Mas o terceiro grupo
seria composto por aqueles que Barrett chama de “apóstolos de reconhecida
eminência” — i.e., os próprios Doze. Barrett, seguido por Bruce e Harris,
defende que os “superapóstolos” (11.5; 12.11) não são os falsos apóstolos, mas os
Doze que os intrusos invocam a fim de adquirir respeitabilidade e autoridade.
Quando Paulo discute sobre os falsos apóstolos, rejeita-os por serem lacaios de
Satanás, e ameaçadoramente, ele conclui: “O fim deles será o que as suas ações
merecem” (11.13-15). Contudo, quando menciona os “superapóstolos” (11.5;
12.11), Paulo se limita a dizer que não é em nada inferior a eles.
Essa interpretação é bastante plausível e, caso esteja correta, ajuda a explicar
a posição constrangedora de Paulo. Pois se os intrusos estavam fazendo propa
ganda não só de si mesmos, mas também dos apóstolos de Jerusalém, procurando
elevar a própria estatura ao alegar (ainda que falsamente) serem representantes
dos Doze, Paulo está em apuros: ele deve expor a impostura dos intrusos sem
diminuir a autoridade dos Doze que (aparentemente) os recomendaram.
Todavia, continuo não convencido de que devemos interpretar 2Coríntios
11.5 e 12.11 dessa forma. Antes, é melhor tomar a designação “superapóstolo”
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 37
como uma referência irônica adicional aos falsos apóstolos. Há quatro razões
que apoiam essa opinião:
modo, é muito duvidoso que Pedro ou Apoio estivessem pessoalmente por trás
das facções mencionadas em 1 Coríntios 1.12; antes, pessoas ardilosas invocaram
os nomes e autoridade deles e fizeram um considerável estrago. Com certeza
foram as altercações mais antigas de Paulo com judaizantes que invocavam a
autoridade dos líderes de Jerusalém que o ensinaram que os líderes de Jerusalém
preferiam rejeitar tais conexões. Eles mesmos declararam: “Soubemos que alguns
saíram de nosso meio, sem nossa autorização, e os perturbaram” (At 15.24).
Portanto, é improvável que Paulo tivesse acreditado nas credenciais dos intrusos
em Corinto; e por esse motivo ele não se sentiu demasiadamente influenciado
a se deixar impressionar pelos grandes nomes ligados a Jerusalém. Em outras
palavras, Paulo estaria em uma posição mais difícil se acreditasse que essas
credenciais eram válidas, mas os mensageiros tivessem se portado mal; porém,
com base em suas experiências anteriores, é improvável que Paulo tenha crido
que as credenciais eram autênticas. Nesse caso, praticamente não haveria razão
para arrastar os líderes de Jerusalém para a discussão.
Esse esboço do pano de fundo de 2Coríntios 10 a 13 foi bastante longo:
devo concluí-lo e dar prosseguimento à exposição. No entanto, essa introdução
deve nos levar a antecipar que esses capítulos das Escrituras nos lançam alguma
luz sobre vários tópicos cruciais:
para incentivar o crente a pensar que, quanto mais dermos, mais obteremos.
Há verdade suficiente na ideia para tornar a apresentação crível aos ingênuos;
porém, faz com que Lucas 6.36-38 soe como se a razão fundamental para dar
é obter (o que nem essa passagem nem qualquer outra ensina) ou que a “lei”
da reciprocidade seja um preceito tão universal, tão independente de outros
ensinos nas Escrituras, que não admite nenhuma ressalva ou equilíbrio. Ensina
que a bondade mostrada a nossos inimigos inevitavelmente (afinal de contas, isso
é uma lei!) resulta em bondade retribuída. Por que, então, Jesus foi para a cruz?
Talvez foi por ele próprio ter fracassado em mostrar bondade suficiente? Por que
ele diz que seus seguidores devem esperar ser maltratados, perseguidos, odiados
por todos os homens (e.g, Mt 5.10-12; 10.16-39; 24.9-14; Jo 15.18—16.4; cf.
2Tm 3.12,13)? Os autores continuam, no entanto, encorajando-nos a acreditar
que, quanto mais dinheiro doarmos, mais dinheiro teremos. Mas talvez a “retri
buição” da qual Jesus fala não seja sempre exatamente do mesmo tipo; talvez
uma orientação escatológica no ensino de Jesus nos encoraje a pensar que em
muitos casos a recompensa virá no novo céu e na nova terra — sem mencio
nar os casos em que ela é pressagiada por martírio! Os cristãos dos países em
desenvolvimento que tanto lutam e doam com sacrifício e amor, até mesmo do
próprio sustento, para a obra do Senhor, não ficarão grandemente impressio
nados por interpretações triunfalistas distorcidas que prometem bens materiais
sem limites? Os cristãos que vivem em regimes totalitários, irmãos e irmãs em
Cristo que perderam seus bens, oportunidades de educação e emprego e, por
vezes, até a própria vida, engolirão um conceito de reciprocidade tão funda
mentalmente antibíblico e raso? Naturalmente, Deus nada deve aos homens;
contudo, muitas vezes sua “recompensa” é a graça que suporta a oposição e a
provação, e faz crescer em caráter, profundidade, santidade e entendimento —
não a vã promessa de poder, saúde e riqueza temporais. O texto de 2Coríntios
10 a 13 fala a essas questões de modo incisivo e oferece um meio de olharmos
para o triunfalismo, um meio que é inquietantemente cristão, profundamente
inspirador e totalmente desafiador.
(3) Relacionado a esse último ponto está o modelo de maturidade cristã
fornecido por Paulo. Eis um homem que enxerga além das questões de perso
nalidade e vai até a natureza do evangelho e da autoridade apostólicos. Eis um
homem que odeia vangloriar-se, mas cuja preocupação profunda pelo evangelho,
assim como sua profunda compreensão deste, força-o a sair de si mesmo, por
assim dizer, para enfrentar um problema pastoral de imensa complexidade e
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Eu, Paulo, pela mansidão e pela bondade de Cristo, apelo para vocês;
eu, que sou “tímido” quando estou face a face com vocês, mas “ousado”
quando ausente! Rogo-lhes que, quando estiver presente, não me obri
guem a agir com ousadia, tal como penso que ousarei fazer, para com
alguns que acham que procedemos segundo os padrões humanos. Pois,
embora vivamos como homens, não lutamos segundo os padrões huma
nos. As armas com as quais lutamos não são humanas; pelo contrário, são
poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destruímos argumentos e
toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos
cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo. E estaremos
prontos para punir todo ato de desobediência, uma vez completa a
obediência de vocês (2Co 10.1-6).
possam exigir de líderes sábios respostas muito distintas, Paulo entende que
algo que era característico do ministério público de Jesus era a mansidão e a
bondade; e ele crê que essas mesmas características devam marcar seu próprio
ministério. No caso de Jesus, essa atitude fundamental de esvaziar a si mesmo
atingiu seu mais magnificente esplendor na assombrosa descida da glória, que
o Filho compartilhava com o Pai (Jo 17.5), à ignomínia, à vergonha e à rejei
ção na cruz — um tema celebrado por Paulo em outra parte (Fp 2.6-8). Logo,
a ninguém espanta o fato de cada um dos seguidores de Jesus dever tomar a
própria cruz (Mc 8.34-38), no mínimo, se espera ser chamado de discípulo e
não perder sua alma.
Poucos compreendem melhor do que Paulo esse ingrediente essencial do
cristianismo. Não apenas a mansidão aparece em suas cartas como uma vir
tude recorrente (G1 5.23; 6.1; Cl 3.12), mas parágrafos inteiros escritos por ele
demonstram como suas reflexões teológicas e seu estilo de vida apoiavam-se e
confirmavam-se mutuamente. Vários dos mais tocantes desses parágrafos são
dirigidos aos coríntios, quase como se eles tivessem necessidade de lembretes
perpétuos sobre esse elemento essencial na fé que professavam. Em sua primeira
carta canônica a eles, Paulo escreveu: “Porque me parece que Deus nos colocou
a nós, os apóstolos, em último lugar, como condenados à morte [...]. Até agora
estamos passando fome, sede e necessidade de roupas, estamos sendo tratados
brutalmente, não temos residência certa e trabalhamos arduamente com nossas
próprias mãos. Quando somos amaldiçoados, abençoamos; quando persegui
dos, suportamos; quando caluniados, respondemos amavelmente. Até agora
nos tornamos a escória da terra, o lixo do mundo” (lCo 4.9,11-13). A mesma
atitude de serviço e compromisso é agora repetida na segunda carta canônica
de Paulo aos coríntios: “Não damos motivo de escândalo a ninguém, para que
o nosso ministério não caia em descrédito. Ao contrário, como servos de Deus,
recomendamo-nos de todas as formas: em muita perseverança; em sofrimentos,
privações e tristezas; em açoites, prisões e tumultos; em trabalhos árduos, noites
sem dormir e jejuns; em pureza, conhecimento, paciência e bondade; no Espírito
Santo e no amor sincero; na palavra da verdade e no poder de Deus; com as armas
da justiça, quer de ataque, quer de defesa; por glória e por desonra; por difamação
e por boa fama; tidos por enganadores, sendo verdadeiros; como desconhecidos,
apesar de bem conhecidos; como morrendo, mas eis que vivemos; espancados,
mas não mortos; entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a
muitos; nada tendo, mas possuindo tudo” (2Co 6.3-10). Essas mesmas atitudes
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Paulo sabiamente cultiva nos homens mais jovens que treina, como uma cuidadosa
leitura das cartas pastorais (1 e 2Tm e Tt) logo torna evidente.
A mansidão e a bondade (esta última poderia ser traduzida por “indulgência”
ou “amabilidade”— o mesmo termo ocorre em Fp 4.5), consideradas em con
junto, sugerem que a pessoa que se caracteriza por essas virtudes será generosa
no modo em que avalia os outros, tardia em se ofender, perfeitamente apta a
suportar uma repreensão, consistentemente acima do mero interesse próprio.
Por essa mansidão e bondade, características do próprio Cristo, Paulo faz seu
apelo. Contudo, embora a linguagem seja profundamente irônica, ela não é
manipuladora. Em outras palavras, Paulo não opta por um jeito irônico de se
expressar apenas para se livrar de uma situação difícil, tomando a ironia nas
próprias mãos como um instrumento flexível para envergonhar seus leitores.
A situação é muito mais séria do que isso. A linguagem de Paulo está saturada
de ironia porque a situação concreta que ele encara é irônica: os coríntios estão
confundindo mansidão com fraqueza, bondade com subserviência, e ignorando
por completo as características dominantes do Redentor que alegavam reconhe
cer como Senhor. Se a ironia da linguagem de Paulo envergonha os coríntios,
é porque devem ficar envergonhados.
O nível do equívoco cometido pelos coríntios é bem básico. Não somente
acusavam Paulo de incoerência — dizem que ele é tímido quando presente
e ousado quando distante e escreve cartas —, como não compreendiam as
virtudes cristãs fundamentais. A palavra traduzida por “tímido” (2Co 10.1)
costuma ser traduzida por “humilde”; só que eles viam nessa humildade não
como graça, mas, sim, como fraqueza. Para o cristão consagrado e maduro, a
palavra “humilde” tem conotações positivas; na mente dos coríntios, ela tem
implicações negativas. Talvez eles adotassem o mesmo emprego encontrado em
passagens como a seguinte, de Xenofonte (que atribui as palavras a Sócrates):
“Outrossim, nobreza e dignidade, auto-humilhação e servidão, prudência e
entendimento, insolência e vulgaridade, refletem-se na face e nas atitudes do
corpo, esteja ele parado ou em movimento” (Memorahilia III.10.5). Nessa citação,
a auto-humilhação (a mesma palavra traduzida por “tímido” em 2Co 10.1) faz
par com a palavra servidão; e juntas contrastam com o par nobreza e dignidade.
Esse tipo de humildade é ignóbil; ela recua diante da confrontação, aproxima-
-se discretamente do dinheiro, do poder e da influência com a falsa humildade
de um político inescrupuloso, e age com força e energia somente quando lhe
parece seguro. Em resumo, os coríntios diziam que “quando Paulo estava lá,
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 45
ele era um Uriah Heep, muito humilde, servil e astuto; e quando estava longe
deles, conseguia criar coragem e ser muito resoluto — no papel” (Plummer).
Como muitos hoje, os coríntios abraçaram uma compreensão de grandeza que
era, na essência, triunfalista; e por isso estavam mal preparados para enxergar
um apóstolo como grande caso ele contrariasse esse padrão. As dimensões de
seu triunfalismo vão se tornar cada vez mais evidentes. O que fica claro nesse
prelúdio irônico é que Paulo responde não com o intuito de demonstrar sua
superioridade (pois se o fizesse ele estaria sucumbindo ao conjunto de valores
abraçados pelos coríntios), mas com o intuito de demonstrar o caráter e os
ensinamentos de Cristo. Há muito mais em jogo do que lealdade partidária.
As diferenças entre Paulo e os coríntios giram em torno de um conflito de
cosmovisões, de uma dissociação fundamental de valores, de uma profunda
discordância a respeito daquilo que os cristãos devem buscar.
B. O apelo (v. 2)
Depois de ministrar no prelúdio uma pequena dose de tratamento de choque, ao
instituir uma escala de valores imensamente diferente daqueles que os coríntios
adotavam, Paulo chega ao apelo em si. Nesse sentido, “Rogo-lhes” (2Co 10.2)
provavelmente não difere grandemente de “apelo para vocês” (10.1): em ambos os
casos Paulo se põe como uma voz suplicante. A essência do apelo é para que ele
possa não ter de ser tão “ousado” (tão enérgico e severo) para com os coríntios
como ele mesmo afirma esperar ser “para com alguns”. Essa é uma forma gentil
de pedir aos coríntios que mudem antes que seja tarde demais. Logo que Paulo
chegar, terá de tomar uma atitude enérgica: assim, antes de sua chegada, apela
aos coríntios para mudarem seus padrões de conduta de modo que a severidade
com que os ameaça possa ser evitada.
Quatro observações nos possibilitam compreender um pouco melhor a força
desse apelo. A primeira é que a natureza precisa da ameaça de Paulo é progressi
vamente desvendada mais adiante no texto. Uma dica do que está por vir surge
em 2Coríntios 10.6: “E estaremos prontos para punir todo ato de desobediência,
uma vez completa a obediência de vocês”. A ameaça de castigo apostólico é
real (cf. 13.2); mas cabe aos coríntios responder de maneira tal que a visita de
Paulo seja “com amor e espírito de mansidão” e não com “vara” (ICo 4.21). Ao
confundir humildade com subserviência, os coríntios o acusam de ser tímido
e fraco pessoalmente; mas, a menos que certas coisas não mencionadas mudem
46 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ
na igreja, eles descobrirão justamente quão severo o apóstolo Paulo pode ser.
É isso o que realmente querem?
Por outro lado, a severidade não é a faceta que Paulo gostaria de exibir; pois
a segunda observação a ser feita é que Paulo fala de tal severidade como algo que
ele “ousaria” usar, como se não fosse sua postura normal. Traduzido de forma
mais literal, o versículo 2 deve ser lido, “Rogo-lhes que, quando chegar, eu possa
não ter de ser obrigado a mostrar aquela ousadia confiante que reconheço ter
de ousar empregar contra algumas pessoas”. É como se Paulo reconhecesse que
o propósito primordial da autoridade que o Senhor lhe confiou fosse edificar o
povo, não destruí-los (2Co 10.8); logo, se a situação que ele confronta demanda
o curso mais severo, ele se sente desconfortável e entristecido. Sem dúvida, ele
tomará os passos necessários para remediar a situação; porém, longe de ostentar
autoridade, apressando-se a tomar uma medida disciplinar, Paulo encara tal
perspectiva como um desafio inevitável, não um desafio a ser encarado com
satisfação. Sua atitude normal, sua postura preferida diante de seus convertidos
é a “mansidão” e a “bondade de Cristo”.
A terceira observação a ser feita é que esses “alguns” que Paulo espera con
frontar provavelmente não são os próprios coríntios nem parte deles. Paulo não
diz que espera ser ousado para com “alguns de vocês”, mas para com “alguns”.
Não apenas temos uma boa pista em apoio a essa distinção no versículo 6, mas
essa mesma distinção entre os coríntios e “alguns”, que constituem a principal
oposição a Paulo em Corinto, é mantida ao longo desses capítulos. Por exem
plo, em 2Coríntios 6.11 fica claro que aqueles tratados como “vocês, coríntios”
deveríam ter defendido Paulo contra os “superapóstolos”. Contudo, neste caso
então, a tônica do apelo de Paulo em 10.2 é que os próprios coríntios deviam
tomar uma atitude decisiva contra os intrusos, de modo que Paulo não tenha
de fazer isso quando chegar. Os coríntios estão no momento sendo ludibriados
por aqueles a quem Paulo vê como perigosos impostores; portanto, o apóstolo
está apelando a seus convertidos para que exerçam o discernimento e a disciplina
necessários a fim de evitar um confronto posterior entre a “vara” apostólica
e os intrusos.
Em quarto lugar, devemos observar que a natureza das diferenças entre Paulo
e os intrusos começa agora a vir à tona. Paulo espera ter de ser audaz para com
“alguns” que julgam que ele vive “segundo os padrões deste mundo”. O original
poderia ser literalmente traduzido por “segundo a carne”: em outras palavras,
Paulo é acusado de viver segundo a carne. O que isso quer dizer exatamente?
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA
para a tarefa. Ele escreve: “Pois, embora vivamos como homens, não lutamos
como o mundo” (2Co 10.3). E então, para que nenhum leitor deixe de captar
a força do que ele disse, Paulo reitera: “As armas com as quais lutamos não são
do mundo” (10.4a).
A NIV fornece uma tradução tão precisa e fluida quanto se pode esperar
da expressão idiomática grega de Paulo; porém, vale a pena refletir um pouco
mais sobre a escolha exata de palavras por Paulo.
Duas palavras merecem menção. Primeiro, a expressão, “vivemos”, em
2Coríntios 10.2 e 10.3a, poderia ser mais literalmente traduzida como “andamos”.
O contexto dessa palavra, tanto aqui quanto em outros lugares nas cartas de
Paulo, inequivocamente mostra que o apóstolo está pensando sobre algo mais do
que o caminhar literal, e o “vivemos” da NIV não deixa de comunicar o sentido.
Porém, talvez seja uma nuance demasiadamente passiva: a força do “caminhar”
de Paulo não é tão restrita quanto “viver”, mas provavelmente tem mais o sen
tido de “conduzir a própria vida”. Paulo não está simplesmente dizendo que
a esfera de sua existência é o mundo (ainda que em outra parte ele diga isso),
mas que a esfera onde ele conduz sua vida — onde ele vive e desempenha suas
responsabilidades como apóstolo — é este mundo. Ainda assim, ele insiste, as
armas de seu apostolado não são “do mundo”.
Ainda mais importante é o fato de que Paulo continua a usar a palavra
“carne” ou “carnal” (veja p. 46). Paulo conduz sua vida, literalmente, “na carne”
(como um ser humano); mas ele não guerreia segundo a carne, pois as armas
de sua batalha não são carnais. Já vimos (2Co 10.2) que o termo “carne” pode
significar coisas diferentes no uso de Paulo: por um lado, Paulo pode dizer que
os cristãos não mais estão “na carne” (Rm 8.9, RSV), querendo dizer que eles
não vivem mais pelas propensões da natureza humana caída, egocêntrica e
pecaminosa; por outro lado, ele admite viver “na carne” (G1 2.20, RSV), que
rendo dizer que vive em seu corpo, no mundo físico. Entretanto, seus oponentes,
como vimos, acusaram-no de conduzir sua vida segundo a carne (2Co 10.2),
querendo dizer que ele está aquém dos elevados padrões espirituais que alegam
ter. Assim, descobrimos três significados para o termo “carne” até aqui:
A questão é: O que Paulo quer dizer quando usa o termo em suas duas
ocorrências em 10.3?
Em certo nível, a questão é fácil de responder. Na primeira parte do ver
sículo 3, Paulo concorda que conduz sua vida na carne, adotando o sentido
número 2. Na segunda parte do versículo 3, e na primeira parte do versículo 4,
Paulo insiste que ele não luta segundo a carne — sem dúvida negando simul
taneamente qualquer associação com as acepções 1 e 3 do termo “carne”.
No entanto, em um nível mais profundo, a resposta de Paulo gira em torno
de uma compreensão profunda da escatologia, introduzindo-nos a muito do
que ele vai dizer aos coríntios nos capítulos seguintes. Os escritores do Novo
Testamento, inclusive Paulo, entendem que Jesus Cristo, por sua morte, res
surreição, ascensão e exaltação à destra de Deus nas alturas, já inaugurou o
reino messiânico há muito prometido pelos profetas e esperado por aqueles
com discernimento espiritual dentre o povo de Deus. Deus já nos resgatou
do poder das trevas e nos trouxe para o reino do Filho amado (Cl 1.13). Ao
mesmo tempo, o reino não despontou em sua plenitude: ele só se consumará
com a volta do Senhor Jesus, quando toda a criação será restaurada (Rm 8.19-
21). Em certo sentido, portanto, a igreja vive em extraordinária tensão entre o
que “já” é e o que “ainda não” é: os cristãos já desfrutam parte dos benefícios
do reino — são absolvidos diante de Deus, ganham a vida eterna, a presença
do Espírito Santo como sinal da herança final, o perdão de seus pecados, a
comunhão profunda com outros filhos de Deus, a certeza de que seu Salvador
e Senhor ressurreto já está reinando com toda a autoridade de seu Pai; todavia,
os cristãos ainda não desfrutam de todas as bênçãos que um dia serão suas: a
libertação da morte, a completa destruição do poder do pecado, a posse de
corpos ressurretos, o livre alcance a um novo céu e uma nova terra, a adoração
imaculada ao Deus triúno, a bem-aventurança do amor e da santidade puros,
a perfeição da comunhão. Desse modo, a escatologia do Novo Testamento
não tem um foco restrito nas últimas coisas, mas inclui a maravilhosa notícia
de que as últimas coisas, em certo sentido, já chegaram. A escatologia neotes-
tamentária lida alternadamente com o que ainda há de vir e com aquilo que
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA
'O grego dynata to theo pode ser entendido como uma dessas quatro formas: (1) dativo
instrumental: as armas de Paulo são “tornadas poderosas por Deus”; (2) hebraísmo: as armas de
Paulo são “divinamente poderosas” ou “sobrenaturalmente poderosas”; (3) dativo de respeito:
as armas de Paulo são “poderosas na perspectiva de Deus”; (4) dativo de vantagem: as armas
de Paulo são “poderosas para Deus”, i.e., para o serviço de Deus. As duas primeiras opções
são conceitualmente bastante próximas, e a NIV pressupõe ou uma ou outra. Mas todas as
nossas quatro opções de alguma maneira relacionam as armas e seu respectivo poder a Deus.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
posto que suas armas são de um tipo inteiramente diferente. As armas do após
tolo são espirituais e poderosas em Deus (ou poderosas da perspectiva de Deus
ou para o serviço dele).
Mas o que as armas de Paulo podem fazer? Se concordamos que elas são
poderosas, como o seu poder se manifesta? Isso nos leva ao segundo elemento
na declaração do apóstolo. Suas armas, afirma ele, têm poder “para destruir
fortalezas” (v. 4). O simbolismo de Paulo traz à mente uma forma de batalha
clássica no mundo antigo. Uma próspera cidade não somente edificaria uma
sólida muralha para sua segurança, mas em alguma parte da muralha talvez
também construísse uma fortaleza, isto é, uma torre extremamente fortificada
que poderia ser defendida por relativamente poucos soldados. Mesmo que as
muralhas da cidade tivessem brechas abertas pelo inimigo, as forças de defesa
poderíam se retirar para a fortaleza e fazerem uma defesa final ali. Uma vez
que a fortaleza fosse tomada, a guerra estava acabada. Enaltecendo a sabedoria,
Provérbios 21.22 diz: “O sábio conquista a cidade dos valentes e derruba a for
taleza em que eles confiam”. Usando justamente essa linguagem, Paulo alega
que suas armas são poderosas em Deus “para destruir fortalezas”.
O que isso significa em linguagem não metafórica? Paulo esclarece sua
metáfora na frase seguinte. Ele prossegue com o tema de destruição, mas
muda o alvo: “Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o
conhecimento de Deus” (v. 5). A palavra traduzida por “argumentos” pode ser
traduzida por “pensamentos” ou “planos”. Ela tem a mesma raiz que um termo
que Paulo usa em outra passagem com sentido muito similar. Por exemplo, Paulo
descreve a deterioração progressiva da raça humana quando diz que as pessoas,
mesmo “tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe
renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações
insensatos se obscureceram” (Rm 1.21). “O Senhor conhece os pensamentos dos
sábios e sabe como são fúteis” (ICo 3.20). Novamente, Paulo diz aos crentes:
“Façam tudo sem queixas nem discussões...” (Fp 2.14). Portanto, quando ele
nos diz que suas armas destroem argumentos, ele não quer simplesmente dizer
que pode vencer qualquer oponente em um debate e o fazer sair envergonhado
do palanque. Ele quer dizer algo muito maior: as armas dele destroem o modo
de as pessoas pensarem, destroem seus padrões de pensamento pecaminosos, as
estruturas mentais por meio das quais vivem a vida em rebelião contra Deus.
Em suas próprias palavras, suas armas espirituais derrubam “toda pretensão que
se levanta contra o conhecimento de Deus” (v. 5).
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA
O que Paulo tem em mente está relacionado com a própria raiz do pecado
em nossa vida. A declaração “... toda pretensão que se levanta contra o conhe
cimento de Deus” abrange toda afirmação arrogante, todo pensamento altivo,
todo ato de orgulho que forma uma barreira ao conhecimento do Deus vivo.
Somos criados dependentes; o coração do pecado é rebelião contra Deus, uma
atitude pervasiva que quer, acima de tudo, ser independente de Deus. Esse
impulso obstinado por independência é a raiz do pecado, o mal central que
com justiça atrai a ira de Deus. Nós desprezamos “o conhecimento de Deus”
(Rm í .28, cf. v. 18-32). Em vez de buscar tal conhecimento, levantamos pretextos
para afastá-lo. Alegamos dúvida intelectual, apelamos a argumentos sofistas e
ao ceticismo, demonstramos um cinismo atrevido e altivo; ou simplesmente
nos mantemos desinteressados e distantes, reivindicando uma independência
intelectual que aprecia o debate teológico, mas nunca dobra o joelho em
culto de adoração. Mas não ponderamos adequadamente sobre a catastrófica
implicação. Como nos afastamos do conhecimento de Deus, ele nos entrega
a uma mente depravada. Esvaziados de tal conhecimento, ficamos não apenas
cheios de nós mesmos, mas “de injustiça, maldade, ganância e depravação”.
Tornamo-nos “cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e malícia”.
Degeneramo-nos até virarmos “bisbilhoteiros, caluniadores, inimigos de Deus,
insolentes, arrogantes e presunçosos”. Inventamos “maneiras de praticar o mal”,
desobedecemos a nossos pais, passamos a ser “insensatos, desleais, sem amor,
implacáveis”. Pior, ainda que conheçamos “o justo decreto de Deus, de que as
pessoas que praticam tais coisas merecem a morte”, “não somente continuamos
a praticá-las, mas também aprovamos aqueles que as praticam” (Rm 1.28-32).
Eis porque “toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus”
(2Co 10.5) é tão terrivelmente séria e profundamente ligada à raiz do pecado
em nossa vida. Não podemos conhecer a Deus a partir de uma postura de arro
gância e cinismo, pois tais atitudes não são apenas fundamentalmente contrárias
à nossa dependência como criaturas, também são fundamentalmente opostas
ao único conhecimento de Deus aberto a pobres pecadores, ou seja, Jesus
Cristo crucificado.
Esse é o âmago da questão; e é algo que Paulo tinha. “Visto que, na sabedoria
de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou
a Deus salvar aqueles que creem por meio da loucura da pregação. Os judeus
pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos
a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
2Na metáfora ampliada de Paulo em Efésios 6.14-17, é importante reconhecer que os genitivos
são epexegéticos. Tal como na expressão “a cidade de Jerusalém” a cidade é Jerusalém, assim
também, na expressão “a couraça da justiça”, a couraça é a justiça.
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 61
a algum grupo que dizia ‘ser de Cristo’ (em oposição a um grupo que dizia
‘ser de Pedro’ ou a um grupo que dizia ‘ser de Paulo’ ou a um grupo que dizia ‘ser
de Apoio’)”, nenhum dos dois sentidos se ajusta ao contexto de 2Coríntios 10.7.
Como resultado, alguns escritores modernos propõem várias outras expli
cações de valor duvidoso. Porém, a verdadeira explicação talvez seja bem sutil.
Os intrusos, com bastante clareza, afirmavam ser “servos de Cristo” em algum
sentido especial (veja comentários sobre 2Co 11.23), talvez também “apóstolos
de Cristo” (11.13) e “servos da justiça”. Essa afirmação de pertencerem a Cristo
era, portanto, provavelmente do mesmo tipo que muitos outros rótulos que
eles orgulhosamente ostentavam como meio de conquistar a confiança dos
coríntios. Segundo Barrett, bastaria que os opositores dissessem, com o tipo
certo de inflexão na voz e inclinação da cabeça, “eu sou um homem de Cristo”
— e estariam, ao mesmo tempo, reivindicando algo para si e sugerindo que
Paulo não era um homem de Cristo, que ele não pertencia a Cristo exatamente
da mesma forma que eles. Assim, a pessoa que fizesse tal reivindicação, e não
Paulo, seria um apóstolo autêntico e reconhecido. Talvez as altivas vanglorias
desses intrusos possuíssem outras conotações que ora nos estão perdidas: e.g„
alguns dos líderes podem ter realmente conhecido o Jesus histórico na época
de seu ministério terreno, podem ter alegado conhecer o Cristo ressurreto com
intimidade especial e mística (cf. 12.1-10) ou mesmo dado a entender que, se
Paulo afirmasse ser igual a eles, sua própria posição como cristão poderia ser
posta em dúvida. Porém, tais possibilidades não são certas, nem centrais. O
que fica claro é que Paulo era apresentado aos coríntios como alguém que não
pertencia a Cristo como os falsos apóstolos alegavam pertencer.
Eles tinham uma segunda forma de acusar ou rebaixar Paulo: acusavam-no
de inconsistência, sobretudo no que diz respeito ao contraste entre suas cartas
impactantes e sua presença pessoal inexpressiva. “Pois alguns dizem:1 ‘As cartas
dele são duras e fortes, mas ele pessoalmente não impressiona, e a sua palavra é
desprezível”’ (2Co 10.10). Em certo sentido, sem dúvida, eles estavam certos:
acusações que ferem, ainda que falsas, geralmente se aproximam da verdade
1 Aqui há uma variante difícil, phesin ou phatiu, mas provavelmente o correto seja o singular:
lit., “alguém diz” ou “ele diz” e não “eles dizem” ou “algo diz”. Porém, esse singular pode se
referir tanto a um opositor específico quanto a um chefe dos intrusos, ou pode ser um recurso
comum na diatribe grega, na qual um escritor pode dizer, referindo-se a seu oponente no de
bate, “Alguém dirá...” — caso em que o plural da NIV embora parafrástico, é um equivalente
moderno próximo.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
novamente consigo mesmo que, assim como ele, nós também pertencemos a
Cristo” (2Co 10.7b). A palavra “novamente” provavelmente significa que tal
pessoa deva dar outra olhada em si mesma, e, com base nessa nova informação,
concluir que o apóstolo Paulo pertence a Cristo tanto quanto ela.2 Seja o que
for que “pertencer a Cristo signifique”, Paulo “argumenta que o direito de fazer
uma alegação subjetiva fundada em uma convicção pessoal não pode, com
justiça, ser dado a seus opositores e ser negado a ele” (Harris).
No entanto, certamente há um princípio mais profundo em jogo, mesmo
que não venha à tona de modo explícito. Afinal de contas, nesse ponto Paulo
não está defendendo que ele seja intrinsecamente superior aos outros ou que
pertença a Cristo mais do que eles. Mais adiante, quando ele é forçado a falar
sobre suas visões (2Co 12.1-10), refere-se a si mesmo não como um grande
apóstolo a quem foram confiadas revelações especiais, mas como “um homem
em Cristo” (v. 2), um mero cristão, a quem foi graciosamente dada uma visão
inefável. Mesmo quando é forçado a se defender ou quando argumenta que há
diferentes níveis de maturidade cristã e diferentes papéis a desempenhar no corpo,
Paulo tem o cuidado de não construir muros que possam enclausurar grupos ou
círculos íntimos de cristãos. Diferentes papéis, diferentes dons, diferentes níveis
de maturidade e de compreensão — sim; categorias diferentes de cristãos, jamais!
Muitos dos filhos de Deus são muito melhores do que nós, e mesmo o
pior dos cristãos na família divina tem alguns pontos em que é melhor do que
nós. Algumas vezes sinto vontade de dar um olho para me sentir tão certo do
céu quanto o mais obscuro e o menor em toda a família de Deus; e imagino
que talvez alguns de vocês também venham a se sentir assim, caso se achem
muito importantes e bons. Tu, gado forte, que empurras com o chifre e com
a espádua e expulsas os fracos, o Senhor pode dizer a ti: “Vá embora, tu não
me pertences, pois meu povo não é rude e jactancioso dessa forma — não é
orgulhoso e presunçoso assim; mas eu contemplo o homem humilde, aquele
que tem um espírito contrito, e que treme diante da minha Palavra”?
Você já tentou orar a Deus estando sob a influência de achar que leva uma
vida mais elevada? Você já tentou orar a Deus desse modo? Se já o fez, não acho
que fará uma segunda vez. Eu tentei uma vez, mas não estou propenso a repetir
a experiência. Pensei em tentar orar a Deus dessa forma, mas não parecia brotar
Entendo que palia (“novamente”) rehra-se ao reflexivo lieauto (lit., “se alguém é confiante
em si próprio” ou “no tocante a si mesmo”).
3Citação do sermão de Charles S. Spurgeon. Christ's joy and [A alegria de Cristo e a nossa].
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 73
de maneira natural; e quando orei, tive a impressão de ter ouvido alguém dizer
à distância, “Deus, tenha misericórdia de mim, um pecador”, e ir para casa jus
tificado; e então, tive de rasgar minhas vestes de fariseu, e retornar para o lugar
em que aquele pobre publicano havia estado em pé, pois seu lugar e sua oração
se adequavam a mim de modo admirável. Eu não consigo compreender o que
acontece com alguns de meus irmãos que se acham tão maravilhosamente bons.
Desejo que o Senhor os dispa desse farisaísmo e permita que vejam a si como
realmente são aos olhos de Deus. Então seus belos conceitos a respeito de uma
vida mais elevada logo se desvaneceríam. Irmãos, o ponto mais alto que espero
alcançar deste lado do céu é dizer do fundo da alma:
Desse modo, muito embora Paulo aqui insista em que pertence a Cristo
tanto quanto seus opositores, seu protesto emerge da matriz de uma profunda
compreensão da dívida de todo cristão à graça e de sua total repugnância à
demonstração de superioridade “cristã”.
Em segundo lugar, Paulo mostra que toda e qualquer autoridade que lhe
tenha sido confiada foi concedida para edificar os crentes, não para destruí-los.
De fato, o texto grego enfatiza esse ponto oferecendo uma comparação sugestiva.
Paulo na verdade diz, “eu me orgulho (de uma forma bastante paradoxal) de
pertencer a Cristo, mas mesmo que eu me orgulhe um pouco além disso, a saber,
além da autoridade que o Senhor me deu (‘mesmo que eu tenha me orgulhado
com um pouco mais de liberalidade’, NIV), não me envergonharei disso — isto
é, meu orgulho será justificado pelos fatos. Pois a autoridade que o Senhor me
deu foi com o propósito de edificar os crentes; e todos sabem que eu fundei a
igreja em Corinto e edifiquei vocês. Podem os que se proclamam apóstolos, os
intrusos, dizer o mesmo? Ao contrário, eles não trouxeram atrito e categorias
mundanas que enfraqueceram vocês?”.
Em outras passagens (G1 1.1,11,12,15,16), Paulo enfatiza que tanto seu
chamado para o ministério apostólico quanto o evangelho que ele prega são
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ
sua autoridade. Se eles refletissem um pouco, lembrariam que Paulo foi quem
primeiro os evangelizou, fundou sua igreja, edificou-os na fé, protegeu-os de
vários erros. Os falsos apóstolos não podiam alegar nada disso. Eles usaram sua
autoridade para criticar, dividir a igreja e levar o povo de Deus a afastar-se do
evangelho ao qual de início se agarraram para serem salvos. Não admira que
Paulo lhes diga para olhar para os fatos óbvios (2Co 10.7)! O desafio deles é
livrar-se dos falsos critérios que estavam sendo ensinados pelos intrusos, olhando
de novo para a indiscutível evidência em favor de Paulo.
Naturalmente, é verdade que resultados e efeitos nem sempre servem como
critérios adequados de um ministério válido. Alguns missionários fieis, por
exemplo, trabalharam em áreas particularmente difíceis e viram muito pouco
fruto; e outros ministérios, ao contrário, altamente “bem-sucedidos” podem
corretamente ser considerados seitas. O conselho de Gamaliel (At 5.33-39) — de
que as armadilhas do sucesso provam se um movimento é de Deus — é frequen
temente falso. No entanto, o fruto do ministério de alguém deve ser ao menos
um dos fatores a se ter em mente quando essa pessoa reivindica prerrogativas
de liderança. Paulo sutilmente lembra aos coríntios que eles são cristãos por
causa do ministério dele, e implicitamente pergunta: “Quais objetivos e resul
tados comparáveis o ministério dos clandestinos pode alegar?”. Dessa forma,
embora propósitos e resultados admiráveis não sejam garantia automática de um
ministério válido, eles podem fornecer certo apoio para afirmações de que são
autorizados por Deus.
O princípio é profundo e com muitas aplicações. Quantos cristãos com um
histórico escasso de serviço ao reino gastam tanto tempo criticando servos de
Deus mais produtivos? É claro que em alguns casos é possível que a crítica seja
justa e o ministro produtivo seja uma espécie de fraude; contudo, na maioria
dos casos os críticos são mais semelhantes aos falsos apóstolos intrusos do que
desejam admitir. O argumento de Paulo é um desafio aos líderes cristãos em
cada geração: toda autoridade que lhes foi confiada tem o propósito de edificar
os crentes, não de destruí-los.
A precisa conexão sintática e lógica entre os versículos 8 e 9 de 2Coríntios 10
é muito discutida. E possível que haja uma elipse (que algumas palavras tenham
sido omitidas, mas ainda são entendidas tanto pelo escritor como pelo leitor).
Nesse caso, o pensamento flui mais ou menos da seguinte maneira: “Se eu
tivesse de me gloriar da autoridade que o Senhor me deu — dada a mim para
a edificação do povo, não para a sua destruição — eu não me envergonharia;
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
mas não agirei assim, para não dar a impressão de estar ameaçando vocês com
minhas cartas”. Em outras palavras, o versículo 9 fornece uma razão adicional
de Paulo não querer se vangloriar da autoridade que Deus lhe concedeu; pois,
se ele fizesse isso nessa carta, seus opositores responderíam dizendo que sua
veemente autodefesa é típica de suas cartas duras e fortes (v. 10) e completa
mente atípica de sua pessoa. Assim, Paulo engenhosamente evita a armadilha
e diz, por um lado, que, se escolhesse se vangloriar de sua autoridade, de fato
teria fundamento para afirmar isso; e por outro lado, que, de qualquer modo,
essa autoridade acerca da qual ele prefere não se gloriar lhe foi dada com o
propósito de edificação. A armadilha é sabiamente evitada; os pontos impor
tantes ficam estabelecidos.
Terceiro, Paulo insiste no fato de ser coerente, apesar das aparências con
trárias. Seu opositor o acusou de usar uma fachada literária: suas cartas podem
ser severas e enérgicas, mas o Paulo real, o Paulo de carne e osso, era (segundo
eles diziam) inexpressivo, e sua oratória era digna de desdém. Paulo responde
dizendo que, se os intrusos continuassem a fazer acusações, elas trariam
tamanha ira sobre suas cabeças quando Paulo finalmente chegasse, que todos
veriam que o apóstolo era perfeitamente capaz de enfrentá-los pessoalmente
e não apenas por meio de cartas: “Saibam tais pessoas que aquilo que somos
em cartas, quando estamos ausentes, seremos em atos, quando estivermos
presentes” (2Co 10.11).
Não nos é possível saber a competência de Paulo como orador. Na época
da primeira viagem missionária, se sobressaía como aquele que “trazia a palavra”
(At 14.12), quando ele e Barnabé saíam juntos em viagem; e os pagãos de Listra,
confundindo-os com deuses por causa de um milagre que eles realizaram em
nome de Jesus, deram a Paulo o apelido de “Hermes”, o deus que, na mitologia
grega, transmitia mensagens. Contudo, é interessante notar que esses cidadãos
de Listra não o confundiram com o brilhante e eloquente Apoio. Em outra
passagem, o livro de Atos registra que a pregação de Paulo não conseguiu
manter Eutico acordado (At 20.9; cf. Plummer). O que faltava a Paulo, com
certeza, eram os floreios retóricos esperados dos oradores em certas camadas da
sociedade helenista; porém, a acusação feita contra ele pelos intrusos transcende
essa deficiência perceptível e atribui a Paulo uma dupla inconsistência. Daí o
apóstolo ter respondido defendendo sua consistência.
Um velho adágio nos diz: “A consistência é o espantalho das pequenas
mentes”. Seguramente isso não está lá muito certo: certas inconsistências
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 77
sob circunstância alguma, ele faria isso se sentisse que os irmãos e irmãs em
Cristo mais fracos pudessem ter a fé prejudicada por aquilo que ele se permitia
fazer. Com alegria circuncidaria cristãos do sexo masculino se isso aumentasse
a eficácia do testemunho deles, mas se recusaria terminantemente a agir assim,
caso isso colocasse em risco a suficiência e a exclusividade do evangelho que
ele amava e pelo qual fora salvo.
De maneira similar, observadores superficiais, críticos de homens, poderíam
acusar Paulo de incoerência por acharem as cartas dele severas e enérgicas, mas
sua presença pessoal, inexpressiva. Contudo, talvez eles não tivessem levado em
conta certos fatores relevantes. As cartas enérgicas de Paulo haviam sido escritas
em resposta a certos desdobramentos lamentáveis ocorridos na igreja de Corinto.
Se fatos semelhantes viessem a ocorrer justamente antes de sua visita pessoal,
eles iriam descobrir que, pessoalmente, o apostolo não seria menos severo e
enérgico (2Co 10.11; 13.2,10) do que em suas cartas. Enquanto isso, os críticos
não deveríam contrapor seus próprios critérios da retórica contemporânea para
que não fossem seduzidos pela forma e permanecessem insensíveis ao conteúdo
e à verdade (cf. 11.6).
Paulo sustenta que é coerente; e os intrusos não podem deixar de ouvir
uma ameaça velada. Pois se Paulo estiver certo, então um dia ele provará aquilo
que defende, mostrando pessoalmente a força que eles negam que o apóstolo
tenha; mas nesse caso ela será direcionada para a disciplina e a destruição deles.
2. Paulo insiste que a falta de um padrão objetivo é tolice (10.12b). Ele certa
mente não está sugerindo que não haja, em hipótese alguma, espaço para avaliar
reivindicações contrárias. O que Paulo discorda veementemente com relação
aos procedimentos que os intrusos utilizam para se autopromover é o fato de
eles não utilizarem nenhum padrão objetivo. Eles simplesmente “se medem e se
comparam consigo mesmos”; e nisso, “agem sem entendimento” (v. 12). Ao que
parece, esses apóstolos que se autopromoviam comparavam observações sobre
suas visões, suas linhagens raciais e culturais, seu treinamento em retórica, suas
habilidades em exigir remuneração e liderar homens — todos critérios relativos
e de pouca importância aos olhos de Deus.
Sem dúvida esses falsos apóstolos não tinham intenção alguma de se
medirem pelos critérios objetivos preferidos por Paulo: lealdade ao evangelho
de Cristo, conformidade crescente com o caráter de Cristo e participação nos
sofrimentos de Cristo. Eles não conseguiam enxergar, porém, que a autoavaliação
baseada em padrões relativos na verdade não é uma autoavaliação verdadeira.
E impossível medir a velocidade de um trem em movimento enquanto a pessoa
está em outro trem em movimento, num trilho adjacente (a menos, sem dúvida,
que ela saiba a velocidade e a direção de seu próprio trem — mas nesse caso
seu padrão real de comparação é objetivo e externo a ambos os trens). E igual
mente impossível conquistar expressiva estima por retidão moral ou liderança
espiritual comparando-se líderes. E preciso que haja algum padrão absoluto
de referência. Pior ainda, como os falsos apóstolos que invadiram a igreja de
Corinto tinham um entendimento distorcido de si próprios (quando julgados
pelo evangelho objetivo que Paulo pregava), eles sofriam igualmente de uma
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 81
os gentios, seria vil da parte deles gastar energias depreciando seu ministério,
sobretudo entre os próprios gentios a quem Paulo havia convertido.
No entanto, a intenção explícita dessa passagem é menos racial do que
geográfica. O ministério apostólico de Paulo havia se estendido a Corinto; e por
esse meio os próprios coríntios vieram a conhecer o Salvador. Ironicamente, ao
questionar a legitimidade de Paulo, os coríntios estão praticamente questionando
a legitimidade de sua própria conversão!
Paulo vê o “campo” ou “território” em que foi o primeiro a fazer evange
lismo e a plantar igrejas como a “porção” que Deus lhe concedera, não apenas
por causa de sua comissão para pregar aos gentios, não só em razão de seu senso
de que fora conduzido por Deus nas decisões e desvios que tomara em termos
geográficos, mas também porque, por providência divina, ele chegara a Corinto
primeiro. A oração traduzida “chegado até vocês” (2Co 10.14) inclui um verbo
que pode de fato significar “alcançado” ou “vindo” ou “chegado a” (cf. também
Rm 9.31; Fp 3.16); mas um sentido ligeiramente mais completo do verbo grego
é preservado em ITessalonicenses 4.15, onde significa “preceder”, ou seja, ir
primeiro ou alcançar primeiro. Isso se ajusta admiravelmente ao contexto em
2Coríntios 10.14: “fomos os primeiros a chegar até vocês” (NEB). Afinal de
contas, os intrusos também tinham chegado até Corinto: nesse sentido Paulo
não era em nada diferente de qualquer outro pregador, falso ou verdadeiro,
que conseguisse fazer a viagem a Corinto e colocar em prática um pouco de
seu ministério. Mas Paulo foi o primeiro a alcançar os coríntios; e essa era uma
afirmação que jamais poderia ser desafiada ou derrubada com sucesso. Estava
firmada para sempre, era uma afirmação que nenhum evento subsequente
poderia diminuir, e era um reflexo do próprio senso profundo que Paulo tinha
do chamado de Deus para o evangelismo pioneiro e para a plantação de igreja.
Corinto era parte do “campo” que Deus atribuira a Paulo.
O pensamento não se afasta muito da apresentação que Paulo faz de seu
ministério aos romanos. “... eu me glorio em Cristo Jesus, em meu serviço a
Deus”, escreve ele. “Não me atrevo a falar de nada, exceto daquilo que Cristo
realizou por meu intermédio em palavra e em ação, a fim de levar os gentios a
obedecerem a Deus: pelo poder de sinais e maravilhas e por meio do poder do
Espírito de Deus. Assim, desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico, proclamei
plenamente o evangelho de Cristo. Sempre fiz questão de pregar o evangelho
onde Cristo ainda não era conhecido, de forma que não estivesse edificando
sobre alicerce de outro” (15.17-20).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
impostas por sua contínua preocupação e visão limitam tanto seu desejo quanto
sua capacidade de se gloriar. Os homenzinhos se orgulham demasiadamente a
respeito de uma igreja na qual têm pouca coisa a reivindicar; o próprio apóstolo
percebe a enormidade da tarefa, sente o chamado de Deus em sua vida e não
tem tempo nem interesse algum em se gloriar. Antes, o desejo dele é conso
lidar a fé dos crentes coríntios de modo a poder deixá-los e seguir para novo
território e novos desafios.
Há quatro lições a serem aprendidas aqui. A primeira é que a vangloria
está irremediavelmente ligada ao passado, ao passo que os servos de Deus que
verdadeiramente dão frutos mantêm seus olhos no futuro. Paulo tem seu pensa
mento em Roma (At 19.21 b; Rm 1.11) e além, na Espanha e no Mediterrâneo
ocidental (15.24,28). Os falsos apóstolos têm em vista apossar-se do que Paulo
já fizera. Segundo, a verdadeira expansão da igreja não vem do evangelismo de
pescaria nem do evangelismo itinerante, e sim pela proclamação do evangelho
nas regiões e entre as pessoas onde o Senhor Jesus Cristo não é conhecido.
Terceiro, o fato de Paulo querer consolidar as conquistas feitas em Corinto antes
de prosseguir testifica da importância do discipulado integral, da edificação de
igrejas e não apenas da conquista de convertidos. De certa forma, Paulo está
preparado para empenhar sua própria visão do futuro às necessidades da igreja
de Corinto. Se Deus o chamara para estabelecer uma igreja em Corinto, ele
não podia abandonar essa responsabilidade só por detectar novas oportunidades
e necessidades ainda maiores em outro local. A consolidação é o fundamento
sobre o qual se constrói o novo avanço. “Como poderia ele dar seguimento ao
evangelismo pioneiro no Mediterrâneo ocidental quando seus convertidos ali
estavam inseguros e em risco de apostatar?” (11.3) (Harris). Quarto, embora
muitos de nós possamos ser chamados por Deus simplesmente para carregar a
tocha da verdade de uma geração para outra (cf. 2Tm 2.2), é encorajador saber
de crentes como Calebe que avaliam as dificuldades e escolhem, no poder de
Deus, as mais duras tarefas (Js 14.10-12). Nem todo apóstolo pôs seu coração
na Espanha ou na índia, mas podemos agradecer a Deus por aqueles que o
fizeram, e com amor e oração apoiar a nova geração de embaixadores que sai
em busca das obras mais difíceis — evangelizar muçulmanos, trabalhar entre
os mais desamparados, os mais pobres, os mais enfermos, os de coração mais
endurecido. E alguns de nós deveriamos ao menos nos perguntar se Deus talvez
não quer nos ver abandonar nossos púlpitos confortáveis e expandir os horizontes
de nosso ministério plantando novas igrejas em lugares difíceis.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
5. Finalmente, Paulo derruba por terra toda vangloria que a si mesma se reco
menda (10.17,18). Ele faz isso citando uma linha do profeta Jeremias que ele já
havia usado ao escrever aos coríntios (lCo 1.31). Portanto, é provável que eles
tivessem familiaridade com as palavras daquele profeta.
Esse extremo a que Paulo está disposto a ir é o que ele chama de sua “loucura”;
e mais tarde, quando ele realmente começa a se gloriar, ele insiste que não está
falando como um cristão falaria, mas como um “louco” (11.17, NIV). Esse
não é exatamente o mesmo uso da palavra “louco” que se faz em 1 Coríntios
4.10, onde Paulo diz: “Nós, apóstolos, somos loucos por causa de Cristo”. Nessa
passagem ele quer dizer que ele e os outros apóstolos são considerados loucos aos
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO
olhos do mundo. Mas aqui em 2Coríntios 10 a 13 ele está pronto a ser “louco”
no sentido de que está disposto, por amor a seus convertidos, a se empenhar
por alguns momentos em fazer algo que ele considera fundamentalmente como
loucura detestável e sub-cristã.
“Espero que vocês suportem um pouco da minha loucura”, escreve Paulo,
extremamente constrangido pela perspectiva de sua iminente vangloria; e
então ele acrescenta, com deliciosa ironia, “mas vocês já estão fazendo isso”
(2Co 11.1). O que ele quer dizer é que, em certo sentido, os coríntios, enga
nados pelos intrusos, começaram a tratá-lo como se ele fosse um palhaço de
segunda categoria, um louco, em vez de tratá-lo como pai deles por meio do
evangelho (lCo 4.15) e como apóstolo dos gentios. Se os coríntios podem
aturar a loucura de Paulo segundo o que eles entendem por loucura, certamente
podem suportar um pouco da loucura do apóstolo segundo o que ele entende
por loucura! Outra possibilidade realmente plausível é que Paulo quisesse dizer
algo um pouco diferente, mas não menos irônico: os coríntios já demonstraram
estar preparados para aturar a espécie de conduta que Paulo chama de loucura,
pois era justamente tal conduta que caracterizava os intrusos. Paulo espera que
eles possam, então, suportar um pouco de sua loucura; mas, no final das contas,
sugere ele, isso não deve ser assim tão difícil, visto que os crentes em Corinto
tinham muita prática em tolerar exatamente a mesma loucura nos outros.
Os próximos cinco versículos fornecem as três razões de Paulo esperar que
os coríntios suportem a louca vangloria da qual ele irá se ocupar.1
lAs três razões estão estruturalmente mais claras no grego do que no português: cada uma
é introduzida por um gar.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
pouco adiante. Ele se apresenta como o pai da noiva, reunindo assim, em uma
metáfora composta, a imagem de si mesmo como um pai espiritual da igreja
(lCo 4.15; 2Co 12.14), e a imagem comum da igreja como uma noiva. Nessa
figura mais completa, o noivado se realizou quando Paulo levou os coríntios a
Cristo e fundou a igreja: “Eu os prometi a [...] Cristo, querendo apresentá-los a
ele como uma virgem pura” (11.2b). No mundo antigo, o noivado estabelecia
um vínculo: não havia noivado casual, e uma experiência sexual por parte de
uma mulher que estivesse noiva seria considerado nada menos do que adultério.
Paulo, agindo como pai, prometera a igreja de Corinto a Cristo. Como pai
honrado, ele deseja apresentar sua filha como uma virgem pura a seu futuro
marido, quando este vier buscá-la (na parúsia). Em vez disso, no entanto, Paulo
ouve relatos de que ela está se divertindo com outros amantes, ele fica estarrecido.
Mais ainda, sente ciúme por sua filha (não “dela”, mas “por” ela): exaspera-se
com os que a seduzem, amorosamente preocupa-se com a pureza e o futuro
dela, fica ferido e indignado por sua inconstância.
Paulo faz outra comparação: “O que receio é que assim como a serpente
enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua
sincera e pura devoção a Cristo” (2Co 11.3). Grande parte da literatura judaica
do período intertestamentário interpreta o engano de Eva (Gn 3) como um
caso de sedução sexual; mas Paulo não vai tão longe. A medida que se estende
na comparação, o apóstolo traça um paralelo sobre o engano ocorrido nos
dois casos e expressa preocupação com a mente dos coríntios. Eles outrora
manifestaram “sincera e pura devoção a Cristo”; mas agora correm o risco de
serem enganados — da mesma forma que Eva. Quando ela caiu, não foi por ter
sido espancada até a pecaminosa submissão a um ímpio soberano, e sim por
ter sido enganada com astúcia. Ela não era suficientemente devotada ao Deus
que a criou, e cuja vontade a sustentava, como criatura em dependência, para
resistir às lisonjas que a instigaram a deixar a genuína aliança (“Mas Deus disse
mesmo [...]?”, Gn 3.1) e que lhe prometeram uma nova e exaltada posição
(“e vocês serão como Deus,” v. 5). Tragicamente, a nova posição não fez Eva
ser como Deus; na verdade, tal posição caracterizou-se pela morte e corrupção.
O quanto isso era semelhante a situação dos coríntios! Essa comunidade que fora
dada em compromisso não era assim tão devotada a seu noivo que não pudesse
ser enganada com astúcia. Ela estava sendo arrastada para longe da aliança que
assumira em público, e insinuantemente estava seguindo o mesmo velho enga
nador, o próprio Satanás, conforme ele a conduzia para o que parecia ser um
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
E dificilmente seria menos notável a candura com que Paulo promove seu
piedoso ciúme como razão pela qual os coríntios deveríam suportar sua louca
vangloria. A intensidade de seu amor por eles, a solenidade do noivado entre a
igreja de Corinto e Cristo, celebrado com a participação de Paulo, seu receio de
que eles fossem enganados, tudo isso deveria lhes fornecer motivos suficientes
para aguentarem a “loucura” na qual ele está prestes a embarcar.
Porém, se o ciúme piedoso de Paulo não for razão suficiente, ele lhes dará
outra. De bom grado os coríntios deveríam ouvir Paulo até o fim, a despeito
de toda a sua loucura:
2. Porque eles aceitam toda sorte de disparates dos apóstolos rivais com bastante
facilidade (11.4). “Pois, se alguém lhes vem pregando um Jesus que não é aquele
que pregamos, ou se vocês acolhem um espírito diferente do que acolheram ou
um evangelho diferente do que aceitaram, vocês o suportam facilmente.” A pre
posição introdutória “pois” provavelmente serve a uma dupla função: ela embasa
o receio expresso e o apelo para suportar Paulo. Em outras palavras, Paulo receia
que os coríntios estejam sendo enganados (11.3), pois são muito tolerantes para
com os que ensinam heresias (11.4); e Paulo continua a apelar aos coríntios para
aguentarem sua loucura, pois, afinal de contas, é com prazer que eles suportam
uma mensagem conflitante e fundamentalmente falsa. “Seguramente deveríam
demonstrar para com seu pai na fé o mesmo grau de tolerância demonstrado
para com um recém-chegado que pregava uma fé diferente!” (Harris).
A forma exata da falsa mensagem pregada pelos intrusos não fica clara.
O melhor palpite, a julgar pela ênfase nos capítulos ao redor, é que se tratava
de alguma forma judaizante (veja o cap. 1). Os falsos apóstolos atribuíam
muita importância à sua herança judaica (2Co 11.22), e a isso acrescentavam
uma sucessão de virtudes que sentiam fazer deles cristãos superiores; ou talvez
até argumentassem que alguns desses trunfos eram exigências necessárias para
o verdadeiro cristianismo. Paulo detectou nas pretensões deles exatamente o
mesmo perigo que os judaizantes introduziram nas igrejas da Galácia, com
uma ênfase ligeiramente diferente. O resultado desses acréscimos era que outro
Jesus estava sendo pregado (11.4; cf. G1 1.8,9).
Naturalmente, até certo ponto eles pregavam o mesmo Jesus: sem dúvida,
eles também criam que ele era o Messias prometido, que fez milagres e pregou
o reino de Deus, que morreu, ressuscitou do túmulo e ascendeu para a destra
do Pai. Todavia, assim que Jesus deixa de ser a única base para a nossa salvação,
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
assim que nossa aceitabilidade perante de Deus passa a depender de algo mais
do que o sacrifício de Cristo na cruz, negamos a suficiência de sua pessoa e
de sua obra. Nesse ponto o Jesus pregado não mais é o Jesus bíblico, mas um
produto fictício da imaginação humana, uma figura relativamente impotente
que não tem poder de fato para salvar seu povo de seus pecados, a menos que
complementem sua obra com algo que seja mérito deles.
O tipo de ensino a que os coríntios estavam dando ouvidos resultava tam
bém em um espírito diferente. Não é de todo certo se há aqui uma referência
ao Espírito Santo; provavelmente não. Antes, a ideia é que a mensagem do
verdadeiro evangelho, do perdão dos pecados e do despontar de uma vida nova
e eterna, traz um espírito de paz, liberdade, poder, amor e domínio próprio
(cf. Rm 14.17; 2Co 3.17; 2Tm 1.7). Porém, se os crentes regridem para um
sistema legalista em que a confiança em Cristo e sua jubilosa aceitação são subs
tituídas por uma dependência de mérito e virtude pessoal, muitos regridirão para
um espírito de escravidão e medo que oculta as prerrogativas de nossa filiação
(Rm 8.15). Em resumo, o que está sendo pregado é um evangelho diferente.
Quando Paulo critica os coríntios por se curvarem a um Jesus “que não
é aquele que pregamos” ou por aceitarem um evangelho “diferente do que
aceitaram”, ele não está alegando que a verdade dependa dele. Longe de pensar
que Paulo esteja dizendo: “Tudo o que eu prego é justo e verdadeiro só por
que sou eu quem prega. Apenas acatem a minha palavra e se curvem à minha
autoridade, e tudo irá bem”. O que fascina Paulo não é sua própria autoridade,
mas a veracidade objetiva do evangelho que ele prega. Daí ele poder dizer em
outra passagem: “Mas ainda que nós ou um anjo do céu pregue um evangelho
diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!” (G1 1.8). Paulo
está tão convicto da veracidade, da exclusiva veracidade do evangelho que ele
está pregando, que se ele próprio alterasse a forma de sua pregação, só poderia
querer sobre si eterna condenação. Não temos aqui um autocrata centrado em
si mesmo, mas um homem que humildemente se coloca debaixo do evangelho
revelado e que está apaixonadamente comprometido com sua proclamação
e pureza, por entender que os evangelhos alternativos, na realidade, não são
evangelho (não são “boas-novas”) em hipótese alguma. Que diferença dos
falsos apóstolos que, em certos aspectos e ao que tudo indica, estavam mais
interessados na forma e na aparência do que no conteúdo propriamente dito
(2Co 10.10; 11.6; cf. ICo 1.17; 2.1,4,5), e cujo triunfalismo centrado em si
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO 97
3. Porque Paulo não é inferior aos “superapóstolos” (11.5,6). Mais uma vez,
esses versículos são introduzidos, no grego, pela preposição “pois”. Os coríntios
deveríam suportar a louca apresentação que Paulo está para fazer, pois, diz ele,
“não me julgo nem um pouco inferior a esses ‘superapóstolos’”.
Alguns estudiosos argumentam com veemência que os superapóstolos
a que Paulo se refere não são os intrusos (aos quais critica severamente em
2Co 11.13-15 como falsos apóstolos), mas apóstolos de genuína eminência
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Você pode ir a qualquer lugar, seja uma igreja, seja uma capela, e descobrirá que
de longe a grande maioria de nossos pregadores tem uma entonação sagrada
para os domingos. Eles têm uma voz para a sala de visitas e para o quarto, mas
outra bem diferente para o púlpito. O que é isso, senão alguém de língua dobre
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
2Em latim, “com a boca redonda”, isto é, o falar de modo pomposo e afetado. (N. do T.)
3Ediçao em português: Lições aos meus alunos (São Paulo: PES, 1990), 3 vols.
O PERIGO DO FALSO APOSTOUKDO 101
Embora fosse loucura o fato de Paulo ter usado esses versículos para for
necer uma terceira razão pela qual os coríntios deveríam escutá-lo, a saber, por
ele não ser inferior aos superapóstolos, o apóstolo fez isso desafiando critérios
fundamentais deles. E haverá ainda muitas mais inversões de critério antes que
Paulo dê por acabada a sua tarefa (veja esp. 2Co 11.2lb-33; 12.1-10).
sabendo que Paulo recebera auxílio de outras igrejas (e se não sabiam antes de
2Coríntios ser escrita, ele candidamente lhes informa sobre o fato nessa carta,
em 11.8,9). Por que deveria tratá-los de forma diferente?
Cuidadosamente tutelados pelos falsos apóstolos, já assimilando o precon
ceito da sociedade paga ao redor, que avaliava os mestres pelo volume do que
ganhavam, os coríntios passaram a acreditar que, afinal de contas, Paulo não
podia estar à altura de um apóstolo. Talvez começaram a pensar dele o mesmo
que Antifonte pensava de Sócrates:
A razão de Paulo seguir esse padrão não está claramente expressa em lugar
nenhum. Pode ter sido parte do seu plano pregar o evangelho gratuitamente
(1 Co 9.15-18) para proclamar, por palavras e ações, a maravilhosa graça de Deus.
As pessoas têm dificuldade em compreender a liberalidade da graça: talvez um
exemplo concreto pudesse ajudar. Enquanto isso, a igreja contribuinte, à qual
Paulo não mais estava ministrando, estaria aprendendo uma lição ligeiramente
diferente, a saber, o débito que a graça põe sobre nós para com todos os seres
humanos e o privilégio de participar, por meios financeiros, da evangelização
e da plantação de igrejas, responsabilidades que pertencem a todos os cristãos.
Em nenhum dos casos Paulo está sendo remunerado por serviços prestados.
Entretanto, no que dizia respeito aos coríntios, a estratégia de Paulo agora
tem uma segunda parte: “Fiz tudo para não ser pesado a vocês, e continuarei
a agir assim” (2Co 11.9b). Parece, portanto, que por mais que em princípio
Paulo tivesse estado disposto, ao menos no passado, a receber ajuda deles para
seu ministério apostólico, ele não mais está disposto a receber deles qualquer
auxílio, seja de que tipo for. Evidentemente, ele ainda coletará dinheiro deles
para dar a outros, como, por exemplo, para socorrer os pobres em Jerusalém
(2Co 8,9); mas não aceitará deles nem um centavo sequer para si.
Parte da razão para esse passo logo é esclarecida (2Co 11.12; veja abaixo).
Além disso, a formação dessa diretriz individual para os coríntios pode ter sido
estimulada pela visão particularmente pagã de remuneração que eles tinham.
Enquanto avaliassem Paulo pelo volume de seus ganhos, enquanto utilizassem
padrões do mundo para avaliar igualmente mensagem e mensageiro, Paulo não
estaria disposto a reforçar essa abordagem pagã deles recebendo coisa alguma
de suas mãos.
ainda que o argumento não seja eficaz do ponto de vista lógico em relação às
premissas dos opositores de Paulo, ele o é em relação às próprias premissas do
apóstolo; e é justamente esse o ponto. Se os intrusos não podem seguir o exemplo
dele nesse aspecto, é precisamente por sua compreensão do evangelho ser pate
ticamente equivocada; e, portanto, suas vanglorias valem menos do que nada.
Se fossem seguir a prática de Paulo, então naturalmente teriam de abandonar
sua atitude mundana quanto à remuneração e ainda o toque de triunfalismo
pagão por detrás dela. De uma maneira ou de outra, o hábil uso que Paulo faz
da ironia traz à tona questões centrais e força os coríntios a fazerem uma escolha.
tão forte. Bengel observou que, dois séculos e meio atrás, “a indiferença, que
tanto agrada a muitos hoje em dia, não era cultivada por Paulo. Ele não era
um ameno mestre da tolerância”. Na verdade, esse problema frequentemente
coloca a igreja em perigo. Tasker detecta o mesmo perigo na primeira metade
do século 20, ao escrever: “E um sinal da superficialidade de grande parte do
pensamento religioso moderno o fato de Menzies, escrevendo em 1912, achar
necessário descrever os versículos 13 a 15 como ‘Um dos mais precipitados pro
nunciamentos nos escritos paulinos’, acrescentando que ‘muitos dos melhores
amigos do apóstolo não defendem o estilo polêmico dele nessa passagem’”.
O apelo à tolerância sem limites — não apenas à tolerância do direito de
o outro sujeito estar errado, mas à tolerância levada tão longe que ninguém
pode dizer que algo ou alguém está errado — pressupõe que o maior dos males
é defender a forte convicção de que certas coisas são verdadeiras e o contrário
delas é falso. Pior, tal pressuposição funciona por causa de uma pressuposição
anterior: a de que o conhecimento seguro em questões de religião é algo
impossível. Porém, se defendermos que Deus se revelou à humanidade de modo
supremo na pessoa de seu Filho, mas também nas palavras e proposições das
Escrituras, então, por mais que muitas dificuldades de interpretação possam
ainda nos afligir, não temos o direito de tratar como opcional qualquer coisa
que Deus tenha dito. Na verdade, nunca dizer que uma opinião está errada
pressupõe que existe uma opinião certa — a saber, aquela que diz que nenhuma
opinião está errada. Ou isso é ilógico, ou o defensor dessa posição realmente
quer dizer que a opinião certamente correta é a de que nenhuma outra opinião
deve ser descartada como errada. Mas como a pessoa chegou a esse conheci
mento seguro? Poucas opiniões são menos liberais e mais intolerantes do que
essa forma de liberalismo ferozmente intolerante em relação a tudo, menos em
relação a si próprio.
A maioria das pessoas está convencida de que certas opiniões estão erradas;
e, até certo ponto, as posições que sustentamos, conscientemente ou não, defi-
nem-se em oposição às opiniões que rejeitamos. Os alemães têm um sábio
ditado: “Sage mir, mit wem du streitest, und ich sage dir, wer du bist”, “Diga-
-me com quem estás lutando, e te direi quem és”. Cinquenta anos atrás, J.
Gresham Machen dizia a seus alunos que as questões mais importantes não são
aquelas nas quais as pessoas concordam, mas aquelas nas quais elas discordam.
Sua perspectiva sem dúvida pode ser usada de forma abusiva em defesa de uma
postura beligerante e mesquinha, mas uma reflexão empática em relação ao
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO
que ele está dizendo percebe que, no caso de muitos debates, essa análise está
perfeitamente correta.
Na situação de Corinto, Paulo e seus oponentes concordavam em relação
a muitas coisas centrais: o monoteísmo, a verdade da Escritura em relação a
isso, o caráter messiânico de Jesus e muito mais. Mas, pelo assunto em questão,
as coisas com respeito às quais discordavam eram muito mais importantes; e o
modo de cada lado apresentar suas principais objeções serve para identificar esse
lado e revela muito sobre ele. Para os instrusos, o oponente é Paulo; à medida
que aprendemos algo sobre ele, a objeção dos intrusos nos revela bastante sobre
eles: o que respeitam e valorizam, o que rejeitam, seus valores e muito mais.
Para Paulo, os oponentes são os intrusos; à medida que aprendemos algo sobre
eles, sua objeção nos revela bastante sobre o apóstolo: sua forte convicção sobre
a verdade do evangelho, sua profunda preocupação com o bem-estar espiritual
de seus convertidos, sua severa reprovação dos falsos ensinos na igreja e o quanto
ele desprezava a autopromoção e a devoção não sincera a Cristo.
Isso também é comum nos dias de hoje. A tolerância sem limites pode
refletir uma indiferença à verdade, mas quando nos opomos a algo igualmente,
mostramos aquilo que somos e estimamos. Opor-se pelo mero prazer de dis
cordar tem pouco valor; mas, olhando de outra perspectiva, a falta de oposição
sugere que somos cegos, tolos ou que não nos importamos. Cristãos que se
preocupam em proclamar o evangelho de forma eficaz e em ter uma igreja
equilibrada devem seguir o exemplo de Paulo: identificar o oponente de modo
preciso e atuar a partir de uma base de devoção apaixonada à verdade da religião
biblicamente revelada e de preocupação pela vida de homens e mulheres. Se
ficamos constrangidos pela veemência da denúncia de Paulo, nossa postura só
pode revelar o quanto nos afastamos do evangelho apostólico.
que ele tanto se incluía entre os falsos apóstolos quanto usava os mesmos critérios
deploráveis e inadequados. Mas Paulo sabe como tirar partido da insensibilidade
deles: “Mas se vocês assim me consideram”, escreve ele, “recebam-me como rece
beríam um louco, a fim de que eu me orgulhe um pouco” (v. 16). Se os coríntios
o receberem da mesma maneira que receberíam o insensato, então é óbvio que
acolheríam Paulo como acolheram os apóstolos rivais; e esse tipo de aceitação é
tudo o que Paulo precisa para superar as barreiras mentais deles e mostrar-lhes
que, mesmo com base nos critérios de seus rivais, ele em nada é inferior.
Mas depois de ir tão longe, Paulo recua. Ele se sente imensamente descon
fortável por estar escrevendo desse modo, por estar contemplando a própria
apresentação de uma extensa lista de autoelogios. Por isso, ele protesta uma
vez mais: “Ao ostentar este orgulho, não estou falando segundo o Senhor, mas
como louco” (v.17). O profundo anseio de Paulo é imitar a Cristo, até em seu
modo de falar, e tem plena consciência de que esse tipo de vangloria arrogante
nunca foi o estilo do Senhor. Embora ninguém jamais tenha feito alegações
mais exaltadas sobre si mesmo do que Jesus, ele as proferiu não como um ser
humano mortal que procurasse em vão igualar-se a Deus, mas como o Filho
que a si mesmo se esvaziou e se empenhou no propósito de trazer salvação a
pecadores condenados. Visto que o Senhor Jesus Cristo nunca se expressou de
modo vanglorioso nos dias da sua carne, seria ultrajante supor que seu Espírito
levasse seus discípulos a agirem diferente hoje. “Jamais se poderia afirmar que
qualquer tipo de vangloria seja fruto do Espírito!” (Tasker). Paulo tem dolorosa
consciência desse ponto; por isso, chama atenção para o fato de que o que ele
está prestes a dizer passa muito longe da “mansidão e [...] bondade de Cristo”
(10.1), na verdade, não passa de insensatez temporária. A realidade é que, da
maneira que estão as coisas em Corinto, Paulo tem pouquíssimas opções: “Visto
que muitos estão se vangloriando ao estilo do mundo, eu também me vanglo
riarei” (11.18). Em outras palavras, Paulo está prestes a se gloriar, não por estar
seguindo o exemplo de Cristo, mas porque os problemas pastorais de Corinto
o estão forçando, temporariamente, a seguir o exemplo de seus oponentes. Os
crentes de Corinto estavam satisfeitos com a autopromoção incessante dos após
tolos intrusos. Ou eles eram em grande número, ou as práticas de relativamente
poucos tinham corrompido a muitos na congregação. Seja qual fosse o caso,
Paulo precisava descer ao nível deles, por alguns minutos, para ganhar a atenção
da audiência e pôr fim às acusações injuriosas. E, uma vez mais, ele apresenta
suas desculpas ao convidar os coríntios a tolerarem por um tempo a sua loucura.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Não há dúvida de que Paulo está farto disso. No entanto, sua acusação
mordaz à sabedoria dos coríntios é bem diferente de sua implacável exposição
dos falsos apóstolos (2Co 11.13-15). Ao se voltar contra os intrusos, ele não dá
trégua e afirma que eles jamais foram crentes. A ironia que dirige aos coríntios,
ao contrário, é impactante o suficiente para os abalar e os tirar da própria com
placência, mas é formalmente muito branda: ele concorda com os coríntios e
admite ser mais fraco do que os falsos apóstolos! Eis um líder com imensa sensi
bilidade pastoral, um apóstolo cujo diagnóstico é tão sensível que ele mesmo
sabe que remédios aplicar. A ferida causada ao ego dos coríntios, assim como a
ferida feita por um cirurgião, tem o objetivo de remover um câncer especifica
mente maligno. Poucas coisas malignas são tão perigosas quanto a arrogância
alimentada pela ignorância ou o triunfalismo nutrido por uma mente secular.
Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais:
circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à tribo de
Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor
da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível.
Mas o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de
Cristo. Mais do que isso, considero tudo como perda, comparado com a
suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por cuja
causa perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar
a Cristo (Fp 3.4b-8).
120 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Por ora, no entanto, Paulo precisa apresentar sua linhagem para relembrar
aos coríntios de que ele não é menos judeu, nem menos filho de Abraão, nem
menos herdeiro das alianças, nem um judeu menos treinado na língua e na
herança antigas do que qualquer dos falsos apóstolos que a ele se opõem. O
fato de Paulo ter de pôr essa questão em primeiro lugar na lista de vanglorias
(de fato, as únicas vanglorias detalhadas que não compartilham da mordaz ironia
que caracteriza as demais) é uma forte confirmação de que os intrusos na igreja
de Corinto eram judaizantes, provavelmente da Palestina.
'Nas últimas poucas décadas, tem havido um enorme volume de trabalhos cujo objetivo
é identificar os oponentes de Paulo nas cartas aos coríntios e em outras. A questão é muito
complexa e os resultados incertos demais para se provarem proveitosos aqui, além do esboço
da posição alternativa que procurei refutar acima e no capítulo 1.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
trabalhar arduamente com as próprias mãos. Mas, acima de tudo, essas palavras
aumentam nossa expectativa quanto ao que deve vir em seguida. Podemos
imaginar Paulo dizendo algo como: “Plantei mais igrejas; preguei o evangelho
em mais lugares e a mais grupos étnicos; viajei mais quilômetros; ganhei mais
convertidos; escrevi mais livros; levantei mais dinheiro; presidi mais concílios;
andei mais fervorosamente com Deus e tive mais visões; comandei as maiores
multidões e realizei os milagres mais espetaculares”. Afinal, essa é a espécie de
lista que muitos pagãos realmente produziram, embora com itens diferentes.
Havia, inclusive, uma espécie de forma estilizada de escrever essa vangloriosa
lista de realizações, uma técnica a que os estudiosos modernos se referem como
“célebres convenções encomiásticas”. César Augusto, por exemplo, escreveu um
tributo em sua própria honra, um encômio que listava suas muitas realizações
(a chamada Res gestae Divi Augustí). Ele toma o cuidado de incluir números:
fiz isso uma vez, três vezes fiz aquilo, muitas vezes fiz aquilo outro. É muito
provável que o próprio Paulo tenha lido a Res Gestae de César, já que foi ins
crita em monumentos de muitas províncias. Outras listas de autoelogios são
comuns no mundo greco-romano e se encaixam muito bem com as atitudes
predominantes de autopromoção que já mencionei. Assim, Paulo segue o
modelo em uso, a ponto até de recorrer aos números, uma parte importante
desses autoelogios (cinco vezes foi açoitado, três vezes sofreu naufrágio etc.).
“Mas até mesmo uma comparação superficial entre a lista que Paulo faz de seus
sofrimentos e os relatos hipócritas das conquistas gloriosas de Augusto e de
Pompeu mostra que a lista paulina é uma reductio ad absnrdiim [uma redução
do argumento ao absurdo] cuidadosamente calculada da atitude greco-romana
como um todo em relação à vangloria” (Travis, p. 530, n. 1).
Em vez de falar de suas façanhas e vitórias, Paulo detalha seus sofrimentos,
perdas, vergonha e derrotas. E quase como se o critério primordial (se não o
único) e incontestável do verdadeiro apostolado fosse o grande sofrimento no
serviço de Cristo (cf. ICo 4.9-13; 2Co 4.7-12; 6.4,5). Depois que Paulo acaba
de argumentar, resta muito pouco para os triunfalistas falarem. Os sistemas de
valores defendidos por Paulo e seus oponentes são tão diametralmente opostos
que quase não sobra nenhum terreno comum.
Mais tarde, refletirei um pouco mais sobre o significado desse critério, mas
vale à pena, por enquanto, fazermos uma breve pausa em cada item da lista.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALÍSTAS 123
Fui encarcerado mais vezes (1123). Essa carta foi escrita aproximadamente
na época da viagem descrita em Atos 20.2a. Antes desse período, Atos registra
um único aprisionamento, a saber, o ocorrido em Filipos (At 16.23-40). Os apri-
sionamentos de Jerusalém, da Cesareia e de Roma ocorreram todos mais tarde.
E bem possível que o apóstolo tenha sofrido um período de encarceramento
durante seu ministério em Efeso (cf. ICo 15.32; 2Co 1.8,9). Um documento
escrito no final do primeiro século registra que Paulo esteve encarcerado em sete
ocasiões diferentes (1 Clemente 5.6), mas podem ter sido muito mais. Duas coisas
já estão claras. Primeiro, o livro de Atos não nos oferece um relato completo dos
sofrimentos de Paulo. Mesmo nessa etapa intermediária de sua carreira apostó
lica, Paulo esteve na prisão “mais vezes” embora não mencionadas por Lucas.
Segundo, os falsos apóstolos não teriam escolhido esse tipo de experiência como
um dos itens principais de seu currículo. Paulo já começou a ironia sarcástica.
Fui açoitado mais severamente (1123). Se a prisão já era algo vergonhoso,
ser açoitado era tanto vergonhoso quanto doloroso e podia infligir feridas
mortais. A palavra genérica “açoites” será mais detalhada nos dois versículos
seguintes. A expressão traduzida por “mais severamente” não sugere que Paulo
foi surrado com mais severidade do que os falsos apóstolos, os quais, portanto
(pode-se concluir), tinham sido surrados com menor severidade. Antes, significa
que Paulo fora surrado “além do limite”.
Exposto à morte varias vezes (1123). À semelhança do último versículo,
essa frase refere-se em termos gerais a diversos tipos de situações em que ele
correra perigo mortal; situações detalhadas nos versículos seguintes. “Quando
iria provar ser um ministro extraordinário, o apóstolo dá provas de ter sido um
sofredor extraordinário [...] O cárcere, o açoite e todos os demais tratamentos
terríveis dispensados àqueles considerados os piores dos homens eram as coisas
às quais ele estava acostumado” (Henry).
Cinco vezes recebi dos judeus quarenta açoites menos um (1124). Jesus havia
predito que os adversários do evangelho entregariam seus discípulos aos concílios
locais para serem açoitados em suas sinagogas (Mt 10.17). Nenhum desses
castigos que Paulo sofreu nas mãos de seus compatriotas judeus está registrado
em Atos. O fato de ele ter enfrentado esse suplício cinco vezes a essa altura de
seu ministério é um testemunho profundo de suas tentativas persistentes de
alcançar seus compatriotasjudeus com o evangelho (cf. Rm 1.16b; 9.1-4a; 10.1).
Ele jamais se restringiu aos gentios. Os açoites aplicados pelos judeus foram
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
vez mais, e eram-lhe aplicados nas costas os dois terços restantes do número
de açoites prescritos. “Aquele que açoitar, açoite com as próprias mãos e com
toda a sua força” (Makkot 3.13).
Três vezes fui golpeado com varas (11.25). Quase certamente essa é uma refe
rência aos açoites romanos, não judaicos. Atos só registra um deles (At 16.22,23).
Não havia limites para o número de açoites e podiam ser aplicados em qualquer
parte do corpo do prisioneiro, que era desnudado em preparação. Na teoria,
esse tipo de castigo (muito usado durante o interrogatório do suspeito) não
deveria ser infligido a nenhum cidadão romano (cf. At 16.37; 22.25,29; Cícero,
In Verrem v. 170: “amarrar um cidadão romano é um crime; açoitá-lo, uma
abominação”.) No entanto, há ampla evidência de que nos dias de Paulo essa
violação da lei ocorria com bastante frequência (Cícero, In Verrem 5.161-62;
Livy, 10.9.3-6). E provável que Paulo tenha sido acusado de perturbação da paz.
De qualquer modo, nenhum triunfalista confessaria ter-se metido em enras
cada com o sistema jurídico romano. A vergonha desses açoitamentos públicos
equiparava-se apenas à agonia que infligiam.
Uma vez apedrejado (1125). Essa é sem dúvida uma referência à terrível
experiência de Paulo em Listra (At 14.19), onde ele fora agarrado com violência
pela multidão, apedrejado e abandonado para morrer. É claro que não houve no
caso nenhum processo jurídico (como no apedrejamento judicial promovido por
tribunal judeu: cf. Sanhedrin [Sinédrio] 6.1-6); foi pura e simples violência da
multidão. Mas da perspectiva da pessoa apedrejada é muito duvidoso que sentisse as
pedradas de maneira diferente, caso só lhe fossem atiradas após o devido processo.
Três vezes sofri naufrágio (11.25). Paulo escreveu essas palavras antes do
naufrágio registrado em Atos 27. O apóstolo deve, então, ter sobrevivido a
pelo menos quatro terríveis experiências dessa espécie na sua vida. Não temos
conhecimento de quando ocorreram os três outros naufrágios anteriores. Um,
ou mais, podem ter ocorrido em conexão com as jornadas de sua primeira ou
segunda viagens missionárias (viagens por mar são mencionadas em At 13.4,13;
14.26; 16.11; 17.5; 18.18; e, com certeza, houve outras viagens por mar, por
ex., 2Co 2.1,13; 7.5); ou talvez todas tenham ocorrido nos anos silenciosos de
seu ministério, antes de sua chegada em Antioquia para trabalhar com Barnabé.
Passei uma noite e um dia exposto ao mar aherto (11.25). Um dos naufrágios
foi sem dúvida comprovadamente perigoso. Parece que ocorreu muito longe
da terra firme, impossibilitando o nado, e Paulo permaneceu à deriva na água,
talvez agarrado a destroços, até chegar o socorro.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
de fome. É possível que o frio e a nudez foram-lhe impostos pela vida na prisão
ou, mais uma vez, por privação financeira. Ao mesmo tempo em que os coríntios
estavam sendo ensinados que os verdadeiros grandes mestres recebiam vultosas
remunerações e exigiam incontáveis benefícios, o apóstolo Paulo vivia boa
parte do tempo tão abaixo da linha de pobreza que teria necessitado de somas
substanciais para ensinar tal coisa. Por isso ele sofria em dobro: pelas privações
em si e também pelo deboche condescendente de triunfalistas imaturos, que
casavam a cobiça pagã com a escatologia ultrarrealizada para defender que a
prosperidade financeira era a recompensa do justo e um direito dos filhos de
Deus, convenientemente esquecendo-se da cruz.
“Além de todas as coisas”, escreve Paulo (a expressão poderia significar
“além de todas as outras coisas que deixei de mencionar”, ou “além de tudo
que mencionei e ainda mais”, ou, o que é menos provável, “além das prova
ções exteriores”), “enfrento diariamente uma pressão interior, a saber, a minha
preocupação com todas as igrejas” (2Co 11.28). Eis aqui Paulo, pastor e cristão
mundial. Suas preocupações se estendem a todas as igrejas, sem dúvida e acima
de tudo àquelas que ele mesmo plantou, mas não estritamente a esse grupo,
pois Paulo muitas vezes usa o plural “igrejas” para se referir a todo o povo de
Deus (e.g., Rm 16.16; ICo 7.17; 11.16; 14.33; 2Co 8.18; 2Ts 1.4). As cartas
aos romanos e aos colossenses foram escritas para igrejas que Paulo não fundou
nem visitou, mas isso não o impediu de expressar profunda preocupação pelas
igrejas de Roma e de Colossos.
A preocupação que Paulo sentia não violava de modo nenhum a proibição
de Jesus quanto às preocupações centradas no eu (Mt 6.25-34), pois Jesus proibiu
a preocupação que se opõe a buscar em primeiro lugar o reino de Deus e a sua
justiça; precisamente a mesma virtude que as preocupações de Paulo pelas igrejas
manifestam da forma mais profunda.2 Embora os apóstolos rivais se rendessem
à busca por poder, dinheiro e fama, Paulo não busca nenhum dos três. Ele
anuncia o reino de Deus e ensina a respeito do Senhor Jesus Cristo (At 28.31),
preocupando-se apaixonadamente com a justiça (como prova 2Co 11.29).
Paulo parecia ver sua preocupação com todas as igrejas como o ápice de
suas provações. A imensidade das pressões e sofrimentos já enumerados servem,
portanto, como medida da intensidade do seu zelo pelos companheiros na fé.
2Tratei de forma mais profunda o ensinamento de Jesus sobre a ansiedade em 77/í> Scrincm on
the Mount (Grand Rapids: Baker, 1978), p. 81-96.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS
sinta fraco? Quem é levado ao pecado, que eu não me queime por dentro?”
(2Co 11.29). “Fraqueza”, no corpus paulino, pode se referir tanto à fé quanto à
consciência pessoal: isto é, um crente cuja fé ou consciência é fraca pode sofrer
as dores de uma falsa culpa e submeter-se a normas cuja importância não faz
a menor diferença (e.g., Rm 4.9; 14.1,2; ICo 8.11,12). Nesse contexto, porém,
é provável que “fraqueza” tenha o seu significado mais amplo e refira-se à falta
de força em qualquer aspecto. Paulo está falando de cristãos que, por razões
quaisquer, foram levados a descer a um nível espiritual tão baixo que parecem
não ter reservas de força para vencer a tentação, a dúvida, a sedução e a oposição,
nem para levar adiante o ministério do discipulado. A empatia de Paulo é bem
profunda, pois ele mesmo muitas vezes já sentira as fraquezas mais debilitantes,
inclusive enfermidades (G1 4.3), desânimo e medo (At 18.9,10; ICo 2.3) e as
eternas pressões geradas pela lista das “credenciais” apostólicas que ele está agora
acabando de arrolar (cf. também 2Co 4.7-12). Como poderíam os triunfalistas,
que só se vangloriam na própria força e desprezam todo sinal de fraqueza, ofe
recer algum auxílio repleto de empatia a um companheiro de fé que está fraco?
Não menos aguda é a intensidade dos sentimentos de Paulo quando um
cristão é levado a pecar.3 O apóstolo não consegue se render à indiferença quando
qualquer crente, seja pelo poder persuasivo de um mal exemplo, pela sedução
piegas de personalidades enganosas ou pela tragédia de um falso ensino, é ilu
dido e levado a cair em pecado. O apóstolo queima por dentro, não só com a
empatia compassiva presumida na questão anterior, mas agora também com
a ardente indignação contra os que fazem pecar algum dos pequeninos de Cristo
(cf. Mt 18.6; G1 5.12). Isso explica o ardor da reação de Paulo e a veemência de
sua linguagem em 2Coríntios 11.13-15. Irrestritamente comprometido com
a justiça vinculada ao evangelho e com os irmãos e irmãs transformados por
esse evangelho, Paulo se inflama quando vê essa justiça em ruínas e os crentes
moralmente golpeados pelos servos de Satanás.
3Tem-se sustentado que nesse contexto o verbo skandalizetai, traduzido por “levado a pecar”
pela NIV, signifique na verdade “fica ofendido [escandalizado]”; e que Paulo replica que sempre
que outros cristãos ficam ofendidos ele “queima por dentro” de forma empática com eles, pois
ele mesmo fora muitas vezes ofendido. Essa é uma interpretação improvável. Embora o verbo
possa de fato significar “fica ofendido”, normalmente isso não se dá no sentido de alguém
ter seus sentimentos feridos, mas, sim, de a pessoa sofrer alguma “ofensa” cometida contra
ela. Segundo a experiência bíblica, essa “ofensa” quase sempre leva a vítima a pecar. Além de
que, esse “queimar por dentro” que Paulo sente em relação aos ofensores está contextualmente
moldado por 11.13-15.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 131
Quão diferentes são muitas das nossas reações aos mesmos fenômenos hoje.
Quando tais pecados ocorrem, é lastimavelmente fácil ficarmos filosofando,
comentarmos sobre os tempos maus em que vivemos, ponderarmos que a irmã
ou o irmão que caiu em pecado ou heresia nunca fora mesmo muito forte nem
tivera muito discernimento, sem jamais nos afligirmos em oração por nossos
companheiros na fé nem queimarmos por dentro por causa da fraqueza e da
vergonha que estão sofrendo. Na verdade, em situações como essa, o triunfalista
de fato coerente pode alimentar sentimentos de superioridade e regozijar-se por
não ser como os outros homens. A nossa indiferença nos irmana com o sacerdote
e o levita da parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37).
4Lucas informa que os judeus estavam vigiando os portões a fim de matarem Paulo (At 9.23-25);
Paulo diz que o governador, súdito do rei Aretas, mandou vigiar a cidade para prendê-lo. Esse
problema diz respeito à incerteza de quem era de fato o responsável por Damasco nessa época.
Sem dúvida, os romanos governaram a cidade até 34 d.C., e devem tê-la governado durante
muito tempo depois disso; mas a ausência de moedas romanas em Damasco, no período que
vai de 34 a 62 d.C., convenceu alguns historiadores de que o rei Aretas IV, sogro de Herodes
Antipas que governou os nabateus por volta de 9 a.C. até 40 d.C., ampliou seu território em
34 d.C. para incluir Damasco, supervisionando-a por meio de um representante, enquanto o
próprio rei mantinha o seu palácio em Petra. Se essa informação estiver correta, então é possí
vel (conforme sugere Hughes) que seu governador fosse um judeu (compare a conexão entre
Aretas e o mestiço Herodes) que designou, então, uma guarnição formada só por judeus para
regular o que era de fato uma questão puramente judaica. Assim, essa busca por Paulo veio a
ser a primeira de muitas crises com seus compatriotas judeus. No entanto, é bem mais provável
que os romanos jamais tenham aberto mão do controle da cidade. Nesse caso, o “governador”
talvez fosse alguém indicado pelo rei Aretas para governar uma colônia semiautônoma de
árabes nabateus residentes na cidade. Os romanos fomentaram esse tipo de combinação em
outras cidades (e.g., parece que os judeus de Alexandria desfrutaram de prolongados períodos
de autogoverno semiautônomo na parte da cidade que lhes cabia). Além disso, na verdade a
palavra que a NIV (e a ARA também) traduz como “governador”, etlinarches, refere-se, de
maneira costumeira, a um governador relativamente menor de um grupo tribal. Nesse aspecto,
a atividade evangelística de Paulo ultrajava os judeus de Damasco, e suas incursões na Arábia
afrontavam os árabes nabateus. Assim, judeus (Atos) e nabateus (Paulo) celebraram um acordo
com o propósito de detê-lo, precipitando sua fuga.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 133
’Veja, e.g., 1 Coríntios 11.29. Para uma excelente discussão, cf. Wayne Grudem, Thegifi of
prophecy in 1 CorintJiians (Washington: University of América Press, 1982). Ele argumenta de
forma convincente que, no que diz respeito à posição de autoridade, a figura do Novo Testa
mento que é análoga à do profeta do Antigo Testamento é a de um apóstolo (em sentido estrito).
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 139
nessa visão, não seria louco — quer dizer, seu orgulho estaria alicerçado em fatos.
Segundo, Paulo vincula a experiência dessa visão ao espinho na carne que lhe foi
dado (v. 7). Não faria o menor sentido o homem em Cristo não ser identificado
com Paulo: Por que haveria este de receber um espinho debilitante para que se
conservasse humilde, depois de outra pessoa haver desfrutado da “grandeza [das]
revelações” (v. 7)? Terceiro, nesse contexto, não faz sentido Paulo gloriar-se na
revelação de outra pessoa, quando seus detratores estão a postos para aviltarem
o próprio apóstolo, não a um terceiro desconhecido.
Não é possível, portanto, que restasse alguma dúvida séria de que Paulo se
refere a si mesmo, quando descreve o que houve ao tal “homem em Cristo”.
A pergunta importante é: por que ele usa esse tipo de subterfúgio? A resposta
só pode ser que o constrangimento de Paulo por ter de se gloriar em tudo isso
é tão grande que o máximo que ele consegue se aproximar da conduta que
tanto despreza é escrever sobre si mesmo em terceira pessoa. Assim mesmo,
ele escreve não sobre um grande apóstolo, mas acerca de um homem em
Cristo, para que seus leitores, ao descobrirem alguns versículos depois que
Paulo está na verdade falando de si mesmo, não o ponham na categoria dos
supercristãos, em posição superior à da massa comum. Quaisquer que sejam
as revelações recebidas por Paulo, foram-lhe concedidas não por ser um
apóstolo extraordinário, mas por ser cristão, por ser um homem em Cristo.
Na linguagem de Paulo não há traços de uma teologia de mérito nem de um
orgulho pronto a se revelar.
Essa segunda carta canônica aos coríntios parece ter sido escrita mais
ou menos em 55 ou 56 d.C. Se considerarmos os “catorze anos”, incluindo-
-os ou não, as experiências visionárias se encaixarão na década de silêncio do
ministério de Paulo, aproximadamente de 35-45 d.C., anos sobre os quais não
sabemos quase nada, exceto que ele os passou na Síria e na Cilícia (G1 1.21).
Não resta dúvida de que Paulo já estava cumprindo as responsabilidades que o
Senhor lhe havia dado em sua conversão — levar o nome de Jesus “perante os
gentios e seus reis, e perante o povo de Israel” além de sofrer por causa desse
mesmo nome (At 9.15,16). E provável que boa parte desse sofrimento, e ao
menos parte do espancamento e açoitamento descritos em 2Coríntios 11, foram
infligidos durante esse período. E agora ficamos sabendo que essa mesma época,
não relatada por Lucas no livro de Atos, também trouxe a Paulo a revelação
mais extraordinária que ele já recebera. Nosso conhecimento acerca de Paulo
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 141
e dos demais apóstolos é muito fragmentário, e se não fosse por esses capítulos
de 2Coríntios, saberiamos incomparavelmente muito menos.
O que, então, aconteceu a Paulo nessa ocasião? Podemos resumir em três
pontos o que Paulo nos conta:
1. Paulo foi arrebatado “ao terceiro céu”, “ao paraíso” (122,4). Era comum
os judeus dessa época falarem de vários céus (cf “todos os céus” de Paulo, em
Ef 4.10), assim como era comum não haver consenso sobre o número exato
deles. Algumas fontes intertestamentárias falam de cinco, sete, dez ou de outro
número de céus. O mais comum talvez seja sete (e.g., O Testamento de Levi
2.7; A Assunção de Isaias 6.13; O Talmude Babilônico, Hagigah 12b); mas é
improvável que Paulo esteja dizendo que tenha sido elevado ao terceiro dos sete
céus, uma vez que o argumento do seu relato é a insuperável bem-aventurança
daquilo que ele viu e ouviu. Nessa passagem, Paulo deve estar empregando
o sistema dos três céus; se for isso mesmo, é provável que o entendimento de
Calvino — de que aqui o terceiro céu indica aquilo que há de mais elevado e
melhor — esteja certo. Sem dúvida, há muitas fontes que falam de três céus,
algumas das quais relacionam o terceiro céu com o paraíso (e.g., 2Enoque 8;
Apocalipse de Moisés 37.5).
A palavra “paraíso” foi tomada por empréstimo do persa antigo e se refere
ao “bosque” ou jardim murado que um nobre podia ter como parte de sua pro
priedade. Adotada pelos judeus falantes do grego, logo passou a fazer referência
ao Jardim do Éden, o primeiro paraíso. Pelo fato de muitos judeus considerarem
o estado final como, num certo sentido, a restauração do Éden, esse estado
final de bem-aventurança passou a ser chamado o paraíso de Deus (cf. Ap 2.7).
Tudo que existe entre um e outro é o paraíso oculto (cf. Lc 23.43). Identificar o
paraíso com o terceiro céu é, portanto, fazer do terceiro céu o lugar da presença
de Deus e objetivo supremo de todos que o conhecem. Paulo usa a linguagem
da sua herança para identificar a esfera para a qual ele fora arrebatado. O verbo
traduzido por “arrebatado” sugere uma transferência rápida, não uma ascensão
lenta. Como isso aconteceu?
2. Paulo não tem certeza do estado em que se achava durante essa revelação (122,3).
Por duas vezes ele descreve sua experiência de ter sido arrebatado ao terceiro céu
com estas palavras ou outras semelhantes: “Se no corpo ou fora do corpo, não
sei; Deus o sabe”. Ou seja, Paulo não sabe se tinha sido arrebatado ao terceiro
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
céu como Enoque, com corpo e tudo o mais, ou se foi somente em espírito,
deixando o corpo para trás temporariamente. Fica claro que Paulo não considera
que isso importe muito. “A ignorância a respeito do modo não anula a certeza
do conhecimento convicto acerca da coisa em si” (Bengel). É provável que os
falsos apóstolos prestassem mais atenção aos detalhes das próprias experiências e
dessem menos atenção à substância de sua visão. Sendo assim, Paulo afastava-se
ainda mais de seus oponentes também nesse aspecto.
No entanto, a observação repetida de Paulo tem sido entendida de forma
equivocada em alguns comentários e estudos recentes. É ir além da evidência,
por exemplo, alegar que Paulo não conseguia imaginar a vida humana à parte
do corpo natural ou do corpo ressurreto, por não se importar em distinguir a
existência corpórea da existência imaterial. Alguns pensam assim por não acre
ditarem que a Bíblia ensine a respeito do estado intermediário. Eles sustentam
que, ao morrer, o crente recebe de imediato o corpo ressurreto sem nenhum
ponto de continuidade com seu corpo natural morto.
Essa interpretação perde a questão tratada nessa passagem. Paulo diz que
não sabe em que estado estava quando teve a visão, mas o fato de ele poder
articular as alternativas “se no corpo ou fora do corpo”, mostra que ele está
perfeitamente confortável com qualquer uma delas e pode vislumbrar qualquer
uma como um modo adequado de desfrutar sua viagem ao paraíso.
E claro que Paulo não escreveu essas palavras para solucionar tais questões,
mas só para expressar a sua incerteza acerca do estado em que se achava ao ser
arrebatado ao terceiro céu.
segredo!); assim, o paralelo alegado não é tão próximo. A maneira mais fácil de
compreender a expressão “coisas inexprimíveis” é considerar que ela signifique
“inefáveis”. Isso implica a existência de duas restrições na comunicação que Paulo
faz de sua visão: primeira, ela era inexprimível ou inefável; e segunda, mesmo
que quisesse revelar o inefável (talvez apelando a muitas metáforas), ele estava
totalmente proibido de fazê-lo.
As duas restrições nos ensinam coisas importantes. A primeira pode ser
esclarecida com um problema paralelo. Vamos supor que você tenha aprendido
a língua de uma tribo isolada no interior da Nova Guiné, com um membro
de lá que abriu caminho até o mundo “civilizado”. A tecnologia da tribo é,
digamos, anterior à Idade da Pedra e sua missão é ir até lá explicar ao povo,
usando a língua deles e sem recursos visuais, exatamente o que é a eletricidade
e o que ela pode fazer.
Você pode começar dizendo que a eletricidade (é de se presumir que teria
de transliterar a palavra) é algo parecido com um espírito poderoso e invisível
que corre mais rápido do que o vento por dentro de coisas sólidas, como os
ramos das trepadeiras. Essas coisas sólidas, ao contrário dos ramos das plantas,
são feitas pelos homens e são quase sempre penduradas em troncos de árvores,
cujos galhos foram cortados fora. A eletricidade é feita numa extremidade
desses “ramos”, os quais levam a eletricidade ao interior de todas as residências.
Quando chegam dentro de casa, são colocados dentro de outras coisas feitas
pelos homens. Há uma que se assemelha a uma caixa pequena, mas quando a
eletricidade entra nela, seu topo fica quente como fogo e é possível assar ali
mentos dentro dela sem fazer fumaça. Quando a eletricidade entra em outras
coisas feitas pelos homens — pequenas e redondas —, enchem a casa de luz,
como se fossem pequenos sóis.
Até esse ponto é claro que você não se arriscou a descrever baterias elé
tricas, motores, escadas rolantes, relógios elétricos, termostatos, refrigeradores,
calculadoras portáteis nem computadores; a empreitada já se mostra gigantesca.
O problema não está na inteligência nativa do povo tribal, mas na limitação da
experiência deles. Eles têm poucos cabides mentais nos quais possam pendurar a
nova informação, pois não viram nem têm conhecimento da maioria das coisas
que você pretende descrever nem de nada muito parecido com elas. Foi por
isso que você recorreu a tantas metáforas e símiles: os fios feitos pelos homens
são parecidos com ramos de plantas; o fogão é mais ou menos como uma caixa
cuja tampa fica quente ao receber eletricidade e assim por diante.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
terceira pessoa, algumas linhas mais adiante, ele escreve: “Nesse homem me
gloriarei...” (2Co 12.5a). Sob nenhuma circunstância, seja ela qual for, Paulo
quer obter crédito ou reputação por causa dessas revelações, caso seus leitores
estejam começando a perceber com clareza o recurso literário usado por ele.
Para salientar a magnitude da honra concedida, ele se gloriará no “homem em
Cristo”; mas no que diz respeito a seu próprio compromisso fundamental quanto
à vangloria que considera admissível (apresentado em 10.12-18), ele tem ainda de
acrescentar: “mas não em mim mesmo, a não ser em minhas fraquezas” (v. 5b).
Até esse ponto seus leitores devem estar um pouco em dúvida. Paulo agora
remove qualquer resquício do seu disfarce. “Mesmo que eu fosse gloriar-me
[como se eu fosse realmente o homem em Cristo]”, escreve ele, “não seria louco,
porque estaria falando a verdade” (12.6a). Ou seja, se Paulo reivindicasse essas
coisas para si mesmo, não estaria se expondo como algum louco mentiroso
porque, na verdade, ao fazê-lo, estaria mostrando que falou a verdade. É isso!
Paulo finalmente admitiu; confessou ser ele a pessoa que recebeu essas revelações
grandiosas e sublimes. Ele praticamente não teve escolha, mas tomou essa decisão
de forma sutilíssima. Uma vez mais ele chama a si mesmo de louco por entrar no
jogo da vangloria, insiste que recebeu essas visões como um mero “homem em
Cristo”, distancia a si mesmo desse hipotético “homem em Cristo”, faz a conexão
usando linguagem hipotética (“Mesmo que eu fosse gloriar-me...”) e uma vez
mais salienta seu profundo compromisso de gloriar-se apenas em suas fraquezas.
A profundidade desse compromisso é notável. Paulo estava longe de expor
ostensivamente suas experiências espirituais mais profundas; e a mais profunda
delas ele teria levado consigo para o túmulo, não fossem as circunstâncias pecu
liares que exigiram essa confissão. Ele cria, não apenas em teoria, mas também
na prática, na Escritura que pregava aos outros: “... quem se gloriar, glorie-se
no Senhor...” (2Co 10.17).
Mas por quê?
ele, melhor do que ninguém, compreende que, quando se trata da vida cristã,
graça e privilégio grandiosos quase sempre vêm de mãos dadas com sofrimentos
também grandiosos.
2D. A. Carson, Dinine sovereigiity and luinian respousibility (Atlanca: John Knox, 1981).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
dos que ficaram para trás; mas a morte em si não é horrível e, por certo, não é
algo que um cristão amadurecido deva temer ou desprezar.
Esse modo de ver a morte, porém, é demasiado unilateral. A Bíblia ainda
trata a morte como inimigo, o “último inimigo” que só a volta de Cristo vencerá
(lCo 15.25,26). A morte continua a ser uma prova nua e crua do pecado, um
resultado da maldição, uma prova da sentença acusatória de Deus, sob a qual
a raça humana continua; e só será finalmente derrotada no alvorecer do novo
céu e da nova terra. Nesse ínterim, há um sentido segundo o qual devemos
“nos enfurecer, nos enfurecer contra a morte da luz” (todavia não no sentido
que Dylan Thomas deu a essas palavras): a morte é consequência do pecado, e
devemos detestar tudo o que diz respeito ao domínio do pecado.
Temos, portanto, a obrigação de preservar o equilíbrio da Escritura.
A morte é um inimigo, mas principalmente um inimigo derrotado pela obra
de Cristo na cruz e destinado à destruição final, quando Jesus voltar. A morte
é o selo incondicional da maldição, da nossa condenação racial e pessoal; mas
é também o meio usado por Deus em Cristo para adquirir nossa redenção:
o Filho morreu, o justo pelo injusto, para nos levar até Deus. A morte não é
intrinsecamente boa, porque fala eloquentemente do pecado, da maldição, da
corrupção, da mortalidade; mas a graça de Deus já transborda com tanto poder
que os crentes estão cientes de que a morte não é a realidade final. Podemos
sofrer, mas não como os que são desprovidos de esperança; partir para estar
com Cristo é muito melhor.
Esse mesmo equilíbrio deve servir para moldar nossas perspectivas acerca
de muitas áreas da vida ainda marcadas pela maldição do pecado. Doenças,
acidentes, opressão, oposição ao evangelho: nada disso é bom, e tudo pode ser,
de um modo ou de outro, rastreado até o próprio Satanás. Nada disso terá lugar
no reino consumado. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma dessas coisas horríveis
escapa aos limites mais extremos da soberania de Deus. “Sabemos que Deus age
em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados
de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28).
Paulo conhecia bem essas verdades, e as reflete na provação mais difícil
de sua vida. “Para impedir que eu meu tornasse arrogante por causa da gran
deza dessas revelações”, escreve ele, “foi-me dado um espinho na carne, um
mensageiro de Satanás, para me atormentar” (2Co 12.7 — essa é a tradução da
variante textual mais provável). O espinho era um mensageiro de Satanás — não
havia nada intrinsecamente bom nisso, e não havia meio de palavras piedosas
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS
conseguirem jamais encobrir esse fato. No entanto, isso lhe foi “dado” (por
Deus) com propósitos benéficos.
Talvez Paulo tivesse em mente uma situação semelhante no Antigo
Testamento. Os onze irmãos venderam José à escravidão, um ato baixo e vil.
Mas, anos depois, ao refletir a respeito, o próprio José pôde dizer a seus irmãos:
“Vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, para que
hoje fosse preservada a vida de muitos” (Gn 50.20). Assim, no caso de Paulo,
a razão imediata para o espinho, do ponto de vista de Deus, era a grandeza das
revelações; e seu propósito imediato era não deixar que Paulo se tornasse soberbo.
Grande é o crédito do apóstolo em reconhecer tal propósito. Assim como
outros poderíam vir a se sentir motivados a tê-lo em alta conta, caso soubessem
dessas grandiosas revelações, também Paulo corria o mesmo perigo. “Quão
perigosa deve ser a autoexaltação, quando até mesmo o próprio apóstolo pre
cisava se conter” (Fausset). Paulo compreende isso tão bem que em 2Coríntios
12.7-10, onde fala de sua experiência com o espinho na carne, não resta sequer
um indício do seu recurso anterior ao “homem em Cristo”. Quando trata da
grandeza de suas revelações, ele só fala de forma comedida, quando fala; quando
trata de suas fraquezas, ele fala de forma direta e sem acanhamento. Em síntese,
mesmo quando reconta essa experiência dolorosa, ele está dando exemplo da
lição que aprendeu com ela, algo que ele expressa nos versículos restantes (8-10).
3Normalmente, em Paulo a forma articulada lio Kyrios refere-se ao Senhor Jesus, ao passo
que a forma anártrica Kyrios refere-se a Yahweh. O mais usual é orar ao Pai ou (para usar a
fórmula completa) orar ao Pai mediante Cristo e no Espírito Santo. Mas no Novo Testamento
há diversas orações feitas diretamente a Cristo (e.g., aqui; At 7.59).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
deve ter sido nada fácil aceitá-la quando a ouviu pela primeira vez: “Minha graça
é suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12.9a).
Em certo sentido, é claro, Deus respondeu de fato à oração de Paulo, mas
não da maneira que o apóstolo desejava. Calvino distingue acertadamente entre
meios e fins na oração. O fim que Paulo queria era ser aliviado do espinho e
simplesmente presumiu que o meio para isso seria a remoção do espinho. Mas
Deus concedeu o fim mediante outro meio: ele concedeu alívio do espinho, não
com a sua remoção, mas acrescentando mais graça, graça suficiente. O Senhor
prometeu a Paulo que, na aflição causada por esse mensageiro de Satanás, ele
sempre percebería que a graça divina o supriría com uma provisão suficiente
para suportar, como cristão.
Além do mais, essa graça divina concedida a Paulo bastava justamente
porque Paulo estava tão fraco. O poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza: ele
alcança sua dose mais plena e suas formas mais poderosas quando é provido
em razão de fraqueza. Quanto maior é a fraqueza do cristão, tanto maior é a
graça derramada.
Se isso for verdade, então os poderes que os falsos apóstolos alegavam ter
significam que eles eram desprovidos de graça! Todas as credenciais impres
sionantes desses líderes eclesiásticos acabavam significando uma falência em
graça. A graça é resposta à necessidade, à fraqueza admitida, à miséria espiritual.
O reino do céu é dos pobres em espírito (Mt 5.3).
É importante reconhecer o que esse texto maravilhoso não promete. Alguns
o leem como se o crente pudesse passar por um período de fraqueza seguido por
outro de graça e poder divinos, no qual ele se tornaria uma espécie de vencedor.
A fraqueza converte-se na condição para esse poder, ou no pagamento de uma
taxa, se você preferir. Mas esse tido de interpretação distorce o texto. O espinho
de Paulo não vem acompanhado da graça; antes a graça lhe é dada para o
capacitar a lidar com a fraqueza não removida. Quase sempre nas Escrituras,
a fraqueza é condição para a graça não no sentido de servir como precursora
indispensável da graça, mas no sentido de servir como veículo contínuo de
graça. “E quando ele está fraco, realmente fraco — pobre, doente, humilhado,
desprezado, não amado pelos seus próprios filhos espirituais, além de desprezado
pelo mundo — que o poder de Deus vem à tona. ‘Porque a loucura de Deus é
mais sábia do que a sabedoria humana; e a fraqueza de Deus é mais forte que
a força humana’ (lCo 1.25)” (Barrett).
Em nenhum outro lugar isso está mais claro do que em Romanos 8,
a célebre passagem do mais que vencedores. Paulo não está interessado em
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 153
Senhor Jesus, muitas e várias são as coisas pelas quais o homem pode se sentir
atraído, mas uma coisa há para a qual homem nenhum jamais se sentiu atraído,
a saber, para o sofrimento e a humilhação. A isso, nós homens achamos que
devemos evitar o máximo possível, e que sempre devemos ser forçados a essas
coisas. Mas tu, Salvador e Redentor nosso, tu foste humilhado sem a isso seres
coagido, e muito menos forçado a tanta humilhação, em cuja imitação o homem
descobre sua mais elevada honra; ah, que a imagem de tua humilhação seja-nos
tão vivida que possamos nos sentir atraídos para ti em humildade, para ti, que
do alto nos atrairás para ti mesmo.4
4S0ren Kierkegaard.
154 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
que inflige a si mesmo; só mesmo um tolo insensível pode sentir prazer nos
sofrimentos decorrentes de sua própria tolice; e só mesmo um cristão convicto
pode sentir prazer no sofrimento suportado por anior de Cristo, pois só esse cristão
foi iniciado no segredo divino, o de que somente quando ele é fraco... é que ele
é forte”. Os visionários superespirituais que afligiam a igreja nada sabiam desse
cristianismo. A reação de Paulo, o seu gloriar-se nas fraquezas, praticamente não
fazia sentido para eles, mas homens e mulheres que conhecem e amam a Jesus
discernirão prontamente por que Paulo chega a essas conclusões revolucionárias,
pois começaram a compreender o que significa servir e sofrer “por amor de
Cristo” (12.10). E, à medida que servem, podem confiar na perfeita combinação
de soberania e graça que há em Cristo, a qual os capacita a cantarem:
Fui louco, mas vocês me obrigaram a isso. Eu devia ter sido recomendado
por vocês, pois em nada sou inferior aos “superapóstolos”, embora eu
nada seja. As marcas de um apóstolo — sinais, maravilhas e milagres —
foram mostradas entre vocês, com grande perseverança. Em que vocês
foram inferiores às outras igrejas, exceto no fato de eu nunca ter sido
um peso para vocês? Perdoem-me esta ofensa!
Agora estou prestes a visitá-los pela terceira vez e não serei um peso
para vocês, pois não são os seus bens o que desejo, mas vocês mesmos.
Além disso, não são os filhos que devem ajuntar riquezas para os pais, mas
os pais para os filhos. Assim, de bom grado, por amor a vocês, gastarei
tudo o que tenho e também me desgastarei pessoalmente. Visto que
os amo tanto, devo ser menos amado? Seja como for, não lhes tenho
sido um peso. No entanto, sujeito astuto que sou, eu os apanhei com
astúcia. Porventura eu os explorei por meio de alguém que lhes enviei?
Recomendei a Tito que os visitasse, acompanhado de outro irmão.
Por acaso Tito os explorou? Não agimos nós no mesmo espírito e não
seguimos os mesmos passos?
Vocês pensam que durante todo este tempo estamos nos defen
dendo perante vocês? Falamos diante de Deus como alguém que está
em Cristo; e tudo o que fazemos, amados irmãos, é para fortalecê-los.
Pois temo que, ao visitá-los, não os encontre como eu esperava, e que
vocês não me encontrem como esperavam. Temo que haja entre vocês
brigas, invejas, ataques de ira, divisões, calúnias, intrigas, arrogância e
desordem. Receio que, quando visitá-los outra vez, o meu Deus me
humilhe diante de vocês e eu lamente pelos muitos que pecaram ante
riormente e não se arrependeram da impureza, da imoralidade sexual e
da libertinagem que cometeram (2Co 12.11-21).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
doutrinas, mas foi um grande sofrimento pessoal para o apóstolo, conforme ele
revela ao dizer uma vez mais: “Fui louco”.
E claro que, em certo sentido, os responsáveis por levarem o apóstolo a essa
situação lamentável foram os próprios intrusos. Mas há outra forma de ver a
questão. Se os coríntios tivessem a metade da sabedoria e do discernimento que
achavam ter, não teriam sido enganados pelos “obreiros enganosos” (2Co 11.13).
“Fui louco”, Paulo admite, “mas vocês me obrigaram a isso” (12.11). A vangloria
pagã de falsos líderes nunca teria forçado Paulo a adotar táticas semelhantes nem
a imitá-las; somente o silêncio de suas próprias igrejas poderia levá-lo a isso, já
que seus convertidos ficaram calados e foram pouco a pouco sendo enganados
pelos falsos apóstolos. Paulo pode ter sido forçado a fazer papel de louco, mas
sua atitude foi no mínimo desculpável. Já aqueles que o forçaram a interpretar
esse papel não tinham desculpas em defesa de si mesmos.
Nenhuma igreja tinha melhor condição de defender e recomendar Paulo do
que a de Corinto. “Eu devia ter sido recomendado por vocês”, Paulo continua
dizendo, “pois em nada sou inferior aos ‘superapóstolos’, embora eu nada seja”
(2Co 12.11b). Essa igreja fora fundada por Paulo (ICo 4.14-16) e recebera
dele todo o treinamento inicial no caminho da justiça. No entanto, quando o
apóstolo foi alvo da difamação sutil desses recém-chegados superapóstolos, os
próprios coríntios, longe de defenderem Paulo com firmeza e de expulsarem
sabiamente os intrusos, ficaram calados e se deixaram enganar pelas fraudes que
deveríam ter disciplinado.
Paulo não está contradizendo a si mesmo, nem implorando pelas tais cartas
de recomendação tão valorizadas por seus rivais (cf. 2Co 3.1). Ele sabia muito
bem que seu apostolado, cuja comissão recebera do próprio Senhor Jesus (G11.1),
era algo que não dependia de homens, e que nenhuma recomendação poderia
tirar ou acrescentar nada que fosse da autoridade e da responsabilidade conferidas
a ele por esse comissionamento. Mas os coríntios eram seus convertidos. Nesse
sentido, eram o selo ou o sinal de confirmação de seu apostolado (ICo 9.2).
Como convertidos sob o ministério apostólico de Paulo (ICo 3.6,10; 4.15), bas
tava apenas reconhecerem esse fato que estariam recomendando o seu ministério.
Lastimavelmente, porém, não manifestaram o menor sinal de gratidão. Prefe
rindo os padrões mundanos de liderança ostentados pelos intrusos, os coríntios
começaram a se envergonhar do fato de que seu pai em Cristo fosse manso
(2Co 10.1), escasso de floreios retóricos (v. 10; 11.6), financeiramente instável
(v. 7-11; 12.13) e reticente acerca de suas experiências espirituais (12.1-10).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Os coríntios deviam ter percebido de imediato que Paulo não era “em
nada [...] inferior aos ‘superapóstolos’” em tudo quanto fosse um verdadeiro
valor cristão; e nas outras questões, eles tiveram de aprender que seus critérios
estavam errados (veja em 2Co 12.12-14, abaixo). Mesmo esse leve contato
com a vangloria já é suficiente para constranger o apóstolo, e por isso ele logo
acrescenta: “embora eu nada seja”. Nem mesmo o fato de Paulo corresponder
a todos os prerrequesitos de um legítimo apóstolo em nada se relacionam com
superioridade pessoal: ele é devedor da graça, e para Paulo isso não é mero clichê.
Os crentes coríntios não podem ser colocados no mesmo grupo dos intrusos,
mas são culpados por méritos próprios. O fato de não defenderem nem reco
mendarem Paulo foi a causa imediata da agonia espiritual pela qual ele passou ao
escrever esses capítulos. O pecado deles foi o silêncio, mas não apenas isso, pois:
estranham e menosprezam, que Paulo utiliza para provar que suas motivações
são diferentes das dos falsos apóstolos. Por mais estranha que ela possa parecer aos
olhos de uma perspectiva paga que incentiva o sentimento de superioridade em
relação aos outros, demonstra com veemência que o apóstolo não quer os bens
deles, mas eles mesmos — isto é, quer, além do seu amor recíproco, que sejam
continuamente fiéis e consagrados a Cristo (6.13; 12.15). Muito ao contrário de
inferiorizar os coríntios, essa política que Paulo adota ao lidar com eles sabiamente
expõe os exploradores pelo que de fato são, e propõe um sistema de valores cristãos
para denunciar critérios baseados em dinheiro e poder.
A ilustração acrescentada por Paulo (“... não são os filhos que devem
ajuntar riquezas para os pais, mas os pais para os filhos”, 12.14b), não deve ser
generalizada. Em ITimóteo 5.8, são estabelecidas responsabilidades familia
res mais amplas, as quais pressupõem que um filho pode perfeitamente vir a
amparar pais idosos ou doentes. Além disso, em outra passagem Paulo defende
o direito de outros apóstolos serem sustentados por seus “filhos” (ICo 9.3-14).
O argumento da ilustração de Paulo não é o de que não possa haver nenhum
outro tipo de relacionamento entre pais e filhos, mas que sua motivação em
relação aos coríntios é semelhante à do pai que está preocupado em levar sua
descendência à maturidade e à independência, não em explorá-la.
Os coríntios, portanto, levaram Paulo à aflição desses capítulos e usaram
critérios falsos na avaliação dos líderes. O apóstolo agora descreve um terceiro
e um quarto erro cometidos por eles.
'Os movimentos de Tito têm influência na questão relativa a como a segunda carta aos
coríntios foi escrita. Se a viagem de Tito e do “outro irmão” (12.18) for a mesma viagem pro
metida em 8.16-24, uma passagem que antecipa a missão de Tito junto com o “irmão que é
elogiado por todas as igrejas por seu serviço ao evangelho” (8.18) e “nosso irmão, o qual muitas
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
os mensageiros enviados por Paulo não eram exploradores, por que os coríntios
achariam que o próprio apóstolo era?
É provável que a única coisa que poderia dissipar de vez toda a suspeita fosse
a devida carta de agradecimento da igreja de Jerusalém, carta que serviría de
recibo. Quando Paulo escreveu esses capítulos, o dinheiro ainda não havia sido
totalmente coletado, muito menos enviado, portanto, suas opções para defen
der a si mesmo eram extremamente limitadas. A força de sua resposta está em
envergonhar os coríntios, fazendo-os reconhecer que a conduta, a abnegação,
a disciplina e a integridade de Paulo e seus auxiliares são tão patentes e óbvias,
em qualquer nível do procedimento deles, que as acusações são absurdas.
O fato de os coríntios terem chegado a um nível tão baixo é reflexo de sua
imaturidade, de seus pecados diante de Deus e da forma brutal como trataram o
apóstolo em tantos aspectos. As vezes, é claro, nossos líderes espirituais são traga
dos pela desonestidade ou por práticas infames e, portanto, devem ser repreendidos
publicamente (íTm 5.20). Mas o que acontece com maior frequência é que a
vida e o ministério públicos os deixam expostos a acusações sem fundamento,
por isso os cristãos devem ser bem cautelosos até mesmo em ouvir acusações
contra seus líderes. O fato de os coríntios serem capazes de cogitar um disparate
tão flagrante a respeito do apóstolo Paulo é um indício de suas próprias atitudes
e suspeitas, de sua crença de que o dinheiro é importante e desejado por todos
os homens, de sua falta de amor e ingratidão para com Deus e Paulo.
Esses erros dos coríntios são a razão pela qual o apóstolo deve passar dessa
questão para uma elucidação mais detalhada de suas próprias motivações. Se os
coríntios acreditam de fato que Paulo tem em si características como corrupção
e falsidade, então não entenderam muito bem aquilo que o move. Assim, o
parágrafo seguinte, que esboça alguns dos motivos de Paulo, é parte essencial
da repreensão mais ampla.
vezes, e em muitas coisas, já nos provou seu zelo” (8.22), então, os capítulos 10—13 de 2Coríntios
devem ter sido escritos em uma época posterior a 2Coríntios 1—9, uma vez que, de acordo com
2Coríntios 12.18, a viagem já ocorrera, ao passo que em 2Coríntios 8.16-24 ela ainda era um fato
futuro. Por outro lado, a viagem mencionada por Paulo em 12.18 talvez se refira a uma viagem
anterior de Tito a Corinto, mencionada em 8.6. Nessa jornada, Tito “havia começado” a coleta
em favor dos cristãos empobrecidos de Jerusalém. Nesse caso, os capítulos 10—13 de 2Coríntios
não deveriam ter sido desconectados de forma tão definitiva de 2Coríntios 1—9, embora haja
quem use a mesma identificação para levantar a possibilidade de os capítulos 10—13 de 2Coríntios
serem identificados como a “carta severa” escrita atiles de 2Coríntios 1—9. Veja a discussão das
questões mais abrangentes no capítulo 1 deste livro.
FRANCA REPREENSÃO 167
Temos muito que aprender com Paulo. Quando no coração (e não mera
mente em palavras cheias de piedade) o nosso alvo diante de Deus for o de
fortalecer os outros crentes, não o de defender a nós mesmos, não só seremos
bem-sucedidos em revitalizar a igreja por meio de nosso ministério sacrificial e
exemplo, mas também aplicaremos um poderoso golpe no coração demoníaco
do triunfalismo, o qual não é senão outro disfarce para o ego. E se, assim
como Paulo, às vezes nos defrontarmos com crentes totalmente equivocados
quanto às nossas motivações, então, devemos pelo menos estar confiantes de
que, assim como o apóstolo, temos falado diante de Deus como quem está
em Cristo e que os ataques revelam mais sobre quem nos ataca do que sobre
qualquer outra coisa. Que o Senhor possa levantar muitos líderes cristãos cuja
paixão seja edificar o corpo de Cristo.
sua carta. Mas ele teme que seja assim, pois reconhece que os tipos de pecados
doutrinários, comportamentais e espirituais reinantes em Corinto também são
sempre um terreno fértil para os pecados sexuais — e de modo especial numa
cidade como Corinto, onde a imoralidade sexual era tão comum.
Resumindo, implicitamente Paulo admite um princípio profundo: o estado
espiritual e doutrinário de uma igreja mais cedo ou mais tarde se refletirá
também na arena moral. Isso não quer dizer que, com certeza absoluta, todo e
qualquer indivíduo cristão imaturo, dado ao ciúme, ao partidarismo, a explosões
de ira e a outros pecados listados incorrerá em fornicação. A conexão entre tais
coisas não é assim tão próxima. Não há entre elas nenhuma relação lógica no
nível individual. Mas quando uma igreja ou denominação caracteriza-se por
tais pecados, não demora para que logo também se caracterize pelas formas
mais extremas de imoralidade.
As razões são bastante óbvias. Esses crentes professos, em geral, não só
perdem o controle dos pensamentos e da motivação decorrentes da maturidade
espiritual, deixando o pecado muito mais à vontade, mas também a igreja
repleta de problemas como esses dos coríntios não é capaz de exercer uma
disciplina sábia, firme e amorosa; e uma igreja sem disciplina mais cedo ou
mais tarde multiplica seus pecados. Pode ser que não haja um vínculo lógico
em nível individual entre, por exemplo, arrogância e sectarismo de um lado, e
imoralidade sexual e libertinagem do outro, como se alguém que fosse culpado
dos primeiros se visse obrigado a cometer os segundos; mas, sem dúvida, existe
uma relação lógica no nível da comunidade, tanto no que concerne a médias
quanto à condição geral da moral.
Segue-se que o baixo nível da moralidade sexual em muitas igrejas moder
nas talvez seja um indicador de problemas bem mais profundos, do tipo que
Paulo está tentando tratar nessa carta. Pelo fato de entender que essa conexão
existe, ele teme que o arrependimento que parecia aliviar a promiscuidade de
antes seja falso e encontrará o triunfalismo flertando com a licenciosidade.
Esse versículo enfoca um segundo tema principal. Paulo expressa seu temor
numa frase que, à primeira vista, parece bastante estranha: ele teme que ao voltar
de novo a Corinto seu Deus o humilhe diante dos coríntios. Essa humilhação
surge claramente da necessidade de lidar com pecados graves numa igreja que
a essa altura de sua peregrinação já deveria ter alcançado maior maturidade. No
entanto, Paulo diz temer que Deus o humilhe e isso à vista dos coríntios. Por
que razão ele expressaria seu temor justamente dessa forma?
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ
Esta será minha terceira visita a vocês. “Toda questão precisa ser confir
mada pelo depoimento de duas ou três testemunhas.”Já os adverti quando
estive com vocês pela segunda vez. Agora repito, estando ausente:
quando voltar, não pouparei aqueles que pecaram antes nem nenhum
dos outros, pois vocês estão exigindo uma prova de que Cristo fala por
meu intermédio. Ele não é fraco ao tratar com vocês, mas poderoso
entre vocês. Pois, na verdade, foi crucificado em fraqueza, mas vive pelo
poder de Deus. Da mesma forma, somos fracos nele, mas, pelo poder
de Deus, viveremos com ele para servir a vocês.
Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos.
Não percebem que Cristo Jesus está em vocês — a menos, é claro, que
tenham sido reprovados? E espero que descubram que nós não fomos
reprovados. Agora, oramos a Deus para que vocês não pratiquem mal
algum. Não para que os outros vejam que temos sido aprovados no teste,
mas para que vocês façam o que é certo, ainda que pareça que tenhamos
falhado. Pois nada podemos fazer contra a verdade, mas somente em
favor da verdade. Ficamos alegres sempre que somos fracos, e vocês são
fortes; nossa oração é que vocês sejam aperfeiçoados. Por isso escrevo
estas coisas em minha ausência, para que, quando chegar, não precise ser
rigoroso no uso da autoridade — a qual o Senhor me deu para edificá-los,
e não para destruí-los.
Sem mais, irmãos, digo adeus. Procurem aperfeiçoar-se, ouçam
ao meu apelo, tenham um só pensamento, vivam em paz. E o Deus de
amor e paz estará com vocês.
Saúdem uns aos outros com beijo santo. Todos os santos lhes
enviam saudações.
A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do
Espírito Santo sejam com todos vocês (2Co 13.1-14).
A. Advertência (13.1-6)
1. A iminência da disciplina na terceira visita (13.1-3a). Paulo visitou Corinto na
primeira vez com a intenção de plantar ali uma igreja (At 18.1-18; ICo 4.15; 9.1).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
Sua segunda visita foi tão dolorosa, tanto para ele quanto para seus converti
dos, que resolveu não os visitar novamente por um tempo (2Co 1.23; 2.1). Ele
agora considera a possibilidade de uma terceira visita: “Esta será minha terceira
visita a vocês”, ele escreve, retomando o ponto apresentado primeiramente em
2Coríntios 12.14.
A frase seguinte de Paulo é uma citação de Deuteronômio 19.15: "... Toda
questão precisa ser confirmada pelo depoimento de duas ou três testemunhas”. No
contexto original do Pentateuco, essa era uma norma jurídica para desencorajar
julgamentos arbitrários baseados no testemunho de uma testemunha parcial,
talvez motivada por vingança pessoal. Aqui, o apelo a esse versículo dá um tom
jurídico à terceira visita de Paulo, mas não fica totalmente claro por que Paulo o
cita. E óbvio que, de alguma maneira, ele relaciona as duas ou três testemunhas
com a advertência que deu aos coríntios quando esteve com eles pela segunda
vez, bem como com a perspectiva da terceira visita, que fica evidente; a natureza
dessa relação, porém, é mais obscura. Afinal, as repetidas viagens e advertências
de um único homem são coisas bem diferentes de várias testemunhas.
Por essa razão, alguns têm considerado que a citação de Deuteronômio
queira dizer somente que, quando Paulo vier, será rigorosamente justo: ele
não acatará acusações infundadas. Essa interpretação ajusta-se ao contexto de
Deuteronômio, mas não é uma forma muito óbvia de considerar tais palavras
no contexto de 2Coríntios 13, especialmente porque perde a ligação com a
segunda e a terceira visitas.
Em linhas gerais, portanto, parece melhor relacionar as duas ou três teste
munhas à segunda e à terceira visitas, mas lembrar que Paulo não está citando
um texto-prova ou uma autorização (não existe nenhum “como está escrito”).
Antes, Paulo recorreu à fraseologia bíblica para, de fato, dizer: “Eu adverti vocês
da forma devida. Em minha próxima viagem, caso não haja melhorias, tomarei
medidas decisivas”.
Seja como for, é isso que ele prossegue dizendo: “... quando voltar, não pou
parei aqueles que pecaram antes nem nenhum dos outros, visto que vocês estão
exigindo uma prova de que Cristo fala por meu intermédio” (2Co 13.2b-3a).
Nesse contexto, as palavras “não pouparei” sugerem que Paulo exercerá rigo
rosa autoridade apostólica se as condições que teme estiverem de fato presentes.
Ele espera não ter de ser severo ao recorrer à sua autoridade (v. 10), mas, em
outra passagem, ele mostra que está pronto, caso seja necessário, a usar de
disciplina (lCo 4.21).
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO 77
Eles tinham uma mentalidade tão subcristã que, para eles, amabilidade e man
sidão semelhantes à de Cristo pouco significavam. Preferiam manifestações de
poder, por mais exploradoras e arbitrárias que fossem (11.20). Por isso, enten
deram equivocadamente a amabilidade de Paulo, tomando-a por fraqueza, e
deram preferência à agressividade triunfalista dos falsos apóstolos. Paulo responde
que, se é poder o que eles querem ver como critério absoluto da autencidade
apostólica, pode ser que recebam mais do que pediram. O apóstolo talvez seja
forçado a mostrar o poder do Cristo ressurreto, transmitido por seu intermédio
em tons tempestuosos de punição, talvez numa outra versão do juízo imposto
a Ananias e Safira (At 5.1-11).
poder para resistir a seus inimigos. Sem dúvida, Paulo estava ciente que Jesus
afirmou, mesmo no Getsêmani, que dispunha de legiões de anjos (Mt 26.53;
cf. Jo 10.18). Cristo jamais foi tão fraco a ponto de ser forçado a morrer como
mártir. O que Paulo pretende dizer é que Cristo entregou a própria vida “por
meio de” um contexto de fraqueza; isto é, porque a fraqueza foi o que ele
escolheu em sua determinação de fazer a vontade do Pai. Ele foi crucificado
pela fraqueza no sentido de que todos os benefícios que recebemos de sua
graça jorram do contexto de sua abnegação, da negação de si mesmo, o justo
morrendo pelo injusto para nos levar até Deus.
Cristo foi crucificado em fraqueza. Não obstante, Paulo insiste: “[ele] vive
pelo poder de Deus”. Em outras palavras, “a cruz não esgota a relação de Cristo
com o pecado; ele passou da cruz para o trono e, quando voltar, será como
Juiz” (Denney). O próprio Paulo não apresenta tantos detalhes, mas seu argu
mento é semelhante. A fraqueza que Jesus adotou para si mesmo, demonstrada
de forma suprema na crucificação, não é a última palavra: Deus o ressuscitou
dos mortos. Eis aqui uma manifestação arrepiante de poder, tão característica
de Jesus quanto a fraqueza exposta na cruz. A cruz e a ressurreição caminham
juntas; Jesus exibe tanto fraqueza quanto poder.
Mas nessa manifestação de virtudes duais, Cristo levanta-se como modelo
para os cristãos. E se é modelo para os cristãos, então, para os apóstolos cristãos,
ele é o modelo supremo. Essa é a conclusão a que Paulo chega, pois havendo
descrito a demonstração de fraqueza e de poder em Cristo, ele afirma: “Da
mesma forma, somos fracos nele, mas pelo poder de Deus viveremos com ele
para servir a vocês” (2Co 13.4b). Paulo quer dizer que sua própria experiência
espelhará a de Cristo (cf. 4.10). Como todos os demais crentes, o apóstolo Paulo
vive deste lado da morte e, portanto, um dos principais sinais da existência cristã
será “o mesmo tipo de vulnerabilidade que o próprio Cristo optou por ado
tar” (Barrett). A vida de poder é principalmente a antecipação do futuro, pois,
embora Cristo tenha sido ressuscitado dos mortos como a primícia dos crentes,
os crentes só desfrutarão do mesmo poder em nível semelhante quando Cristo
voltar (lCo 5.20-28). Algo desse poder da ressurreição opera agora em nós,
crentes, para nos santificar (e.g., Ef 1.19,20; 3,16,17); e, ao apóstolo Paulo, algo
desse mesmo poder da ressurreição foi concedido para capacitá-lo a lidar com
a situação de Corinto. Na fraqueza do apóstolo, o poder de Deus se mostrará
de forma perfeita “para servir a vocês”, para benefício dos coríntios (mesmo que
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
no momento a disciplina não seja normalmente vista como beneficio pelos que
passam por ela, Hb 12.5-13).
Os argumentos principais de Paulo são claros. Em sua provável terceira via
gem, ele ameaça aplicar disciplina rigorosa, caso seja necessária (2Co 13.1-3a);
e a demonstração de poder que tal disciplina pressupõe será fundamentada em
nada menos do que o poder do Cristo ressurreto. Algo que, de forma inevitável,
leva a mais uma advertência: uma vez que o juízo é tão iminente, os coríntios
devem examinar a si mesmos para evitar a possível destruição.
lhe falta a verdadeira fé salvadora. O próprio Calvino deduz desse texto uma falsa
inferência negativa, concluindo que Paulo “declara que aqueles que duvidam
de terem a Cristo e de serem membros do seu corpo são reprovados” - o que,
obviamente, não decorre desse texto.
A verdade é que a dúvida de alguém sobre sua condição diante do Senhor
soberano pode vir de muitas causas diferentes. Se a dúvida brotar da incerteza
quanto à suficiência da obra de Cristo na cruz, então o crente em dúvida deverá
ser conduzido de volta às muitas passagens que atestam a perfeição de tal obra.
Mas se a dúvida tiver origem em pecado oculto, o curso apropriado para aca
bar com a dúvida é o arrependimento do pecado, a confissão, e, se possível, a
restituição. De modo semelhante, se o crente se sentir muito confiante de que
é aceito no amado e que tem o nome escrito no livro da vida do Cordeiro,
não por sentir-se moralmente superior, mas por unir-se de forma consciente
ao povo do Senhor, cantando:
Nesse caso, então, o autoexame é supérfluo. Se, no entanto, esse suposto crente
se ensoberbece com um senso desenfreado da própria importância, um amor-
-próprio irrestrito, frouxidão moral ou grave desvio doutrinário, então o apóstolo
João (para não ir além) tem um conjunto de três testes a serem aplicados (ljoão):
compromisso com a doutrina, amor pelos irmãos e obediência moral a Cristo
Jesus. Se alguém não for aprovado em qualquer um desses testes, João declara que
essa pessoa não é cristã de forma alguma (e.g., ljo 2.1-9). Nesse ponto, vê-se que a
ênfase das reformas é vista como um tanto simplista, pois nas situações cabíveis,
a atenção das Escrituras concentra-se em fundamentos subjetivos de certeza
(ou seja, em vidas transformadas), da mesma maneira que em outros contextos
elas concentram a atenção no fundamento objetivo (a obra de Cristo na cruz).
Em síntese, quando alguém está com o espírito quebrantado e contrito
diante do Deus de toda justiça, a graça vem, declara a absolvição e concede
confiança. Mas quando a pessoa é orgulhosa e arrogante, produto de um triun
falismo muito bem cultivado, a graça se distancia dela e o rigoroso apóstolo
adverte: “Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos”.
Há hoje milhões de crentes professos na América do Norte (sem falar dos
outros lugares) os quais em algum momento firmaram um compromisso super
ficial com o cristianismo, mas que, se pressionados, seriam forçados a admitir
182 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ
que não amam a santidade, não oram, não odeiam o pecado, não andam humil
demente com Deus. Eles correm o mesmo perigo dos coríntios, e a advertência
de Paulo aplica-se a eles tanto quanto aos leitores coríntios.
B. Oração (13.7-9)
1. Objeto da oração (13.7a). “Agora, oramos a Deus para que vocês não pra
tiquem mal algum”. Paulo poderia estar investindo tempo orando por sua
reivindicação apostólica pessoal ou ao menos para que os coríntios recobrassem
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO 183
o bom senso, mas sua noção de prioridades não falha. Ele ora para que nessa
presente confrontação a igreja de Corinto não cometa nenhum erro, ou seja,
para que os crentes sejam preservados e resguardados de pecar. “Isto é o que de
mais desejável podemos pedir a Deus, tanto por nós mesmos como por nossos
amigos: que nós e eles não cometamos nenhum mal; e o mais necessário de
tudo é pedirmos sempre a Deus para sermos guardados pela graça, pois sem ela
não podemos guardar a nós mesmos. Estamos mais preocupados em orar para
não cometermos mal, do que para não sofrermos mal” (Henry).
apostólica a ele outorgada. Se a carta cumprisse seu papel da forma que devia,
haveria arrependimento e obediência ao evangelho em Corinto, e Paulo não
seria forçado a mostrar o rigoroso poder da disciplina com a qual os cristãos
de Corinto seriam ameaçados, caso isso não acontecesse.
Assim, Paulo, ao mesmo tempo, espera obter bons resultados e faz uma
advertência final, caso suas esperanças sejam frustradas. Ele reconhece que Deus,
em seu propósito abrangente, lhe outorgou autoridade para que ele edificasse
a igreja; mas o apóstolo sabe que às vezes um passo intermediário necessário, e
talvez doloroso, é o de destruir estruturas mal construídas (cf também 2Co 10.8).
Mesmo relutando em usar seu poder de forma tão destrutiva, Paulo lembra
serenamente à igreja, uma vez mais, que está preparado para dar tais passos,
caso sua carta não obtenha sucesso em purificar a igreja antes de sua chegada.
E importante reconhecer a extensão e a independência da autoridade
apostólica implicadas nesse tipo de advertência. Embora Paulo veja que, em
certos aspectos, a evidência de sua autoridade apostólica é a própria igreja de
Corinto, juntamente com as demais igrejas estabelecidas por ele, sua autoridade
não depende em nenhuma hipótese dessas igrejas. Caso ficasse provado que a
igreja de Corinto era amplamente falsa, ele estaria à vontade para destruir a obra
e remover a podridão, na esperança de construir algo melhor. Não é isso o que
ele quer, antes prefere consagrar suas energias à edificação, não à disciplina. Mas
Paulo tem consciência da autoridade que lhe foi outorgada para levar a cabo
tanto uma tarefa quanto a outra. Nesse caso, qual delas ele terá de empreender
depende muito dos próprios coríntios.
paz, supriría essas virtudes com seus próprios recursos para capacitar os coríntios
a obedeceram às recomendações. A expressão “o Deus de amor e paz” nesse
caso significa que Deus é o doador do amor e da paz. Segundo a outra possi
bilidade, que nesse contexto talvez seja de algum modo a melhor, o amor e a
paz poderíam ser vistos menos como dons e mais como características de Deus
(cf. Rm 5.8; ICo 14.33). Nesse caso, a promessa da presença do Deus de amor
e de paz depende da obediência às recomendações. Se os coríntios buscarem se
aperfeiçoar, derem ouvidos ao apelo de Paulo, aprenderem a ter uma única mente
e a viver em paz, então descobrirão que o Deus de amor e de paz estará com
eles. Caso contrário, descobrirão que esse mesmo Deus é quem dá autoridade
e poder ao apóstolo para aplicar a severa disciplina no volúvel povo de Deus.
Paulo conclui com algumas saudações padronizadas que ele reveste de
conotações cristãs. O beijo era uma forma comum de saudação no mundo
mediterrâneo, e ainda é em muitos lugares. Mas Paulo diz aos coríntios para que
se cumprimentem com um “beijo santo”, não porque esteja sugerindo que os
beijos de não cristãos sejam “profanos”, mas porque são santos a comunhão e
o amor que o beijo de saudação deve refletir na comunidade cristã (cf. também
Rm 16.16; 1 Co 16.20). Extrapola as evidências rotular o beijo santo como um
ato de culto, como se fizesse parte de uma liturgia definida; mas, na melhor
das hipóteses, deveria refletir a unidade de pensamento aliada ao amor e à paz
na assembléia cristã.
Ao mesmo tempo, os coríntios precisam ser lembrados de que não são os
únicos cristãos no mundo. A frase “Todos os santos lhes enviam saudações”
(2Co 13.13) — talvez todos os crentes da área de onde Paulo estava escrevendo,
cristãos de alguma igreja da Macedônia, como a de Filipos, Tessalônica ou
Bereia — é, portanto, mais que uma cortesia; é um saudável lembrete para todos
os crentes, dos coríntios em diante, para que se vejam como uma parte, mas só
como uma parte, de todo o corpo de Cristo. Tal senso de unidade deveria ser
motivo tanto de arrebatamento quanto de preocupação. Deveria nos propiciar
uma visão da abrangência da obra redentora de Deus, mas permitir-nos ver que
nosso grupo local de cristãos não é o centro de toda a igreja. A maneira de ver
dos coríntios envolvia a banalização do evangelho e da igreja, ao mesmo tempo
em que exaltava os crentes. A maneira de Deus é mostrar a grandeza da igreja,
ao mesmo tempo em que torna os crentes humildes.
E assim chegamos à bênção final: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor
de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vocês” (2Co 13.14).
ADVERTÊNCIA E ORAÇÀO
E. Consequências
Esses capítulos reverteram a situação em Corinto? Não sabemos ao certo. Em
outro lugar, um grupo de igrejas, ou de líderes eclesiásticos, abandonou Paulo
(cf. 2Tm 1.15), apesar de sua advertência sobre a apostasia iminente (At 20.29-31).
Mas no caso em questão, há pequenos sinais sugerindo que os coríntios rea
giram de forma positiva à emocionante carta de Paulo e obedeceram a suas
recomendações. O indício mais importante emerge do fato de que, quando
a ameaça da terceira visita se concretizou de fato (cf. v. 2,3), Paulo encontrou
tempo para escrever sua carta aos romanos. Essa carta deixa escapar alguma
ansiedade quanto ao futuro (15.30,31), mas nenhuma quanto ao presente. Além
do que, à luz de seus comentários em 2Coríntios 10.15,16a, Paulo não estaria
naquele momento planejando viajar à Espanha (Rm 15.24-28) se a situação dos
coríntios ainda estivesse sem solução. O fato de os coríntios terem feito a coleta
de parte dos fundos que Paulo estava ajuntando para os crentes em Jerusalém
(Rm 15.26,27) pressupõe, para dizer o mínimo, que não houve rompimento
final entre o apóstolo e os coríntios.
No entanto, para nossos propósitos, a pergunta mais importante que
podemos fazer diz respeito ao efeito que este livro terá em nossa própria vida
e congregação. A Palavra de Deus escrita pelo apóstolo Paulo não exerce seu
efeito mais poderoso em nossa vida quando fazemos perguntas arcaicas acerca de
como ela tem tocado os outros, mas quando a obedecemos de todo o coração.