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De que maneira as palavras que estão entre

as mais apaixonadas do apóstolo Paulo


podem nos ajudar hoje a compreender a
nossa vida como cristãos?

De acordo com o estudioso da Bíblia D. A. Carson, 2Coríntios


10—13 revela muito claramente o coração e a mente de Paulo.
Esses capítulos de sua carta contêm passagens bem
conhecidas, como aquela sobre o espinho na carne de Paulo e a
que traz um relato vivido de seus sofrimentos. Essa seção das
Escrituras também apresenta o modelo paulino de liderança
espiritual e adverte contra os falsos líderes na igreja, algo de
importância crucial para todos os que exercem um papel de
influência no corpo de Cristo.

Carson reflete sobre o chamado de Paulo para abraçarmos a


disciplina e a obediência e examina os pensamentos do
apóstolo sobre a natureza do “gloriar-se espiritualmente". Com
Paulo, vamos explorar as lutas, as oportunidades e as intenções
de um cristão sob fogo cruzado e viajaremos com ele à medida
que busca guiar a igreja de Corinto e falar conosco também.

ISBN 978-85-275-0694-6
Q vidanova.com.br

O /vidanovaedicoes

9 788527 506946
VIDA NOVA Q @edicoesvidanova
UM MODELO
deMATU
RIDADE
CRISTÃ
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS REPROGRÁFICOS

° DIRE.I10

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica llacqua CRB-8/7057

Carson, D. A.
Um modelo de maturidade cristã: exposição de 2Coríntios 10—13 /
D. A. Carson; tradução de Mareia B. Medeiros; Vanderson Moura da
Silva; Marcos Vasconcelos. - São Paulo: Vida Nova, 2017.
192 p.

Bibliografia

1SBN 978-85-275-0694-6
Título original: A model of Christian maturity: an expoiition of
2 Corinthiam 10—13

1 Bíblia. N.T. Coríntios - Crítica, interpretação, etc. 2. Cristianismo I


Título II. Vasconcelos, Marcos III. Silva, Vanderson Moura da.

16-1040 CDD 227.307

índices para catálogo sistemático:

1. Bíblia. N.T. Coríntios - Crítica, interpretação, etc.


D. A. CARSON
UM MODELO
DEMATU
RIDADE
CRISTÃ
EXPOSIÇÃO DE
2CORÍNTIOS 10-13
TRADUÇÃO
MARCIA P. BARRIOS MEDEIROS (PREFÁCIO)
VANDERSON MOURA DA SILVA (CAPS. 1-4)
MARCOS VASCONCELOS (CAPS. 5-8)

□0
VIDA NOVA
®1984, de Baker Book House Company
Título do original: A model of Christian maturity: an exposition of2 Corinthians 10—13,
edição publicada pela Baker Books,
uma divisão do Baker Publishing Group (Grand Rapids, Michigan, EUA).

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


Sociedade Religiosa Edições Vida Nova
Rua Antônio Carlos Tacconi 75, São Paulo, SP, 04810-020
vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br

1 .a edição: 2017

Proibida a reprodução por quaisquer meios,


salvo em citações breves, com indicação da fonte.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

As citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da New


International Version (NIV). Citações bíblicas com indicação da versão in loco foram
traduzidas da Revised Standard Version (RSV) e da New American Standard Bible (NASB).

Direção executiva
Kenneth Lee Davis

Gerência editorial
Fabiano Silveira Medeiros

Edição de texto
Marisa K. A. de S. Lopes

Revisão de tradução
e preparação de texto
Mareia P. Barrios Medeiros

Revisão de provas
Ubevaldo G. Sampaio

Gerência de produção
Sérgio Siqueira Moura

Diagramação
Luciana Di Iorio

Capa
Souto Crescimento de Marca
Para Pete e Gail Golz.
Sumário

Mazinho Rodrigues!

Prefácio................................................................................................................................ 9

1. Orientações para 2Coríntios 10—13.......................................................... 13


2. Desobediência versus disciplina................................................................... 41
Um apelo à fé obediente (10.1-6)
3. A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL.................................................. 65
Como não se gloriar no Senhor (10.7-18)
4. O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO........................................................................................... 89
Derrubando os critérios fraudulentos (11.1-15)
5. Qualificações triunfalistas......................................................................... 113
Respondendo aos loucos segundo a sua loucura (11.16-33)
6. Destruindo os visionários superespirituais.......................................... 137
Gloriando-se nas fraquezas (12.1-10)
7. Franca repreensão.......................................................................................... 157
Os erros dos coríntios e os motivos do apóstolo (12.11-21)
8. Advertência e oração................................................................................... 175
Tendo a maturidade como objetivo (13.1-14)
Prefácio

mo o apóstolo Paulo. Algumas pessoas, porém, não conseguem com­


preender esse meu amor. Para elas, Paulo é seco, meramente intelectual,
intimidante e até arrogante. Respondo sem hesitação que elas não o conhecem.
Apesar de amar o apóstolo, escrevi muito pouco sobre ele. Por várias razões,
minha atenção nos últimos doze anos tem sido grandemente dedicada a Mateus
e a João ou a temas mais abrangentes do Novo Testamento. No entanto, tenho
ensinado o corpus paulino a sucessivas gerações de seminaristas e tenho pregado
várias de suas cartas a diversas congregações. Ao preparar essas minhas aulas ou
pregações, tenho sido gradualmente exposto a trechos substanciais de várias obras
produzidas sobre Atos e as cartas de Paulo. Não afirmo ter profundo domínio
de toda essa literatura, todavia passei a conhecer o apóstolo um pouco melhor.
E conhecê-lo significa amá-lo.
E possível defender a tese de que os capítulos mais intensos de todos os
seus escritos são estes que estudaremos aqui, ou seja, os capítulos 10 a 13 de
2Coríntios. Certamente revelam mais a respeito de Paulo — seus sofrimentos e
valores, suas motivações e lutas, e as percepções que tinha de si mesmo — do que
quaisquer outros quatro capítulos de extensão comparável. No entanto, longe
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

de promover o egocentrismo, eles apontam, infalivelmente, para Jesus Cristo e


para o que significa ser cristão. Além do mais, esse curto trecho da Escritura tem
muito para dizer à igreja atual, principalmente no Ocidente. Por isso, resolvi,
com a ajuda de Deus, dedicar esta obra a esses capítulos.
A maior parte do material que a compõe é resultado de sermões em igrejas
e de conferências no Canadá, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Foi feito um
trabalho de revisão e adaptação para o formato de livro; mas conservei o movi­
mento da exegese para aplicação por ser essa uma das marcas que distinguem
um sermão de uma palestra. Minha esperança é que este material encoraje os
cristãos a não só ler a Bíblia em seu contexto histórico e teológico, mas também a
aplicá-la, com sensibilidade e discernimento, à sua vida e à igreja de hoje. Espero
também que alguns leitores, assim como eu, venham a amar Paulo. É ínfimo o
risco de esse amor tornar-se idólatra, pois quem conhece o apóstolo aprende
que ele não coloca “pedra de tropeço no caminho de ninguém” (2Co 6.3).
Conhecer o apóstolo também significa descobrir que imitá-lo é tirar o foco de
Paulo e voltá-lo para o Senhor Jesus Cristo (lCo 11.1). Se começarmos aprender
a fazer isso o próprio Paulo se sentiria radiante.
Sou muito grato a Marty Irwin por suas usuais habilidade e gentileza de
transformar meu manuscrito num texto em formato digital e, assim, preparar
esta obra para publicação.
Soli Deo gloria,
D. A. Carson
Trinity Evangelical Divinity School

Comentários utilizados
Como este livro não é um comentário técnico, evitei as referências detalhadas
típicas desse gênero. Mas, quando foram publicados nos Estados Unidos os
dois primeiros volumes da série a que este volume pertence originalmente,
vários leitores sugeriram que eu fornecesse uma lista de comentários. Acatei a
sugestão e, ocasionalmente, cito certos trechos desses comentários, identificando
a obra apenas pelo nome do autor. Evitei ao máximo referências explícitas a
obras, artigos de periódicos e outras fontes semelhantes em língua estrangeira,
embora tenha com frequência interagido com seu conteúdo. Há dois comen­
tários em língua estrangeira, porém, que não pude eliminar da lista a seguir
de fontes citadas.
PREFÁCIO

Allo, E. B. Saint Paul: Seconde Epitre aux Corinthiens (Paris: Gabalda, 1956).
Barrett, C. K. The second Epistle to the Corinthians (London: Black, 1973).
Beet, J. A. II Corinthians (London: Hodder and Stoughton, 1982).
Bengel, J. A. Gnomon of the New Testament (Edinburgh: T and T Clark,
1857). vol 3.
Bruce, F. F. 1 and 2 Corinthians (London: Oliphants, 1971).
Calvin, John. II Corinthians—Philemon (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1964).
Denney, James. II Corinthians (London: Hodder and Stoughton, 1984).
Fausset, A. R. II Corinthians. Commentary on the Bible (London: Collins, 1874).
Goudge, H. L. II Corinthians (London: Methuen, 1927).
Harris, M. J. 2 Corinthians. The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids:
Zondervan, 1976). vol 10.
Henry, Matthew. Commentary on the whole Bible (London: Fisher, 1845).
Hodge, Charles. II Corinthians (London: Banner of Truth, 1959).
Hughes, Philip E. PauPs second Epistle to the Corinthians (Grand Rapids:
Eerdmans, 1962).
Lietzmann, H. An die Korinther I, II (Tuebingen: J. C. B. Mohr, 1969). (Obra
ampliada por W B. Kuemmel.)
Mengies, Allan. II Corinthians (London: Macmillan, 1912).
Meyer, H. A. W Criticai and exegetical handbook to the Epistles to the Corinthians
(Edinburgh: T and T Clark, 1964).
Robertson, A.; Plummer, A. II Corinthians (Edinburgh: T and T Clark, 1915).
Waite,J. II Corinthians (London: John Murray, 1881).
Wilson, Geoffrey. 2 Corinthians: a digest of reformed comment (Edinburgh:
Banner of Truth, 1973).
1 Orientações para 2Coríntios 10—13

A y ivemos em um tempo e lugar na história ocidental em que, cada vez


mais, a humildade é percebida como sinal de fraqueza; a mansidão é tida
por defeito, e não virtude; ventos de doutrina são mais importantes do que a
substância; a liderança, mesmo na igreja, com frequência diz mais respeito
a politicagem, estilo e encenação, ou com estrutura e hierarquia, do que com
maturidade espiritual e semelhança a Jesus Cristo; vivemos em um tempo
em que o orçamento é visto como um indicador de sucesso eclesiástico mais
importante do que vida de oração e em que papo furado sobre experiência
espiritual atrai instantaneamente seguidores, mesmo quando acompanhado
de uma soberba mal disfarçada que desconhece tanto a humildade quanto
as lágrimas. A todo cristão que estiver ávido por entender tais males e de­
les se arrepender, os capítulos de 10 a 13 de 2Coríntios falam com poder e
paixão excepcionais.
Esses capítulos estão entre os mais emocionalmente intensos de tudo o que
o apóstolo Paulo escreveu. Em parte, por essa mesma razão, eles estão também
entre os mais difíceis. Frequentemente a linguagem do apóstolo é apaixonada;
suas perguntas retóricas, emotivas; sua sequência de pensamento, condensada;
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

sua sintaxe, fragmentada (como de imediato sugere um relance por várias ver­
sões bíblicas em torno, por exemplo, de 2Co 13.2!). Logo, a sabedoria impõe
que façamos um trabalho de reconhecimento do texto adiante de nós, esse é o
propósito deste capítulo. Alguns leitores podem preferir ir direto para o capí­
tulo 2, mas uma leitura da exposição sem conhecimento adequado do contexto
pode se mostrar desnecessariamente frustrante.
Levantamos duas questões:

A. Por que voltar o foco para 2Coríntios de 10 a 13?


I. Porque esses capítulos revelam com maior clareza o coração e a mente do apóstolo
Paulo. De modo geral, naturalmente, podemos dizer que é importante estudar
esses capítulos pelo simples fato de fazerem parte da Palavra de Deus; é difícil
imaginar que alguém que tenha dado os primeiros passos no sentido de amar a
Deus de todo coração, de toda alma, de todo entendimento e de todas as forças
(Mc 12.30) não queira absorver o máximo que puder da Palavra de Deus. Além
disso, tais capítulos certamente contêm várias passagens bastante conhecidas e
que têm provido consolo e encorajamento a incontáveis gerações de cristãos.
A passagem que fala do “espinho na carne” (2Co 12.1-10) nos vem à mente
da forma mais insistente, com sua surpreendente promessa, “Minha graça é
suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (12.9): uma
promessa aclamada em muitos hinos e coros. Porém, naturalmente há muitas
outras partes da Escritura para aprender, e cada uma tem sua coleção de tesouros.
O que torna a passagem de 2Coríntios 12.1-10 singular é a clareza com a qual
revela o coração e a mente do apóstolo.
Isso não é pouca coisa, e nossa alegria nessa descoberta não pode ser ridi­
cularizada como se fosse um deleite de historiador em detalhes antiquados.
Quer reconheçamos isso, quer não, grande quantidade do que aprendemos
vem da imitação de outro alguém. Por esse motivo Paulo não hesita em dizer
a seus convertidos que o imitem à medida que ele imita a Cristo (lCo 4.16;
II. 1; lTs 1.6; cf. Ef 5.1; lTs 2.14; Hb 6.12). Perto do coração do discipulado
de pessoas na fé cristã encontra-se a autodisciplina de servir como modelo para
o aprendiz. Ainda que não necessariamente, na maioria das vezes ações falam
mais alto do que palavras. Nos capítulos de 10 a 13 de 2Coríntios, podemos ver
a uma distância de quase dois mil anos não somente o que Paulo ensinou, mas
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 15

também como ele viveu; e seu exemplo ainda ajuda cristãos zelosos a viverem
em maior conformidade com o supremo padrão, o Senhor Jesus.
Em um nível superficial, aprendemos muitíssimo mais sobre os sofrimentos
de Paulo com esses capítulos do que no livro de Atos. Lucas nos relata sobre um
naufrágio; Paulo nos informa (2Co 11.25) sobre três outros que ocorreram antes
daquele mencionado em Atos. Lucas jamais menciona os açoites que o apóstolo
recebeu dos judeus; Paulo enumera as cinco vezes em que foi açoitado (v. 24).
Lucas narra de forma bastante sucinta a fuga de Paulo de Damasco (At 9.23-25),
obviamente vendo no acontecimento algo da graciosa providência de Deus;
Paulo olha retrospectivamente para a mesma experiência com um profundo
senso de vergonha (2Co 11.30-33). Todavia, esses e outros fragmentos de
informação não são, afinal de contas, superficiais, pois nos capacitam a apreciar
um lado do apostolado que somos propensos a ignorar: a imensa capacidade
de sofrer por amor a Jesus.
Isso nos leva a considerar a segunda característica da vida de Paulo destacada
nitidamente aqui: seu estilo de liderança, a maneira que exercia sua autoridade
apostólica. Vemos um Paulo capaz de ameaçar (2Co 13.2), explicar (12.10),
amar (11.11), repreender (12.11) e até usar de sarcasmo (v. ló). Mas quando? E
por quê? Esses recursos apostólicos são reflexos de uma autoridade arrogante
ou de um servo de Cristo que está relutante em usar o pleno poder com o
qual Deus o equipou? Em que sentido Paulo é um exemplo normativo para a
liderança cristã de hoje?
Outra área digna da mais rigorosa imitação, não há dúvida, é a forma de
Paulo lidar com a vangloria. Esse é um tema tão central aqui que retornaremos
a ele diversas vezes. Por ora basta dizer que Paulo normalmente é muito reti­
cente em falar sobre as maravilhosas coisas que Deus realiza por meio dele ou
lhe revela. Seu axioma é, “quem se gloriar, glorie-se no Senhor” (2Co 10.17).
No entanto, nesses capítulos descobrimos Paulo se gloriando, ainda que se sinta
intensamente desconcertado ao ser forçado a falar assim (e.g., 11.16-18). O que
o leva a adotar tais medidas? De que forma a autopromoção cristã de nosso
tempo imita Paulo nesse aspecto, e de que forma diverge dele?
Por fim, Paulo alerta a igreja em Corinto sobre os perigos da falsa liderança.
Se os coríntios podiam ser enganados por gente que Paulo descreve como “falsos
apóstolos, obreiros enganosos, fingindo-se apóstolos de Cristo” (2Co 11.13),
não podemos ser enganados de igual modo? Quais perspectivas nos preservarão
desse perigo? Como devemos fazer para aplicar a nós mesmos (da forma que
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

Paulo aplicou aos coríntios) sua intimidante insistência, “Examinem-se para


ver se vocês estão na fé, provem-se a si mesmos” (13.5)?
O exemplo que o apóstolo nos deixa como homem sob ataque é entrelaçar
todas essas preocupações, mas ir além delas. Talvez uma das acusações mais
difíceis que um líder cristão maduro possa enfrentar é a dupla crítica de que
lhe faltam credenciais e eficiência ao mesmo tempo em que comete excessos
no exercício de sua autoridade. A acusação, naturalmente, pode ser legítima
em alguns casos; mas, se não for, é notoriamente difícil de responder. Se, por
um lado, o líder responder à primeira parte da crítica listando suas credenciais
e seus feitos, os críticos podem responder apoiando-se na segunda parte: “Ah,
viu só, eu não disse? Ele é tão arrogante que fica falando sobre si mesmo”. Se,
por outro lado, o líder subestimar sua importância a fim de refutar a acusação
de arrogância, seus críticos sempre podem responder: “Eis o problema; ele de
fato não possui real potencial de liderança”. Paulo é acusado justamente dessa
combinação de críticas, só que no seu caso o conjunto de acusações é ainda
mais complexo. Suas cartas, dizem seus oponentes, são pesadas, ainda que ele
pessoalmente não impressione (2Co 10.10). Como então Paulo deve responder
a isso por carta? Se ele for contido no falar, não será capaz de atacar o feixe de
problemas; se falar além do necessário, sua carta forte e pesada será prontamente
descartada como algo previsível. Ele é acusado de ser um apóstolo inferior (11.5);
mas se listar suas credenciais, estará gabando-se com base em comparações
nocivas entre si mesmo e outros: uma prática que ele condena (10.12). Ele é
acusado de não estar disposto a receber sustento da igreja de Corinto (11.7,8),
e também é acusado de furtivamente desviar fundos coletados para os cristãos
em Jerusalém, a fim de encher o próprio bolso (veja comentários em 12.16).
Provavelmente Paulo nem teria se dado ao trabalho de responder essas e
outras acusações se o que estivesse em jogo não fosse o próprio evangelho.
Os intrusos que estavam desencaminhando a igreja de Corinto não somente
tinham ambições pessoais, mas estavam pregando o que Paulo discernia como
um falso evangelho, um outro Jesus (2Co 11.4). Isso não deixou alternativa a
Paulo a não ser entrar na briga; e o modo que ele o fez — com sabedoria, suti­
leza, humor, ironia, sofisticação, mas também com impressionante angústia,
dor e intensidade emocional — constitui um maravilhoso estudo de caso sobre
a liderança cristã e a manutenção dos valores e das prioridades cristãs.
Esses capítulos merecem cuidadoso escrutínio não somente por revelarem
claramente o coração e a mente do apóstolo Paulo, mas também:
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 17

2. Porque constituem uma unidade de pensamento (tal como, por exemplo, o


Sermão do Monte [Mt 5—7] ou o Sermão Profético [Mt 24—25; Mc 13; Lc 21]).
Talvez o modo mais fácil de ver isso seja contrastando 2Coríntios 10 a
13 com o contexto das tratativas e correspondências de Paulo com a igreja de
Corinto. De acordo com Atos 18, foi durante sua segunda viagem missionária
que Paulo primeiro pregou o evangelho em Corinto. No começo ele sustentava
a si próprio com sua ocupação, enquanto vivia na casa de Aquila e Priscila, que
haviam se mudado de Roma para Corinto recentemente (v. 1-3). Como de cos­
tume, Paulo inaugurou ali seu ministério tentando ganhar para Jesus, o Messias,
todos os judeus e gentios que frequentavam a sinagoga (v. 4). O ministério de
Paulo multiplicou-se quando Silas e Timóteo, que estiveram na Macedônia
cumprindo várias responsabilidades, juntaram-se novamente ao apóstolo; isso
porque ou eles assumiram a incumbência de levantar os recursos necessários
para que o grupo se sustentasse, ou, o que é mais provável, trouxeram consigo
dinheiro suficiente, doado pelas igrejas recém-plantadas na Macedônia, para
possibilitar que Paulo se devotasse exclusivamente à pregação (v. 5). A multi­
plicação do ministério foi acompanhada por uma multiplicação da oposição.
E assim mais uma vez Paulo foi forçado a abandonar seu ministério na sinagoga
e a direcionar a atenção nos gentios. Paulo mudou sua base de operações para
a casa de Tício Justo (v. 7); e seu ministério foi tão bem-sucedido que não
somente muitos pagãos de Corinto creram no evangelho e quiseram se batizar,
mas também o próprio Crispo, chefe da sinagoga, creu no Senhor Jesus, junto
com toda sua casa (v. 8).
Golpeado por repetidos ataques, tendo só recentemente se livrado de vio­
lenta punição em Filipo (At 16), e mal tendo escapado da caprichosa mercê de
uma turba em Bereia (17.13-15), Paulo sucumbiu ao medo e ao abatimento.
Certa noite, o Cristo exaltado falou a Paulo em uma visão, dando-lhe palavras
de encorajamento e incentivando-o a perseverar: “Não tenha medo, continue
falando e não fique calado, pois estou com você, e ninguém vai lhe fazer mal
ou feri-lo, porque tenho muita gente nesta cidade” (18.9,10). Sem dúvida, a
muita gente que Cristo já “tinha” ainda não era cristã; porém, a graciosa eleição
do Senhor serve aqui como um maravilhoso incentivo ao evangelismo e a uma
proclamação perseverante do evangelho. De qualquer forma, Paulo ficou por ali
um ano e meio, viu a igreja ser bem estabelecida e ensinou a ela a palavra de Deus
(v. 11). Na primavera do ano 52 d. C. (provavelmente), Paulo deixou Corinto
em um navio: cruzou o mar Egeu com Priscila e Áquila e chegou a Éfeso.
18 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Dessa vez, Paulo não permaneceu por muito tempo. Deixou Priscila e Áquila
ali e rumou para Jerusalém apressadamente, esperando chegar a tempo para a
festa (a Páscoa ou o Pentecoste). Após uma curta estada em Jerusalém, Paulo
viajou para o norte, em direção à Antioquia, na Síria, sua “igreja de origem”,
reatando a comunhão e a amizade com muitos amigos, e depois regressando
a Efeso. E assim começou ali um ministério de dois anos e meio imensamente
frutífero (que se estendeu provavelmente do outono de 52 d.C. à primavera de
55 d.C.); foi nesse período que as cartas para a igreja de Corinto foram escritas.
A certa altura (não sabemos exatamente quando) Paulo enviou a seus
convertidos de Corinto uma carta, hoje perdida, a qual poderiamos designar
Coríntios A. Paulo faz menção a essa carta anterior em ICoríntios 5.9-11, em
que o contexto deixa claro que Paulo faz uma distinção entre Coríntios A e nossa
carta de ICoríntios (que se torna, então, Coríntios B, na ordem sequencial).
Na primeira carta, ele alertou seus convertidos contra a fornicação e a outras
depravações, dizendo-lhes para não se associarem àqueles que praticam tais
coisas; porém, depois, em ICoríntios, ele também explica que não pretendia
com essa proibição forçar uma separação total entre os cristãos e “[os] imorais
deste mundo, nem [os] avarentos, [os] ladrões ou [os] idólatras. Se assim fosse,
vocês precisariam sair deste mundo” (lCo 5.10). Antes, explica o apóstolo,
está lhes dizendo na primeira carta que não deviam se associar “com qualquer
que, dizendo-se irmão, seja imoral, avarento, idólatra, caluniador, alcoólatra ou
ladrão” (v. 11). Paulo acrescenta que com “tais pessoas vocês nem devem comer”
(v. 11). Em outras palavras, Paulo exigia que houvesse disciplina na igreja, e até
mesmo excomunhão, se necessário, e não o afastamento completo provocado
por um isolamento austero.
Houve razões mais amplas para que Paulo escrevesse ICoríntios em algum
momento, durante seu ministério em Efeso. Ele recebera relatos verbais feitos
“por alguns da casa de Cloe” (lCo 1.11) acerca das facções que se formaram
dentro da igreja de Corinto; e a essa medonha divisão estava aliada à arrogância
(que é sempre uma ameaça ao poder do evangelho). Ressentimentos mútuos
acabaram resultando em processos judiciais, e até mesmo em tolerância para
com a promiscuidade sexual crassa que estava ocorrendo. Além disso tudo, três
homens, Estéfanas, Fortunato e Acaico (16.17), foram enviados como delegados
oficiais da igreja de Corinto; e junto com presentes, eles (ao que parece) leva­
ram uma carta (cf. 7.1) da igreja com uma série de perguntas sobre casamento,
sexo, ingestão de alimento oferecido aos ídolos, as características necessárias
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 19

de um apóstolo, a Ceia do Senhor, o falar em línguas, a natureza dos corpos


na ressurreição e muito mais. A extensa resposta de Paulo aos relatos orais e às
questões escritas constitui a carta de 1 Coríntios que temos hoje.
Quando remeteu essa carta, Paulo de fato esperava ir visitá-los pessoalmente
em seguida. Pretendia ficar em Éfeso até a Festa de Pentecoste (provavelmente
54 ou 55 d.C.; cf ICo 16.8), então cruzaria o mar Egeu rumo à Macedônia para
visitar as igrejas que plantara ali, e continuaria sua viagem ao sul para Corinto,
onde, disse ele, permanecería “durante algum tempo, ou até mesmo [passaria] o
inverno com [eles]” (v. 5). Nesse meio tempo, ele enviou Timóteo e insistiu com
os coríntios para que o recebessem calorosamente e o ajudassem a “prosseguir
viagem em paz” (v. 10,11; cf. Atos 19.22), a fim de que ele pudesse retomar a
Paulo, provavelmente trazendo um relatório. Entretanto, pouco depois de enviar
a carta de 1 Coríntios, Paulo mudou um pouco seu plano: ele se propôs visitar os
coríntios duas vezes, uma vez na ida para a Macedônia, e a outra na volta de lá; e
de Corinto planejava ir por mar para a Judeia (2Co 1.15,16), levando considerável
soma em dinheiro e vários delegados das igrejas que contribuíram com esse fundo
para ajudar a igreja de Jerusalém, que ainda sofria por causa de fome e perseguição.
Infelizmente, esses planos ditosos tiveram de ser modificados mais uma vez.
Todos eles redundaram em um adiamento razoável: não havia urgência alguma
para Paulo deixar Éfeso de imediato, uma “porta grande e promissora” (lCo 16.9)
ainda lhe estava aberta ali. Mas quando Timóteo chegou em Corinto descobriu
que a situação estava fora de controle; e mesmo 1 Coríntios, a missiva direta do
apóstolo fracassou em ter o impacto esperado por Paulo. Quer Timóteo tenha
voltado com esse sinistro relato quer o apóstolo tenha descoberto o problema
de outra forma, o fato é que Paulo abandonou todos os planos de adiamento,
fazendo, em vez disso, uma visita urgente. Essa confrontação direta mostrou-se
uma experiência amarga, uma “visita que caus[ou] tristeza”, nas palavras de Paulo
(2Co 2.1). Pode ser que alguns dos abusos de que Paulo tratou em 1 Coríntios
tivessem sido resolvidos; porém, a oposição a ele ainda era muito forte, e ao
que parece tornou-se evidente em um ou dois líderes a quem os coríntios ou
apoiavam tacitamente, ou, pelo menos, recusavam-se a repreender. Além do
mais, judaizantes vindos da Judeia haviam se infiltrado na igreja, homens que
se opunham de forma inflexível ao evangelho que Paulo pregava e ridicula­
rizavam seu apostolado. Paulo de forma pública foi profundamente insultado
(2Co 2.5-8,10; 7.12); e o que é pior, a própria obra do evangelho estava em
risco em Corinto.
20 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

O porquê de Paulo partir nesse ponto e retornar a Éfeso no devido tempo é


incerto. Talvez tivesse esperança de que o tempo resolvería parte da divergência;
talvez tivesse outros compromissos urgentes. Seja qual for a razão, ele decidiu
não fazer outra visita que causasse tristeza; por esse motivo, cancelou a dupla
parada que havia planejado fazer em Corinto na ida e na volta da Macedônia.
Ironicamente, isso lhe custou a acusação de ser volúvel e indeciso em seus planos
(2Co 1.16—2.4).
Mas, apesar de haver se recusado a regressar a Corinto nessa ocasião, ele
enviou outra carta, agora pelas mãos de Tito (que bem pode ter sido mais
enérgico do que Timóteo). Podemos chamar essa terceira carta de Coríntios C;
às vezes é referida como a carta severa ou a carta das lágrimas, pois Paulo fala
dela ao longo dessas linhas. Como Coríntios A, ela não chegou até nós, e (junto
com muitas outras correspondências) nunca foi providencialmente poupada
para se tornar parte do cânon do Novo Testamento. Mas o apóstolo faz menção
a essa carta perdida quando escreve, “Pois eu lhes escrevi com grande aflição e
angústia de coração, e com muitas lágrimas, não para entristecê-los, mas para
que soubessem como é profundo o meu amor por vocês” (2Co 2.4); ou nova­
mente, “lhes escrevi com o propósito de saber se vocês seriam aprovados, isto
é, se seriam obedientes em tudo” (2.9). Nessa carta severa, Paulo (entre outras
coisas) havia exigido a punição do cabeça do grupo que havia se oposto a ele
de forma tão nefasta (v. 3,4,6,9; 7.8-12). O contexto dessas passagens é um
forte argumento contra a tese de que a carta severa ou que causou tristeza fosse
1 Coríntios, e que o homem em questão fosse o membro da igreja que estava
mantendo relações sexuais com sua madrasta (lCo 5.1-10). As passagens em
2Coríntios que fazem referência à exigência de Paulo, na carta severa, por dis­
ciplina na igreja não fornecem indício de pecado sexual: ao contrário, a ofensa
era contra Paulo, e a questão crucial era se a igreja se reagruparia em torno de
seu fundador apostólico (e.g., 7.12).
Paulo não somente confiou a carta severa a Tito como ainda encarregou
seu emissário da responsabilidade de organizar a coleta em favor dos cristãos
em Jerusalém (2Co 8.6). Ao que parece, esse plano, introduzido anteriormente,
deparou com tempos difíceis, em parte devido à animosidade que alguns corín­
tios nutriam contra Paulo, mas muito mais pelo fato de que intrusos vindos
da Judeia estavam exigindo apoio financeiro (11.7,12-20; 12.14) e desviando
fundos que deveríam ter ido para Jerusalém. No entanto, o próprio fato de
Paulo esperar que Tito continuasse a coleta em Corinto prova que, por mais
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 21

desastrosa que tenha sido a visita que causou tristeza, o apóstolo não considerava
aquela igreja como fundamentalmente renegada e apóstata, mas, sim, como
uma igreja vacilante, incerta de suas lealdades, com metade de seus membros
muito seguros de si e excessivamente propensa à divisão e à tolerância não só
em relação a pecadores manifestos, mas também àqueles que se autointitula-
vam líderes e se opunham tanto a Paulo quanto a seu evangelho. É por essa
razão que Paulo ainda pode se gloriar da generosidade dessa igreja para com
Tito (7.14) e mesmo para com os macedônios (9.2), embora em certos outros
aspectos a igreja estivesse em uma situação espiritualmente perigosa. (Devemos
nos lembrar, porém, que era prática do apóstolo ser grato e transmitir generoso
encorajamento sempre que possível a suas igrejas, mesmo quando o quadro
geral não fosse tão brilhante: ICo 1.4-7 é testemunha disso!) Mas, por mais
que façamos essas ressalvas, a situação levou Paulo a escrever a severa e dolorosa
carta que acabamos de descrever.
Enquanto isso, Paulo continuava seu ministério na Ásia Menor, sem dúvida
dedicando atenção a Éfeso. Como se não bastasse o esgotamento emocional
causado pela igreja de Corinto, durante esse período ele enfrentou algumas das
piores oposições e os mais assustadores perigos pelos quais já havia passado. Mais
tarde ele escreveu: “Irmãos, não queremos que vocês desconheçam as tribulações
que sofremos na província da Ásia, as quais foram muito além da nossa capaci­
dade de suportar, ao ponto de perdermos a esperança da própria vida. De fato,
já tínhamos sobre nós a sentença de morte, para que não confiássemos em nós
mesmos, mas em Deus, que ressuscita os mortos. Ele nos livrou e continuará
nos livrando de tal perigo de morte” (2Co 1.8-10). Não sabemos detalhes
desses perigos; porém, sabemos, sim, que logo após o tumulto de Demétrio
(At 19.23—20.1) Paulo deixou Éfeso rumo a Trôade (2Co 2.12,13; a expressão
pode ser uma referência ou ao porto de Trôade ou à região em que este ficava.
Cf. At 20.6) onde esperava ao mesmo tempo encontrar Tito retornando com
notícias de Corinto e pregar o evangelho. A segunda esperança foi concreti­
zada: ele viu que o Senhor lhe “havia aberto uma porta” (2Co 2.12). Sua outra
esperança, contudo, não se cumpriu; e Paulo foi forçado a escrever “não tive
sossego em meu espírito, porque não encontrei ali meu irmão Tito” (v. 13).
Ao que parece Paulo e Tito tinham feito planos para possivelmente se
encontrarem na Macedônia (talvez em Filipos), caso o encontro em Trôade
não ocorresse; pois foi para lá que Paulo se dirigiu em seguida, provavelmente
tão logo o tempo permitiu a navegação, ainda na esperança de encontrar Tito
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

e saber da resposta dos coríntios a sua carta severa e dolorosa. Na Macedônia,


Paulo retomou seu ministério pastoral de instrução e encorajamento (At 20.1,2)
enquanto organizava a coleta para os crentes de Jerusalém (2Co 8.1-4; 9.2).
O trabalho era perigoso e árduo, sem mencionar o fato de as próprias igrejas
macedônias estarem enfrentando “a mais severa tribulação” e “extrema pobreza”
(8.2). Mas, o que é ainda pior, Paulo não encontra Tito. Mais tarde o apóstolo
escreveu: “... quando chegamos à Macedônia, não tivemos nenhum descanso,
mas fomos atribulados de toda forma: conflitos externos, temores internos” (7.5).
Misericordiosamente, Tito logo chegou; e suas notícias eram tão boas
que o estado de ânimo de Paulo mudou para uma quase euforia. Ele escreveu:
“Deus, porém, que consola os abatidos, consolou-nos com a chegada de Tito,
e não apenas com a vinda dele, mas também com a consolação que vocês lhe
ministraram. Ele nos falou da saudade, da tristeza e da preocupação de vocês
por mim, de modo que a minha alegria se tornou ainda maior” (2Co 7.6,7).
Na verdade, depois de enviar a carta severa, ele logo se arrependeu, temendo
que ela magoasse indevidamente os coríntios; porém, agora, ao ficar sabendo o
quanto a carta fora eficaz, o arrependimento foi substituído pela alegria. Afinal
de contas, se a carta os magoou, foi apenas “por pouco tempo” (v. 8); e, em todo
caso, ele observa: “A tristeza segundo Deus produz um arrependimento que leva
à salvação e não ao remorso, mas a tristeza segundo o mundo produz morte”
(v. 10). A resposta inteira do apóstolo ao relato de Tito (v. 5-16) pressupõe que os
desesperadores problemas em Corinto haviam sido substancialmente resolvidos.
E nesse ponto que ficamos mais incertos da sequência precisa dos aconteci­
mentos. Como essa questão afeta a interpretação de 2Coríntios 10 a 13, faremos
um breve relato das três explicações principais propostas pelos comentaristas.
Primeiro: Muitos sustentam que Paulo, exultante pelo relatório de Tito,
imediatamente escreveu os capítulos 1 a 9 de 2Coríntios (o que assim efeti­
vamente se torna “Coríntios D”), mas que os capítulos 10 a 13 de 2Coríntios
originalmente não faziam parte desse documento. Antes, esta última seção deve
ser identificada como Coríntios C, a carta severa e dolorosa.
Há uma vantagem imediata nessa teoria. Até mesmo uma leitura superficial
de 2Coríntios revela quão diferentes os capítulos 1 a 9 são dos capítulos 10 a 13.
Os primeiros têm um tom positivo, entusiasmado, encorajador, refletindo cla­
ramente as boas-novas que Tito trouxe. Se aqui e ali Paulo deve ainda fornecer
algum relato de seus movimentos (1.15—2.13), explicar de novo a natureza do
ministério apostólico (3.1-18), advertir contra a idolatria (6.14—7.1) e conti­
nuar sua exortação para organizar a coleta (caps. 8—9), tudo isso é escrito em
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 23

um tom de alegria e confiança na crescente maturidade e obediência da igreja.


O tom é por vezes cauteloso, mas nunca ríspido; e frequentemente é eufórico.
Em contraste, os capítulos 10 a 13 pressupõem que a situação em Corinto é
desesperadora. A linguagem é carregada de intensa emoção, oscilando entre
ira, tristeza e ironia. Não é possível encontrar alegria, e a confiança na igreja de
Corinto é quase dissipada. Paulo não mais escreve, “Alegro-me por poder ter
plena confiança em vocês” (7.16); agora ele deve dizer, “Examinem-se para ver
se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos. Não percebem que Cristo Jesus
está em vocês? A não ser que tenham sido reprovados!” (13.5,6).
Muito mais poderia ser dito em favor dessa teoria; mas ela tropeça feio
em pelo menos três obstáculos. (1) Nenhum manuscrito grego de 2Coríntios
sugere que a carta originalmente terminasse no final do capítulo 9 ou que os
capítulos 10 a 13 algum dia tiveram uma saudação de abertura típica das cartas
que Paulo escrevia às igrejas em que era conhecido. Sem dúvida, isso por si só
não é conclusivo; pode-se argumentar que o término e a abertura pertinentes
perderam-se quando alguém juntou as duas cartas. Mas, nesse caso, o enigma
é por que um leitor primitivo poderia querer fazer tal coisa, e por que não há
traço algum disso em uma tradição de manuscritos tão completa. (2) Além
disso, 12.18 pressupõe claramente que Tito tivesse feito ao menos uma visita
a Corinto para auxiliar na coleta — i.e., 12.18 pressupõe, ou 8.6a, ou 8.16-19.
Em ambos os casos, fica muito difícil acreditar que os capítulos 10 a 13, a seção
da qual 12.18 faz parte, tivessem sido redigidos antes dos capítulos de 1 a 9.
(3) E mais importante ainda, os capítulos 10 a 13 não se parecem com o que
realmente sabemos de Coríntios C. Uma característica particular nessa carta é
a exigência de Paulo de que certo transgressor fosse punido (cf. 2.5,6; 7.12);
mas não há traço algum disso em 2Coríntios 10 a 13. Ademais, esses capítulos
prometem uma visita iminente (12.14; 13.1); no entanto, Coríntios C, a carta
severa, foi enviada em lugar de, ou seja, para substituir uma segunda visita que
causasse tristeza (1.23; 2.1). Como Paulo poderia gloriar-se a Tito (7.14) e aos
macedônios (9.2) sobre a generosidade dos coríntios se a relação entre ele e a
igreja de Corinto tivesse se deteriorado a ponto de ele ser acusado de usar para si
os fundos da coleta (12.16)? E o tom de 2Coríntios 10 a 13 — a ironia constante
e a crítica mordaz — soa como se essa passagem tivesse sido composta no estado
de ânimo retratado em 2.4 — “eu lhes escrevi com grande aflição e angústia
de coração, e com muitas lágrimas”? Por fim, se a porção de 2Coríntios 10
a 13 tivesse sido escrita antes de 2Coríntios 1 a 9, por que os últimos capítulos
não fazem menção nenhuma aos intrusos causadores de intrigas cujo papel
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

é tão central nos primeiros capítulos? Mesmo que o problema tivesse sido
resolvido na época em que foram escritos os capítulos 1 a 9, por que tal fato
não foi registrado, ao passo que a solução dos outros problemas, supostamente
menos importantes, foi devidamente registrada? Devemos rejeitar a tese de que
2Coríntios 10 a 13 deve ser identificada como Coríntios C.
Segundo: Muitos outros defendem a unidade essencial de 2Coríntios. Isso
obviamente se encaixa com a evidência textual; porém, é preciso encontrar
alguma razão sólida para a demonstrável mudança de tom entre as duas porções
da carta, ou seja: de um lado, os capítulos 1 a 9, e de outro, os capítulos 10 a 13.
As soluções propostas variam enormemente. Talvez Paulo tenha tido uma noite
de insônia, sugere Lietzmann; quem sabe o apóstolo esteja finalmente revelando
suas emoções profundas sobre tais assuntos, até então reprimidas (Menzie,
Robertson); talvez essa mudança reflita nada mais do que os altos e baixos do
temperamento de Paulo (Goudge); ou pode ser que as diferenças entre os capí­
tulos 1 a 9 e os capítulos 10 a 13 tenham sido imensamente exageradas e de fato
não haja problema algum a ser resolvido (Hughes — que faz comparações entre
1.13 e 10.11; 1.17 e 10.2; 2.1 e 12.14,21 e 13.1-2; 2.17 e 12.19; 3.2 e 12.11;
6.13 e 11.2 e 12.14; 8.6,8,22 e 12.17,18).
No entanto, listas semelhantes de comparações podem ser feitas entre
2Coríntios 10 a 13 e 1 Coríntios (e algumas dessas conexões serão analisadas nesta
exposição); mas ninguém defende que tais paralelos provem que os capítulos
10 a 13 de 2Coríntios sejam realmente uma parte de ICoríntios. A mudança de
tom entre os capítulos 1 a 9 e os capítulos 10 a 13 é perceptível demais para ser
ignorada, e as explicações comumente dadas não são muito satisfatórias. Será que
Paulo era tão emocionalmente imaturo que não conseguia se conter? Seu tem­
peramento era tão volátil quanto sugerem alguns? Afinal de contas, a mudança
de tom estende-se à sua postura pastoral para com os coríntios; os capítulos 1
a 9 mostram Paulo essencialmente edificando os coríntios; construindo pontes
até eles, e até as repreensões são parte desse intento; ao passo que os capítulos
10 a 13 mostram Paulo demolindo os coríntios com ironia, censurando-os
com severidade, e até mesmo as breves palavras de encorajamento fazem parte
desse padrão. No mínimo, parece necessário supor que houve uma mudança
na questão pastoral que Paulo estava confrontando.
Essa possibilidade sugere algo mais em linha com a próxima explicação:
Terceiro: Muitos comentaristas sugerem que 2Coríntios 10 a 13 foi escrito um
tanto depois dos capítulos 1 a 9. Conforme esse ponto de vista, Tito encontrou
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13

Paulo na Macedônia (como descrito acima), e o apóstolo se sentiu tão encora­


jado que imediatamente escreveu à igreja de Corinto. Mas o que ele escreve não
engloba tudo que hoje faz parte de 2Coríntios, e sim apenas 2Coríntios 1 a 9
(Coríntios D). Mais tarde, ele soube que o relato trazido por Tito ou fora
prematuro, ou obsoleto: os instáveis coríntios estavam sucumbindo às pressões
introduzidas pelos intrusos vindos da Judeia, dando ouvidos à crítica destru­
tiva que estes faziam do apóstolo, e voltando à sua anterior falta de disciplina e
arrogância pagã. Portanto, Paulo responde com uma carta contundente, o nosso
texto atual de 2Coríntios 10 a 13 (que se torna assim Coríntios E, conforme
Barrett, Bruce).
Há muito de positivo nessa explicação. Ela evita identificar 2Coríntios 10 a
13 como Coríntios C, a carta severa; e adequadamente explica por que os capí­
tulos 10 a 13 possuem um tom tão diferente de 1 a 9. Contudo, em sua forma
mais comum, ela padece de uma ou duas das fraquezas da primeira solução, já
discutida: ela tem de supor, sem que haja qualquer evidência de manuscrito, que
tanto o final dos capítulos 1 a 9 quanto o princípio dos capítulos 10 a 13 foram
de alguma forma perdidos, e que as duas seções foram reunidas. Ao menos nessa
teoria elas são postas juntamente na sequência correta! Aqueles que defendem
a total unidade dessa carta (os adeptos da segunda explicação, anteriormente
discutida) podem também perguntar como os coríntios vieram a apostatar tão
rapidamente, e por que não há nos capítulos 10 a 13 referência explícita às
notícias mais recentes que Paulo supostamente recebera, informando-lhe que a
situação estava muito mais sombria do que ele pensava. De fato, Harris sugere
que Paulo não escreveu parte alguma de 2Coríntios logo depois de ouvir o bom
relatório de Tito. Antes, sustenta Harris, Paulo continuou sua obra pastoral na
Macedônia, e é bastante possível que se dedicasse a um ministério de evangelismo
pioneiro ao longo da Via Inácia e em volta do Ilírico (cf. Rm 15.19-21); ele
só escreveu 2Coríntios quando, mais uma vez, retornou à Macedônia e ouviu
sobre os recentes problemas em Corinto.
Com certeza a reconstrução de Harris é possível, mas é forçosamente
levada a minimizar a mudança de tom entre as duas seções. Ela perde um ponto
forte, a sugestão de que o que induz a mudança de tom é a chegada de novas
informações, o recebimento de más notícias, uma vez que, do ponto de vista
de Harris, as más notícias chegaram antes de Paulo escrever qualquer parte de
2Coríntios. Com base nessa interpretação se poderia esperar que Paulo tivesse
26 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

mantido mais ou menos a mesma postura para com seus leitores do começo
ao fim de sua carta.
Porém, talvez possamos juntar os pontos fortes da segunda e da terceira
explicações. Se Paulo estava tão ávido quanto parece ter estado por ouvir as
notícias trazidas por Tito, fica difícil acreditar que ele pudesse ter partido para
outras viagens pastorais e evangelísticas sem preparar absolutamente nenhuma
resposta aos coríntios. Grato por sua carta severa não ter causado o dano que
ele temia, alegre pelo fato de que o arrependimento e a obediência foram res­
tabelecidos na igreja de Corinto e encorajado a pensar que os relacionamentos
saudáveis estavam sendo restaurados, ele imediatamente começou a escrever
(ou a ditar) sua carta. Mas 2Coríntios é uma carta razoavelmente longa: poucos
poderíam conseguir escrevê-la em uma única e longa sessão. E Paulo estava na
época (como será lembrado) excessivamente pressionado por seu ministério na
Macedônia; não seria fácil encontrar tempo para longas sessões em que pudesse
compor seus pensamentos. Talvez a conclusão da carta tenha sido repetidamente
adiada, por semanas ou até por mais tempo. Afinal, a maioria de nós ocasio­
nalmente já protelou o término de uma carta, e sem dúvida uma carta muito
mais curta do que 2Coríntios. Nesse caso, entretanto, Paulo pode perfeitamente
ter recebido notícias adicionais, notícias ruins a respeito da igreja de Corinto,
antes de ter acabado de escrever a carta; e nesse caso, isso explicaria a abrupta
mudança de tom no começo do capítulo 10. Em suma, depois de finalizar os
nove primeiros capítulos, mas antes de realmente terminar a carta e enviá-la,
Paulo recebe más notícias adicionais, e por isso acrescenta mais quatro capítulos
de reprimenda. A segunda carta aos Coríntios é assim uma epístola unificada
do ponto de vista formal, todavia certamente reflete uma mudança substancial
de perspectiva nos últimos quatro capítulos.
Quatro objeções principais frequentemente levantadas contra essa recons­
trução merecem breve consideração.

(1) Barrett, adepto da terceira interpretação, defende que, se os capítulos 1


a 9 já não tivessem sido enviados quando chegaram as más notícias que levaram
Paulo a escrever os capítulos 10 a 13, o apóstolo teria rasgado esses primeiros
capítulos, por já estarem superados, e simplesmente os substituiría pelo tom
mais duro de 2Coríntios 10 a 13. Há certo peso nesse argumento, mas ele
ignora o quanto há na carta de 2Coríntios algo que é valioso por si só e ainda
se aplica aos coríntios, mesmo quando a situação deles está se deteriorando.
Esse material tão útil inclui, entre outras coisas, a glória do ministério (cap. 3),
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13

advertências contra a idolatria (6.14—7.1), bem como instruções a respeito da


coleta (caps. 8—9). Mesmo as tocantes palavras sobre a alegria de Paulo ao ouvir
que os coríntios estão arrependidos, obedientes e zelosos podem servir como
uma censura adicional quando eles não mais agem assim.
(2) Alguns sustentam que a visita de Tito e de outro irmão, cujo nome não
é revelado, mencionada em 2Coríntios 12.18 como algo que já havia aconte­
cido, deve ser identificada como a futura visita de Tito mencionada em 8.17,18.
Sendo assim, então 2Coríntios 1 a 9 deve ter sido enviado antes de 2Coríntios
10 a 13 ser escrito. Direi mais sobre isso quando chegarmos a 12.18; por ora
vale a pena citar que esse versículo pode ser uma referência não a 8.16,17, mas,
sim, a 8.6a: uma viagem que Tito já havia realizado, que provavelmente tinha
alguma relação com a carta severa, e certamente ocorreu antes de qualquer
parte de 2Coríntios ser escrita. Nesse caso, não há necessidade de colocar um
intervalo depois do capítulo 9.
(3) Outros expressam surpresa diante da hipótese de que a igreja de Corinto
pudesse ter uma recaída com tanta rapidez e retroceder a uma condição em nada
melhor, e talvez até consideravelmente pior do que aquela que motivou a carta
anterior, a carta severa que lhes causou tristeza. Porém, seguramente a velocidade
com que os coríntios tiveram essa recaída não é de todo fora do comum. Afinal
de contas, 1 Coríntios não nos incentiva a pensar que Paulo estivesse tratando
com uma igreja madura e estável, mas, sim, com uma igreja repleta das mais
variadas formas de arrogância e com uma notável predileção por um apego cego
e exclusivista a este ou aquele líder (e.g., ICo 1.10-17). Certamente 2Coríntios
10 a 13 atesta a inédita credibilidade e o poder dos intrusos causadores de intrigas,
dos que se autoproclamavam líderes e cativaram uma porção substancial da
opinião dos coríntios, fazendo com que muitos fiéis se voltassem contra Paulo e
seu evangelho. E bem possível que a chegada de novas forças de Jerusalém tenha
motivado a esses que se autoproclamavam líderes. Em todo caso, sua influência
crescente foi a nova situação que se abateu sobre essa igreja imatura; e o tene­
broso histórico dos coríntios no quesito discernimento prático praticamente
garantia que eles seriam tolos, perigosamente tolos, mais uma vez.
(4) A única dificuldade realmente séria com a interpretação que propõe essa
reconstrução é que 2Coríntios 10 a 13 em lugar nenhum afirma explicitamente
que Paulo de fato recebeu alguma nova informação que o tivesse levado a mudar
de tom, passando da gentileza ao chicote (cf. ICo 4.21). Mesmo assim, essa única
dificuldade é, em minha opinião, menos complicada do que aquelas atribuídas
pelas explicações alternativas. Hipóteses inteligentes quanto ao motivo de Paulo
28 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

ter deixado de mencionar a chegada dessa nova informação não são difíceis de
imaginar. Se, por exemplo, tal informação da igreja de Corinto tivesse chegado
por meio de um relato (conhecido por muitos membros da igreja) que acusasse
Paulo, entre outras coisas, de agir com excessiva “mansidão e bondade”, e não
com a energia demandada de um genuíno apóstolo, então as palavras do após­
tolo na abertura de 2Coríntios 10.1 seriam suficientes para chamar a atenção
para tal relato: “Eu, Paulo, pela mansidão e pela bondade de Cristo, apelo para
vocês...”. Esse mesmo argumento poderia ser ainda mais reforçado se o relato
com as más notícias incluísse, por exemplo, insinuações de que Paulo não se saiu
bem em comparação com os tais intrusos causadores de intrigas (cf. 10.12-18),
de que ele não era lá grande coisa como mestre porque se recusava a cobrar por
seus serviços (cf. 11.7-12; 12.13) ou de que sua condição apostólica era inferior
porque raramente ele parecia falar de gloriosas visões sobrenaturais das quais
muitos outros podiam falar com tanto apreço (cf. 12.1-10). Se Paulo estivesse
respondendo a ataques desse tipo, o que parece provável, essa mesma resposta
era indicação suficiente de que o novo relato chegara até ele. Chamar ainda mais
atenção para isso teria sido um esforço redundante.
No todo, portanto, parece melhor concluir que 2Coríntios 10 a 13 é for­
malmente parte de 2Coríntios (= Coríntios D), ainda que seu tom e sua ênfase
destoem um pouco do restante do livro. Em vários passos na argumentação, a
evidência sofre de ambiguidade suficiente para nos impedir de sermos dema­
siadamente dogmáticos nos pontos delicados; contudo, ela também é suficiente
para nos habilitar a tratar 2Coríntios 10 a 13 como uma unidade conceituai
digna de estudo atento. Isso é tudo que precisamos estabelecer aqui: esses
quatro capítulos ficam numa posição ligeiramente à parte e constituem uma
demonstração impressionante da reação do apóstolo Paulo sob fogo cerrado.
Assim, chegamos à segunda questão:

B. Qual é a natureza específica da oposição que Paulo enfrenta?


A maioria dos detalhes da oposição que Paulo confronta será esmiuçada pela
exposição; porém, pode nos ser útil fazer um breve reconhecimento e traçar
tanto a essência do ataque quanto a identidade dos opositores.

1. A essência do ataque. Paulo enfrentou intrusos, causadores de intri­


gas, cujo objetivo principal era questionar sua autoridade, ao mesmo tempo
que engrandeciam a si próprios (2Co 10.7-18). Se lograssem êxito em seus
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 29

esforços, procurariam obter a lealdade dos coríntios. Segundo diziam, Paulo


não impressionava pessoalmente e sua oratória ficava abaixo do padrão (v. 10).
Ele só conseguia inspirar respeito à distância (v. 1,2,9-11; 11.6; 13.3,4, 9): suas
cartas podiam ser enérgicas, mas sobrepujavam a credibilidade de sua pessoa e,
logo, eram de pouca importância. Paulo podia assim ser acusado de agir com
incoerência e até mesmo caprichosamente (v. 2-4; cf. 1.17,18). Seu problema,
diziam eles, é que lhe faltavam as credenciais apropriadas: ele nem mesmo se
dava ao trabalho de apresentar cartas de introdução e recomendação apropriadas,
presumivelmente dos Doze (10.13,14; cf. 3.1). Só contava com a recomendação
que dava de si mesmo (10.12-18; 12.11; cf. 5.12; 6.4-10).
Assim, como diz o ditado popular, Paulo estava entre a cruz e a espada: ele
não era enérgico o bastante quando presente; todavia, se escrevesse uma resposta
enérgica, sua carta facilmente seria descartada como evidência adicional do fato de
que só por carta enviada de longa distância conseguia soar como um líder; e até
nesse caso suas palavras poderíam vir a ser descartadas como uma recomendação
feita por ele mesmo. Se, em vez disso, aparecesse pessoalmente nas igrejas, ele
seria forçado a admitir que não satisfazia os padrões predominantes de retórica
(2Co 11.6), de modo que poderia parecer irremediavelmente superado pelos
intrusos intrigueiros. Pior ainda, ele poderia ficar tolhido pela lembrança daquela
“visita que [lhes] caus[ou] tristeza” (2.1), e, portanto, refrear seus golpes — o que
somente contribuiría para confirmar a opinião dos que o atacavam: “As cartas
dele são duras e fortes, mas ele pessoalmente não impressiona, e a sua palavra é
desprezível” (10.10). Contudo, se Paulo não fizesse nada, certamente perdería os
coríntios para a influência dos intrusos causadores de intrigas.
Há outros pares de acusações direcionadas contra Paulo e igualmente
perversos, pares de acusações que tornam a refutação extremamente difícil:
como um solitário soldado da infantaria respondendo a um fogo cruzado de
metralhadora. Por um lado, Paulo é acusado do “pecado” de se recusar a receber
ajuda financeira dos coríntios, os quais se sentiram menosprezados por causa
dessa postura e, em decorrência disso, questionavam as credenciais de Paulo
(e.g., 11.5,7-11; 12.11-15; 13.3a,6). Seguramente, segundo raciocinavam os
coríntios, um grande apóstolo, um mestre genuinamente importante, cobraria
algo que fosse proporcional ao seu valor; assim, se Paulo não somente se recusava
a cobrar, mas também recusava toda e qualquer oferta que lhe fosse dada de
presente, deve ser porque é um falso apóstolo. Todavia, ao mesmo tempo, ao
menos alguns dos coríntios estavam convencidos de que a coleta que Paulo
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

insistentemente pedia que separassem regularmente para os cristãos pobres de


Jerusalém (ICo 16.1-4; 2Co 8—9) era na realidade um subterfúgio fraudulento
para encher os bolsos do próprio apóstolo (12.16-18). Assim, mais uma vez
Paulo se vê encurralado entre duas demandas antagônicas: se continuasse a
recusar todo auxílio financeiro, seria descartado como um apóstolo inferior, um
mestre de segunda classe, ao passo que, se mudasse sua postura nesse aspecto,
sua atitude seria condenada como uma confirmação de sua suposta ganância.
Na raiz desses ataques multifacetados jazia o problema da vangloria (uma
palavra muito repetida nesses quatro capítulos). Os oponentes de Paulo eram
aparentemente influenciados pelos sofistas, notórios por toda a Grécia, e talvez
mais notórios em Corinto do que qualquer outro lugar. Esses que se auto-
proclamavam “apóstolos” e atacavam Paulo não apenas adotaram os padrões
helenistas de retórica mais bem exemplificados nos sofistas, foram além: igual­
mente assimilaram a inclinação dos sofistas pelo autoelogio e sua insistência
em relação ao pagamento. Os sofistas se deleitavam em exibir suas realizações
e sua oratória. Eles visavam angariar um número crescente de discípulos que
vivessem na dependência de suas palavras e pagassem grandes somas pelo pri­
vilégio de aprender a seus pés. Quanto mais exímio fosse um sofista, mais ele
poderia se gabar e maior a soma que poderia cobrar. A arrogância sofisticada
passou a ser uma virtude, e a autoadmiração, uma força. O sofista Polemão
“falava a cidades como alguém superior a reis, como alguém não inferior, e a
deuses, como um igual” (Vii. Soph. 1.25.4). Filóstrato atesta que “um sofista
sente-se ofendido em um discurso de improviso diante de uma audiência de
olhar sério, relutante em louvá-lo e que não o aplaude” (2.26.3). Tal atitude
predominava em círculos além do alcance dos sofistas: o historiador romano
Tácito explicava: “No desdém da fama estava implícito o desdém da virtude”
(Anais 4.38). Os grandes líderes frequentemente escreviam memórias de suas
façanhas que nada mais eram do que elogios a si mesmos, detalhando os triunfos
conquistados, as batalhas vencidas, os grandes discursos proferidos, a sabedoria
exibida, os cativos subjugados.1

^obre esse contexto, vejaj. Munck, Paul and the salvation of mankind (London: SCM, 1959),
p. 158; S. H. Travis, “Paul’s boasting in 2Corinthians 10—12”, Studia Evangélica VI (Berlim:
Akademic-Verlag, 1973): 527-32, e a literatura ali citada; e esp. esses três artigos de E. A.
Judge, “The early Christians as a scholastic community: Part \Y\Journal of Reiigious History
I (1960-61): 125-37; “The conflict of aims in NT thought”, Journal oj Christian Education 9
(1966): 32-45, “Paul’s boasting in relation to contemporary professional practice”, Australian
Biblical Revieiv 16 (1968): 37-50.
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 31

A mesma postura profissional, inquestionavelmente adotada pelos intrusos


causadores de intrigas e adaptada a seu próprio contexto religioso, foi em parte
o que os motivou a menosprezarem Paulo por sua retórica inaceitável, sua
recusa em receber pagamento por seus serviços, sua séria falta de capacidade de
impressionar pessoalmente. Tinha ele, uma só vez sequer, fornecido uma lista
adequada de suas realizações (cf. 2Co 11.16-29)? Se ele era um apóstolo tão
impressionante assim, por que não havia recebido visões espetaculares da parte
de Deus e aumentado sua credibilidade relatando-as (12.1-10)?
Os coríntios, de maneira bem evidente, estavam culturalmente condiciona­
dos a serem desviados em tais direções. Mesmo na primeira carta canônica que
escreveu a eles, Paulo achou necessário explicar com muito cuidado que não
havia pregado o evangelho com o “discurso eloquente” da retórica aprovada,
que não havia adotado a “sabedoria superior” caracterizada pela autopromoção
(lCo 2.1). Longe disso: ele já havia resolvido evitar tais abordagens e, em vez
disso, focar-se em Jesus Cristo e em sua crucificação: pedra de tropeço para os
judeus e loucura para os gentios (1.23). A essa altura de seu ministério, a arro­
gância lhe era estranha: ele chegou em Corinto “em fraqueza, temor e com
muito tremor” (2.3), tanto assim que, como vimos, Deus graciosamente lhe
deu especial encorajamento (At 18.9,10). Nada disso era acidental: tudo fora
planejado por Deus para uma finalidade crucial. “Minha mensagem e minha
pregação” Paulo explica, “não consistiram de palavras persuasivas de sabedoria,
mas de demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm não se
baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus" (lCo 2.4).
Lamentavelmente, os cristãos coríntios não aprenderam essa lição com
rapidez. Suas mentes estavam mais moldadas por sua cultura pagã do que pelo
evangelho de Jesus Cristo; por isso, muitos deles eram influenciados pelos
intrusos intrigueiros, seduzidos por outra forma do mesmo erro que Paulo,
mediante seu exemplo e instruções que dera em sua carta, já havia condenado.
Talvez o que cegasse os coríntios para o perigo fosse o fato de que esses intrusos
intrigueiros não se aliavam aos sofistas pagãos, mas aos cristãos: de fato, eles
possuíam as mais elevadas credenciais cristãs. É sempre muito mais difícil para
os cristãos detectarem uma atitude fundamentalmente pecaminosa em outros
cristãos do que em pagãos, sobretudo se tal atitude for típica da sociedade con­
temporânea, o que de certa forma reduz ou elimina o impacto “chocante” de
tal pecado. Com certeza os homens que desencaminharam os coríntios estavam
ainda menos interessados do que os próprios coríntios em pesar as alegações e
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

respostas de Paulo com imparcialidade: até onde podemos discernir, a atitude


deles para com Paulo foi pautada pelo triunfalismo declarado dos sofistas. Longe
de serem imparciais, eles eram constantemente desdenhosos e condescendentes.
Se a situação toda não tivesse passado de um conflito de personalidades
no qual Paulo levara a pior, é muito improvável que ele tivesse reagido com
tanto vigor como o fez nesses quatro capítulos. Paulo estava dolorosamente
ciente de que o quinhão do apóstolo era se tornar “a escória da terra, o lixo do
mundo” (lCo 4.13). Algo mais excruciante, embora ainda esperado, eram os
constantes “perigos dos falsos irmãos” (2Co 11.26). Mas essa situação estava
muito além disso até. As atitudes e os valores que estavam sendo incutidos pelos
intrusos causadores de intrigas eram tão profundamente pagãos, tão intrinse-
camente centrados em si mesmos, que os coríntios estavam sendo pervertidos e
enredados para longe do conhecimento profundo e experiencial do amor e do
poder do Deus cujo “poder se aperfeiçoa na fraqueza” (12.9). Mas, além disso,
esses que se diziam líderes estavam na realidade pregando outro Jesus, não aquele
que Paulo havia pregado — um espírito diferente e um evangelho diferente (11.4).
Paulo não estava meramente reagindo por causa de sentimentos feridos (embora,
sem dúvida, ele estivesse ferido), mas por causa da percepção apaixonada de
que o próprio evangelho estava em risco — e com ele o bem-estar eterno dos
coríntios. Por essa razão, ele pôde ir tão longe a ponto de dizer: “Examinem-se
para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos” (2Co 13.5). Sempre que
a questão gira em torno do evangelho, Paulo costuma traçar linhas de distinção
bem demarcadas (e.g., G1 1.8,9); assim, não é de surpreender que nesse caso ele
desmascare os intrusos causadores de intrigas como “falsos apóstolos, obreiros
enganosos, fingindo-se apóstolos de Cristo” (11.13).

2. A identidade dos opositores. Tanto já foi dito sobre eles que até come­
çaram a tomar certa forma; todavia, três observações complementares trarão
mais nitidez a seu retrato.
Priintiro, os termos “intrusos” e “forasteiros” não foram escorregões inad­
vertidos. Os principais opositores de Paulo em 2Coríntios 10 a 13 não eram
naturais da igreja de Corinto, mas pessoas que nela entraram como novatos e
rapidamente galgaram posições de liderança e autoridade. Isso fica claro não
apenas por fortes indícios em várias passagens (e.g., 10.13-15; 11.4; 12.11), mas
também pelo tema da recomendação; ao que parece, os intrusos se deleitavam em
exibir cartas de apresentação e recomendação. E insinuavam que as credenciais
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13

de Paulo eram questionáveis porque ele não seguia a mesma prática. Para se
apresentarem dessa forma, os opositores de Paulo devem ter sido indivíduos
vindos de fora.
Isso significa que não se deve identificá-los com nenhuma das facções
problemáticas retratadas em 1 Coríntios, onde os grupos que lutavam entre si
eram todos de dentro da igreja e naturais dela (mesmo que cada facção adotasse
o nome de algum líder de outra origem). Sem dúvida, pode haver uma ligação
entre os intrusos de 2Coríntios 10 a 13 e uma ou mais das facções descritas em
1 Coríntios 1.11 (Alio sugere os “que são de Cristo”, Barrett, os “que são de
Pedro”); mas são meras especulações.
Segundo, ainda que, como vimos, os intrusos fossem grandemente influen­
ciados pelo que podemos chamar de uma mentalidade sofista, não é menos
certo, no entanto, que fossem judeus: nada pode ficar mais claro com base em
2Coríntios 11.22. Alguns estudiosos, portanto, sugerem que eles eram pregadores
judeus helenistas que se diziam cristãos, mas, na realidade, estavam tentando
implantar na comunidade cristã a própria doutrina deles, alegando serem
“homens divinos”. Porém, há problemas com a categoria “homem divino”;2
e mesmo se tal categoria fosse bem consolidada, o perfil normal desses que se
autoproclamam líderes não nos encorajaria a suspeitar que ostentariam cartas de
recomendação. Longe disso: alegariam independência dos homens e exibiríam
suas proezas miraculosas como as únicas credenciais necessárias.
A melhor suposição é que esses forasteiros fossem uma espécie de judai­
zantes. Isso não é difícil de aceitar, se nos lembrarmos de quatro coisas:

(1) À medida que a igreja primitiva alcançava mais e mais gentios com
as boas-novas de Jesus Cristo, muitos judeus devotos que estavam preparados
para aceitar a Jesus como Messias, mas não para vê-lo como o cumprimento
da lei mosaica, começaram a insistir com estridência cada vez maior que todo
gentio que quisesse seguir a Jesus, o Messias, tinha de obedecer a lei de Moisés.
Aqueles que defendiam essa posição, com o tempo vieram a ser chamados
de judaizantes. A natureza precisa de suas exigências variava: na Galácia, por

2Frequentemente se argumenta que o theios aner (“homem divino”) era uma categoria comum
e compreendida do autoproclamado herói religioso e pregador itinerante no mundo helenístico;
porém, a evidência é escassa, e a designação inconsistente em seu referente: cf esp. Carl H.
Holladay, Theios Aner in HelleuisticJudaism: a critique of the use of this category in Neiv Testament
Christology (Missoula: Scholars, 1977).
34 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

exemplo, insistiam para que os gentios fossem circuncidados e assim se obri­


gassem a obedecer a lei de Moisés integralmente (cf. G1 5.2-6; 6.12-15), até
mesmo as festas especiais judaicas (G1 4.10). O livro de Atos deixa claro que
em certos estágios da carreira missionária de Paulo os judeus seguiram os passos
de Paulo e tentaram solapar sua mensagem da graça.
(2) Devemos tomar o cuidado de não achar que existia apenas um tipo de
partido judaico que se levantava contra o cristianismo. Havia naquela época
tantas opiniões diferentes entre os judeus quantas há hoje, e elas podiam se fundir
e se misturar em combinações surpreendentes. Ninguém que seja familiarizado
com o primeiro século ficaria surpreso ao encontrar um sumo sacerdote judeu
helenista chamado Sceva profundamente envolvido em práticas de exorcismo
de fama duvidosa (At 19.13-16). Em Colossos, a oposição às doutrinas de Paulo
veio à tona entre judeus que, ainda que influenciados por conceitos pagãos,
insistiam em observar as festas judaicas. Em suma, um sistema coerente de
pensamento não era o que caracterizava um judaizante, mas, sim, uma tentativa
comum de impor práticas judaicas e a lei mosaica, no todo ou em parte, aos
gentios como condições para a salvação ou pelo menos para a maturidade cristã.
Desse modo, não é difícil imaginar judeus helenistas que, precisamente por
serem completamente helenistas, assimilaram muitas das atitudes da sociedade
ao seu redor (algo que fica melhor exemplificado nesse caso pelos sofistas); no
entanto, precisamente por serem totalmente judeus, sentiam-se amarrados à
mesma postura em relação a Jesus (e ao que significa para um gentio se tornar
um cristão) que outros judaizantes adotavam.
Também, é fácil imaginar um grupo de judeus palestinos (veja item 4)
que tivesse feito profissões de fé cristãs e vivido sob influência grega por anos
suficientes para ser fortemente influenciado pelos sofistas e que, todavia, con­
servava a lealdade aos seus princípios judaizantes.
(3) Certamente, sempre que Paulo detectava esforços judaizantes, ele os
tratava como heresia. Judaização, naturalmente, não é a mesma coisa que
judaísmo; àqueles que seguiam a religião tradicional dos judeus (i.e., o judaísmo),
Paulo considerava como não convertidos, carentes de arrependimento e fé em
Jesus. O apóstolo podia ser extraordinariamente flexível para com essas pessoas
(ICo 9.19-23), indo até ao ponto de se juntar a ritos judaicos de purificação
(At 21.20-26) e de circuncidar a Timóteo para evitar ofensa à sensibilidade
dos judeus. Judaização tampouco é um termo adequado para descrever o culto
e a atitude de milhares de judeus que verdadeiramente confiaram em Jesus, o
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 35

Messias, mas não abandonaram as observâncias tradicionais do judaísmo: a


maioria dos cristãos de Jerusalém se enquadravam nessa categoria, e mesmo em
Antioquia Paulo não fez objeção à presença de um “grupo da circuncisão” que
comia separado dos demais cristãos. Judaização se refere à pressão exercida por
supostos cristãos judeus sobre cristãos gentios, a fim de compeli-los a se con­
formarem a toda lei mosaica ou a alguma parte dela como condição necessária
para a salvação ou para a maturidade cristã. Portanto, os judaizantes operavam
dentro do âmbito cristão e eram comumente aceitos como cristãos, mas Paulo
percebeu que, tão logo passaram a insistir em acrescentar algo a Cristo como
necessário à salvação ou ao amadurecimento cristão, estavam destruindo a
estrutura fundamental do cristianismo segundo ele a concebia. A graça não mais
seria graça; a teologia do mérito seria a “mão” no provérbio que diz: “Dê a mão
e ele vai querer o braço”. Por isso Paulo profere repetidamente seu “anátema”
contra os judaizantes na Galácia” (Gl 1.8,9).
(4) Os dois versículos cruciais em 2Coríntios 10 a 13 que se relacionam com
tal questão são 11.4 e 11.22. No primeiro, Paulo insiste que os intrusos estavam
pregando outro Jesus que não o que Paulo pregava, um espírito diferente e um
evangelho diferente daqueles que os coríntios haviam recebido. A linguagem
lembra Gálatas 1.8,9 e é típica da conhecida atitude de Paulo para com os judai­
zantes. Em 2Coríntios 11.22, Paulo faz perguntas retóricas: “São eles hebreus?”
E ele responde, “Eu também”. Contudo, a palavra “hebreus” normalmente se
restringe àqueles judeus cuja herança linguística era hebraica/aramaica — i.e.,
os judeus da Palestina. Com base nisso alguns comentaristas argumentam que os
intrusos eram pessoas nascidas e criadas na Palestina e que provavelmente foram
para Corinto tão mais tarde que não é fácil acreditar que pudessem ter caído
sob forte influência dos sofistas. Mas essa interpretação ignora o “Eu também”
de Paulo, uma vez que ele não nasceu na Palestina, mas na cidade helenista de
Tarso. Paulo pode ter sido educado na Palestina, mas certamente ganhou edu­
cação grega suficiente para ser capaz de citar poetas menores como Epimênides
(At 17.28; cf. Tt 1.12). Entretanto, seu argumento em 2Coríntios 11.22 é que
ele fora educado para falar hebraico/aramaico e assim partilhar da plena herança
teológica que essa competência linguística possibilitaria. Da mesma forma, os
intrusos podem ou não ter nascido na Palestina, ainda que nascidos e educados
em ambiente mais helenista. O que parece razoavelmente claro é que eles eram
judaizantes com instrução na cultura palestina e ao menos algumas atitudes
sofistas. Só nos resta imaginar como se deu essa combinação precisa.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Esses forasteiros podem ser como aqueles judeus que antes haviam invo­
cado a autoridade dos Doze sem na verdade ter a aprovação destes (At 15.24).
Afinal de contas, uma facção em Corinto já havia usado o nome de Pedro
(cf. ICo 1.12). Para os coríntios, semelhante autoridade teria grande peso. Se o
evangelho de Paulo fosse subvertido, a autoridade de Paulo teria de ser posta em
dúvida. Que melhor forma de atingir tal fim, do lado judaico, do que apelar para
todas as associações de Jerusalém que soariam com autoridade aos ouvidos de
todos os cristãos primitivos, e, do lado grego, do que promover uma falange
de objeções contra Paulo que instantaneamente pareceríam plausíveis devido
ao viés cultural assimilado?
A terceira observação complementar que trará mais nitidez ao retrato dos
opositores de Paulo é que há discordância quanto ao número de grupos aos quais
Paulo alude. Vários comentaristas recentes argumentam em favor da existência
de três grupos. Em primeiro lugar, naturalmente, estão os próprios coríntios.
Paulo às vezes fica aborrecido e constantemente se zanga com eles; mas, por
reconhecer que são vítimas dos forasteiros, ele nunca os trata com tanta aspereza
quanto trata seus principais opositores. Esses opositores formam o segundo grupo
— os “falsos apóstolos” (2Co 11.13) que introduziu “um evangelho diferente”
(11.4). Eles seduziram os coríntios e conseguiram plantar sementes de suspeita
em suas mentes quanto ao status e à integridade de Paulo. Mas o terceiro grupo
seria composto por aqueles que Barrett chama de “apóstolos de reconhecida
eminência” — i.e., os próprios Doze. Barrett, seguido por Bruce e Harris,
defende que os “superapóstolos” (11.5; 12.11) não são os falsos apóstolos, mas os
Doze que os intrusos invocam a fim de adquirir respeitabilidade e autoridade.
Quando Paulo discute sobre os falsos apóstolos, rejeita-os por serem lacaios de
Satanás, e ameaçadoramente, ele conclui: “O fim deles será o que as suas ações
merecem” (11.13-15). Contudo, quando menciona os “superapóstolos” (11.5;
12.11), Paulo se limita a dizer que não é em nada inferior a eles.
Essa interpretação é bastante plausível e, caso esteja correta, ajuda a explicar
a posição constrangedora de Paulo. Pois se os intrusos estavam fazendo propa­
ganda não só de si mesmos, mas também dos apóstolos de Jerusalém, procurando
elevar a própria estatura ao alegar (ainda que falsamente) serem representantes
dos Doze, Paulo está em apuros: ele deve expor a impostura dos intrusos sem
diminuir a autoridade dos Doze que (aparentemente) os recomendaram.
Todavia, continuo não convencido de que devemos interpretar 2Coríntios
11.5 e 12.11 dessa forma. Antes, é melhor tomar a designação “superapóstolo”
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 37

como uma referência irônica adicional aos falsos apóstolos. Há quatro razões
que apoiam essa opinião:

(1) A seção central de 2Coríntios 10 a 12 é composta da vangloria de


Paulo (11.16-12.10), uma passagem saturada de ironia. Quando nessa pas­
sagem ele levanta questões como “São eles hebreus?” ou “São eles servos de
Cristo?” (11.22-23), o “eles” em questão são os falsos apóstolos dos versículos
imediatamente precedentes (11.13-15). Porém, logo depois dessa longa seção
que trata da vangloria, escrita para reprimir os falsos apóstolos, Paulo conclui:
“Fui insensato, mas vocês me obrigaram a isso. Eu devia ser recomendado por
vocês, pois em nada sou inferior aos ‘superapóstolos’, embora eu nada seja”
(12.11) . Como a seção que fala da vangloria começa com uma referência aos
falsos apóstolos, o modo mais natural de compreender 12.11 e seguintes é
que essa seção conclui com uma referência às mesmas pessoas ironicamente
designadas “superapóstolos”. Nesse caso, a mesma designação em 11.4 deve
provavelmente ser interpretada da mesma maneira.
(2) Há mais ironia em 2Coríntios 10 a 13 do que em todo o restante dos
escritos existentes de Paulo juntos. Portanto, há ampla razão contextual para
imaginar que “superapóstolos” também deve ser um tratamento irônico.
(3) Quando em outra parte Paulo é forçado a fazer uma espécie de compa­
ração entre si e os Doze (ou, mais genericamente, as “colunas” de Jerusalém), ele
normalmente faz referência explícita às pessoas a quem está se referindo (e.g.,
G1 2.6-10; ICo 15.5,9). Nada há tão explícito aqui. Na verdade, como Paulo
teve de se comparar aos intrusos, os falsos apóstolos (e.g., 2Co 10.12-18; 11.16
—12.10), a fim de garantir a lealdade dos coríntios ao evangelho, devemos
imaginar que sua reprimenda a eles, “Eu devia ser recomendado por vocês”
(12.11) , quer dizer algo como “Eu devia ser recomendado por vocês antes dos
forasteiros, assim as pretensões pessoais deles teriam dado em nada”. Porém, essa
declaração crucial de 12.11 deve ser interpretada por Barrett, Bruce e Harris
como significando algo do tipo: “eu devia ser recomendado por vocês antes
dos forasteiros, de forma que as alegações deles de que sou inferior aos Doze
fossem expostas como inverídicas”. A última interpretação somente faria sentido
se Paulo já tivesse feito longas comparações entre si mesmo e os Doze; mas isso
é precisamente o que ele não fez.
(4) Não há motivo para pensar que as reivindicações desses judaizantes de
que representavam alguma autoridade em Jerusalém fossem válidas. Do mesmo
38 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

modo, é muito duvidoso que Pedro ou Apoio estivessem pessoalmente por trás
das facções mencionadas em 1 Coríntios 1.12; antes, pessoas ardilosas invocaram
os nomes e autoridade deles e fizeram um considerável estrago. Com certeza
foram as altercações mais antigas de Paulo com judaizantes que invocavam a
autoridade dos líderes de Jerusalém que o ensinaram que os líderes de Jerusalém
preferiam rejeitar tais conexões. Eles mesmos declararam: “Soubemos que alguns
saíram de nosso meio, sem nossa autorização, e os perturbaram” (At 15.24).
Portanto, é improvável que Paulo tivesse acreditado nas credenciais dos intrusos
em Corinto; e por esse motivo ele não se sentiu demasiadamente influenciado
a se deixar impressionar pelos grandes nomes ligados a Jerusalém. Em outras
palavras, Paulo estaria em uma posição mais difícil se acreditasse que essas
credenciais eram válidas, mas os mensageiros tivessem se portado mal; porém,
com base em suas experiências anteriores, é improvável que Paulo tenha crido
que as credenciais eram autênticas. Nesse caso, praticamente não haveria razão
para arrastar os líderes de Jerusalém para a discussão.
Esse esboço do pano de fundo de 2Coríntios 10 a 13 foi bastante longo:
devo concluí-lo e dar prosseguimento à exposição. No entanto, essa introdução
deve nos levar a antecipar que esses capítulos das Escrituras nos lançam alguma
luz sobre vários tópicos cruciais:

(1) Deveremos aprender algo sobre o apostolado e, em decorrência disso,


sobre a natureza da liderança cristã. Pouca coisa é mais importante em nossa
era, na qual promover o eu sob o pretexto de promover a Cristo tornou-se não
somente comum, mas também uma prática defendida em livros e seminários
sobre liderança cristã. A compreensão fidedigna de Paulo sobre o tópico é
profimdamente humilde.
(2) Deveremos descobrir o mal intrínseco à muita vangloria, e o modo
que isso está profundamente relacionado ao egocentrismo que encontra-se no
coração de todo pecado. As atuais fórmulas de sucesso que se dizem “cristãs”,
com excessiva frequência desenvolvidas por mascates do glamour e comercia­
lizadas por meio de técnicas da Madison Avenue, que promovem o conforto
e o engrandecimento pessoais, formuladas para se mesclarem facilmente à
ideia do heroico de nossa sociedade pagã, revelam mais sobre o triunfalismo
do que sobre o caminho da cruz. Há um livro que brinca com o título quase
blasfemo Hou> to write your own ticket with God [Como conquistar a própria
passagem para o céu]. Outro apresenta o que chama de “lei da reciprocidade”
ORIENTAÇÕES PARA 2CORÍNTIOS 10—13 3/

para incentivar o crente a pensar que, quanto mais dermos, mais obteremos.
Há verdade suficiente na ideia para tornar a apresentação crível aos ingênuos;
porém, faz com que Lucas 6.36-38 soe como se a razão fundamental para dar
é obter (o que nem essa passagem nem qualquer outra ensina) ou que a “lei”
da reciprocidade seja um preceito tão universal, tão independente de outros
ensinos nas Escrituras, que não admite nenhuma ressalva ou equilíbrio. Ensina
que a bondade mostrada a nossos inimigos inevitavelmente (afinal de contas, isso
é uma lei!) resulta em bondade retribuída. Por que, então, Jesus foi para a cruz?
Talvez foi por ele próprio ter fracassado em mostrar bondade suficiente? Por que
ele diz que seus seguidores devem esperar ser maltratados, perseguidos, odiados
por todos os homens (e.g, Mt 5.10-12; 10.16-39; 24.9-14; Jo 15.18—16.4; cf.
2Tm 3.12,13)? Os autores continuam, no entanto, encorajando-nos a acreditar
que, quanto mais dinheiro doarmos, mais dinheiro teremos. Mas talvez a “retri­
buição” da qual Jesus fala não seja sempre exatamente do mesmo tipo; talvez
uma orientação escatológica no ensino de Jesus nos encoraje a pensar que em
muitos casos a recompensa virá no novo céu e na nova terra — sem mencio­
nar os casos em que ela é pressagiada por martírio! Os cristãos dos países em
desenvolvimento que tanto lutam e doam com sacrifício e amor, até mesmo do
próprio sustento, para a obra do Senhor, não ficarão grandemente impressio­
nados por interpretações triunfalistas distorcidas que prometem bens materiais
sem limites? Os cristãos que vivem em regimes totalitários, irmãos e irmãs em
Cristo que perderam seus bens, oportunidades de educação e emprego e, por
vezes, até a própria vida, engolirão um conceito de reciprocidade tão funda­
mentalmente antibíblico e raso? Naturalmente, Deus nada deve aos homens;
contudo, muitas vezes sua “recompensa” é a graça que suporta a oposição e a
provação, e faz crescer em caráter, profundidade, santidade e entendimento —
não a vã promessa de poder, saúde e riqueza temporais. O texto de 2Coríntios
10 a 13 fala a essas questões de modo incisivo e oferece um meio de olharmos
para o triunfalismo, um meio que é inquietantemente cristão, profundamente
inspirador e totalmente desafiador.
(3) Relacionado a esse último ponto está o modelo de maturidade cristã
fornecido por Paulo. Eis um homem que enxerga além das questões de perso­
nalidade e vai até a natureza do evangelho e da autoridade apostólicos. Eis um
homem que odeia vangloriar-se, mas cuja preocupação profunda pelo evangelho,
assim como sua profunda compreensão deste, força-o a sair de si mesmo, por
assim dizer, para enfrentar um problema pastoral de imensa complexidade e
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

delicadeza. Eis um apóstolo plenamente preparado para servir como a escória


da terra, o refugo do mundo, mas cujo aspecto marcante, para todos os cristãos
com alguma profundidade de compreensão, é sua quase inacreditável maturidade
espiritual, emocional e intelectual.
(4) Deveremos aprender, também, que tanto os cristãos quanto as igrejas
locais semelhantemente devem assumir a responsabilidade pelos estilos de lide­
rança que seguem. Se é verdade que os líderes cristãos são responsáveis diante
de Deus pelo ensino que fornecem, pelos modelos que demonstram, bem como
pelas direções que tomam, não é menos verdade que os cristãos e as assembléias
cristãs são responsáveis por escolherem o que e a quem imitarão. Os proble­
mas em Corinto, retratados em 2Coríntios 10 a 13, jamais teriam surgido se
a igreja de Corinto houvesse, para começo de conversa, tratado os intrusos de
forma madura e bíblica. Sua falha em não agir assim reflete sua imaturidade espi­
ritual, sua preocupante incapacidade de perceber que as normas de sua própria
sociedade eram profundamente pagãs e não deveríam ser fomentadas na igreja.
(5) Mais uma vez, deveremos ser lembrados de que a igreja primitiva não era
uma amálgama de congregações ideais, mas, sim, como hoje, uma comunidade
de peregrinos chamados cuja lealdade é a Jesus Cristo, mas cuja maturidade é
muitas vezes insatisfatória. Infiltrados por impostores e seduzidos por vozes de
sereia para seguir versões cristianizadas e baratas daquilo com que já estavam
acostumados por seu passado pagão, os crentes de Corinto nos lembram que
a perfeição aguarda a parúsia. Enquanto isso, nos resta a sabedoria de Henry:
“Que nenhum ministro de Cristo ache estranho, caso se depare com perigos,
não somente de inimigos, mas de falsos irmãos; pois o abençoado Paulo tam­
bém se deparou”.
2 Desobediência versus disciplina
Um apelo à fé obediente

Eu, Paulo, pela mansidão e pela bondade de Cristo, apelo para vocês;
eu, que sou “tímido” quando estou face a face com vocês, mas “ousado”
quando ausente! Rogo-lhes que, quando estiver presente, não me obri­
guem a agir com ousadia, tal como penso que ousarei fazer, para com
alguns que acham que procedemos segundo os padrões humanos. Pois,
embora vivamos como homens, não lutamos segundo os padrões huma­
nos. As armas com as quais lutamos não são humanas; pelo contrário, são
poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destruímos argumentos e
toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos
cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo. E estaremos
prontos para punir todo ato de desobediência, uma vez completa a
obediência de vocês (2Co 10.1-6).

áL sses seis versículos de abertura apresentam-nos vários dos temas encontrados


-Jnos quatro capítulos subsequentes: a acusação de que Paulo é inconsis­
tente, ousado quando ausente e tímido quando presente; a incompreensão
fundamental ao ministério de Paulo que os coríntios ainda nutriam; a ameaça
implícita vinculada à sua visita iminente. Mas, acima de tudo, esses versículos
apresentam um contraste agudo entre a real situação da igreja de Corinto e o
que, segundo Paulo insiste, deve dominar a igreja. E o contraste entre a de­
sobediência e a disciplina, e como Paulo deixa subtendido, se a disciplina não
tiver sido restabelecida até ele chegar, o apóstolo usará suas armas espirituais
para impô-la. Por enquanto, ele faz um apelo preliminar à fé obediente.

A. Um prelúdio irônico (v. 1)


De uma forma abrupta, Paulo se dirige à igreja inteira em Corinto: o plural
“vocês” (“apelo para vocês”) proíbe-nos de achar que ele esteja se dirigindo
somente a uma parte cismática, talvez a extremistas fanáticos. Tanto o emprego
42 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

(compare “vocês” em 2Co 12.19 e 13.11-13) quanto o contexto (veja meus


comentários sobre 10.6) deixam claro que Paulo está escrevendo à igreja coríntia
como um todo. Essa carta é um apelo: “apelo para vocês”, diz. O conteúdo desse
apelo, porém, é reservado para o versículo 2. Antes de revelar o assunto, Paulo
faz a abertura com esse prelúdio irônico (v. 1).
A ironia gira em torno de dois fatores. Primeiro, apesar de os coríntios
haverem acusado Paulo de ser ousado e forte apenas em suas cartas (2Co 10.1,10),
ele se recusa a morder a isca e atacar seus leitores com uma ordem apostólica.
Antes, faz um apelo: o verbo sugere que ele os insta, que roga a eles. A lin­
guagem é emocional, denunciando convicção profunda ligada a um desejo
profundo de ser ouvido e compreendido: traduzido literalmente, o texto deve
ser lido “eu, Paulo, eu mesmo, apelo a vocês”. Em seu apelo, Paulo não mais
associa consigo Timóteo (como em 2Co 1.1). Antes, fala e escreve sozinho, de
maneira urgente, pessoal e apelando com insistência aos coríntios em vez de
se manter neutro e apresentar uma atitude severa. Nos únicos outros lugares
onde Paulo usa estas palavras em conjunto — “eu, Paulo, eu mesmo” (G1 5.2;
lTs 2.18) — ele é igualmente intenso e pessoal.
O segundo fator de ironia acerca desse prelúdio é a cuidadosa identificação
que Paulo faz daquilo por meio do qual faz seu apelo: “pela mansidão e pela
bondade de Cristo, apelo para vocês”. Ele poderia ter dito: “Como apóstolo do
Cristo ressurreto e soberano, ordeno a vocês”; ou “Pela autoridade do Senhor
soberano que comissionou a mim como apóstolo dele, exijo de vocês”; mas, em
vez disso, ele escreve, “pela mansidão e pela bondade de Cristo, apelo para vocês”.
Desse modo, Paulo simultaneamente fornece um contraexemplo à acusação de
que suas cartas são invariavelmente ousadas, pesadas e enérgicas (2Co 10.1,10),
e lembra seus leitores que se ele, Paulo, é por vezes acusado de timidez quando
se relaciona pessoalmente com eles, está simplesmente seguindo o exemplo do
próprio Senhor Jesus. Não podia Jesus, durante os dias de seu ministério terreno,
abertamente testemunhar: “Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de
mim, pois sou manso e humilde de coração” (Mt 11.29)? E bem verdade que
Paulo podia ser muito áspero tanto por carta quanto pessoalmente. Em outra
ocasião, ele escreveu, “Que é que vocês querem? Devo ir a vocês com vara, ou
com amor e espírito de mansidão?” (ICo 4.21). Mas até nisso, novamente, o
próprio Jesus podia apresentar uma faceta severa, não somente ao denunciar
publicamente os líderes religiosos (Mt 23), mas também em ações estratégicas,
como a purificação do templo (21.12,13 e paralelas). Embora situações diferentes
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 43

possam exigir de líderes sábios respostas muito distintas, Paulo entende que
algo que era característico do ministério público de Jesus era a mansidão e a
bondade; e ele crê que essas mesmas características devam marcar seu próprio
ministério. No caso de Jesus, essa atitude fundamental de esvaziar a si mesmo
atingiu seu mais magnificente esplendor na assombrosa descida da glória, que
o Filho compartilhava com o Pai (Jo 17.5), à ignomínia, à vergonha e à rejei­
ção na cruz — um tema celebrado por Paulo em outra parte (Fp 2.6-8). Logo,
a ninguém espanta o fato de cada um dos seguidores de Jesus dever tomar a
própria cruz (Mc 8.34-38), no mínimo, se espera ser chamado de discípulo e
não perder sua alma.
Poucos compreendem melhor do que Paulo esse ingrediente essencial do
cristianismo. Não apenas a mansidão aparece em suas cartas como uma vir­
tude recorrente (G1 5.23; 6.1; Cl 3.12), mas parágrafos inteiros escritos por ele
demonstram como suas reflexões teológicas e seu estilo de vida apoiavam-se e
confirmavam-se mutuamente. Vários dos mais tocantes desses parágrafos são
dirigidos aos coríntios, quase como se eles tivessem necessidade de lembretes
perpétuos sobre esse elemento essencial na fé que professavam. Em sua primeira
carta canônica a eles, Paulo escreveu: “Porque me parece que Deus nos colocou
a nós, os apóstolos, em último lugar, como condenados à morte [...]. Até agora
estamos passando fome, sede e necessidade de roupas, estamos sendo tratados
brutalmente, não temos residência certa e trabalhamos arduamente com nossas
próprias mãos. Quando somos amaldiçoados, abençoamos; quando persegui­
dos, suportamos; quando caluniados, respondemos amavelmente. Até agora
nos tornamos a escória da terra, o lixo do mundo” (lCo 4.9,11-13). A mesma
atitude de serviço e compromisso é agora repetida na segunda carta canônica
de Paulo aos coríntios: “Não damos motivo de escândalo a ninguém, para que
o nosso ministério não caia em descrédito. Ao contrário, como servos de Deus,
recomendamo-nos de todas as formas: em muita perseverança; em sofrimentos,
privações e tristezas; em açoites, prisões e tumultos; em trabalhos árduos, noites
sem dormir e jejuns; em pureza, conhecimento, paciência e bondade; no Espírito
Santo e no amor sincero; na palavra da verdade e no poder de Deus; com as armas
da justiça, quer de ataque, quer de defesa; por glória e por desonra; por difamação
e por boa fama; tidos por enganadores, sendo verdadeiros; como desconhecidos,
apesar de bem conhecidos; como morrendo, mas eis que vivemos; espancados,
mas não mortos; entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a
muitos; nada tendo, mas possuindo tudo” (2Co 6.3-10). Essas mesmas atitudes
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Paulo sabiamente cultiva nos homens mais jovens que treina, como uma cuidadosa
leitura das cartas pastorais (1 e 2Tm e Tt) logo torna evidente.
A mansidão e a bondade (esta última poderia ser traduzida por “indulgência”
ou “amabilidade”— o mesmo termo ocorre em Fp 4.5), consideradas em con­
junto, sugerem que a pessoa que se caracteriza por essas virtudes será generosa
no modo em que avalia os outros, tardia em se ofender, perfeitamente apta a
suportar uma repreensão, consistentemente acima do mero interesse próprio.
Por essa mansidão e bondade, características do próprio Cristo, Paulo faz seu
apelo. Contudo, embora a linguagem seja profundamente irônica, ela não é
manipuladora. Em outras palavras, Paulo não opta por um jeito irônico de se
expressar apenas para se livrar de uma situação difícil, tomando a ironia nas
próprias mãos como um instrumento flexível para envergonhar seus leitores.
A situação é muito mais séria do que isso. A linguagem de Paulo está saturada
de ironia porque a situação concreta que ele encara é irônica: os coríntios estão
confundindo mansidão com fraqueza, bondade com subserviência, e ignorando
por completo as características dominantes do Redentor que alegavam reconhe­
cer como Senhor. Se a ironia da linguagem de Paulo envergonha os coríntios,
é porque devem ficar envergonhados.
O nível do equívoco cometido pelos coríntios é bem básico. Não somente
acusavam Paulo de incoerência — dizem que ele é tímido quando presente
e ousado quando distante e escreve cartas —, como não compreendiam as
virtudes cristãs fundamentais. A palavra traduzida por “tímido” (2Co 10.1)
costuma ser traduzida por “humilde”; só que eles viam nessa humildade não
como graça, mas, sim, como fraqueza. Para o cristão consagrado e maduro, a
palavra “humilde” tem conotações positivas; na mente dos coríntios, ela tem
implicações negativas. Talvez eles adotassem o mesmo emprego encontrado em
passagens como a seguinte, de Xenofonte (que atribui as palavras a Sócrates):
“Outrossim, nobreza e dignidade, auto-humilhação e servidão, prudência e
entendimento, insolência e vulgaridade, refletem-se na face e nas atitudes do
corpo, esteja ele parado ou em movimento” (Memorahilia III.10.5). Nessa citação,
a auto-humilhação (a mesma palavra traduzida por “tímido” em 2Co 10.1) faz
par com a palavra servidão; e juntas contrastam com o par nobreza e dignidade.
Esse tipo de humildade é ignóbil; ela recua diante da confrontação, aproxima-
-se discretamente do dinheiro, do poder e da influência com a falsa humildade
de um político inescrupuloso, e age com força e energia somente quando lhe
parece seguro. Em resumo, os coríntios diziam que “quando Paulo estava lá,
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 45

ele era um Uriah Heep, muito humilde, servil e astuto; e quando estava longe
deles, conseguia criar coragem e ser muito resoluto — no papel” (Plummer).
Como muitos hoje, os coríntios abraçaram uma compreensão de grandeza que
era, na essência, triunfalista; e por isso estavam mal preparados para enxergar
um apóstolo como grande caso ele contrariasse esse padrão. As dimensões de
seu triunfalismo vão se tornar cada vez mais evidentes. O que fica claro nesse
prelúdio irônico é que Paulo responde não com o intuito de demonstrar sua
superioridade (pois se o fizesse ele estaria sucumbindo ao conjunto de valores
abraçados pelos coríntios), mas com o intuito de demonstrar o caráter e os
ensinamentos de Cristo. Há muito mais em jogo do que lealdade partidária.
As diferenças entre Paulo e os coríntios giram em torno de um conflito de
cosmovisões, de uma dissociação fundamental de valores, de uma profunda
discordância a respeito daquilo que os cristãos devem buscar.

B. O apelo (v. 2)
Depois de ministrar no prelúdio uma pequena dose de tratamento de choque, ao
instituir uma escala de valores imensamente diferente daqueles que os coríntios
adotavam, Paulo chega ao apelo em si. Nesse sentido, “Rogo-lhes” (2Co 10.2)
provavelmente não difere grandemente de “apelo para vocês” (10.1): em ambos os
casos Paulo se põe como uma voz suplicante. A essência do apelo é para que ele
possa não ter de ser tão “ousado” (tão enérgico e severo) para com os coríntios
como ele mesmo afirma esperar ser “para com alguns”. Essa é uma forma gentil
de pedir aos coríntios que mudem antes que seja tarde demais. Logo que Paulo
chegar, terá de tomar uma atitude enérgica: assim, antes de sua chegada, apela
aos coríntios para mudarem seus padrões de conduta de modo que a severidade
com que os ameaça possa ser evitada.
Quatro observações nos possibilitam compreender um pouco melhor a força
desse apelo. A primeira é que a natureza precisa da ameaça de Paulo é progressi­
vamente desvendada mais adiante no texto. Uma dica do que está por vir surge
em 2Coríntios 10.6: “E estaremos prontos para punir todo ato de desobediência,
uma vez completa a obediência de vocês”. A ameaça de castigo apostólico é
real (cf. 13.2); mas cabe aos coríntios responder de maneira tal que a visita de
Paulo seja “com amor e espírito de mansidão” e não com “vara” (ICo 4.21). Ao
confundir humildade com subserviência, os coríntios o acusam de ser tímido
e fraco pessoalmente; mas, a menos que certas coisas não mencionadas mudem
46 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

na igreja, eles descobrirão justamente quão severo o apóstolo Paulo pode ser.
É isso o que realmente querem?
Por outro lado, a severidade não é a faceta que Paulo gostaria de exibir; pois
a segunda observação a ser feita é que Paulo fala de tal severidade como algo que
ele “ousaria” usar, como se não fosse sua postura normal. Traduzido de forma
mais literal, o versículo 2 deve ser lido, “Rogo-lhes que, quando chegar, eu possa
não ter de ser obrigado a mostrar aquela ousadia confiante que reconheço ter
de ousar empregar contra algumas pessoas”. É como se Paulo reconhecesse que
o propósito primordial da autoridade que o Senhor lhe confiou fosse edificar o
povo, não destruí-los (2Co 10.8); logo, se a situação que ele confronta demanda
o curso mais severo, ele se sente desconfortável e entristecido. Sem dúvida, ele
tomará os passos necessários para remediar a situação; porém, longe de ostentar
autoridade, apressando-se a tomar uma medida disciplinar, Paulo encara tal
perspectiva como um desafio inevitável, não um desafio a ser encarado com
satisfação. Sua atitude normal, sua postura preferida diante de seus convertidos
é a “mansidão” e a “bondade de Cristo”.
A terceira observação a ser feita é que esses “alguns” que Paulo espera con­
frontar provavelmente não são os próprios coríntios nem parte deles. Paulo não
diz que espera ser ousado para com “alguns de vocês”, mas para com “alguns”.
Não apenas temos uma boa pista em apoio a essa distinção no versículo 6, mas
essa mesma distinção entre os coríntios e “alguns”, que constituem a principal
oposição a Paulo em Corinto, é mantida ao longo desses capítulos. Por exem­
plo, em 2Coríntios 6.11 fica claro que aqueles tratados como “vocês, coríntios”
deveríam ter defendido Paulo contra os “superapóstolos”. Contudo, neste caso
então, a tônica do apelo de Paulo em 10.2 é que os próprios coríntios deviam
tomar uma atitude decisiva contra os intrusos, de modo que Paulo não tenha
de fazer isso quando chegar. Os coríntios estão no momento sendo ludibriados
por aqueles a quem Paulo vê como perigosos impostores; portanto, o apóstolo
está apelando a seus convertidos para que exerçam o discernimento e a disciplina
necessários a fim de evitar um confronto posterior entre a “vara” apostólica
e os intrusos.
Em quarto lugar, devemos observar que a natureza das diferenças entre Paulo
e os intrusos começa agora a vir à tona. Paulo espera ter de ser audaz para com
“alguns” que julgam que ele vive “segundo os padrões deste mundo”. O original
poderia ser literalmente traduzido por “segundo a carne”: em outras palavras,
Paulo é acusado de viver segundo a carne. O que isso quer dizer exatamente?
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA

No emprego paulino, “carne” pode aludir à substância física que recobre


nossos ossos. Quando usada para compor uma expressão tal como “carne e san­
gue”, quer dizer algo como “humanidade” ou “natureza humana e mortalidade”.
Porém, Paulo tipicamente usa a palavra “carne” para denotar a natureza humana
caída, o homem em pecado e rebelião contra Deus, os seres humanos atolados
no egocentrismo que, por isso, colocam Deus à margem — se é que deixam
para ele algum lugar. No contexto de 2Coríntios 10 a 13, porém, é improvável
que os opositores de Paulo estejam-no acusando essencialmente de cometer
pecado no exercício de seu apostolado. Antes, eles o estão acusando de ser um
líder ineficaz, com propensão à timidez excessiva, capaz de não mais do que
uma pregação de terceira categoria, e que possui também pouca bagagem nas
áreas de experiências espirituais e visionárias para reivindicar a lealdade dos
coríntios. É nesse sentido que Paulo, na opinião deles, vive “segundo a carne” ou
“segundo os padrões do mundo”: ele não atinge os altos padrões de espiritua­
lidade e liderança que esses líderes reivindicavam para si! O apóstolo vive e serve
no nível baixo deste mundo, no nível da carne; já eles ministram como líderes
dinâmicos e espirituais cujas experiências espirituais atestam sua superioridade
e cuja retórica demonstra a graça que Deus lhes concedeu.
A linguagem de Paulo é gentilmente irônica. Ele falou da audácia confiante
que considera ter de ousar empregar; agora ele se refere a esses “alguns” não
identificados que consideram que Paulo vive pelos padrões do mundo. No fundo,
é uma questão de avaliação: os opositores de Paulo o avaliaram a partir de certa
ótica, descartando-o como inferior, e no processo tentaram ganhar a lealdade
da igreja inteira. Paulo os avalia a partir de uma ótica diferente e insiste que são
impostores (2Co 11.13-15) que pregam outro Jesus (2Co 11.4) e considera que
ousará confrontá-los com sua autoridade apostólica quando finalmente chegar
em Corinto. O par de avaliações — a avaliação que Paulo faz dos intrusos, e a
que estes fazem dele — são fundamentalmente opostos.
Porém, temos de nos apressar em acrescentar que as diferenças entre as duas
avaliações não são fruto de animosidade pessoal ou ressentimento arrogante. A
raiz das diferenças de avaliação é a disjunção entre os conjuntos de critérios que
as duas partes utilizam. Sem dúvida os intrusos se acham talentosos e espirituais;
porém, seu critério para avaliar tanto a si quanto a Paulo recebe sua chancela
do cristianismo judaizante, de padrões helenistas de retórica e liderança, bem
como de entusiasmo visionário. Em sua resposta, Paulo insiste efetivamente que,
quando tais perspectivas predominam, os julgamentos resultantes são subcristãos.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Os judaizantes procurarão provar sua superioridade espiritual hipervalorizando


sua linhagem no que diz respeito à raça e à aliança (2Co 11.21a,22); os sofistas
julgarão o direito de alguém liderar por sua competência, quando não por sua
retórica (2Co 11.6) e capacidade de angariar uma renda considerável (2Co 11.7);
e os entusiastas visionários julgarão um líder em potencial pelo número e pela
intensidade das experiências espirituais que ele alega ter tido (12.1-10). Mas
todos esses critérios, segundo Paulo percebe, depreciam a Cristo. Se um fator
essencial da verdadeira espiritualidade for a linhagem ou a raça, então o fator
determinante não é a obra da cruz de Cristo e nosso consequente relaciona­
mento com ele; se os padrões de retórica e a capacidade de angariar dinheiro
forem condições primordiais para a liderança na igreja, então a mentalidade de
servo é depreciada (mesmo que o próprio Cristo tenha demonstrado justamente
essa atitude) e padrões de oratória culturalmente impostos usurpam o lugar da
verdade imutável que transcende culturas; e se a demonstração de entusiasmo
visionário for condição sine qua non para promover alguém à liderança, não só
a igreja fica vulnerável a demonstrações fraudulentas, mas também os próprios
que reivindicam ter tal entusiasmo provavelmente se gloriarão cada vez mais
no esotérico, e não na suficiência da graça de Cristo.
O âmago dos critérios usados pelos intrusos é o triunfalismo; e em cada caso
o critério está alicerçado em algo que não é bom nem mal em si mesmo, mas
que é fundamentalmente maligno quando serve para mostrar a Cristo ou para
camuflar as verdadeiras características da liderança espiritual. Nesse sentido, os
critérios de avaliação propostos pelos intrusos eram, em essência, não cristãos.
Eles eram primordialmente pagãos. O conflito entre Paulo e os intrusos era um
conflito de cosmovisões. A cosmovisão de Paulo era moldada pelo evangelho;
a deles tomava forma a partir do que era louvado nos segmentos da sociedade
cuja honra eles prezavam. Ironicamente, estavam acusando Paulo de viver
segundo padrões mundanos que não estavam à altura do nível de excelência
espiritual que diziam ter, ao passo que, na realidade, haviam compreendido tão
mal o evangelho que seus próprios valores é que eram na verdade mundanos,
segundo a “carne”, na acepção paulina habitual — eram egocêntricos, peca­
minosos, rebeldes contra Deus e a revelação que ele tinha graciosamente dado.
Esse conflito profundo pode parecer estranho à nossa sociedade, por duas
razões. Primeiro, por um lado, vivemos em uma era de subjetivismo profun­
damente impregnado. Fomos ensinados a achar que é de algum modo errado,
até mesmo perverso, dizer que o sistema de valores de outra pessoa é falso.
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 49

O único julgamento amplamente endossado por nossa sociedade é o de que


nenhum juízo absoluto é permissível. Nesse clima, o que sofre é a verdade — ou,
mais precisamente, a possibilidade de afirmar a existência de qualquer verdade
absoluta. Mas, por outro lado, se o evangelho de Jesus Cristo — tudo o que esse
evangelho fornece, ensina e exige — é verdadeiro, então o que se opuser a ele é
falso na mesma proporção. A verdade exclui o erro e a falsidade. Paulo não se dá
ao trabalho de discutir a prerrogativa que alguém possa ter de ensinar um sistema
contrário ao evangelho; porém, ele discute, sim, o direito deles de fazerem isso
na igreja, passando adiante o erro como se fosse uma verdade do evangelho.
A segunda razão pela qual nossa sociedade pode de início reagir negati­
vamente diante do conflito entre Paulo e os intrusos é que, além do problema
do nosso subjetivismo não questionado, vivemos em um lugar e tempo da
história que são dominados pela diversidade cultural. Em certo sentido, isso é
muito saudável, pois alarga nossos horizontes e em alguns casos aumenta nos­
sas estreitas tolerâncias. Na verdade, em determinados níveis, o próprio Paulo
certamente foi um dos missionários culturalmente mais flexíveis já vistos. Ele
escreveu: “Tornei-me judeu para osjudeus, a fim de ganhar os judeus. Para os
que estão debaixo da lei, tornei-me como se estivesse sujeito à lei, (embora eu
mesmo não esteja debaixo da lei), a fim de ganhar os que estão debaixo da lei.
Para os que estão sem lei, tornei-me como sem lei (embora não esteja livre da
lei de Deus, mas, sim, sob a lei de Cristo), a fim de ganhar os que não têm a
lei. Para com os fracos tornei-me fraco, para ganhar os fracos. Tornei-me tudo
para com todos, para de alguma forma salvar alguns” (lCo 9.20-22). Aí está a
flexibilidade pródiga e que honra a Cristo.
Todavia, ao mesmo tempo, independentemente da raça e da cultura que
estivesse servindo na época, Paulo reconhecia que o evangelho é inegociável. Na
maioria das sociedades são relativamente poucos os indivíduos que se dispõem a
reconhecer as limitações morais de seus valores herdados, a aprender a interpretá-
-los por um padrão externo e, caso vejam que é necessário, a restringi-los ou
abandoná-los. Achamos mais fácil interpretar o evangelho pelos critérios da
cultura que recebemos do que o contrário. Entretanto, biblicamente falando,
todas as raças e culturas estão contaminadas pelo pecado. Nos pontos em que o
evangelho conflita com alguma delas, nesses mesmos pontos as pessoas de tais
raças e culturas, que professam sua fé em Jesus e uma aliança com ele, devem
reputar as boas-novas de Jesus Cristo como o fator controlador. O evangelho
purificará e transformará o povo de qualquer cultura, ou, mais especificamente, o
50 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

evangelho purificará e transformará pessoas com qualquer herança cultural que


se curvem sem reserva a Jesus Cristo. Desse modo ele modificará ou eliminará
muitos dos valores culturalmente transmitidos desses novos cristãos; e eles, por
sua vez, poderão em alguma medida influenciar sua cultura e sociedade assim
como o sal exerce influência na comida (cf. Mt 5.13). Contudo, sempre haverá
alguns que se deixam controlar por uma versão ligeiramente “cristianizada” de
sua própria cultura, ou seja, seus valores controladores brotam da cultura herdada,
mesmo quando são valores profimdamente pagãos e não cristãos. A linguagem
cristã pode estar lá; no entanto, o controle não está com o evangelho, e sim
com os valores difundidos da sociedade e da herança que os cerca. Nesse ponto
Paulo é inflexível.
No que diz respeito aos cristãos, sempre que houver um choque entre a
cultura herdada amada e o evangelho de Jesus Cristo, é a primeira que deve
ceder à modificação e à transformação. Fracassar nessa questão é pôr em dúvida
a lealdade de alguém ao evangelho. Compromisso sem restrição às prioridades
da cultura herdada, com o mero acréscimo de alguns elementos selecionados
do cristianismo, traz consigo a inevitável conclusão de Paulo de que o Jesus
pregado é “outro Jesus” (11.4), de que o evangelho proclamado é um “evangelho
diferente”, e de que os que proclamam esse evangelho são “obreiros enganosos,
fingindo-se apóstolos de Cristo” (2Co 11.4,13). Além disso, aqueles cristãos
professos que, assim como os coríntios, mostram-se profimdamente favoráveis a
esses valores de orientação não cristã devem, no mínimo, examinar a si mesmos
outra vez para ver se estão realmente na fé (13.5).
A força plena do apelo de Paulo aos coríntios fica evidente agora. Ele lhes
roga que reavaliem tais intrusos, pois não quer ser audacioso para com eles,
como antecipa ser. Na verdade, ele apela aos coríntios para que voltem à ver­
dade do evangelho e ao ensino e ao exemplo de Cristo Jesus, e assim vejam os
traços das doutrinas dos intrusos pelo que elas são. E nesse meio-tempo, Paulo
insiste enfaticamente que, ao contrário das acusações direcionadas contra ele
pelos intrusos, ele, como cristão, jamais viveu “segundo os padrões do mundo”
(2Co 10.2), tampouco lutou sua batalha espiritual usando armas “humanas” (v. 4).

C. Paulo nega que sua luta seja mundana (10.3,4a)


Paulo naturalmente concorda que o mundo é sua esfera de atividade; mas isso não
significa que o mundo dite a agenda, menos ainda que forneça os instrumentos
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA

para a tarefa. Ele escreve: “Pois, embora vivamos como homens, não lutamos
como o mundo” (2Co 10.3). E então, para que nenhum leitor deixe de captar
a força do que ele disse, Paulo reitera: “As armas com as quais lutamos não são
do mundo” (10.4a).
A NIV fornece uma tradução tão precisa e fluida quanto se pode esperar
da expressão idiomática grega de Paulo; porém, vale a pena refletir um pouco
mais sobre a escolha exata de palavras por Paulo.
Duas palavras merecem menção. Primeiro, a expressão, “vivemos”, em
2Coríntios 10.2 e 10.3a, poderia ser mais literalmente traduzida como “andamos”.
O contexto dessa palavra, tanto aqui quanto em outros lugares nas cartas de
Paulo, inequivocamente mostra que o apóstolo está pensando sobre algo mais do
que o caminhar literal, e o “vivemos” da NIV não deixa de comunicar o sentido.
Porém, talvez seja uma nuance demasiadamente passiva: a força do “caminhar”
de Paulo não é tão restrita quanto “viver”, mas provavelmente tem mais o sen­
tido de “conduzir a própria vida”. Paulo não está simplesmente dizendo que
a esfera de sua existência é o mundo (ainda que em outra parte ele diga isso),
mas que a esfera onde ele conduz sua vida — onde ele vive e desempenha suas
responsabilidades como apóstolo — é este mundo. Ainda assim, ele insiste, as
armas de seu apostolado não são “do mundo”.
Ainda mais importante é o fato de que Paulo continua a usar a palavra
“carne” ou “carnal” (veja p. 46). Paulo conduz sua vida, literalmente, “na carne”
(como um ser humano); mas ele não guerreia segundo a carne, pois as armas
de sua batalha não são carnais. Já vimos (2Co 10.2) que o termo “carne” pode
significar coisas diferentes no uso de Paulo: por um lado, Paulo pode dizer que
os cristãos não mais estão “na carne” (Rm 8.9, RSV), querendo dizer que eles
não vivem mais pelas propensões da natureza humana caída, egocêntrica e
pecaminosa; por outro lado, ele admite viver “na carne” (G1 2.20, RSV), que­
rendo dizer que vive em seu corpo, no mundo físico. Entretanto, seus oponentes,
como vimos, acusaram-no de conduzir sua vida segundo a carne (2Co 10.2),
querendo dizer que ele está aquém dos elevados padrões espirituais que alegam
ter. Assim, descobrimos três significados para o termo “carne” até aqui:

1. natureza pecaminosa, o homem em rebelião contra Deus — como em


Romanos 8.9;
2. existência física, corpo, realidade física na qual ainda vivemos — como
em Gálatas 2.20;
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

3. espiritualidade de baixo nível, de padrões mundanos ou inferiores,


segundo a definiam os opositores de Paulo, que o acusavam disso — como
em 2Coríntios 10.2.

A questão é: O que Paulo quer dizer quando usa o termo em suas duas
ocorrências em 10.3?
Em certo nível, a questão é fácil de responder. Na primeira parte do ver­
sículo 3, Paulo concorda que conduz sua vida na carne, adotando o sentido
número 2. Na segunda parte do versículo 3, e na primeira parte do versículo 4,
Paulo insiste que ele não luta segundo a carne — sem dúvida negando simul­
taneamente qualquer associação com as acepções 1 e 3 do termo “carne”.
No entanto, em um nível mais profundo, a resposta de Paulo gira em torno
de uma compreensão profunda da escatologia, introduzindo-nos a muito do
que ele vai dizer aos coríntios nos capítulos seguintes. Os escritores do Novo
Testamento, inclusive Paulo, entendem que Jesus Cristo, por sua morte, res­
surreição, ascensão e exaltação à destra de Deus nas alturas, já inaugurou o
reino messiânico há muito prometido pelos profetas e esperado por aqueles
com discernimento espiritual dentre o povo de Deus. Deus já nos resgatou
do poder das trevas e nos trouxe para o reino do Filho amado (Cl 1.13). Ao
mesmo tempo, o reino não despontou em sua plenitude: ele só se consumará
com a volta do Senhor Jesus, quando toda a criação será restaurada (Rm 8.19-
21). Em certo sentido, portanto, a igreja vive em extraordinária tensão entre o
que “já” é e o que “ainda não” é: os cristãos já desfrutam parte dos benefícios
do reino — são absolvidos diante de Deus, ganham a vida eterna, a presença
do Espírito Santo como sinal da herança final, o perdão de seus pecados, a
comunhão profunda com outros filhos de Deus, a certeza de que seu Salvador
e Senhor ressurreto já está reinando com toda a autoridade de seu Pai; todavia,
os cristãos ainda não desfrutam de todas as bênçãos que um dia serão suas: a
libertação da morte, a completa destruição do poder do pecado, a posse de
corpos ressurretos, o livre alcance a um novo céu e uma nova terra, a adoração
imaculada ao Deus triúno, a bem-aventurança do amor e da santidade puros,
a perfeição da comunhão. Desse modo, a escatologia do Novo Testamento
não tem um foco restrito nas últimas coisas, mas inclui a maravilhosa notícia
de que as últimas coisas, em certo sentido, já chegaram. A escatologia neotes-
tamentária lida alternadamente com o que ainda há de vir e com aquilo que
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA

chegou de maneira impactante, inesperada e magnificente. Em outras palavras,


ela é, simultaneamente, escatologia futura e realizada.
O erro em manter esse equilíbrio gera não apenas erros teológicos, mas
também problemas no aspecto moral e no estilo de vida de gravidade conside­
rável. A ênfase exagerada em aspectos futuristas da escatologia, em detrimento,
por exemplo, dos aspectos realizados, pode fomentar especulação não saudável a
respeito do que Deus não revelou, fixação de data para a volta de Cristo, negação
das graças e dos benefícios que já recebemos e depreciação da importância de
vivermos juntos como cristãos, o que representa uma espécie de posto avançado
do novo céu e da nova terra. O desequilíbrio oposto pode nos levar a negligen­
ciar as promessas que a Bíblia nos dá no tocante ao futuro, a esquecer de viver
aguardando e desejando a volta de Cristo e a agir como se a plenitude de tudo
o que Cristo providenciou por sua obra na cruz já fosse nossa.
Infelizmente, ao longo de todo o registro de sua peregrinação espiritual,
os coríntios foram inclinados a cometer o segundo erro, o qual alguns têm
denominado de escatologia ultrarrealizada. Eles tinham o entendimento cor­
reto de que a salvação que Cristo oferece eleva pobres pecadores à condição de
sacerdotes e reis; no entanto, enfatizavam tanto esses temas que começaram a
se aprumar como pavões, esquecendo-se que, até a parúsia, a igreja é também
chamada ao testemunho sofredor (lCo 4.8-13). Os coríntios tinham a tendência
de realçar sua liberdade em Cristo (cap. 8), mas ignoravam o fato de que essa
perfeita liberdade só é possível onde há perfeita virtude — e a igreja ainda não
tinha atingido esse ponto. Logo, a liberdade deve ser expressa — e moderada!
— pela abnegação amorosa; mas disso os coríntios aprenderam pouco. Eram
ávidos seguidores dos dons espirituais e estimavam sobretudo aqueles dons que
alimentavam seus egos inflados (caps. 12,14). De acordo com o ponto de vista
deles, exibições extravagantes de dons provavam o nível de espiritualidade de
uma pessoa, o quanto ela tinha se apropriado de todas as bênçãos que Jesus
Cristo já propiciara. Essa patética demonstração de superioridade espiritual era
indubitavelmente parte da causa do espírito partidário que arruinava a igreja
(1.12); pois de certo modo eles nunca aprenderam a seguir o “caminho ainda
mais excelente” (12.3b —13.13), o caminho do amor que se doa, mais bem
exemplificado na missão terrena de Jesus. Em resumo, os coríntios eram rápi­
dos em se apropriarem de toda ênfase no cristianismo que falasse (ou desse a
impressão de falar) de poder espiritual, de exaltação com Cristo, de liberdade,
de triunfo, de vida cristã vitoriosa, de liderança, de sucesso religioso; porém,
54 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

negligenciavam ou reprimiam aqueles destaques no cristianismo que focavam


na mansidão, no ato de servir, na obediência, na humildade, bem como na
necessidade de seguir a Cristo no sofrimento caso pretende segui-lo em sua
coroa. Eles vislumbravam o que Cristo tinha realizado, todavia, fracassavam
em contemplar o que restava a ser feito; entendiam que o dia D havia chegado,
mas confundiam com o dia V Amavam o triunfalismo cristão, mas não sabiam
como viver debaixo do sinal da cruz.
A luz disso, a declaração de Paulo em 2Coríntios 10.3 adquire nova pro­
fundidade. Paulo não meramente admite, mas na realidade insiste em que vive
no mundo, em que conduz sua vida na carne; pois os coríntios estavam dis­
postos a se acharem tão espirituais que questões carnais ou mundanas pouco
lhes interessavam. Ao que parece, os intrusos contavam muitas histórias de suas
experiências extáticas e visionárias, e por meio disso aumentavam grandemente
sua credibilidade (veja 12.1-10); mas ainda que Paulo, em uma notável visão, não
saiba dizer se estava no corpo ou fora dele (12.2,3), ele está bastante certo de que
sua esfera normal de atuação é no corpo, na carne, no mundo. Ocasionalmente
ele pode ter profundos desejos de partir deste mundo, deixar o corpo e estar
com Cristo (Fp 1.21-23); entretanto, entende que permanecer neste mundo e
no corpo é o que o habilita a ser um servo tão produtivo para as igrejas (1.24).
Ao mesmo tempo, Paulo insiste com igual veemência que, por mais que viva
no mundo, suas armas não são do mundo. Se Paulo está certo sobre esse ponto,
então não somente seus detratores estão errados como até a capacidade deles de
discernir realidades espirituais é posta em dúvida. Eles julgam as armas de Paulo
como mundanas, mas ele afirma o oposto: a divisão entre Paulo e os intrusos
não somente é bem delineada, mas fundamental.
Assim, fica evidente que Paulo não vê os problemas diante de si como
se não passassem de um conflito de personalidades, de uma disputa de poder
desagradável, suja e mesquinha. Toda a orientação do sistema de valores dos
triunfalistas está invertida: eles alegam ser espirituais precisamente naquelas áreas
em que Paulo alega estar no mundo, e acusam o apóstolo de ser mundano preci­
samente naquelas áreas em que Paulo insiste que suas armas são espirituais! Isso
acarreta uma escatologia perturbadoramente distorcida: os intrusos promoviam
uma escatologia ultrarrealizada na qual ignoravam a verdade elementar de que
os cristãos ainda conduzem suas vidas neste mundo. Em relação ao genuíno
discernimento espiritual, os intrusos mostram-se praticamente falidos à medida
que avaliam os dons de Paulo pelos fugazes padrões da retórica da época ou
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 55

procuram confirmar as credenciais de um pregador pelo tamanho do grupo de


seus adeptos ou pela riqueza em sua carteira.
Talvez no espantemos com o fato de que cristãos professos — além do mais,
líderes,— possam estar tão profundamente errados e enganados. Mas antes de
pensarmos em paralelos modernos e de refletirmos sobre como aplicar a defesa
de Paulo aos dias de hoje, talvez devamos primeiramente tomar nota de sua
alegação em contrário.

D. As especificações de Paulo sobre a natureza


e o propósito de suas armas (10.4b,5)
O trecho de 2Coríntios 10.4a não apenas reitera e reforça o versículo 3, mas
também prepara o terreno para a alegação positiva de Paulo: a alegação em
contrário de que as armas de Paulo “são poderosas em Deus para destruir for­
talezas”. Contudo, essa curta frase de Paulo faz duas declarações cruciais. Ele
especifica a natureza de suas armas e estipula seu propósito. O versículo 5 é mais
uma descrição pormenorizada desses pontos.
As armas de Paulo “são poderosas em Deus”. O grego é ligeiramente
ambíguo,1 mas o ponto principal fica claro: as armas de Paulo são poderosas
porque estão relacionadas a Deus. Longe de serem carnais ou do mundo, elas
são espirituais e, portanto, têm poder (Lietzmann).
O contraste que Paulo está estabelecendo não deve ser ignorado. Ele não
está, digamos, comparando tanques, rifles e mísseis com a oração, o jejum e a
pregação. O lado carnal ou mundano do contraste depende da interpretação
de 2Coríntios 10.3,4a: armas mundanas ou segundo os padrões humanos nesse
contexto são os tipos de instrumentos apreciados pelos intrusos: genialidade
humana, retórica, teatralidade, um certo exibicionismo e petulância nas pre-
sunções espirituais, encanto, carisma pessoal impactante. Eles não encontrarão
essas armas no arsenal de Paulo. Assim, julgam-no inferior, mas Paulo responde
repudiando essas armas abertamente. Ele não quer se defender por meio delas,

'O grego dynata to theo pode ser entendido como uma dessas quatro formas: (1) dativo
instrumental: as armas de Paulo são “tornadas poderosas por Deus”; (2) hebraísmo: as armas de
Paulo são “divinamente poderosas” ou “sobrenaturalmente poderosas”; (3) dativo de respeito:
as armas de Paulo são “poderosas na perspectiva de Deus”; (4) dativo de vantagem: as armas
de Paulo são “poderosas para Deus”, i.e., para o serviço de Deus. As duas primeiras opções
são conceitualmente bastante próximas, e a NIV pressupõe ou uma ou outra. Mas todas as
nossas quatro opções de alguma maneira relacionam as armas e seu respectivo poder a Deus.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

posto que suas armas são de um tipo inteiramente diferente. As armas do após­
tolo são espirituais e poderosas em Deus (ou poderosas da perspectiva de Deus
ou para o serviço dele).
Mas o que as armas de Paulo podem fazer? Se concordamos que elas são
poderosas, como o seu poder se manifesta? Isso nos leva ao segundo elemento
na declaração do apóstolo. Suas armas, afirma ele, têm poder “para destruir
fortalezas” (v. 4). O simbolismo de Paulo traz à mente uma forma de batalha
clássica no mundo antigo. Uma próspera cidade não somente edificaria uma
sólida muralha para sua segurança, mas em alguma parte da muralha talvez
também construísse uma fortaleza, isto é, uma torre extremamente fortificada
que poderia ser defendida por relativamente poucos soldados. Mesmo que as
muralhas da cidade tivessem brechas abertas pelo inimigo, as forças de defesa
poderíam se retirar para a fortaleza e fazerem uma defesa final ali. Uma vez
que a fortaleza fosse tomada, a guerra estava acabada. Enaltecendo a sabedoria,
Provérbios 21.22 diz: “O sábio conquista a cidade dos valentes e derruba a for­
taleza em que eles confiam”. Usando justamente essa linguagem, Paulo alega
que suas armas são poderosas em Deus “para destruir fortalezas”.
O que isso significa em linguagem não metafórica? Paulo esclarece sua
metáfora na frase seguinte. Ele prossegue com o tema de destruição, mas
muda o alvo: “Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o
conhecimento de Deus” (v. 5). A palavra traduzida por “argumentos” pode ser
traduzida por “pensamentos” ou “planos”. Ela tem a mesma raiz que um termo
que Paulo usa em outra passagem com sentido muito similar. Por exemplo, Paulo
descreve a deterioração progressiva da raça humana quando diz que as pessoas,
mesmo “tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe
renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações
insensatos se obscureceram” (Rm 1.21). “O Senhor conhece os pensamentos dos
sábios e sabe como são fúteis” (ICo 3.20). Novamente, Paulo diz aos crentes:
“Façam tudo sem queixas nem discussões...” (Fp 2.14). Portanto, quando ele
nos diz que suas armas destroem argumentos, ele não quer simplesmente dizer
que pode vencer qualquer oponente em um debate e o fazer sair envergonhado
do palanque. Ele quer dizer algo muito maior: as armas dele destroem o modo
de as pessoas pensarem, destroem seus padrões de pensamento pecaminosos, as
estruturas mentais por meio das quais vivem a vida em rebelião contra Deus.
Em suas próprias palavras, suas armas espirituais derrubam “toda pretensão que
se levanta contra o conhecimento de Deus” (v. 5).
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA

O que Paulo tem em mente está relacionado com a própria raiz do pecado
em nossa vida. A declaração “... toda pretensão que se levanta contra o conhe­
cimento de Deus” abrange toda afirmação arrogante, todo pensamento altivo,
todo ato de orgulho que forma uma barreira ao conhecimento do Deus vivo.
Somos criados dependentes; o coração do pecado é rebelião contra Deus, uma
atitude pervasiva que quer, acima de tudo, ser independente de Deus. Esse
impulso obstinado por independência é a raiz do pecado, o mal central que
com justiça atrai a ira de Deus. Nós desprezamos “o conhecimento de Deus”
(Rm í .28, cf. v. 18-32). Em vez de buscar tal conhecimento, levantamos pretextos
para afastá-lo. Alegamos dúvida intelectual, apelamos a argumentos sofistas e
ao ceticismo, demonstramos um cinismo atrevido e altivo; ou simplesmente
nos mantemos desinteressados e distantes, reivindicando uma independência
intelectual que aprecia o debate teológico, mas nunca dobra o joelho em
culto de adoração. Mas não ponderamos adequadamente sobre a catastrófica
implicação. Como nos afastamos do conhecimento de Deus, ele nos entrega
a uma mente depravada. Esvaziados de tal conhecimento, ficamos não apenas
cheios de nós mesmos, mas “de injustiça, maldade, ganância e depravação”.
Tornamo-nos “cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e malícia”.
Degeneramo-nos até virarmos “bisbilhoteiros, caluniadores, inimigos de Deus,
insolentes, arrogantes e presunçosos”. Inventamos “maneiras de praticar o mal”,
desobedecemos a nossos pais, passamos a ser “insensatos, desleais, sem amor,
implacáveis”. Pior, ainda que conheçamos “o justo decreto de Deus, de que as
pessoas que praticam tais coisas merecem a morte”, “não somente continuamos
a praticá-las, mas também aprovamos aqueles que as praticam” (Rm 1.28-32).
Eis porque “toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus”
(2Co 10.5) é tão terrivelmente séria e profundamente ligada à raiz do pecado
em nossa vida. Não podemos conhecer a Deus a partir de uma postura de arro­
gância e cinismo, pois tais atitudes não são apenas fundamentalmente contrárias
à nossa dependência como criaturas, também são fundamentalmente opostas
ao único conhecimento de Deus aberto a pobres pecadores, ou seja, Jesus
Cristo crucificado.
Esse é o âmago da questão; e é algo que Paulo tinha. “Visto que, na sabedoria
de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou
a Deus salvar aqueles que creem por meio da loucura da pregação. Os judeus
pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos
a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

gentios” (ICo 1.21-23). Em geral, os judeus esperavam um Messias triunfante


que derrotaria as forças de Roma e restabelecería a independência e a supre­
macia de Israel. É improvável que um Messias que tivesse de morrer a morte
ignominiosa de um criminoso desonrado fosse considerado poderoso o bastante
para enfrentar Roma ou digno o bastante para ser seguido. Mesmo os relatos
de sua ressurreição não puderam apagar o estigma de sua própria humilhação:
por isso, o Cristo crucificado era um escândalo. Porém, os gentios, de modo
geral, aderiam a padrões religiosos que defendiam o aprimoramento pessoal de
várias maneiras. A salvação conquistada pela morte de outra pessoa era estranha
e até mesmo tola; podia-se quase questionar se tal suposto salvador poderia ser
de alguma valia se carecia tanto de integridade e habilidade a ponto de morrer
uma morte desprezível.
Paulo poderia ter prosseguido com sua ilustração, pois o conceito de Cristo
crucificado é fimdamentalmente ofensivo. O budista acredita que pode purificar
a si próprio; o hindu conta com incontáveis ciclos de reencarnação à medida
que penosamente caminha para o alto, em direção ao Nirvana; o muçulmano
insiste que Deus é tão poderoso que pode simplesmente perdoar sem se repor­
tar a qualquer sacrifício expiatório; os supersticiosos religiosos podem tratar
um crucifixo como se fosse um talismã, uma bugiganga mágica para repelir
o infortúnio e o desastre; os religiosamente sofisticados podem se ocupar de
debates teóricos sobre a expiação e a natureza do corpo da ressurreição, mas
demonstrarem pouca confiança no Messias e em sua obra na cruz. Para todos
eles, Cristo crucificado pode ser ainda uma pedra de tropeço ou insensatez; “mas
para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de
Deus e a sabedoria de Deus” (ICo 1.24).
O problema que Paulo confronta agora destaca-se com nitidez. Por desígnio
de Deus na criação, somos seres dependentes cujo propósito é conhecer a Deus,
adorá-lo e nele confiar, e a raiz de nosso pecado é a rebelião contra esse sábio
desígnio. Pelo plano de redenção divino, somente há esperança de perdão e
vida àqueles que se curvam diante da cruz e recebem o perdão dos pecados e a
pessoa do Espírito como livres dons da graça. Em contraste, os triunfalistas, os
autossuficientes, pessoas não quebrantadas que não querem ou não conseguem
pensar em dobrar o joelho, desprezam esse plano salvífico como partidarismo
religioso ou como um estrondoso absurdo. O problema é um só: a arrogância
humana, não desejosa de aprender ou de se arrepender, apressa-se a erigir novas
desculpas contra o conhecimento de Deus, novos argumentos vindos de uma
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 59

posição artificial de poder intelectual para descartar o “cristianismo simples”


ou rejeitá-lo como “ópio do povo”. Pior, tais pretextos vergonhosos muitas
vezes adotam a linguagem e o ritual do cristianismo bíblico e sistematicamente
eliminam seu poder, investindo-o de novo significado, até que no final outro
Jesus está sendo pregado (cf. 2Co 11.4).
O arsenal espiritual de Paulo dispõe de poder para destruir precisamente
argumentos e pretextos como esses. Ele agora expande a linguagem bélica: suas
armas não apenas destroem essas fortalezas mentais, elas são poderosas o suficiente
para levar “cativo todo pensamento, para tomá-lo obediente a Cristo” (2Co 10.5).
A imagem é a de uma expedição militar em território inimigo, uma expedição
tão eficaz que todo plano do inimigo é frustrado, todo esquema desfeito, toda
contraofensiva derrotada. Mais: esses desígnios e esquemas de homens pecami­
nosos são capturados por Cristo e trazidos para debaixo de uma nova autoridade.
A ideia do versículo não é apenas que Cristo toma tal controle das pessoas e elas
passam a ter pensamentos santos (ainda que seja verdade: cf. Fp 4.8), mas que
suas estruturas mentais, seus planos e esquemas são dominados e transformados
conforme entram em uma nova aliança. Usando suas armas espirituais, Paulo
leva cativo todo esquema (como a mesma palavra é traduzida em 2.11), toda
mente (como está traduzido em 2Co 11.13), e os torna obedientes a Cristo.
O objetivo de Paulo ao fazer essa declaração extraordinária parece ser triplo.
Primeiro, é destacar a natureza do conflito. Se as armas do cristão são essencial­
mente espirituais, assim também é o conflito — um ponto que Paulo defende em
outra parte, quando escreve que nossa batalha não é contra “a carne e o sangue”
(i.e., contra homens mortais), mas contra uma vasta hoste de inimigos espirituais
(Ef Ó.12). Segundo, o objetivo de Paulo é insistir no fato de que suas armas estão
produzindo resultados. O que espanta na pregação do evangelho por Paulo no
primeiro século é que, apesar de sua mensagem ser uma pedra de tropeço para
os judeus e um disparate total para os gentios, pessoas desses dois grupos esta­
vam se convertendo. O evangelho pode ser escândalo para alguns e loucura para
outros, mas é poderoso o bastante para capturar representantes dessa raça altiva e
não regenerada. Muitos que apreciam a própria “liberdade” e desdenhosamente
preterem o Cristo crucificado vêm com o tempo a aceitar seu senhorio, estimar
sua cruz, abandonar a exaltação própria e a trocá-la por abnegação e obediência.
Há um terceiro objetivo esclarecido pelo contexto. Visto que Paulo está
opondo suas armas espirituais e poderosas às reivindicações de liderança apre­
sentadas pelos intrusos, ele está não apenas esclarecendo a natureza e propósito
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

de suas próprias armas, mas implicitamente expondo a natureza e futilidade


das armas dos intrusos para o conflito que se aproxima. É bem verdade que os
argumentos, a retórica, a vangloria, os métodos, as supostas experiências extá­
ticas dos intrusos, entre outras coisas que alegam, podem conquistar seguidores,
empolgar uma igreja, conquistar certa fama; porém, será que podem transformar
pessoas? As armas de Paulo são poderosas em Deus para destruir as convicções
e pretensões daqueles que colocam a si e a sua razão autodeclarada “autônoma”
em oposição à verdade divina, e são poderosas em Deus para capturar as mentes
e opiniões desses que um dia foram rebeldes: podem os falsos apóstolos reivindi­
carem o mesmo para suas armas? Na verdade, Paulo quase sugere que as armas
deles não somente são ineficazes para a tarefa à mão, mas que, de fato, consti­
tuem parte do problema, parte do mundo mental rebelde do homem pecador,
que quer ser o centro autossuficiente do universo, em vez de se curvar a Deus
e à sua verdadeira revelação. Os intrusos podem ser bons em seduzir a igreja
e introduzir outro evangelho; mas será que eles são bons em quebrantar seres
humanos arrogantes e os levar ao refúgio da cruz? O fato disso estar incluído
no protesto de Paulo fica confirmado alguns versículos adiante, quando, como
veremos, ele destaca que sua proclamação do evangelho chegou com êxito, até
Corinto (2Co 10.13—15a) — que é a razão pela qual os próprios coríntios são
cristãos! Que credenciais similares podem os intrusos apresentar?
Quais são as armas espirituais de Paulo, essas armas dotadas de tão magnífico
poder? Podemos deduzir a maioria delas desses capítulos; contudo, o próprio
Paulo fornece uma lista conveniente em Efésios 6.13-18, onde exorta os crentes
a vestirem “toda a armadura de Deus”. Ao usar a metáfora ampliada do equipa­
mento usado e carregado por um soldado romano comum de infantaria, Paulo
lista os elementos essenciais do armamento cristão:2 a verdade do evangelho, a
justiça, a prontidão e a coragem nascidos de uma profunda compreensão do
evangelho de paz, fé e salvação, evangelho que é em si mesmo a Palavra de Deus,
e ainda a oração vigilante.
Essas são as poderosas armas de Paulo! Nenhuma delas depende de truques,
muito menos de pretensões humanas altivas. E verdade que Paulo está pronto a
empregar todos os meios legítimos para salvar alguns (lCo 9.22), assim como
hoje podemos legitimamente usar computadores, televisão e meios impressos.

2Na metáfora ampliada de Paulo em Efésios 6.14-17, é importante reconhecer que os genitivos
são epexegéticos. Tal como na expressão “a cidade de Jerusalém” a cidade é Jerusalém, assim
também, na expressão “a couraça da justiça”, a couraça é a justiça.
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 61

Mas, em última análise, a compreensão que Paulo tinha acerca da natureza de


suas armas eficazes e espirituais (quando contrastadas a alguns meios externos)
continua a valer para nossos dias como valia para os dias dele.
Agora estamos em melhor situação para pensar nesse texto com mais
atenção, sobre como ele fala ao evangelicalismo contemporâneo, sobretudo ao
ocidental. Com o risco de incorrer numa simplificação exagerada, podemos
dividir o evangelicalismo em dois grupos. O primeiro grupo é relativamente
sereno. Segue o que é aceito, é basicamente fiel (esp. em questões formais), mas
pouco conhece do poder do evangelho. O segundo grupo é agressivo, ativo e
triunfalista. É grande a dose de mentalidade autoconfiante envolvida aqui. Esse
grupo conquista uma audiência substancial, espera ver vitória e alegria em seus
seguidores e dedica enorme energia e muitas habilidades à tarefa de promover
sua visão do evangelho.
Essa descrição é uma caricatura óbvia. Há muitos cristãos que não se encai­
xam em nenhum dos dois grupos. Mas o modelo abrange extensos blocos do
cristianismo ocidental e vale a pena fazer uma pausa para perguntar que impacto
o texto deve exercer nesses grupos.
O segundo grupo, em sua forma mais virulenta, sofre de uma escatologia
ultrarrealizada — como os coríntios sofriam. Os cristãos desse grupo engran­
decem tanto as muitas promessas de Deus em relação a saúde, prosperidade e
vitória que refletem pouco sobre o que a Bíblia também diz sobre sofrimento,
perseguição, coragem na derrota e morte. Influenciados de maneira profunda,
embora inconsciente, pelo materialismo que nos cerca e pelo ideal ocidental
da clássica história de sucesso, eles transferem esses modelos para dentro da
igreja; e, por desconhecerem tanto a história da igreja quanto o equilíbrio das
Escrituras, ficam expostos a mestres cuja compreensão do evangelho bíblico
é bastante distorcida. Direi mais sobre essas coisas, fornecendo mais exemplos
concretos; por ora, mesmo partindo dos versículos em análise (esp. 2Co 10.3-5),
é importante chamar a atenção para características trágicas, tais como a pro­
moção pessoal na liderança cristã e uma profunda dependência de manipu­
lação psicológica, circulação maciça de fórmulas superficiais de como fazer
para alcançar maturidade espiritual e prosperidade material instantâneas, bem
como um franco apelo a interesses próprios sem fim. Tamanha é a influência
dessas características trágicas que outras características, como o elementar
morrer diariamente para si mesmo (= tomar sua cruz e seguir ao Senhor Jesus
Cristo), a maturidade estimulada pelo sofrimento (= crer que a graça de Deus
62 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

se aperfeiçoa na fraqueza) e a abolição de técnicas duvidosas e manipuladoras


(= rejeitar um estilo de proclamação que não passa de palavras persuasivas de
sabedoria humana, ICo 2.4) acabam ignoradas ou soterradas sob a avalanche
de histórias de sucesso.
Enquanto isso, o primeiro grupo evita o triunfalismo do segundo e às vezes
o critica; porém, em vez de empunharem as armas poderosas e divinas de Paulo,
os membros desse grupo passam por propostas formais de religião, aderem a
confissões ortodoxas, esperam pouco da bênção ou da alegria real no Senhor e
experimentam menos ainda delas.
O resultado é que ambos os grupos, embora por razões distintas, se afastam
das armas que Paulo recomenda e, à medida que pertencemos a qualquer deles,
descobriremos, consequentemente, caso sejamos honestos em nossa autocrítica,
que às nossas armas falta poder divino para destruir as fortalezas que interessam
a Paulo. Por que há um número crescente de “evangélicos” sem que haja um
aumento correspondente do culto centrado em Deus, do arrependimento, da
fé sem fingimento, da humildade e da justiça? Sem dúvida, há muitas exce­
ções individuais, muitos cristãos que foram de fato transformados pela graça
de Deus; mas em termos numéricos estes cristãos ficam tão aquém daqueles
que se julgam cristãos evangélicos que devemos perguntar se algumas formas
de evangelicalismo não estão progressivamente entrando em descompasso com
as Escrituras sobre pontos como esses.
Colocarei a questão sob uma luz mais positiva. Uma das coisas que mais
necessitamos no cristianismo ocidental é uma volta ao equilíbrio de Paulo. De
um lado, devemos reconhecer que vivemos no mundo: é normal o fato de que
algumas bênçãos escatológicas ficarão retidas até a consumação. Ao mesmo
tempo, embora as armas que Deus nos tem dado para a batalha espiritual sejam
divinamente poderosas, elas estão amarradas à própria natureza desse evangelho
“louco” que proclamamos. Discuta com um cético de forma mais agressiva, e
você não levará a mente dele cativa a Cristo. Mas ore por ele, proclame o evan­
gelho a ele, viva o evangelho da paz, caminhe em retidão pela fé, até ele sentir
que sua lealdade maior e sua cidadania são amplamente diferentes das dele, e
pode ser que você venha a descobrir que o poder da verdade, a obra do Espírito
Santo, de convencimento do pecado e de regeneração, bem como as glórias de
Cristo despedaçarão os raciocínios do cético e destruirão seus argumentos até
que você faça a mente e o coração dele cativos, a fim de que se tomem obedientes
a Cristo. O resultado será uma vida transformada. O típico egocentrismo e a
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA 63

autoproclamada independência se tornarão coisas do passado. Abrir mão deles


será uma alegre e dedicada submissão ao senhorio de Cristo. Somente as armas
que Paulo defende são suficientes para realizar uma tarefa de tal porte. Na arena
espiritual, uma campanha bem-sucedida só pode ser pelejada quando colocamos
de lado as armas deste mundo de modo consciente e colocamos firmemente toda
nossa confiança nas armas espirituais, as únicas que dispõem de poder divino
para destruir as fortalezas onde mentes rebeldes se apegam à autossuficiência
idólatra que rejeita a Deus e inventam novas formas do mal arraigado. Paulo
faz um chamado para que voltemos aos fundamentos da Bíblia.

E. A promessa de disciplina de Paulo contra os agitadores


— uma promessa declarada à igreja obediente (10.6)
O apelo de Paulo (2Co 10.2) fecha o círculo. Ele implorou à igreja para adotar
o tipo de atitude necessária para silenciar “alguns” que o estavam acusando de
mundanismo; agora ele afirma sua própria disposição em “punir todo ato de
desobediência” (v. ó) tão logo a igreja dê seu passo preliminar de obediência.
Esse versículo frequentemente é mal compreendido. Alguns o entendem
no sentido de que, uma vez que os coríntios se arrependeram e obedientemente
se voltaram a Paulo e à sua doutrina, ele então virá a eles com castigo pelos
atos passados de desobediência que cometerem. Isso não é muito realista. Para
começar, uma interpretação assim torna a promessa de punição feita por Paulo
um desestimulo ao arrependimento: ele os castigará tão logo eles cumpram as
ordens! Além disso, deixa Paulo na perigosa posição de se mostrar mais uma
vez como uma pessoa fraca e inexpressiva: ele não consegue sequer exercer um
pouco de disciplina até que os coríntios tenham endireitado seu próprio rumo.
O que Paulo está realmente dizendo é que estará pronto a punir todo ato
de desobediência por parte dos intrusos e de qualquer um que insista em segui-los,
uma vez que a igreja em conjunto tenha aprimorado ou completado a própria
obediência, aplicando a espécie de disciplina até então notoriamente ausente.
Isso não significa que Paulo tivesse medo de agir de modo unilateral ou que
não tivesse forças para fazer isso. Aliás, mais adiante ele utiliza uma linguagem
muito forte para descrever sua prontidão pessoal em disciplinar a igreja inteira
(2Co 13.1-3,10); mas aqui ele faz um apelo em favor da fé obediente por parte
da própria igreja, de modo que suas sanções apostólicas especiais (cuja natureza
discutirei mais tarde) venham a ser aplicadas apenas a uma pequena minoria, e
DESOBEDIÊNCIA VERSUS DISCIPLINA

autoproclamada independência se tornarão coisas do passado. Abrir mão deles


será uma alegre e dedicada submissão ao senhorio de Cristo. Somente as armas
que Paulo defende são suficientes para realizar uma tarefa de tal porte. Na arena
espiritual, uma campanha bem-sucedida só pode ser pelejada quando colocamos
de lado as armas deste mundo de modo consciente e colocamos firmemente toda
nossa confiança nas armas espirituais, as únicas que dispõem de poder divino
para destruir as fortalezas onde mentes rebeldes se apegam à autossuficiência
idólatra que rejeita a Deus e inventam novas formas do mal arraigado. Paulo
faz um chamado para que voltemos aos fundamentos da Bíblia.

E. A promessa de disciplina de Paulo contra os agitadores


— uma promessa declarada à igreja obediente (10.6)
O apelo de Paulo (2Co 10.2) fecha o círculo. Ele implorou à igreja para adotar
o tipo de atitude necessária para silenciar “alguns” que o estavam acusando de
mundanismo; agora ele afirma sua própria disposição em “punir todo ato de
desobediência” (v. 6) tão logo a igreja dê seu passo preliminar de obediência.
Esse versículo frequentemente é mal compreendido. Alguns o entendem
no sentido de que, uma vez que os coríntios se arrependeram e obedientemente
se voltaram a Paulo e à sua doutrina, ele então virá a eles com castigo pelos
atos passados de desobediência que cometerem. Isso não é muito realista. Para
começar, uma interpretação assim torna a promessa de punição feita por Paulo
um desestimulo ao arrependimento: ele os castigará tão logo eles cumpram as
ordens! Além disso, deixa Paulo na perigosa posição de se mostrar mais uma
vez como uma pessoa fraca e inexpressiva: ele não consegue sequer exercer um
pouco de disciplina até que os coríntios tenham endireitado seu próprio rumo.
O que Paulo está realmente dizendo é que estará pronto a punir todo ato
de desobediência por parte dos intrusos e de qualquer um que insista em segui-los,
uma vez que a igreja em conjunto tenha aprimorado ou completado a própria
obediência, aplicando a espécie de disciplina até então notoriamente ausente.
Isso não significa que Paulo tivesse medo de agir de modo unilateral ou que
não tivesse forças para fazer isso. Aliás, mais adiante ele utiliza uma linguagem
muito forte para descrever sua prontidão pessoal em disciplinar a igreja inteira
(2Co 13.1-3,10); mas aqui ele faz um apelo em favor da fé obediente por parte
da própria igreja, de modo que suas sanções apostólicas especiais (cuja natureza
discutirei mais tarde) venham a ser aplicadas apenas a uma pequena minoria, e
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

em conjunto com a disciplina eclesiástica. Em resumo, ele está escrevendo para


ver se os coríntios “suportariam o teste e seriam obedientes em tudo” (2Co 2.9),
não apenas porque agir com rigor é seu último recurso, mas também porque
quer dar toda oportunidade possível para os coríntios darem por si mesmos
passos responsáveis. Esse é o peso do apelo de Paulo, como o foi em uma questão
disciplinar anterior (cf ICo 5.1-10). Isso reflete com precisão o alto valor que
Paulo atribui à ação disciplinar realizada pela igreja em conjunto, não só por tal
ação coletiva gerar maturidade coletiva, mas também por ser o único tipo de
ação eclesiástica genuinamente potente. Somente se a igreja como corpo fizer
os ofensores sentirem o aguilhão do opróbrio e a vergonha de um repúdio
firme, porém feito em amor, a medida se provará eficaz. Paulo, portanto, roga
(2Co 10.2) aos crentes coríntios que tomem essas duras decisões e assegura à
igreja que, com o despertar de sua obediência, ele mesmo acrescentará punição
apostólica aos ofensores que continuarem a atribular a igreja com difamações
não somente ao apóstolo, mas ao evangelho que ele prega.
Paulo faz um apelo à fé obediente. Os coríntios agora deparam com uma
nítida escolha, apresentada por um apóstolo que faz seu apelo suplicante pela
mansidão e bondade de Cristo. Ou continuam a viver na desobediência, ou
exercem a disciplina eclesiástica. A fé obediente manifestada em plenitude não
é puramente privada e pietista; ela traz consigo a responsabilidade da disciplina
coletiva. A igreja que esquece ou negligencia essa lição, mais cedo ou mais tarde
se tornará muito mais uma “associação mista” do que aquilo que deve ser. Sua
autoproclamada tolerância e sofisticação podem ser nada mais do que um mero
indicador de sua desobediência.
A feiura de ostentar superioridade espiritual
3 Como não se gloriar no Senhor

Vocês observam apenas a aparência das coisas. Se alguém está convencido


de que pertence a Cristo, deveria considerar novamente consigo mesmo
que, assim como ele, nós também pertencemos a Cristo. Pois mesmo
que eu tenha me orgulhado um pouco mais da autoridade que o Senhor
nos deu, não me envergonho disso, pois essa autoridade é para edificá-
-los, e não para destruí-los. Não quero que pareça que estou tentando
amedrontá-los com as minhas cartas. Pois alguns dizem: “As cartas dele
são duras e fortes, mas ele pessoalmente não impressiona, e a sua palavra
é desprezível”. Saibam tais pessoas que aquilo que somos em cartas,
quando estamos ausentes, seremos em atos, quando estivermos presentes.
Não temos a pretensão de nos igualar ou de nos comparar com
alguns que se recomendam a si mesmos. Quando eles se medem e se
comparam consigo mesmos, agem sem entendimento. Nós, porém,
não nos gloriaremos além do limite adequado, mas limitaremos nosso
orgulho à esfera de ação que Deus nos confiou, a qual alcança vocês
inclusive. Não estamos indo longe demais em nosso orgulho, como seria
o caso se não tivéssemos chegado até vocês, pois chegamos a vocês com
o evangelho de Cristo. Da mesma forma, não vamos além de nossos
limites, gloriando-nos de trabalhos que outros fizeram. Nossa esperança
é que, à medida que for crescendo a fé que vocês têm, nossa atuação
entre vocês aumente ainda mais, para que possamos pregar o evangelho
nas regiões que estão além de vocês, sem nos vangloriarmos de trabalho
já realizado em território de outro. Contudo, “quem se gloriar, glorie-se
no Senhor”, pois não é aprovado quem a si mesmo se recomenda, mas
aquele a quem o Senhor recomenda (2Co 10.7-18).

tema da vangloria prevalece no texto daqui ao final de 2Coríntios 12.10.


Isso não deve causar espanto. Paulo, como vimos, está confrontando
intrusos na assembléia de Corinto, líderes que promovem o próprio prestígio
e exaltam suas reputações pessoais adotando posturas mundanas sobre uma
ampla gama de assuntos. Para ser mais específico, eles não somente adotam
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

posturas mundanas, mas também as tratam como se fossem virtudes cristãs,


tornando difícil aos coríntios, espiritualmente imaturos, resistirem à sedução.
No âmago de seu estilo de liderança há uma espécie de autopromoção triun-
falista a qual Paulo detesta; mas ele se vê na posição desconfortável de ter de
apresentar as próprias credenciais da maneira mais contundente possível — e
o que é isso, afinal, senão outra faceta do orgulho que ele mesmo despreza?
A maneira de Paulo lidar com essa situação extremamente difícil é apro­
ximando-se com cuidado de seu tópico. Ele não entra de fato em sua lista de
vanglorias senão na última metade de 2Coríntios 11. Primeiro ele tem de se
desvencilhar de várias acusações falsas, dissipar certas concepções equivocadas
e construir uma estrutura verdadeiramente cristã, que, se corretamente com­
preendida, é o bastante para sentenciar o triunfalismo ao colapso.

A. O terrível problema e a resposta de Paulo (10.7-11)


1. Levando os fatos em consideração (10.7a). O vocábulo grego na primeira linha
do versículo 7 é um pouco ambíguo. Ele pode ser interpretado de três formas.
Primeiro, pode ser uma pergunta, como na versão King James: “Olhais para as
coisas segundo a aparência?” — ou seja, “vocês veem (apenas) o que é material
ou carnal?”. Essa tradução não é muito recomendável, pois, apesar de se ajustar
ao contexto do parágrafo precedente, não se conecta facilmente ao que se segue.
Segundo, o vocábulo grego na primeira linha do versículo 7 pode ser traduzido
como na NIV: “Vocês observam apenas a aparência das coisas”. Isso significaria
que Paulo não estava dissuadindo os coríntios de verificarem as credenciais, mas
os acusando de se valerem de critérios superficiais e mundanos. E possível de­
monstrar que isso faz muito sentido no contexto. Mas há dois pontos fracos nessa
interpretação que nos encorajam a, no conjunto, adotar uma terceira tradução:
(1) nos textos de Paulo, o verbo utilizado normalmente aparece no imperativo;
e (2) nos termos empregados não há nada que sugira que aquilo que os corín­
tios estão olhando seja mundano ou superficial. Essas considerações nos levam
a adotar a tradução da nota de rodapé da NIV: “Olhem para os fatos óbvios”.
Isso se ajusta ao contexto com exatidão. Paulo estivera apelando aos coríntios
para purificarem a igreja, para injetarem obediência à fé deles. Essa obediência
deveria ser demonstrada pela medida disciplinar que são exortados a adotar
contra os intrusos. Porém, para tomar tal medida, eles terão de fazer alguns
juízos quanto a quem seguirão e em quem crerão, se no Paulo ou nos intrusos.
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 67

Desde o começo, os coríntios estiveram sob a influência sedutora dos falsos


apóstolos. Se pretendem acabar com esse engano e voltar a adotar prioridades
verdadeiramente cristãs, os crentes coríntios terão de mudar suas avaliações,
sobretudo a avaliação concernente a Paulo. Por essa razão, o apóstolo agora lhes
diz, “olhem para os fatos óbvios” — e então prossegue, oferecendo respostas
óbvias a algumas das acusações mais caluniosas que recebeu.
Tudo isso pressupõe que uma igreja local tenha a responsabilidade de fazer
julgamentos; mas esses julgamentos devem estar basilados não em personalida­
des fortes capazes de desviar uma igreja de seu caminho pela mera energia da
vontade e por sua atração pessoal, mas, sim, em critérios mais objetivos, em fatos
óbvios, em padrões de maturidade cristã. Alguns desses fatos e padrões emergem
na sequência de 2Coríntios 10; outros aparecem nas seções subsequentes (e. g.,
11.23-28; 12.9,10,12-15; 13.5,ó). Tal equilíbrio é algo que toda igreja deve
constantemente buscar alcançar. Algumas igrejas e alguns cristãos são muito
implacáveis nos julgamentos de outras pessoas. Seus critérios de julgamento, no
entanto, deixam a desejar. Outras igrejas e cristãos, com repulsa do que sentem
ser um sectarismo estreito, defendem uma tolerância mais ampla, e lembram
a todos que Jesus ensinou, “Não julguem, para que vocês não sejam julgados”
(Mt 7.1). Mas ignoram o fato de que, ao adotarem essa postura também estão
julgando àqueles que julgam como alguém quejulga com excessiva severidade!
Além do mais, o ensino de Jesus é, na realidade, uma condenação à postura
excessivamente crítica ao julgar, e não um convite a cair no vazio da indecisão
moral, uma vez que ele mesmo em outra passagem insiste: “Não julguem apenas
pela aparência, mas façam julgamentos justos” (Jo 7.24).
É praticamente impossível, seja para um indivíduo, seja para uma igreja,
deixar de fazer julgamentos; pois mesmo o fato de não tomar decisões é na
verdade uma decisão, uma decisão baseada na suposição implícita de que as
circunstâncias não são suficientemente convincentes para impor um julga­
mento. Se, na situação que nos foi exposta, a igreja de Corinto decidisse não
fazer julgamento algum, estaria, de fato, decidindo desobedecer ao apóstolo.
Nem o cristão nem a igreja podem eximir-se da responsabilidade recusando-
-se a fazer julgamentos; pois essa própria recusa é em si um julgamento, uma
avaliação de compromisso, estratégia e prioridade, bem como de alegação
de verdade rivais.
Isso significa que, como não podemos deixar de fazer julgamentos, é melhor
nos comprometermos a fazer bons julgamentos. Assim, evitaremos uma postura
68 ■i UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

excessivamente crítica ao julgar nos lembrando de que também nós mesmos


somos, na melhor das hipóteses, miseráveis pecadores salvos pela graça. Sempre
pediremos a Deus graça e sabedoria para evitar decisões baseadas em adulação,
preconceito ou ressentimento pessoal, compreensão equivocada das Escrituras,
descaso ou outros motivos impuros ou negligentes. Em vez disso, sentiremos
o desejo de ser honestos e justos, testando a tudo pela compreensão madura das
Escrituras, julgando com imparcialidade e com base nos aspectos imutáveis do
evangelho de Jesus Cristo e em suas implicações práticas. Se os coríntios tivessem
praticado esse discernimento e julgamento distintamente cristãos, eles agora não
estariam na posição de serem obrigados a tomar decisões extremamente dolo­
rosas e difíceis. Em primeiro lugar, não teriam sido enganados pelos intrusos e
também não teriam sido chamados a afastá-los. Falhas cometidas em um nível
relativamente básico com frequência voltam para nos assombrar.

2. Rebaixando a Paulo (10.7b-11). Se esses versículos trazem a resposta de


Paulo a algumas acusações específicas feitas pelos intrusos, eles também mostram
quais eram duas dessas acusações.
Primeiro, os falsos apóstolos alegavam pertencer a Cristo em um sentido
especial (10.7b). E difícil determinar em que, exatamente, consistia esse sentido
especial a essa altura. Não pode simplesmente significar que os opositores afir­
mavam ser cristãos (que é o sentido de “os que lhe [a Cristo] pertencem”, em
ICo 15.23), pois todos os crentes da igreja de Corinto com satisfação afirmariam
a mesma coisa, e, portanto, pertencer a Cristo nesse sentido não constituiria
qualquer prerrogativa específica da liderança na comunidade cristã. Além do
mais, por mais desagradáveis que os intrusos pareçam ser para com Paulo, há
pouca evidência de que foram longe a ponto de dizer que ele não era nem
mesmo cristão. Alguns eruditos têm sugerido, portanto, que tais opositores ale­
gavam pertencer ao grupo dos que “são de Cristo”, conforme é mencionado em
1 Coríntios 1.12. Porém, se fosse assim, por que Paulo respondería que pertence a
Cristo tanto quanto qualquer outro? O mesmo Paulo que denunciou o espírito
cismático em 1 Coríntios 1 provavelmente não estaria agora alegando pertencer
a um desses grupos. Além do mais, julgando pela espécie de apoio que os fal­
sos apóstolos desfrutavam em toda a igreja de Corinto, parece que eles não se
identificavam exclusivamente com algum subgrupo na assembléia. Em outras
palavras, embora em 1 Coríntios 15.23 “os que pertencem a Cristo” significa
algo como “ser cristão”, e em 1 Coríntios 1.12 significa algo como “pertencer
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 69

a algum grupo que dizia ‘ser de Cristo’ (em oposição a um grupo que dizia
‘ser de Pedro’ ou a um grupo que dizia ‘ser de Paulo’ ou a um grupo que dizia ‘ser
de Apoio’)”, nenhum dos dois sentidos se ajusta ao contexto de 2Coríntios 10.7.
Como resultado, alguns escritores modernos propõem várias outras expli­
cações de valor duvidoso. Porém, a verdadeira explicação talvez seja bem sutil.
Os intrusos, com bastante clareza, afirmavam ser “servos de Cristo” em algum
sentido especial (veja comentários sobre 2Co 11.23), talvez também “apóstolos
de Cristo” (11.13) e “servos da justiça”. Essa afirmação de pertencerem a Cristo
era, portanto, provavelmente do mesmo tipo que muitos outros rótulos que
eles orgulhosamente ostentavam como meio de conquistar a confiança dos
coríntios. Segundo Barrett, bastaria que os opositores dissessem, com o tipo
certo de inflexão na voz e inclinação da cabeça, “eu sou um homem de Cristo”
— e estariam, ao mesmo tempo, reivindicando algo para si e sugerindo que
Paulo não era um homem de Cristo, que ele não pertencia a Cristo exatamente
da mesma forma que eles. Assim, a pessoa que fizesse tal reivindicação, e não
Paulo, seria um apóstolo autêntico e reconhecido. Talvez as altivas vanglorias
desses intrusos possuíssem outras conotações que ora nos estão perdidas: e.g„
alguns dos líderes podem ter realmente conhecido o Jesus histórico na época
de seu ministério terreno, podem ter alegado conhecer o Cristo ressurreto com
intimidade especial e mística (cf. 12.1-10) ou mesmo dado a entender que, se
Paulo afirmasse ser igual a eles, sua própria posição como cristão poderia ser
posta em dúvida. Porém, tais possibilidades não são certas, nem centrais. O
que fica claro é que Paulo era apresentado aos coríntios como alguém que não
pertencia a Cristo como os falsos apóstolos alegavam pertencer.
Eles tinham uma segunda forma de acusar ou rebaixar Paulo: acusavam-no
de inconsistência, sobretudo no que diz respeito ao contraste entre suas cartas
impactantes e sua presença pessoal inexpressiva. “Pois alguns dizem:1 ‘As cartas
dele são duras e fortes, mas ele pessoalmente não impressiona, e a sua palavra é
desprezível”’ (2Co 10.10). Em certo sentido, sem dúvida, eles estavam certos:
acusações que ferem, ainda que falsas, geralmente se aproximam da verdade

1 Aqui há uma variante difícil, phesin ou phatiu, mas provavelmente o correto seja o singular:
lit., “alguém diz” ou “ele diz” e não “eles dizem” ou “algo diz”. Porém, esse singular pode se
referir tanto a um opositor específico quanto a um chefe dos intrusos, ou pode ser um recurso
comum na diatribe grega, na qual um escritor pode dizer, referindo-se a seu oponente no de­
bate, “Alguém dirá...” — caso em que o plural da NIV embora parafrástico, é um equivalente
moderno próximo.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

de alguma forma, caso contrário, não teriam credibilidade nenhuma. Com


certeza algumas das cartas de Paulo foram pesadas, um ponto posteriormente
reconhecido pelas próprias Escrituras (cf. 2Pe 3.16). Os crentes coríntios, como
vimos, já haviam recebido pelo menos três cartas. A segunda delas é a nossa
1 Coríntios — uma outra carta “forte”, se é que chegou mesmo a existir; e a
terceira que, embora eficaz, foi dolorosa e severa (cf. 2Co 2.4; 7.8-13). Contudo,
quando Paulo estava presente fisicamente, ele não transmitia nenhuma aura nem
carisma, e sua oratória suscitava o desdém. Em parte, isso sem dúvida acontecia
em razão de deficiências de treinamento que ele mesmo reconhecia (11.6);
porém, em um nível mais profundo, originava-se de seu próprio compromisso
de evitar artifícios e eloquência persuasiva (lCo 1.17; 2.1-5) a fim de que a fé
de seus convertidos repousasse não em sua personalidade nem em sua retórica,
mas no poder de Deus.
Não importa os motivos de Paulo, seus opositores interpretavam os fatos sob
a pior luz possível, acusando-o de ser culpado de uma terrível inconsistência.
De fato, trata-se de uma acusação mais incisiva do que podemos perceber à
primeira vista, pois não aponta somente o fato de as cartas e a presença de Paulo
se mostrarem incongruentes, mas afirma que apenas as cartas impressionam. Há
uma acusação implícita de fingimento, de falsa intrepidez: ele consegue mostrar
uma faceta de valentia usando sua pena talentosa, mas quando o homem Paulo
é avaliado, ele se revela bem inferior a seus escritos. Era fácil tornar a acusação
digna de crédito entre aqueles que achavam que a verdadeira liderança cristã
deve causar impressão, ser arrojada, visionária, triunfalista e caracterizada por
sinais e retórica. Para que pudessem estigmatizar “sua pregação simples e sem
floreios como indigna da atenção de gregos cultos” (Wilson), tudo o que os
opositores de Paulo tinham de fazer era confundir mansidão com fraqueza e,
assim, aderir aos padrões temporários da retórica polida (e não à verdade, à
integridade ou à retidão!).
Como é fácil cedermos a esse senso de superioridade! Quando ouvimos
alguém contar sobre alguma interação, o narrador não costuma torcer um
pouco o relato para passar a impressão de que ele se saiu melhor na história?
Não é o que acontece conosco, quando contamos nossas histórias com um
tom e matizes que normalmente parecem dizer em letras garrafais: “Não tenha
dúvida de que os avisei bem para me deixarem em paz!”? Podemos ficar tão
enamorados pela “síndrome do círculo íntimo” que ansiamos por pertencer a um
grupo especial e nos dispomos a sacrificar a integridade cristã a fim de ganhar
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 71

a aprovação desse grupo. É possível defender, por exemplo, que os aspectos


mais divisivos de certas formas do movimento carismático, bem como de certos
aspectos da teologia reformada, sejam as fortes posturas que eles projetam sobre
quem está dentro/fora de seu círculo íntimo. Ou você está dentro do círculo
(concordando, participando, defendendo seus integrantes e depreciando os
outros), ou fora dele (discordando de seus integrantes, não participando dele,
por vezes atacando-o e juntando-se a outros contra ele). A polarização pode se
tornar forte o bastante a ponto de os que ficarem de fora começarem a constituir
sua própria mentalidade de grupo e de quem será de dentro (isto é, sua própria
mentalidade de quem pertencerá a esse outro grupo) com base na animosidade
em relação ao grupo oposto. Eis a essência do cisma.
É claro que não estou sugerindo ingenuamente que distinções teológicas
sejam algo de pouca ou nenhuma importância. Estou antes me referindo à
questão da atitude. Um teólogo carismático, batista ou reformado que, com
humildade, brandura e oração, insista em sua argumentação pode ser totalmente
inocente no que diz respeito a essa mentalidade do círculo íntimo. Na realidade,
em alguns casos, pode ser que o único círculo íntimo a envenenar os relacio­
namentos encontre-se nas fileiras cerradas da maioria contrária que se sinta
ameaçada pelo desafio. No entanto, raramente toda a culpa é de um lado só; e as
questões doutrinárias facilmente se entrelaçam a grandes doses de demonstração
de superioridade totalmente descabidas entre irmãos em Cristo. Certamente
os intrusos da igreja de Corinto somavam a suas aberrações doutrinárias (veja
os comentários em 11.4) um altivo triunfalismo voltado para a inclusão de si
mesmos em um círculo íntimo composto por uma elite de eleitos, algo que,
em parte, eles conseguiam desvalorizando o apóstolo Paulo. E, seguramente,
demonstrações de superioridade de nossa parte não são mais dignas quando
nosso envolvimento nesse tipo de atividade não se der por razões doutrinárias
— quando, com arrogância, nós nos referirmos a companheiros crentes de
estruturas teológicas semelhantes à nossa e (invariavelmente na ausência deles)
a respeito deles falarmos de forma tão sofisticada que, apesar de não lhes termos
difamado, com certeza os depreciamos e diminuímos.

3. A defesa de Paulo (10.7b-ll). Paulo responde a essas acusações e às ati­


tudes por trás delas fazendo três considerações.
Em primeiro lugar, ele insiste que pertence a Cristo tanto quanto seus opo­
sitores: “Se alguém está convencido de que pertence a Cristo, deveria considerar
72 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

novamente consigo mesmo que, assim como ele, nós também pertencemos a
Cristo” (2Co 10.7b). A palavra “novamente” provavelmente significa que tal
pessoa deva dar outra olhada em si mesma, e, com base nessa nova informação,
concluir que o apóstolo Paulo pertence a Cristo tanto quanto ela.2 Seja o que
for que “pertencer a Cristo signifique”, Paulo “argumenta que o direito de fazer
uma alegação subjetiva fundada em uma convicção pessoal não pode, com
justiça, ser dado a seus opositores e ser negado a ele” (Harris).
No entanto, certamente há um princípio mais profundo em jogo, mesmo
que não venha à tona de modo explícito. Afinal de contas, nesse ponto Paulo
não está defendendo que ele seja intrinsecamente superior aos outros ou que
pertença a Cristo mais do que eles. Mais adiante, quando ele é forçado a falar
sobre suas visões (2Co 12.1-10), refere-se a si mesmo não como um grande
apóstolo a quem foram confiadas revelações especiais, mas como “um homem
em Cristo” (v. 2), um mero cristão, a quem foi graciosamente dada uma visão
inefável. Mesmo quando é forçado a se defender ou quando argumenta que há
diferentes níveis de maturidade cristã e diferentes papéis a desempenhar no corpo,
Paulo tem o cuidado de não construir muros que possam enclausurar grupos ou
círculos íntimos de cristãos. Diferentes papéis, diferentes dons, diferentes níveis
de maturidade e de compreensão — sim; categorias diferentes de cristãos, jamais!
Muitos dos filhos de Deus são muito melhores do que nós, e mesmo o
pior dos cristãos na família divina tem alguns pontos em que é melhor do que
nós. Algumas vezes sinto vontade de dar um olho para me sentir tão certo do
céu quanto o mais obscuro e o menor em toda a família de Deus; e imagino
que talvez alguns de vocês também venham a se sentir assim, caso se achem
muito importantes e bons. Tu, gado forte, que empurras com o chifre e com
a espádua e expulsas os fracos, o Senhor pode dizer a ti: “Vá embora, tu não
me pertences, pois meu povo não é rude e jactancioso dessa forma — não é
orgulhoso e presunçoso assim; mas eu contemplo o homem humilde, aquele
que tem um espírito contrito, e que treme diante da minha Palavra”?
Você já tentou orar a Deus estando sob a influência de achar que leva uma
vida mais elevada? Você já tentou orar a Deus desse modo? Se já o fez, não acho
que fará uma segunda vez. Eu tentei uma vez, mas não estou propenso a repetir
a experiência. Pensei em tentar orar a Deus dessa forma, mas não parecia brotar

Entendo que palia (“novamente”) rehra-se ao reflexivo lieauto (lit., “se alguém é confiante
em si próprio” ou “no tocante a si mesmo”).
3Citação do sermão de Charles S. Spurgeon. Christ's joy and [A alegria de Cristo e a nossa].
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 73

de maneira natural; e quando orei, tive a impressão de ter ouvido alguém dizer
à distância, “Deus, tenha misericórdia de mim, um pecador”, e ir para casa jus­
tificado; e então, tive de rasgar minhas vestes de fariseu, e retornar para o lugar
em que aquele pobre publicano havia estado em pé, pois seu lugar e sua oração
se adequavam a mim de modo admirável. Eu não consigo compreender o que
acontece com alguns de meus irmãos que se acham tão maravilhosamente bons.
Desejo que o Senhor os dispa desse farisaísmo e permita que vejam a si como
realmente são aos olhos de Deus. Então seus belos conceitos a respeito de uma
vida mais elevada logo se desvaneceríam. Irmãos, o ponto mais alto que espero
alcançar deste lado do céu é dizer do fundo da alma:

“Sou o maior dos pecadores,


Mas Jesus morreu por mim”.

Não tenho o menor desejo de supor que eu tenha me desenvolvido na vida


espiritual muitos estágios à frente de meus irmãos. Contanto que eu simplesmente
confie no sangue e na justiça de Cristo, e não engrandeça a mim mesmo, creio
que continuarei a agradar o Senhor Jesus Cristo, que tal alegria estará em mim
e que minha felicidade será completa (C. H. Spurgeon).

Desse modo, muito embora Paulo aqui insista em que pertence a Cristo
tanto quanto seus opositores, seu protesto emerge da matriz de uma profunda
compreensão da dívida de todo cristão à graça e de sua total repugnância à
demonstração de superioridade “cristã”.
Em segundo lugar, Paulo mostra que toda e qualquer autoridade que lhe
tenha sido confiada foi concedida para edificar os crentes, não para destruí-los.
De fato, o texto grego enfatiza esse ponto oferecendo uma comparação sugestiva.
Paulo na verdade diz, “eu me orgulho (de uma forma bastante paradoxal) de
pertencer a Cristo, mas mesmo que eu me orgulhe um pouco além disso, a saber,
além da autoridade que o Senhor me deu (‘mesmo que eu tenha me orgulhado
com um pouco mais de liberalidade’, NIV), não me envergonharei disso — isto
é, meu orgulho será justificado pelos fatos. Pois a autoridade que o Senhor me
deu foi com o propósito de edificar os crentes; e todos sabem que eu fundei a
igreja em Corinto e edifiquei vocês. Podem os que se proclamam apóstolos, os
intrusos, dizer o mesmo? Ao contrário, eles não trouxeram atrito e categorias
mundanas que enfraqueceram vocês?”.
Em outras passagens (G1 1.1,11,12,15,16), Paulo enfatiza que tanto seu
chamado para o ministério apostólico quanto o evangelho que ele prega são
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

de origem divina. A fonte máxima de sua autoridade como apóstolo e a auto­


ridade máxima por trás do evangelho que ele proclama é o próprio Deus. Em
2Coríntios Paulo ocasionalmente salienta algo semelhante (cf. 3.5,6; 13.10);
mas nessa passagem (10.8) a questão que ele levanta é um pouco diferente: o
apóstolo enfatiza não tanto a origem, mas o propósito da autoridade a respeito
da qual ele prefere não se orgulhar. Tal propósito é altruísta — isto é, ele exerce
autoridade não para proveito próprio nem para promover a si mesmo, menos
ainda para destruir os outros, mas, sim, para edificar a igreja. Essa linguagem
que fala em edificação é uma extensão da metáfora comum da igreja vista
como um edifício ou templo, construída sobre o alicerce que é Jesus Cristo.
Como construtor experiente, Paulo constrói sobre essa fundação e exorta outros
para que sejam cuidadosos quanto aos materiais que utilizam quando chegar
a vez deles de construir (lCo 3.10-17). Usando a mesma metáfora, Paulo diz
que lhe foi dada autoridade para edificar os coríntios, não para destruí-los como
um demolidor cujo objetivo é derrubar prédios.
Paulo, sem dúvida, não quis dizer que não dispõe de autoridade para exercer
disciplina ou para julgar; em outro trecho ele insiste que, se for forçado a tomar
essas medidas desagradáveis, ele não somente está preparado para pô-las em prática,
mas também é plenamente capaz de confirmar seus julgamentos (cf. 2Co 13.1-4).
Ele não se restringe a uma abordagem polida do poder do pensamento positivo,
comprometida, acima de tudo, em não ofender ninguém, nem mesmo o próprio
diabo. Ao contrário, ele insiste que o objetivo central da autoridade que lhe foi
confiada é a edificação (a construção) do povo de Deus. Exatamente da mesma
maneira, o propósito central da vinda do Filho de Deus ao mundo não foi para
condená-lo, mas para salvá-lo (Jo 3.17) — mesmo que uma das implicações dessa
vinda seja proferir juízo e condenação sobre aqueles que não se arrependerão nem
crerão. Paulo, então, pode ter de manejar o cajado da disciplina, mas essa atitude
auxilia o objetivo central de sua missão e da autoridade que ele exerce.
Portanto, Paulo está lançando um desafio aos crentes de Corinto. Eles ouvi­
ram os intrusos menosprezarem Paulo em vários pontos, inclusive com esnobe
rejeição à autoridade dele. Ele responde que prefere não falar sobre a autoridade
que o Senhor lhe deu (embora ainda que se gabasse dela, ele não seria enver­
gonhado — ou seja, suas declarações seriam válidas); mas, ao mesmo tempo,
ele insiste que toda e qualquer autoridade que tenha recebido tem o propósito
de edificar, não de destruir — e assim ele contorna a questão da origem de sua
autoridade e concentra a atenção dos coríntios no propósito e nos resultados de
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL

sua autoridade. Se eles refletissem um pouco, lembrariam que Paulo foi quem
primeiro os evangelizou, fundou sua igreja, edificou-os na fé, protegeu-os de
vários erros. Os falsos apóstolos não podiam alegar nada disso. Eles usaram sua
autoridade para criticar, dividir a igreja e levar o povo de Deus a afastar-se do
evangelho ao qual de início se agarraram para serem salvos. Não admira que
Paulo lhes diga para olhar para os fatos óbvios (2Co 10.7)! O desafio deles é
livrar-se dos falsos critérios que estavam sendo ensinados pelos intrusos, olhando
de novo para a indiscutível evidência em favor de Paulo.
Naturalmente, é verdade que resultados e efeitos nem sempre servem como
critérios adequados de um ministério válido. Alguns missionários fieis, por
exemplo, trabalharam em áreas particularmente difíceis e viram muito pouco
fruto; e outros ministérios, ao contrário, altamente “bem-sucedidos” podem
corretamente ser considerados seitas. O conselho de Gamaliel (At 5.33-39) — de
que as armadilhas do sucesso provam se um movimento é de Deus — é frequen­
temente falso. No entanto, o fruto do ministério de alguém deve ser ao menos
um dos fatores a se ter em mente quando essa pessoa reivindica prerrogativas
de liderança. Paulo sutilmente lembra aos coríntios que eles são cristãos por
causa do ministério dele, e implicitamente pergunta: “Quais objetivos e resul­
tados comparáveis o ministério dos clandestinos pode alegar?”. Dessa forma,
embora propósitos e resultados admiráveis não sejam garantia automática de um
ministério válido, eles podem fornecer certo apoio para afirmações de que são
autorizados por Deus.
O princípio é profundo e com muitas aplicações. Quantos cristãos com um
histórico escasso de serviço ao reino gastam tanto tempo criticando servos de
Deus mais produtivos? É claro que em alguns casos é possível que a crítica seja
justa e o ministro produtivo seja uma espécie de fraude; contudo, na maioria
dos casos os críticos são mais semelhantes aos falsos apóstolos intrusos do que
desejam admitir. O argumento de Paulo é um desafio aos líderes cristãos em
cada geração: toda autoridade que lhes foi confiada tem o propósito de edificar
os crentes, não de destruí-los.
A precisa conexão sintática e lógica entre os versículos 8 e 9 de 2Coríntios 10
é muito discutida. E possível que haja uma elipse (que algumas palavras tenham
sido omitidas, mas ainda são entendidas tanto pelo escritor como pelo leitor).
Nesse caso, o pensamento flui mais ou menos da seguinte maneira: “Se eu
tivesse de me gloriar da autoridade que o Senhor me deu — dada a mim para
a edificação do povo, não para a sua destruição — eu não me envergonharia;
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

mas não agirei assim, para não dar a impressão de estar ameaçando vocês com
minhas cartas”. Em outras palavras, o versículo 9 fornece uma razão adicional
de Paulo não querer se vangloriar da autoridade que Deus lhe concedeu; pois,
se ele fizesse isso nessa carta, seus opositores responderíam dizendo que sua
veemente autodefesa é típica de suas cartas duras e fortes (v. 10) e completa­
mente atípica de sua pessoa. Assim, Paulo engenhosamente evita a armadilha
e diz, por um lado, que, se escolhesse se vangloriar de sua autoridade, de fato
teria fundamento para afirmar isso; e por outro lado, que, de qualquer modo,
essa autoridade acerca da qual ele prefere não se gloriar lhe foi dada com o
propósito de edificação. A armadilha é sabiamente evitada; os pontos impor­
tantes ficam estabelecidos.
Terceiro, Paulo insiste no fato de ser coerente, apesar das aparências con­
trárias. Seu opositor o acusou de usar uma fachada literária: suas cartas podem
ser severas e enérgicas, mas o Paulo real, o Paulo de carne e osso, era (segundo
eles diziam) inexpressivo, e sua oratória era digna de desdém. Paulo responde
dizendo que, se os intrusos continuassem a fazer acusações, elas trariam
tamanha ira sobre suas cabeças quando Paulo finalmente chegasse, que todos
veriam que o apóstolo era perfeitamente capaz de enfrentá-los pessoalmente
e não apenas por meio de cartas: “Saibam tais pessoas que aquilo que somos
em cartas, quando estamos ausentes, seremos em atos, quando estivermos
presentes” (2Co 10.11).
Não nos é possível saber a competência de Paulo como orador. Na época
da primeira viagem missionária, se sobressaía como aquele que “trazia a palavra”
(At 14.12), quando ele e Barnabé saíam juntos em viagem; e os pagãos de Listra,
confundindo-os com deuses por causa de um milagre que eles realizaram em
nome de Jesus, deram a Paulo o apelido de “Hermes”, o deus que, na mitologia
grega, transmitia mensagens. Contudo, é interessante notar que esses cidadãos
de Listra não o confundiram com o brilhante e eloquente Apoio. Em outra
passagem, o livro de Atos registra que a pregação de Paulo não conseguiu
manter Eutico acordado (At 20.9; cf. Plummer). O que faltava a Paulo, com
certeza, eram os floreios retóricos esperados dos oradores em certas camadas da
sociedade helenista; porém, a acusação feita contra ele pelos intrusos transcende
essa deficiência perceptível e atribui a Paulo uma dupla inconsistência. Daí o
apóstolo ter respondido defendendo sua consistência.
Um velho adágio nos diz: “A consistência é o espantalho das pequenas
mentes”. Seguramente isso não está lá muito certo: certas inconsistências
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 77

— morais, intelectuais, lógicas e espirituais — não podem ser características das


grandes mentes. Todavia, o velho adágio está certo em um aspecto: de forma
sucinta ele nos lembra que, embora grandes mentes possam pressupor profunda
consistência no nível principio lógico, podem ser extraordinariamente flexíveis
no nível prático — tão flexíveis, de fato, a ponto de mentes inferiores poderem
injustamente acusá-las de inconsistência, pois mentes inferiores com frequência
são lentas em discernir os princípios assinalados nas práticas mais óbvias.
O apóstolo Paulo certamente foi um dos crentes mais flexíveis que surgi­
ram na igreja primitiva. Quem, senão ele, poderia prontamente se tornar judeu
para os judeus e gentio para os gentios, escravo de todos para que, de todos os
modos possíveis, pudesse salvar alguns (lCo 9.19-23)? Um belo exemplo de sua
flexibilidade encontra-se no modo que tratou da questão da circuncisão. Por
um lado, quando certos judeus insistiram que os gentios tinham de se colocar
sob a aliança mosaica, sendo circuncidados e tornando-se judeus proselitistas,
antes de poderem legitimamente estar debaixo do senhorio de Jesus, o Messias
judeu, Paulo objetou tenazmente. Ele percebeu que a consequência de defender
tal postura significava negar a suficiência da obra na cruz e da ressurreição de
Jesus para trazer homens e mulheres de volta a Deus. E por isso Tito não foi
circuncidado; pois, como Paulo o expressa: “Não nos submetemos a eles nem
por um instante, para que a verdade do evangelho permanecesse com vocês"
(G1 2.5). Por outro lado, segundo Lucas, Paulo ficou perfeitamente feliz em
circuncidar Timóteo (At 16.1-3), pois nessa situação ninguém estava sugerindo
que Timóteo tivesse de se circuncidar para ser salvo. Antes, todos sabiam que,
embora sua mãe fosse judia, seu pai era grego, e o jovem nunca havia sido “cir­
cuncidado”. Isso teria limitado sua utilidade como assistente de Paulo sempre
que o apóstolo tentasse entrar nas sinagogas e em outros centros judaicos para
evangelizar seu povo.
Sem dúvida, um crítico poderia acusar Paulo de incoerência: o mesmo
Paulo que circuncida Timóteo se recusa a permitir que Tito seja circunci­
dado. Porém, aqueles que conheciam melhor a Paulo, que compreendiam os
profundos princípios que dominavam sua vida e pensamento, teriam captado
a profunda coerência implícita nessas decisões. Ele era o tipo de homem que
tinha um entendimento tão profundo da supremacia do evangelho, um anseio
tamanho em ganhar pessoas para Jesus Cristo e uma perspectiva tão equilibrada
dos relacionamentos entre a antiga e a nova aliança, que se sentia perfeitamente
à vontade para comer alimentos que o Antigo Testamento proibia; todavia,
78 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

sob circunstância alguma, ele faria isso se sentisse que os irmãos e irmãs em
Cristo mais fracos pudessem ter a fé prejudicada por aquilo que ele se permitia
fazer. Com alegria circuncidaria cristãos do sexo masculino se isso aumentasse
a eficácia do testemunho deles, mas se recusaria terminantemente a agir assim,
caso isso colocasse em risco a suficiência e a exclusividade do evangelho que
ele amava e pelo qual fora salvo.
De maneira similar, observadores superficiais, críticos de homens, poderíam
acusar Paulo de incoerência por acharem as cartas dele severas e enérgicas, mas
sua presença pessoal, inexpressiva. Contudo, talvez eles não tivessem levado em
conta certos fatores relevantes. As cartas enérgicas de Paulo haviam sido escritas
em resposta a certos desdobramentos lamentáveis ocorridos na igreja de Corinto.
Se fatos semelhantes viessem a ocorrer justamente antes de sua visita pessoal,
eles iriam descobrir que, pessoalmente, o apostolo não seria menos severo e
enérgico (2Co 10.11; 13.2,10) do que em suas cartas. Enquanto isso, os críticos
não deveríam contrapor seus próprios critérios da retórica contemporânea para
que não fossem seduzidos pela forma e permanecessem insensíveis ao conteúdo
e à verdade (cf. 11.6).
Paulo sustenta que é coerente; e os intrusos não podem deixar de ouvir
uma ameaça velada. Pois se Paulo estiver certo, então um dia ele provará aquilo
que defende, mostrando pessoalmente a força que eles negam que o apóstolo
tenha; mas nesse caso ela será direcionada para a disciplina e a destruição deles.

B. Contra-acusação: vangloria imprópria (10.12-18)


Ao longo de toda a desconcertante autodefesa que tanto caracteriza 2Coríntios
10 a 13, é fácil detectar a gama de ataques e acusações feitas pelos intrusos
contra Paulo. Contudo, aqui e ali, as firmes declarações de Paulo nos permitem
perceber quais acusações o apóstolo faz contra os intrusos em resposta. Em parte
alguma isso fica mais claro do que em 2Coríntios 10.12-18, onde as alegações
contrárias de Paulo (v. 12a,13-15,18) revelam seu entendimento a respeito do
que os falsos apóstolos estavam fazendo, e o teor daquilo que ele os acusa. De
fato, em um ponto (v. 12b) ele se refere aos intrusos diretamente e apresenta uma
condenação específica acerca da atividade deles. O cerne da contra-acusação
de Paulo nesses versículos é que o orgulho deles é impróprio, a recomendação
que fazem de si mesmos é desenfreada e desonesta, e seu foco não é Deus, mas
o homem. O texto levanta cinco argumentos cruciais:
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 79

1. Paulo se recusa a permitir que os autoelogios fiquem com a última palavra


(10.12a). Nessa área Paulo é de fato tímido; ele não ousa classificar ou comparar
a si mesmo com alguns que se autoelogiam. A ironia domina essa “admissão”
de Paulo. Ao que tudo indica, os opositores de Paulo eram dados a escrever
cartas de recomendação cheias de floreios uns aos outros, e talvez também
cartas de autoapresentação cheias de louvor a si mesmos — o equivalente antigo
dos modernos curriculum vitae sem comedimento. Mas Paulo não tem tempo
para autoelogios. Por estar tão preocupado em ganhar a aprovação do Senhor
(lCo 4.1-5), ele diz: “Não temos a pretensão de nos igualar ou de nos comparar
com alguns que se recomendam a si mesmos” (2Co 10.12).
Entretanto, o apóstolo é apanhado em uma difícil situação. Como Goudge
comenta, “é quase impossível defender a si mesmo sem autoelogio. Os oposi­
tores de Paulo em Corinto fizeram com que o apóstolo tivesse de defender a si
mesmo, mas depois o acusaram de autoelogio”. Já em 2Coríntios 3.1, depois de
explicar um pouco o modo que prega o evangelho como fiel servo de Cristo,
ele tem de perguntar, “Será que com isso estamos começando a nos recomendar
a nós mesmos novamente? Ou será que precisamos, como alguns, de cartas de
recomendação para vocês ou da parte de vocês?”. Seguramente que não. Paulo
nunca foi um apóstolo da parte de homens, enviado por eles (G1 1.1), mas um
apóstolo de Cristo Jesus: e a aprovação de Cristo é tudo o que ele busca. Natu­
ralmente se sente feliz em ser elogiado por suas próprias igrejas, visto que o fato
de elas virem a existir dependeu dele; porém, nesse caso a aprovação das igrejas
nada mais é do que uma cortesia da gratidão e um sinal da fidelidade delas ao
evangelho apostólico. A recomendação que fazem de Paulo é um reconheci­
mento, pautado nos fatos, da dependência que tinham dele, não algum tipo de
obstáculo levantado por eles, o qual Paulo tivesse de ultrapassar com sucesso
se quisesse garantir a aprovação deles. Como Paulo diz aos coríntios, “Vocês
demonstram que são uma carta de Cristo, resultado do nosso ministério, escrita
não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas
em tábuas de corações humanos” (2Co 3.3,4).
Em outras palavras, longe de precisar de cartas de alguma fonte de autori­
dade não especificada para que os coríntios aceitassem suas credenciais, Paulo
afirma que os próprios coríntios constituem as credenciais dele, “escritas” por
Cristo, já que Cristo os salvou e os estabeleceu por meio do ministério de Paulo.
Se Paulo é forçado a se defender repetidamente, não é, em absoluto, porque se
importa com os louvores dos homens. Antes, como ele explica aos coríntios
80 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

em outra passagem: “Não estamos tentando novamente recomendar-nos a


vocês, porém lhes estamos dando a oportunidade de exultarem em nós, para
que tenham o que responder aos que se vangloriam das aparências e não do
que está no coração” (2Co 5.12). Como ele testifica em outra parte: “Ainda
que eu não seja apóstolo para outros, certamente o sou para vocês! Pois vocês
são o selo do meu apostolado no Senhor” (lCo 9.2).
Infelizmente, os coríntios ficaram tão seduzidos pelos falsos apóstolos bran­
dindo suas credenciais que Paulo é forçado a usar linguagem até mais forte e
admitir (com dura ironia) que ele não “ousaria” usar os mesmos expedientes
de autoglorificação exagerada daqueles. Ele se recusa a permitir que os elogios
fiquem com a última palavra.

2. Paulo insiste que a falta de um padrão objetivo é tolice (10.12b). Ele certa­
mente não está sugerindo que não haja, em hipótese alguma, espaço para avaliar
reivindicações contrárias. O que Paulo discorda veementemente com relação
aos procedimentos que os intrusos utilizam para se autopromover é o fato de
eles não utilizarem nenhum padrão objetivo. Eles simplesmente “se medem e se
comparam consigo mesmos”; e nisso, “agem sem entendimento” (v. 12). Ao que
parece, esses apóstolos que se autopromoviam comparavam observações sobre
suas visões, suas linhagens raciais e culturais, seu treinamento em retórica, suas
habilidades em exigir remuneração e liderar homens — todos critérios relativos
e de pouca importância aos olhos de Deus.
Sem dúvida esses falsos apóstolos não tinham intenção alguma de se
medirem pelos critérios objetivos preferidos por Paulo: lealdade ao evangelho
de Cristo, conformidade crescente com o caráter de Cristo e participação nos
sofrimentos de Cristo. Eles não conseguiam enxergar, porém, que a autoavaliação
baseada em padrões relativos na verdade não é uma autoavaliação verdadeira.
E impossível medir a velocidade de um trem em movimento enquanto a pessoa
está em outro trem em movimento, num trilho adjacente (a menos, sem dúvida,
que ela saiba a velocidade e a direção de seu próprio trem — mas nesse caso
seu padrão real de comparação é objetivo e externo a ambos os trens). E igual­
mente impossível conquistar expressiva estima por retidão moral ou liderança
espiritual comparando-se líderes. E preciso que haja algum padrão absoluto
de referência. Pior ainda, como os falsos apóstolos que invadiram a igreja de
Corinto tinham um entendimento distorcido de si próprios (quando julgados
pelo evangelho objetivo que Paulo pregava), eles sofriam igualmente de uma
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 81

profunda incapacidade de compreender o ambiente e as circunstâncias. Não


há a menor evidência de que realmente pudessem ver o dano que estavam cau­
sando à igreja, os cismas que estavam introduzindo e a dubiedade e hipocrisia
intrínsecas ao tratamento que dispensavam a Paulo.
A falta de um padrão objetivo é insensatez. Podemos considerar duas dentre
as muitas aplicações desse princípio. A primeira é bem semelhante à situação
em Corinto. Muitos cristãos de hoje se enamoraram a tal ponto dos estilos
de liderança encontrados na política ou na indústria de entretenimento que
inconscientemente estão transferindo para a igreja esses critérios essencialmente
seculares. Tais critérios, no entanto, são em grande parte culturalmente condi­
cionados e oscilam com a opinião pública. A pergunta que os cristãos devem
fazer acerca de seus aspirantes à liderança é: Até que ponto eles correspondem
às exigências bíblicas para postos e funções que estão almejando? A reiterada
leitura, por exemplo, das cartas de Paulo pode ajudar a mudar nosso pensa­
mento e a alinhá-lo mais estreitamente ao pensamento de Deus. Como líderes,
poderiamos recorrer com menos intensidade a citações de nomes importantes
e à política, e nos preocuparmos mais com a oração, a integridade cativante e
a conformidade com Jesus Cristo.
Uma segunda decorrência, embora não menos perturbadora, está se conso­
lidando no atual sistema predominante na sociedade ocidental. As democracias
ocidentais não foram fundadas exclusivamente por líderes cristãos (no sentido
bíblico); porém, de modo geral, foram fundadas por grupos díspares (incluindo
deístas, pessoas que vão à igreja, mas não são convertidas e muitos outros), a
maioria dos quais aderiam à existência de uma lei mais elevada do que as que
aprovadas por nossos legisladores. Em termos gerais essa lei maior identificava-se
com os padrões morais ideais da herança judaico-cristã. Em décadas recentes,
entretanto, esse consenso fluido vem gradualmente se desfazendo. Números
cada vez maiores de pessoas querem se libertar dessa lei. A grande tragédia é
que, como resultado, nos posicionamos contra ou a favor de determinada lei
fundamentado apenas na conveniência. O significado moral de uma lei não é
levado em consideração; ou o que é ainda pior, a palavra “moral” é usada sem
critérios de forma tendenciosa, para justificar as convicções de qualquer corrente
sem recorrer às restrições de uma lei maior revelada à qual todos tenhamos de
prestar contas. O resultado não é maior liberdade, mas (de uma perspectiva
bíblica) menos virtude. Onde há menos virtude, haverá mais vício; e mais vício
inevitavelmente leva à destruição da sociedade e à perda da liberdade.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

É sempre verdade que a falta de um padrão objetivo é tolice. Se, como


cristãos, devemos nos manter contra a maré do relativismo moderno, seja em
nossas igrejas, seja na sociedade de modo mais amplo, temos de encher a mente
com a Palavra de Deus, bem digerida e integrada, e aprender a trilhar nossos
caminhos a partir dos pensamentos de Deus, aplicando-os à nossa situação, com
humildade, oração e um profundo desejo da examinar todas as coisas, inclusive
nós mesmos, por critérios menos arbitrários e menos relativos do que os padrões
inconstantes da cultura à nossa volta.

3. Paulo traça a limitação do orgulho com base na esfera de ação pessoal de


cada um (10.13-15a). Em contraste com os que não têm nenhum padrão obje­
tivo (2Co 10.12), Paulo não se gloriará “além do limite adequado” (v. 13), ou
seja, sem os limites de um padrão objetivo ou de maneira não comedida. Para
Paulo, a medida ou padrão a ser adotado (como ele nos diz em outra parte) é o
próprio Cristo Jesus (cf. 11.1; 4.10; 10.1); mas o conceito de medir algo em face
de um padrão objetivo parece evocar no apóstolo a extensão dessa linguagem a
um “padrão” ou “campo” (“esfera” no v. 13; “território” no v. 16) ligeiramente
diferente. Paulo restringirá seu orgulho, segundo palavras dele, à esfera de ação
que Deus lhe confiou — ou seja, às limitações geográficas de sua própria atuação
apostólica — um campo que (ele sarcasticamente acrescenta) chega até Corinto.
Alguns estudiosos defendem que Paulo está se referindo primordialmente ao
acordo de Gálatas 2.9. Pedro e os demais concordaram que deveríam evangelizar
primeiramente entre os judeus, e reconheceram a graça dada a Paulo para ir aos
gentios. Depois da conversão de Paulo, o próprio Deus havia declarado, “Este
homem é meu instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios”
(At 9.15). A razão da ofensa de Paulo, portanto, diz respeito à invasão de sua
esfera de ação eminentemente gentia por intrusos judaizantes. Colocada assim
com tanta ousadia, a interpretação desses versículos é simplória. Paulo se alegra
com o auxílio de outros (e.g., de Apoio, em ICo 3.5-10); e nunca foi do tipo de
pessoa que desmerecesse os que estivessem pregando o mesmo evangelho que
ele, ainda que os motivos desses outros nem sempre resistissem a um escrutínio
mais minucioso (e.g., Fp 1.15-18). Todavia, há algo de válido na interpretação,
pois é difícil imaginar que os rivais intrusos, tendo ou não vindo de Jerusalém,
não tivessem conhecimento do acordo feito entre Paulo e os demais apóstolos.
Se eles sabiam que os apóstolos de Jerusalém tinham despertado para o fato
de que Paulo deveria exercer seu ministério apostólico primordialmente entre
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 83

os gentios, seria vil da parte deles gastar energias depreciando seu ministério,
sobretudo entre os próprios gentios a quem Paulo havia convertido.
No entanto, a intenção explícita dessa passagem é menos racial do que
geográfica. O ministério apostólico de Paulo havia se estendido a Corinto; e por
esse meio os próprios coríntios vieram a conhecer o Salvador. Ironicamente, ao
questionar a legitimidade de Paulo, os coríntios estão praticamente questionando
a legitimidade de sua própria conversão!
Paulo vê o “campo” ou “território” em que foi o primeiro a fazer evange­
lismo e a plantar igrejas como a “porção” que Deus lhe concedera, não apenas
por causa de sua comissão para pregar aos gentios, não só em razão de seu senso
de que fora conduzido por Deus nas decisões e desvios que tomara em termos
geográficos, mas também porque, por providência divina, ele chegara a Corinto
primeiro. A oração traduzida “chegado até vocês” (2Co 10.14) inclui um verbo
que pode de fato significar “alcançado” ou “vindo” ou “chegado a” (cf. também
Rm 9.31; Fp 3.16); mas um sentido ligeiramente mais completo do verbo grego
é preservado em ITessalonicenses 4.15, onde significa “preceder”, ou seja, ir
primeiro ou alcançar primeiro. Isso se ajusta admiravelmente ao contexto em
2Coríntios 10.14: “fomos os primeiros a chegar até vocês” (NEB). Afinal de
contas, os intrusos também tinham chegado até Corinto: nesse sentido Paulo
não era em nada diferente de qualquer outro pregador, falso ou verdadeiro,
que conseguisse fazer a viagem a Corinto e colocar em prática um pouco de
seu ministério. Mas Paulo foi o primeiro a alcançar os coríntios; e essa era uma
afirmação que jamais poderia ser desafiada ou derrubada com sucesso. Estava
firmada para sempre, era uma afirmação que nenhum evento subsequente
poderia diminuir, e era um reflexo do próprio senso profundo que Paulo tinha
do chamado de Deus para o evangelismo pioneiro e para a plantação de igreja.
Corinto era parte do “campo” que Deus atribuira a Paulo.
O pensamento não se afasta muito da apresentação que Paulo faz de seu
ministério aos romanos. “... eu me glorio em Cristo Jesus, em meu serviço a
Deus”, escreve ele. “Não me atrevo a falar de nada, exceto daquilo que Cristo
realizou por meu intermédio em palavra e em ação, a fim de levar os gentios a
obedecerem a Deus: pelo poder de sinais e maravilhas e por meio do poder do
Espírito de Deus. Assim, desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico, proclamei
plenamente o evangelho de Cristo. Sempre fiz questão de pregar o evangelho
onde Cristo ainda não era conhecido, de forma que não estivesse edificando
sobre alicerce de outro” (15.17-20).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Em contraste, os intrusos não eram tão escrupulosos. Transformaram em


prática comum, entre eles, vangloriar pela obra realizada por outros (2Co 10.15).
Nós já descobrimos que Paulo não fazia objeção a que pessoas construíssem
sobre o alicerce que ele lançara (lCo 3.10); mas esses apóstolos intrusos parecem
ter ido muito além. Eles provavelmente se gabavam de que toda e qualquer
vitalidade espiritual demonstrada pelos coríntios devia-se ao ministério deles —
ainda que fossem recém-chegados à cena e gastassem seu tempo desmerecendo
a autoridade do apóstolo fundador. Naturalmente não causa espanto que se
dedicassem a essa ocupação, caso estivessem tentando ensinar doutrinas novas
incompatíveis com o que Paulo ensinava (2Co 11.4); ainda assim, não deixava
de ser uma conduta bastante repulsiva.
Esses homenzinhos insignificantes não conseguiam alcançar os altos padrões
que caracterizavam o ministério de Paulo; mas, de algum modo, eles se davam
tamanha importância a ponto de conseguirem seduzir muitos da igreja corín-
tia. Homens assim podem ser perigosos, sobretudo quando se põem a usurpar
parte da glória roubada dos grandes homens e com isso forjam os elos de uma
liderança interessada apenas em si mesma.
O orgulho dos falsos apóstolos em Corinto era profundamente inade­
quado. Não estava apenas impregnado de autoelogio e destituído de padrões
objetivos: era hipocritamente um parasita do trabalho do próprio apóstolo que
eles estavam depreciando. Não bastasse isso, Paulo acrescenta dois elementos
a seu contra-ataque e expõe a inadequação do orgulho deles de formas ainda
mais profundas.

4. Paulo traça certos limites à visão sobre a vangloria (10.15b-16). “Nossa


esperança é que, à medida que for crescendo a fé que vocês têm, nossa atuação
entre vocês aumente ainda mais, para que possamos pregar o evangelho nas
regiões que estão além de vocês...” A esperança dos intrusos é furtar as ovelhas
de Paulo. A esperança de Paulo, assim, é consolidar seu ministério entre os
coríntios a fim de estar livre para seguir em frente, para novos territórios ainda
não evangelizados. Paulo reitera que não quer se gloriar “de trabalho já realizado
em território de outro” (2Co 10.16b); mas não se trata simplesmente de repetir
sua censura aos intrusos; antes, é um testemunho de sua própria visão, de sua
própria impaciência à luz da necessidade e de seu próprio chamado. Os outros
estavam ocupados em forjar para si reputações com base no trabalho dele;
Paulo está pondo sua esperança na próxima etapa de seu trabalho. As restrições
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL 85

impostas por sua contínua preocupação e visão limitam tanto seu desejo quanto
sua capacidade de se gloriar. Os homenzinhos se orgulham demasiadamente a
respeito de uma igreja na qual têm pouca coisa a reivindicar; o próprio apóstolo
percebe a enormidade da tarefa, sente o chamado de Deus em sua vida e não
tem tempo nem interesse algum em se gloriar. Antes, o desejo dele é conso­
lidar a fé dos crentes coríntios de modo a poder deixá-los e seguir para novo
território e novos desafios.
Há quatro lições a serem aprendidas aqui. A primeira é que a vangloria
está irremediavelmente ligada ao passado, ao passo que os servos de Deus que
verdadeiramente dão frutos mantêm seus olhos no futuro. Paulo tem seu pensa­
mento em Roma (At 19.21 b; Rm 1.11) e além, na Espanha e no Mediterrâneo
ocidental (15.24,28). Os falsos apóstolos têm em vista apossar-se do que Paulo
já fizera. Segundo, a verdadeira expansão da igreja não vem do evangelismo de
pescaria nem do evangelismo itinerante, e sim pela proclamação do evangelho
nas regiões e entre as pessoas onde o Senhor Jesus Cristo não é conhecido.
Terceiro, o fato de Paulo querer consolidar as conquistas feitas em Corinto antes
de prosseguir testifica da importância do discipulado integral, da edificação de
igrejas e não apenas da conquista de convertidos. De certa forma, Paulo está
preparado para empenhar sua própria visão do futuro às necessidades da igreja
de Corinto. Se Deus o chamara para estabelecer uma igreja em Corinto, ele
não podia abandonar essa responsabilidade só por detectar novas oportunidades
e necessidades ainda maiores em outro local. A consolidação é o fundamento
sobre o qual se constrói o novo avanço. “Como poderia ele dar seguimento ao
evangelismo pioneiro no Mediterrâneo ocidental quando seus convertidos ali
estavam inseguros e em risco de apostatar?” (11.3) (Harris). Quarto, embora
muitos de nós possamos ser chamados por Deus simplesmente para carregar a
tocha da verdade de uma geração para outra (cf. 2Tm 2.2), é encorajador saber
de crentes como Calebe que avaliam as dificuldades e escolhem, no poder de
Deus, as mais duras tarefas (Js 14.10-12). Nem todo apóstolo pôs seu coração
na Espanha ou na índia, mas podemos agradecer a Deus por aqueles que o
fizeram, e com amor e oração apoiar a nova geração de embaixadores que sai
em busca das obras mais difíceis — evangelizar muçulmanos, trabalhar entre
os mais desamparados, os mais pobres, os mais enfermos, os de coração mais
endurecido. E alguns de nós deveriamos ao menos nos perguntar se Deus talvez
não quer nos ver abandonar nossos púlpitos confortáveis e expandir os horizontes
de nosso ministério plantando novas igrejas em lugares difíceis.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Precisamente a familiaridade com essa amplitude de visão proverá os freios


necessários ao nosso orgulho.

5. Finalmente, Paulo derruba por terra toda vangloria que a si mesma se reco­
menda (10.17,18). Ele faz isso citando uma linha do profeta Jeremias que ele já
havia usado ao escrever aos coríntios (lCo 1.31). Portanto, é provável que eles
tivessem familiaridade com as palavras daquele profeta.

Assim diz o Senhor:


“Não se glorie o sábio em sua sabedoria
nem o forte em sua força
nem o rico em sua riqueza.
mas quem se gloriar, glorie-se nisto:
em compreender-me e conhecer-me,
pois eu sou o Senhor, e ajo com lealdade,
com justiça e com retidão sobre a terra,
pois é dessas coisas que me agrado”,
declara o Senhor (Jr 9. 23,24).

Os intrusos, falsos apóstolos, julgavam-se sábios e fortes; e provavelmente


os valores que cobravam também os deixaram ricos. O Senhor, porém (quase
certamente uma referência ao Senhor Jesus) proíbe toda vangloria desse tipo. Há
apenas um tipo de orgulho que ele permite — na verdade, ordena: é o gloriar-se
no Senhor. Paulo está preparado para gloriar-se no que Deus fez por ele (G16.14)
na cruz do Senhor Jesus Cristo e no que Deus fez por meio dele (Rm 15.18,19;
cf. At 14.27) pelo Espírito em seu ministério apostólico; porém, ele não está
preparado para gloriar-se no talento, nas riquezas, no poder, na sabedoria, na
eloquência etc. Afinal, o que temos senão aquilo que temos recebido (lCo 4.7)?
Se esquecermos disso, sucumbiremos a uma forma de idolatria; se lembrarmos
no que consiste o orgulho apropriado, nos gloriamos no Senhor — o que sig­
nifica que lhe daremos o louvor devido por direito. Ele é o Deus que declara,
“Não darei minha glória a nenhum outro” (is 48.11; cf. 42.8).
Paulo entende que, em última análise, o que importa é se ganhamos ou não
a aprovação do Senhor. Os versículos citados de Jeremias são seguidos pelo louvor
de julgamento do Senhor (9.25). Paulo nos faz recobrar o bom senso da mesma
forma: o que mais importa no universo de Deus é o que Deus pensa de nós,
se somos aprovados por ele ou não (2Co 10.18). A pessoa que recomenda a si
A FEIURA DE OSTENTAR SUPERIORIDADE ESPIRITUAL

mesma certamente não impressiona ao Senhor; presumivelmente ela deve estar


tentando impressionar outras pessoas e ganhar a aprovação delas. Mas o homem
aprovado pelo Senhor deve ser aquele a quem o Senhor enaltece. Enaltecerá
ele aqueles que se gloriam justamente da forma que ele proíbe? Ao contrário,
não exaltará Deus aqueles que se gloriam nele — que dependem de sua graça
e reconhecem seu poder, perdão, dons e agir soberano e se deleitam em tornar
isso conhecido?
O cerne da divisão entre Paulo e seus oponentes levanta a pergunta: “A
aprovação de quem buscamos?”. Essa breve pergunta, devidamente considerada
contra o pano de fundo da revelação da verdade nas Escrituras e em Jesus Cristo,
liquida muitos dilemas morais e nos orienta a agradar a Deus. O desejo de Paulo
era agradar o Senhor Jesus Cristo por meio de sua vida e serviço, e então, no
juízo final ouvir o “Muito bem!” de Cristo. Essa é a última restrição que Paulo
coloca na vangloria, e qualquer vangloria que falhe nesse quesito deve ser rejei­
tada como indevida. Não somente as nações, mas a própria igreja devem orar:

Deus de nossos pais, conhecido há gerações...


tumulto e gritos cessam;
capitães e reis se vão:
plácido permanece teu ancestral sacrifício,
um coração humilde e contrito.
Senhor dos Exércitos, sê conosco ainda,
para que não te esqueçamos — para que não te esqueçamos!

Pois o coração pagão coloca sua confiança


em canos fumegantes e pedaços de ferro,
toda poeira valente que edifica sobre o pó,
e, vigiando, não te invoca a vigiar,
por orgulho frenético e tolo —
tua misericórdia sobre o teu povo, Senhor!

— Rudyard Kipling (1865-1936)


4 O perigo do falso apostolado
Derrubando os critérios fraudulentos

Espero que vocês suportem um pouco da minha loucura: mas vocês


já estão fazendo isso. Tenho ciúme por vocês, um ciúme que vem de
Deus. Eu os prometi a um único marido, Cristo, querendo apresentá-los
a ele como uma virgem pura. O que receio é que assim como a serpente
enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie
da sua sincera e pura devoção a Cristo. Pois, se alguém lhes vem pre­
gando um Jesus que não é aquele que pregamos, ou se vocês acolhem
um espírito diferente do que acolheram ou um evangelho diferente do
que aceitaram, vocês suportam isso facilmente. Pois não me julgo nem
um pouco inferior a esses “superapóstolos”. Pois posso não ser um orador
eloquente, contudo, tenho conhecimento. De tato, já mostramos isso a
vocês de todas as formas.
Será que cometi algum pecado ao rebaixar-me a fim de elevá-los,
pregando-lhes gratuitamente o evangelho de Deus? Despojei outras
igrejas, recebendo delas sustento, a fim de servi-los. Quando estive entre
vocês e passei por alguma necessidade, não fui um peso para ninguém;
pois os irmãos, quando vieram da Macedônia, supriram aquilo de que
eu necessitava. Fiz tudo para não ser pesado a vocês, e continuarei a
agir assim. Tao certo como a verdade de Cristo está em mim, ninguém
na região da Acaia poderá privar-me deste orgulho. Por quê? Por que
não os amo? Deus sabe que os amo! E continuarei a fazer isso, a fim de
não dar chance àqueles que desejam encontrar oportunidade de serem
considerados iguais a nós nas coisas de que se orgulham.
Pois tais homens são falsos apóstolos, obreiros enganosos, fingindo-
-se apóstolos de Cristo. Isto não é de admirar, pois o próprio Satanás
se disfarça de anjo de luz. Portanto, não é surpresa que os seus servos
finjam que são servos da justiça. O fim deles será o que as suas ações
merecem (2Co 11.1-15).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

aulo ainda está analisando as vanglorias que deve apresentar a fim de

P impedir que os crentes coríntios continuem a ser seduzidos pelos falsos


apóstolos. Suas vanglorias estão concentradas em 2Coríntios 11.16—12.10;
mas aqui, em 11.1-15, ele ainda está preparando o terreno. Essa preparação
envolve três passos. Primeiro, ele exorta seus leitores a aturar sua “loucura”
à medida que ele muda de terreno e contempla a abominável perspectiva de
colocar suas reivindicações lado a lado com as dos intrusos (v. 1-6). Então ele
enfrenta uma acusação mais específica (v. 7-12) antes de expor os causadores
de intrigas por aquilo que são (v. 13-15). Somente depois de ter apresentado
seus pontos de vista com tanta clareza o apóstolo está enfim preparado para
descer ao nível de seus opositores visando preservar a fé dos convertidos.

A. Exortação para que suportem a loucura de Paulo (11.1-6)


No último capítulo descobrimos que a palavra “vangloria” manifesta-se com
regularidade nessa parte de 2Coríntios. Agora outro grupo de palavras se junta
àquela: “loucura” ou “louco” (11.1,16,17,19,21; 12.6,11). Vangloriar-se é algo
completamente repugnante para Paulo. “Assim como o orgulhoso a contra­
gosto reconhece suas fraquezas, também a contragosto o humilde fala em seu
próprio louvor” (Henry). Ele insistiu reiteradamente com os coríntios que o
autoelogio não tem valor (3.1; 5.12; 10.12); porém, a situação diante dele parece
exigir que ele desça ao nível daquilo que condena se pretende preservar seus
convertidos. Em parte, ele é forçado a imitar os métodos de seus opositores,
ainda que se distancie por inteiro dos motivos deles. Como coloca Tasker:

Paulo é muito consciente de que não compete a um apóstolo, nem a qualquer


cristão, de fato, elogiar a si próprio. Tal autoelogio só se justifica, no presente
caso, porque a afeição dele por seus convertidos é tão grande que ele fará
praticamente tudo o que for preciso para impedir que se tornem joguetes nas
mãos de homens inescrupulosos, e para que se mantenham leais a Cristo.

Esse extremo a que Paulo está disposto a ir é o que ele chama de sua “loucura”;
e mais tarde, quando ele realmente começa a se gloriar, ele insiste que não está
falando como um cristão falaria, mas como um “louco” (11.17, NIV). Esse
não é exatamente o mesmo uso da palavra “louco” que se faz em 1 Coríntios
4.10, onde Paulo diz: “Nós, apóstolos, somos loucos por causa de Cristo”. Nessa
passagem ele quer dizer que ele e os outros apóstolos são considerados loucos aos
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO

olhos do mundo. Mas aqui em 2Coríntios 10 a 13 ele está pronto a ser “louco”
no sentido de que está disposto, por amor a seus convertidos, a se empenhar
por alguns momentos em fazer algo que ele considera fundamentalmente como
loucura detestável e sub-cristã.
“Espero que vocês suportem um pouco da minha loucura”, escreve Paulo,
extremamente constrangido pela perspectiva de sua iminente vangloria; e
então ele acrescenta, com deliciosa ironia, “mas vocês já estão fazendo isso”
(2Co 11.1). O que ele quer dizer é que, em certo sentido, os coríntios, enga­
nados pelos intrusos, começaram a tratá-lo como se ele fosse um palhaço de
segunda categoria, um louco, em vez de tratá-lo como pai deles por meio do
evangelho (lCo 4.15) e como apóstolo dos gentios. Se os coríntios podem
aturar a loucura de Paulo segundo o que eles entendem por loucura, certamente
podem suportar um pouco da loucura do apóstolo segundo o que ele entende
por loucura! Outra possibilidade realmente plausível é que Paulo quisesse dizer
algo um pouco diferente, mas não menos irônico: os coríntios já demonstraram
estar preparados para aturar a espécie de conduta que Paulo chama de loucura,
pois era justamente tal conduta que caracterizava os intrusos. Paulo espera que
eles possam, então, suportar um pouco de sua loucura; mas, no final das contas,
sugere ele, isso não deve ser assim tão difícil, visto que os crentes em Corinto
tinham muita prática em tolerar exatamente a mesma loucura nos outros.
Os próximos cinco versículos fornecem as três razões de Paulo esperar que
os coríntios suportem a louca vangloria da qual ele irá se ocupar.1

1. Porque Paulo está divinamente cheio de ciúme pelos coríntios (11.2,3).


“Tenho ciúme por vocês”, Paulo escreve, “um ciúme que vem de Deus”. Alguns
poderíam, de forma apressada (e equivocada), responder que não pode haver
nada de piedoso no ciúme: o “ciúme que vem de Deus” deve ser uma contradição
de termos. Porém, tal opinião se esquece de que o próprio Deus declara: “Não
farás para ti nenhum ídolo [...] Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás
culto, porque eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento” (Éx 20.4,5).
A mesma atitude pode ser expressa em outros termos:

Que posso fazer com você, Efraim?


Que posso fazer com você, Judá?

lAs três razões estão estruturalmente mais claras no grego do que no português: cada uma
é introduzida por um gar.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Seu amor é como a neblina da manhã,


como o primeiro orvalho que logo evapora (Os 6.4).

Em geral o ciúme humano é um vício. Ele busca diminuir ou consumir


seu objeto e é motivado pelo ressentimento, pela inveja e pelo egoísmo. Mesmo
os poucos tipos legítimos de ciúme humano (como quando, por exemplo, uma
esposa sente ciúme do marido ao ser forçada a refletir sobre o comportamento
promíscuo dele) com frequência estão contaminados por pressões pecaminosas.
Muito pouco do ciúme humano é realmente puro.
Em contraste, o ciúme divino é uma virtude. E uma forma de santa indig­
nação mesclada com amor: os objetos do ciúme devem amor e lealdade a Deus,
solenemente empenham a ele sua devoção filial e obediência à aliança, recebem
toda sua força, saúde, posses e razão de sua mão graciosa — e então, arrogan­
temente, exibem sua autoproclamada independência diante de sua face. Pior
ainda, eles se vendem a falsos senhores, mestres que lhes tomam tudo e nada
lhes dão. Deus com razão fica ultrajado: ele não seria santo se essa não fosse sua
reação. No entanto, ao mesmo tempo ele ama seu povo rebelde e se entristece
diante da prostituição e da dor autoinfligidas. O fato de ser um Deus zeloso
reflete a maravilhosa verdade de que ele não pode ser reduzido ao impassível
Motor Imóvel de Aristóteles e de muitos deístas. Soberano e transcendente, ele
também é um Deus pessoal. Quando sua santidade é afrontada, ele com justiça
fica irado, pois a ordem criada é sua, e todo pecado não passa de rebelião contra
sua justa autoridade; quando o povo de sua aliança se prostitui, ele com justiça
sente ciúme, pois esse povo não apenas está quebrando os solenes juramentos e
maculando sua lealdade a ele, mas também está tratando com desprezo o Deus
que os comprou para si.
Paulo diz compartilhar de um pouco desse ciúme piedoso, dessa mescla
de amor, indignação e temor: amor pelos coríntios, que se manifesta na sua
profunda preocupação pelo bem-estar espiritual deles; indignação diante da
inconstância, da facilidade e da rapidez com que foram seduzidos; temor pelo
futuro deles, caso não se arrependam e voltem para o Senhor.
Paulo explica melhor seu ciúme por meio de uma metáfora mais extensa. A
metáfora é baseada em uma imagem do Antigo Testamento: Israel é a noiva, e
Deus é o noivo (e.g., Is 50.1; 54.1-6; Ez 16; Os 1—3). Essa imagem é ligeiramente
alterada no Novo Testamento: a igreja é a noiva, e o Senhor Jesus é o noivo
celestial (e.g., Ef5.22,23; Ap 19.7; 21.2,9; 22.17). Paulo estende essa imagem um
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO

pouco adiante. Ele se apresenta como o pai da noiva, reunindo assim, em uma
metáfora composta, a imagem de si mesmo como um pai espiritual da igreja
(lCo 4.15; 2Co 12.14), e a imagem comum da igreja como uma noiva. Nessa
figura mais completa, o noivado se realizou quando Paulo levou os coríntios a
Cristo e fundou a igreja: “Eu os prometi a [...] Cristo, querendo apresentá-los a
ele como uma virgem pura” (11.2b). No mundo antigo, o noivado estabelecia
um vínculo: não havia noivado casual, e uma experiência sexual por parte de
uma mulher que estivesse noiva seria considerado nada menos do que adultério.
Paulo, agindo como pai, prometera a igreja de Corinto a Cristo. Como pai
honrado, ele deseja apresentar sua filha como uma virgem pura a seu futuro
marido, quando este vier buscá-la (na parúsia). Em vez disso, no entanto, Paulo
ouve relatos de que ela está se divertindo com outros amantes, ele fica estarrecido.
Mais ainda, sente ciúme por sua filha (não “dela”, mas “por” ela): exaspera-se
com os que a seduzem, amorosamente preocupa-se com a pureza e o futuro
dela, fica ferido e indignado por sua inconstância.
Paulo faz outra comparação: “O que receio é que assim como a serpente
enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua
sincera e pura devoção a Cristo” (2Co 11.3). Grande parte da literatura judaica
do período intertestamentário interpreta o engano de Eva (Gn 3) como um
caso de sedução sexual; mas Paulo não vai tão longe. A medida que se estende
na comparação, o apóstolo traça um paralelo sobre o engano ocorrido nos
dois casos e expressa preocupação com a mente dos coríntios. Eles outrora
manifestaram “sincera e pura devoção a Cristo”; mas agora correm o risco de
serem enganados — da mesma forma que Eva. Quando ela caiu, não foi por ter
sido espancada até a pecaminosa submissão a um ímpio soberano, e sim por
ter sido enganada com astúcia. Ela não era suficientemente devotada ao Deus
que a criou, e cuja vontade a sustentava, como criatura em dependência, para
resistir às lisonjas que a instigaram a deixar a genuína aliança (“Mas Deus disse
mesmo [...]?”, Gn 3.1) e que lhe prometeram uma nova e exaltada posição
(“e vocês serão como Deus,” v. 5). Tragicamente, a nova posição não fez Eva
ser como Deus; na verdade, tal posição caracterizou-se pela morte e corrupção.
O quanto isso era semelhante a situação dos coríntios! Essa comunidade que fora
dada em compromisso não era assim tão devotada a seu noivo que não pudesse
ser enganada com astúcia. Ela estava sendo arrastada para longe da aliança que
assumira em público, e insinuantemente estava seguindo o mesmo velho enga­
nador, o próprio Satanás, conforme ele a conduzia para o que parecia ser um
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

cristianismo mais triunfante, vitorioso e centrado em si, mas que, na realidade,


não era o evangelho em hipótese nenhuma (2Co 11.4; 13.5).
Paulo não vê nesses intrusos uma concorrência casual, mas as maquinações
do inimigo. A razão de os coríntios não reconhecerem o perigo que correm
é que o inimigo em sua batalha espiritual tem se valido da astúcia. De fato, o
inimigo foi tão astuto que persuadiu os coríntios de que era Paulo quem era
“astuto” e usava de “astúcia” (12.16; cp. 11.3)!
Desde a Queda até os dias de hoje homens e mulheres têm sucumbido
com frequência aos mentirosos ardis do diabo. Os cristãos sofrem de fraqueza
especial diante do tipo de engano ardiloso que combina uma linguagem de
fé e religião com um conteúdo voltado para o interesse próprio e a bajulação.
Gostamos de ouvir o quanto somos especiais, sábios e abençoados, especial­
mente se, em consequência disso, os outros forem sutilmente menosprezados.
Gostamos que nosso cristianismo seja moldado menos pela cruz e mais pelo
triunfalismo, por regras ou líderes carismáticos ou pela experiência subjetiva.
E se essa moldagem puder se revestir de garantias de ortodoxia coroada com
clichês, não conseguiremos detectar a presença do arquienganador, nem per­
ceber que estamos sendo levados da “sincera e pura devoção a Cristo” para um
“evangelho diferente”. O risco de ser ludibriado é tão disseminado que Paulo
logo tratará dele diretamente, e em termos mais fortes (2Co 11.13-15).
Não é de espantar, portanto, que Paulo sinta ciúme pelos coríntios. Contudo,
seu ciúme é piedoso: ele tem os mais nobres motivos, bem como um objetivo
altruísta. Em geral o ciúme humano é egoísta (de fato, algumas vezes é a pró­
pria encarnação do mais concentrado interesse próprio), e com frequência seu
objetivo é indigno. Mas o ciúme do apóstolo reflete o coração de Deus, e o
faz de tal maneira que é difícil conceber uma liderança cristã legítima que, em
certa medida, não manifeste o mesmo ciúme. Por exemplo, qual é o grau de
preocupação de um presbítero com o bem-estar espiritual dos crentes aos quais
serve se não sentir ciúme por eles, um ciúme piedoso? O ministro cristão nunca
pode ser meramente um profissional. Da verdade do evangelho dependem con­
sequências eternas. Portanto, longe de fazermos do distanciamento indiferente
e analítico a meta dos líderes cristãos, ansiaremos pelo mesmo compromisso
claro e enfático de um apóstolo que era capaz de perguntar: “Quem está fraco,
que eu não me sinta fraco? Quem é levado a pecar, que eu não queime por
dentro?” (2Co 11.29).
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO

E dificilmente seria menos notável a candura com que Paulo promove seu
piedoso ciúme como razão pela qual os coríntios deveríam suportar sua louca
vangloria. A intensidade de seu amor por eles, a solenidade do noivado entre a
igreja de Corinto e Cristo, celebrado com a participação de Paulo, seu receio de
que eles fossem enganados, tudo isso deveria lhes fornecer motivos suficientes
para aguentarem a “loucura” na qual ele está prestes a embarcar.
Porém, se o ciúme piedoso de Paulo não for razão suficiente, ele lhes dará
outra. De bom grado os coríntios deveríam ouvir Paulo até o fim, a despeito
de toda a sua loucura:

2. Porque eles aceitam toda sorte de disparates dos apóstolos rivais com bastante
facilidade (11.4). “Pois, se alguém lhes vem pregando um Jesus que não é aquele
que pregamos, ou se vocês acolhem um espírito diferente do que acolheram ou
um evangelho diferente do que aceitaram, vocês o suportam facilmente.” A pre­
posição introdutória “pois” provavelmente serve a uma dupla função: ela embasa
o receio expresso e o apelo para suportar Paulo. Em outras palavras, Paulo receia
que os coríntios estejam sendo enganados (11.3), pois são muito tolerantes para
com os que ensinam heresias (11.4); e Paulo continua a apelar aos coríntios para
aguentarem sua loucura, pois, afinal de contas, é com prazer que eles suportam
uma mensagem conflitante e fundamentalmente falsa. “Seguramente deveríam
demonstrar para com seu pai na fé o mesmo grau de tolerância demonstrado
para com um recém-chegado que pregava uma fé diferente!” (Harris).
A forma exata da falsa mensagem pregada pelos intrusos não fica clara.
O melhor palpite, a julgar pela ênfase nos capítulos ao redor, é que se tratava
de alguma forma judaizante (veja o cap. 1). Os falsos apóstolos atribuíam
muita importância à sua herança judaica (2Co 11.22), e a isso acrescentavam
uma sucessão de virtudes que sentiam fazer deles cristãos superiores; ou talvez
até argumentassem que alguns desses trunfos eram exigências necessárias para
o verdadeiro cristianismo. Paulo detectou nas pretensões deles exatamente o
mesmo perigo que os judaizantes introduziram nas igrejas da Galácia, com
uma ênfase ligeiramente diferente. O resultado desses acréscimos era que outro
Jesus estava sendo pregado (11.4; cf. G1 1.8,9).
Naturalmente, até certo ponto eles pregavam o mesmo Jesus: sem dúvida,
eles também criam que ele era o Messias prometido, que fez milagres e pregou
o reino de Deus, que morreu, ressuscitou do túmulo e ascendeu para a destra
do Pai. Todavia, assim que Jesus deixa de ser a única base para a nossa salvação,
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

assim que nossa aceitabilidade perante de Deus passa a depender de algo mais
do que o sacrifício de Cristo na cruz, negamos a suficiência de sua pessoa e
de sua obra. Nesse ponto o Jesus pregado não mais é o Jesus bíblico, mas um
produto fictício da imaginação humana, uma figura relativamente impotente
que não tem poder de fato para salvar seu povo de seus pecados, a menos que
complementem sua obra com algo que seja mérito deles.
O tipo de ensino a que os coríntios estavam dando ouvidos resultava tam­
bém em um espírito diferente. Não é de todo certo se há aqui uma referência
ao Espírito Santo; provavelmente não. Antes, a ideia é que a mensagem do
verdadeiro evangelho, do perdão dos pecados e do despontar de uma vida nova
e eterna, traz um espírito de paz, liberdade, poder, amor e domínio próprio
(cf. Rm 14.17; 2Co 3.17; 2Tm 1.7). Porém, se os crentes regridem para um
sistema legalista em que a confiança em Cristo e sua jubilosa aceitação são subs­
tituídas por uma dependência de mérito e virtude pessoal, muitos regridirão para
um espírito de escravidão e medo que oculta as prerrogativas de nossa filiação
(Rm 8.15). Em resumo, o que está sendo pregado é um evangelho diferente.
Quando Paulo critica os coríntios por se curvarem a um Jesus “que não
é aquele que pregamos” ou por aceitarem um evangelho “diferente do que
aceitaram”, ele não está alegando que a verdade dependa dele. Longe de pensar
que Paulo esteja dizendo: “Tudo o que eu prego é justo e verdadeiro só por­
que sou eu quem prega. Apenas acatem a minha palavra e se curvem à minha
autoridade, e tudo irá bem”. O que fascina Paulo não é sua própria autoridade,
mas a veracidade objetiva do evangelho que ele prega. Daí ele poder dizer em
outra passagem: “Mas ainda que nós ou um anjo do céu pregue um evangelho
diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!” (G1 1.8). Paulo
está tão convicto da veracidade, da exclusiva veracidade do evangelho que ele
está pregando, que se ele próprio alterasse a forma de sua pregação, só poderia
querer sobre si eterna condenação. Não temos aqui um autocrata centrado em
si mesmo, mas um homem que humildemente se coloca debaixo do evangelho
revelado e que está apaixonadamente comprometido com sua proclamação
e pureza, por entender que os evangelhos alternativos, na realidade, não são
evangelho (não são “boas-novas”) em hipótese alguma. Que diferença dos
falsos apóstolos que, em certos aspectos e ao que tudo indica, estavam mais
interessados na forma e na aparência do que no conteúdo propriamente dito
(2Co 10.10; 11.6; cf. ICo 1.17; 2.1,4,5), e cujo triunfalismo centrado em si
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO 97

mesmo, frequentemente a serviço da teologia do mérito, produzia uma síntese


totalmente distante do Jesus bíblico e do evangelho histórico.
A igreja cristã precisa de um pouco mais do discernimento e da intolerân­
cia de Paulo. Como os antigos coríntios, também às vezes somos enganados.
Contanto que haja uma verborragia constante sobre Jesus, evangelho, verdade,
vida cristã e experiência espiritual, somada a uma liderança eficaz e autocon-
fiante, raramente nos perguntamos se de fato trata-se do mesmo Jesus apresentado
nas Escrituras ou se o evangelho apresentado está de acordo com o evangelho
apostólico. A maioria dos que leem estas páginas reconhecem que o Jesus pre­
gado, por exemplo, pelas Testemunhas de Jeová, não é, em nenhum sentido, igual
ao Jesus do Novo Testamento. A síntese total do que as Testemunhas de Jeová
pregam resulta em outro Jesus. Contudo, o mesmo pode ser dito de algumas
apresentações de Jesus que nos são mais familiares. Será que o Jesus que nos
promete apenas saúde, prosperidade, sabedoria e alegrias é bíblico? Será que o
Jesus que nos garante o céu, mas nada diz sobre o inferno, é bíblico? Será que
o Jesus que promete a vida eterna, mas nada diz sobre as implicações de justiça
é bíblico? Será que o Jesus que precisa ter sua obra salvífica complementada por
nossos méritos, cerimônias e sacrifícios para que sejamos redimidos é bíblico?
Se no primeiro século os coríntios puderam ser ludibriados a transferir sua
lealdade para um Jesus que de fato não existia, o que nos autoriza a acreditar
que estaremos sempre a salvo de perigos e enganos semelhantes? Nossa única
segurança é um humilde e frequente retorno ao evangelho apostólico, ao Jesus
bíblico, preservado para nós nas páginas das Escrituras.
A propensão dos coríntios em seguir um evangelho falso, um evangelho
que não é o evangelho em absoluto, é o motivo por que Paulo tem tanto receio
de que os coríntios sejam induzidos a se desviarem da devoção a Cristo; e é
também a razão pela qual Paulo sugere, em tom irônico, que lhe deem ouvidos.
E, então, ele acrescenta ainda mais uma razão para que o ouçam:

3. Porque Paulo não é inferior aos “superapóstolos” (11.5,6). Mais uma vez,
esses versículos são introduzidos, no grego, pela preposição “pois”. Os coríntios
deveríam suportar a louca apresentação que Paulo está para fazer, pois, diz ele,
“não me julgo nem um pouco inferior a esses ‘superapóstolos’”.
Alguns estudiosos argumentam com veemência que os superapóstolos
a que Paulo se refere não são os intrusos (aos quais critica severamente em
2Co 11.13-15 como falsos apóstolos), mas apóstolos de genuína eminência
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

— presumivelmente os Doze, talvez tidos como modelos pelos intrusos. Esses


eruditos argumentam que Paulo não se compararia com esses superapóstolos
se de fato se tratassem das mesmas pessoas [isto é, dos intrusos]. Ele se refere
a obreiros enganosos e servos de Satanás alguns versículos depois. Essa inter­
pretação é bem plausível; porém, ignora o fato de que Paulo efetivamente se
compara com os falsos apóstolos (e.g., v. 22,23): esse é o cerne da louca vangloria
à qual ele precisou recorrer. Afinal, Paulo não está se comparando com os falsos
apóstolos em todos os aspectos, mas somente em frentes de batalha selecionadas,
na tentativa de reconquistar a confiança dos coríntios. E mesmo quando faz
tais comparações, duas características se sobressaem: primeiro, mal introduz
uma categoria em que as comparações devem ser feitas, Paulo derruba por terra
os critérios dos intrusos e adota critérios melhores (veja esp. os v. 6,23-28); e
segundo, sua pena respinga ironia por todos esses capítulos. não me julgo
nem um pouco inferior” não é uma avaliação fria e calculista, mas uma ironia
sarcástica com o intuito de envergonhar os coríntios para que fizessem uma
reavaliação. Ademais, já mostrei (no cap. 1) que há razões de caráter estrutural
para ligar esses superapóstolos aos “falsos apóstolos” dos versículos 13 a 15.
Parece, então, que Paulo oferece sua própria convicção de não ser inferior
aos intrusos que o estavam rebaixando como terceira razão por que os corín­
tios deveriam aturar sua “loucura”: e ele alude à desprezível conduta de seus
opositores nesse sentido chamando-os, com profunda ironia, de superapóstolos.
O ponto específico de comparação é a competência do apóstolo e a dos intrusos
no campo da oratória. No mundo de língua grega, muitos ouvintes de platéias
mais sofisticadas tinham preferência por uma retórica mais rebuscada; e não
alcançar a eloquência retórica esperada era considerado sinal de má formação
ou de capacidade abaixo do esperado.
Paulo reconhece que não é um orador eloquente (2Co 11.6). A primeira
vista, portanto, ele dá a impressão de admitir que, nesse aspecto, ele é, enfim,
inferior. Porém, trata-se de uma leitura apressada demais da passagem; pois em
outra parte Paulo insiste, em termos claros, que ele, de maneira intencional,
rejeitava os floreios retóricos em seu próprio ministério, precisamente para que
seus convertidos pudessem perceber que a fé que eles tinham baseava-se no poder
de Deus, não em sabedoria humana rebuscada (lCo 2.4,5). Da mesma forma
aqui: Paulo parece admitir um ponto, mas na realidade ele muda os critérios.
“Pois posso não ser um orador eloquente”, diz, “contudo, tenho conhecimento”.
E então, para que eles não deixem de captar a ideia, enfatiza: “De fato, já
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO 99

manifestamos isso a vocês de todas as formas” (2Co 11.6; essa é provavelmente


a melhor tradução de certos termos gregos muito difíceis).
Pela preocupação de Paulo em manter o verdadeiro evangelho e o real Jesus
(2Co 11.4), e por sua insistência de que tem conhecimento — i.e., conhecimento
do verdadeiro evangelho — parece, portanto, que os coríntios corriam o risco
de serem seduzidos por uma forma mais palatável de evangelho. A retórica
rebuscada era mais importante do que a verdade. Um bebê pode ficar mais
interessado no papel de embrulho do que naquilo que é por ele embrulhado;
ninguém mais, porém, deveria agir assim. Afinal, Paulo não é inferior como
pregador — desde que se usem os critérios corretos!
É perfeitamente possível que, mesmo em bases formais, Paulo fosse um pre­
gador melhor do que deixa transparecer nesse texto. A admissão de que não é um
orador eloquente é feita em relação a determinado padrão artificial de oratória;
entretanto, ele ainda assim pode ter sido um orador poderoso e persuasivo que
se recusava a adotar os padrões artificiais de um estilo retórico específico. Tais
padrões vêm e vão; e, enquanto estão “em alta”, são perigosos, à medida que
desviam a atenção do conteúdo. Dizer as coisas com perspicácia e da maneira
sancionada pode se tornar subitamente mais importante do que aquilo que é dito.
Esse perigo tem rondado a igreja com frequência de uma maneira ou de
outra. Já nos idos do quarto século, João Crisóstomo (c. 344-407) queixava-se
de seus companheiros de pregação cristãos que tentavam imitar a oratória pagã:

Há muitos pregadores que fazem longos sermões: quando são bastante


aplaudidos, ficam tão contentes como se tivessem conquistado um reino; se
encerram o sermão e só há silêncio, o desalento deles é quase pior, eu diria, do
que o inferno. É isso que vence as igrejas: o fato de não procurar ouvir sermões
que toquem o coração, mas sermões que deleitem seus ouvidos pela entonação
e estrutura frasal, como se estivesse ouvindo cantores e tocadores de alaúdes.
E nós, pregadores, cedemos a esses caprichos, em vez de tentar esmagá-los
(Homília 30 sobre Atos dos Apóstolos 3).

No século 19, o grande pregador britânico Charles Haddon Spurgeon, em


uma aula ministrada a seus alunos, disse estas palavras:

Você pode ir a qualquer lugar, seja uma igreja, seja uma capela, e descobrirá que
de longe a grande maioria de nossos pregadores tem uma entonação sagrada
para os domingos. Eles têm uma voz para a sala de visitas e para o quarto, mas
outra bem diferente para o púlpito. O que é isso, senão alguém de língua dobre
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

e pecadora, algo que, com certeza, são literalmente. No momento em que


alguns deles fecham a porta do púlpito, deixam para trás a própria hombridade,
e tornam-se tão burocratas quanto um sacristão de paróquia. E lá eles quase
podem se gabar como o fariseu por não serem como os outros homens, ainda
que seja blasfêmia agradecerem a Deus por isso. Já não são de carne e osso
nem falam como homens, mas adotam um tom lamuriento, um murmúrio
hesitante, um ore rotundo,23ou algum outro modo sem graça de fazer barulho,
a fim de evitar qualquer suspeita de que são naturais e falam do que extravasa
do coração. Uma vez que se vista esse hábito, quão frequentemente isso vem
a ser a mortalha do verdadeiro eu desses homens e o emblema efeminado do
oficialismo! (Lectures to my studcnts)2

Hoje, em muitas igrejas, não temos exatamente o mesmo problema da


oratória profundamente artificial. Porém, enfrentamos outras influências do
nosso contexto secular, e elas muitas vezes afetam tanto a forma de nosso culto
e ministério que têm tirado de Cristo o foco da nossa atenção. Em muitos
círculos, é comum a congregação aplaudir uma música especial (que, por
sinal, pouco tem de especial), e às vezes até o sermão. Com isso, criamos uma
atmosfera de interação entre quem canta ou prega e os espectadores, entre
alguém que entretém e uma audiência que o aprecia. Isso vai muito além do
piedoso incentivo àqueles que servem bem e se aproxima do protocolo de um
teatro. Já preguei o suficiente em círculos com essa característica para aprender
como ativar e desativar os aplausos — e isso, obviamente, é parte do insidioso
perigo que há em tudo isso, como bem percebeu Crisóstomo. Gradualmente
as congregações exercem cada vez mais discernimento no tocante à forma, e
cada vez menos em questões relacionadas à verdade. Estamos cultivando novas
e poderosas tradições que, de certa forma, amordaçam o dom de discernimento
e nos expõem a modos essencialmente pagãos de ver o culto comunitário. Um
pouco de atenta reflexão e autocrítica revela um número incontável dessas
mudanças. O total impacto que elas têm sobre a igreja, a verdade, a devoção
pura a Cristo e a qualidade da liderança cristã ainda não dá para ser estimado
por completo; mas dificilmente poderiamos duvidar de seu caráter essencial­
mente pagão e da forma nociva que contribuem para alimentar o próprio
interesse, não o de Deus.

2Em latim, “com a boca redonda”, isto é, o falar de modo pomposo e afetado. (N. do T.)
3Ediçao em português: Lições aos meus alunos (São Paulo: PES, 1990), 3 vols.
O PERIGO DO FALSO APOSTOUKDO 101

Embora fosse loucura o fato de Paulo ter usado esses versículos para for­
necer uma terceira razão pela qual os coríntios deveríam escutá-lo, a saber, por
ele não ser inferior aos superapóstolos, o apóstolo fez isso desafiando critérios
fundamentais deles. E haverá ainda muitas mais inversões de critério antes que
Paulo dê por acabada a sua tarefa (veja esp. 2Co 11.2lb-33; 12.1-10).

B. Resposta a uma acusação específica: a independência


de Paulo em relação aos coríntios (11.7-12)
Por fim, antes de embarcar em seu “orgulho insensato” (2Co 11.16—12.10),
Paulo destaca mais uma área específica em que seu chamado apostólico foi ques­
tionado e os critérios usados pelos opositores são fundamentalmente malignos.
Os mestres itinerantes do primeiro século, sofistas e retóricos profissionais,
normalmente não trabalhavam com as próprias mãos. Os melhores entre eles
evitavam pedir dinheiro, ainda que fosse preciso fazer algum trabalho braçal;
mas o ideal era ganhar a vida vivendo do próprio ensino. Quanto mais famoso
o mestre, mais ele poderia cobrar, e mais alunos associariam-se a ele e conside­
rariam um privilégio pagar sua remuneração. Portanto, sob vários aspectos o
status de um mestre poderia ser avaliado pelo valor a que ele poderia fazer jus,
assim como figuras de destaque do atual circuito de palestras acadêmicas ou
políticas podem ser classificadas pelo valor dos honorários que recebem.
Ao contrário de seus contemporâneos sofistas e de seus oponentes intrusos,
Paulo recusou-se a aceitar qualquer tipo de sustento dos crentes coríntios.
Não fica inteiramente claro por que ele tomou tal decisão. Certamente Paulo
reconhece o princípio de que aqueles que pregam o evangelho têm direito a
sustento por parte das pessoas a quem ministram (veja esp. ICo 9; cf. 3Jo 5—8),
um princípio que remonta ao próprio Jesus (Lc 9.3,4; 10:4,7). Além disso,
Paulo algumas vezes recebia ajuda financeira das igrejas fundadas por ele: em
particular, recebia apoio das igrejas da Macedônia, tais como a igreja em Filipos
(2Co 11.8,9; Fp 4.10-15); e também podia, às vezes, ativamente solicitar assis­
tência para suas viagens e ministério (Rm 15.24). E bem verdade que, por vezes,
Paulo se recusava a aceitar qualquer apoio financeiro só para que o evangelho
pudesse ser pregado de livre vontade (ICo 9.16-18); porém, visto que nem
sempre era essa a sua prática, por que ele recusa dinheiro dos coríntios, sobre­
tudo quando a questão se tornou tão delicada? Por que não aceitar o dinheiro e
com isso desativar essa situação explosiva? Afinal de contas, os coríntios estavam
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

sabendo que Paulo recebera auxílio de outras igrejas (e se não sabiam antes de
2Coríntios ser escrita, ele candidamente lhes informa sobre o fato nessa carta,
em 11.8,9). Por que deveria tratá-los de forma diferente?
Cuidadosamente tutelados pelos falsos apóstolos, já assimilando o precon­
ceito da sociedade paga ao redor, que avaliava os mestres pelo volume do que
ganhavam, os coríntios passaram a acreditar que, afinal de contas, Paulo não
podia estar à altura de um apóstolo. Talvez começaram a pensar dele o mesmo
que Antifonte pensava de Sócrates:

Se introduzisses um valor em tua sociedade, tu insistirías em cobrar um preço


por isso também. Bem pode ser que sejas um homem justo, posto que não iludes
as pessoas por avareza; mas sábio não podes ser, visto que teu conhecimento
não tem custo algum (Xenofonte, Memorabilia 1.6.12).

Confrontado com tão extremo preconceito, o qual impõe uma condição


de apostolicidade, ou no mínimo uma forma de classificá-la, Paulo ataca de
frente o problema. Mais uma vez ele questiona os malignos critérios empregados
por seus opositores e ingenuamente adotados pela igreja coríntia. Ele o faz
apresentando suas próprias percepções sobre o assunto e suscitando algumas
questões sobre o discernimento de seus leitores. Sua resposta à acusação deles
revela um pouco de sua compreensão sobre o lugar da auto-humilhação na vida
de um líder cristão, algo de seu senso de estratégia nas decisões financeiras, e
um pouco mais sobre seu amor e ironia.

1. A auto-humilhação voluntária do apóstolo (11.7). “Será que cometi”,


pergunta Paulo, “algum pecado ao rebaixar-me a fim de elevá-los, pregando-
-lhes gratuitamente o evangelho de Deus?” Naturalmente, Paulo tem direito de
cobrar por seu trabalho, de receber apoio de seus convertidos (cf. ICo 9.7-12a);
mas é pecado ele abrir mão de seus direitos (cf. 12b—18)? Pode essa abnegação,
a recusa de se valer de direitos consagrados, vir a ser uma ofensa? É possível
que a aceitação de remuneração seja um critério realista para a apostolicidade?
Deus me livre! Ao menos a abordagem de Paulo em relação ao dinheiro
tornava impossível a qualquer um em Corinto pensar que ele estava negociando
a palavra de Deus com o objetivo de lucro (2Co 2.17). Ademais, a pergunta
provocativa de Paulo mostra dois elementos adicionais da compreensão do
apóstolo sobre essa questão. Primeiro, pelo menos parte de seu propósito em
rebaixar a si mesmo, voltando a fazer trabalhos braçais enquanto ministrava aos
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO 103

coríntios (cf. At 18.3), era elevá-los acima da idolatria e da imoralidade deles.


A primeira vez que Paulo chegou em Corinto, não havia igreja alguma ali para
apoiá-lo. Só quando chegou a ajuda financeira vinda das igrejas já estabelecidas
na Macedônia, Paulo pôde dedicar toda sua energia ao evangelismo e à plan­
tação de igrejas (At 18.5). Mas a falta de provisão não o forçou a suspender as
operações até que recebesse o sustento adequado. Seu desejo ardente era elevar
os coríntios por meio da pregação do evangelho; e se isso significasse rebaixar
a si mesmo ao trabalho braçal temporário, Paulo estava pronto para o desafio.
Longe de ser orgulhoso demais, o amor do apóstolo pelos perdidos, seu anseio
por elevá-los em Cristo Jesus e o solene imperativo que sentia de pregar o evan­
gelho deixavam-no com pouca escolha que não a auto-humilhação, implícita
no fato de um mestre voltar a fazer um trabalho braçal. A conclusão inevitável
é que, se os coríntios não entendessem o propósito de Paulo e seguissem os
critérios pagãos artificiais quanto ao que engrandecia um mestre, estariam
concomitantemente desvalorizando a própria salvação e rejeitando o amor de
um apóstolo que se dispôs a rebaixar a si mesmo a fim de elevá-los.
Mas há ainda na pergunta provocativa de Paulo um segundo elemento.
É difícil não ver por trás da pergunta de Paulo uma profunda compreensão da
cristologia central do cristianismo: o Filho eterno de Deus voluntariamente se
humilhou por amor à humanidade caída, tornando-se ele mesmo homem, assu­
mindo o papel de servo e morrendo a infame e dolorosa morte de um criminoso
condenado. O ministério apostólico de Paulo é, em certa medida, modelado
segundo Cristo: em outra parte ele escreve: “De modo que em nós atua a morte;
mas em vocês, a vida” (2Co 4.12). Se Cristo morreu, é “para que aqueles que
vivem já não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu
e ressuscitou” (2Co 5.15; veja esp. 6.3-10). Se a auto-humilhação de Paulo for
errada, o que dizer acerca do próprio Jesus Cristo? “Pois vocês conhecem a graça
de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês,
para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos” (8.9).
Eis o cerne da questão. Se Paulo estava assim tão errado, então, presume-
-se que o próprio Cristo estava errado. Se a via da auto-humilhação por amor
a outros estava certa para Cristo, e era, de fato, central à própria natureza do
evangelho, por que era errado Paulo pregar esse evangelho de Deus de forma
caracterizada pela auto-humilhação voluntária? Na percepção de Paulo, o
triunfalismo defendido pelos coríntios não só é perigoso no que diz respeito
104 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

ao relacionamento deles com o apóstolo, mas é fundamentalmente contrário


ao evangelho em si.
Eis o grande dilema e a fraqueza intrínseca de todo triunfalismo: ele se
afasta progressivamente do evangelho e do próprio Cristo Jesus, e fica mais à
vontade em uma atmosfera de exibicionismo e competição, de celebridades,
conquistas, vitórias e heróis do que com o sacrifício pessoal vivido sob a sombra
da cruz. A igreja deve continuamente se perguntar quanto do triunfalismo pagão
contemporâneo tem sido inconscientemente absorvido em sua vida, afetando
seriamente nosso modo de encarar as finanças, o serviço, a liderança, as metas, o
sacrifício, as expectativas e até a própria teologia. Ao longo desses capítulos Paulo
constantemente dispõe essas duas estruturas de pensamento — o triunfalismo
e o cristianismo bíblico —uma contra a outra em agudo contraste. “O puro e
inegociável evangelho de Cristo e a corrompida doutrina dos judaizantes têm
um custo (11.20); a auto-humilhação de Paulo e a autoglorificação dos judai­
zantes; a emancipação da comunidade por ele e a escravização da comunidade
pelos judaizantes são contrastes propositais” (Waite).

2. A estratégia do apóstolo (11.8,9). Paulo esboça sua estratégia em duas


partes. Primeiro, ele diz: “Despojei outras igrejas, recebendo delas sustento, a fim
de servi-los”. Dito de forma mais direta, quando passou necessidades enquanto
servia em Corinto, ele não se tornou um fardo para nenhum dos coríntios,
“pois os irmãos, quando vieram da Macedônia” supriram-no do que carecia
(2Co 11.9a; At 18.5; Fp 4.15). Por essa e por outras passagens de Paulo(?),
parece que às vezes ele não somente recusava todo apoio (lCo 9.15-18),
mas que, quando o recebia, de fato, nunca era da igreja em que estava então
ministrando. Ele não somente recebia, mas na realidade podia solicitar auxílio
das igrejas quando se tratava da finalidade de financiar seus novos empreendi­
mentos missionários (At 15.3; Rm 15.24; a expressão “os enviou” ou “ajudou”
significa assistência financeira). Na verdade, a certa altura ele estava preparado
para receber esse tipo de ajuda dos próprios coríntios (lCo 16.6,11; 2Co 1.16).
Para usar a expressão de Paulo, ele “despojou” outras igrejas para bancarem
o ministério dele à época — o que, obviamente, não significa que tomasse
dinheiro deles sem consentimento, mas que, quando o recebia, ele não lhes
estava prestando diretamente um serviço; e, pelo menos em certos casos, difi­
cilmente a congregação poderia ser tão generosa.
O PERIGO DO FALSO APOSTOUXDO 105

A razão de Paulo seguir esse padrão não está claramente expressa em lugar
nenhum. Pode ter sido parte do seu plano pregar o evangelho gratuitamente
(1 Co 9.15-18) para proclamar, por palavras e ações, a maravilhosa graça de Deus.
As pessoas têm dificuldade em compreender a liberalidade da graça: talvez um
exemplo concreto pudesse ajudar. Enquanto isso, a igreja contribuinte, à qual
Paulo não mais estava ministrando, estaria aprendendo uma lição ligeiramente
diferente, a saber, o débito que a graça põe sobre nós para com todos os seres
humanos e o privilégio de participar, por meios financeiros, da evangelização
e da plantação de igrejas, responsabilidades que pertencem a todos os cristãos.
Em nenhum dos casos Paulo está sendo remunerado por serviços prestados.
Entretanto, no que dizia respeito aos coríntios, a estratégia de Paulo agora
tem uma segunda parte: “Fiz tudo para não ser pesado a vocês, e continuarei
a agir assim” (2Co 11.9b). Parece, portanto, que por mais que em princípio
Paulo tivesse estado disposto, ao menos no passado, a receber ajuda deles para
seu ministério apostólico, ele não mais está disposto a receber deles qualquer
auxílio, seja de que tipo for. Evidentemente, ele ainda coletará dinheiro deles
para dar a outros, como, por exemplo, para socorrer os pobres em Jerusalém
(2Co 8,9); mas não aceitará deles nem um centavo sequer para si.
Parte da razão para esse passo logo é esclarecida (2Co 11.12; veja abaixo).
Além disso, a formação dessa diretriz individual para os coríntios pode ter sido
estimulada pela visão particularmente pagã de remuneração que eles tinham.
Enquanto avaliassem Paulo pelo volume de seus ganhos, enquanto utilizassem
padrões do mundo para avaliar igualmente mensagem e mensageiro, Paulo não
estaria disposto a reforçar essa abordagem pagã deles recebendo coisa alguma
de suas mãos.

3. O amor do apóstolo (11.10,11). “Tão certo como a verdade de Cristo


está em mim,” escreve Paulo —juramento feito para convencer os coríntios da
verdade daquilo que ele está prestes a dizer — “ninguém na região da Acaia
poderá privar-me deste orgulho”. Deste orgulho? Sim, “orgulho” é a palavra
que Paulo quer; pois o que os coríntios veem como sólida evidência da insig­
nificância de Paulo, ele próprio entende como o aspecto que coroa o viver sob
o símbolo da cruz. Ele não tem qualquer intenção de reverter a diretriz adotada
em 2Coríntios 11.7 (e ICo 9.18); e longe de ficar se desculpando ou de declinar
dessa postura, ele se orgulha do princípio do autossacrifício em questão, assim
como mais tarde se orgulhará de sua fraqueza (12.7-10).
106 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Contudo, esse orgulho não é instigado por uma arrogância obstinada ou


por uma recusa altiva em levar em conta os sentimentos dos outros; menos
ainda por uma espécie de orgulho às avessas pela quantidade de autossacrifício
que consegue impor à própria vida. Assim como a humilhação pessoal de Cristo
foi motivada pelo mais profundo amor por aqueles a quem ele veio servir, o
mesmo se dá com Paulo. Na verdade, ele próprio pergunta a seus leitores: “Por
que eu intransigentemente me recuso a alterar essa política?” Então ele mesmo
dá a resposta: “Por que não os amo? Deus sabe que os amo!”.
Quão profundamente distorcido havia se tomado o pensamento dos coríntios!
Eles têm de ser persuadidos, mediante um segundo juramento solene (“Deus
sabe”), de que o homem que prontamente tanto se sacrificara por eles de fato os
ama. A cegueira dele é mais surpreendente ainda quando lembramos que Paulo
está simplesmente espelhando a abnegação de Cristo, o qual, por meio de sua
pobreza, enriquecera a outros. Não admira Paulo começar a se perguntar se os
coríntios de fato são cristãos (2Co 13.5). Porém, em certo sentido talvez não
seja demasiadamente surpreendente o fato de nesse ponto os motivos e as ações
de Paulo serem mal interpretados; “a humildade e o autossacrifício muitas vezes
o são, sobretudo por quem não os pratica com frequência” (Barrett).

4. A perspicaz ironia do apóstolo (11.12). Paulo compreende a natureza


humana suficientemente bem para saber que, se os falsos apóstolos constante­
mente o humilham, isso em parte se dá por estarem com inveja dele e de seu
ministério eficaz. Se eles exibem o tempo todo uma alegada superioridade, é
grande a probabilidade de que estejam cientes de sua patética inferioridade e
estejam tentando mascará-la. Portanto, Paulo os desafia à luta: ele manterá sua
atual política de sustento, segundo ele mesmo diz, “a fim de não dar oportu­
nidade àqueles que desejam encontrar ocasião de serem considerados iguais a
nós nas coisas de que se orgulham.”
A rigor, isso não é (como Barrett aponta, com toda razão) um argumento
eficaz do ponto de vista lógico. Os intrusos invejam a importância e a eficácia
de Paulo; contudo, o que repudiam mais especificamente, e até mesmo ridicu­
larizam, são os princípios que Paulo adota em relação ao dinheiro. Logo, por
que deveriam tentar imitar Paulo nesse aspecto?
Entretanto, o argumento de Paulo é eficaz do ponto de vista psicológico,
pois mostra os intrusos como pessoas determinadas a ganhar dinheiro, não como
líderes que sacrificam a si mesmos visando o bem-estar dos coríntios. Ademais,
O PERIGO DO FALSO APO5TOUXDO 107

ainda que o argumento não seja eficaz do ponto de vista lógico em relação às
premissas dos opositores de Paulo, ele o é em relação às próprias premissas do
apóstolo; e é justamente esse o ponto. Se os intrusos não podem seguir o exemplo
dele nesse aspecto, é precisamente por sua compreensão do evangelho ser pate­
ticamente equivocada; e, portanto, suas vanglorias valem menos do que nada.
Se fossem seguir a prática de Paulo, então naturalmente teriam de abandonar
sua atitude mundana quanto à remuneração e ainda o toque de triunfalismo
pagão por detrás dela. De uma maneira ou de outra, o hábil uso que Paulo faz
da ironia traz à tona questões centrais e força os coríntios a fazerem uma escolha.

C. Os causadores de problemas são expostos (11.13-15)


Do começo ao fim desses versículos, Paulo destrói os critérios falsos e embus­
teiros dos intrusos. Antes de tratar da própria vangloria há tanto esperada, ele,
de modo bem direto, mostra a conclusão a que seu argumento inevitavelmente
leva: aqueles que lançam mão de intermináveis critérios falsos também são
falsos em seu âmago.

1. Falsos apóstolos: o disfarce de piedade (11.13). Nos termos mais fortes


que já empregou, Paulo escreve: “Pois tais homens são falsos apóstolos, obreiros
enganosos, fingindo-se apóstolos de Cristo”. Os intrusos se apresentam como
apóstolos de Cristo; mas, assim como Paulo já mostrou que o Cristo deles
não é o real (2Co 11.4), seu autoproclamado status como apóstolos de Cristo
deve ser, portanto, falso, um mero disfarce. Eles nunca foram comissionados
por Cristo; nem pregam a ele verdadeiramente, muito menos o imitam. São
obreiros ludibriadores que circulam por aí totalmente disfarçados, como se a
igreja fosse uma festa à fantasia.
O estrago que essa gente pode causar é imenso. Antes, a igreja coríntia
havia se mostrado negligente em questões morais (ICo 5); agora ela está sendo
negligente em questões de doutrina, atitude e liderança. O resultado é toda
uma rede de líderes legalmente empossados na igreja que de maneira ativa, e em
nome de Jesus, trabalham contra o evangelho, e em nome de uma maturidade
cristã maior, instilam um triunfalismo mortal que impossibilita a “sincera e pura
devoção a Cristo” (2Co 11.3,4).
A luz das aterradoras direções que a igreja vinha tomando por causa desses
falsos apóstolos, não é de surpreender que a linguagem do apóstolo tenha sido
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

tão forte. Bengel observou que, dois séculos e meio atrás, “a indiferença, que
tanto agrada a muitos hoje em dia, não era cultivada por Paulo. Ele não era
um ameno mestre da tolerância”. Na verdade, esse problema frequentemente
coloca a igreja em perigo. Tasker detecta o mesmo perigo na primeira metade
do século 20, ao escrever: “E um sinal da superficialidade de grande parte do
pensamento religioso moderno o fato de Menzies, escrevendo em 1912, achar
necessário descrever os versículos 13 a 15 como ‘Um dos mais precipitados pro­
nunciamentos nos escritos paulinos’, acrescentando que ‘muitos dos melhores
amigos do apóstolo não defendem o estilo polêmico dele nessa passagem’”.
O apelo à tolerância sem limites — não apenas à tolerância do direito de
o outro sujeito estar errado, mas à tolerância levada tão longe que ninguém
pode dizer que algo ou alguém está errado — pressupõe que o maior dos males
é defender a forte convicção de que certas coisas são verdadeiras e o contrário
delas é falso. Pior, tal pressuposição funciona por causa de uma pressuposição
anterior: a de que o conhecimento seguro em questões de religião é algo
impossível. Porém, se defendermos que Deus se revelou à humanidade de modo
supremo na pessoa de seu Filho, mas também nas palavras e proposições das
Escrituras, então, por mais que muitas dificuldades de interpretação possam
ainda nos afligir, não temos o direito de tratar como opcional qualquer coisa
que Deus tenha dito. Na verdade, nunca dizer que uma opinião está errada
pressupõe que existe uma opinião certa — a saber, aquela que diz que nenhuma
opinião está errada. Ou isso é ilógico, ou o defensor dessa posição realmente
quer dizer que a opinião certamente correta é a de que nenhuma outra opinião
deve ser descartada como errada. Mas como a pessoa chegou a esse conheci­
mento seguro? Poucas opiniões são menos liberais e mais intolerantes do que
essa forma de liberalismo ferozmente intolerante em relação a tudo, menos em
relação a si próprio.
A maioria das pessoas está convencida de que certas opiniões estão erradas;
e, até certo ponto, as posições que sustentamos, conscientemente ou não, defi-
nem-se em oposição às opiniões que rejeitamos. Os alemães têm um sábio
ditado: “Sage mir, mit wem du streitest, und ich sage dir, wer du bist”, “Diga-
-me com quem estás lutando, e te direi quem és”. Cinquenta anos atrás, J.
Gresham Machen dizia a seus alunos que as questões mais importantes não são
aquelas nas quais as pessoas concordam, mas aquelas nas quais elas discordam.
Sua perspectiva sem dúvida pode ser usada de forma abusiva em defesa de uma
postura beligerante e mesquinha, mas uma reflexão empática em relação ao
O PERIGO DO FALSO APOSTOLADO

que ele está dizendo percebe que, no caso de muitos debates, essa análise está
perfeitamente correta.
Na situação de Corinto, Paulo e seus oponentes concordavam em relação
a muitas coisas centrais: o monoteísmo, a verdade da Escritura em relação a
isso, o caráter messiânico de Jesus e muito mais. Mas, pelo assunto em questão,
as coisas com respeito às quais discordavam eram muito mais importantes; e o
modo de cada lado apresentar suas principais objeções serve para identificar esse
lado e revela muito sobre ele. Para os instrusos, o oponente é Paulo; à medida
que aprendemos algo sobre ele, a objeção dos intrusos nos revela bastante sobre
eles: o que respeitam e valorizam, o que rejeitam, seus valores e muito mais.
Para Paulo, os oponentes são os intrusos; à medida que aprendemos algo sobre
eles, sua objeção nos revela bastante sobre o apóstolo: sua forte convicção sobre
a verdade do evangelho, sua profunda preocupação com o bem-estar espiritual
de seus convertidos, sua severa reprovação dos falsos ensinos na igreja e o quanto
ele desprezava a autopromoção e a devoção não sincera a Cristo.
Isso também é comum nos dias de hoje. A tolerância sem limites pode
refletir uma indiferença à verdade, mas quando nos opomos a algo igualmente,
mostramos aquilo que somos e estimamos. Opor-se pelo mero prazer de dis­
cordar tem pouco valor; mas, olhando de outra perspectiva, a falta de oposição
sugere que somos cegos, tolos ou que não nos importamos. Cristãos que se
preocupam em proclamar o evangelho de forma eficaz e em ter uma igreja
equilibrada devem seguir o exemplo de Paulo: identificar o oponente de modo
preciso e atuar a partir de uma base de devoção apaixonada à verdade da religião
biblicamente revelada e de preocupação pela vida de homens e mulheres. Se
ficamos constrangidos pela veemência da denúncia de Paulo, nossa postura só
pode revelar o quanto nos afastamos do evangelho apostólico.

2. Falsos apóstolos: o exemplo de Satanás (11.14,15a). Paulo não está surpreso


com o fato de os falsos apóstolos se disfarçarem de apóstolos de Cristo, “pois o
próprio Satanás se disfarça de anjo de luz. Portanto, não causa surpresa o fato
de seus servos fingirem ser servos da justiça”. Aqui Paulo não somente insiste
que os falsos apóstolos são seguidores de Satanás (Jesus disse algo parecido com
respeito a alguns que se opunham a ele, em Jo 8.42-47), mas também que a obra
deles se caracteriza pela fraude. A obra deles é satânica em sua origem (algo
também sugerido no paralelo traçado em 11.3), fundamentalmente oposta ao
evangelho de Deus; porém, o foco dessas linhas não se concentra tanto na sua
linhagem espiritual em si, mas na mentira do ataque desferido pelos intrusos.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Nenhuma passagem específica atesta a autotransformação de Satanás em um


anjo de luz. Sem dúvida o pensamento apoia-se no ensino bíblico geral sobre
o grande adversário: ele é um completo enganador, e sua obra mais eficiente
é conquistada mediante artimanha, disfarce e falsa representação. “Satanás não
vem a nós como Satanás, tampouco o pecado se apresenta a nós como pecado,
mas com a máscara da virtude. E os mestres do engano apresentam-se como os
defensores especiais da verdade” (Hodge). O próprio Senhor Jesus insistia no
fato de que não havia verdade em Satanás: “Quando mente, fala a sua própria
língua, pois é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44). Paulo reconhece que Satanás
põe em prática esquemas ardilosos que podem nos enganar.
As implicações disso devem nos inquietar se não tivermos o hábito de pensar
muito na natureza do pecado e da tentação. Não é a perspectiva de cometer
um grande mal o que seduz a maioria dos crentes a pecar. Longe disso: eles
racionalizam seu caminho para o pecado, vendo nele algum tipo de virtude ou,
no mínimo, fazendo vistas grossas às dimensões do mal. Burlam o imposto de
renda, não porque o furto e a mentira sejam pecados graves, e sim porque (dizem
a si próprios) há muito desperdício por parte do governo, porque o governo
arrecada mais do que deveria, porque todos estão fazendo isso e porque nin­
guém ficará sabendo. Eles fofocam sobre vizinhos e amigos não por consciente
desobediência a Deus, mas porque sentem que estão dizendo a verdade, fruto
de discernimento maduro. Eles nutrem amargura e ódio contra um cônjuge
ou um companheiro de fé não por desejarem ignorar os inequívocos avisos
da Escritura contra a amargura e o ódio, mas por estarem convencidos de que,
no decorrer dos acontecimentos, suas emoções não são más, mas simplesmente
casos compreensíveis de justa indignação.
Da mesma forma, os mesmos motivos distorcidos com frequência prevale­
cem em seus juízos doutrinários. Cristãos serão desencaminhados a pensar que
não existe inferno, não por terem decidido ser seletivos com respeito a quais
ensinos de Jesus aceitarão, mas porque ouviram algumas extrapolações sobre
o tema do amor de Deus que não apenas vão além do texto bíblico, mas que
também negam algumas outras partes da Escritura. Eles darão muito apoio a
mestres da heresia que aparecem na televisão não por amarem a heresia, mas
porque os vilões na tela falam profusamente sobre alegria, paz, triunfo, experiên­
cia e sobre algum tipo de Jesus — e quem consegue ser contra essas coisas?
A questão é que o arqui-inimigo é um arquienganador. A menos que com­
preendamos isso, seremos pateticamente ingênuos, tragados por vários pecados
O PERIGO DO FALSO APOSTOUXDO 111

e levados de lá para cá em nossa doutrina. O único antídoto certeiro é o


caminhar humilde com Deus, caracterizado por um conhecimento crescente e
amadurecido das Escrituras: “crescente” no sentido de cada vez mais verdades
bíblicas estarem sendo digeridas e “amadurecido” no sentido de ser feito todo
esforço para pôr em prática toda verdade aprendida da Palavra de Deus. Essa
atitude de ouvir com humildade à mente de Deus gradualmente transformará
nossa mente e muito nos protegerá do engano de Satanás e de seus servos.
A triste verdade sobre os cristãos em Corinto é que eles se viam como cren­
tes sofisticados, quando, na realidade, eram tão imaturos que se tornaram presas
fáceis. A análise de Paulo acerca da maturidade espiritual dos coríntios permance
inalterada, desde quando escreveu a primeira carta canônica a eles: “Dei-lhes leite,
e não alimento sólido, pois vocês não estavam em condições de recebê-lo. De
fato, vocês ainda não estão em condições, porque ainda são carnais” (ICo 3.2,3).

3. Os falsos apóstolos: a recompensa do engano (11.15b). A última frase de


despedida de Paulo é incrível em sua absoluta simplicidade: “O fim deles será
o que as suas ações merecem”.
Essa frase não apenas volta-se para o juízo final e pronuncia condenação,
mas também reflete a compreensão de Paulo acerca da gravidade da ofensa dos
falsos apóstolos. Assim como os judaizantes da Galácia, que caíram vítimas do
anátema apostólico (G1 1.8,9), Paulo julga os intrusos em Corinto como não
cristãos. Não há razão para entrar em extensas discussões teológicas com eles.
Se Paulo está certo, eles não estão apenas errados, mas diabolicamente errados,
e consequentemente condenados. Os servos de Satanás não se tornam servos da
justiça apenas vestindo um disfarce. Por mais atraentes que sejam seus enganos, o
mal não se torna bem por ser chamado de bem. O Deus que chama à prestação
de contas decretou:

Ai dos que chamam ao mal bem


e ao bem, mal,
que fazem das trevas luz
e da luz, trevas,
do amargo, doce
e do doce, amargo.

Ai dos que são sábios aos seus próprios olhos


e inteligentes em sua própria opinião (Is 5.20,21).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Em particular, o Senhor promete especial ira sobre os que causam danos à


sua igreja (lCo 3.17; cf. 2Tm 4.1-4).
Nesses versículos que estão diante de nós, Paulo subverteu os falsos critérios
dos intrusos e, numa ofensiva final, expôs seus opositores como falsos apóstolos
que eram. Se os coríntios tiverem dedicado alguma atenção à evolução de seu
argumento, é bem pouco provável que agora interpretem mal o que Paulo quer
alcançar com a louca vangloria da qual passará a tratar.
Qualificações triunfalistas
Respondendo aos loucos
segundo a sua loucura

Repito: ninguém me considere louco. Mas se vocês assim me consi­


deram, recebam-me como receberiam um louco, a fim de que eu me
orgulhe um pouco. Ao ostentar este orgulho, não estou falando segundo
o Senhor, mas como louco. Visto que muitos estão se vangloriando ao
estilo do mundo, eu também me vangloriarei. Vocês, sendo assim tão
sábios, suportam de bom grado os loucos! De fato, vocês suportam até
quem os escraviza ou os explora, ou quem se exalta ou lhes fere a face.
Para minha vergonha, admito que fomos fracos demais para isso!
Naquilo em que todos os outros se atrevem a gloriar-se — e falo
como louco — eu também me atrevo. São eles hebreus? Eu também sou.
São eles israelitas? Eu também sou. São eles descendentes de Abraão?
Eu também sou. São eles servos de Cristo? (estou fora de mim para falar
desta forma) Sou muito mais: trabalhei muito mais, fui encarcerado mais
vezes, fui açoitado mais severamente e exposto à morte várias vezes.
Cinco vezes recebi dos judeus quarenta açoites menos um. Três vezes
fui golpeado com varas, uma vez apedrejado, três vezes sofri naufrágio,
passei uma noite e um dia exposto ao mar aberto. Estive continuamente
viajando de uma parte a outra, enfrentei perigos nos rios, perigos de
assaltantes, perigos dos meus compatriotas, perigos dos gentios; perigos
na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, e perigos dos falsos
irmãos. Trabalhei arduamente; muitas vezes fiquei sem dormir, passei
fome e sede, e muitas vezes fiquei em jejum; suportei frio e nudez. Além
disso, enfrento diariamente a pressão de minha preocupação por todas
as igrejas. Quem não está fraco, que eu não me sinta fraco? Quem não
é levado a pecar, que eu não me queime por dentro?
Se devo me orgulhar, que seja nas coisas que mostram a minha fraqueza.
O Deus e Pai do Senhor Jesus, bendito para sempre, sabe que não
estou mentindo. Em Damasco, o governador nomeado pelo rei Aretas
mandou vigiar a cidade para me prender. Mas fui baixado num cesto,
de uma janela na muralha, e escapei das mãos dele (2Co 1 l.íó-33).
114 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

A. O prefácio de um louco (11.16-21a)


O apóstolo finalmente está pronto. Está prestes a embarcar na mesma vangloria
insensata que tanto despreza nos outros. Mas ele faz uma nova pausa. Há ainda
o perigo de que, de forma intencional ou não, algum coríntio particularmente
obtuso não consiga discernir que o Paulo que se vangloria não é o verdadeiro
Paulo. Assim, uma vez mais, mesmo depois de colocar tanta distância entre si
mesmo e os falsos apóstolos, entre seus princípios de conduta e os deles, Paulo
entende ser necessário advertir seus leitores de que está prestes a assumir a atitude
menosprezível de um louco, não de um apóstolo. Em suma, ele faz um breve
prefácio para, uma vez mais, explicar sua insensatez.

1. Orientação: não levem a sério a loucura de Paulo (11.16a). “Repito”,


afirma Paulo, “ninguém me considere louco”. Na maioria das ocorrências nos
versículos seguintes, Paulo usa a palavra “louco” para se referir àqueles que se
vangloriam de forma inaceitável aos olhos dele. Em outras palavras, são loucos
na sua perspectiva como cristão. Seus leitores devem entender, portanto, que
nessa vangloria na qual ele está prestes a embarcar, o apóstolo está usando o
argumento ad hominem. Não se trata de uma reflexão do verdadeiro Paulo, e sim
do Paulo que, para resguardar a igreja de Corinto da sedução moral e doutrinária,
deve responder aos verdadeiros loucos de acordo com a loucura deles.
Rigorosamente falando, Paulo não disse essas palavras antes. Por isso o seu
“Repito” inicial pode parecer, à primeira vista, um pouco estranho. Mas não
é estranho quando nos lembramos do versículo imediatamente anterior. Paulo
fez de tudo para colocar uma grande distância entre ele e seus oponentes. Se ele
os vê como falsos apóstolos, obreiros enganadores e servos de Satanás, então é
improvável que, ao adotar a prática deles (nesse caso, a vangloria), ele estivesse de
fato interessado em imitá-los! Da perspectiva de Cristo e, portanto, também da
de Paulo, eles continuam sendo loucos. O apóstolo já mostrou o abismo intrans­
ponível que há entre eles. Agora, Paulo faz questão de “repetir”: “ninguém me
considere louco” — ou seja, ninguém me inclua no grupo dos falsos apóstolos
por causa do rumo da argumentação que devo adotar temporariamente.

2. Pedido de desculpas: tolerem um pouco a loucura de Paulo (11.16b-18). Na


verdade, se os coríntios atendessem à admoestação inicial de Paulo para que não
o tomassem por louco, seria só por uma razão: terem caído em si. Mas Paulo
reconhece ser mais provável que o considerem louco — quer dizer, que considerem
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 115

que ele tanto se incluía entre os falsos apóstolos quanto usava os mesmos critérios
deploráveis e inadequados. Mas Paulo sabe como tirar partido da insensibilidade
deles: “Mas se vocês assim me consideram”, escreve ele, “recebam-me como rece­
beríam um louco, a fim de que eu me orgulhe um pouco” (v. 16). Se os coríntios
o receberem da mesma maneira que receberíam o insensato, então é óbvio que
acolheríam Paulo como acolheram os apóstolos rivais; e esse tipo de aceitação é
tudo o que Paulo precisa para superar as barreiras mentais deles e mostrar-lhes
que, mesmo com base nos critérios de seus rivais, ele em nada é inferior.
Mas depois de ir tão longe, Paulo recua. Ele se sente imensamente descon­
fortável por estar escrevendo desse modo, por estar contemplando a própria
apresentação de uma extensa lista de autoelogios. Por isso, ele protesta uma
vez mais: “Ao ostentar este orgulho, não estou falando segundo o Senhor, mas
como louco” (v.17). O profundo anseio de Paulo é imitar a Cristo, até em seu
modo de falar, e tem plena consciência de que esse tipo de vangloria arrogante
nunca foi o estilo do Senhor. Embora ninguém jamais tenha feito alegações
mais exaltadas sobre si mesmo do que Jesus, ele as proferiu não como um ser
humano mortal que procurasse em vão igualar-se a Deus, mas como o Filho
que a si mesmo se esvaziou e se empenhou no propósito de trazer salvação a
pecadores condenados. Visto que o Senhor Jesus Cristo nunca se expressou de
modo vanglorioso nos dias da sua carne, seria ultrajante supor que seu Espírito
levasse seus discípulos a agirem diferente hoje. “Jamais se poderia afirmar que
qualquer tipo de vangloria seja fruto do Espírito!” (Tasker). Paulo tem dolorosa
consciência desse ponto; por isso, chama atenção para o fato de que o que ele
está prestes a dizer passa muito longe da “mansidão e [...] bondade de Cristo”
(10.1), na verdade, não passa de insensatez temporária. A realidade é que, da
maneira que estão as coisas em Corinto, Paulo tem pouquíssimas opções: “Visto
que muitos estão se vangloriando ao estilo do mundo, eu também me vanglo­
riarei” (11.18). Em outras palavras, Paulo está prestes a se gloriar, não por estar
seguindo o exemplo de Cristo, mas porque os problemas pastorais de Corinto
o estão forçando, temporariamente, a seguir o exemplo de seus oponentes. Os
crentes de Corinto estavam satisfeitos com a autopromoção incessante dos após­
tolos intrusos. Ou eles eram em grande número, ou as práticas de relativamente
poucos tinham corrompido a muitos na congregação. Seja qual fosse o caso,
Paulo precisava descer ao nível deles, por alguns minutos, para ganhar a atenção
da audiência e pôr fim às acusações injuriosas. E, uma vez mais, ele apresenta
suas desculpas ao convidar os coríntios a tolerarem por um tempo a sua loucura.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

3. Denúncia: zombaria mordaz à sabedoria dos coríntios (11.19-21a). Paulo,


até o momento, concentrou a maior parte de sua atenção nos falsos apóstolos.
Aqui ele os deixa de lado, por um pouco, e volta-se para os próprios coríntios.
Seu tom torna-se irônico e até mordaz, ao tentar fazê-los ver o quanto sua tole­
rância presunçosa os escravizara, o quanto sua sabedoria arrogante mostrara-se
tola, o quanto sua cega aceitação dos intrusos com seus falsos critérios só lhes
causara dor e lhes roubara a própria essência.
Paulo pede aos coríntios que o tolerem tanto quanto tolerariam um louco.
Ele agora lhes escreve em tom profundamente irônico: “Vocês, sendo assim
tão sábios, suportam de bom grado os loucos!” (2Co 11.19). Nessa frase, a
palavra “loucos” poderia ser entendida de duas maneiras. Primeiro, é bem pos­
sível que os coríntios sentissem tanto orgulho da própria sabedoria a ponto de
considerarem seu pai em Cristo como um louco. Nesse caso, o termo “loucos”
refere-se àqueles a quem os soberbos coríntios assim rotulavam, mesmo que
fossem apóstolos. No entanto, uma vez que todos os demais usos de “louco” ou
“loucos”, nos versículos imediatamente próximos, referem-se àqueles a quem
Paulo rotula de loucos, a melhor opção é considerar essa ocorrência da mesma
maneira. Nesse caso, o que Paulo diz efetivamente é: “Vocês se acham tão
sábios, tão maduros, tão cheios de discernimento, que foram levados, por meio
de lisonjas, a se colocarem acima dos outros crentes. Mas olhem para si mesmos
de modo realista: na sua grande sabedoria, desceram tanto a ponto de adotarem
para si líderes tão insensatos quanto os falsos apóstolos!”. Por isso, por exemplo,
Massie comenta: “Esses orgulhosos é que são loucos, mas ao aceitá-los, vocês
se vangloriam na própria astúcia. Por isso, tenho certeza de que me aceitarão
quando eu falar como eles”. Essa interpretação, sem dúvida, está em harmonia
com os dois versículos seguintes (v. 20,21a), conforme veremos. (Veja também
discussão semelhante em 11.1, no cap. 4 deste livro.)
De um modo ou de outro, é inconcebível um grupo de cristãos se consi­
derar tão superior aos demais crentes a ponto de se tornar cego à própria falta
de discernimento e de sabedoria verdadeira. E triste admitir, mas essa arrogância
parece ter caracterizado muitos crentes coríntios, pois em passagem com não
menos ironia do que essa, Paulo sente-se compelido a escrever em sua primeira
epístola canônica a eles destinada: “Nós somos loucos por causa de Cristo, mas
vocês são sensatos em Cristo! Nós somos fracos, mas vocês são fortes! Vocês são
respeitados, mas nós somos desprezados!” (lCo 4.10).
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 117

Na verdade, a sabedoria presunçosa dos coríntios gerou neles uma tolerância


aparentemente sem limites, pois Paulo acrescenta: “De fato vocês suportam
até quem os escraviza ou os explora, ou quem se exalta ou lhes fere a face”
(11.20). Eles não só acolheram esses líderes pelas aparências, mas permitiram
que ascendessem a posições de influência e liderança e se apossassem da vida da
comunidade. Os intrusos converteram-se em tiranos; e os coríntios, em escravos
— escravos, especificamente, na servidão a novas regras e critérios depreciadores
da livre graça de Deus (cf. G1 2.4; 5.1). Os falsos apóstolos haviam explorado
a congregação em grandes somas, conseguiram impor-se de tal maneira que a
liderança local se deixara intimidar e ser alvo de insultos contundentes (a frase
“lhes fere a face” é, seguramente, linguagem metafórica referente a qualquer
tipo de tratamento humilhante).
Não há dúvida de que boa parte dos coríntios, já muito impactadas pelas
noções mundanas de poder, entendia que a autoridade brutal exercida por esses
apóstolos “intrusos” de alguma maneira dava credibilidade a suas reivindicações.
“Os coríntios não foram os últimos cristãos a ficarem impactados com a pompa
e circunstância eclesiástica. A submissão rastejante diante delas dificilmente é
menos ímpia do que a arrogância que lhes deu causa” (Barrett). Esses fantoches
do triunfalismo acabaram esmagadas por ele. Por não conseguirem perceber
as diferenças profundas entre a autoridade arrogante dos intrusos e a abnegada
devoção de Paulo, bem como a autoridade que o Espírito concedera ao após­
tolo, os coríntios acabaram escolhendo exploradores como líderes e modelos,
refestelando-se cegamente na própria sabedoria. Paulo não deseja sequer ser
comparado a tais exploradores sedentos de poder. Com ironia mordaz, ele
contempla o abuso de poder dessas pessoas e escreve: “Para minha vergonha,
admito que fomos fracos demais para isso!” (2Co 11.21).
Os crentes de Corinto não poderíam deixar de se retrair diante dessa crítica
contundente à sabedoria de que tanto se orgulhavam. Eles se consideravam
cristãos maduros e sábios, perspicazes seguidores do Salvador. No entanto, a
conduta desse Salvador era marcada por mansidão e humildade (cf. Mt 11.29),
ao passo que aqui eles estão se prostrando à grosseira agressividade e ao abuso de
autoridade exercido por servos de Satanás mascarados de presunçosos apóstolos
de Cristo (2Co 11.13-15). Os coríntios, entretanto, se agradam em desprezar seu
pai em Cristo, por não se sentirem impactados por aquilo que desprezam como
“fraqueza”, mas que, na realidade, são a consideração dedicada e a bondade de
um apóstolo de verdade, interessado apenas em edificá-los.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Não há dúvida de que Paulo está farto disso. No entanto, sua acusação
mordaz à sabedoria dos coríntios é bem diferente de sua implacável exposição
dos falsos apóstolos (2Co 11.13-15). Ao se voltar contra os intrusos, ele não dá
trégua e afirma que eles jamais foram crentes. A ironia que dirige aos coríntios,
ao contrário, é impactante o suficiente para os abalar e os tirar da própria com­
placência, mas é formalmente muito branda: ele concorda com os coríntios e
admite ser mais fraco do que os falsos apóstolos! Eis um líder com imensa sensi­
bilidade pastoral, um apóstolo cujo diagnóstico é tão sensível que ele mesmo
sabe que remédios aplicar. A ferida causada ao ego dos coríntios, assim como a
ferida feita por um cirurgião, tem o objetivo de remover um câncer especifica­
mente maligno. Poucas coisas malignas são tão perigosas quanto a arrogância
alimentada pela ignorância ou o triunfalismo nutrido por uma mente secular.

B. A vangloria apostólica (11.21b-33)


1. Paulo etn nada é inferior (11.21b). Paulo anuncia várias vezes que vai começar
a se vangloriar (2Co 10.8; 11.1,6,16). Agora, por fim, ele o faz. Abre o discurso
com a declaração geral de que em nada é inferior a nenhum rival concebível
que os coríntios se interessem em promover: “Naquilo em que todos os outros
se atrevem a gloriar-se [...] eu também me atrevo” (v. 21b). Mas, para Paulo,
continua a ser inteiramente detestável escrever dessa maneira; portanto, mesmo
agora, quando começa a vangloriar-se, ele novamente lembra isso a seus leitores,
com um embaraçoso comentário à parte: “e falo como louco”.

2. Paulo é herdeiro das bênçãos da antiga aliança (1122). O fato de Paulo


não estar se vangloriando de forma abstrata, mas na situação concreta em que
ele pode comparar a si mesmo com os falsos apóstolos, é algo marcante no uso
reiterado do pronome “eles”: “São eles isso, ou são aquilo?”.
Paulo faz três perguntas, todas relativas ao vínculo dessas pessoas com o
Antigo Testamento. “São eles hebreus?”, pergunta ele; e acrescenta, “Eu também
sou” (v. 22). Essa colocação não significa apenas que Paulo e seus rivais são judeus,
mas algo mais do que isso. A expressão completa, “hebreu de hebreus” (que
ele também podia aplicar a si mesmo, Fp 3.5), era provavelmente usada para se
referir a judeus de linhagem pura. Diferente de Timóteo, por exemplo, cuja mãe
era judia e o pai gentil (At 16.1), Paulo não era qualquer hebreu, mas hebreu
de hebreus: seus pais, de ambos os lados, eram judeus. Mas é mais provável que
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 119

o simples termo “hebreu” ou “hebreus” não se refira à pureza da linhagem de


sangue, mas à linguagem e à cultura (como em Atos 6.1, nasb): tanto Paulo
quanto seus rivais não eram meros judeus helenistas, mas judeus hebreus — ou
seja, judeus fluentes na língua e na cultura hebraicas (e/ou aramaicas). Apesar
de ter nascido em Tarso, Paulo pode ter sido criado em Jerusalém; mas criado
lá ou não, ele fora plenamente instruído no pensamento semita e firmado nas
raízes hebraicas.
Uma vez mais, Paulo pergunta: “São eles israelitas?”, e de novo responde:
“Eu também sou” (v. 22). Se “hebreus” e “israelitas” significassem apenas raça,
então, sem dúvida, a segunda pergunta seria redundante (assim como a terceira).
Na verdade, a palavra “israelitas” sugere algo mais. Ela traz à memória o povo
judeu na condição de povo de Deus, com todos os direitos, privilégios e herança
que isso envolve. A própria raça de Paulo era o povo de Israel, a respeito do
qual ele fala em outro lugar: "... o povo de Israel. Deles é a adoção de filhos;
deles é a glória divina, as alianças, a concessão da lei, a adoração no templo e as
promessas. Deles são os patriarcas, e a partir deles se traça a linhagem humana
de Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre! Amém” (Rm 9.4,5).
Paulo levanta uma terceira questão: “São eles descendentes de Abraão?”.
E uma vez mais reclama: “Eu também sou”. Provavelmente, trata-se de outro
modo de dizer que Paulo, não menos do que seus oponentes, poderia listar
tantas qualificações judaicas em sua linhagem quantas possa desejar. Como
descendente de Abraão, ele foi, com toda certeza, circuncidado ao oitavo dia,
tornando-se herdeiro das alianças (cf. Ef 2.11,12).
O que Paulo pensa de fato a respeito dessa herança, no que tange à sua
utilidade para recomendar alguém a Deus, é explicitado em outra carta de
sua autoria:

Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais:
circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à tribo de
Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor
da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível.
Mas o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de
Cristo. Mais do que isso, considero tudo como perda, comparado com a
suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por cuja
causa perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar
a Cristo (Fp 3.4b-8).
120 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Por ora, no entanto, Paulo precisa apresentar sua linhagem para relembrar
aos coríntios de que ele não é menos judeu, nem menos filho de Abraão, nem
menos herdeiro das alianças, nem um judeu menos treinado na língua e na
herança antigas do que qualquer dos falsos apóstolos que a ele se opõem. O
fato de Paulo ter de pôr essa questão em primeiro lugar na lista de vanglorias
(de fato, as únicas vanglorias detalhadas que não compartilham da mordaz ironia
que caracteriza as demais) é uma forte confirmação de que os intrusos na igreja
de Corinto eram judaizantes, provavelmente da Palestina.

3. Paulo é um servo exemplar de Cristo (11.23a). Paulo agora deixa a


antiga aliança e volta-se para a nova, passando das questões de raça e herança
para aquilo que realizou. Além disso, ele não mais se limita a igualar-se a seus
adversários (por ex., “São eles hebreus? Eu também sou.” [v. 22]). Agora, ele
insiste na própria superioridade: “São eles servos de Cristo? [...] Sou muito
mais” (v. 23). Mas escrever desse modo causa-lhe uma agonia espiritual; Paulo
não consegue conter-se e desabafa uma vez mais: “estou fora de mim para falar
desta forma” (v. 23).
Em razão de Paulo já ter insistido no fato de que os falsos apóstolos não
eram de forma alguma verdadeiros servos de Cristo, vários intérpretes argu­
mentam que as pessoas a quem Paulo se refere aqui não podem ser as mesmas.
Afinal, se Paulo é mais servo de Cristo do que as pessoas a quem ele se refere, tais
pessoas devem ser servas de Cristo em algum sentido. Portanto, argumenta-se,
as pessoas com as quais Paulo está se comparando aqui devem ser os apóstolos
genuínos, os Doze; e que na árdua obra pioneira, Paulo trabalhou muito mais
do que todos eles (cf. ICo 15.10).
Mas essa interpretação força de modo intolerável a unidade da passagem. As
passagens de 2Coríntios 13 a 15 referem-se claramente aos intrusos, aos falsos
apóstolos. Ao continuar sua argumentação nos versículos 16-21 a, Paulo só pode
estar falando do mesmo grupo, e não a respeito dos Doze, pois escreve sobre
aqueles que “gloriam-se segundo o mundo”, os quais exploram e humilham os
coríntios. Imediatamente após esse parágrafo, Paulo diz que “naquilo em que
qualquer um se atreve a gloriar-se” ele também pode se gloriar. A maneira natural
de encarar tal argumentação é como continuação de uma referência àqueles
que se gloriam segundo o mundo, os falsos apóstolos. Que outra razão haveria
para falar em atrever-se a gloriar-se? Além disso, Paulo insiste que seu orgulho
não é um discurso cristão, mas a fala de um louco. Se os outros que se atrevem a
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS I 121

gloriar-se fossem os Doze, Paulo estaria, de forma implícita, classificando todos


eles como loucos — o que é totalmente improvável. O melhor a fazer é deixar
que se preserve a leitura natural da passagem, ou seja, a de que Paulo ainda está
se referindo aos intrusos. O pronome “eles”, implícito ou não, nas frases seguintes
surge como referência aos mesmos falsos apóstolos, pois não existe nenhuma
ruptura propícia no versículo 23 que sugira que Paulo esteja passando de uma
questão para outra, isto é, dos obreiros fraudulentos para os Doze.J
Que devemos fazer então diante da pergunta e da resposta de Paulo: “São eles
servos de Cristo? [...] Sou muito mais” (v. 23)? Será que ele realmente entende,
após a implacável condenação de 2Coríntios 11.13-15, que os falsos apóstolos
não são tão falsos assim, mas verdadeiros servos de Cristo, mesmo que medíocres?
Não, claro que não; essa interpretação, porém, força a linguagem da pergunta e
da resposta de Paulo para além dos limites razoáveis. Nesse contexto, a pergunta
“São eles servos de Cristo?”, significa, na verdade, “Eles alegam ser ministros de
Cristo?”, ou, melhor ainda, “São eles servos de Cristo [segundo os critérios que
vocês coríntios foram ensinados a usar]?”. Pois é justamente esse o argumento
de Paulo: sejam quais forem os critérios, Paulo é mais ministro de Cristo do que
eles — mesmo que no final tais critérios se revelem ultrajantemente subcristãos.
Não há contradição entre os versículos 13 e 23. O primeiro nos revela o que
Paulo pensa de fato a respeito dos intrusos, e o segundo o que os coríntios pen­
sam sobre eles. Isso torna perfeitamente compreensível o angustiado parêntese
de Paulo. Precisamente por não querer de modo nenhum ser comparado aos
falsos apóstolos e à sua vangloria arrogante e centrada no homem, é que Paulo
diz: “... estou fora de mim para falar desta forma” (v. 23).

4. Suprema ironia: a derrocada de todas as categorias usadas pelos triunfalistas


para se vangloriarem (11.23b-29). De acordo com a lógica da situação, Paulo
deveria agora prosseguir mostrando de que maneiras ele é um servo de Cristo
superior. De fato, ele parece estar prestes a se vangloriar dessa forma, pois
afirma: “trabalhei muito mais”. Essa pode ser apenas uma honesta descrição dos
labores de«Paulo, tão bem atestados em Atos, em comparação com os esforços
limitados de seus intrusos. A frase pode também refletir o fato de Paulo às vezes

'Nas últimas poucas décadas, tem havido um enorme volume de trabalhos cujo objetivo
é identificar os oponentes de Paulo nas cartas aos coríntios e em outras. A questão é muito
complexa e os resultados incertos demais para se provarem proveitosos aqui, além do esboço
da posição alternativa que procurei refutar acima e no capítulo 1.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

trabalhar arduamente com as próprias mãos. Mas, acima de tudo, essas palavras
aumentam nossa expectativa quanto ao que deve vir em seguida. Podemos
imaginar Paulo dizendo algo como: “Plantei mais igrejas; preguei o evangelho
em mais lugares e a mais grupos étnicos; viajei mais quilômetros; ganhei mais
convertidos; escrevi mais livros; levantei mais dinheiro; presidi mais concílios;
andei mais fervorosamente com Deus e tive mais visões; comandei as maiores
multidões e realizei os milagres mais espetaculares”. Afinal, essa é a espécie de
lista que muitos pagãos realmente produziram, embora com itens diferentes.
Havia, inclusive, uma espécie de forma estilizada de escrever essa vangloriosa
lista de realizações, uma técnica a que os estudiosos modernos se referem como
“célebres convenções encomiásticas”. César Augusto, por exemplo, escreveu um
tributo em sua própria honra, um encômio que listava suas muitas realizações
(a chamada Res gestae Divi Augustí). Ele toma o cuidado de incluir números:
fiz isso uma vez, três vezes fiz aquilo, muitas vezes fiz aquilo outro. É muito
provável que o próprio Paulo tenha lido a Res Gestae de César, já que foi ins­
crita em monumentos de muitas províncias. Outras listas de autoelogios são
comuns no mundo greco-romano e se encaixam muito bem com as atitudes
predominantes de autopromoção que já mencionei. Assim, Paulo segue o
modelo em uso, a ponto até de recorrer aos números, uma parte importante
desses autoelogios (cinco vezes foi açoitado, três vezes sofreu naufrágio etc.).
“Mas até mesmo uma comparação superficial entre a lista que Paulo faz de seus
sofrimentos e os relatos hipócritas das conquistas gloriosas de Augusto e de
Pompeu mostra que a lista paulina é uma reductio ad absnrdiim [uma redução
do argumento ao absurdo] cuidadosamente calculada da atitude greco-romana
como um todo em relação à vangloria” (Travis, p. 530, n. 1).
Em vez de falar de suas façanhas e vitórias, Paulo detalha seus sofrimentos,
perdas, vergonha e derrotas. E quase como se o critério primordial (se não o
único) e incontestável do verdadeiro apostolado fosse o grande sofrimento no
serviço de Cristo (cf. ICo 4.9-13; 2Co 4.7-12; 6.4,5). Depois que Paulo acaba
de argumentar, resta muito pouco para os triunfalistas falarem. Os sistemas de
valores defendidos por Paulo e seus oponentes são tão diametralmente opostos
que quase não sobra nenhum terreno comum.
Mais tarde, refletirei um pouco mais sobre o significado desse critério, mas
vale à pena, por enquanto, fazermos uma breve pausa em cada item da lista.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALÍSTAS 123

Fui encarcerado mais vezes (1123). Essa carta foi escrita aproximadamente
na época da viagem descrita em Atos 20.2a. Antes desse período, Atos registra
um único aprisionamento, a saber, o ocorrido em Filipos (At 16.23-40). Os apri-
sionamentos de Jerusalém, da Cesareia e de Roma ocorreram todos mais tarde.
E bem possível que o apóstolo tenha sofrido um período de encarceramento
durante seu ministério em Efeso (cf. ICo 15.32; 2Co 1.8,9). Um documento
escrito no final do primeiro século registra que Paulo esteve encarcerado em sete
ocasiões diferentes (1 Clemente 5.6), mas podem ter sido muito mais. Duas coisas
já estão claras. Primeiro, o livro de Atos não nos oferece um relato completo dos
sofrimentos de Paulo. Mesmo nessa etapa intermediária de sua carreira apostó­
lica, Paulo esteve na prisão “mais vezes” embora não mencionadas por Lucas.
Segundo, os falsos apóstolos não teriam escolhido esse tipo de experiência como
um dos itens principais de seu currículo. Paulo já começou a ironia sarcástica.
Fui açoitado mais severamente (1123). Se a prisão já era algo vergonhoso,
ser açoitado era tanto vergonhoso quanto doloroso e podia infligir feridas
mortais. A palavra genérica “açoites” será mais detalhada nos dois versículos
seguintes. A expressão traduzida por “mais severamente” não sugere que Paulo
foi surrado com mais severidade do que os falsos apóstolos, os quais, portanto
(pode-se concluir), tinham sido surrados com menor severidade. Antes, significa
que Paulo fora surrado “além do limite”.
Exposto à morte varias vezes (1123). À semelhança do último versículo,
essa frase refere-se em termos gerais a diversos tipos de situações em que ele
correra perigo mortal; situações detalhadas nos versículos seguintes. “Quando
iria provar ser um ministro extraordinário, o apóstolo dá provas de ter sido um
sofredor extraordinário [...] O cárcere, o açoite e todos os demais tratamentos
terríveis dispensados àqueles considerados os piores dos homens eram as coisas
às quais ele estava acostumado” (Henry).
Cinco vezes recebi dos judeus quarenta açoites menos um (1124). Jesus havia
predito que os adversários do evangelho entregariam seus discípulos aos concílios
locais para serem açoitados em suas sinagogas (Mt 10.17). Nenhum desses
castigos que Paulo sofreu nas mãos de seus compatriotas judeus está registrado
em Atos. O fato de ele ter enfrentado esse suplício cinco vezes a essa altura de
seu ministério é um testemunho profundo de suas tentativas persistentes de
alcançar seus compatriotasjudeus com o evangelho (cf. Rm 1.16b; 9.1-4a; 10.1).
Ele jamais se restringiu aos gentios. Os açoites aplicados pelos judeus foram
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

provavelmente ordenados por um tribunal local, vinculado a muitas sinagogas,


para aplicar a justiça entre os judeus da comunidade.
Por que razão Paulo foi açoitado? Certa passagem na Mishná apresenta uma
longa lista de crimes passíveis de receberem 40 açoites. Entre eles incluíam-se
o incesto, outros pecados sexuais, entrar impuro no templo, danificar os cantos
da barba de alguém, tatuar-se e quebrar o voto de nazireado (Makkot 3.1-9).
Não só é improvável que Paulo fosse culpado de algum desses crimes, mas
também o contexto de 2Coríntios 11 deixa claro que tais açoites estavam rela­
cionado ao seu ministério apostólico. É bastante provável que, em torno do
terceiro século d.C., o açoite fosse o castigo usual para um erudito que viesse
a ser banido pela sinagoga. Algo semelhante deve ter acontecido também com
Paulo. E provável que houve alguma espécie de pretexto jurídico. A acusação
pode ter sido específica: interação com gentios ou comer alimento proibido, ou
coisa do tipo. Quando eu era menino, ministros cristãos e evangelistas passaram
um total de oito anos na prisão, durante a década de 1950 no Quebeque, por
pregarem em público e distribuírem literatura, mas a acusação era sempre por
outra coisa, como provocação de distúrbios ou perturbação da paz.
O açoitamento era castigo severo. O Antigo Testamento limitava a 40 o
número máximo de açoites que o tribunal poderia impor, mas a prática nos
dias de Paulo era limitá-los a 39 (daí sua referência a “quarenta açoites menos
um”). O erudito judeu medieval Maimônides supunha que essa prática visava
garantir que nenhum oficial do tribunal ultrapassasse o estabelecido. Seja como
for, o número de açoites nos dias de Paulo tinha de ser divisível por três, por­
que o flagelo usado tinha três tiras de couro: a central de couro de bezerro e as
outras duas de couro de jumento. Um açoite, portanto, aplicava três chicotadas
e o número máximo de açoites eram treze (13 x 3 = 39). Podiam ser aplicados
menos açoites se o tribunal entendesse que o prisioneiro não sobrevivería à
quota total. Se por cinco vezes Paulo recebeu os 39 açoites, “não há espaço
para considerar que houvesse fraqueza física no caso de Paulo” (Meyer). Ele
deve ter sido fisicamente muito resistente e resiliente, pois açoites dessa ordem
poderíam matar um homem. Os braços do prisioneiro eram amarrados, estando
ele de costas para as duas colunas onde estava amarrado, uma de cada lado. Em
seguida, o ministro da sinagoga rasgava de cima a baixo as roupas do prisio­
neiro, desnudando-lhe o tórax. Um terço dos açoites era-lhe então aplicado.
As tiras do açoite eram longas o bastante para atingirem do ombro ao umbigo
do prisioneiro. Depois, o condenado era solto, virado de costas, amarrado uma
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 25

vez mais, e eram-lhe aplicados nas costas os dois terços restantes do número
de açoites prescritos. “Aquele que açoitar, açoite com as próprias mãos e com
toda a sua força” (Makkot 3.13).
Três vezes fui golpeado com varas (11.25). Quase certamente essa é uma refe­
rência aos açoites romanos, não judaicos. Atos só registra um deles (At 16.22,23).
Não havia limites para o número de açoites e podiam ser aplicados em qualquer
parte do corpo do prisioneiro, que era desnudado em preparação. Na teoria,
esse tipo de castigo (muito usado durante o interrogatório do suspeito) não
deveria ser infligido a nenhum cidadão romano (cf. At 16.37; 22.25,29; Cícero,
In Verrem v. 170: “amarrar um cidadão romano é um crime; açoitá-lo, uma
abominação”.) No entanto, há ampla evidência de que nos dias de Paulo essa
violação da lei ocorria com bastante frequência (Cícero, In Verrem 5.161-62;
Livy, 10.9.3-6). E provável que Paulo tenha sido acusado de perturbação da paz.
De qualquer modo, nenhum triunfalista confessaria ter-se metido em enras­
cada com o sistema jurídico romano. A vergonha desses açoitamentos públicos
equiparava-se apenas à agonia que infligiam.
Uma vez apedrejado (1125). Essa é sem dúvida uma referência à terrível
experiência de Paulo em Listra (At 14.19), onde ele fora agarrado com violência
pela multidão, apedrejado e abandonado para morrer. É claro que não houve no
caso nenhum processo jurídico (como no apedrejamento judicial promovido por
tribunal judeu: cf. Sanhedrin [Sinédrio] 6.1-6); foi pura e simples violência da
multidão. Mas da perspectiva da pessoa apedrejada é muito duvidoso que sentisse as
pedradas de maneira diferente, caso só lhe fossem atiradas após o devido processo.
Três vezes sofri naufrágio (11.25). Paulo escreveu essas palavras antes do
naufrágio registrado em Atos 27. O apóstolo deve, então, ter sobrevivido a
pelo menos quatro terríveis experiências dessa espécie na sua vida. Não temos
conhecimento de quando ocorreram os três outros naufrágios anteriores. Um,
ou mais, podem ter ocorrido em conexão com as jornadas de sua primeira ou
segunda viagens missionárias (viagens por mar são mencionadas em At 13.4,13;
14.26; 16.11; 17.5; 18.18; e, com certeza, houve outras viagens por mar, por
ex., 2Co 2.1,13; 7.5); ou talvez todas tenham ocorrido nos anos silenciosos de
seu ministério, antes de sua chegada em Antioquia para trabalhar com Barnabé.
Passei uma noite e um dia exposto ao mar aherto (11.25). Um dos naufrágios
foi sem dúvida comprovadamente perigoso. Parece que ocorreu muito longe
da terra firme, impossibilitando o nado, e Paulo permaneceu à deriva na água,
talvez agarrado a destroços, até chegar o socorro.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Estive continuamente viajando de uma parte a outra (11.26). De certa maneira,


essa é uma declaração de transição para apresentar os perigos específicos
enumerados nas linhas seguintes. Mas talvez também faça alusão a algumas das
privações pelas quais a maioria das pessoas passava, caso vivesse constantemente
na estrada, sem um lar de verdade.
Enfrentei perigos nos rios, perigos de assaltantes (11.26). Ambos os perigos
devem ter sido ocasionados pelas inúmeras viagens do apóstolo. Alguns rios
eram perigosos de atravessar a qualquer tempo, outros em certas épocas do ano.
Assaltantes de estrada infestavam algumas partes do império com mais frequência
do que outras. Tanto os rios quanto os assaltantes eram peculiarmente perigosos
para o viajante que tentasse cruzar os montes Taurus, entre Perge e a Panfília, e a
Antioquia da Pisídia, na Frigia (At 13.14; 14.24). Talvez o perigo de assaltantes
fosse particularmente grave sobretudo quando Paulo levava dinheiro de uma
igreja para outra, para socorrer os pobres.
Perigos dos meus compatriotas (11.26). A maioria das primeiras perseguições
sofridas pela igreja veio da parte dos judeus. O livro de Atos descreve vários
complôs dos judeus contra a vida de Paulo (por ex., At 9.23,29; 13.45; 14.2,19;
15.26; 17.5ss; 18.1,12).
Perigos dos gentios (11.26). Atos reconta três desses episódios (14.19,20,
sob provocação dos judeus; 16,16-40; 19.23-41).
Perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar (11.26). Paulo passa
agora dos perigos por causas humanas para os perigos em função da localização
geográfica. A sequência tripla, cidade/deserto/mar, deixa pouquíssima dúvida;
significa que Paulo está em perigo em toda parte, o tempo todo. Além disso,
no contexto da gravidade da acusação, é provável que o perigo confrontado por
ele seja de vida e integridade física; não é mero incômodo. A cidade apinhada
de gente e perigosa por causa dos infindáveis complôs contra ele, o deserto
infestado de bandidos, e ainda a possibilidade de naufrágios poderíam dissuadir
do ministério alguém de menor envergadura, mas não Paulo.
Perigos dos falsos irmãos (11.26). Aqui “irmãos” significa “companheiros
cristãos”; assim, “falsos irmãos” provavelmente signifique aqueles que alegam
ser companheiros cristãos, mas não o são. Há uma inequívoca referência aos
falsos apóstolos (2Co 11.13). Nos dias do apóstolo, a maioria desses falsos irmãos
seriam os judaizantes, os quais poderíam passar facilmente por cristãos, sendo
aceitos na maioria das igrejas, pois, sem dúvida, criam que Jesus fosse o Messias
que morreu na cruz e ressuscitou dos mortos. Mas, pelo fato de insistirem que
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS

os gentios deviam se submeter à Lei de Moisés em alguns aspectos e também ao


senhorio do Senhor Jesus, o Messias, em arrependimento e fé para que fossem
de fato salvos, os judaizantes entravam em conflito direto com o evangelho
apostólico, o qual insistia, com veemência não menor, na exclusiva suficiência
de Jesus Cristo. Em Jerusalém, o conflito não teria sido tão ardente quanto nas
províncias (a menos que alguém como Paulo levantasse a questão), porque lá
havia bem poucos gentios. Isso fez com que Paulo se tornasse o foco da oposição
judaizante, pois seu ministério era exercido primariamente entre os gentios.
É provável que de vez em quando o apóstolo fosse denunciado por alguns
líderes judeus, sendo entregue nas mãos das autoridades locais e com isso
enfrentasse vários tipos de represálias, diretas e indiretas. Ao mesmo tempo, o
fato de Paulo listar os falsos irmãos como um de seus maiores perigos e fontes
de sofrimento, juntamente com açoites, naufrágios e apedrejamento, só poderia
ser uma aguda reprovação aos próprios coríntios. Se eles não tivessem acolhido
os apóstolos rivais e lhes oferecido uma base segura e um ouvido receptivo,
Paulo jamais teria precisado escrever essa resposta. Irmãos néscios quase sempre
multiplicam a má influência de falsos irmãos.
Trabalhei arduamente; muitas vezes fiquei sem dormir (1127). Além dos
perigos excessivos e também dos frequentes espancamentos e encarceramentos
enfrentados pelo apóstolo no curso de seu ministério, sua vida raramente se
caracterizou por luxo, conforto, sossego refletivo ou mesmo por muito descanso
(cf. ICo 4.9-13,24-27; 2Co 6.4-10). Ele “trabalhava” e se “fadigava” (um par
de verbos usado por Paulo em outras passagens para descrever sua combinação
de ministério espiritual e trabalho manual, lTs 2.9; 2Ts 3.8). As duas palavras
sugerem não apenas a energia empreendida no trabalho em si, mas a fadiga
resultante e também as adversidades que a acompanham. Nesse contexto, o fato
de ficar sem dormir provavelmente não se deve a uma opção nem à insônia,
mas às pressões do trabalho excessivo e ao grande número de responsabilidades.
Passei fome e sede, e muitas vezes'Jiquei em jejum; suportei frio e nudez (1127).
E improvável que os episódios de fome decorressem de jejuns autoimpostos liga­
dos a festivais cristãos ou a períodos de oração em secreto, pois se Paulo tomasse
a iniciativa de mencionar tais jejuns, ele, com certeza, não o faria nessa lista de
sofrimentos e privações. E muito mais provável a sugestão de que Paulo tenha
sofrido fome e sede por causa de viagens difíceis e falta de recursos financeiros.
Paulo decidiu não aceitar sustento financeiro dos coríntios (lCo 9.12,15,18;
2Co 11.7-12; 12.14-16a) e isso pode muito bem ter precipitado um dos episódios
128 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

de fome. É possível que o frio e a nudez foram-lhe impostos pela vida na prisão
ou, mais uma vez, por privação financeira. Ao mesmo tempo em que os coríntios
estavam sendo ensinados que os verdadeiros grandes mestres recebiam vultosas
remunerações e exigiam incontáveis benefícios, o apóstolo Paulo vivia boa
parte do tempo tão abaixo da linha de pobreza que teria necessitado de somas
substanciais para ensinar tal coisa. Por isso ele sofria em dobro: pelas privações
em si e também pelo deboche condescendente de triunfalistas imaturos, que
casavam a cobiça pagã com a escatologia ultrarrealizada para defender que a
prosperidade financeira era a recompensa do justo e um direito dos filhos de
Deus, convenientemente esquecendo-se da cruz.
“Além de todas as coisas”, escreve Paulo (a expressão poderia significar
“além de todas as outras coisas que deixei de mencionar”, ou “além de tudo
que mencionei e ainda mais”, ou, o que é menos provável, “além das prova­
ções exteriores”), “enfrento diariamente uma pressão interior, a saber, a minha
preocupação com todas as igrejas” (2Co 11.28). Eis aqui Paulo, pastor e cristão
mundial. Suas preocupações se estendem a todas as igrejas, sem dúvida e acima
de tudo àquelas que ele mesmo plantou, mas não estritamente a esse grupo,
pois Paulo muitas vezes usa o plural “igrejas” para se referir a todo o povo de
Deus (e.g., Rm 16.16; ICo 7.17; 11.16; 14.33; 2Co 8.18; 2Ts 1.4). As cartas
aos romanos e aos colossenses foram escritas para igrejas que Paulo não fundou
nem visitou, mas isso não o impediu de expressar profunda preocupação pelas
igrejas de Roma e de Colossos.
A preocupação que Paulo sentia não violava de modo nenhum a proibição
de Jesus quanto às preocupações centradas no eu (Mt 6.25-34), pois Jesus proibiu
a preocupação que se opõe a buscar em primeiro lugar o reino de Deus e a sua
justiça; precisamente a mesma virtude que as preocupações de Paulo pelas igrejas
manifestam da forma mais profunda.2 Embora os apóstolos rivais se rendessem
à busca por poder, dinheiro e fama, Paulo não busca nenhum dos três. Ele
anuncia o reino de Deus e ensina a respeito do Senhor Jesus Cristo (At 28.31),
preocupando-se apaixonadamente com a justiça (como prova 2Co 11.29).
Paulo parecia ver sua preocupação com todas as igrejas como o ápice de
suas provações. A imensidade das pressões e sofrimentos já enumerados servem,
portanto, como medida da intensidade do seu zelo pelos companheiros na fé.

2Tratei de forma mais profunda o ensinamento de Jesus sobre a ansiedade em 77/í> Scrincm on
the Mount (Grand Rapids: Baker, 1978), p. 81-96.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS

Sem dúvida, se muitas congregações enfrentassem problemas tão graves quantos


os da Galácia e de Corinto, Paulo teria investido quantidades descomunais de
energia emocional e espiritual nas igrejas que ele amava tanto. Se Paulo enfren­
tava esse tipo de pressão diariamente, não seria porque uma má situação nunca
melhora, mas porque há sempre uma nova prestes a irromper; e tampouco
porque a preocupação de Paulo se limitasse a igrejas em perigo de apostasia.
Ele zela com a mesma intensidade por novas congregações que estavam fora
do alcance de seu auxílio imediato, mas cuja fé incipiente levava o apóstolo à
oração vigilante e a uma grande tensão espiritual.
A igreja de Tessalônica, por exemplo, veio a nascer em decorrência do tra­
balho apostólico de apenas algumas semanas, e a primeira carta que o apóstolo
lhe destinou reflete não só o amor mais terno, como o zelo desmedido de um
pai coruja (veja esp. lTs 1.4—3.10). Forçado, nesse caso, a ficar longe, Paulo
toma uma decisão: “Por isso, quando não pudemos mais suportar, achamos
por bem permanecer sozinhos em Atenas e, assim, enviamos Timóteo, nosso
irmão e cooperador de Deus no evangelho de Cristo, para fortalecê-los e dar-
-lhes ânimo na fé, para que ninguém seja abalado por essas tribulações. [...]
Timóteo acaba de chegar da parte de vocês, dando-nos boas notícias a respeito
da fé e do amor que vocês têm. [...] Por isso, irmãos, em toda a nossa neces­
sidade e tribulação temos bom ânimo a seu respeito, por sabermos da sua fé;
pois agora vivemos, visto que vocês estão firmes no Senhor. [...] Noite e dia
com perseverança oramos para que possamos vê-los pessoalmente e suprir o
que falta à sua fé” (lTs 3.1-10).
Não se vê aqui um mero profissional administrando uma organização
magnífica a partir de um escritório climatizado e bem localizado. Vê-se, antes,
um pastor sintonizado com as necessidades até mesmo do menor dos irmãos
por quem Cristo morreu. Há de fato organização e administração competentes,
conforme revela o estudo aprofundado das idas e vindas dos inúmeros auxiliares
de Paulo. Apesar disso, ele não cumpre as incumbências de seu ministério
apostólico de forma descomprometida e distante, mas com zelo ardente, com­
paixão profunda, fervor evangelístico e coração paternal. Paulo investe toda sua
considerável capacidade intelectual e emocional em seu ministério em favor de
toda a igreja. Esse tipo de engajamento produz frutos, mas cobra seu preço em
energia consumida e no profundo envolvimento com as pessoas.
Tal preço fica evidente de forma clara com um exemplo dado por Paulo,
mediante algumas perguntas retóricas: “Quem está fraco, que eu não me
130 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

sinta fraco? Quem é levado ao pecado, que eu não me queime por dentro?”
(2Co 11.29). “Fraqueza”, no corpus paulino, pode se referir tanto à fé quanto à
consciência pessoal: isto é, um crente cuja fé ou consciência é fraca pode sofrer
as dores de uma falsa culpa e submeter-se a normas cuja importância não faz
a menor diferença (e.g., Rm 4.9; 14.1,2; ICo 8.11,12). Nesse contexto, porém,
é provável que “fraqueza” tenha o seu significado mais amplo e refira-se à falta
de força em qualquer aspecto. Paulo está falando de cristãos que, por razões
quaisquer, foram levados a descer a um nível espiritual tão baixo que parecem
não ter reservas de força para vencer a tentação, a dúvida, a sedução e a oposição,
nem para levar adiante o ministério do discipulado. A empatia de Paulo é bem
profunda, pois ele mesmo muitas vezes já sentira as fraquezas mais debilitantes,
inclusive enfermidades (G1 4.3), desânimo e medo (At 18.9,10; ICo 2.3) e as
eternas pressões geradas pela lista das “credenciais” apostólicas que ele está agora
acabando de arrolar (cf. também 2Co 4.7-12). Como poderíam os triunfalistas,
que só se vangloriam na própria força e desprezam todo sinal de fraqueza, ofe­
recer algum auxílio repleto de empatia a um companheiro de fé que está fraco?
Não menos aguda é a intensidade dos sentimentos de Paulo quando um
cristão é levado a pecar.3 O apóstolo não consegue se render à indiferença quando
qualquer crente, seja pelo poder persuasivo de um mal exemplo, pela sedução
piegas de personalidades enganosas ou pela tragédia de um falso ensino, é ilu­
dido e levado a cair em pecado. O apóstolo queima por dentro, não só com a
empatia compassiva presumida na questão anterior, mas agora também com
a ardente indignação contra os que fazem pecar algum dos pequeninos de Cristo
(cf. Mt 18.6; G1 5.12). Isso explica o ardor da reação de Paulo e a veemência de
sua linguagem em 2Coríntios 11.13-15. Irrestritamente comprometido com
a justiça vinculada ao evangelho e com os irmãos e irmãs transformados por
esse evangelho, Paulo se inflama quando vê essa justiça em ruínas e os crentes
moralmente golpeados pelos servos de Satanás.

3Tem-se sustentado que nesse contexto o verbo skandalizetai, traduzido por “levado a pecar”
pela NIV, signifique na verdade “fica ofendido [escandalizado]”; e que Paulo replica que sempre
que outros cristãos ficam ofendidos ele “queima por dentro” de forma empática com eles, pois
ele mesmo fora muitas vezes ofendido. Essa é uma interpretação improvável. Embora o verbo
possa de fato significar “fica ofendido”, normalmente isso não se dá no sentido de alguém
ter seus sentimentos feridos, mas, sim, de a pessoa sofrer alguma “ofensa” cometida contra
ela. Segundo a experiência bíblica, essa “ofensa” quase sempre leva a vítima a pecar. Além de
que, esse “queimar por dentro” que Paulo sente em relação aos ofensores está contextualmente
moldado por 11.13-15.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 131

Quão diferentes são muitas das nossas reações aos mesmos fenômenos hoje.
Quando tais pecados ocorrem, é lastimavelmente fácil ficarmos filosofando,
comentarmos sobre os tempos maus em que vivemos, ponderarmos que a irmã
ou o irmão que caiu em pecado ou heresia nunca fora mesmo muito forte nem
tivera muito discernimento, sem jamais nos afligirmos em oração por nossos
companheiros na fé nem queimarmos por dentro por causa da fraqueza e da
vergonha que estão sofrendo. Na verdade, em situações como essa, o triunfalista
de fato coerente pode alimentar sentimentos de superioridade e regozijar-se por
não ser como os outros homens. A nossa indiferença nos irmana com o sacerdote
e o levita da parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37).

5. Gloriando-se na fraqueza e na vergonha (11.30-33). Paulo, com magnífica


ironia e mordacidade, rejeita os critérios dos triunfalistas ao se gloriar em seus
sofrimentos, açoites, privações e nos zelos que o consumem. Ele agora volta o
argumento para uma nova direção. O apóstolo gloria-se em um acontecimento
de sua vida do qual sente vergonha. “Se devo me orgulhar”, escreve ele (ecoando
talvez o axioma dos apóstolos rivais, segundo o qual o homem deve se gloriar
em alguma coisa), “que seja nas coisas que mostram a minha fraqueza”. Esse
orgulho paradoxal é o único tipo de vangloria que o apóstolo consegue tolerar
por mais tempo.
O que ele está para dizer é, da perspectiva do triunfalismo, algo tão impro­
vável que Paulo põe a si mesmo sob juramento antes de começar: “O Deus
e Pai do Senhor Jesus, bendito para sempre, sabe que não estou mentindo”
(2Co 11.31). A função apropriada dos juramentos não é eleger situações especiais
nas quais é importante dizer a verdade, em contraste com outras em que isso
não importa; antes, sua função é aumentar a credibilidade de quem os profere
diante de ouvintes incrédulos. A credibilidade de Paulo fora questionada; ele se
compromete por juramento, apelando à onisciência de Deus, para garantir que
os coríntios lhes darão ouvido e ficarão mais inclinados a acreditarem nele (para
outrosjuramentos paulinos, cf. 2Co 1.18; 11.10,11; Rm9.1; G11.20; lTm 2.7).
A primeira vista, aquilo que ele conta aos coríntios parece por demais inócuo:
o relato de sua fuga de Damasco. “Em Damasco, o governador nomeado pelo
rei Aretas mandou vigiar a cidade para me prender. Mas fui baixado num cesto,
de uma janela na muralha, e escapei das mãos dele” (2Co 11.32,33).
Essa é a versão de Paulo sobre sua fuga, descrita por Lucas em Atos 9.23-25.
Não está muito claro por que o governador tentou prender Paulo, mas é provável
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

que seu motivo estivesse baseado na atividade evangelística de Paulo na Arábia


(G1 1.17); região habitada pelos árabes nabateus, sobre os quais governava o rei
Aretas. Há outras incertezas históricas,4 mas o relato de Paulo é bastante claro.
Ele fugiu da cidade escapando através de uma abertura na muralha, sendo
descido até o solo num cesto de peixes, ajudado por alguns de seus discípulos.
Por que razão devia Paulo relatar esse caso com um senso tão óbvio de
fraqueza e vergonha? Por que motivo ele teve de se colocar sob juramento,
como se isso fosse difícil de acreditar? Há duas observações que nos levarão ao
cerne do que Paulo está dizendo nesses versículos. Primeira, muitos leitores da
Bíblia estão familiarizados com essa fuga por causa das escolas dominicais, onde
a história é contada não apenas da perspectiva de Lucas (cujo interesse maior
está na direção providencial de Deus para a igreja e para a preservação desse
“apóstolo aos gentios” do que nos sentimentos pessoais de Paulo), mas como
uma aventura em que o “mocinho” sai ganhando. Na verdade, é algo que pode
ser bem empolgante num flanelógrafo! Mas o personagem principal da história
não via o acontecimento como uma grande peça teatral que dava sabor às suas
memórias. Antes, lembrava-se do episódio com vergonha. É possível que esse

4Lucas informa que os judeus estavam vigiando os portões a fim de matarem Paulo (At 9.23-25);
Paulo diz que o governador, súdito do rei Aretas, mandou vigiar a cidade para prendê-lo. Esse
problema diz respeito à incerteza de quem era de fato o responsável por Damasco nessa época.
Sem dúvida, os romanos governaram a cidade até 34 d.C., e devem tê-la governado durante
muito tempo depois disso; mas a ausência de moedas romanas em Damasco, no período que
vai de 34 a 62 d.C., convenceu alguns historiadores de que o rei Aretas IV, sogro de Herodes
Antipas que governou os nabateus por volta de 9 a.C. até 40 d.C., ampliou seu território em
34 d.C. para incluir Damasco, supervisionando-a por meio de um representante, enquanto o
próprio rei mantinha o seu palácio em Petra. Se essa informação estiver correta, então é possí­
vel (conforme sugere Hughes) que seu governador fosse um judeu (compare a conexão entre
Aretas e o mestiço Herodes) que designou, então, uma guarnição formada só por judeus para
regular o que era de fato uma questão puramente judaica. Assim, essa busca por Paulo veio a
ser a primeira de muitas crises com seus compatriotas judeus. No entanto, é bem mais provável
que os romanos jamais tenham aberto mão do controle da cidade. Nesse caso, o “governador”
talvez fosse alguém indicado pelo rei Aretas para governar uma colônia semiautônoma de
árabes nabateus residentes na cidade. Os romanos fomentaram esse tipo de combinação em
outras cidades (e.g., parece que os judeus de Alexandria desfrutaram de prolongados períodos
de autogoverno semiautônomo na parte da cidade que lhes cabia). Além disso, na verdade a
palavra que a NIV (e a ARA também) traduz como “governador”, etlinarches, refere-se, de
maneira costumeira, a um governador relativamente menor de um grupo tribal. Nesse aspecto,
a atividade evangelística de Paulo ultrajava os judeus de Damasco, e suas incursões na Arábia
afrontavam os árabes nabateus. Assim, judeus (Atos) e nabateus (Paulo) celebraram um acordo
com o propósito de detê-lo, precipitando sua fuga.
QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 133

incidente tenha estraçalhado qualquer soberba residual que ainda houvesse


no coração do orgulhoso Saulo, o fariseu. Ele fora para Damasco com a clara
intenção de caçar e capturar cristãos, e deixara a cidade não como caçador, mas
como caça. O aclamado dos altos círculos rabínicos, o douto e sincero fariseu,
que tinha acesso às mais elevadas autoridades de Jerusalém, escapou furtivamente
de Damasco como um criminoso, descido como um punhado de peixes mortos
num cesto, cuja fétida carga fora substituída por ele. E mesmo possível que seus
detratores tivessem apresentado tal acontecimento aos coríntios como prova
da covardia de Paulo (cf. 10.1,10). “Que grande contraste entre sua arrogante
chegada à cidade e sua humilhante saída dela!” (Wilson).
A segunda observação é ainda mais significativa. A lista de vanglorias
(2Co 11.23-29), é preciso lembrar, está formatada ao estilo de uma paródia do
autoelogio que as grandes figuras públicas comumente escreviam em honra de
si mesmas. Nesses poucos versículos finais, Paulo parodia o tipo de autoelogio
que põe em destaque um detalhe e o descreve graficamente como uma espécie
de paradigma do que deve ser esperado de tal homem. Agora, fica perfeitamente
claro por que Paulo concentra a atenção num incidente específico, em parte
trivial e em parte vergonhoso.

Se fosse obrigado, ele se vangloriaria na sua fraqueza. Mas caso se perceba


que, na Antiguidade, todos sabiam que o prêmio militar de maior valor era a
coroiia inuralis, concedida ao homem que primeiro chegasse ao topo da muralha
diante do inimigo, o argumento de Paulo fica desoladoramente claro: ele foi
o primeiro a chegar ao pé da muralha.5

Os triunfalistas têm demasiado orgulho de suas realizações, sejam elas quais


forem. Mas enquanto todos exibem suas medalhas de guerra, inclusive a incrível
medalha de honra concedida pelo Congresso dos Estados Unidos, Paulo conta
como fugiu do inimigo. Ele está decidido a se gloriar das coisas que denunciarão
sua fraqueza. Ele bem poderia ter escrito os seguintes versos:

Credencial apostólica: eis minha vangloria,


certificado do elusivo chamado de Deus.
Eu poderia alegar que sou Paulo,
da mais pura linhagem de Benjamim, aclamado

5E. A. Judge, “The conflict of educational aims in NT thought”, Journal of Christian


Edncation 9 (1966): 45.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

entre os mais excelentes mestres rabínicos,


experiente plantador de igrejas; mas o manto
da culpa, a graça de Deus, o Gólgota — tudo
combina-se para evocar essa vangloria apostólica:
Laborei como os escravos da desgraça, e suportei o açoite.
Severamente açoitado, apedrejado, em naufrágios três vezes,
em perigo constante, tratado como lixo imprestável
por minhas próprias ovelhas — essas coisas comprovam que sirvo a Cristo.
Pois regozijo-me nas fraquezas, no mal que padeço.
A graça é o que me basta; quando sou fraco, sou forte.6

C. Algumas considerações finais


A comparação dessa lista com a apresentação seletiva que Lucas faz do ministério
de Paulo revela que, longe de ter exagerado, Lucas registrou apenas uma mínima
parte do trabalho e dos sofrimentos de Paulo por Jesus Cristo. Nada saberiamos
da extensão dos labores, privações e açoites de Paulo, não fosse ele forçado, por
providência de Deus, a escrever essa paródia com o propósito de salvar a igreja
de Corinto, pois ficou bem claro que o apóstolo não fornecia facilmente tal
informação. Sua angústia acerca da questão atua em nosso favor nesse sentido.
O fato de nos familiarizarmos intimamente com um servo de Cristo como
Paulo nos inspira tremenda humildade. Mas não o honraremos, nem adoraremos
ao Senhor que ele ama, se não refletirmos um pouco mais na devida aplicação
em nossa própria vida desse autorretrato tão tocante e sincero.

1. Os cristãos deveríam sentir profunda vergonha por se gloriarem em


aspectos como força, habilidades, vitórias, preparo, sucessos e produtividade
na vida como se, por um lado, nós tivéssemos conquistado ou merecido qual­
quer dessas coisas ou, por outro lado, como se tais coisas nos tornassem mais
intrinsecamente aceitáveis ao Senhor Jesus Cristo. O que temos nós que não
tenhamos recebido? E se o recebemos como dom gracioso de Deus, por que nos
atrevemos a nos gloriar nessas coisas (lCo 4.7)? A mais elementar compreensão
do evangelho não nos assegura de que somos aceitáveis a Deus apenas pelos
méritos de Cristo Jesus, o Redentor? Por que, então, tanta vangloria? Acaso nosso
amor pelo aplauso dos homens é mais forte do que o nosso amor por Cristo?

6D. A. Carson, Sonuets from Scriptitre.


QUALIFICAÇÕES TRIUNFALISTAS 135

2. Os cristãos devem reconhecer prontamente as próprias fraquezas, pois


se tratadas da forma correta, servirão para exaltar a força de Cristo e, portanto,
trazer-lhe glória. Conheço certo líder cristão que abertamente aconselha seus
colegas a jamais admitirem suas fraquezas. Segundo ele, isso daria vantagem
aos adversários. Esse líder pode até ser cristão, mas quanto a esse aspecto, ele
pensa como os pagãos.
3. A qualquer custo, os cristãos jamais devem adotar de forma acrítica
critérios de autoavaliação mundanos, cujos valores subjacentes na prática traíam
o discipulado a Jesus Cristo. A mais do que irônica vangloria de Paulo não é obra
de alguém que fosse naturalmente modesto. Nesses versículos, por trás do texto,
há um apóstolo que, pela graça de Deus, avaliou de forma consciente as implica­
ções do seu discipulado ao Senhor Jesus e aprendeu em grande medida a pensar
e agir de formas consistentes com o seu chamado. Sua compreensão da graça
e o desejo de imitar seu Salvador são o combustível por trás de sua vangloria.

A solução para dissipar a autoestima e o autoelogio não é a autodepreciação


artificial nem o valente esforço de tentar com mais empenho. É a devoção
incondicional a Jesus Cristo. Nessas questões, nada nos fará amadurecer com
mais eficácia do que a reiterada devoção ao Senhor Jesus e a crescente reflexão,
controlada pela Bíblia, sobre as implicações do nosso discipulado, até que pos­
samos cantar sem reservas:

Ô, Salvador! Que ao morreres


deste-me teu amor;
nada posso te recusar,
Senhor amado;
minha alma prostra-se em amor,
meu coração cumpre tua promessa,
trago-te agora minha oferta,
algo para ti.

No bendito trono da graça,


rogando por mim;
minha débil fé ergue os olhos,
Jesus, para ti:
ajuda-me a suportar a cruz,
a anunciar teu amor sem igual,
a um cântico, ou oração, elevar,
algo para ti.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Dá-me um coração fiel,


semelhante ao teu,
o qual possa ver doravante,
ao final de cada dia,
obras de amor começadas,
a misericórdia praticada,
peregrinos sendo buscados e salvos,
algo para ti.

Tudo quanto sou e tudo o que tenho —


são dádivas tuas, tão graciosas —
na alegria, na dor, pela vida inteira,
ó, Senhor, sejam teus!
E quando tua face eu contemplar
minha alma por ti resgatada
será para toda a eternidade
algo para ti.

— Sylvanus Dryden Phelps (1816-1 895)


Destruindo os visionários superespirituais
6 Gloriando-se nas fraquezas

É necessário que eu continue a gloriar-me. Ainda que eu nada ganhe


com isso, passarei às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem
em Cristo que há catorze anos foi arrebatado ao terceiro céu. Se foi no
corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe. E sei que esse hcmem — se
no corpo ou fora do corpo, não sei, mas Deus o sabe — foi arrebatado
ao paraíso e ouviu coisas inexprimíveis, coisas que ao homem não é
permitido falar. Nesse homem me gloriarei, mas não em mim mesmo,
a não ser em minhas fraquezas. Mesmo que fosse gloriar-me não seria
louco, porque estaria falando a verdade. Mas evito fazer isso para que
ninguém pense a meu respeito mais do que em mim vê ou de mim ouve.
Para impedir que eu me tornasse arrogante por causa da grandeza
dessas revelações, foi-me dado um espinho na carne, um mensageiro de
Satanás, para me atormentar. Três vezes roguei ao Senhor que o tirasse de
mim. Mas ele me disse: “Minha graça é suficiente para você, pois o meu
poder se aperfeiçoa na fraqueza”. Portanto, eu me gloriarei ainda mais
alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse
em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos
insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando
sou fraco é que sou forte (2Co 12.1-10).

A. Mais vangloria (12.1)


“É necessário que eu continue a gloriar-me”, escreve Paulo, talvez remedando
alguma frase coríntia do tipo “A pessoa deve se vangloriar” (cf. 2Co 11.30). No
entanto, o apóstolo acrescenta: “Ainda que eu nada ganhe com isso, passarei às
visões e revelações do Senhor” (12.1).
Então, o tema da vangloria insensata segue adiante, alcançando seu clímax
em 12.1-10. Conforme Paulo admite, ao final dessa vangloria: “Tornei-me
louco, mas vocês me constrangeram a isso” (v. 11). O modo que os coríntios
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

forçaram Paulo a entrar nesse assunto específico, levando-o a gloriar-se é mais


bem explicado pela probabilidade de que os falsos apóstolos não apenas tenham
alegado ser superiores em retórica, eloquência, habilidade em exigir honorários,
liderança e conhecimento da verdade, mas também tenham alegado serem espi­
ritualmente superiores a ele. Em defesa de suas alegações, eles poderíam detalhar
uma variedade de visões e revelações que receberam. Um ousado, “O Senhor me
disse hoje de manhã..não só é capaz de ampliar a reputação de alguém como
homem ou mulher de Deus, mas também pode-se provar maravilhosamente
coercitivo. Poucas pessoas perguntariam como Deus disse isso ou aquilo (Por
voz audível? Por meio de uma convicção tranquila e pessoal? Por meio do falar
em línguas?) ou mostrariam que a quantidade de revelações dessa ordem no
Novo Testamento que se revestem de autoridade é menor do que comumente
se acredita.1 E menos pessoas ainda fariam uma pausa para advertir que nem
todo poder sobrenatural é divino. Sem dúvida, os triunfalistas não levantariam
questões dessa natureza e sua primeira reação seria a de que questionamentos
como esse apagam o Espírito. E assim as alegações de façanhas espirituais
sucedem-se em ostensiva procissão, e a autoridade pessoal vai crescendo com
o “compartilhamento” de cada visão.
Comparem-nos com Paulo, poderíam argumentar os falsos apóstolos. Que
visões ele alega ter tido nos anos recentes? Ele acaso relata quaisquer novas
revelações vindas de Deus? Ah, sim, ele vez ou outra conta sobre sua conver­
são no caminho para Damasco e de como viu o Senhor ressurreto, mas todo
mundo sabe que não é possível construir o gigante espiritual de hoje com uma
experiência espiritual do passado. Acaso ele teve alguma experiência concreta
de vitalidade espiritual na semana passada? E se ele teve visões que valham à
pena, por que não falou a seu respeito?
A verdade sobre a questão é que Paulo reluta ao máximo em contar suas
visões e revelações. Lucas fala-nos a respeito de algumas visões recebidas por
Paulo (At 9.12; 16.9,10; 18.9,10; 22.17-21; 23.11; 27.23,24), portanto, o apóstolo
deve ter falado de algumas delas a seus companheiros mais próximos. Isso não
era de todo inesperado naqueles casos em que havia algum tipo de orientação
envolvida, ou quando outros precisavam entender a razão dos planos de Paulo,

’Veja, e.g., 1 Coríntios 11.29. Para uma excelente discussão, cf. Wayne Grudem, Thegifi of
prophecy in 1 CorintJiians (Washington: University of América Press, 1982). Ele argumenta de
forma convincente que, no que diz respeito à posição de autoridade, a figura do Novo Testa­
mento que é análoga à do profeta do Antigo Testamento é a de um apóstolo (em sentido estrito).
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 139

ou quando o compartilhamento da visão significava que o apóstolo estava admi­


tindo seu profundo desencorajamento ou temor. O que chama a atenção, no
entanto, é que Paulo, em suas cartas, não costuma compartilhar o conteúdo de
nenhuma de suas visões ou revelações (caso haja diferença entre os dois termos,
a abrangência de significado do último é maior, enquanto o primeiro termo
trata do tipo de revelação que envolve aparição visível). No texto diante de nós,
Paulo apresenta-nos pelo menos uma razão para seu silêncio: ele acredita não
haver nada a ganhar com esse tipo de conversa, ou seja, os coríntios não terão
nenhum benefício espiritual se ele lhes expuser suas experiências espirituais
mais íntimas e sobrenaturais. Essa conversa talvez sirva para envaidecê-lo ou
para ajudar a confirmar sua reputação, mas que bem faria? Nenhum, até onde
o apóstolo pode perceber. Por isso, no passado, ele ficara em silêncio.
Mas na presente situação ele é forçado a falar disso. Movido pela leal­
dade volúvel dos coríntios e em razão do perigo espiritual que eles correm,
Paulo argumenta que há mais a perder em não se gloriar do que em se gloriar.
Portanto, mais uma vez ele se prepara para se expor à loucura (2Co 12.11).
Nesse caso, diferentemente da maior parte dos itens da lista que já analisamos
(cf. cap. 5), ele não pode simplesmente recorrer a paródias sarcásticas para
gloriar-se no contrário dos seus opositores. Afinal de contas, qual é o contrário
de receber visões e revelações, senão o fato de não as receber? Gloriar-se por não
as receber seria, nessa circunstância, falso e perigoso. Falso porque Paulo havia
de fato recebido revelações extraordinárias; e perigoso porque estaria caindo
diretamente nas garras de seus detratores.
É por isso que o apóstolo adota uma postura levemente diferente nesses
versículos (12.1-10), atitude que analisaremos nas poucas páginas a seguir.

B. Um homem em Cristo — em terceira pessoa (12.2-4)!


“Conheço um homem em Cristo”, diz Paulo, “que há catorze anos foi arrebatado
ao terceiro céu” (2Co 12.2). A princípio parece que Paulo fala de outra pessoa,
de um cristão que ele conhecera, alguém que tivera uma experiência, uma visão
espetacular há quase uma década e meia. Mas logo fica claro que, na verdade,
Paulo está falando de si mesmo. Isso fica óbvio não pelo fato de Paulo conhecer
o tempo e o teor da visão — afinal de contas, o “homem em Cristo” poderia lhe
ter passado essas informações —, mas por três outros motivos. Primeiro, Paulo é
levado a admitir no versículo 6, com alguma relutância, que se ele se gloriasse
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

nessa visão, não seria louco — quer dizer, seu orgulho estaria alicerçado em fatos.
Segundo, Paulo vincula a experiência dessa visão ao espinho na carne que lhe foi
dado (v. 7). Não faria o menor sentido o homem em Cristo não ser identificado
com Paulo: Por que haveria este de receber um espinho debilitante para que se
conservasse humilde, depois de outra pessoa haver desfrutado da “grandeza [das]
revelações” (v. 7)? Terceiro, nesse contexto, não faz sentido Paulo gloriar-se na
revelação de outra pessoa, quando seus detratores estão a postos para aviltarem
o próprio apóstolo, não a um terceiro desconhecido.
Não é possível, portanto, que restasse alguma dúvida séria de que Paulo se
refere a si mesmo, quando descreve o que houve ao tal “homem em Cristo”.
A pergunta importante é: por que ele usa esse tipo de subterfúgio? A resposta
só pode ser que o constrangimento de Paulo por ter de se gloriar em tudo isso
é tão grande que o máximo que ele consegue se aproximar da conduta que
tanto despreza é escrever sobre si mesmo em terceira pessoa. Assim mesmo,
ele escreve não sobre um grande apóstolo, mas acerca de um homem em
Cristo, para que seus leitores, ao descobrirem alguns versículos depois que
Paulo está na verdade falando de si mesmo, não o ponham na categoria dos
supercristãos, em posição superior à da massa comum. Quaisquer que sejam
as revelações recebidas por Paulo, foram-lhe concedidas não por ser um
apóstolo extraordinário, mas por ser cristão, por ser um homem em Cristo.
Na linguagem de Paulo não há traços de uma teologia de mérito nem de um
orgulho pronto a se revelar.
Essa segunda carta canônica aos coríntios parece ter sido escrita mais
ou menos em 55 ou 56 d.C. Se considerarmos os “catorze anos”, incluindo-
-os ou não, as experiências visionárias se encaixarão na década de silêncio do
ministério de Paulo, aproximadamente de 35-45 d.C., anos sobre os quais não
sabemos quase nada, exceto que ele os passou na Síria e na Cilícia (G1 1.21).
Não resta dúvida de que Paulo já estava cumprindo as responsabilidades que o
Senhor lhe havia dado em sua conversão — levar o nome de Jesus “perante os
gentios e seus reis, e perante o povo de Israel” além de sofrer por causa desse
mesmo nome (At 9.15,16). E provável que boa parte desse sofrimento, e ao
menos parte do espancamento e açoitamento descritos em 2Coríntios 11, foram
infligidos durante esse período. E agora ficamos sabendo que essa mesma época,
não relatada por Lucas no livro de Atos, também trouxe a Paulo a revelação
mais extraordinária que ele já recebera. Nosso conhecimento acerca de Paulo
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 141

e dos demais apóstolos é muito fragmentário, e se não fosse por esses capítulos
de 2Coríntios, saberiamos incomparavelmente muito menos.
O que, então, aconteceu a Paulo nessa ocasião? Podemos resumir em três
pontos o que Paulo nos conta:

1. Paulo foi arrebatado “ao terceiro céu”, “ao paraíso” (122,4). Era comum
os judeus dessa época falarem de vários céus (cf “todos os céus” de Paulo, em
Ef 4.10), assim como era comum não haver consenso sobre o número exato
deles. Algumas fontes intertestamentárias falam de cinco, sete, dez ou de outro
número de céus. O mais comum talvez seja sete (e.g., O Testamento de Levi
2.7; A Assunção de Isaias 6.13; O Talmude Babilônico, Hagigah 12b); mas é
improvável que Paulo esteja dizendo que tenha sido elevado ao terceiro dos sete
céus, uma vez que o argumento do seu relato é a insuperável bem-aventurança
daquilo que ele viu e ouviu. Nessa passagem, Paulo deve estar empregando
o sistema dos três céus; se for isso mesmo, é provável que o entendimento de
Calvino — de que aqui o terceiro céu indica aquilo que há de mais elevado e
melhor — esteja certo. Sem dúvida, há muitas fontes que falam de três céus,
algumas das quais relacionam o terceiro céu com o paraíso (e.g., 2Enoque 8;
Apocalipse de Moisés 37.5).
A palavra “paraíso” foi tomada por empréstimo do persa antigo e se refere
ao “bosque” ou jardim murado que um nobre podia ter como parte de sua pro­
priedade. Adotada pelos judeus falantes do grego, logo passou a fazer referência
ao Jardim do Éden, o primeiro paraíso. Pelo fato de muitos judeus considerarem
o estado final como, num certo sentido, a restauração do Éden, esse estado
final de bem-aventurança passou a ser chamado o paraíso de Deus (cf. Ap 2.7).
Tudo que existe entre um e outro é o paraíso oculto (cf. Lc 23.43). Identificar o
paraíso com o terceiro céu é, portanto, fazer do terceiro céu o lugar da presença
de Deus e objetivo supremo de todos que o conhecem. Paulo usa a linguagem
da sua herança para identificar a esfera para a qual ele fora arrebatado. O verbo
traduzido por “arrebatado” sugere uma transferência rápida, não uma ascensão
lenta. Como isso aconteceu?

2. Paulo não tem certeza do estado em que se achava durante essa revelação (122,3).
Por duas vezes ele descreve sua experiência de ter sido arrebatado ao terceiro céu
com estas palavras ou outras semelhantes: “Se no corpo ou fora do corpo, não
sei; Deus o sabe”. Ou seja, Paulo não sabe se tinha sido arrebatado ao terceiro
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

céu como Enoque, com corpo e tudo o mais, ou se foi somente em espírito,
deixando o corpo para trás temporariamente. Fica claro que Paulo não considera
que isso importe muito. “A ignorância a respeito do modo não anula a certeza
do conhecimento convicto acerca da coisa em si” (Bengel). É provável que os
falsos apóstolos prestassem mais atenção aos detalhes das próprias experiências e
dessem menos atenção à substância de sua visão. Sendo assim, Paulo afastava-se
ainda mais de seus oponentes também nesse aspecto.
No entanto, a observação repetida de Paulo tem sido entendida de forma
equivocada em alguns comentários e estudos recentes. É ir além da evidência,
por exemplo, alegar que Paulo não conseguia imaginar a vida humana à parte
do corpo natural ou do corpo ressurreto, por não se importar em distinguir a
existência corpórea da existência imaterial. Alguns pensam assim por não acre­
ditarem que a Bíblia ensine a respeito do estado intermediário. Eles sustentam
que, ao morrer, o crente recebe de imediato o corpo ressurreto sem nenhum
ponto de continuidade com seu corpo natural morto.
Essa interpretação perde a questão tratada nessa passagem. Paulo diz que
não sabe em que estado estava quando teve a visão, mas o fato de ele poder
articular as alternativas “se no corpo ou fora do corpo”, mostra que ele está
perfeitamente confortável com qualquer uma delas e pode vislumbrar qualquer
uma como um modo adequado de desfrutar sua viagem ao paraíso.
E claro que Paulo não escreveu essas palavras para solucionar tais questões,
mas só para expressar a sua incerteza acerca do estado em que se achava ao ser
arrebatado ao terceiro céu.

3. As revelações recebidas por Paulo ultrapassavam toda e qualquer experiência


espiritual normal (12.4). Paulo ouviu “coisas inexprimíveis, coisas que ao homem
não é permitido falar”. Alguns enxergam apenas uma restrição nessas palavras:
ou seja, entendem que as coisas vistas por Paulo eram inexprimíveis não no
sentido de serem inefáveis, mas por Paulo ter sido proibido de expressá-las.
Nesse caso as palavras seguintes, “coisas que ao homem não é permitido falar”,
não acrescentam nenhuma novidade; apenas esclarecem o significado de “coisas
inexprimíveis”. Quase sempre são apresentados paralelos com Filo ou com as
religiões de mistério.
Os paralelos não me parecem muito convincentes. Lúcio Apuleio
[Metamorfoses 11.23), por exemplo, não tem dificuldade em articular o que está
proibido de contar (tomando por base que seus leitores são piedosos e guardarão
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 143

segredo!); assim, o paralelo alegado não é tão próximo. A maneira mais fácil de
compreender a expressão “coisas inexprimíveis” é considerar que ela signifique
“inefáveis”. Isso implica a existência de duas restrições na comunicação que Paulo
faz de sua visão: primeira, ela era inexprimível ou inefável; e segunda, mesmo
que quisesse revelar o inefável (talvez apelando a muitas metáforas), ele estava
totalmente proibido de fazê-lo.
As duas restrições nos ensinam coisas importantes. A primeira pode ser
esclarecida com um problema paralelo. Vamos supor que você tenha aprendido
a língua de uma tribo isolada no interior da Nova Guiné, com um membro
de lá que abriu caminho até o mundo “civilizado”. A tecnologia da tribo é,
digamos, anterior à Idade da Pedra e sua missão é ir até lá explicar ao povo,
usando a língua deles e sem recursos visuais, exatamente o que é a eletricidade
e o que ela pode fazer.
Você pode começar dizendo que a eletricidade (é de se presumir que teria
de transliterar a palavra) é algo parecido com um espírito poderoso e invisível
que corre mais rápido do que o vento por dentro de coisas sólidas, como os
ramos das trepadeiras. Essas coisas sólidas, ao contrário dos ramos das plantas,
são feitas pelos homens e são quase sempre penduradas em troncos de árvores,
cujos galhos foram cortados fora. A eletricidade é feita numa extremidade
desses “ramos”, os quais levam a eletricidade ao interior de todas as residências.
Quando chegam dentro de casa, são colocados dentro de outras coisas feitas
pelos homens. Há uma que se assemelha a uma caixa pequena, mas quando a
eletricidade entra nela, seu topo fica quente como fogo e é possível assar ali­
mentos dentro dela sem fazer fumaça. Quando a eletricidade entra em outras
coisas feitas pelos homens — pequenas e redondas —, enchem a casa de luz,
como se fossem pequenos sóis.
Até esse ponto é claro que você não se arriscou a descrever baterias elé­
tricas, motores, escadas rolantes, relógios elétricos, termostatos, refrigeradores,
calculadoras portáteis nem computadores; a empreitada já se mostra gigantesca.
O problema não está na inteligência nativa do povo tribal, mas na limitação da
experiência deles. Eles têm poucos cabides mentais nos quais possam pendurar a
nova informação, pois não viram nem têm conhecimento da maioria das coisas
que você pretende descrever nem de nada muito parecido com elas. Foi por
isso que você recorreu a tantas metáforas e símiles: os fios feitos pelos homens
são parecidos com ramos de plantas; o fogão é mais ou menos como uma caixa
cuja tampa fica quente ao receber eletricidade e assim por diante.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Portanto, de que maneira descreveriamos, se fosse o caso, o trono de Deus?


No caso de alguém como Paulo ser arrebatado até o terceiro céu e testemu­
nhar coisas extraordinárias, como lhe seria possível descrevê-las com alguma
fluência, senão para pessoas com experiência semelhante? A mesma coisa, sem
dúvida, é verdade sempre que se permitiu a algum profeta ou apóstolo ter um
vislumbre da glória do Senhor. Se a esses que tiveram a visão fosse permitido
contar suas experiências sem restrições, eles, sem exceção, estariam limitados à
linguagem metafórica de alguma espécie. Tanto é assim que Ezequiel resume
sua visão inaugural desta maneira: “Essa era a aparência da figura da glória
do Senhor. Quando a vi, prostrei-me com o rosto em terra, e ouvi a voz de
alguém falando” (Ez 1.28b). Algo parecido acontece na visão que João teve do
Cristo exaltado (Ap 1.12-17).
O trono e a glória de Deus, o paraíso que ele está preparando para os seus,
o novo céu e a nova terra, tudo evoca idéias que ampliam a imaginação pelo
uso de símbolos e metáforas. Nosso conhecimento dessas realidades é, todavia,
fragmentário e frequentemente simbólico. Se o novo céu e a nova terra são
o lugar onde “habita a justiça” (2Pe 3.13), conseguimos começar a entender,
mediante extrapolação, que tudo quanto lá ocorre é justo, honesto, correto, não
maculado pelo pecado. No entanto, os desdobramentos totais até mesmo de uma
declaração tão simples ainda nos deixam longe da realidade, mesmo quando
nos aproximam dela.
O que Paulo viu em sua visão era inexprimível. Isso não significa que
ele passou por uma experiência tão mística que seria incapaz de colocá-la em
palavras, nem muito menos, embora a experiência envolvesse aspectos objetivos,
que fosse o tipo de coisa impossível de se conversar a respeito, mas, sim, que as
coisas vistas por ele eram inexprimíveis assim que o apóstolo voltou à sua esfera
normal de atuação. Ninguém do convívio de Paulo desfrutara de revelações
semelhantes, portanto, não havia nenhuma experiência comum para servir de
ponte nessa questão. A visão continuava fundamentalmente “inexprimível”.
Ao mesmo tempo, Paulo nos informa que aquilo que ele ouviu são “coisas
inexprimíveis, coisas que ao homem não é permitido falar” (2Co 12.4). Isso
não as torna supérfluas nem inúteis, e sim particulares: isto é, não foram dadas
a Paulo para que as transmitisse à igreja, mas foram dadas apenas para seu pró­
prio benefício. O Novo Testamento muitas vezes encoraja os cristãos a viverem
tendo em vista os valores e as expectativas da eternidade, reconhecendo que aqui
em baixo não passamos de meros peregrinos em trânsito. A maior parte de nós
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS

está amplamente resguardada, tanto em quantidade como em qualidade, das


provações pelas quais Paulo passou, e em grande parte das vezes não vivemos
de acordo com a luz que já recebemos. Mas o propósito de Deus com respeito
a Paulo envolvia o apóstolo em sofrimentos vertiginosos, oposição assombrosa
e desafios inacreditáveis. Assim, para fortalecê-lo para o serviço divino e para
os sofrimentos pelos quais passaria, o Deus de toda a esperança mostrou ao
apóstolo um pouco mais da glória vindoura do que à maioria de nós é dado
conhecer, para que isso servisse como âncora para sua alma no tempo mais
hostil. Até mesmo os vislumbres da glória que o Novo Testamento nos dá têm
o propósito de promover em nós a santidade, a firmeza e a fé, não o de satisfazer
a curiosidade ociosa (e.g., 2Pe 3.10-14; ljo 3.2,3). Portanto, não surpreende que
as revelações espetaculares concedidas ao apóstolo dos gentios, esse “homem em
Cristo”, tenham sido designadas para seu fortalecimento especial, para ajudá-lo
a perseverar inabalável até o fim — e não para satisfazer a curiosidade de crentes
imaturos como os coríntios, os quais utilizariam a experiência para exaltar seu
orgulho, não para fortalecer a própria fé. Por essa razão, as coisas ouvidas por
Paulo tanto eram inexprimíveis (por não poderem ser apresentadas de forma
adequada a pessoas sem a vivência delas) quanto eram secretas. Estavam intei­
ramente além da experiência espiritual normal da maioria dos crentes.
A parte disso, Paulo não nos conta o que vivenciou, pois se o fizesse teria sem
dúvida violado as restrições de comunicação que o próprio Deus lhe impusera.
Não obstante, Deus em sua misericórdia providencialmente levou Paulo a nos
contar essa parte da visão, de sorte que, mesmo que nossa mente não seja capaz
de explorar o teor dessa revelação de forma plena, nossa imaginação consegue
captar um pequeno vislumbre da grandiosa glória revelada a Paulo, a qual será
nossa algum dia. Nesse sentido, nós também, em menor proporção, usufruímos
do encorajamento e do sublime chamado que essas revelações proporcionaram
ao apóstolo Paulo.

C. A reação do apóstolo à grandeza das revelações (12.5,6a)


1. Ele ainda prefere gloriar-se na própria frarpieza (12.5,6a). O apóstolo agora
reconcilia delicadamente os dois Paulos, o homem em Cristo e o Paulo em si
mesmo. Ele quer enfatizar a natureza totalmente excepcional das revelações que
acabou de mencionar e, portanto, a maravilhosa honra concedida graciosamente
à pessoa que as recebeu. Assim, ainda fazendo uso da figura do visionário em
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

terceira pessoa, algumas linhas mais adiante, ele escreve: “Nesse homem me
gloriarei...” (2Co 12.5a). Sob nenhuma circunstância, seja ela qual for, Paulo
quer obter crédito ou reputação por causa dessas revelações, caso seus leitores
estejam começando a perceber com clareza o recurso literário usado por ele.
Para salientar a magnitude da honra concedida, ele se gloriará no “homem em
Cristo”; mas no que diz respeito a seu próprio compromisso fundamental quanto
à vangloria que considera admissível (apresentado em 10.12-18), ele tem ainda de
acrescentar: “mas não em mim mesmo, a não ser em minhas fraquezas” (v. 5b).
Até esse ponto seus leitores devem estar um pouco em dúvida. Paulo agora
remove qualquer resquício do seu disfarce. “Mesmo que eu fosse gloriar-me
[como se eu fosse realmente o homem em Cristo]”, escreve ele, “não seria louco,
porque estaria falando a verdade” (12.6a). Ou seja, se Paulo reivindicasse essas
coisas para si mesmo, não estaria se expondo como algum louco mentiroso
porque, na verdade, ao fazê-lo, estaria mostrando que falou a verdade. É isso!
Paulo finalmente admitiu; confessou ser ele a pessoa que recebeu essas revelações
grandiosas e sublimes. Ele praticamente não teve escolha, mas tomou essa decisão
de forma sutilíssima. Uma vez mais ele chama a si mesmo de louco por entrar no
jogo da vangloria, insiste que recebeu essas visões como um mero “homem em
Cristo”, distancia a si mesmo desse hipotético “homem em Cristo”, faz a conexão
usando linguagem hipotética (“Mesmo que eu fosse gloriar-me...”) e uma vez
mais salienta seu profundo compromisso de gloriar-se apenas em suas fraquezas.
A profundidade desse compromisso é notável. Paulo estava longe de expor
ostensivamente suas experiências espirituais mais profundas; e a mais profunda
delas ele teria levado consigo para o túmulo, não fossem as circunstâncias pecu­
liares que exigiram essa confissão. Ele cria, não apenas em teoria, mas também
na prática, na Escritura que pregava aos outros: “... quem se gloriar, glorie-se
no Senhor...” (2Co 10.17).
Mas por quê?

2. Ele teme que os outros possam tê-lo em demasiada consideração (12.6b).


A maioria de nós passa a vida com medo de que os outros não nos tenham em
alta conta. Mas Paulo, que teve a oportunidade de se gloriar abertamente na
mais espetacular revelação que lhe fora concedida, escreve: “evito fazer isso para
que ninguém pense a meu respeito mais do que em mim vê ou de mim ouve”.
Três convicções claramente estão por trás dessa restrição. Primeira, Paulo
se recusa a permitir que sua reputação fundamente-se em alegações e apelos
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS

inacessíveis a visões extáticas e sobrenaturais. Mesmo a sua experiência na estrada


para Damasco e o posterior encontro com Ananias tiveram algumas testemunhas
relutantes e, portanto, não estão incluídos na visão aqui mencionada.
A segunda convicção é o complemento da primeira. Paulo permitirá que
apenas sua conduta manifesta, aquilo que ele faz e diz, seja usada por seus
convertidos como base para o avaliarem. O comportamento tem importância
insuperável no modo que um cristão vive. Por mais espetacular que sejam suas
alegações pessoais, por mais mística que seja sua suposta visão, nada tira o lugar
da conduta e das palavras como os indicadores mais confiáveis do quanto alguém
segue a Cristo de perto.
Mas a terceira e mais notável convicção subjacente é a genuína preocupação
de Paulo para que os outros não pensem mais do que devem a seu respeito.
Talvez isso simplesmente reflita uma honestidade brutal. Paulo conhece o pró­
prio coração bem o suficiente para saber que, exceto pela graça, este é capaz
de cometer as mais terríveis abominações aos olhos de Deus (cf. Rm 3.10-20).
Mas, na verdade, é mais do que isso: essa é a atitude típica manifestada por
esse apóstolo, que está sempre preocupado em insistir com as pessoas para que
concentrem a atenção no evangelho e no Salvador, não no mensageiro. Paulo
acredita que será uma testemunha mais eficaz da mensagem de Cristo crucificado
se atrair pouca atenção para si mesmo e para suas vitórias possibilitadas pela
graça, estando sempre disposto a suportar sofrimentos, privações e ignomínia.

D. A grandeza das revelações — e o mensageiro


de Satanás (12.7-10)
Paulo está respondendo aos visionários superespirituais que confiam nos próprios
relatos de façanhas espirituais e experiências extáticas para exaltarem sua auto­
ridade pessoal e desmerecerem a pessoa do apóstolo. Ao apelar para o recurso
da terceira pessoa do “homem em Cristo”, Paulo descreve sua revelação mais
extraordinária, ao mesmo tempo em que se afasta da vangloria característica de
seus oponentes. Há, no entanto, outra razão por que o apóstolo está preparado
para contar o caso, a qual está indissociavelmente ligada a uma experiência
posterior, a história do seu espinho na carne. Essa segunda fase da espetacular
experiência da revelação que Paulo teve não apenas diz com exatidão aquilo
que o apóstolo quer dizer, mas torna impossível alguém acreditar que, na ver­
dade, Paulo estivesse engrandecendo veladamente sua própria reputação. Pois
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

ele, melhor do que ninguém, compreende que, quando se trata da vida cristã,
graça e privilégio grandiosos quase sempre vêm de mãos dadas com sofrimentos
também grandiosos.

1. Deus e Satanás — para impedir que Paulo se tornasse arrogante (12.7). Já


se gastou muita energia para identificar o espinho na carne de Paulo. Há incon­
táveis explicações que incluem malária, grave doença ocular, sentimentos de
culpa e depressão por sua incapacidade de converter os judeus, perseguição dos
judeus, epilepsia, notável defeito de fala, alguma espécie de tentação continuada
(considerando-se que “carne” diz respeito à natureza não regenerada) e muitas
outras. Algumas sugestões são plausíveis, mas nenhuma pode ser provada. No
entanto, o que parece restar claro é que o espinho na carne de Paulo, fosse ele
o que fosse, o acometeu depois e em consequência “da grandeza [de suas] reve­
lações”. Em outras palavras, não era um defeito congênito nem um problema
de caráter que já o afligia muito antes do tempo em que ele foi arrebatado ao
terceiro céu.
Fica igualmente claro que esse espinho era algo substancial, não alguma
irritação menor. Um apóstolo capaz de suportar os sofrimentos e as privações
listadas em 2Coríntios 11 não suplicaria ao Senhor, com tanta veemência e de
forma tão reiterada, para remover algum probleminha facilmente suportável.
O espinho de Paulo era algo muito doloroso ou que causava grande vergonha,
e talvez as duas coisas.
Mais importante ainda, Paulo vê esse espinho simultaneamente como obra
de Satanás e obra de Deus. O espinho é “um anjo” (i.e., mensageiro) de Satanás”,
algo enviado pelo arqui-inimigo para ferir, limitar e derrotar o apóstolo. Sem
dúvida, Satanás tem poder para infligir grave dano físico (Jó 2.1-10; ICo 5.5;
lTm 1.20) em acréscimo à sua obra de sedução moral e, às vezes, aquele é com­
plemento ou instrumento desta. Visto que o espinho é mensageiro de Satanás, não
ficamos surpresos em ver Paulo suplicando a Deus por sua remoção. Os cristãos
não devem esperar que Deus remova os obstáculos de Satanás? É possível haver
circunstâncias excepcionais, como as de Jó, mas em regra Deus não estaria
interessado em derrotar Satanás?
Todavia o problema é bem mais complexo do que isso, pois Paulo também
acredita que esse espinho procede de Deus. Ele escreve na voz passiva: “foi-me
dado um espinho na carne” — quase com certeza um exemplo do chamado
passivo divino, isto é, “foi-me dado por Deus”. Para que não haja nenhuma
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 149

dúvida, o propósito dessa “dádiva” é impedir Paulo de se ensoberbecer. Satanás,


com toda certeza, não estaria interessado nesse objetivo. Serviría melhor a seus
interesses caso Paulo se tornasse insuportavelmente arrogante. O propósito mani­
festo dessa dádiva só pode ser de Deus: apesar de ser mensageiro de Satanás, o
espinho foi dado a Paulo, simultaneamente, pelo próprio Deus, cujo propósito
ao concedê-lo era benéfico: para que Paulo não se tornasse soberbo.
Há aqui uma lição geral de considerável importância. Muitas pessoas passam
a vida inteira tentando identificar certo incidente ou determinado acontecimento
como obra exclusiva de Satanás ou como obra exclusiva de Deus. Isso leva quase
sempre a interpretações duvidosas, podendo terminar em um modo de ver as
coisas mais de acordo com o padrão das seitas. Sem dúvida, essa perspectiva não
ouve com suficiente cuidado o que as Escrituras dizem a esse respeito.
Consideremos a morte de Jesus Cristo. Lucas reconhece que a sequência de
traição, prisão, tortura, julgamento manipulado e crucificação é a hora quando
as “trevas reinam” (Lc 22.53); ele declara explicitamente que isso ocorreu “com
a ajuda de homens perversos” (At 2.23) e como resultado de terrível conspiração
(4.27) . Ao mesmo tempo, porém, todos esses acontecimentos “Fizeram o que o
teu poder e a tua vontade haviam decidido de antemão que viesse a acontecer”
(4.28) . Assim, em certo sentido a morte de Jesus foi obra do mal, e todos os
responsáveis por ela são culpados; mas também em outro sentido foi obra de
Deus que agiu em amor, em decorrência do seu propósito redentor, para esta­
belecer uma nova humanidade sob a nova aliança selada com o sangue de seu
Filho. Deus não entrou no plano depois do ocorrido e o converteu totalmente
para o bem. Longe disso. A Bíblia insiste que esse era o plano de Deus desde
o princípio, a própria razão pela qual ele de antemão enviou o seu Filho. No
entanto, a soberania de Deus no caso em nada diminui a responsabilidade de
todos os envolvidos na morte de Jesus.
Tratei desse tema com detalhes em outra obra2 e não pretendo considerá-lo
aqui de novo. Não obstante, suas implicações são substanciais para o modo de os
cristãos considerarem as tragédias da vida. Alguns crentes, muito preocupados
em serem espirituais, tentam tratar a morte, por exemplo, apenas como vitória.
E a “volta ao lar”, o “chamado para um serviço mais alto”, a “elevação à nossa
vocação maior”. O próprio Paulo não nos diz que deixar o corpo é estar com
Deus? Se há lágrimas, com certeza são lágrimas de autocomiseração e choque

2D. A. Carson, Dinine sovereigiity and luinian respousibility (Atlanca: John Knox, 1981).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

dos que ficaram para trás; mas a morte em si não é horrível e, por certo, não é
algo que um cristão amadurecido deva temer ou desprezar.
Esse modo de ver a morte, porém, é demasiado unilateral. A Bíblia ainda
trata a morte como inimigo, o “último inimigo” que só a volta de Cristo vencerá
(lCo 15.25,26). A morte continua a ser uma prova nua e crua do pecado, um
resultado da maldição, uma prova da sentença acusatória de Deus, sob a qual
a raça humana continua; e só será finalmente derrotada no alvorecer do novo
céu e da nova terra. Nesse ínterim, há um sentido segundo o qual devemos
“nos enfurecer, nos enfurecer contra a morte da luz” (todavia não no sentido
que Dylan Thomas deu a essas palavras): a morte é consequência do pecado, e
devemos detestar tudo o que diz respeito ao domínio do pecado.
Temos, portanto, a obrigação de preservar o equilíbrio da Escritura.
A morte é um inimigo, mas principalmente um inimigo derrotado pela obra
de Cristo na cruz e destinado à destruição final, quando Jesus voltar. A morte
é o selo incondicional da maldição, da nossa condenação racial e pessoal; mas
é também o meio usado por Deus em Cristo para adquirir nossa redenção:
o Filho morreu, o justo pelo injusto, para nos levar até Deus. A morte não é
intrinsecamente boa, porque fala eloquentemente do pecado, da maldição, da
corrupção, da mortalidade; mas a graça de Deus já transborda com tanto poder
que os crentes estão cientes de que a morte não é a realidade final. Podemos
sofrer, mas não como os que são desprovidos de esperança; partir para estar
com Cristo é muito melhor.
Esse mesmo equilíbrio deve servir para moldar nossas perspectivas acerca
de muitas áreas da vida ainda marcadas pela maldição do pecado. Doenças,
acidentes, opressão, oposição ao evangelho: nada disso é bom, e tudo pode ser,
de um modo ou de outro, rastreado até o próprio Satanás. Nada disso terá lugar
no reino consumado. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma dessas coisas horríveis
escapa aos limites mais extremos da soberania de Deus. “Sabemos que Deus age
em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados
de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28).
Paulo conhecia bem essas verdades, e as reflete na provação mais difícil
de sua vida. “Para impedir que eu meu tornasse arrogante por causa da gran­
deza dessas revelações”, escreve ele, “foi-me dado um espinho na carne, um
mensageiro de Satanás, para me atormentar” (2Co 12.7 — essa é a tradução da
variante textual mais provável). O espinho era um mensageiro de Satanás — não
havia nada intrinsecamente bom nisso, e não havia meio de palavras piedosas
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS

conseguirem jamais encobrir esse fato. No entanto, isso lhe foi “dado” (por
Deus) com propósitos benéficos.
Talvez Paulo tivesse em mente uma situação semelhante no Antigo
Testamento. Os onze irmãos venderam José à escravidão, um ato baixo e vil.
Mas, anos depois, ao refletir a respeito, o próprio José pôde dizer a seus irmãos:
“Vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, para que
hoje fosse preservada a vida de muitos” (Gn 50.20). Assim, no caso de Paulo,
a razão imediata para o espinho, do ponto de vista de Deus, era a grandeza das
revelações; e seu propósito imediato era não deixar que Paulo se tornasse soberbo.
Grande é o crédito do apóstolo em reconhecer tal propósito. Assim como
outros poderíam vir a se sentir motivados a tê-lo em alta conta, caso soubessem
dessas grandiosas revelações, também Paulo corria o mesmo perigo. “Quão
perigosa deve ser a autoexaltação, quando até mesmo o próprio apóstolo pre­
cisava se conter” (Fausset). Paulo compreende isso tão bem que em 2Coríntios
12.7-10, onde fala de sua experiência com o espinho na carne, não resta sequer
um indício do seu recurso anterior ao “homem em Cristo”. Quando trata da
grandeza de suas revelações, ele só fala de forma comedida, quando fala; quando
trata de suas fraquezas, ele fala de forma direta e sem acanhamento. Em síntese,
mesmo quando reconta essa experiência dolorosa, ele está dando exemplo da
lição que aprendeu com ela, algo que ele expressa nos versículos restantes (8-10).

2. A súplica de Paulo e a graça de Deus (12.8,9a). Nada do que afirmei


sugere que Paulo sentisse prazer nesse espinho. Quer o visse como mensageiro
de Satanás, quer o visse como um fardo posto sobre si pelo Pai, Paulo sentia
que era demais suportá-lo. “Três vezes roguei ao Senhor que o tirasse de mim”,
escreve o apóstolo. Certamente essas não eram orações casuais, feitas descuida­
damente ao sabor do momento, mas três períodos separados e prolongados de
intercessão dirigida ao próprio Jesus?
A princípio, a resposta de Deus não foi a que Paulo queria ouvir. No entanto,
a resposta de Deus era definitiva (o grego deve ser traduzido por: “Mas ele me
disse”). Essa mesma resposta é muitas vezes repetida em hinos e cânticos, mas não

3Normalmente, em Paulo a forma articulada lio Kyrios refere-se ao Senhor Jesus, ao passo
que a forma anártrica Kyrios refere-se a Yahweh. O mais usual é orar ao Pai ou (para usar a
fórmula completa) orar ao Pai mediante Cristo e no Espírito Santo. Mas no Novo Testamento
há diversas orações feitas diretamente a Cristo (e.g., aqui; At 7.59).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

deve ter sido nada fácil aceitá-la quando a ouviu pela primeira vez: “Minha graça
é suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12.9a).
Em certo sentido, é claro, Deus respondeu de fato à oração de Paulo, mas
não da maneira que o apóstolo desejava. Calvino distingue acertadamente entre
meios e fins na oração. O fim que Paulo queria era ser aliviado do espinho e
simplesmente presumiu que o meio para isso seria a remoção do espinho. Mas
Deus concedeu o fim mediante outro meio: ele concedeu alívio do espinho, não
com a sua remoção, mas acrescentando mais graça, graça suficiente. O Senhor
prometeu a Paulo que, na aflição causada por esse mensageiro de Satanás, ele
sempre percebería que a graça divina o supriría com uma provisão suficiente
para suportar, como cristão.
Além do mais, essa graça divina concedida a Paulo bastava justamente
porque Paulo estava tão fraco. O poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza: ele
alcança sua dose mais plena e suas formas mais poderosas quando é provido
em razão de fraqueza. Quanto maior é a fraqueza do cristão, tanto maior é a
graça derramada.
Se isso for verdade, então os poderes que os falsos apóstolos alegavam ter
significam que eles eram desprovidos de graça! Todas as credenciais impres­
sionantes desses líderes eclesiásticos acabavam significando uma falência em
graça. A graça é resposta à necessidade, à fraqueza admitida, à miséria espiritual.
O reino do céu é dos pobres em espírito (Mt 5.3).
É importante reconhecer o que esse texto maravilhoso não promete. Alguns
o leem como se o crente pudesse passar por um período de fraqueza seguido por
outro de graça e poder divinos, no qual ele se tornaria uma espécie de vencedor.
A fraqueza converte-se na condição para esse poder, ou no pagamento de uma
taxa, se você preferir. Mas esse tido de interpretação distorce o texto. O espinho
de Paulo não vem acompanhado da graça; antes a graça lhe é dada para o
capacitar a lidar com a fraqueza não removida. Quase sempre nas Escrituras,
a fraqueza é condição para a graça não no sentido de servir como precursora
indispensável da graça, mas no sentido de servir como veículo contínuo de
graça. “E quando ele está fraco, realmente fraco — pobre, doente, humilhado,
desprezado, não amado pelos seus próprios filhos espirituais, além de desprezado
pelo mundo — que o poder de Deus vem à tona. ‘Porque a loucura de Deus é
mais sábia do que a sabedoria humana; e a fraqueza de Deus é mais forte que
a força humana’ (lCo 1.25)” (Barrett).
Em nenhum outro lugar isso está mais claro do que em Romanos 8,
a célebre passagem do mais que vencedores. Paulo não está interessado em
DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 153

estabelecer uma raça de supertriunfalistas para os quais todo empreendimento é


bem-sucedido, toda missão é frutífera, todo esforço é próspero, longe disso. Ele
demonstra que os cristãos são mais que vencedores no contexto da tribulação,
angústia, perseguição, fome, nudez e espada, e no sentido de que, a despeito
de todas essas coisas, o amor de Deus nos amparará, nos sustentará e alimentará
nosso ânimo na fidelidade, de sorte que jamais seremos separados do amor de
Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (v. 31-39).
Esse também foi o padrão manifestado de forma suprema por Cristo Jesus,
nosso Senhor. A própria cruz, apavorante símbolo romano de ignomínia, derrota,
juízo e morte, foi precjsamente o meio pelo qual Jesus triunfou sobre todos
os seus inimigos. O poder de Deus foi manifestado de maneira suprema na
fraqueza de Jesus. Por que, então, os discípulos de Jesus optariam por desmere­
cer seu exemplo, tomando o partido dos triunfalistas? Kierkegaard não estava
errado quando orou:

Senhor Jesus, muitas e várias são as coisas pelas quais o homem pode se sentir
atraído, mas uma coisa há para a qual homem nenhum jamais se sentiu atraído,
a saber, para o sofrimento e a humilhação. A isso, nós homens achamos que
devemos evitar o máximo possível, e que sempre devemos ser forçados a essas
coisas. Mas tu, Salvador e Redentor nosso, tu foste humilhado sem a isso seres
coagido, e muito menos forçado a tanta humilhação, em cuja imitação o homem
descobre sua mais elevada honra; ah, que a imagem de tua humilhação seja-nos
tão vivida que possamos nos sentir atraídos para ti em humildade, para ti, que
do alto nos atrairás para ti mesmo.4

3. A reação de Paulo e o princípio articulado (12.9b,10). Paulo aprende a


lição. Após três sessões sérias de oração, ele começa reagir à sabedoria da res­
posta do Senhor; e bem ao contrário de aquiescer a contragosto àquilo que não
pode mudar, ele escreve: “Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente
em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. Por isso,
por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades,
nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco é que sou forte.”. Paulo
poderia perfeitamente ter escrito as linhas seguintes:

As gloriosas revelações que concedeste,


manifestações inefáveis de luz sagrada,

4S0ren Kierkegaard.
154 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

evocam meu feliz louvor em pura alegria,


antegozo da minha morada celestial.
Então, por que esse incessante espinho; aguilhão ardente
de Satanás? Por que não me poupas da desgraça
da perseguição, da malícia e do terror do perigo?
De que estranhos vapores de amor emanaram as urtigas?
A minha graça te basta; sim,
meu poder se aperfeiçoa quando estás fraco.
Suplicarás, em tua débil intrepidez,
Quando tua fraqueza em ruínas trouxer a força por que buscas?
Ora, injúrias, dificuldades, fraquezas são o meu cântico,
Minha alegria; pois quando sou fraco, então sou forte.5

Resumindo, Paulo não é nenhum masoquista insensato que gosta de se ferir,


que adora ser alvo de violência. Ao contrário, vemos nele um cristão consagrado
e racional, cuja experiência com o espinho na carne o levou a uma perspectiva
criteriosamente ponderada acerca da vangloria, uma perspectiva que dá sustentação
a tudo quanto ele escreve nesses capítulos. O apóstolo se gloriará alegremente na
própria fraqueza se ela significar que o poder de Cristo repousará sobre ele. “Ser,
portanto, convertido em morada do poder de Cristo, quando este revela a sua
glória, era o fundamento lógico para se regozijar nessas fraquezas, as quais eram
condição para a sua presença e ocasião para a manifestação do seu poder” (Hodge).
Para que os coríntios, imensamente seduzidos pelos triunfalistas, não deixem
de entender o seu argumento, Paulo repete sua decisão (12.9b) como um prin­
cípio pessoal articulado (12.10). Ele está preparado para deixar de orar pela
remoção do espinho na carne, não por gostar desse ou de outro mensageiro
qualquer de Satanás, mas por saber que “o poder de Cristo manifesta-se na
plenitude de sua energia irresistível e alcança seus resultados mais elevados
quando obras de poder são realizadas por meio de instrumentos impotentes”
(Wilson). E por isso que Paulo está pronto para estender a lição que aprendeu
especificamente com o espinho na carne e nela incluir fraquezas, angústias,
perseguições e dificuldades. Sempre que ele estiver fraco, aí também o poder
de Deus terá a maior oportunidade de se manifestar com pleno vigor.
Tudo depende da expressão: “por amor de Cristo”; acerca da qual Tasker
comenta: “Só mesmo um fanático mórbido pode sentir prazer no sofrimento

5D. A. Carson, Somiets from Scripture.


DESTRUINDO OS VISIONÁRIOS SUPERESPIRITUAIS 155

que inflige a si mesmo; só mesmo um tolo insensível pode sentir prazer nos
sofrimentos decorrentes de sua própria tolice; e só mesmo um cristão convicto
pode sentir prazer no sofrimento suportado por anior de Cristo, pois só esse cristão
foi iniciado no segredo divino, o de que somente quando ele é fraco... é que ele
é forte”. Os visionários superespirituais que afligiam a igreja nada sabiam desse
cristianismo. A reação de Paulo, o seu gloriar-se nas fraquezas, praticamente não
fazia sentido para eles, mas homens e mulheres que conhecem e amam a Jesus
discernirão prontamente por que Paulo chega a essas conclusões revolucionárias,
pois começaram a compreender o que significa servir e sofrer “por amor de
Cristo” (12.10). E, à medida que servem, podem confiar na perfeita combinação
de soberania e graça que há em Cristo, a qual os capacita a cantarem:

Tenho um protetor soberano,


invisível, mas sempre perto,
imutavelmente fiel para salvar,
onipotente para governar e ordenar.
Ele sorri, e em mim transborda consolação;
sua graça descerá como o orvalho,
e as muralhas da salvação estarão ao redor
da alma que ele se apraz em defender.

Aquele que inspira e ouve orações,


teu pastor e guardião teu,
Tudo que é meu ao zelo da tua aliança
rendo, meu dormir e meu caminhar.
Se és meu escudo e meu sol,
a noite não me será escura;
e, por mais velozes que passem meus momentos,
eles apenas me trazem para mais perto de ti.

— August Montague Toplady (1740-1779)


7 Franca repreensão
Os erros dos coríntios e os
motivos do apóstolo

Fui louco, mas vocês me obrigaram a isso. Eu devia ter sido recomendado
por vocês, pois em nada sou inferior aos “superapóstolos”, embora eu
nada seja. As marcas de um apóstolo — sinais, maravilhas e milagres —
foram mostradas entre vocês, com grande perseverança. Em que vocês
foram inferiores às outras igrejas, exceto no fato de eu nunca ter sido
um peso para vocês? Perdoem-me esta ofensa!
Agora estou prestes a visitá-los pela terceira vez e não serei um peso
para vocês, pois não são os seus bens o que desejo, mas vocês mesmos.
Além disso, não são os filhos que devem ajuntar riquezas para os pais, mas
os pais para os filhos. Assim, de bom grado, por amor a vocês, gastarei
tudo o que tenho e também me desgastarei pessoalmente. Visto que
os amo tanto, devo ser menos amado? Seja como for, não lhes tenho
sido um peso. No entanto, sujeito astuto que sou, eu os apanhei com
astúcia. Porventura eu os explorei por meio de alguém que lhes enviei?
Recomendei a Tito que os visitasse, acompanhado de outro irmão.
Por acaso Tito os explorou? Não agimos nós no mesmo espírito e não
seguimos os mesmos passos?
Vocês pensam que durante todo este tempo estamos nos defen­
dendo perante vocês? Falamos diante de Deus como alguém que está
em Cristo; e tudo o que fazemos, amados irmãos, é para fortalecê-los.
Pois temo que, ao visitá-los, não os encontre como eu esperava, e que
vocês não me encontrem como esperavam. Temo que haja entre vocês
brigas, invejas, ataques de ira, divisões, calúnias, intrigas, arrogância e
desordem. Receio que, quando visitá-los outra vez, o meu Deus me
humilhe diante de vocês e eu lamente pelos muitos que pecaram ante­
riormente e não se arrependeram da impureza, da imoralidade sexual e
da libertinagem que cometeram (2Co 12.11-21).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

á tempo para tratamentos discretos; há também tempo para a con­


frontação direta. Como conselheiro sábio, Paulo conhece a diferença.
Ele levantou uma fortíssima acusação contra os apóstolos intrusos e expôs a
estrutura fundamentalmente não cristã do triunfalismo dessas pessoas. Até
aqui, porém, Paulo tem sido relativamente gentil com os próprios coríntios. Ele
os constrangeu um pouco com sua ironia e exigiu que refletissem a respeito
dos critérios de liderança cristã que aprenderam com os intrusos. Todavia não
atacou de forma direta a cumplicidade deles na situação preocupante que os
falsos apóstolos introduziram na igreja coríntia.
Nos versículos que temos agora diante de nós, isso muda. Paulo detalha
alguns erros específicos dos coríntios nesse episódio lamentável e em seguida,
para que suas razões para mencionar tais erros não sejam uma vez mais impug­
nadas, ele revela algumas de suas mais profundas motivações para a maneira
que agiu. Podemos tirar proveito de tudo isso, aprendendo a evitar os erros dos
coríntios e a cultivar as motivações de Paulo.

A. Os erros dos coríntios (12.11-18)


1. Os coríntios levaram Paulo aos terríveis sofrimentos desses capítulos (12.11).
Agora, acabou-se em definitivo a louca vangloria de Paulo. Não resta dúvida
de que gloriar-se não era o que o apóstolo desejava fazer. Afinal, ele havia con­
denado os hábitos de outros com relação a isso e insistiu que o padrão bíblico
era o de gloriar-se somente no Senhor (2Co 10.7-18). Paulo, no entanto, foi
levado a incorrer naquilo que ele próprio condenava. É evidente que a maioria
das coisas que ele fez foi formulada em um estilo de ironia profunda e, às vezes,
até desdenhosa. Além do mais, toda a lista de vanglorias, conforme insistia ele,
jamais fora a marca de Paulo, o cristão, mas de Paulo, o louco (11.17). Se em
algum momento ele alegou realmente algo para si mesmo, como o fato de ter
sido recebedor de grandiosas revelações, ele o fez com o toque mais sutil; na
verdade, o fez apelando um tanto envergonhado e sem jeito para uma terceira
pessoa, a do “homem em Cristo”. E, mesmo assim, logo de imediato ele deixou
de lado o que teria se transformado em vangloria de verdade, para gloriar-se
nas próprias fraquezas.
Todo esse processo foi acima de tudo detestável para Paulo. Pode ter sido
algo necessário para salvar a igreja dos charlatões espirituais e de suas falsas
FRANCA REPREENSÃO 159

doutrinas, mas foi um grande sofrimento pessoal para o apóstolo, conforme ele
revela ao dizer uma vez mais: “Fui louco”.
E claro que, em certo sentido, os responsáveis por levarem o apóstolo a essa
situação lamentável foram os próprios intrusos. Mas há outra forma de ver a
questão. Se os coríntios tivessem a metade da sabedoria e do discernimento que
achavam ter, não teriam sido enganados pelos “obreiros enganosos” (2Co 11.13).
“Fui louco”, Paulo admite, “mas vocês me obrigaram a isso” (12.11). A vangloria
pagã de falsos líderes nunca teria forçado Paulo a adotar táticas semelhantes nem
a imitá-las; somente o silêncio de suas próprias igrejas poderia levá-lo a isso, já
que seus convertidos ficaram calados e foram pouco a pouco sendo enganados
pelos falsos apóstolos. Paulo pode ter sido forçado a fazer papel de louco, mas
sua atitude foi no mínimo desculpável. Já aqueles que o forçaram a interpretar
esse papel não tinham desculpas em defesa de si mesmos.
Nenhuma igreja tinha melhor condição de defender e recomendar Paulo do
que a de Corinto. “Eu devia ter sido recomendado por vocês”, Paulo continua
dizendo, “pois em nada sou inferior aos ‘superapóstolos’, embora eu nada seja”
(2Co 12.11b). Essa igreja fora fundada por Paulo (ICo 4.14-16) e recebera
dele todo o treinamento inicial no caminho da justiça. No entanto, quando o
apóstolo foi alvo da difamação sutil desses recém-chegados superapóstolos, os
próprios coríntios, longe de defenderem Paulo com firmeza e de expulsarem
sabiamente os intrusos, ficaram calados e se deixaram enganar pelas fraudes que
deveríam ter disciplinado.
Paulo não está contradizendo a si mesmo, nem implorando pelas tais cartas
de recomendação tão valorizadas por seus rivais (cf. 2Co 3.1). Ele sabia muito
bem que seu apostolado, cuja comissão recebera do próprio Senhor Jesus (G11.1),
era algo que não dependia de homens, e que nenhuma recomendação poderia
tirar ou acrescentar nada que fosse da autoridade e da responsabilidade conferidas
a ele por esse comissionamento. Mas os coríntios eram seus convertidos. Nesse
sentido, eram o selo ou o sinal de confirmação de seu apostolado (ICo 9.2).
Como convertidos sob o ministério apostólico de Paulo (ICo 3.6,10; 4.15), bas­
tava apenas reconhecerem esse fato que estariam recomendando o seu ministério.
Lastimavelmente, porém, não manifestaram o menor sinal de gratidão. Prefe­
rindo os padrões mundanos de liderança ostentados pelos intrusos, os coríntios
começaram a se envergonhar do fato de que seu pai em Cristo fosse manso
(2Co 10.1), escasso de floreios retóricos (v. 10; 11.6), financeiramente instável
(v. 7-11; 12.13) e reticente acerca de suas experiências espirituais (12.1-10).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Os coríntios deviam ter percebido de imediato que Paulo não era “em
nada [...] inferior aos ‘superapóstolos’” em tudo quanto fosse um verdadeiro
valor cristão; e nas outras questões, eles tiveram de aprender que seus critérios
estavam errados (veja em 2Co 12.12-14, abaixo). Mesmo esse leve contato
com a vangloria já é suficiente para constranger o apóstolo, e por isso ele logo
acrescenta: “embora eu nada seja”. Nem mesmo o fato de Paulo corresponder
a todos os prerrequesitos de um legítimo apóstolo em nada se relacionam com
superioridade pessoal: ele é devedor da graça, e para Paulo isso não é mero clichê.
Os crentes coríntios não podem ser colocados no mesmo grupo dos intrusos,
mas são culpados por méritos próprios. O fato de não defenderem nem reco­
mendarem Paulo foi a causa imediata da agonia espiritual pela qual ele passou ao
escrever esses capítulos. O pecado deles foi o silêncio, mas não apenas isso, pois:

2. Os coríntios usaram critérios falsos para avaliar os líderes (12.12-14).


Há pelo menos três deles. Primeiro, os coríntios sucumbiram ao amor pelo
poder e pelas manifestações sobrenaturais, esquecendo-se que o ministério de
Paulo caracterizava-se por um equilíbrio distintamente cristão entre milagre e
perseverança. Em um versículo de difícil sintaxe, Paulo afirma: “As marcas de um
apóstolo — sinais, maravilhas e milagres — foram mostradas entre vocês, com
grande perseverança” (12.12a). A última expressão (com grande perseverança)
pode ser traduzida de várias maneiras diferentes. Parece improvável, porém, que
modifique a locução “foram mostradas”, como se Paulo tivesse perseverado em
sua obra de milagres em Corinto, isto é, a despeito da oposição aos milagres ou
do cansaço pessoal. Isso não combina facilmente com o que sabemos de Paulo,
nem se encaixa muito bem no contexto diante de nós.
Parece melhor considerar que a expressão signifique “diante de toda adver­
sidade” (numa versão mais literal do grego), com o sentido de “no (contexto
de) toda adversidade”, de sorte que o versículo inteiro ficaria assim: “As mar­
cas de um apóstolo — sinais, maravilhas e milagres — foram mostradas entre
vocês em um contexto de total adversidade”. Em outras palavras, parece que os
coríntios disseram que, se Paulo os amasse de fato, teria dado mais demonstra­
ções de poder apostólico. Talvez os intrusos pudessem e estivessem dispostos
a ostentar os próprios milagres. Os coríntios podiam, então, indagar se Paulo
achava que não eram dignos de receber seus milagres. A resposta do apóstolo
nesse caso seria: Não, vocês também foram testemunhas de muitos milagres
típicos do ministério apostólico, mas eles ocorreram em um contexto de grande
FRANCA REPREENSÃO

adversidade. Esses milagres não eram amostras de exibicionismo humano, mas


manifestações do poder de Deus revelado, assim como no ministério de Jesus,
em meio ao sofrimento e à perseverança. A “adversidade”, no caso de Paulo,
seria, portanto, referência a todas as coisas mencionadas em 2Coríntios 11 e 12,
inclusive os espancamentos, as privações e o espinho na carne.
Essa interpretação, portanto, se encaixa com o contexto precedente, e
também com o seguinte: Paulo pergunta: “Em que vocês foram inferiores...?”.
Em outras palavras, os coríntios, segundo parece, estavam se sentido inferiores,
em razão da forma que Paulo os estava tratando. Eles queriam milagres sem
sofrimentos e triunfos sem adversidade, e suas memórias amarguradas sugeriam
que Paulo jamais lhes mostrara de fato seu talento apostólico! Mas a resposta de
Paulo é que “sinais” (milagres com a capacidade peculiar de apontarem para além
de si mesmos e de instruírem o observador), “maravilhas” (milagres concebidos
como acontecimentos sobrenaturais que causam deslumbramento) e “milagres”
(literalmente, “feitos poderosos”, isto é, poderosas demonstrações de poder divino
que transcendem o que se vê normalmente no curso da natureza) foram de fato
realizados entre eles: os coríntios não têm base para se queixarem. Mas Paulo se
recusa a dizer que ele mesmo fez os milagres: a expressão na voz passiva, “foram
mostradas”, é uma excelente insinuação, pois o apóstolo pretende dizer que os
milagres “foram feitos [a saber, por Deus!]”. Com isso Paulo evita afirmar que
ele mesmo os realizou. Como de costume, prefere não dar às suas palavras um
tom de reivindicação ou vangloria. Além do mais, ele em seguida acrescenta
que os milagres foram realizados em um contexto de grande adversidade.
Embora os milagres no período pós-pentecostes do Novo Testamento sejam
às vezes realizados pelas mãos de personagens não apostólicos, normalmente
os apóstolos é que são seus agentes. Nesse sentido, os milagres constituem uma
das “marcas” de um apóstolo. Mas há outras marcas, especialmente a disposição
incansável, a persistência e a firmeza, que juntas se combinam na expressão
traduzida por “com grande perseverança”. O erro dos coríntios está na questão
de que seu critério para distinguir o que era de fato apostólico era dolorosa­
mente seletivo. Eles valorizavam demasiadamente os milagres e minavam toda
a importância do sofrimento. Eles se tornaram verdadeiros triunfalistas, e seus
descendentes ainda estão entre nós.
O segundo critério falso adotado pelos crentes de Corinto é revelado pela
frase seguinte de Paulo, uma pergunta retórica: “Em que vocês foram inferiores
às outras igrejas, exceto no fato de eu nunca ter sido um peso para vocês?”.
162 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

E, em seguida, ele acrescenta com cortante ironia: “Perdoem-me esta ofensa!”


(2Co 12.13). Em parte, esse versículo dá continuidade ao anterior. Os coríntios
não eram inferiores na quantidade ou no tipo de milagres apostólicos realiza­
dos entre eles; de fato, exceto por um aspecto apenas, eles não foram de forma
nenhuma tratados como se fossem raça inferior. Essa única exceção é que Paulo
se recusava a receber dinheiro deles. E difícil perceber como essa recusa poderia
torná-los inferior — a menos que os tenha feito se sentirem inferiores, pois a
forma de eles entenderem a liderança triunfalista exigia fatalmente fortes figuras
autoritárias, que na verdade os explorassem (11.7-12; 12.20,21)!
Já aprendemos um pouco a respeito de como Paulo raciocinava sobre essas
questões. Sua prática normal em relação a sustento financeiro era recusar auxílio
de pessoas a quem estivesse ministrando no momento. E bem possível que depois
o aceitasse, quando o auxílio ajudaria a sustentar a si mesmo e ao seu ministério
em outro campo missionário; mas mesmo nessa circunstância ele parecia relutar
em receber qualquer coisa de qualquer grupo no qual prevalecesse o triunfalismo.
Uma maneira de chegar ao cerne do problema é distinguir entre marcas
ou qualificações apostólicas e direitos apostólicos. Paulo, na condição de após­
tolo, tem o direito de ser sustentado pela igreja, ou igrejas, em cujo meio
estiver ministrando no momento; mas ele prefere não fazer uso de tal direito
(cf. ICo 9.1-18; 2Co 11.5-12). Essa é uma das coisas que faz a diferença entre
marca e direito. Uma marca ou característica deve, de algum modo, ser exter­
nada; mas um direito não precisa ser, uma vez que pode ser deixado de lado
com satisfação, em firnção de estratégia, generosidade ou bondade. O erro dos
coríntios estava em transformar um direito apostólico, do qual Paulo preferiu
se privar, em marca ou qualificação indispensável do ofício apostólico; era uma
forma particular de considerar essencial algo que não era.
Em terceiro lugar, os coríntios não só não foram capazes de distinguir
entre qualificação apostólica e direito apostólico, mas também entenderam de
maneira equivocada as motivações de Paulo para não levantar sustento entre eles.
“Agora, estou prestes a visitá-los pela terceira vez” (quanto ao número de vezes,
cf. 2Co 13.1), escreve Paulo; e, em seguida, determina publicamente: “e não serei
um peso para vocês, pois não são os seus bens o que desejo, mas vocês mesmos.
Além disso, não são os filhos que devem ajuntar riquezas para os pais, mas os pais
para os filhos” (12.14). Essa terceira viagem não faria Paulo modificar sua política
em relação ao sustento financeiro, por isso é melhor os coríntios se acostuma­
rem com ela. Na verdade, é exatamente essa política, a qual os coríntios tanto
FRANCA REPREENSÃO 163

estranham e menosprezam, que Paulo utiliza para provar que suas motivações
são diferentes das dos falsos apóstolos. Por mais estranha que ela possa parecer aos
olhos de uma perspectiva paga que incentiva o sentimento de superioridade em
relação aos outros, demonstra com veemência que o apóstolo não quer os bens
deles, mas eles mesmos — isto é, quer, além do seu amor recíproco, que sejam
continuamente fiéis e consagrados a Cristo (6.13; 12.15). Muito ao contrário de
inferiorizar os coríntios, essa política que Paulo adota ao lidar com eles sabiamente
expõe os exploradores pelo que de fato são, e propõe um sistema de valores cristãos
para denunciar critérios baseados em dinheiro e poder.
A ilustração acrescentada por Paulo (“... não são os filhos que devem
ajuntar riquezas para os pais, mas os pais para os filhos”, 12.14b), não deve ser
generalizada. Em ITimóteo 5.8, são estabelecidas responsabilidades familia­
res mais amplas, as quais pressupõem que um filho pode perfeitamente vir a
amparar pais idosos ou doentes. Além disso, em outra passagem Paulo defende
o direito de outros apóstolos serem sustentados por seus “filhos” (ICo 9.3-14).
O argumento da ilustração de Paulo não é o de que não possa haver nenhum
outro tipo de relacionamento entre pais e filhos, mas que sua motivação em
relação aos coríntios é semelhante à do pai que está preocupado em levar sua
descendência à maturidade e à independência, não em explorá-la.
Os coríntios, portanto, levaram Paulo à aflição desses capítulos e usaram
critérios falsos na avaliação dos líderes. O apóstolo agora descreve um terceiro
e um quarto erro cometidos por eles.

3. Os coríntios recusaram-se a amar o apóstolo que tanto os amava (12.15,16a).


Paulo acabara de dizer que tratou os coríntios como um pai trata os filhos. Ele
dá continuidade ao tema, mas o usa de uma nova maneira destacando uma vez
mais a profundeza de sua dedicação a eles: “Assim, de bom grado, por amor
a vocês, gastarei tudo o que tenho e também me desgastarei pessoalmente”
(2Co 12.15a): ele, com a maior satisfação, dará a seus convertidos não só tudo
quanto possui, mas também suas reservas de tempo e energia, tão grande é o seu
amor por eles e seu compromisso com a maturidade deles. Mas agora o argu­
mento se volta para apontar este terceiro erro dos coríntios: “Visto que os amo
tanto [tão mais], devo ser menos amado?” (v. 15b). Os comparativos “mais” e
“menos” dão continuidade à analogia do versículo 14. Paulo, com efeito, está
perguntando: “Se eu os amo mais do que os pais amam os próprios filhos, vocês
me amarão menos do que os filhos amam os pais?”.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Uma das grandes virtudes cristãs é a gratidão. Nossa primeira responsa­


bilidade nessa área é sermos gratos a Deus não apenas pela vida, com todas as
bênçãos da graça comum, mas acima de tudo pelo perdão de nossos pecados
mediante o autossacrifício voluntário de Cristo e por todos os benefícios daí
decorrentes da obra do Senhor Jesus. No entanto, em geral é verdade que as
pessoas gratas a Deus também demonstrarão gratidão aos outros, especialmente
aos servos escolhidos de Deus, por meio dos quais foram tão beneficiadas. Em
contrapartida, se os cristãos forem particularmente mal-agradecidos aos crentes
mais maduros que os conduziram nos primeiros passos da fé e do discipulado,
é provável que essa estultícia reflita o tipo de imaturidade egocêntrica que é a
ingratidão para com o próprio Deus.
Os cristãos empenhados em amadurecer devem investir intensamente na
gratidão. A gratidão a amigos, pais, crentes experimentados que nos ajudaram
em nossa caminhada e, acima de tudo, ao próprio Deus, não é mera cortesia, é
mais, muito mais que isso; é, ao mesmo tempo, um antídoto poderoso contra
a amargura e a maldade e um reconhecimento importante de que só continua­
mos de pé por causa da graça. O que mais poderia demonstrar gratidão senão a
resposta apropriada à graça — seja à graça especial, que nos traz a salvação, seja
à graça mediada por companheiros na fé, amigos e acontecimentos? A graça
agracia; o que mais podemos fazer senão ser gratos? Que resposta à graça seria
mais vil do que a ingratidão?
Num sentido importante, até mesmo nosso amor tem origem na gratidão:
“Conhecemos o amor nisto: que ele deu a sua vida por nós, e nós devemos dar
a vida pelos irmãos. Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (ljo 3.16;
4.19). Todo nosso amor por ele é, na melhor hipótese, uma resposta ao seu amor
por nós. Em contrapartida, a falta de amor por ele é a negação de seu amor por
nós. E, como tal, uma rude forma de blasfêmia, uma ofensa ao amor e à graça
de Deus manifestados em Cristo Jesus. Por extensão, os mesmos vícios estão
presentes naqueles que falham em corresponder ao amor dos filhos de Deus.
Os coríntios, por mera gratidão, deviam ter aberto inteiramente o coração
ao apóstolo e retribuído ao menos parte do amor que ele tão prodigamente
lhes dedicou. Mas supondo-se que eles continuassem com seu amor mes­
quinho, qual seria a reação de Paulo? Deveria ele pôr de lado sua política em
relação ao sustento financeiro e adotar os padrões dos coríntios? Não, Paulo
não poderia fazer isso, pois, na situação que atravessava, fazê-lo seria trocar a
teologia da graça pela teologia do mérito. Seria como arrancar as entranhas do
FRANCA REPREENSÃO 165

próprio evangelho. Paulo, portanto, contempla o silêncio dos crentes coríntios


e relembra sua própria política inabalável: “Seja como for, não lhes tenho sido
um peso” (2Co 12.16a).

4. Os coríntios insinuaram que Paulo é financeiramente corrupto (12.16h-18).


Apesar de Paulo não ter recebido nenhuma ajuda financeira da igreja de Corinto
(e talvez por causa disso mesmo!), esses crentes chegaram a cogitar que a inde­
pendência financeira do apóstolo era uma fachada astuta para mascarar sua cor­
rupção. Ele é acusado de ser inescrupuloso e astuto por natureza, características
que lhe permitiríam usar de fraude para tirar dinheiro dos coríntios, em vez de
recebê-lo de maneira aberta e honesta. E a essa acusação a qual Paulo se refere
quando escreve sua próxima frase com contundente ironia: “No entanto, sujeito
astuto que sou, eu os apanhei com astúcia!”.
Pelo que parece, a acusação de fraude surgiu ligada aos apelos de ajuda
financeira feitos por Paulo aos coríntios em favor dos santos necessitados de
Jerusalém (lCo 16.1-4; 2Co 8.9). E possível que alguém tenha suscitado o boato
de que Paulo iria usar esse dinheiro, ou parte substancial dele, para forrar os
próprios bolsos. Seus auxiliares, diriam essas pessoas, vêm e pegam aquilo que
separamos e o levam para Paulo, e quem sabe o que lhe acontece depois (se é
que entendem o que estamos insinuando)? “Nem mesmo a mais ínfima fração
da perniciosidade dessa acusação dizia respeito aos auxiliares de Paulo nem a
ele mesmo” (Barrett).
Paulo procura defender-se da acusação ultrajante argumentando que os
auxiliares enviados por ele não se portaram como exploradores gananciosos nem
intimidadores (ao contrário dos falsos apóstolos!), mas agiram no mesmo espírito
demonstrado por Paulo. “Porventura eu os explorei por meio de alguém que lhes
enviei?”, é a pergunta de Paulo (2Co 12.17). Na verdade, a sintaxe da frase está
interrompida, talvez em razão da intensidade das emoções de Paulo enquanto
escrevia a carta: “Qualquer dos que enviei — explorei vocês por intermédio
deles?”. De modo ainda mais explícito, Paulo continua: “Recomendei a Tito
que os visitasse, acompanhado de outro irmão. Por acaso Tito os explorou? Não
agimos nós no mesmo espírito e não seguimos os mesmos passos?” (12.18).1 Se

'Os movimentos de Tito têm influência na questão relativa a como a segunda carta aos
coríntios foi escrita. Se a viagem de Tito e do “outro irmão” (12.18) for a mesma viagem pro­
metida em 8.16-24, uma passagem que antecipa a missão de Tito junto com o “irmão que é
elogiado por todas as igrejas por seu serviço ao evangelho” (8.18) e “nosso irmão, o qual muitas
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

os mensageiros enviados por Paulo não eram exploradores, por que os coríntios
achariam que o próprio apóstolo era?
É provável que a única coisa que poderia dissipar de vez toda a suspeita fosse
a devida carta de agradecimento da igreja de Jerusalém, carta que serviría de
recibo. Quando Paulo escreveu esses capítulos, o dinheiro ainda não havia sido
totalmente coletado, muito menos enviado, portanto, suas opções para defen­
der a si mesmo eram extremamente limitadas. A força de sua resposta está em
envergonhar os coríntios, fazendo-os reconhecer que a conduta, a abnegação,
a disciplina e a integridade de Paulo e seus auxiliares são tão patentes e óbvias,
em qualquer nível do procedimento deles, que as acusações são absurdas.
O fato de os coríntios terem chegado a um nível tão baixo é reflexo de sua
imaturidade, de seus pecados diante de Deus e da forma brutal como trataram o
apóstolo em tantos aspectos. As vezes, é claro, nossos líderes espirituais são traga­
dos pela desonestidade ou por práticas infames e, portanto, devem ser repreendidos
publicamente (íTm 5.20). Mas o que acontece com maior frequência é que a
vida e o ministério públicos os deixam expostos a acusações sem fundamento,
por isso os cristãos devem ser bem cautelosos até mesmo em ouvir acusações
contra seus líderes. O fato de os coríntios serem capazes de cogitar um disparate
tão flagrante a respeito do apóstolo Paulo é um indício de suas próprias atitudes
e suspeitas, de sua crença de que o dinheiro é importante e desejado por todos
os homens, de sua falta de amor e ingratidão para com Deus e Paulo.
Esses erros dos coríntios são a razão pela qual o apóstolo deve passar dessa
questão para uma elucidação mais detalhada de suas próprias motivações. Se os
coríntios acreditam de fato que Paulo tem em si características como corrupção
e falsidade, então não entenderam muito bem aquilo que o move. Assim, o
parágrafo seguinte, que esboça alguns dos motivos de Paulo, é parte essencial
da repreensão mais ampla.

vezes, e em muitas coisas, já nos provou seu zelo” (8.22), então, os capítulos 10—13 de 2Coríntios
devem ter sido escritos em uma época posterior a 2Coríntios 1—9, uma vez que, de acordo com
2Coríntios 12.18, a viagem já ocorrera, ao passo que em 2Coríntios 8.16-24 ela ainda era um fato
futuro. Por outro lado, a viagem mencionada por Paulo em 12.18 talvez se refira a uma viagem
anterior de Tito a Corinto, mencionada em 8.6. Nessa jornada, Tito “havia começado” a coleta
em favor dos cristãos empobrecidos de Jerusalém. Nesse caso, os capítulos 10—13 de 2Coríntios
não deveriam ter sido desconectados de forma tão definitiva de 2Coríntios 1—9, embora haja
quem use a mesma identificação para levantar a possibilidade de os capítulos 10—13 de 2Coríntios
serem identificados como a “carta severa” escrita atiles de 2Coríntios 1—9. Veja a discussão das
questões mais abrangentes no capítulo 1 deste livro.
FRANCA REPREENSÃO 167

B. As motivações do apóstolo (12.19-21)


1. Fortalecer os coríntios (12.19). Paulo está dolorosamente consciente de que, a
julgar pelo comportamento passado, os coríntios manifestam com clareza uma
notável capacidade de entender mal e distorcer o sentido de tudo o que ele
escreve e, de maneira especial, de deturpar suas motivações. Basta que recebam
um pequeno encorajamento maldoso para que descartem essas admoestações
como apenas mais um caso do estilo contundente de Paulo escrever, ou uma
estratégia desesperada para cair de novo nas boas graças da igreja de Corinto
recorrendo a uma autodefesa patética.
A primeira frase do versículo 19 pode ser uma pergunta (como vemos em
várias versões bíblicas) ou uma afirmação categórica: “Vocês pensam que durante
todo este tempo estamos nos defendendo perante vocês”. De um modo ou de
outro, Paulo nega a validade das reservas mentais dos coríntios e detalha as ver­
dadeiras motivações dele: “Falamos diante de Deus como alguém que está em
Cristo; e tudo o que fazemos, amados irmãos, é para fortalecê-los” (2Co 12.19b).
Paulo tem tanta consciência de que todas as coisas que diz e faz “estão desco­
bertas e expostas aos olhos daquele a quem deveremos prestar contas” (Hb 4.13)
que não lhe seria possível envolver-se em uma reles disputa pelo poder. Ele tem
falado diante de Deus, a quem, no final, prestará contas; tem falado como cris­
tão, como quem está em Cristo. Esse tema domina partes expressivas da carta
aos coríntios, provavelmente porque os coríntios são tão irresponsáveis em sua
linguagem, em sua vangloria, em seus relacionamentos pessoais, que esperam
que todos os outros tomem parte da mesma leviandade. Costuma-se dizer que
um dos maiores castigos do mentiroso não é o fato de ninguém acreditar nele,
mas o de ele mesmo não acreditar em ninguém. De modo semelhante, o maior
risco que pessoas com motivações egoístas e indisciplinadas no falar enfrentam
não é o de serem rejeitadas pelos outros, mas o de rejeitarem, de modo tolo,
cristãos sábios, disciplinados e altruístas. Paulo não se encaixa no molde deles e
precisa lhes explicar isso exaustivamente: “Ao contrário de muitos, não negocia­
mos a palavra de Deus visando lucro; antes, em Cristo falamos diante de Deus
com sinceridade, como homens enviados por Deus” (2Co 2.17); ou, de novo:
“Assim que, conhecendo o temor que se deve ao Senhor, procuramos persuadir
os homens a crer. O que somos está manifesto diante de Deus, e esperamos que
esteja manifesto também diante da consciência de vocês” (5.11); ou, uma vez
mais: “Falamos diante de Deus como alguém que está em Cristo” (2Co 12.19).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Em certo sentido, é claro, Paulo está na verdade defendendo a si mesmo. É


isso que demonstra o próprio fato de ter sido forçado pelos coríntios a se engajar
em louca vangloria. Mas, nesse versículo, ao negar que esteja se defendendo,
Paulo quer dizer apenas que não está se defendendo no mesmo sentido do que os
coríntios entendem por defesa pessoal. A vista da igreja de Corinto, essa defesa
pessoal serve apenas a si mesma e pretende promover o interesse próprio e a
autoridade pessoal. Se Paulo estivesse se defendendo nesse sentido, isso signifi­
caria que os coríntios eram os juizes que deveríam avaliar que tipo de homem
ele era. Mas seja o que for que esteja fazendo, Paulo não está (como ele mesmo
diz aos coríntios) se defendendo perante eles. O apóstolo está tão preocupado
em se manter aprovado por Deus (lCo 4.3-5) que pouco se importa em cair
no julgamento de cortes inferiores.
Sendo essa a perspectiva que controla a mentalidade de Paulo, fica impossível
desafiar com alguma razão a descrição que ele faz de suas motivações: “... tudo
o que fazemos, amados irmãos, é para fortalecê-los” (2Co 12.19). Os coríntios
suspeitam que Paulo escreva para se justificar diante deles, enquanto a verdade
é que ele escreve para fortalecê-los, para edificá-los. Se o apóstolo conseguisse
alcançar esse objetivo sem conquistar a fidelidade deles para si mesmo, isso não
lhe causaria o menor aborrecimento. Embora a própria natureza do embate
impossibilite essa alternativa, as motivações de Paulo permanecem conforta­
velmente distantes do interesse pessoal.
Essa é a marca da verdadeira liderança cristã. Infelizmente muitos líderes,
de forma consciente ou inconsciente, amarram a própria carreira e reputação ao
evangelho que proclamam e às pessoas a quem servem. Aos poucos, de forma
quase imperceptível para todos, exceto por aqueles com mais discernimento,
a defesa da verdade acaba se transformando na defesa de si mesmos, e o que
é melhor para os interesses da congregação passa a se identificar com o que é
melhor para os interesses de seus líderes. O triunfalismo pessoal ataca uma
vez mais, às vezes com intensidade feroz. Pode ser encontrado no acadêmico
evangélico que atribui autoridade bíblica a todas as suas opiniões, no pastor
cuja própria palavra está acima de contestação, no líder visivelmente mais inte­
ressado na autopromoção e na estima das multidões do que no benefício e no
progresso dos cristãos que supostamente serve. O triunfalismo vem à tona nas
manobras políticas, nos ataques de raiva, em uma escala de valores seculares
(mas jamais admitidos), em pastores presunçosos e interessados apenas em si
mesmos e em ovelhas famintas.
FRANCA REPREENSÃO

Temos muito que aprender com Paulo. Quando no coração (e não mera­
mente em palavras cheias de piedade) o nosso alvo diante de Deus for o de
fortalecer os outros crentes, não o de defender a nós mesmos, não só seremos
bem-sucedidos em revitalizar a igreja por meio de nosso ministério sacrificial e
exemplo, mas também aplicaremos um poderoso golpe no coração demoníaco
do triunfalismo, o qual não é senão outro disfarce para o ego. E se, assim
como Paulo, às vezes nos defrontarmos com crentes totalmente equivocados
quanto às nossas motivações, então, devemos pelo menos estar confiantes de
que, assim como o apóstolo, temos falado diante de Deus como quem está
em Cristo e que os ataques revelam mais sobre quem nos ataca do que sobre
qualquer outra coisa. Que o Senhor possa levantar muitos líderes cristãos cuja
paixão seja edificar o corpo de Cristo.

2. Promover a sinceridade e a justiça (12.20a). “Pois temo que, ao visitá-los,


não os encontre como eu esperava, e que vocês não me encontrem como espe­
ravam” (12.20a). Não há como saber com absoluta certeza o que os coríntios
poderíam querer de uma visita de Paulo, mas é de supor que não queriam vê-lo
usar de disciplina (cf. ICo 4.21), e gostariam que ele não contrariasse suas pers­
pectivas pagãs. Em contrapartida, é bem provável que preferissem vê-lo chegar
com a arrogância esnobe e o estilo egoísta dos falsos apóstolos. Seja como for,
Paulo não adota nenhuma dessas posturas: ele não é fraco, nem triunfalista.
De sua parte, Paulo não deseja chegar e encontrar os coríntios entregando-se
aos pecados do espírito nem aos pecados da carne que ele enumera. A primeira
lista tem a ver mais diretamente com o temor de Paulo de que os coríntios não
fossem como ele espera: “Temo que haja entre vocês brigas, invejas, ataques
de ira, divisões, calúnias, intrigas, arrogância e desordem” (12.20b). Esses eram
sem dúvida pecados endêmicos em Corinto, uma vez que eram parte essencial
do espírito faccioso que lhes dominava o comportamento (cf. ICo 1.11,12,31;
3.3; 4.6; 8.1; 11.18; 14.33a); mas são também os tipos de pecado que predomi­
nariam de forma mais específica, uma vez que os apóstolos rivais tivessem se
apossado do ministério ali.
Uma de suas razões para escrever é, portanto, revelar o tipo de expectativas
que um lado tinha do outro e estabelecer para essas expectativas critérios que
estivessem de acordo com a justiça. A demonstração específica de justiça que
Paulo deseja ver nessa congregação é o esforço sério para preservar a unidade
do espírito pelo vínculo da paz (cf. Ef 4.1-3).
170 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Mas Paulo tem um terceiro motivo para escrever:

3. Identificar-se com os seus convertidos desobedientes (12.21). E notável que,


antes de descrever alguns pecados da carne, que ele sinceramente deseja que
não estejam presentes na congregação quando ele chegar, Paulo reflete outra
motivação ou talvez uma outra face da motivação predominante de fortalecer
os crentes a quem ele serve: “Receio que, quando visitá-los outra vez, o meu
Deus me humilhe diante de vocês e eu lamente pelos muitos que pecaram
anteriormente e não se arrependeram da impureza, da imoralidade sexual e
da libertinagem que cometeram” (2Co 12.21). “Não há nada que mais deixe
prostrado um mestre cristão do que a apostasia daqueles a quem ele vê como
fruto do seu labor e sua coroa de glória” (Beet).
Esse versículo enfoca dois temas principais. Primeiro, contempla a possi­
bilidade de que, na chegada de Paulo, os coríntios estarão atolados no pecado
sexual. À primeira vista, isso causa surpresa, pois o pecado sexual não parece
ter um papel de destaque em parte nenhuma de 2Coríntios.
Grande parte da questão se resolve ao nos lembrarmos do quanto era proe­
minente a discussão de Paulo a respeito dos pecados sexuais quando ele escreveu
sua primeira carta aos coríntios. Ele não só teve de lidar com o caso vergonhoso
do membro que se deitou com a própria madrasta (lCo 5.1-10) e com as opi­
niões polarizadas acerca de sexo, celibato, casamento e divórcio (cap. 7). Ele
também teve de advertir os crentes coríntios a “[fugir] da imoralidade sexual”
(6.18), esclarecendo-lhes que a libertação dos rigores da lei não sancionava a
licenciosidade (v. 12-20). Os cristãos são um povo comprado, foram adquiridos
pelo preço terrível da morte do Filho de Deus e, portanto, a conduta deles deve
honrá-lo. A advertência era particularmente premente em Corinto, onde o nível
da moral andava tão baixo que a expressão “menina coríntia” veio a ser sinônimo
de prostituta em todo mundo Mediterrâneo; e onde os crentes professos tinham
ainda noções tão nebulosas do cristianismo que às vezes tentavam domesticar a
teologia para convertê-la em escrava de sua concupiscência.
Paulo lembra dos antecedentes dos coríntios e teme agora que, em sua pró­
xima viagem a Corinto, tenha uma vez mais de lamentar por aqueles que haviam
pecado antes (uma referência às situações confrontadas por ele em 1 Coríntios)
e não se arrependeram de seu pecado sexual. Paulo não diz que será assim; na
verdade, se ele tivesse certeza de que tamanha promiscuidade estivesse viva e ativa
em Corinto, é inconcebível que ele não a tivesse confrontado energicamente em
FRANCA REPREENSÃO 171

sua carta. Mas ele teme que seja assim, pois reconhece que os tipos de pecados
doutrinários, comportamentais e espirituais reinantes em Corinto também são
sempre um terreno fértil para os pecados sexuais — e de modo especial numa
cidade como Corinto, onde a imoralidade sexual era tão comum.
Resumindo, implicitamente Paulo admite um princípio profundo: o estado
espiritual e doutrinário de uma igreja mais cedo ou mais tarde se refletirá
também na arena moral. Isso não quer dizer que, com certeza absoluta, todo e
qualquer indivíduo cristão imaturo, dado ao ciúme, ao partidarismo, a explosões
de ira e a outros pecados listados incorrerá em fornicação. A conexão entre tais
coisas não é assim tão próxima. Não há entre elas nenhuma relação lógica no
nível individual. Mas quando uma igreja ou denominação caracteriza-se por
tais pecados, não demora para que logo também se caracterize pelas formas
mais extremas de imoralidade.
As razões são bastante óbvias. Esses crentes professos, em geral, não só
perdem o controle dos pensamentos e da motivação decorrentes da maturidade
espiritual, deixando o pecado muito mais à vontade, mas também a igreja
repleta de problemas como esses dos coríntios não é capaz de exercer uma
disciplina sábia, firme e amorosa; e uma igreja sem disciplina mais cedo ou
mais tarde multiplica seus pecados. Pode ser que não haja um vínculo lógico
em nível individual entre, por exemplo, arrogância e sectarismo de um lado, e
imoralidade sexual e libertinagem do outro, como se alguém que fosse culpado
dos primeiros se visse obrigado a cometer os segundos; mas, sem dúvida, existe
uma relação lógica no nível da comunidade, tanto no que concerne a médias
quanto à condição geral da moral.
Segue-se que o baixo nível da moralidade sexual em muitas igrejas moder­
nas talvez seja um indicador de problemas bem mais profundos, do tipo que
Paulo está tentando tratar nessa carta. Pelo fato de entender que essa conexão
existe, ele teme que o arrependimento que parecia aliviar a promiscuidade de
antes seja falso e encontrará o triunfalismo flertando com a licenciosidade.
Esse versículo enfoca um segundo tema principal. Paulo expressa seu temor
numa frase que, à primeira vista, parece bastante estranha: ele teme que ao voltar
de novo a Corinto seu Deus o humilhe diante dos coríntios. Essa humilhação
surge claramente da necessidade de lidar com pecados graves numa igreja que
a essa altura de sua peregrinação já deveria ter alcançado maior maturidade. No
entanto, Paulo diz temer que Deus o humilhe e isso à vista dos coríntios. Por
que razão ele expressaria seu temor justamente dessa forma?
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÀ

A frase elaborada com tanto cuidado reflete o profundo senso de respon­


sabilidade de Paulo para com as igrejas que ele fundou e para com os cristãos
a quem nutriu. Esse senso está aliado à crença inabalável de que, mesmo nos
fracassos do apóstolo, os propósitos soberanos de Deus para o bem estão sendo
cumpridos. Por um lado, num certo sentido, Paulo vê a imaturidade e o pecado
dos coríntios como sua própria falha. Não há dúvida de que ele os considera
responsáveis pelos pecados que cometem, é claro; pois, do contrário, quase não
haveria sentido em escrever. Ainda assim, o apóstolo não lava as mãos do caso
deles, dizendo: “Eu fiz o que pude. Se vocês vão mal, assim seja”. Ele também
não vê com distanciada serenidade de espírito a possibilidade de precisar impor
disciplina apostólica à igreja de Corinto. Antes, embora esteja preparado para
exercê-la, ele trata a necessidade de aplicá-la como uma humilhação pessoal.
Paulo segue a própria instrução: a disciplina pode ser necessária, mas deve sempre
vir acompanhada de lágrimas (cf. ICo 5.2). Ele não possuía a severidade arro­
gante de líderes egocêntricos que, com olhos secos e dedo em riste, são capazes
de disciplinar os membros envolvidos pelo pecado. Paulo tem plena consciência
do entrelaçamento de responsabilidades no corpo de Cristo e sequer consegue
distanciar-se de vez do pecado deles. Ele próprio sente-se humilhado diante
disso, como um pai se sentiría com a rebeldia de um filho.
Por outro lado, Paulo entende que mesmo em situações tão lastimáveis
e difíceis os laços da soberania de Deus não são rompidos. De certa maneira,
portanto, é correto afirmar que, se seus temores vierem a se concretizar, será o
próprio Deus que estará humilhando o apóstolo, exatamente como, de alguma
maneira, foi o próprio Deus que lhe enviou o espinho na carne (veja a discus­
são sobre 2Co 12.7). A maneira de Paulo ver a situação não exime os coríntios
de responsabilidade, tanto quanto não tira de Satanás a culpa de enviar seu
mensageiro, mas capacita o apóstolo a seguir em frente com plena fé em Deus,
o qual, em todas as coisas, trabalha para o bem de todos quantos o amam.
Talvez, raciocina Paulo, assim como o espinho lhe fora enviado para livrá-lo
da arrogância, sua humilhação em Corinto, caso ocorresse, faria prosperar sua
maturidade e testemunho, uma vez que ele leva sempre no corpo o morrer de
Jesus (4.10), e anuncia, em sua vida bem como em seus sermões, a mensagem
da cruz (lCo 1.18). Além disso, como comenta Barret com acerto: “O fato de
Paulo temer a humilhação não é jamais inconsistente com o reconhecimento
de haver nela a mão de Deus; Jesus temeu a morte (Mc 14.33), e Paulo orou
para que o mensageiro enviado por Satanás fosse removido (2Co 12.8)”.
FRANCA REPREENSÃO

Os crentes de Corinto devem entender, portanto, que uma das motivações


de Paulo é o seu forte desejo de se identificar com seus volúveis convertidos, ao
mesmo tempo em que cumpre também sua responsabilidade diante de Deus.
Essa não é a menor de suas razões para lhes escrever assim, pois, caso o esforço
desse frutos, ele não seria humilhado diante de seus convertidos por causa da
conduta vergonhosa deles.
A repreensão acabou. Alguns dos piores erros dos coríntios foram detalha­
dos e contrastados com as motivações do apóstolo. Resta a Paulo dar a palavra
final de advertência e dizer exatamente pelo que está orando para Deus fazer
nessa situação dolorosa.
Advertência e oração
Tendo a maturidade como objetivo

Esta será minha terceira visita a vocês. “Toda questão precisa ser confir­
mada pelo depoimento de duas ou três testemunhas.”Já os adverti quando
estive com vocês pela segunda vez. Agora repito, estando ausente:
quando voltar, não pouparei aqueles que pecaram antes nem nenhum
dos outros, pois vocês estão exigindo uma prova de que Cristo fala por
meu intermédio. Ele não é fraco ao tratar com vocês, mas poderoso
entre vocês. Pois, na verdade, foi crucificado em fraqueza, mas vive pelo
poder de Deus. Da mesma forma, somos fracos nele, mas, pelo poder
de Deus, viveremos com ele para servir a vocês.
Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos.
Não percebem que Cristo Jesus está em vocês — a menos, é claro, que
tenham sido reprovados? E espero que descubram que nós não fomos
reprovados. Agora, oramos a Deus para que vocês não pratiquem mal
algum. Não para que os outros vejam que temos sido aprovados no teste,
mas para que vocês façam o que é certo, ainda que pareça que tenhamos
falhado. Pois nada podemos fazer contra a verdade, mas somente em
favor da verdade. Ficamos alegres sempre que somos fracos, e vocês são
fortes; nossa oração é que vocês sejam aperfeiçoados. Por isso escrevo
estas coisas em minha ausência, para que, quando chegar, não precise ser
rigoroso no uso da autoridade — a qual o Senhor me deu para edificá-los,
e não para destruí-los.
Sem mais, irmãos, digo adeus. Procurem aperfeiçoar-se, ouçam
ao meu apelo, tenham um só pensamento, vivam em paz. E o Deus de
amor e paz estará com vocês.
Saúdem uns aos outros com beijo santo. Todos os santos lhes
enviam saudações.
A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do
Espírito Santo sejam com todos vocês (2Co 13.1-14).

A. Advertência (13.1-6)
1. A iminência da disciplina na terceira visita (13.1-3a). Paulo visitou Corinto na
primeira vez com a intenção de plantar ali uma igreja (At 18.1-18; ICo 4.15; 9.1).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Sua segunda visita foi tão dolorosa, tanto para ele quanto para seus converti­
dos, que resolveu não os visitar novamente por um tempo (2Co 1.23; 2.1). Ele
agora considera a possibilidade de uma terceira visita: “Esta será minha terceira
visita a vocês”, ele escreve, retomando o ponto apresentado primeiramente em
2Coríntios 12.14.
A frase seguinte de Paulo é uma citação de Deuteronômio 19.15: "... Toda
questão precisa ser confirmada pelo depoimento de duas ou três testemunhas”. No
contexto original do Pentateuco, essa era uma norma jurídica para desencorajar
julgamentos arbitrários baseados no testemunho de uma testemunha parcial,
talvez motivada por vingança pessoal. Aqui, o apelo a esse versículo dá um tom
jurídico à terceira visita de Paulo, mas não fica totalmente claro por que Paulo o
cita. E óbvio que, de alguma maneira, ele relaciona as duas ou três testemunhas
com a advertência que deu aos coríntios quando esteve com eles pela segunda
vez, bem como com a perspectiva da terceira visita, que fica evidente; a natureza
dessa relação, porém, é mais obscura. Afinal, as repetidas viagens e advertências
de um único homem são coisas bem diferentes de várias testemunhas.
Por essa razão, alguns têm considerado que a citação de Deuteronômio
queira dizer somente que, quando Paulo vier, será rigorosamente justo: ele
não acatará acusações infundadas. Essa interpretação ajusta-se ao contexto de
Deuteronômio, mas não é uma forma muito óbvia de considerar tais palavras
no contexto de 2Coríntios 13, especialmente porque perde a ligação com a
segunda e a terceira visitas.
Em linhas gerais, portanto, parece melhor relacionar as duas ou três teste­
munhas à segunda e à terceira visitas, mas lembrar que Paulo não está citando
um texto-prova ou uma autorização (não existe nenhum “como está escrito”).
Antes, Paulo recorreu à fraseologia bíblica para, de fato, dizer: “Eu adverti vocês
da forma devida. Em minha próxima viagem, caso não haja melhorias, tomarei
medidas decisivas”.
Seja como for, é isso que ele prossegue dizendo: “... quando voltar, não pou­
parei aqueles que pecaram antes nem nenhum dos outros, visto que vocês estão
exigindo uma prova de que Cristo fala por meu intermédio” (2Co 13.2b-3a).
Nesse contexto, as palavras “não pouparei” sugerem que Paulo exercerá rigo­
rosa autoridade apostólica se as condições que teme estiverem de fato presentes.
Ele espera não ter de ser severo ao recorrer à sua autoridade (v. 10), mas, em
outra passagem, ele mostra que está pronto, caso seja necessário, a usar de
disciplina (lCo 4.21).
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO 77

Alguns estudiosos minimizam a amplitude da autoridade de Paulo, o alcance


de sua disciplina. Sustentam que o apóstolo não tem absolutamente nenhuma
arma de coerção, nada além da verdade nua e crua. O máximo que Paulo poderia
fazer seria ir até os coríntios e lhes falar a verdade com veemência e coragem.
Se, então, eles decidissem rejeitá-lo, estariam rejeitando o evangelho e, nesse
caso, Paulo nada mais poderia fazer.
Essa interpretação é muito fraca. Já em í Coríntios 5 Paulo instrui a igreja de
Corinto para que entregue certo pecador imoral a Satanás “para que o corpo seja
destruído [não a ‘natureza pecaminosa’, possibilidade que consta no comentário
da NIV!]” — quer dizer, Satanás lhe infligiría alguma doença que o levaria à
morte, a menos que sobreviesse o arrependimento por parte do pecador, junta­
mente com a restauração graciosa proporcionada pelo Deus que perdoa. Não se
trata de mera excomunhão (embora a excomunhão seja, normalmente, a sanção
mais severa que a igreja possa impor); e embora o exemplo de 1 Coríntios 5 seja
uma decisão da comunidade incentivada por Paulo, o apóstolo não está restrito
à aprovação da comunidade. Afinal, em 1 Timóteo 1.20, o apóstolo Paulo, sem
o apoio nem a ratificação de nenhum grupo de igrejas, aplica a Himeneu e
Alexandre a mesma punição.
Precisamos nos lembrar de que Deus detesta o pecado, e o detesta em
dobro quando prolifera no meio do seu próprio povo. As vezes pode ser que
o juízo demore muito a chegar, mas isso nem sempre é sinal de misericórdia.
Pode ser sinal de ira, já que a tolerância, de forma um tanto lamentável, pode
dar oportunidade de se acumular pecados até que seja derramada a dose plena
de ira santa. A severidade de algumas formas de disciplina na igreja do Novo
Testamento corresponde a um sinal de misericórdia, pois o castigo retido por
muito tempo perde todo o poder de dissuadir o pecador. Ademais, “as igrejas
apostólicas não eram comunidades democráticas independentes e investidas de
autoridade suprema sobre seus próprios membros. Paulo poderia expulsar delas
quem ele quisesse” (Hodge).
O alvo principal da disciplina de Paulo, caso encontre a igreja no estado
chocante que ele teme, são as pessoas “que pecaram antes [ou] qualquer um dos
outros”. Primeiro ele faz referência àqueles que poderiam ainda estar enredados
em torpe pecado sexual e então, secundariamente, àqueles que, na igreja, estão
causando dano por outros meios que não os pecados sexuais (cf. 2Co 12.20).
Paulo é particularmente incisivo nessa ameaça, pois (como ele diz aos coríntios)
“vocês estão exigindo uma prova de que Cristo fala por meu intermédio” (2Co 13.3a).
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Eles tinham uma mentalidade tão subcristã que, para eles, amabilidade e man­
sidão semelhantes à de Cristo pouco significavam. Preferiam manifestações de
poder, por mais exploradoras e arbitrárias que fossem (11.20). Por isso, enten­
deram equivocadamente a amabilidade de Paulo, tomando-a por fraqueza, e
deram preferência à agressividade triunfalista dos falsos apóstolos. Paulo responde
que, se é poder o que eles querem ver como critério absoluto da autencidade
apostólica, pode ser que recebam mais do que pediram. O apóstolo talvez seja
forçado a mostrar o poder do Cristo ressurreto, transmitido por seu intermédio
em tons tempestuosos de punição, talvez numa outra versão do juízo imposto
a Ananias e Safira (At 5.1-11).

2. Apoio à autoridade de Paulo no poder do Cristo ressurreto (13.3b,4).


Paulo agora esclarece esse último ponto. Se é Cristo que está falando por meio
do apóstolo, seria melhor os coríntios entenderem que, a despeito do que pensam
de Paulo, o próprio Cristo “não é fraco ao tratar com vocês, mas poderoso entre
vocês”. Resumindo, Paulo está lembrando a seus convertidos que, no final das
contas, a rixa deles é com o Cristo glorificado, o Senhor ressurreto, exaltado à
destra do Pai. Aqueles que causam dano à igreja ficam sob a ameaça da retri­
buição divina (lCo 3.17). Seja qual for a fraqueza que os coríntios atribuam a
Paulo, eles precisam reconhecer que, por trás dele, está o Cristo onipotente, o
qual jamais permitirá que os pecados da igreja de Corinto corram desenfreados
para sempre.
Mas assim que disse isso, Paulo reconhece que os coríntios talvez o inter­
pretem de forma errada. Pode ser que digam a si mesmos: “Estão vendo? Cristo
em si é uma figura de poder! Então, por que Paulo faz tanta questão da man­
sidão e da amabilidade de Cristo, quando tudo o que o próprio Paulo deseja
é chamar a atenção para o poder de Cristo quando lhe é conveniente?”. Paulo,
portanto, deve demonstrar que o Senhor Jesus Cristo é o exemplo supremo
tanto de mansidão quanto de força, e que essas duas virtudes guardam entre si
uma relação claramente definida.
“Pois, na verdade”, escreve Paulo, “foi crucificado em (lit., ‘pela’) fraqueza,
mas vive pelo poder de Deus”. Cristo nem sempre foi caracterizado por mani­
festações de poder. Ele viveu e ministrou em espírito de mansidão e de ama­
bilidade e foi crucificado em fraqueza. Essa forma peculiar de compor a frase
significa algo como “por causa da fraqueza”. Mas, com isso, Paulo não quer
dizer que Cristo só foi crucificado porque era fraco, ou seja, porque não tinha
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO 179

poder para resistir a seus inimigos. Sem dúvida, Paulo estava ciente que Jesus
afirmou, mesmo no Getsêmani, que dispunha de legiões de anjos (Mt 26.53;
cf. Jo 10.18). Cristo jamais foi tão fraco a ponto de ser forçado a morrer como
mártir. O que Paulo pretende dizer é que Cristo entregou a própria vida “por
meio de” um contexto de fraqueza; isto é, porque a fraqueza foi o que ele
escolheu em sua determinação de fazer a vontade do Pai. Ele foi crucificado
pela fraqueza no sentido de que todos os benefícios que recebemos de sua
graça jorram do contexto de sua abnegação, da negação de si mesmo, o justo
morrendo pelo injusto para nos levar até Deus.
Cristo foi crucificado em fraqueza. Não obstante, Paulo insiste: “[ele] vive
pelo poder de Deus”. Em outras palavras, “a cruz não esgota a relação de Cristo
com o pecado; ele passou da cruz para o trono e, quando voltar, será como
Juiz” (Denney). O próprio Paulo não apresenta tantos detalhes, mas seu argu­
mento é semelhante. A fraqueza que Jesus adotou para si mesmo, demonstrada
de forma suprema na crucificação, não é a última palavra: Deus o ressuscitou
dos mortos. Eis aqui uma manifestação arrepiante de poder, tão característica
de Jesus quanto a fraqueza exposta na cruz. A cruz e a ressurreição caminham
juntas; Jesus exibe tanto fraqueza quanto poder.
Mas nessa manifestação de virtudes duais, Cristo levanta-se como modelo
para os cristãos. E se é modelo para os cristãos, então, para os apóstolos cristãos,
ele é o modelo supremo. Essa é a conclusão a que Paulo chega, pois havendo
descrito a demonstração de fraqueza e de poder em Cristo, ele afirma: “Da
mesma forma, somos fracos nele, mas pelo poder de Deus viveremos com ele
para servir a vocês” (2Co 13.4b). Paulo quer dizer que sua própria experiência
espelhará a de Cristo (cf. 4.10). Como todos os demais crentes, o apóstolo Paulo
vive deste lado da morte e, portanto, um dos principais sinais da existência cristã
será “o mesmo tipo de vulnerabilidade que o próprio Cristo optou por ado­
tar” (Barrett). A vida de poder é principalmente a antecipação do futuro, pois,
embora Cristo tenha sido ressuscitado dos mortos como a primícia dos crentes,
os crentes só desfrutarão do mesmo poder em nível semelhante quando Cristo
voltar (lCo 5.20-28). Algo desse poder da ressurreição opera agora em nós,
crentes, para nos santificar (e.g., Ef 1.19,20; 3,16,17); e, ao apóstolo Paulo, algo
desse mesmo poder da ressurreição foi concedido para capacitá-lo a lidar com
a situação de Corinto. Na fraqueza do apóstolo, o poder de Deus se mostrará
de forma perfeita “para servir a vocês”, para benefício dos coríntios (mesmo que
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

no momento a disciplina não seja normalmente vista como beneficio pelos que
passam por ela, Hb 12.5-13).
Os argumentos principais de Paulo são claros. Em sua provável terceira via­
gem, ele ameaça aplicar disciplina rigorosa, caso seja necessária (2Co 13.1-3a);
e a demonstração de poder que tal disciplina pressupõe será fundamentada em
nada menos do que o poder do Cristo ressurreto. Algo que, de forma inevitável,
leva a mais uma advertência: uma vez que o juízo é tão iminente, os coríntios
devem examinar a si mesmos para evitar a possível destruição.

3. Os coríntios provam a si mesmos (13.5). Os crentes de Corinto, confiantes


na própria sabedoria, vinham com a maior satisfação testando Paulo e outros
pretendentes ao apostolado, mas deveriam estar testando a si mesmos. “Exami­
nem-se para ver se vocês estão na fé”, Paulo escreve, “provem-se a si mesmos”
(2Co 13.5a). A expressão “si mesmos” tem função empática: “si mesmos”, em
oposição a todas as outras pessoas. Em carta anterior, Paulo lhes diz: “... man­
tenham-se firmes na fé...” (lCo 16.13). Ele agora diz a eles para examinarem
a si mesmos para ver se estão “na fé”. Em ambos os casos, “na fé” significa “na
fé cristã”, ou seja, na religião cristã, a qual Paulo designou como “fé” por ser a
religião revelada por Deus que, da perspectiva humana, é caracterizada pela fé.
Ora, se os coríntios forem cristãos de verdade reconhecerão que Cristo Jesus
está neles — a não ser, é claro, que sejam reprovados no teste. Se Cristo Jesus esti­
ver neles, então, assim como Paulo, eles deverão ansiar por conhecer algo da
mansidão e amabilidade de Cristo, algo de sua fraqueza. Assim como Paulo,
buscarão não só o poder da sua ressurreição, mas também a “participação em
seus sofrimentos, tornando-[se] como ele em sua morte” (Fp 3.10). É isso o
que eles devem inevitavelmente passar a reconhecer — a menos, é óbvio, que
não passem no teste.
Paulo foi sábio ao colocar os coríntios num beco sem saída. Como em sua
metáfora eles aplicam o teste em si mesmos, é pouco provável que reprovem a
si mesmos. No entanto, a lógica de toda apresentação de Paulo exige que se eles
“passarem”, devem buscar o Cristo crucificado de modo tão diligente quanto
buscam o Cristo exaltado. A única alternativa é que sejam reprovados no teste.
O fato de Paulo encorajar os crentes a se aplicarem à introspecção do auto-
exame tem suscitado muitas questões na mente de alguns leitores. Na Reforma
Magisterial pôs-se tamanha ênfase no fato de a salvação ser pela graça, mediante
a fé somente, que muitos reformadores equipararam fé salvadora com certeza
de salvação. Se falta ao crente a segurança da salvação, argumentavam, é porque
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO

lhe falta a verdadeira fé salvadora. O próprio Calvino deduz desse texto uma falsa
inferência negativa, concluindo que Paulo “declara que aqueles que duvidam
de terem a Cristo e de serem membros do seu corpo são reprovados” - o que,
obviamente, não decorre desse texto.
A verdade é que a dúvida de alguém sobre sua condição diante do Senhor
soberano pode vir de muitas causas diferentes. Se a dúvida brotar da incerteza
quanto à suficiência da obra de Cristo na cruz, então o crente em dúvida deverá
ser conduzido de volta às muitas passagens que atestam a perfeição de tal obra.
Mas se a dúvida tiver origem em pecado oculto, o curso apropriado para aca­
bar com a dúvida é o arrependimento do pecado, a confissão, e, se possível, a
restituição. De modo semelhante, se o crente se sentir muito confiante de que
é aceito no amado e que tem o nome escrito no livro da vida do Cordeiro,
não por sentir-se moralmente superior, mas por unir-se de forma consciente
ao povo do Senhor, cantando:

Nada trago em minhas mãos


somente em tua cruz me agarro.

Nesse caso, então, o autoexame é supérfluo. Se, no entanto, esse suposto crente
se ensoberbece com um senso desenfreado da própria importância, um amor-
-próprio irrestrito, frouxidão moral ou grave desvio doutrinário, então o apóstolo
João (para não ir além) tem um conjunto de três testes a serem aplicados (ljoão):
compromisso com a doutrina, amor pelos irmãos e obediência moral a Cristo
Jesus. Se alguém não for aprovado em qualquer um desses testes, João declara que
essa pessoa não é cristã de forma alguma (e.g., ljo 2.1-9). Nesse ponto, vê-se que a
ênfase das reformas é vista como um tanto simplista, pois nas situações cabíveis,
a atenção das Escrituras concentra-se em fundamentos subjetivos de certeza
(ou seja, em vidas transformadas), da mesma maneira que em outros contextos
elas concentram a atenção no fundamento objetivo (a obra de Cristo na cruz).
Em síntese, quando alguém está com o espírito quebrantado e contrito
diante do Deus de toda justiça, a graça vem, declara a absolvição e concede
confiança. Mas quando a pessoa é orgulhosa e arrogante, produto de um triun­
falismo muito bem cultivado, a graça se distancia dela e o rigoroso apóstolo
adverte: “Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos”.
Há hoje milhões de crentes professos na América do Norte (sem falar dos
outros lugares) os quais em algum momento firmaram um compromisso super­
ficial com o cristianismo, mas que, se pressionados, seriam forçados a admitir
182 UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

que não amam a santidade, não oram, não odeiam o pecado, não andam humil­
demente com Deus. Eles correm o mesmo perigo dos coríntios, e a advertência
de Paulo aplica-se a eles tanto quanto aos leitores coríntios.

4. A implicação da aprovação no teste (13.6). A primeira vista, o passo seguinte


de Paulo parece fora do contexto: ele deixa de comentar sobre a aprovação ou
a reprovação dos coríntios no teste e passa a falar de sua própria aprovação no
teste. Mas então, aquilo que Paulo está planejando torna-se claro de repente,
e entendemos que ele dá um passo brilhante quando escreve: “E espero que
descubram que nós não fomos reprovados”.
O argumento de Paulo é que, se os coríntios, como resultado do exame
de si mesmos, concluírem que são crentes de verdade, haverá então uma impli­
cação inevitável: o homem que os conduziu em seus primeiros passos na fé e
nas primeiras experiências com a graça não pode ser tão inútil como sugerem
alguns deles. Deve haver ao menos algum mérito em suas reivindicações de
apostolicidade; quer dizer, Paulo é aprovado no teste que eles levantaram.
A ironia é tremenda. Se os coríntios se declararem reprovados no teste,
então, sem dúvida, Paulo será humilhado (cf. 2Co 12.21); mas nesse caso, eles
não estão em condição de apontar o dedo para ninguém. Se, ao contrário, eles
acharem que passaram no teste, então, visto ter sido Paulo quem levou a cabo
toda a evangelização inicial deles, ele seria a última pessoa que os coríntios
estariam em condição de condenar.
Certamente, esse não é um princípio de aplicação universal. Nem todo
evangelista, por exemplo, está reivindicando para si poderes apostólicos e, em
alguns casos, o próprio evangelista pode ter apostatado no intervalo entre a
evangelização que fez de um grupo em particular e a aplicação do teste. Também
não é exatamente o mesmo que dizer que o sucesso valida todas as credenciais.
O argumento funciona bem nesse contexto devido à natureza peculiar das
acusações feitas contra Paulo pela igreja de Corinto.
A advertência chega ao fim. Paulo agora passa à oração que sempre faz a
Deus em favor dos coríntios.

B. Oração (13.7-9)
1. Objeto da oração (13.7a). “Agora, oramos a Deus para que vocês não pra­
tiquem mal algum”. Paulo poderia estar investindo tempo orando por sua
reivindicação apostólica pessoal ou ao menos para que os coríntios recobrassem
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO 183

o bom senso, mas sua noção de prioridades não falha. Ele ora para que nessa
presente confrontação a igreja de Corinto não cometa nenhum erro, ou seja,
para que os crentes sejam preservados e resguardados de pecar. “Isto é o que de
mais desejável podemos pedir a Deus, tanto por nós mesmos como por nossos
amigos: que nós e eles não cometamos nenhum mal; e o mais necessário de
tudo é pedirmos sempre a Deus para sermos guardados pela graça, pois sem ela
não podemos guardar a nós mesmos. Estamos mais preocupados em orar para
não cometermos mal, do que para não sofrermos mal” (Henry).

2. As motivações da oração (13.7b). Paulo conhece os coríntios e tem plena


consciência de que eles são propensos a distorcer seu argumento para insinuar
que o apóstolo os está adulando, falando-lhes com lisonjas, procurando cair uma
vez mais em suas boas graças (cf. 3.1; 5.12; 12.19). Antecipando que, mesmo
nessa última fase do argumento, alguns crentes coríntios distorcessem sua refe­
rência à aprovação no teste a fim de insinuar que ele ainda está correndo atrás
de algum bocado insignificante de lucro pessoal, Paulo insiste não apenas que
sua oração principal nessas circunstâncias é para que os crentes de Corinto não
pratiquem mal algum, mas para que ele mesmo seja capaz de fazer essa oração
com absoluto desinteresse pessoal:"... Não para que os outros vejam que temos
sido aprovados no teste, mas para que vocês façam o que é certo, ainda que
pareça que tenhamos falhado”.
O argumento de Paulo é de uma humildade profunda. Sua oração é para
que os coríntios não pratiquem mal algum e, nesse contexto, o mal que se arris­
cam a praticar é continuar com seu triunfalismo e suas implicações malignas
(cf. 2Co 12.20-21), inclusive o fato de não tomarem a devida providência contra
os falsos apóstolos intrusos (cf. 10.1,2,6). Se os coríntios agirem corretamente,
não só estarão agradando a Deus, mas também evitando a manifestação da
severidade e do poder apostólicos (cf. 13.2,10). E claro que, nesse caso, Paulo
pode novamente lhes parecer fraco. Ele prometeu que viria em poder, pode­
ríam dizer eles, mas uma vez mais ele aparece com o que chama de mansidão
e amabilidade de Cristo.
Mas não tem importância. “Seria melhor os coríntios fazerem o que sabiam
ser bom e certo, mesmo que isso pusesse Paulo em posição de aparente erro, do
que fazerem algo errado” (Harris). E duvidoso que Paulo tivesse alguma grande
expectativa quanto ao resultado, mas seja qual fosse o preço pessoal, ele estava
disposto a pagá-lo se a conduta deles fosse correta diante de Deus e dos homens.
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

Eis aqui o coração de um apóstolo verdadeiro, um cristão tão impregnado


do discipulado radical e da firme autodisciplina que seu único cuidado é para
com o povo a quem ele serve, não para com sua própria reputação. Ele não
é nenhum mercenário, mas um verdadeiro presbítero abaixo do Presbítero,
disposto a ser considerado um fracassado, um pecador, até mesmo um falso, se
as pessoas a quem serve tão somente tiverem a fé restaurada. Paulo é a antítese
perfeita do líder triunfalista.

3. A segurança da oração (13.8). As próximas palavras de Paulo são tão afo-


rísticas que é difícil compreendê-las: “Pois nada podemos fazer contra a verdade,
mas somente em favor da verdade”. Uma forma de entender é que essa parece
ser uma declaração que reflete a decisão de Paulo: quer dizer, “nada podemos”
não designa uma impossibilidade ontológica, mas a convicção paulina quanto ao
que ele não poderia fazer sob circunstância nenhuma. Ele não pode fazer nada
que vá contra a verdade, mesmo que isso signifique ser mal interpretado por
seus convertidos; ele só pode agir em favor da verdade, ou seja, em conformi­
dade com o evangelho de Deus e tudo quanto isso acarreta na vida dos crentes.
Outra possibilidade é que Paulo talvez só pretendesse dizer que nada pode
fazer contra o evangelho, onde já existe a verdade. Ele não tem o poder de usar
sua autoridade apostólica para uma exibição de confrontação e disciplina pode­
rosas, manifestadas numa situação em que a verdade já tem livre curso na vida
das pessoas, pois isso seria minar a verdade. Ele pode usar seus poderes apostólicos
de disciplina apenas em prol da verdade, quer dizer, onde a pureza do evangelho
estiver faltando e precisar ser restaurada. Essa última interpretação se encaixa de
forma admirável no contexto dessa passagem. Ela sugere uma vez mais que a
manifestação do poder apostólico que os coríntios querem tanto ver é algo que
Paulo só usaria como último recurso para restaurar a verdade. Sua atitude normal
é a de evitar esses confrontos de poder. Desse modo, o aforismo proporciona a
segurança de que a oração de Paulo em favor dos coríntios está respaldada pela
garantia de uma mescla distintamente cristã de fraqueza e força apostólicas.

4. O aluo da oração (13.9). A argumentação de Paulo agora se torna clara,


quando ele retorna abertamente ao cerne de sua oração: “Ficamos alegres
sempre que somos fracos, e vocês são fortes; nossa oração é que vocês sejam
aperfeiçoados”. A oração constante e fervorosa de Paulo é pelo aperfeiçoamento
dos coríntios, ou seja, para que sejam restaurados aos valores cristãos, alcancem
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO

um nível de maturidade real, abandonem o falso evangelho, repudiem os falsos


apóstolos, busquem ardentemente um caráter cristão. Nada agrada mais a Paulo
do que ver seus convertidos maduros, fortes e robustos na fé. Paulo se alegra,
segundo ele diz, quando eles são fortes. E se isso significa que ele parece fraco,
isto é, que lhe faltam manifestações de poder, ele ainda assim se alegra. Paulo
não tem a mínima vontade de montar cenários que lhe permitam fazer uso de
sua autoridade apostólica para construir uma espécie de aura pessoal. Ele prefe­
riría, mil vezes, deixar seu arsenal apostólico em casa e assistir seus convertidos
crescerem até a plena maturidade, a qual dispensa a constante disciplina externa
e o controle de um apóstolo.
Há, no relacionamento de Paulo com os coríntios, um modelo de extrema
humildade para toda liderança cristã verdadeira. Mesmo forçado até o limite,
sua atitude não é jamais retaliatória nem mesquinha. Ele ainda deseja acima
de tudo o bem-estar espiritual de seus convertidos. Não tem nenhum interesse
em questões que lhe tragam vantagem pessoal, recompensa financeira, segu­
rança, promoção ou reputação individual. Suas energias estão concentradas em
levar seus convertidos à maturidade, à restauração e ao aperfeiçoamento. Se ao
longo do caminho isso implicar que ele desça mais alguns níveis para rebaixar
a si mesmo, essa possibilidade não o perturba. O que o aborrece bem mais é a
possível necessidade de confronto, pois sugeriria a existência de muitos peca­
dos sérios na congregação. Não há nada em que Paulo mais se pareça com seu
Mestre, a quem ama e serve, do que em sua atitude para com a igreja na qual é
apóstolo. Que o Senhor possa levantar uma geração de líderes espirituais com
mentalidade semelhante.

C. O propósito equilibrado de Paulo em escrever (13.10)


“Por isso escrevo estas coisas em minha ausência, para que, quando chegar,
não precise ser rigoroso no uso da autoridade — a qual o Senhor me deu para
edificá-los, e não para destruí-los.” Nessa frase, Paulo deixa seus leitores cientes,
ao menos em parte, do propósito por que escreve. Mas, de certa maneira, o
versículo também serve como resumo de 2Coríntios 10 a 13. Paulo fora acusado
de escrever cartas vigorosas quando ausente, mas de se mostrar fraco quando
pessoalmente presente. Num certo sentido, a acusação se justifica, mas Paulo
diz que a razão para escrever tais coisas durante sua ausência de Corinto é para
que, quando ele de fato chegasse, não precisasse ser severo ao usar da autoridade
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

apostólica a ele outorgada. Se a carta cumprisse seu papel da forma que devia,
haveria arrependimento e obediência ao evangelho em Corinto, e Paulo não
seria forçado a mostrar o rigoroso poder da disciplina com a qual os cristãos
de Corinto seriam ameaçados, caso isso não acontecesse.
Assim, Paulo, ao mesmo tempo, espera obter bons resultados e faz uma
advertência final, caso suas esperanças sejam frustradas. Ele reconhece que Deus,
em seu propósito abrangente, lhe outorgou autoridade para que ele edificasse
a igreja; mas o apóstolo sabe que às vezes um passo intermediário necessário, e
talvez doloroso, é o de destruir estruturas mal construídas (cf também 2Co 10.8).
Mesmo relutando em usar seu poder de forma tão destrutiva, Paulo lembra
serenamente à igreja, uma vez mais, que está preparado para dar tais passos,
caso sua carta não obtenha sucesso em purificar a igreja antes de sua chegada.
E importante reconhecer a extensão e a independência da autoridade
apostólica implicadas nesse tipo de advertência. Embora Paulo veja que, em
certos aspectos, a evidência de sua autoridade apostólica é a própria igreja de
Corinto, juntamente com as demais igrejas estabelecidas por ele, sua autoridade
não depende em nenhuma hipótese dessas igrejas. Caso ficasse provado que a
igreja de Corinto era amplamente falsa, ele estaria à vontade para destruir a obra
e remover a podridão, na esperança de construir algo melhor. Não é isso o que
ele quer, antes prefere consagrar suas energias à edificação, não à disciplina. Mas
Paulo tem consciência da autoridade que lhe foi outorgada para levar a cabo
tanto uma tarefa quanto a outra. Nesse caso, qual delas ele terá de empreender
depende muito dos próprios coríntios.

D. Saudações finais (13.11-13)


Nessas linhas finais, 2Coríntios 13.11 lança ainda um olhar retroativo ao restante
da carta, ao mesmo tempo que é bem possível encontrar os versículos restantes
no final de qualquer carta de Paulo. Paulo anuncia o final de sua missiva com
um cauteloso: “Sem mais, irmãos, digo adeus!”. Então, como se ainda estivesse
preocupado com seus leitores e não conseguisse deixá-los partir sem dar mais
uma breve palavra de exortação, ele prescreve quatro breves recomendações.
A primeira é: “Procurem aperfeiçoar-se...” (a palavra usada é um cognato
do termo “aperfeiçoado”, mencionado em 2Co 13.9). Lá, ele orou para que os
coríntios fossem aperfeiçoados; aqui, ele os exorta a isso. Nos dois casos, ele está
em busca da mesma coisa: a maturidade cristã. No contexto de toda a carta, essa
ADVERTÊNCIA E ORAÇÃO 187

recomendação significa, em termos práticos, que os coríntios devem receber


os enviados de Paulo com hospitalidade cristã, devem abandonar toda idolatria
persistente (6.14—7.1), continuar a preparar uma contribuição generosa para
socorrer os crentes pobres de Jerusalém e, à luz dos quatro últimos capítulos,
abandonar o triunfalismo e a prática de tentar parecer melhor do que os outros
quando instituírem a disciplina na igreja.
A segunda recomendação é “ouçam ao meu apelo”. Isso também força os
leitores — tanto os coríntios quanto nós mesmos — a reverem a carta. Além
disso, faz da exortação para que busquem o aperfeiçoamento uma questão de
obediência ao apelo e à exortação do apóstolo, não algo acessório opcional.
É provável que “tenham um só pensamento”, a terceira recomendação,
signifique bem mais do que “procurem se dar bem uns com os outros”. Antes, a
vontade de Paulo é que os membros da igreja de Corinto resolvam de tal maneira
suas diferenças de opinião, submetendo-as ao teste do evangelho apostólico,
que tenham uma só mente. Como ele lhes escreve noutra parte: “Irmãos, em
nome de nosso Senhor Jesus Cristo suplico a todos vocês que concordem uns
com os outros no que falam, para que não haja divisões entre vocês, e, sim,
que todos estejam unidos num só pensamento e num só parecer” (lCo 1.10).
Os evangélicos atuais que partilham de fidelidade comum às Escrituras fariam
bem se alimentassem esse tipo de tentativa para alcançarem uma só mente e
pensamento quanto ao que as Escrituras significam. Muitos de nós somos tão
ameaçados por companheiros na fé ou estamos tão presos a nossos distintivos
denominacionais, que temos medo de ser reformados pela Palavra de Deus
ou somos orgulhosos demais para aceitar a correção daqueles de quem dis­
cordamos. O apóstolo espera que trabalhemos com o objetivo de alcançarmos
uma única mentalidade.
Na quarta recomendação, Paulo diz aos coríntios: “vivam em paz”. As
práticas de querer ser melhor que os outros e do triunfalismo invariavelmente
produzem polarização, ciúmes, facções, calúnias. Caso os crentes de Corinto
se arrependam do pecado que está no âmago de sua rebelião, eles superarão
algumas de suas implicações. A recomendação para que vivam em paz enfoca
essas implicações e reflete a alta prioridade que a Bíblia atribui à demonstração
de unidade e paz entre o povo de Deus (e.g., Ef 4.1-3).
A essas quatro recomendações, Paulo anexa uma bênção: “E o Deus de amor
e paz estará com vocês” (2Co 13.11). Essa declaração poderia ser considerada
uma de duas possibilidades. Poderia significar que Deus, a fonte do amor e da
UM MODELO DE MATURIDADE CRISTÃ

paz, supriría essas virtudes com seus próprios recursos para capacitar os coríntios
a obedeceram às recomendações. A expressão “o Deus de amor e paz” nesse
caso significa que Deus é o doador do amor e da paz. Segundo a outra possi­
bilidade, que nesse contexto talvez seja de algum modo a melhor, o amor e a
paz poderíam ser vistos menos como dons e mais como características de Deus
(cf. Rm 5.8; ICo 14.33). Nesse caso, a promessa da presença do Deus de amor
e de paz depende da obediência às recomendações. Se os coríntios buscarem se
aperfeiçoar, derem ouvidos ao apelo de Paulo, aprenderem a ter uma única mente
e a viver em paz, então descobrirão que o Deus de amor e de paz estará com
eles. Caso contrário, descobrirão que esse mesmo Deus é quem dá autoridade
e poder ao apóstolo para aplicar a severa disciplina no volúvel povo de Deus.
Paulo conclui com algumas saudações padronizadas que ele reveste de
conotações cristãs. O beijo era uma forma comum de saudação no mundo
mediterrâneo, e ainda é em muitos lugares. Mas Paulo diz aos coríntios para que
se cumprimentem com um “beijo santo”, não porque esteja sugerindo que os
beijos de não cristãos sejam “profanos”, mas porque são santos a comunhão e
o amor que o beijo de saudação deve refletir na comunidade cristã (cf. também
Rm 16.16; 1 Co 16.20). Extrapola as evidências rotular o beijo santo como um
ato de culto, como se fizesse parte de uma liturgia definida; mas, na melhor
das hipóteses, deveria refletir a unidade de pensamento aliada ao amor e à paz
na assembléia cristã.
Ao mesmo tempo, os coríntios precisam ser lembrados de que não são os
únicos cristãos no mundo. A frase “Todos os santos lhes enviam saudações”
(2Co 13.13) — talvez todos os crentes da área de onde Paulo estava escrevendo,
cristãos de alguma igreja da Macedônia, como a de Filipos, Tessalônica ou
Bereia — é, portanto, mais que uma cortesia; é um saudável lembrete para todos
os crentes, dos coríntios em diante, para que se vejam como uma parte, mas só
como uma parte, de todo o corpo de Cristo. Tal senso de unidade deveria ser
motivo tanto de arrebatamento quanto de preocupação. Deveria nos propiciar
uma visão da abrangência da obra redentora de Deus, mas permitir-nos ver que
nosso grupo local de cristãos não é o centro de toda a igreja. A maneira de ver
dos coríntios envolvia a banalização do evangelho e da igreja, ao mesmo tempo
em que exaltava os crentes. A maneira de Deus é mostrar a grandeza da igreja,
ao mesmo tempo em que torna os crentes humildes.
E assim chegamos à bênção final: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor
de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vocês” (2Co 13.14).
ADVERTÊNCIA E ORAÇÀO

A ordem das pessoas da Divindade — Filho, Pai e Espírito Santo, — ao contrário


da ordem mais usual de Pai, Filho e Espírito Santo, talvez se deva um pouco
à enorme ênfase no autossacrifício e no rebaixamento pessoal presentes nesses
capítulos (cf. 8.9), uma vez que essas virtudes foram tão magnificamente mani­
festadas por Cristo. A graça mostrada por Cristo condena nosso egocentrismo e
triunfalismo; o amor de Deus demonstrado pela graça de Cristo expulsa nosso
ciúmes e sectarismo; e a comunhão que o Espírito Santo cria entre nós trans­
forma em algo ridículo a mesquinha arrogância de mentes focadas em si mesmas.

E. Consequências
Esses capítulos reverteram a situação em Corinto? Não sabemos ao certo. Em
outro lugar, um grupo de igrejas, ou de líderes eclesiásticos, abandonou Paulo
(cf. 2Tm 1.15), apesar de sua advertência sobre a apostasia iminente (At 20.29-31).
Mas no caso em questão, há pequenos sinais sugerindo que os coríntios rea­
giram de forma positiva à emocionante carta de Paulo e obedeceram a suas
recomendações. O indício mais importante emerge do fato de que, quando
a ameaça da terceira visita se concretizou de fato (cf. v. 2,3), Paulo encontrou
tempo para escrever sua carta aos romanos. Essa carta deixa escapar alguma
ansiedade quanto ao futuro (15.30,31), mas nenhuma quanto ao presente. Além
do que, à luz de seus comentários em 2Coríntios 10.15,16a, Paulo não estaria
naquele momento planejando viajar à Espanha (Rm 15.24-28) se a situação dos
coríntios ainda estivesse sem solução. O fato de os coríntios terem feito a coleta
de parte dos fundos que Paulo estava ajuntando para os crentes em Jerusalém
(Rm 15.26,27) pressupõe, para dizer o mínimo, que não houve rompimento
final entre o apóstolo e os coríntios.
No entanto, para nossos propósitos, a pergunta mais importante que
podemos fazer diz respeito ao efeito que este livro terá em nossa própria vida
e congregação. A Palavra de Deus escrita pelo apóstolo Paulo não exerce seu
efeito mais poderoso em nossa vida quando fazemos perguntas arcaicas acerca de
como ela tem tocado os outros, mas quando a obedecemos de todo o coração.

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